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Tese de Doutorado
Orientador: Joaquim Alves de Aguiar
Aluno: Rodrigo Lacerda
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada
2
Resumo:
Abstract:
biografia - biography
estilo - style
modernismo - modernism
regionalismo - regionalism
jornalismo - journalism
4
Sumário
Origem trasmontana, 26; Presidente Altino, 33; A crise de 1929 e a música, 36; O
casamento e o frigorífico Armour, 39; Estado Novo, primeiro filho, 43; O Morro da
Geada, 46; Formação religiosa, 50; Vila Pompéia, 52; Um espírito proverbial, 59;
Primeira incursão na “malandragem”, 65; Sai a música, entra a literatura, 71; Vila
Jaguara e novo empreendimento paterno, 75; Falência, isolamento familiar e
literatura, 76; Tempo de saias, sinuca e bebida, 83; Graciliano, Noel e a 2a dentição
literária, 95; Um primeiro conto e dois maus poemas, 100; Passagem pela caserna,
105; Cabeça aberta pela literatura, 108; Mudança para o Jaguaré e incêndio, 116;
Perda e Recuperação de seus originais, 118.
Matéria biográfica, 233; Contos de homens, 246; O Espírito da Cidade, 248; Estado
de Ebulição, 260; Da Autobiografia Descontínua à Fantasia em Liberdade, 267; Um
Estilo Bem Comportado, 273; Um Antônio de Alcântara Machado Deprimido, 281; O
Regionalismo Urbano de João Antônio, 289.
São Paulo x Rio de Janeiro, 306; Primeira Redação de Jornal, Primeiro Amor, 318;
Problemas no Amor e no Jornalismo, 325; Jornalismo e Projeto Literário: A
Experiência no Jornal do Brasil, 356; O Jornal do Brasil, 363; Revista Cláudia, 385; A
Realidade, 394; A Explosão de Gêneros, 410.
Bibliografia, 461
5
E, para ele, a literatura era mais importante que tudo. Mais até do que
a família. Marília, sua principal ex-mulher, pois mãe de seu único filho,
Daniel, e próxima até sua morte, saiu do casamento no início dos anos 70,
decidida a morar fora do país. João Antônio não era um marido fácil,
embora seu incrível apetite para a conversação o tornasse extremamente
envolvente. Não era fácil, entre outros motivos, porque, muito ciumento,
não permitia que Marília, também jornalista, trabalhasse fora de casa, e
tratava ele mesmo de conseguir-lhe pautas e encomendas. Além disso, diz
ela: “Eu e o Daniel éramos alguma coisa que ficava no quarto dos fundos.
Ele não contava para ninguém que nós existíamos. A não ser nos livros, nas
dedicatórias”. 8 Marília se casaria mais tarde com um engenheiro inglês de
multi-nacionais, criando Daniel enquanto acompanhava o novo marido em
suas transferências pelo mundo afora. Ao falar a outra mulher muito
9
Notas:
1
Quando não explicitamente mencionadas outras fontes, as informações sobre a morte do escritor aqui
reunidas provêm das seguintes matérias publicadas na grande imprensa: “Escritor João Antônio é
encontrado morto no Rio”, de Roberta Jansen, in O Estado de São Paulo, SP, 01/11/96; “João Antônio,
59 anos, cronista dos marginalizados”, não assinada, in O Globo, RJ, 01/11/96; “João Antônio é
encontrado morto”, não assinada, in O Jornal do Brasil, RJ, 01/11/96; “João Antônio é encontrado morto
no RJ”, não assinada, in Folha de São Paulo, SP, 01/11/96; “João Antônio: retrato de um escritor
brasileiro”, de Moacyr Scliar, in Folha de São Paulo, SP, 02/11/96; nota na seção Datas, da revista Istoé,
SP, 6/11/96; “Morreu o escritor João Antônio que tão bem sentiu a alma do povo”, não assinada, in A
Gazeta da Zona Norte, SP, 09/11/96; e “Últimas Notícias”, de Mylton Severiano da Silva, in Caros
Amigos, Ano 1, n. 1, abril de 1997, pp.6-7.
2
Depoimento de Virgínio Antônio Ferreira, colhido em março de 2000.
3
Carta a Ilka Brunhilde Lurito, de 23/06/63.
4
Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: O Escritor Brasileiro Hoje. Imprensa Nacional/Casa
da Moeda de Portugal/Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, SP, s/d (anos 80), p.273.
5
Três depoimentos atestam essa mistura sui generis entre os convidados; o de Ilka Brunhilde Laurito,
colhido em maio de 2000, o de Caio Porfírio Carneiro, colhido em maio de 2000, e o de Virgínio Ferreira
colhido em março de 2000.
6
Antônio, João – Abraçado ao Meu Rancor, Guabanara, SP, 1986, p.80.
7
Antônio, João, “Meus Respeitos” in D’Incao, Maria Ângela e Scarabotolo, Eloísa (orgs.), Dentro do
Texto, Dentro da Vida – Ensaios sobre Antonio Candido, Instituto Moreira Salles, Cia. das Letras, SP,
s/d.
8
Depoimento de Marília Andrade, ex-mulher de João Antônio, colhido em setembro de 2000.
9
Carta enviada por Marília a Ilka Brunhilde Laurito, de 10/02/97.
10
E-mail a Wilson Bueno, de março de 1996, aproximadamente.
11
Antônio, João – Ô, Copacabana, Civilização Brasileira, RJ, 1978, pp. 36-37.
12
Pronunciamento de Fernando Bonassi no Simpósio “Brasil, país do passado?”, organizado por Lígia
Chiiappini e Berthold Zilly, em Berlim, em junho de 1998.
13
Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Ladeira, Julieta de Godoy (org.) – Memórias de
Hollywood, Nobel, SP, 1988.
14
Trecho da possível última carta, publicada in O Estado de São Paulo, SP, 09/11/96.
15
Sete Vezes Rua, Scipione, SP, 1996, p.51.
16
Depoimento colhido em 23/3/2000
17
Antônio, João – Abraçado ao meu rancor, Guanabara, RJ, 1986, p.83.
18
“João Antônio e sua estética do rancor”, in Folha de São Paulo, SP, 05/10/86.
19
Antônio, João – Patuléia, Ática, SP, 1996. Antônio, João – Sete Vezes Rua, Scipione, SP, 1996. Para
não dizer que todos os textos eram “requentados”, esta antologia traz duas pequenas crônicas antes nunca
publicadas em livro, chamadas “Flagrante pequeno da miniguerra do Metrô” e “Mendigos e Mafueiros
22
20
Antônio, João – Dama do Encantado, Nova Alexandria, SP, 1996.
21
Virgínio, o irmão, diz algo importante: “Meu irmão passou a escrever não só sobre os
marginalizados socialmente falando, mas sobre os marginalizados num sentido mais amplo. Os
marginalizados de todas as classes sociais.” Depoimento colhido em 23/03/2000. Não que se tratasse
de algo inédito para João Antônio escrever sobre figuras perseguidas politicamente, ou mal vistas por
questões morais, ou mesmo sobre artistas e intelectuais esquecidos e/ou espoliados. Na Folha de São
Paulo, em 05/10/86, referindo-se ao livro Abraçado ao Meu Rancor, João Luiz Lafetá já identificava o
fenômeno: “Mas algo mudou, sim, no mundo de João Antônio. Sete dos contos são centrados sobre
personagens de classe média, e ainda que neles o pano de fundo continue a ser a pobreza do lúmpen, o
foco está decididamente deslocado. Seu centro não é mais o malandro cheio de picardia, mas o escritor
ressentido, que vê o capitalismo brasileiro reduzir as artes da malandragem à miséria descorada,
esfarrapada e pedinte”. Vale dizer que, se o processo vinha de longe, nunca fora tão evidente, tão
assumido antes de Dama do Encantado. Em entrevista publicada aproximadamente quatro meses antes
de suas morte, o próprio autor considerou uma novidade o perfil de Dama do Encantado: “De uns
tempos para cá, venho desenvolvendo uma certa mania que é a de escrever ensaios sobre situações e
figuras brasileiras.”, in Jornal do Brasil, entrevista a Cláudio Cordovil, RJ, 08/06/96.
22
Antônio, João – Casa de Loucos, Civilização Brasileira, RJ, 1976. A informação quanto à rapidez das
vendas da primeira edição está contida em uma carta de Ilka Brunhilde Laurito para o escritor,
comentando, provavelmente, informação recebida por ele: “Fiquei duplamente feliz! 1) pelo sucesso de
Casa de Loucos – que só se pode chamar de “sucesso”, no Brasil, essa coisa incrível de se esgotar uma
edição de 5.000 exemplares em 3 dias (mais de 1.000 exemplares por dia!)”. Carta de 19/08/1976.
23Candido, Antonio, “Na Noite Enxovalhada”, prefácio a Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço,
Cosac & Naify, SP, 2004.
23
24
Capítulo 1
1913 a 1963
25
Origem trasmontana
1 Quando não indicado o contrário, todas as informações reproduzidas neste capítulo foram extraídas
destes dois depoimentos, básicos para a montagem de uma “biografia familiar” do escritor João
Antônio. O do irmão Virgínio foi colhido em 23/3/2000, e o de seu tio Benjamim dos Anjos em
15/02/1999.
27
idade escolar, Domingos e João Antônio, e que estes ainda não haviam sido
registrados em nenhuma instituição de ensino. Deram-lhe mais sete dias
para fazê-lo. Assim começou a educação formal do pai do escritor João
Antônio, cujos benefícios viriam a ser cruciais na sensibilização intelectual
do futuro contista.
Os dois meninos foram matriculados em horário semi-integral, com
seis horas de aula por dia, recebendo alimentação e uniformes do Estado.
Assim que puderam, inclusive, José Antônio e Felicidade deixaram de falar
português em casa, acelerando, a partir do manejo fluente da língua
francesa, a integração dos filhos à nova cultura. Na escola, sabe-se que José
Antônio aprendeu rudimentos de matemática, mas não a ler.
A Primeira Guerra Mundial terminou em 1918. Data mais ou menos
dessa época o projeto de José Antônio de voltar para Portugal. Há três
razões básicas para que essa idéia tenha brotado em sua cabeça: com a volta
da população masculina do front, o mercado de trabalho diminuiu para os
estrangeiros; as propriedades da família em Portugal davam contínuos
prejuízos, e ele achava que poderia inverter a situação; goivista experiente,
José Antônio ressentia-se de estar sendo sub-aproveitado, sem poder
exercitar ao máximo suas habilidades profissionais nos bicos que
conseguia. Felicidade, entretanto, foi contra a volta. Diz Virgínio, seu neto:
“(...) minha avó, apesar de analfabeta, tinha uma visão muito grande. Não
queria sair da França, dizia que era melhor ser jardineiro em Reims do que
latifundiário em Portugal.”
Seu marido, porém, era reconhecidamente uma pessoa teimosa, e
acabou vencendo a disputa. A família Ferreira voltou para seu país natal
entre 1920 e 1921. João Antônio, o segundo filho, tinha aproximadamente
oito anos.
A volta para Portugal provou-se traumática. De novo em Trás-os-
Montes, a família dedicou-se às propriedades que havia deixado para trás,
30
adaptar ao Brasil. Diz Virgínio sobre o pai: “Quando chegou no Brasil foi
recebido pela garotada com couro”. Uma das primeiras lembranças dessa
fase de sua vida é a musiquinha xenófoba cantada pelos meninos com os
quais ele e seu irmão Domingos jogavam bola de gude: “Português é burro,
brasileiro não”. Assim Virgínio analisa a triste memória: “Como isso deve
ter marcado meu pai, né? Tanto que ele fez sempre questão de ser melhor,
falava muito pouco”. De início, nem português falava, na verdade. “(...) e
os meninos falavam tal coisa para ele, e só o irmão mais velho, nascido em
Portugal, entendia. Então ele perguntava: ‘Qu’est-ce que c’est?’. E meu tio
explicava para ele, e ele foi aprendendo”.
As instituições educacionais brasileiras, por sua vez, estavam longe de
propiciar ao jovem imigrante o amparo experimentado na França. Virgínio
fala assim desta segunda fase da educação de seu pai: “O pouco que ele
aprendeu a ler e escrever – ele tinha uma redação muito boa, meu pai –, foi
na França. Depois aprendeu convivendo, lendo gramáticas, uma coisa e
outra”.
Sem vínculo escolar, já por volta dos doze anos, João Antônio
começou a arrumar seus primeiros empregos. Um deles foi como cobrador
de uma das primeiras linhas de bondes de São Paulo, que saía do Brás e
vinha até o Centro. Mas a experiência não foi das melhores. Sua obrigação
era entregar a receita do dia nas mãos do dono da empresa. Porém, os filhos
do ditocujo começaram a exigir que João Antônio entregasse a eles o
dinheiro. Ao resistir, apanhava. Terminou demitindo-se do emprego. Diz
Virgínio sobre o pai: “Ele trabalhou num sem número de lugares. Ele
trabalhava num lugar, não estava bom, ele saía e ia de porta em porta: ‘Está
precisando de um rapaz?’, ‘Não está precisando de ninguém para ajudar?’.
E assim trabalhou”.
33
Presidente Altino
inegável que este amor conferiu a sua vida tão dura e cheia de percalços
uma dimensão mais leve e alegre. Conta Benjamim dos Anjos, seu irmão
mais novo, que ele “assobiava muito”, o que deve ser verdade, mas não é
tudo. Ele era também um violonista de primeira, conhecido de outros
importantes especialistas no instrumento, como, por exemplo, nada mais
nada menos, que o famoso Garoto. “A música era o grande passatempo
dele, teve grandes amigos músicos. (...) Ele disse que teve duas aulas com o
Garoto, depois que ia lá [na Casa Verde], ficavam conversando e iam para a
cidade, até aqueles cafés de antigamente.” Foi companheiro também de
Geraldo Ribeiro da Silva, o violonista, e de Romeu Di Giorgio, famoso
artesão responsável pela fabricação de violões e bandolins de grande
qualidade.3
Outros amigos, feitos ao longo da vida, não se tornaram conhecidos,
como João Dias, flautista e bêbado que, certa vez, presenteou-o com um
caderno cheio de partituras musicais escritas à mão, predominantemente de
peças clássicas. Ou “seu”Ascendino, violinista original de Araraquara e
colega de trabalho, cuja habilidade musical permitia-lhe tocar, de primeira,
partituras nunca antes examinadas, e que dominava o repertório erudito
com naturalidade, incluindo Mozart, Beethoven e o virtuoso acrobático
Paganini.
Além de intérprete, João Antônio, pai, escrevia as próprias músicas,
embora não tenha passado para o papel nenhuma de suas composições.
Talvez, mesmo querendo isto lhe fosse impossível. João Antônio tirava as
músicas de ouvido e, auxiliado por uma excelente memória musical,
conseguia tocá-las com brilho e emoção. Também “por instinto” deveria
funcionar seu processo criativo. Seu filho homônimo, dali a alguns anos,
assistindo-o nas rodas de choro, entraria em acordo com o bandolim,
também graças à pura habilidade natural. A convivência com o universo da
3 Da Silva, João Ribeiro Neto – João Antônio, coleção Literatura Comentada, Abril, SP, 1980.
39
6 Antônio, João – “Pequena Especulação em torno de Três Momentos do Poeta da Vila”, publicado em
O Estado de São Paulo, em 01/05/83.
7 Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/09/1960.
8 Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Record, Rio de
Janeiro, 1982.
42
O Morro da Geada
14Antônio, João – “No Morro da Geada”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o Inferno!, São
Paulo, Scipione, 1991.
48
15 Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o Inferno,
São Paulo, Scipione, 1991.
16 Idem.
17 Referência ao“campinho de futebol da U.M.P.A. (União Mocidade de Presidente Altino)”. Antônio,
João – “Vibrações. Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o Inferno, São Paulo,
Scipione, 1991.
18 Idem.
49
de minha avó Nair, filha de bisavó geniosa. (...) É Nair, Dona Nair, Dona
Nair de Cardoso de Sá Gomes, a que sabe fazer, até hoje, aos oitenta e seis
anos, uns olhos azuis e sararás, tão femininos e bons fora da conta se
viajam para os netos”.19
A família, concentrada naquele morro, era grande e querida, fazendo-o
sentir-se protegido: “Sou, assim, homem de sorte. De pequeno, paparicado
por avó, bisavó e doze tios e tias avós”.20
“Nenhum de nós sabia dizer a palavra solidariedade. Mas na casa de
outro tio, o nosso tio Otacílio, criavam-se até filhos dos outros e estou certo
de que o nosso coração era simples, espichado e melhor. Não
desandávamos a reclamar da vida, não nos hostilizávamos feitos
possessos.”21
“Nossa pobreza não era envergonhada. Ainda não fora substituída pela
miséria nos morros pobres como o da Geada. Tínhamos um par de sapatos
para o domingo. Só. A semana tocada de tamancos ou de pés no chão.”22
Mas João Antônio, também por essa época, aprendeu a circular pela
cidade, de bonde, ensinado pelo tio Rubens, irmão de sua avó Nair, um
“mulherengo de topete, bigode frajola, pobre, carioca, porém caprichoso
nas roupas (...) Mas os bondes. Nada fácil esquecê-los. Os abertos, que a
gente pegava e de que saltava andando; os fechados, a que chamávamos de
camarões. Vinham, volata, que cantavam nos trilhos, cortando desde o
Largo do Correio, pegando toda a avenida São João, entrando pelos bairros
e acabando lá longe, no Anastácio. Ou, ainda melhor, lá em Domingos de
Morais. Uma viagem em todos os sentidos”. 23
Não obstante todas as brincadeiras e afazeres de menino “da roça”, o
intenso convívio familiar e a liberdade proporcionada pelos bondes, o
19 Idem.
20 Idem.
21 Idem.
22 Idem.
23 Idem.
50
Formação religiosa
José Antonio, o avô, era católico fervoroso. Seu filho Domingos, por
exemplo, que a uma bela altura da vida decidiu abandonar o catolicismo e
tornar-se presbiteriano, indignou o velho português. Para contra-atacar, o
goivista analfabeto aprendeu a ler depois dos 70 anos, com o único intuito
de discutir passagens do Livro com o novo protestante da família.
João Antônio Ferreira, o pai, havia aprendido português lendo a
Bíblia, para depois se transformar num grande leitor, inclusive de livros
religiosos. Adulto, já não pertencia a nenhuma Igreja. Possuía, entretanto,
24 Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada: João Antônio, São Paulo, Abril Cultural, 1980.
25 Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 0/09/1960.
26 Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: O Escritor Brasileiro Hoje, Lisboa, Imprensa
Nacional Casa da Moeda, Lisboa, , e São Paulo, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, s/d. O
texto foi republicado no O Estado de São Paulo, em 14/10/84.
27 Neto, João da Silva Ribeiro – João Antônio, Literatura Comentada, Abril, SP, 1980.
51
Vila Pompéia
um homem muito magro, como ele, cuja saúde, naquela época, era
debilitada por um problema digestivo crônico, provocado por uma má
formação em sua vesícula.
O filho primogênito, logicamente, era chamado a ajudar, naquele
início dos anos 40: “Faço viagens ao Mercado Municipal. Apanhar
mercadorias nas beiradas do Tamanduateí. Corre-corre lutado atrás do
balcão. Enlitro óleo de cozinha, querosene, ensaco carvão, ajudando os
velhos”.
Pouco se sabe das amizades de João Antônio nessa época. Em sua
obra, há poucas informações a respeito. Algumas referências contidas em
sua correspondência, entretanto, ajudam a compor uma imagem dos amigos
que fazia, e das experiências que com eles vivia. Por exemplo: “Paulo,
Mário e Quim. Paulo tinha olhos azuis e muito me considerava, que eu
deslizava bem com o meu patineti e dava melhor ainda para uma roda de
capoeiras. (Um dia, eu vou lhe contar que na minha infância, na rua
Caiovás, Vila Pompéia, eu joguei capoeira; e que apanhava em casa porque
sempre voltava rasgado). Mário tinha a testa enorme, bem menor que o
meu coração entretanto. Quim era negro, bêbado, ex-expedicionário, bem
mais velho que eu. Amigou-se com Boneca e por ela bebeu, bebeu, bebeu,
bebeu... Bebeu todo o seu dinheiro que em 1945 eram dezessete contos de
réis, recebidos como prêmio das Forças Expedicionárias. E o meu Quim
que não morreu na Itália, morreu na Vicentina (hospital de bêbados já com
adiantamento de cólera-tremens), inchado, feio, com os olhos raiados de
sangue.
Encabulei, entristeci. Quim me fazia falta e ao meu mundo de menino.
Mundo de piratas, de estilingues e de meninas. Todas fatais me
estraçalhando...”.32
Mas, além desses três primeiros, havia dona Amélia, e seu Augusto,
32 Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 24/08/1960.
56
35 Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o Inferno,
São Paulo, Scipione, 1991.
36 Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/1960.
37 Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o Inferno,
59
Um espírito proverbial
Record, 1982.
60
39 Idem.
40 Idem.
41 Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.
61
42 Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982..
43 Idem.
62
tempo antes de lhe vir à boca, represada nas noites, remoída, remexida, ida
e vinda. Pensada e tamanha. Uma consideração:
— Mulher é imprescindível”.48
Ou ainda: “Meu pai tem a frase seca, que mal e mal vou ao fundo:
— A idade faz velhos, não faz sábios”.49
E mais uma sobre mulheres: “As mulheres são criaturas do sexo
feminino”.50
Ou, por fim: “Desses ensinos, outro que me ficou, bulindo, cedo – um
homem que não sabe brincar, vai morto no mundo”.51
Ele não tinha, a que se saiba, preferência por um ou outro filho. Estes
é que tinham, isto sim, uma diferença de dez anos de idade, o que viria a
influenciar a relação deles com o pai. Conta Virgínio que: “Meu irmão
conseguiu conviver com uma parte do meu pai que eu não consegui. Veja,
esse período de convivência [entre pai e primogênito] durou poucos anos,
até 1951, mais ou menos, quando o João tinha uns 14 anos. Eu depois
convivia com o meu pai mais tempo, mas não entendia certas coisas que o
João entendia, coisas da vida. Meu pai não falava certos assuntos comigo
que falava com ele, por causa da nossa diferença de idade”.
Mesmo com esse contato relativamente mais profundo, que começou
na Vila Pompéia e durou até 1951, a figura do pai é contraditória na vida do
filho mais velho, assumindo ora o contorno de um severo preceptor,
moralista e até violento, ora o homem das sensibilidades, amigo das artes e
das coisas delicadas.
48 Idem.
49 Idem.
50 Idem.
51 Idem.
65
52 Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralho”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
53 Idem.
54 No texto “Pequena especulação em torno de três momentos do poeta da vila”, in O Estado de São
Paulo, SP, 01/05/83, que funde memórias dos primeiros contatos do escritor com o Rio de Janeiro e
uma análise das fases da carreira de Noel Rosa, João Antônio apresenta mais recordações dessas
primeiras viagens ao Rio: “Uma vez que não parávamos, andejando de trem por aí, chegamos até
Maxambomba, pela Leopoldina, longe pra danar, e visitamos a parenta baiana Ercília [não foi possível
saber o grau de parentesco do escritor com esta pessoa], velhusca, de lenço à cabeça e que vendia mel
66
Nada mais natural que, de tanto ouvir e de tanto gostar, o menino João
Antônio começasse a sentir-se desafiado a tocar.
“Aprendo chorinho sem tocar. (...) Ali pelos nove anos, pinicava
rápido, jeitoso, o Apanhei-te, Cavaquinho e uns pedaços avulsos da Marcha
Turca.”55
E não apenas a música fascinava o menino, mas também as pessoas
daqueles ambientes e seus códigos todos especiais. Ele se torna, pouco a
pouco, uma espécie de mascote dos grupos: “Como não falte aos encontros,
passo a conhecido. E faço parte. Claro que não toco, mas sou da turma. Pra
lá e pra cá, de tanto ir e vir, os homens brincam comigo e nos temos
amizade. (...) Dão de presente a meu pai. Uma miniatura de chupeta num
laço de fita vermelha, que o velho pendura na cravelha do bandolim. A
chupeta ao bandolim como eu ligado a meu pai. Todos sentem e ninguém
fala”.56
O episódio acima transcrito introduz, singelamente, a ambigüidade
dos ambientes em que tinham lugar os chorões. De um lado, as rodas de
choro costumavam ocorrer num clima de razoável decência. Pixinguinha
mesmo, do alto de sua autoridade no assunto, dizia sobre isso: “O choro
tinha mais prestígio naquele tempo. O samba, você sabe, era mais cantado
de abelhas. De pequeno, andando com meu avô Virgínio a atravessar a cidade de bonde e de bonde
varar aquela colméia que porejava gentes, cheiros e sons, a Galeria Cruzeiro, hoje Edifício Avenida
Central (...) Com esse Virgínio, avô materno, eu vi teatro, cinema, circo, favelas, subúrbios, cidades do
Estado do Rio e o filme “A Rua do Delfim Verde”, no Metro Copacabana. E o mar, pela primeira vez,
claro. (...) Nada fácil esquecer o tio mais alto, o ainda tio-avô Rubens, mulherengo, pobre porém
caprichoso, vestido todo de branco, impertigado, namorador, impenitente e alegre como poucos, a me
ensinar nos bondes a olhar para as pernas das mulheres e também a lhes oferecer o lugar; aquele tio
Rubens que, de predestinado a novas mulheres, ficou viúvo duas vezes. Difícil será esquecer as
bolinhas de gude e o jogo da porrinha aprendido com o pessoal da Favela da Cachoeirinha, enquanto se
empinava pipa ou se ia levar os restos de comida aos porcos, que naqueles morros criavam-se, como se
criavam galinhas, cabritos, patos, marrecos. E passarinho, quanto. No barraco do tio Otacílio, criavam-
se, inda mais, filhos dos outros. Que assim era o coração do mulato de cabelos brancos, contínuo de um
Ministério lá no centro da cidade. Descia no Lins, tocava a pé para o barraco e, chegando, me salvava:
‘O, batuta!’ (...) Mas assim, de lá pra cá e retornando, dos cinco aos dezessete anos, meu coração ainda
pequeno, andou de trem, e muito, de São Paulo ao Rio, ida e volta. Dentro das duas cidades, ele viajou
nos trens miseráveis e incertos de subúrbios pelas velhas Central do Brasil e Sorocabana. Sempre na
Segunda classe, com ou sem as mãos dadas aos mais velhos”.
55 Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralho”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
56 Idem.
67
nos terreiros, pelas pessoas muito humildes. Se havia uma festa, o choro era
tocado na sala de visitas e o samba, só no quintal, para os empregados”. 57
Porém, a condição de mascote, a brincadeira com a chupeta, parecem
indicar que a presença de crianças no ambiente, como ouvintes fiéis, não
era tão corriqueira e usual. Afinal, embora os ambientes das rodas de choro
não fossem propriamente os da malandragem “profissional” – pois essas
rodas costumavam ocorrer em casas particulares e não em salões de sinuca,
no jóquei ou em bordéis –, as músicas e as figuras, mais ou menos famosas,
porém cheias de estilo e filosofia popular, e a bebida, claro, compunham
uma atmosfera em boa dose malandra, talvez até, muitas vezes,
involuntariamente. Irene, esposa e mãe zelosa, “enérgica no juízo das
pessoas que extrapolassem”, devia consentir nas idas seu primogênito com
alguma hesitação. Pixinguinha falava dos chorões dos anos 20, e agora o
Brasil já estava à beira da década de 50.
As descrições que João Antônio deixou do ambiente dos chorões
parecem indicar realmente uma atmosfera ambivalente, entre a segurança
do lar e o círculo da malandragem: “Até parece família, na aparência, a
companheiragem que segue nas rodas. (...) Grupinhos se conluiam dentro
do grupo. Sinais convencionados e falas cifradas surgem e funcionam
criando combinações, habilidades. Há derrubadas que se armam aos
poucos, calibram-se com estratégia manhosa, marotamente”.58
E mesmo a relação de um compositor com seu choro, e de ambos com
os companheiros, se parece com um jogo sutil, cheios de velações: “Na
derrubada do choro, só o bom fica de pé. Na derrubada do choro, de duas
você passa a desconfiar. Quando alguém lhe diz: ‘deixa isso comigo’.
Quando alguém lhe diz: ‘este cachorro não morde’. Você aprende. Quem
corre, cansa. A derrubada do choro faz com que, só depois dos vinte e
57Matos, Cláudia – Acertei no Milhar, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 27.
58Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralho”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
68
59 Idem.
60 Idem.
69
61 Idem.
62 Idem.
70
63 Idem.
64 Idem.
65 Conta João Antônio: “Fumei aos 12 anos. Apanhei como boi ladrão. Amei os cigarros”. Trecho de
carta enviada a Ilka Brunhilde Laurito, em 06/10/1960. Apesar da dura repressão familiar, o escritor
tornar-se-ia um fumante inveterado, mantendo uma média de três maços por dia.
71
“ele não falava, só ouvia. João Antônio sentava nos lugares e ficava quieto,
sempre foi assim.”
Brasil”.66
Mas a literatura não era apenas uma alternativa à música.
Era também um espaço onde o ritmo, o tom e a melodia se podiam fazer
presentes. Música e literatura confundiam-se ainda de outra maneira em sua
vida, diz ele: “(...) comecei a descobrir o gosto pela leitura porque meu pai,
por medo que eu lesse coisas que não prestassem, quando me via lendo
alguma coisa, mandava que eu lesse em voz alta; então comecei a perceber
que aquilo tinha um ritmo; comecei a perceber que tinha frases que, por
melhor que eu lesse, não davam aquela melodia, aquele ritmo. Acho que
aprendi literatura muito por ouvido, de tanto ler em voz alta”.67
“O João Antônio chegou a tocar bandolim de ouvido. A primeira parte
da Marcha Turca meu pai disse que ele tirou, eu mesmo nunca vi ele
tocando bandolim, mas era muito afinado o ouvido dele (...). O ouvido do
João era afinadíssimo, inclusive para as palavras – isso é muito importante
– ele gravava muito o que as pessoas falavam”.68
É mais ou menos com doze, treze anos, que João Antônio conhece
Homero Mazarém Brum, um gaúcho de São Sepé que, residente em São
Paulo, publicava um pequeno jornal infanto-juvenil chamado O Crisol. A
redação ficava na Avenida Juriti, em Moema, onde João Antônio chegava
de bicicleta.69
66
Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.
67
Ricciardi, Giovanni – Escrever. Libreria Universitaria de Bari, 1988.
68
Depoimento de Virgínio Gomes Ferreira, colhido em 23/03/99.
69
A mania ambulatória de João Antônio será recorrente em sua vida e obra. A pé, de bicicleta, de
bonde, trem ou ônibus, em São Paulo, no Rio de Janeiro ou em Amsterdã, o deslocamento do escritor
na cidade será sempre intenso, funcionando como parte de seu processo criativo, fonte de inspiração, e
como estratégia de anestesia para as dores sociais e financeiras tal processo se verifica no próprio livro
Malagueta, Perus e Bacanaço (ver cap. 3). Sobre os tempos de bicicleta, ele diz: “Passo, escabriado, a
pedalar na magrela, amorosamente; é a bicicleta Calói, meia-corrida, companheira. Pequena, princesa,
magrela. E vou mais atiçado, alegre como um moleque. Atravesso, de enfiada, capeta, trim-trim, uma
volada chispando nas manhãs de Domingo, varando Vila Anastácio, Lapa, Água-Branca, Perdizes,
Santa Cecília, Centro. Pego a Avenida Nove de Julho, o Paraíso, flecho até Moema. De um lado a outro
da cidade pedalando a minha magrela, chispa, trim-trim, firme envergo o lombo do selim para o cano,
ganhou, são duas horas voadas no selim, a redação do jornalzinho infanto-juvenil, num quartinho dos
fundos de uma casa em Moema, na Avenida Juriti, onde começo a escrever.” Antônio, João – “Paulo
Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro, Record, 1982. E também:
“Ciclo de bicicleta. Um acidente. Outro acidente. Possuí uma de corrida, Bianchi. Custava na época
73
três mil cruzeiros. Desisti das bicicletas como já havia desistido dos patinetes.” Trecho de carta a Ilka
Brunhilde Laurito, de 06/10/1960.
70
Ricciardi, Giovanni – Escrever. Libreria Universitaria de Bari, 1988.
71
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
74
muita coisa séria através desses livrinhos. (...) Havia muitos motivos para a
empolgação de uma vocação literária, por exemplo, as figurinhas do Café
Jardim. Saíam álbuns e os garotos os enchiam com figurinhas tiradas do pó
do café. O primeiro álbum que eu enchi era uma história chamada O
Homem das Cavernas, escrita por Monteiro Lobato. Também as figurinhas
do Café Jardim premiavam os colecionadores com livros e assim li um livro
incrível chamado Os Moedeiros Falsos, de André Gide”.72
Entre seus marcos iniciais, consta também o poema “Canção do
Expedicionário”, de Guilherme de Almeida.73
“Disso [da experiência no Crisol] caí para a escrita. Destrambelhei-me
no gosto pelas palavras e que me lembre, havia uma, lá longe, nos tempos
em que lia gibi, minha primeira criação: mononstro. Numa historiada de
Mandrake ou Brucutu havia um monstro de tal modo horripilante, que nem
era monstro só. Era mononstro e nem houve sabedoria que emagrecesse ou
esfriasse a minha nova palavra.
O redator-chefe da revistinha, gaúcho de São Sepé, me premiava as
colaborações com livros, sem dúvida, de qualidades magníficas. Eu podia
imaginar uma porção de coisas boas ou pressentidas como A Vida do
Escravo Tartamudo Esopo, sua inteligência e picardia, a inclinação para a
justiça e a luta pela liberdade. Minha comoção o acompanhou, fabulista,
escravo, trácio ou frígio, até que o jogavam num abismo”. 74
O livro sobre Esopo foi, na verdade, segundo ele próprio, o primeiro
que o futuro escritor leu, e do qual diz o seguinte: “Esse livro teve uma
influência fundamental na minha primeira dentição literária. Eu me
apaixonava pelo escravo frígio e tartamudo que tinha duas obsessões: a
liberdade e a justiça. Era tão brilhante nessa perseguição, que acabou
72
Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.
73
Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: O Ecritor Brasileiro Hoje, Lisboa, Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, e São Paulo, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, s/d.
74
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
75
76
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
77
Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada – João Antônio, São Paulo, Abril Cultural,
1980.
78
casa quase trepada na outra. Ali pelas beiradas dos trilhos dos trens da
Sorocabana, o casario apequenado e imundo, um e outro barracão de
madeira no meio da alvenaria. Um grupo escolar, nenhum posto médico,
pouco telefone, vendolas, quitandas pingadas, alguma padaria, uma igreja
de padre húngaro e muito desejo, amores atravessados, rompante de
macheza, molecadinha tremelicando friorenta e miúda de pés no chão,
murro semana brava nas fábricas. Maisena, fósforos, frigoríficos, fundições
da Sofunge, serrarias, Anderson Clayton. Muito botequim. A vila, de pobre
e de tristeza, nem campinho de futebol tem. (...) Nas ruas, monturos
proliferam moscas, ratos e insetos ruins. Que saem à noite com os
pernilongos dos seus escondidos. E espetam, azucrinam os ouvidos, fazem
ferver os nervos. Azoam. Algumas calçadas redescobertas de massa escura
e pegajosa, que fede, pregando-se aos sapatos e desconfiamos seja borra de
sabão roubada da refinaria”.78
Vila Anastácio era o bairro onde o recolhimento municipal de lixo
acontecia “uma vez, e uma só por semana”, “era um bairro de mil cheiros,
da madeira das serrarias ao odor do lixo.”.79
João Antônio, pai, estava na faixa dos cinqüenta anos em meados da
década de 50. Enquanto o Brasil caminhava para crescer 50 anos em 5, ele
voltava para trás. Foi dos bastidores que João Antônio, pai, e filho,
assistiram ao sonho da modernidade e do progresso se materializando à
brasileira.
Anos depois, porém, o escritor conseguiu recuperar alguns pontos
positivos do lugar: “Eram [os membros das rodas de choro] imigrantes de
todas as partes do mundo – húngaros, lituanos, russos, poloneses. Lá em
Vila Anastácio, às margens do Tietê, recordista nacional do consumo de
78
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
79
Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada – João Antônio, São Paulo, Abril Cultural,
1980.
79
cachaça, naquele gueto de gente empilhada, que não tinha dado certo na
cidade, eu vivia musicalmente. Conheci a aguardente de pêssego e os
palavrões húngaros, a música cigana, o som do violino”.80
Outro dos resumos biográficos existentes sobre o escritor registra mais
alguns personagens da Vila Anastácio: “povo mestiço de húngaros, russos,
lituanos, polacos e todos os migrantes mais conhecidos. Como passar por
cima das histórias de um russo que, abandonado pela mulher, morreu de
paixão. Como esquecer aquele outro russo, o Estálin, que dizia
seguidamente: ‘Não adianta falar na comunisma, procurar a comunisma, a
comunisma vem sozinha.’ E os árabes? Fuad Auada, da rua dos Armênios,
fugiu com uma mulher, ganhou fortunas roubando areia dos rios, ficou rico
e foi parar no Pacaembu”.81
Arruinado, sem outra saída, João Antônio, pai, vai à luta. É seu filho
quem relata: “Estava rodado. Cavou de novo, corpo-a-corpo com a vida,
com os dedos, com as unhas, minha mãe ao lado depois da porrada.
Catando e catando e catando algum equilíbrio (...) Onde só havia sapos e
tartarugas, conforme a humilhavam os moradores da Lapa, folgados e
limpinhos, lambuzados das importâncias. O pai pelejava e se batia, os
nervos estalavam. Mamãe sofria e ia pra luta, se botava ao lado dele, dentro
do balcão. Ali, mexendo-se como formiguinhas insistentes, aturando
bêbados, gringos e ralados pelos credores, os dois começavam a
envelhecer”.82
Este é um momento crucial na relação entre pai e filho. O primeiro,
proverbial e severo, vira o esforço de toda sua vida ir por água abaixo, e
junto com ele, muito provavelmente, fora sua auto-confiança, sua
80
Entrevista a Nilo Scalzo, Lourenço Dantas Mota, Waldecy Tenório e Teresa Odonto, publicada em O
Estado de São Paulo, 13/02/83.
81
Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: O Ecritor Brasileiro Hoje, Lisboa, Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, e São Paulo, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, s/d.
82
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
80
convicção nos valores que havia defendido, e que vinha procurando passar
aos filhos, em geral, mas sobretudo ao mais velho. João Antônio, de sua
parte, tem a vida radicalmente transformada; e para muito pior. Sua vida
profissional começa aos treze anos de idade. Matricula-se no curso normal
noturno, para poder trabalhar. É inevitável a revolta, o esfacelamento do
conjunto de valores que o mantinham integrado à família. Aos quatorze,
descobre o sexo, a bebida e a sinuca. E tudo o mais que essa trinca costuma
trazer junto.
É ele quem diz, sobre as dores de seus pais: “Eu entendia, e não, essas
dores, que pensava nas minhas.
Vamos dizer. Entendia que, nos filmes, uma mulher rica e burguesa,
com as comodidades aos pés, chorasse. Tédio, nojo ou escárnio. Entendia.
Só não me cabia no juízo que mamãe, cozinhando, se fanando sem
empregadas na lida da casa, ajudando no bar e lavando louça no tanque –
depois daquela pilha viria outra pilha e outra – encontrasse jeito de, às
vezes, baixinho e desafinado, cantarolar”.83
A autoridade paterna, dentro de casa, nunca mais foi a mesma.
Aparentemente, João Antônio, pai, deixou de forçar o destino do filho.
“Meu pai só brigou com o João até o normal. Principalmente porque minha
mãe logo arrumou emprego para ele, pondo-o na Anderson Clayton, a
indústria de laticínios, que ficava no bairro da Saúde”.
De fato João Antônio trabalhou lá, como menino de recados e
entregador da correspondência, office-boy da divisão de refino de óleo. E
suas lembranças do local de trabalho também não eram boas:
“Há fartum da refinaria de óleo, (...) dos esgotos que desembocam e
correm, grossos, pelo Rio Tietê, águas espessas, escuras, encalacradas de
entulhos e arruinadas pelo óleo e pelas imundícies. Correm lerdas, pesadas.
O rio fedido, a que atiram o nome indígena, é o maior esgoto da cidade”.
83
Idem.
81
85
Idem.
86
Idem.
83
87
Idem.
88
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/1960. João Antônio deve estar referindo-se a sua primeira
professora no externato Henrique Dias, sem mencionar a escolinha particular onde aprendeu a ler.
89
Idem.
84
90
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Record, RJ, 1982.
91
Idem.
85
92
Idem.
93
Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.
94
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
86
todos os lados.
“Vou indo, indo, procurando. Sozinho encontro, depois de pegar e
juntar, no quieto, pedaços de conversa de companheiros na fábrica. Zona da
Rua Itaboca e dos Aimorés, único canto da cidade que não briga comigo e
até para beber cerveja envieso para lá.
(...)
O coração na mão. A medo e ressabiado. Sem idade e sem condições,
driblando as farejadas e olhadelas das polícias, de guanacos, de civis, de
militares, de secretas, de cabeças-de-penico, me enfio pelo bordel, que para
mim é mulher e acaba sendo mais que mulher.”95
Mulheres, bebida e sinuca. Três novos interesses na vida. A sinuca é
uma paixão à primeira vista: “O joguinho, o joguinho ladrão. Espiando
maroteiras no bar do Tico, bebendo misturas, ouvindo casos, um dia. Um é
o primeiro. Nos fundos, havia duas mesas de sinuca e depois, em noite alta,
a conversa continuava lá. Uma vez, catei o taco. Sem acreditar que viciasse.
Nisso de pano verde, bigorna, salão, boca-do-inferno, costumo dizer
que a natureza, dadivosa, me deu esta cara de otário. Ou antes, de homem
do povo. Habilidade pouca, mas jogueiro, beliscado nos ambientes do
joguinho, olheiro e apostador. Que até para uma cerveja, eu procurava o
salão.
(...)
Peguei o vício na zona. Ali entendo, pouco rodeio, jogo se aprende
perdendo dinheiro, tempo, sola de sapato em volta da mesa, sono. O mais é
fricote, leite-de-pato, passatempo, embromação de gente família e
desocupada, distração. Mais se apanha de um malandreco, mais se pega os
efeitos, as tabelas, as combinações, a visão da mesa. Se se perde – se perde
no perde-e-ganha – já se aprende a bater. (...) O bom taco, antes disso, já é
um olheiro de jogo. Necessário pendurar o chapéu onde a mão alcance. Só
95
Idem.
87
a fome ensina.
(...)
E bebemos à noite nas bibocas, porres aos domingos, feriados e dias
santos de guarda. À noite, de comum, entornamos, jogamos sinuca, falamos
de futebol, mulher, ou tocamos para o cinema, na Lapa, que Vila Anastácio
também cinema não tem. Os certinhos vão aos namoros. Os apertados pelos
pais, à escola noturna [era o seu caso].
Dei-me com a cambada, recordista na categoria consumidora de
cachaça nos subúrbios paulistas. Deu no jornal. Não deu que, no inverno a
umidade nos entrava nos ossos e nos doía. Gente abandonada, sem eira nem
beira, e deixada pra lá, morria de frio nas ruas, amanhecendo dura. Manhãs
de domingo, antes da missa do padre húngaro, a praça parece um fim de
guerra – bêbados derreados, batidos e sonando feito pedras nas portas dos
botecos. Gente feia e largada no chão: operários de vida suada, na
semana”.96
Era aquele momento o marco de sua entrada em ambientes
extremamente viris, mas que apesar do estímulo do jogo e do prazer sexual
disponível exibiam, simultaneamente, os males cotidianos do homem
urbano. O primeiro “amor bandido” do futuro escritor ensinou-o algo sobre
as ambigüidades da vida na zona.
“Sinuca e mulher aos dezesseis. Então, ficou tudo sério, sério demais.
Inevitavelmente sério. Indesejavelmente.
Ivete, francesa, rua dos Aimorés, no 178. Exigia-me todas as tardes de
Sábado. Se não viesse, apanharia na próxima vez. João Antônio era uma
espécie de masturbação dela. Malandragem eu entendi aos dezesseis anos
com Ivete, nome de guerra de uma francesa qualquer.
Loura e tinha uns trinta anos. Meu corpo boiava no dela.
Ivete me ensinou alguns truques. Mostrou-me uma cambada. Ocupou-
96
Idem.
88
cobria”.98 Certa madrugada, levou uma mulher para seu quarto. Na manhã
seguinte, ao sair escondida, ela acaba deixando cair no assoalho da casa seu
pó-de-arroz. Conta o escritor: “Na manhã, o pai notou. Mas saiu para o bar,
nenhuma fala. Um silêncio de bofetada”.99
E tudo isso regado a cigarro, cerveja e a conhaque “Otard Dupuis,
nacional, depois sumido dos botequins.”100 Outros dois vícios que João
Antônio jamais perderia.
“Bebia, como jamais, sabe? Porres homéricos para enfeitar a
solidão.”101
O bar do Tico era o novo ponto do futuro escritor, onde ficava até de
manhã, varando as noites, bebendo, jogando, ouvindo os veteranos. Lá, e na
zona do meretrício como um todo, a passagem da infância para a vida
adulta não era tão dura. No meio familiar, no entanto, mesmo os rituais de
passagem autorizados, e teoricamente estimulantes para o jovem, parecem
não terminar bem. É o que indica um rápido episódio recuperado por João
Antônio: “Aos meus quinze [anos, o pai] deu para me ensinar a dirigir o
jipe. Abespinhado e orientando aos trambolhões, esquentava-me a cabeça.
Um esporro que assustava. Eu só sabia fumar escondido, jogar sinuca (ele
dizia bilhar), beber, aprontar, cranear o que não devia. E nota baixa no
boletim. Mordendo beiço, meu pai ao lado, ia aporrinhado no volante.
Desgovernei o jipe num muro de Vila dos Remédios”.102
Como se pode imaginar, o cartaz do jovem na família ia se tornando o
pior possível.
“Papai também errava comigo. E a vida também errava com ele.
Culpa de quem? Eu errava sabendo. A vida pespegava uma cambada de
98
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
99
Idem.
100
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/1960.
101
Idem, sem data.
102
Idem, de 06/10/1960.
90
103
Idem, ibidem.
104
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
105
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/1960.
106
Idem, de 31/10/1960.
91
107
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
108
Depoimento colhido em 23/03/2000.
92
109
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
110
Idem.
111
Idem.
112
Idem.
93
pai, nossa mãe, nosso irmão e nossa avó sempre nos dizem: ‘Você tem uma
vida para cuidar’, e é como se dissessem: ‘Você tem que se responsabilizar
pela sua vida’, e nós, via de regra, entendemos assim: ‘Você nasceu e agora
não há remédio, está condenado a aturar a vida.’ (...) Se eu tivesse um filho
(eu ainda terei um filho), hoje ou daqui a vinte anos, diria: ‘Você tem uma
vida para viver’”.113
O fato do pai só ter se esforçado para corrigir os defeitos de
comportamento de “Joãozinho” até o normal, como nos disse Virgínio, não
se deve, aparentemente, a qualquer satisfação com os rumos do filho. Ele
ter recebido “categoria de adulto” no início da adolescência significa que
era precoce – intelectualmente, em sua mobilidade por toda São Paulo –,
mas essa maturidade antecipada não era, aos olhos dos pais, a mais
saudável. Continuava presente a frustração com a recusa do filho em
trabalhar no comércio e agora ela se somava à impotência diante da
vocação do filho para a boêmia. Uma outra hipótese seria um certo
desalento em relação a sua própria concepção de mundo, após a falência da
pedreira, em grande parte provocada por sua ingenuidade e incapacidade de
se impor perante os sócios. Ou ainda a culpa por ter, indiretamente,
contribuído para este gosto do filho pela malandragem. Afinal, vale notar
que foi através do pai que João Antônio esboçou seus primeiros passos no
mundo da música, e que esta lhe serviu, num primeiro momento, como
ante-sala da malandragem da sinuca e, num segundo, da literatura. Irene,
mãe do escritor, ao lhe tolher o gosto pelas rodas de samba, possivelmente
deu um tiro que saiu pela culatra, jogando-o em uma dimensão mais radical
da malandragem. Conta-nos a biografia autorizada de João Antônio: “Daí
para a frente passa a sentir certa dificuldade de comunicação com o pai, que
só seria superada após trinta anos”.114
113
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 19/12/1960.
114
Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada – João Antônio, São Paulo, Abril Cultural,
94
1980.
115
Depoimento colhido em 23/03/2000.
116
Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: O Ecritor Brasileiro Hoje, Lisboa, Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, e São Paulo, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, SP, s/d.
95
120
Entrevista a Ruy Fabiano, publicada no Diário de Notícias, 14/02/76.
121
Diz João Antônio em uma entrevista: “Em contraposição, [à literatura de homem] havia a literatura
98
cor-de-rosa, os romances para moças, muito famosos na época, muito lidos, assinados por M. Delly,
que era Max Delly e todo mundo pensava que era Madame Delly.” Entrevista concedida ao programa
Certas Palavras, concedida em agosto de 1982.
122
Äntônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
123
Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: Escritor Brasileiro Hoje, Lisboa, Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, e São Paulo, Secretaria da Cultura de São Paulo, s/d.
124
Idem.
99
125
Antônio, João – “Pequena Especulação em Torno de Três Momentos do Poeta da Vila”, publicado
em O Estado de São Paulo, em 01/05/83.
126
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 25/12/1960.
127
Ricciardi, Giovani – Escrever: Origem, Manutenção, Ideologia, Libreria Universitaria, Bari, 1988.
100
128
Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o
Inferno, São Paulo, Scipione, 1991.
129
Antônio, João – “Um Preso”, in Literatura Comentada – João Antônio, São Paulo, Abril, 1980. Em
sua biografia autorizada de João Antônio, João da Silva Ribeiro Neto escreve: “Sua experiência
jornalística já tinha começado no extinto jornal O Tempo, para o qual escrevera vários contos curtos.”
Entretanto, além de “Um Preso”, nenhum outro conto de João Antônio foi encontrado por esta pesquisa
nos números do jornal publicados no ano de 1954. Ao que tudo indica, há aqui ou equívoco do
biógrafo, ou um primeiro caso de reinvenção de episódios biográficos, a qual João Antônio recorreria
em outras circunstâncias da vida, como se verá no decorrer deste trabalho.
101
insuficiente a que meti o nome de Um Preso. (...) Digo que defequei aquilo,
a que chamei de conto”.130
O texto conta a história de um trabalhador honesto, acusado de
esconder armas em casa durante uma revolução. Sua casa é ameaçada de
invasão por soldados e ele, ao reagir, mata ou fere um dos homens, assim
indo parar na cadeia. É inevitável, para quem conhece os desdobramentos
de sua obra, que discutiremos mais para a frente, não enxergar, mesmo que
ainda tão cedo, algumas constantes em seu futuro estilo literário. Em
primeiro lugar, o universo ficcional já é o dos oprimidos. Além disso, o
conto é narrado em primeira pessoa, pelo preso, que reflete sobre seu
passado e seu presente em tom de lamentação. Por fim, a voz narrativa
composta por João Antônio para seu preso já apresenta, também, sinais de
sua preocupação em reproduzir a linguagem das ruas, usando palavras
como “bóia”, “cachola”, etc.
Contudo, um começo é um começo. Há certa artificialidade na entrada
do conto, quando o prisioneiro contraria sua completa resignação e, à tôa,
decide perguntar ao carcereiro em que dia estão. Fica sabendo, por uma
coincidência um tanto forçada, que está completando dez anos de pena
justamente naquele dia. Além disso, a fala coloquial urbana brasileira
aparece misturada a um ou outro portuguesismo, o que produz uma
“interferência” na constituição daquela voz. Veja-se os casos “Os
companheiros da prisão (...), andam a arrastar-se por aí”, ou “Vivi anos a
lutar, sem parada”, ou “Ao cabo d’algum tempo”, ou ainda “ouvindo
humilhações duns e nostalgia doutros”. A interferência causada por essa
prodigalidade no uso dos verbos no infinitivo, e por certas sonoridades que
mais ou menos explicitamente “comem” uma letra, aproximando-se da
pronúncia portuguesa, é complementada pelo uso de construções artificiais,
130
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
102
131
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 15/08/1961. Estes versos foram recortados e guardados pelo
próprio escritor em seu caderno de coisas publicadas, um hábito nascido, como se vê, bem no início de
sua carreira, e que jamais o abandonou. Ao final de sua vida, João Antônio guardava em sua casa
pastas e mais pastas com uma enorme quantidade de recortes de jornais e revistas, compondo um
formidável acervo sobre sua obra e sua trajetória no meio literário. São entrevistas, resenhas, notícias,
contos, crônicas, perfis biográficos, um poema tardio, etc.
132
Antônio, João – Malagueta, Perus e Bacanaço, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963.
106
A começar pela epígrafe que serve a ambos: “Soldado é aquilo que fica
embaixo da sola do coturno do sargento”.
A juventude desregrada do escritor, que aceitava com dificuldade as
reprimendas paternas e maternas por seu gosto pela sinuca, pelas mulheres
e pela boêmia; que ignorava os conselhos do avô Virgínio, instando-o a
largar essa vida; que já tinha grande dificuldade em encarar seriamente os
estudos, agora ainda mais atrapalhados pelos compromissos militares; com
toda certeza teria ainda mais dificuldade em se enquadrar na severa
disciplina do exército. O coração do jovem João Antônio estava na
literatura e na noite de São Paulo, nunca no quartel.
Em ambos os contos relacionados ao exército, o ambiente que toma
forma é um ambiente, no mínimo, desagradável, cheio de injustiças, de
capitães caprichosos e sub-comandantes sádicos, de solidão, do desejo de
passar despercebido, a melhor estratégia para não arrumar confusão.
Embora não haja muitas informações sobre o período, o escritor o
deixa registrado em parte de suas memórias:
“Soldado, um fiasco. Lá no Paraíso, outro canto da cidade, dois ônibus
todos os dias, um dinheirão só de passagem. Minha mãe tenta me
resguardar e, no quieto, me atravessa uns trocados. O soldado número 178
da terceira companhia de infantaria toma cadeia, toma pernoite, dá
alterações, repete por castigo cangurus e exercícios físicos puxados, tropica
na ordem unida, é julgado incapaz na ginástica de cordas. Possivelmente
nunca se viu tamanha falta de jeito nem relapsia renitente para as artes
militares.
Um dia, o capitão-comandante gritou na tarde, como se fosse para
todo o Paraíso ouvir:
— Esse recruta é encruado e parece que vai ser paisano o tempo todo!
107
interior dos cinemas dos japoneses, na Liberdade, que senti pela primeira
vez, na pele, a força do preconceito de raça. Acendiam-se as luzes e, em
toda a sala, só um não era niponico. O único”.135
135
Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o
Inferno, São Paulo, Scipione, 1991.
136
Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada: João Antônio, São Paulo, Abril Cultural,
1980.
109
137
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
138
Entreviata concedida a Lídice Leão e Maria Silva Pereira, publicada no Jornal da Tarde, São Paulo,
13/07/91.
110
ele encontrava um cinema que não mentia, que mostrava as pessoas e suas
vidas como realmente eram, e nessa fase assistiu a ciclos de cinema sueco,
indiano, polonês, francês, japonês, russo, italiano e de cinema de
animação.143 Tudo isso se passava no Ibirapuera ou na sala Sete de Abril, o
cine Coral. Leu e estudou cinema na época.
Ele conta, desse envolvimento com o cinema, o seguinte episódio:
“Dei, também, para ouvinte de cursos de literatura na Faculdade de
Filosofia da Rua Maria Antônia. Diacho. Aquilo chamado romance era
sério. Também os filmes.
Uma noite, ninguém esperava, Antonio Candido começou sua aula
sobre o romance Senhora, de Alencar, dando um esporro na chamada
burguesia paulista.
Devíamos, de imediato, assistir a um filme que passava
comercialmente no Coral. Era um italiano, de Antonioni, A Aventura. Tão
bom que a platéia vaiava o tempo todo, xingava ou, debaixo de
reclamações, deixava a sala de exibição”.144
Em carta de 1960, ele dá uma idéia do repertório cinematográfico e de
sua familiaridade com os nomes de atores e diretores: “Vi bons filmes,
embora perturbado mentalmente. Febre. Vi ‘Hiroshima, Mon Amour’;
‘Roma, Città Aperta’, de Rossellini, com Aldo Fabrigi e Anna Magnani; vi
‘Paisà’, de Rossellini, com Maria Michi e Gar Moore, e vi, ‘Ossessione’ (ô
filme! ô loucura, sabe, o que é loucura?) com Massimo Girotti e Clara
Calamari, o diretor é Luchino Visconti”.145
Nesta mesma época, de insaciável abertura para as artes, João Antônio
chega ainda a fazer aulas com o grupo do Teatro Arena, “onde era mestre
143
Entrevista a Nilo Scalzo, Lourenço Dantas Mota, Waldecy Tenório e Teresa Odonto, publicada em
O Estado de São Paulo, 13/02/83.
144
Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o
Inferno, São Paulo, Scipione, 1991.
145
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/08/1960.
112
146
Entrevista a Nilo Scalzo, Lourenço Dantas Mota, Waldecy Tenório e Teresa Odonto, publicada em
O Estado de São Paulo, 13/02/83.
147
Guarnieri viria a representar seu personagem Perus, na adaptação de seu conto mais famoso,
“Malagueta, Perus e Bacanaço” para o cinema, dirigida por Maurice Capovilla e lançada na segunda
metade dos anos 70.
148
Revista Veja, São Paulo, 16/07/75.
149
Entrevista a Ruy Fabiano, publicada no Diário de Notícias, em 14/02/76.
150
Mencionado nas cartas mas não localizado.
113
151
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
152
Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada – João Antônio, São Paulo, Abril, 1980.
153
Idem.
154
Depoimento colhido em 23/3/2000. No próximo capítulo deste trabalho, que enfocará justamente os
anos pré-publicação do primeiro livro, 1958 a 1963, procurarei demonstrar, a partir de sua
correspondência, como João Antônio montou uma verdadeira rede de contatos literários, que alicerçou
seu lançamento como escritor, e, na medida do possível, por que nomes era formada essa rede.
114
157
Além de literatura, cinema e teatro, João Antônio sente-se também tentado à pintura e à fotografia:
“Por outro ângulo, Ilka, descubro a fotografia. Já é urgente, já me é urgente aprender a fotografar.
Estou apaixonado pela fotografia. É coisa séria, ouviu?” Trecho de carta enviada a Ilka Brunhilde
Laurito, de 05/09/1961.
158
Idem.
159
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/1960.
116
Gibóia não morrerá porque personagem meu não morre. Como todo
valente da macumba, ele apodrecerá como Paulinho-Perna-Torta, Aladim e
outros”.160
Num rápido parêntese, vale notar o quanto seus personagens são
inspirados em figuras reais, vários em lendas vivas do mundo da
malandragem. Vale notar também que, muito provavelmente, este conto
“Gibóia” foi a gênese da novela, ou conto longo, “Paulinho-Perna-Torta”,
escrita por encomenda após a publicação do primeiro livro do escritor.
Continua João Antônio a falar de seu projeto de conto: “Assim,
aproximadamente assim, terá início “Gibóia”. Sereno e quieto como uma
neblina paulistana. Frases iniciais hão de ser assim:
‘— Lembra?
E o homem estirou o dedo que indicava o prédio em demolição’.”161
Ainda em 1958, João Antônio Ferreira, pai, quita sua parte da dívida
com os credores de sua falida pedreira. A família Ferreira muda-se
novamente. Embora a biografia autorizada do escritor dê como novo
endereço o bairro do Jaguaré, “situado entre a Lapa e Osasco, formando um
triângulo com Presidente Altino e Vila Anastácio”, é mais facilmente
comprovável o endereço mencionado pelo irmão Virgínio: “Quando
terminou aquela coisa toda na Vila Anastácio, quando terminou o rebuliço
todo na nossa família, havia sobrado uma casa do meu avô no Morro da
Geada. Voltamos para o Morro, no dia em que o Brasil ganhou da Rússia
160
Idem, de 26/05/1960.
161
Idem, ibidem.
117
162
A primeira carta do escritor para sua amiga, paixão platônica, interlocutora literária e confidente,
Ilka Brunhilde Laurito, data de 1o de setembro de 1959, e inicia-se da seguinte forma: “Esta carta vem
do último subúrbio. Do Morro de Presidente Altino, talvez seu desconhecido”. As demais cartas que
compõem esta ampla e comovente correspondência têm o mesmo endereço do remetente.
163
Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.
164
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 25/12/1960.
118
um quarto na Barra Funda, na Praça Olavo Pilar, sendo que ele, João
Antônio Ferreira, viu-se obrigado a abandonar o comércio, com quase
cinqüenta anos e após tantas cruéis rasteiras do destino, e a entrar no ramo
de carretos, no qual terminaria seus dias. João Antônio Ferreira Filho, após
a destruição provocada pelo incêndio, ficou sem pouso fixo, dormindo de
favor cada noite em um lugar, na casa de amigos da boêmia e da sinuca,
com namoradas daqui e dali ou com prostitutas da Boca-do-Lixo.
Conta João Antônio: “Esse incêndio foi motivado por um ferro
elétrico não automático e quando os vizinhos tomaram conhecimento a casa
já tinha ardido. Estávamos todos fora e eu trabalhava como redator numa
agência de publicidade, a agência Petttinati, na Rua Conselheiro
Crispiniano. Quando vi o incêndio, simplesmente perdi a fala. Aí, então,
começamos a ter todos os problemas de sobrevivência. Foi uma luta braba
que dividiu a família. Depois do incêndio fiquei muito traumatizado, a
ponto de não poder entrar em livrarias”.165
166
No próximo capítulo, onde será analisada a correspondência de João Antônio com Ilka Brunhilde
Laurito, formidável acervo documental inédito que se estende entre 1958 e 1963, analisaremos com
mais detalhe a relação de João Antônio com o meio literário, e nesse meio, com Mário da Silva Brito.
167
Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.
168
Laurito, Ilka Brunhilde – “João Antônio: o inédito”, in Remate de Males, Revista do Departamento
de Teoria Literária da Unicamp, no. 19, Campinas, 1999,
120
169
Idem.
170
Este caderno sobreviveu ao incêndio, pois, naquele dia, estava na gaveta da mesa de João Antônio
na redação da agência de publicidade. Embora não se saiba o conteúdo completo do caderno, cheio de
recortes de jornais e revistas, é quase certeza absoluta que seus contos já publicados deveriam estar lá.
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 15/06/1961. Além disso, pelo menos mais um amigo também
colaborou, cedendo ao escritor recortes de jornal com um de seus contos anteriormente publicados. O
amigo se chamava Osvaldo, e o conto em questão era “Natal na Cafua”. Carta a Ilka Brunhilde Laurito,
de 30/12/1960.
171
Depoimento colhido para esta pesquisa em maio de 2000.
172
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/08/1960.
121
Depois, a vida correu de novo, comemos o pão que o diabo amassou, (...)
Refiz todos os contos, com auxílio de vários amigos, de lá para cá, em
apartamentos emprestados e onde pudesse.”173
É fato que Mário da Silva Brito, novamente ajudando o escritor, e com
a desculpa de que João Antônio faria uma pesquisa sobre história da
literatura brasileira, conseguiu-lhe o direito de usar uma cabine da
Biblioteca Mário de Andrade, à noite, depois do trabalho, para reescrever o
livro.
“Agora, quando a noite começa eu já estou na minha cela. Cela – é a
cabina da Biblioteca Municipal. Cabina 21, cela da ressurreição de
“Malagueta, Perus e Bacanaço’ – três vagabundos em busca de uma
definição. Como é tranqüila a minha cela! Nem cigarros, nem café. Só, lá
fora, o relógio de ‘O Estado de São Paulo’ marca a noite.
E eu sou um monge na noite da minha cela. Há um silêncio religioso
que lembra, cá no segundo andar, uma viagem de ficção-científica. Eu
monge, faço a oração nervosa:
— Meu Deus: dá fé do artista, que, só tem na vida um terninho chacal,
muita zonzeira e uma vontade maluca de fazer uma quizumba a que ele
chamou de ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’. Meu Deus, me dá esta colher de
chá.
E ponho-me a desenterrá-los.”174
Mas um dado menos conhecido é a importância de sua participação no
Teatro Arena no episódio da reescritura do livro, e que explica a fama de
sua “memória prodigiosa”. Explica João Antônio: “Não, não foi apenas de
memória [que reescreveu o livro]. Se eu dissesse isso, estaria exagerando.
Acontece que eu estudei teatro, no Arena, com o Guarnieri, o Vianinha,
Milton Gonçalves e toda essa geração. Bem, no teatro, nós tínhamos aulas
173
Matéria não assinada de O Globo, RJ, publicada em 29/08/69.
174
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/09/1960.
122
175
Entrevista a Ruy Fabiano, publicada no Diário de Notícias, em 14/02/76.
176
Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.
177
Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: O Ecritor Brasileiro Hoje, Lisboa, Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, e São Paulo, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, SP, s/d.
178
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 25/12/1960.
123
para sair de casa e viver a vida que imaginava mais adequada para seu
temperamento: “Eu talvez vá viver a vida que eu quis sempre, que eu tentei
tantas vezes e que fracassei, trazendo na volta uma cabeça baixa, alguns
quilos a menos e passagens escabrosas.
Mas daquelas vezes eu ia como que de empréstimo, temporariamente.
Desta, eu sei, irei certo como um relógio. Eu mesmo irei.
Quero viver, como já lhe disse, por telefone. A vida faz um jogo
errado comigo – quanto mais me castiga, mais eu gosto dela.”179
E foi adiante publicando, ou tentando publicar, seus contos nas
revistas e nos suplementos.180 “Meninão do Caixote”, diz o escritor, na
Revista da Academia Brasileira de Letras. Na propaganda, além do fixo na
Pettinatti, pegava trabalhos por fora.181 Nos suplementos, “Mário da Silva
Brito abriu-me novas portas. Décio de Almeida Prado também. Eu vou”.182
N’ O Estado de São Paulo, por exemplo, teve publicado seu conto
“Visita”.183
Em 1962, decide concorrer ao Prêmio Fábio Prado, promovido pela
União Brasileira de Escritores, com o conto “Malagueta, Perus e
Bacanaço”, ainda em fase de reeescritura. “O Prêmio Fábio Prado foi
prorrogado até 31 de março, o que me dá tempo para uma fatura literária
179
Idem, de 24/08/1960.
180
João Antônio elaborou idéias para contos que ou nunca chegaram a ser escritos ou estão perdidos.
Nesse último caso, espera-se, apenas temporariamente. Em carta a Ilka Brunhilde Laurito, de
25/12/1960, menciona um conto que gostaria de ter escrito chamado “Natal Por Aí”; “um conto que
fosse eu mesmo, purinho, agitado, intenso, profuso (...) anti-conto de natal ou coisa que o valha.” Em
outra carta a Ilka, de 24/01/1961, menciona mais dois projetos: “Avô Morto”, sobre o avô Virgínio, e
“Primeiro Prêmio a Um Jovem Escritor”, sobre o incêndio de sua casa. Em 06/10/1961, também em
carta para a amiga, menciona o conto “Depois dos Luminosos”, “título de um conto que ando
engendrando (...), visão da madrugada depois das quatro horas.” Em 31/10/1961, novamente em outra
carta para a mesma destinatária, refere-se a “Pequeno Amor em Terra Vermelha”, cuja frase final,
“com o personagem de centro caminhando, seria assim: ‘Tem nada não. Irei mesmo a pé a Terra
Vermelha. Tem nada não. Viverei em Terra Vermelha. Ali viverei.”
181
“Jorge Rizzini entregou-me mais trabalho. Extras publicitários.” Trecho de carta a Ilka Brunhilde
Laurito, de 08/09/1960. Não identificou-se, por enquanto, quem é Jorge Rizzini. Algum colega mais
experiente na própria Pettinatti? Um contato externo?
182
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/09/1960.
183
Idem, de 25/12/1960. Deve-se dizer, no entanto, que João Antônio não gostou dessa publicação,
pois o conto estaria “todo mudado, sem a quentura que tinha. ‘O Estado’ não se dá com as minhas
quenturas.”
124
184
Idem, de 27/01/1962.
185
Idem, ibidem.
186
Idem, de 31/10/1961
187
Idem, ibidem.
188
Idem, ibidem.
189
Idem, ibidem.
125
190
Idem, de 23/05/1962. Embora a carta esteja datada de 1961, e embora seja estranho que, ainda em
maio, o escritor se enganasse quanto ao ano em que estava, a rigorosa ordem cronológica com que Ilka
Brunhilde as guardava, e várias referências contidas no texto da carta indicam o ano de 1962 como a
única datação possível.
191
Antônio, João – Malagueta, Perus e Bacanaço, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963.
126
Capítulo 2
193
Idem, de 07/03/60.
194
Idem, de 08/09/60. Vale frisar que, pelo tom da carta, fica implícito que já haviam conversado sobre
o assunto, num encontro ou, mais provavelmente, por telefone.
195
Idem, de 24/08/60.
129
196
Idem, de 10/10/60.
197
Idem, de 27/01/62.
198
Esta carta foi encontrada nos arquivos da editora, que atualmente é um selo subsidiário da editora
Record.
130
199
Idem, de 07/06/63.
200
Idem, de 20/03/63.
131
202
Idem, de 23/09/59.
203
Idem, de 26/5/60.
133
escrevo, não escrevo. (...) Coisas passei e curti dores, que absolutamente
não eram para um rapaz de menos de vinte anos. Não eram. Minha vida é
tôda novelesca. E há fatias imundas, que não se contam na primeira
pessoa. Mas a natureza me premiou com o Dom da Contemplação diante
dos castigos e eu fui purgado.”204 Neste trecho, não apenas se integram
literatura e imundície exterior, leia-se miséria e injustiça sociais, mas
também a elas soma-se sua própria experiência biográfica. A escrita se
transforma num instrumento de purgação do sofrimento e das baixezas
que o jovem sentia dentro dele próprio. Diz ele ainda: “Melhor escrever
contos do que dizer que a vida não presta. Não? Todos sabem que a vida
não presta. Todos saberão escrever contos?”.205 A literatura se
transforma, inclusive, numa forma de se “afinar” consigo próprio, auto-
conhecendo-se e não mentindo: “Rememoro ‘Meninão do Caixote’,
mentalmente vivo a história e redescubro que ainda a amo e que não
minto quando escrevo”.206 Ou: “Trabalhando. Já descobri ou redescobri
pela décima vez, que se me vem alguma alegria nesta vida tonta, vem da
literatura. / Não negarei que sofro. Tristezas nêstes últimos dias. Fácil ver
que não sou ninguém como é fácil ver que sou um privilegiado. Escrever
é lindo e se nos custa, muita recompensa vem. Escrever é um Dom, Ilka.
Não é privilégio? Machuca, arrebenta, me larga quase chorando. Mas fico
inteiro. (...) Preciso dizer a mim mesmo o que sou no fundo de tudo, e há
de ser num conto, que é meu instrumento. Eu, eu, dolorido,
desengonçado, sublime ou maldito, profuso. Eu que não grite, que sofra,
que enxergue e ame, silenciosamente. Eu preciso me contar que apesar
dos tropicões, sou eu mesmo, quieto, orgulhoso. Humilde”.207
204
Idem, de 06/06/60.
205
Idem, de27/10/60.
206
Idem, de 19/12/60.
207
Idem, de 24/01/61
134
208
Idem, de 03/03/61.
209
Idem, de 30/06/61.
135
Meu Paulinho Perna Torta me ensinou muitas coisas. Porque, para criá-
lo, eu precisei vivê-lo, eu precisei ter mil amantes prostitutas, eu precisei
descer a detalhes, fumar charutos holandêses, da marca ‘Duc George’.
(...) E fazendo Paulinho, também me ensinei. (...) Aprendi fazendo
Paulinho Perna Torta a lição da franqueza absoluta”.214
214
Idem, 06/06/64.
215
Idem, de 28/03/61.
138
216
Prado, Antônio Arnoni: “Lima Barreto Personagem de João Antônio”, in Remate de Males, no 19,
Departamento de Teoria Literária IEL/Unicamp, Campinas, 1999.
217
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/09/59.
218
Em carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/01/60, João Antônio menciona o fato de ainda estar
desempregado.
219
Em 10/11/59, envia uma carta a Ilka em envelope da Affonseca Publicidade. Em 20/05/60, escreve a
ela já em papel de carta da Pettinati, com a marca do departamento de “redação”. Segundo Caio
Porfírio Carneiro, em seu depoimento colhido em maio de 2000, a agência ficava em frente ao antigo
Mappin, no centro da cidade, e o emprego lhe fora arranjado por alguém chamado Jorge Isi. João
Antônio está longe de ter sido o único escritor de sua geração a se colocar no mercado de trabalho
como “profissional do texto”, segundo categoria definida por Antônio M. C. Braga. Diz este
pesquisador: “Ainda que quase nenhum deles [os escritores da geração 70, da qual João Antônio faz
parte] sobrevivesse exclusivamente da literatura, em sua quase totalidade eles encontravam sustento na
produção de textos jornalísticos, publicitários, de roteiros televisivos, radiofônicos, etc.” Braga,
Antônio M. C.: Profissão Escritor: escritores, trajetória social, indústria cultural, campo e ação
literária no Brasil dos anos 70, p. 5, tese defendida em 2000, no Departamento de Sociologia da
FFLCH – USP.
220
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/06/60.
139
221
Idem, de 04/11/60.
222
Idem, de 11/11/60.
223
Idem, de 31/10/61.
224
Idem, ibidem.
225
Idem, de 10/02/62.
140
exigir muito da vida, apenas devo me atilar. Um sapateiro deve fazer bons
sapatos. Sapatos bons, bem feitos, dão trabalho. / Não me acanalho. Até
redigindo anúncios não me acanalho”.226 Mas logo a revolta contra a
publicidade voltava: “[tenho trabalhado] Muito, Ilka, creia. E lutado
também para que a publicidade não mate o escritor. O escritor é êste
menino que eu trago por dentro; não pode morrer. À luz do dia ou do
refletor devo escrever. Fazer alguma coisa que não dizer que aquêle é o
melhor conhaque, o melhor cigarro ou o novíssimo fio ondulado que
pode produzir as mais lindas camisas para o verão”.227
Além de uma questão de acanalhamento ou não, a publicidade
tomava-lhe algo talvez igualmente precioso como escritor, o tempo:
“Desculpe se não a procuro para encontro. Ando lotado, o que já disse.
Estou aproveitando uma hora do almoço para lhe escrever. / A
publicidade já não me deixa fazer coisas boas que eu quero. E de que
necessito”.228
Mas não só a publicidade o revoltava. Além de um bico como
doleiro229, pelo menos um outro tipo de trabalho o colocou frente à frente
com os dilemas éticos que sua concepção de escritor e de literatura lhe
trazia. Durante algum tempo do ano de 1960, João Antônio escreveu um
romance como ghost-writer para um contratador não identificado nas
cartas. A primeira referência a esse bico ocorre em agosto daquele ano:
“Briguei com o sujeito para quem escrevo capítulos de romance. Pedi o
dôbro e êle não quis. A maré ia melhorando, quando piorou mesmo. O
homem aceitou por fim”.230 Novamente, a constatação de suas
necessidades para a sobrevivência cotidiana vai de encontro à ética e à
função moralizante da literatura: “João Antônio se prostitui com menos
226
Idem, ibidem.
227
Idem, de 25/08/62.
228
Idem, de 22/01/63.
229
Mencionado em carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/09/60.
230
Idem, de 08/08/60.
141
231
Idem, de 08/09/60.
232
Idem, de 04/11/60.
142
234
Idem, de 17/10/59.
235
Idem, de 06/10/60.
236
Idem, de 21/06/60.
237
Idem, de 08/08/60.
144
238
Idem, ibidem.
239
Idem, de 31/07/61.
146
240
Idem, de 12/10/62.
241
Idem, de 06/07/64.
147
246
Idem, de 24/01/61.
247
Idem, de 01/09/61.
248
Depoimento de Caio Porfírio Carneiro, colhido em maio de 2000.
249
Carneiro, Caio Porfírio: “Meu perfil de João Antônio”, in Remate de Males, no 19, Departamento de
Teoria Literária IEL/Unicamp, Campinas, 1999, p.14.
150
250
Diaféria, Louranço: “Do Joãozinho ao João Antônio”, in Remate de Males, no 19, Departamento de
Teoria Literária IEL/Unicamp, Campinas, 1999.
251
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 12/11/60.
252
Idem, de 05/11/62.
253
Idem, de 18/02/62.
254
Idem, de 31/03/65.
151
255
Idem, de 06/06/60.
256
Idem, de 19/05/62.
152
257
Idem, de 06/10/60.
258
Idem, de 25/03/63.
259
Idem, de 05/11/62.
153
260
Idem, de 31/10/61.
261
Idem, de 06/10/60.
262
Idem, de 30/06/61.
263
Idem, de 30/07/64.
154
enviada por Ilka da Inglaterra] você me diz bem clarinho (embora com
civilizados cuidados) que eu sou um problema para você. Claro que sou,
Ilka! Mas para quem, cruzando a minha vida, eu não fui problema? A
quem, se metendo comigo ou eu me enfiando na vida da pessoa, não fui
problema? Se eu sou todo um problema... (...) O problema sou eu mesmo,
minha complicação sou eu mesmo, minha solução (muito provavelmente)
seja eu mesmo”.264
Ciclotimia?
Difícil saber o que foi causa o que conseqüência, mas, ligada a essa
auto-imagem radicalmente contraditória e fluida – ora com desespero
procurando valorizar-se e em outros momentos dizendo-se, sem meias
palavras, imundo –, estava uma alternância de humores indisfarçável e,
até certo ponto, excessiva. Num minuto estava de excelente ânimo,
otimista, feliz com seus progressos na literatura e satisfeito consigo
mesmo; mas no minuto seguinte recriminava-se por sua “prostituição
profissional” na publicidade, por sua vida de dissipações e bebedeiras,
lamentava a solidão e a carência afetiva. Ele próprio não hesitava em
considerar-se uma pessoa dramática265, para o bem ou para o mal.
Admitia, por exemplo, ser homem de “explosões bestas e alegres”.266
Quanto às explosões de raiva e outros sentimentos menos positivos,
tome-se o perfil de João Antônio feito pelo crítico literário José Castello,
no qual o freqüente mau-humor é registrado com destaque: “João
Antônio estava sempre tão indignado, sentia tanta aversão pela realidade,
264
Idem, de 07/10/64.
265
“Pessoas dramáticas, como eu, como você, costumam enegrecer o negro das coisas.” Idem, de
18/02/62.
266
Idem, de 01/07/65.
155
tanta raiva, e sabia expressar essas visões entristecidas com tanta clareza,
que a vida, com ele, parecia vacilar”.267
Num balanço da correspondência para Ilka Brunhilde Laurito, que
se estende por seis anos, vê-se logo que era incrível sua capacidade de,
rapidamente – no espaço de um mês, de semanas, de dias, às vezes de
parágrafos numa página –, alternar sentimentos às vezes opostos. Tome-
se como exemplo uma das primeiras cartas: “Ando cheio e qualquer dia
mando tudo para o diabo. Vivo num mundo de imbecis. (...) Ô, Ilka...
Quanto desencontro! E ninguém vê que estou cheio de bem-querer,
lotado de amor”.268
Ou a disparidade entre o tom de uma carta de 10 de outubro de
1960 e uma do dia 2 do mês seguinte. Na primeira, ele escreve: “As
coisas correm boas e a semana começará menos dura. (...) Mamãe estava
menos triste. Virgínio mais alegre. Papai ia bom. E eu também. / Ilka,
Ilka, como estou contente! Hoje poderia escrever um conto de amor à
vida, com alguma honestidade”.269 Na segunda, sem que nada
especificamente ruim tenha acontecido problemas cotidianos contaminam
tudo: “Abrir o jornal é um choque. Greves, levantes, aumentos. Mais
greves. Falar a parentes surburbanos é um choque. Tudo difícil, a carne a
duzentos cruzeiros. Mamãe me explicou o que é um caseado de camisa:
– Custa quarenta cruzeiros.”270
Certamente que toda pessoa tem dias de melhor ou pior disposição,
mas a intensidade das palavras mostra a força dos sentimentos, e
sobretudo a alternância entre a forma carinhosa com que se refere à
família na primeira carta e a confissão “politicamente incorreta” contra os
suburbanos na segunda.
267
Castello, José: “A Arte de Ser João”, in Inventário das Sombras, RJ, Record, 1999, p.45.
268
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 10/12/59.
269
Idem, de 10/10/60.
270
Idem, de 2/11/60.
156
271
Idem, de 12/11/60.
272
Idem, de 17/11/60.
157
273
Depoimento de Manoel Lobato, colhido em junho de 2000.
274
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/60.
275
Idem, de 18/02/62.
276
Idem, de 07/10/64. Vale dizer que, em 1970, João Antônio foi internado no Sanatório da Muda (RJ).
Marília, sua ex-mulher e mãe de seu único filho, conta que João Antônio teria pedido a ela que
convencesse o psiquiatra responsável pelas internações a aceitá-lo. O objetivo do marido seria fazer um
laboratório literário, evocando a experiência de Dostoiévski e de Lima Barreto. Ainda segundo ela, na
entrevista não foi necessário inventar nenhum sintoma psiquiátrico, pois uma simples descrição real do
comportamento do marido naqueles últimos dias teria sido suficiente para que o encarregado
recomendasse a internação. Depoimento colhido em maio de 2000.
158
277
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 13/07/60.
278
Idem, de 26/11/62.
279
Idem, de 25/12/60.
280
Idem, de 26/11/62.
281
Idem, de 08/08/60.
282
Idem, de 02/06/61.
159
285
Idem, ibidem.
286
Idem, de 27/10/60.
287
Idem, de 28/09/59.
288
Idem, de 10/12/59.
289
Idem, de 26/05/60.
161
dos meus prêmios, a quem dedicarei o meu livro, onde está o filho que
não tenho?”.290
Ele assumia francamente sua carência de amor, fosse quando fazia
um balanço de sua vida até ali: “Sabe, Ilka, sempre fui uma criatura muito
necessitada de carinho. Mulher alguma me deu tanto amor que fôsse
suficiente. Amigo? Nenhum. (...) Há uma fileira de nomes, homens e
mulheres e coisas e ambientes, que entraram e saíram da minha vida, que
me deram prejuízos e gozos. Mas que sempre me largaram incompleto,
desejando o que não tive. (...) Ainda outra vez, reitero que você me é
muito necessária porque sabe me compreender muito bem. Guardarei e
reguardarei sua amizade”.291 Ou quando tira uma norma geral da vida
humana: “Ilka, o grande problema, o problema mesmo, a essência de tudo
é o amor. Como um homem tem necessidade de amor! Que condição!”.292
Um grande amigo, porém, é citado mais de uma vez na
correspondência, e merece aqui ser mencionado. Jordão, como se
chamava este amigo, é um personagem misterioso. Ao que parece, era
uma amizade da noite malandra e das ruas de luzes vermelhas que o
jovem escritor freqüentava. Nem o irmão o conheceu, e muitos menos os
demais entrevistados, mais integrados a outras esferas sociais. Mas João
Antônio adianta alguma coisa: “No fundo eu sei que Jordão está mais do
que prevenido, rodou o Brasil inteiro, pegou cadeia, passou fome, viveu,
tem um nome a cuidar”.293 Era, portanto, alguém que conhecia os
subterrâneos da vida. Havia sem dúvida grande intimidade entre os dois:
“Tenho Jordão em São Paulo. Tenho aquêle menino e só eu sei o que isto
me significa. Aquêle falhado, aquêle caipira, aquêle vida torta é, como
me foram outros amigos, uma variação de Toshitaro de ‘Fujie’, lembra-
290
Idem, de 05/11/62.
291
Idem, de 06/06/60.
292
Idem, de 08/08/60.
293
Idem, de 08/09/60.
162
294
“Fujie” é conto que fecha a primeira parte de seu livro de estréia e foi, como já se viu, o início da
produção literária de João Antônio. No conto, o amigo Toshitaro é assim descrito: “Lá na Liberdade
achei o ótimo Toshitaro. Nunca vi ninguém como. Costumo dizer que o sujeito que não se der com
Toshitaro não presta. Ou não conhece Toshi. / Toshitaro, com cinco anos à minha frente, me levava
pela mão direita ao judô. Esquecia a condição de faixa preta e o 3 o dan, me dava o lado direito na luta.
Dava tudo. Sujeito espetaculatrt, enorme no tatami e fora dêle. Aprendi mais com Toshi do que com os
três professores que já tive.” Antônio, João: “Fujie”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1963, p. 28.
295
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/09/60.
296
Idem, ibidem.
163
que teria recebido por carta. Ilka relembra assim a situação: “Eu fiquei
encantada com a carta [a primeira, de 01/09/59], porque era uma carta
inteligente, diferente. Respondi e assim começou nossa correspondência.
Um dia, escrevi: ‘Escuta, moramos na mesma cidade, porque você não
aparece aqui’. Aí ele começou a telefonar, ele telefonava, telefonava. Era
uma voz, uma palavra, ele precisava sentir que eu existia, mas não
interessava freqüentar. Ele telefonava de um bar, bêbado. Eu parecia mãe:
‘Vai embora para casa’. E ele: ‘Tá bom, tá bom.’ Ele estava perdido, ele
era uma pessoa que estava procurando um ponto de apoio, o que depois
veio a encontrar na Marília. (...) Teve uma época que ele ficou meio
desvairado: ‘Você é a mulher da minha vida!’. Eu disse: ‘Não sou! Você
está enganado, você está misturando as coisas’. Houve uma certa
confusão sentimental com essa ligação. Porque era uma ligação tão
profunda entre nós que tudo ele precisava contar para mim, e eu também
tinha uma ligação de espírito tão forte [com ele] que a gente não sabia
exatamente definir o que era.”300 Como se vê, o que começa descrito
como algo unilateral, ao término de sua fala transforma-se em algo
compartilhado. Ele, a princípio, concordava com este sentimento difuso:
“O diabo é que você é mulher e eu sou homem. E o pior é que só agora eu
sei realmente. Minhas cartas descaradas e sem o mínimo tão usual e
consagrado de reserva... / Vai ou ia daí você me respondia no mesmo
tom, talvez mais entusiasmada porque eu devia tê-las encharcado de
intensidade. Então, minha carta seguinte seguia mais gritante. / E depois,
um ficou olhando para o outro, perguntando-se o que se haviam feito”.301
Num dado momento, em poucas palavras, João Antônio tira uma
300
Depoimento de Ilka Brunhilde Laurito, colhido em maio de 2000.
301
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 24/08/60.
165
302
Idem, de 12/10/62.
303
Idem, de 31/07/61.
304
Idem, de 12/11/60.
305
Idem, de 31/10/61.
306
Idem, de 20/03/63.
166
Amor x cotidiano
307
Idem, de 03/03/61.
308
Idem, de 27/10/60.
309
Trecho de texto sem título, anexo à carta de 13/07/60.
310
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/07/64.
311
Idem, ibidem.
312
Idem, de 05/11/62. No ano de sua morte João Antônio estava trabalhando em seu único poema que
167
Ou quando escreve: “Já ando cansado de paixões que não resolvem nada.
(...) Já era tempo do amor acontecer, Ilka, sinto claramente. Mas eu me
referi ao amor, entenda. Um amor que conduza, que espiritualize, que
melhore a criatura amada melhorando êste aqui. / O diabo é que não
aceito pela metade. Nem dou. E nada me leva a aprender esta infame
habilidade dos oportunistas e especuladores do casamento. (...) [o
casamento] É muito humilhante, é terrível. Não é sadio”.313
O que ele gostaria era de um amor que lhe ocupasse toda a vida,
capaz até mesmo de inviabilizar a amizade entre ambos: “Porque se eu
amanhã ou depois tivesse achado o amor noutra mulher, imediatamente
pararia de lhe escrever, de lhe telefonar, de lhe procurar. Eu sinto,
estranhamente sinto que não teria mais êsse direito. É muito confuso o
que lhe digo mas é verdadeiro e se resume assim: se eu encontrar amor
noutra mulher, não quero nem ouvir falar de você, Ilka. Se existe pecado
nêste mundo, para mim mesmo, este seria o pior de todos. Seria uma
violentação, eu sinto assim. Pode parecer um absurdo total. Entretanto, é
o sentimento mais profundo que sinto no tocante a você”.314
A idéia de amor e, conseqüentemente, a de uma esposa, vinha
associada ao sacrifício da auto-determinação, colocando em risco projetos
e relações anteriores: “Mulher sempre entorta. Só quando a gente não
gosta é que mulher não nos entorta a vida”.315
Para João Antônio, a convivência prolongada era causa de
sofrimento: “Convivendo muito, sofro muito, muito nervoso, um pêso na
testa, sabe? Basta de pêso, disto e daquilo. Quero paz”.316 Isso em geral,
imagine-se entre marido e mulher: “O amor (homem + mulher), agora eu
chegou a ser publicado, chamado “Choros – Para Pintagol e Cuíca”. Neste, um dos versos diz: “A
mulher que eu não terei,/ dessa não me esqueço.” In O Estado de São Paulo, 09/11/96.
313
Idem, de 05/11/62.
314
Idem, de 30/07/64.
315
Idem, de 08/09/60. Esta frase é dita referindo-se ao temor de que uma nova namorada de Jordão
ameaçasse a amizade entre eles.
316
Idem, de 27/10/60.
168
sei, estragaria você para mim. Quero-a, direi, distante e indistante. Aqui
comigo e além, com seus problemas”.317 Fosse quem fosse: “Não quero
mais um amor ou qualquer coisa que o valha. Por falar em amor –
apareceu-me na vida, ocasionalmente, uma nova mulher, de quem desisti
no primeiro dia. Quero crer que a arrasei com o meu pessimismo, a minha
insipidez e o meu desencanto. (...) Ainda me telefona e talvez, com algum
jeito, alguma torção no meu temperamento e muita mentira, a mulher
viesse morar comigo. Dessas mulheres que à rua chamam atenções, um
tipo diferente e cujo amor que sabe fazer é muito igual às outras.
Espiritualizada em alguma coisa, sofre. O que ela quer não lhe dou.
Egoísmo, talvez, porque aquilo que ela me pode dar não me interessa.
Ponto final. (...) Crianças não me interessam”.318
Mas há, subjacente a esse desencanto com a instituiçào do
casamento e mesmo com a idéia de felicidade a dois, uma dinâmica
fundamental para que se compreenda a vida de João Antônio, desde essa
época até o fim. A literatura era, de fato, um consolo para as agruras
cotidianas e um bálsamo que lhe transformava a solidão em algo
existencialmente enriquecedor e, por isso, positivo. Mas era, ao mesmo
tempo, uma cobradora exigente, que se alimentava de solidão e sugava
sua vida. Só isolando-se ele conseguiria escrever ao máximo de suas
forças: “Vou fazer o que certos malandros fazem. Não ligam pra droga
nenhuma. Fazem o que bem entendem. Andam sempre contentes da vida,
mas de cara amarrada, para que as pessoas não os olhem. Certos, certos.
Sabem muito bem, que a solução é o egoísmo total. Tirar tudo o que
puder, extrair de um momento de prazer todo o possível. Ter, ter, ter. / E
só terei se me isolar. Eu só terei escrevendo. (...) Aqui neste apartamento
317
Idem, de 13/09/60.
318
Idem, de 12/11/60.
169
não quero ninguém. Quero eu, se me fôr dada graça tanta”.319 “Aí
[escrevendo], a minha timidez vai embora e eu mando o mundo às favas.
Porque êste é o único tipo de amor que conheço completamente, Ilka”.320
E para de fato viver a literatura como único amor de sua vida, por
mais que ansiasse pelo carinho de uma mulher, por mais que às vezes
sentisse a falta de um filho, por mais que admitisse a importância dos
amigos, ele precisaria eliminar de sua vida qualquer sombra de novos
compromissos sociais e familiares. Mulher e filhos, sobretudo, seriam
uma interferência fatal para sua vocação: “Você precisava viajar. E
muito. Está em Londres. Livre. Não foi melhor, mais racional, mais
higiênico? Pois. Porque eu preciso também fazer coisas de minha vida.
Ganhar dinheiro, escrever, me firmar. Não foi assim que concluímos, há
muito tempo, (...) juntos naquele banco do jardim? (...) Você tem sua luta
livre com seu trabalho, (...). Eu carrego coisas profissionais e me carrego
literariamente”.321
A desejada dedicação exclusiva à literatura, somada ao medo de se
“aburguezar” constituindo família, e sem esquecer a já vista vocação para
o conflito, dava em frases retumbantemente firmes: “Brasil não é terra
para intelectual ou artista viver. Brasil é para cachorros, exploradores e
negocistas. (...) A solução é fugir daqui e correndinho. Osman quebrou
com a família; fugir para a França. Deixar mulher, filhos, ir, ir. Cavar
uma bolsa e desaparecer. De – sa – pa – re – cer. / Osman fêz bem”.322
Afinal, num mundo onde ele só via o atrito de interesses e projetos
pessoais – “Perambulo e é tudo egoísmo”323 – o remédio seria o próprio
veneno: “Arrisco-me a um conselho, eu, João Antônio, que não gosto de
319
Idem, de 27/10/60.
320
Idem, de 05/11/62.
321
Idem, de 06/07/64.
322
Idem, de 03/11/60.
323
Idem, de 06/10/60. “Osman” é Osman Lins, o escritor. A julgar pela correspondência, não era um
amigo próximo. Esta é a única menção a Osman Lins em seis anos de cartas.
170
conselhos. Ilka, sofra menos. Não haverá uma saída? Seja egoísta, pense
em você, seja até má”.324
Ou, se não um egoísmo e uma maldade assumidos, ele defendia
uma barreira de proteção contra as armadilhas do coração, e da sociedade:
“E, chegando a uma idade em que me vou esclarecendo humanamente
para mim, em certas coisas da vida sentimental, resolvi pela saída dos
perfeccionistas e de alguns personagens de Ingmar Bergman. Necessário
que se construa uma muralha em redor da gente para que não venhamos a
sucumbir antes do tempo. A tal muralha é certa habilidade em não nos
deixar envolver por comoções e que fatalmente se alongam e nos dão um
trabalhão danado, na tarefa soturna de engordar tristezas. Não é cinismo
meu, não. A Ilka me conhece. Apenas evito emoções através de um
raciocínio que me parece por demais, equilibrado”.325 “E nós precisamos
contornar a emoção, sabe? Fazer aquela tôrre em tôrno da gente, como
ensinou Ingmar Bergman em um dos seus filmes (Juventude?) Não me
lembro. Mas a tôrre é necessária. Porque não podemos viver nos
estraçalhando em dissimuladas”.326
E assim a vida do jovem escritor se armava, de fato sem qualquer
laço mais estável que a literatura. Durante todo o período entre 1959 e até
sua mudança para o Rio de Janeiro, João Antônio realmente conseguiu,
ainda que aos trancos e barrancos, manter de pé a muralha com que
defendia sua vocação e independência, ou melhor, sua “dignidade” de
solitário.
324
Idem, de 13/09/60.
325
Idem, de 08/06/64.
326
Idem, de 06/07/64.
171
327
Com base nas cartas para Ilka, escritas entre 1959 e 1965, podemos apenas fazer uma lista de nomes
e arriscar uma ou outra linha de análise. Além de freqüentar festivais de cinema italiano, francês, etc,
entre os diretores de cinema e ou filmes citados estão: Ingmar Bergman, Visconti e “os moços da
nouvelle vague”, O General Desnudo, Rashomon, Michelangelo Antonioni, Orson Welles, Hiroshima
172
Mon Amour, Ligações Amorosas, Dolce Vita, Albert Lamorisse e Grigori Kosintev. Duas observações
são interessantes. Uma, a respeito da nouvelle vague: “Acho que os moços da ‘nouvelle vague’ têm
muito o que dizer. E têm linguagem cinematográfica para”. Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de
08/08/60. E outra, sobre Antonioni: “Os cineastas modernos estão mesmo a fim de nos estraçalhar. (...)
Vendo o filme de Antonioni, Ilka, concluo que nós não sabemos nada sôbre o amor. (...) Antonioni
talvez seja o mais revolucionário dos cineastas atuais. Ensina que não sabemos nada sobre os nossos
sentimentos”. Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 25/08/62. Casando esses pensamentos com o já
referido impacto do filme Ladrões de Bicicleta, de Vittorio de Sica, sobre o pai do escritor e sobre ele
próprio, e com sua preocupação por encontrar um “cinema que não mentia”, algumas possíveis linhas
de análise já se delineam, por exemplo a influência do neo-realismo italiano na obra de João Antônio.
Sintomaticamente, após a publicação de seu livro de estréia, João Antônio é contactado para ceder os
direitos de filmagem da novela “Malagueta, Perus e Bacanaço” ao diretor Roberto Santos, num filme a
ser produzido por ninguém menos que Nélson Pereira dos Santos, o expoente do neo-realismo
brasileiro. Carta para Ilka Brunhilde Laurito, de 30/07/64.
No que se refere à música, embora as referências nas cartas não sejam tão numerosas, a importância
dela sobre sua obra não pode jamais ser menosprezada. Um exemplo está na carta a Ilka Brunhilde
Laurito, de 05/11/62, na qual ele cita um samba cantado por Ataulfo Alves, em que um dos versos lê:
“Mulher a gente encontra em tôda a parte/ Só não encontra a mulher que a gente tem no coração.”
Curiosamente, o tema e o pathos do samba reaparecem no único poema mais conhecido do escritor,
publicado postumamente e dedicado à idéia de uma mulher que se deseja e não se encontra. Diz João
Antônio, no último verso: “A mulher que não terei,/ dessa não me esqueço”. Um futuro cruzamento
entre as letras dos sambas clássicos e a obra do escritor certamente encontrará outros ecos semelhantes.
Da mesma forma o cruzamento da idealização da malandragem feito pelo samba tem conexões
importantes com a própria biografia de João Antônio.
173
328
Ainda nos anos 80, quando o telefone já se tornara de longe o meio de comunicação mais usado, era
seu hábito manter correspondência assídua com os amigos e, através primordialmente das cartas,
estabelecer contatos literários os mais diversos.
329
Em uma versão inicial de seu livro de estréia, localizado em seu acervo, na Unesp de Assis, mas
ainda não devidamente catalogado, ele anexou uma lista com 47 nomes para quem o mandaria e mais
13 nomes de pessoas a quem já havia mandado. Tempos depois, ele aconselha Ilka, em dada
oportunidade, a fazer como ele: “Tiraremos várias cópias [de um livro dela] e seu livro irá para as mãos
de Rubem Braga, Paulo Rónai, Ênio Silveira. Não é sonho não; é tudo muito viável”. Carta a Ilka
Brunhilde Laurito, de 27/01/62.
175
jornalista cultural, José Armando Pereira, que tinha página literária num
jornal de Sto. André, Marques Rebelo330, Hermann José Reipert, escritor,
Jamil Almansur Haddad, poeta e dramaturgo, Levi Carneiro, da Revista
Brasileira, Caio Porfírio Carneiro, escritor, Décio de Almeida Prado, crítico
teatral d’ O Estado de São Paulo e Sérgio Milliet, literato e crítico. Vários
deles serão novamente citados no correr deste capítulo, tendo detalhadas
suas intervenções na vida de João Antônio.
Há, é claro, alguns poucos nomes citados na correspondência com
Ilka, que ficaram de fora dessa lista, mas esses se destacam seja pela
intimidade de que gozaram junto ao escritor, pela ascendência que tiveram
sobre ele, pela quantidade de vezes em que o ajudaram a publicar textos, ou
simplesmente pelo papel que exerciam nos meios literários paulistano e
brasileiro. Com alguns havia uma amizade direta, de corpo presente, mas
com muitos, entre eles a própria Ilka, a relação era sobretudo epistolar. Para
essa variação contribuía certamente a distância física, e muito
provavelmente a geracional.
Analisando-se a lista de nomes constantes na rede literária de João
Antônio, entre o final dos anos 50 e o início dos 60, é difícil deixar de
enxergar grandes figuras, sendo que algumas muito intimamente ligadas à
herança do primeiro momento modernista e ao corpo-a-corpo presente da
segunda geração. Estes homens de letras, alguns já reconhecidos por sua
obra, de criação ou crítica, embebidos dos ideais de renovação da literatura
brasileira e, muitas vezes, da crítica ao status quo social vigente, irão influir
duplamente na carreira literária do jovem escritor. De um lado, é com eles –
e de preferência por carta – que João Antônio vence qualquer insegurança
ou complexo e dá à luz seus textos, ouvindo críticas e sugestões. É também
por influência deles que os ideais estéticos e sociais dos “modernismos”
330
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/08/90. Reza a lenda, foi Marques Rebelo quem aplicou ao
livro de João Antônio o epíteto de “clássico da literatura velhaca”.
176
331
P. 91. Vale dizer que o já citado conto “Indios”, de 1956, ganhara anteriormente uma menção
honrosa em outro concurso de A Cigarra. Não é possível afirmar, contudo, quem foram os jurados
nesse caso. Ver carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/09/59. Nesta segunda oportunidade, “Fujie” é,
embora vencedor na opinião dos jurados, censurado pela direção da revista, que o substitui para
publicação pelo conto “Frio”, publicado em abril de 1958. Os motivos da censura são, provavelmente,
o forte apelo sensual do conto e a ruptura ética do personagem central e narrador.
177
mais velho que João Antônio e já um grande nome das letras brasileiras,
tornar-se-ia um correspondente regular do jovem escritor e uma referência
sua no Rio de Janeiro. João Antônio, certa vez, comentou essa amizade
com Ilka: “Recebi também, Ilka, uma carta de Paulo Rónai. Uma carta
assim como a sua. Boa e franca. Um grande coração atrás das palavras, um
homem limpo. Uma pessoa que não precisava jamais descer de onde está,
para dar a mão a um escritor novo como eu, rapaz e que oscila. Mas Paulo
me escreve, analisa meu novo conto, aponta isto e aquilo. / Sou um
felizardo, Ilka, claro que sou. Dou as costas aos bonecos e macacos da
literatura e ainda dou sorte – valores verdadeiros se afinam comigo, me
incentivam, me aconselham, me entendem nas cartas escritas quase
amorosamente”.332
Quase um ano depois de João Antônio escrever isso, Paulo Rónai, que
secretariava a revista da Academia Brasileira de Letras, prometeu nela
publicar o conto “Meninão do Caixote”.333 De fato veio a publicá-lo, mas
apenas dois anos depois. Haver transcorrido tanto tempo, conforme
demonstra a gratidão e admiração de João Antônio pelo crítico, não era
sinal de que Paulo Rónai o estivesse “cozinhando”, ao contrário do que se
pode deduzir à primeira vista. Ao que tudo indica, esse intervalo de tempo é
melhor entendido se visto como todo um período de contato entre o
veterano homem de letras e o jovem paulistano.
Houve também o convite de Rónai para que escrevesse na revista
Comentário.334 E um artigo de João Antônio veio de fato a ser publicado,
também passado quase um ano do convite.335 Por fim, outra demonstração
real do apreço de Paulo Rónai pelos contos que recebia de Presidente
Altino e de sua ajuda espontânea à veiculação dos mesmos, vem citada em
332
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 17/10/59.
333
Idem, de 08/09/60 e de 19/05/62.
334
Idem, de 25/12/60.
335
Idem, de 25/11/60.
178
carta pelo escritor: “Paulo Rónai me escreve. Vou aparecer numa antologia
de contistas novos assinada por Paulo Rónai e Aurélio Buarque de
Hollanda Ferreira”.336
Há outras menções a esse veterano amigo e incentivador nas cartas de
João Antônio, quase sempre ligadas a encomendas de textos ou a
publicação dos contos.337 Mas nem só de Paulo Rónai vive o homem. Já foi
mencionada a visita inesperada do escritor e editor Ricardo Ramos,
acompanhado de outros “homens engravatados”, à modesta casa do pai de
João Antônio, em busca do remetente desconhecido que postara seus
primeiros contos sob pseudônimo, apenas com o endereço correto dando
uma pista involuntária de como poderia ser encontrado.338 Esta visita
ocorreu necessariamente entre 1954, data da publicação do primeiro conto
adulto de João Antônio, e 1958. Ela significou um marco em sua inserção
literária de várias formas. Ricardo Ramos, nascido em 1929, deveria ser
visto na época como uma espécie de menino prodígio. Para começar, era
filho de Graciliano, o que fatalmente o tornava uma pessoa conhecida no
meio. Mas tinha méritos próprios. Lançara o primeiro livro aos 24 anos, e
talvez, àquela altura, já tivesse publicado o segundo, ou então estava em
vias de.339 Por fim, além de escritor, era jornalista cultural com entrada em
vários veículos e mantinha contato com várias editoras. Isso tudo sendo
apenas oito anos mais velho que João Antônio.
A amizade literária entre os dois se firmou nos anos seguintes. E se é
lícito datar com tanta convicção a data mais tardia possível para aquele
primeiro encontro, isso decorre do fato de que a partir de 1958, mais
especificamente de 11 de setembro, João Antônio tem seus contos
336
Idem, de 25/12/60.
337
Idem, de 27/01/62 e 19/05/62.
338
Pp. 92, 93 e 94.
339
Tempo de Espera (contos), 1954; Terno de Reis (contos), 1957. Até 1963, ano de publicação de
Malagueta, Perus e Bacanaço, publicaria mais dois: Os Caminhantes de Santa Luzia (novela), 1961;
Os Desertos (contos) 1961. Menezes, Raimundo de: Dicionário Literário Brasileiro, Rio de Janeiro,
LTC, 1978, p. 563.
179
340
A edição de “Afinação”, que data de 19 de julho, embora mencionada nas cartas, não foi encontrada
por esta pesquisa. “Fujie” saiu em 11 de setembro de 1958. “Retratos da Fome” em 22 de novembro de
1958. “Natal”, em 8 de janeiro de 1959.
341
Para precisar a exata medida em que esses amigos de pena interferiram direta na elaboração do
primeiro estilo de João Antônio seria necessário confrontar as várias versões dos contos, já localizadas
no acervo do escritor e coletadas por essa pesquisa, com a correspondência ativa e passiva com cada
um desses homens de letras, que infelizmente ainda não foi catalogada no mesmo acervo. Além disso, a
família do escritor não autorizou a pesquisa no acervo epistolar nem no material emprestado à Unesp
de Assis para catalogação e nem num lote de cartas cuja guarda conservou, de tamanho e conteúdo
desconhecidos. Todos os núcleos de documentação epistolar obtidos ao longo desta pesquisa foram
encontrados nas mãos de não-familiares.
180
342
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 25/12/60.
343
Os livros eram: Aquelas Muralhas Cinzentas (novela), 1943; As Águas Não Dormem (novela),
1946.
344
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 26/05/60.
181
345
Para isso basta dizer que seu livro Capitão Jagunço, publicado originalmente em 1960, na época de
sua amizade com o ainda inédito João Antônio, já nasce comparado a Guimarães Rosa. Ver citação
sem maiores indicações bibliográficas do verbete do Anuário da Literatura Brasileira de 1960, escrito
por M. Cavalcanti Proença, e reproduzido in Capitão Jagunço, São Paulo, Global, 1982, pp. V,VI e
VII, 5a edição.
346
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/08/60.
182
347
Idem, de 01/09/59.
348
Pelo menos uma autora recomendada por ele causam impacto em João Antônio. Uma é Carolina
Maria de Jesus, com seu livro Quarto de Despejo, publicado em São Paulo, pela Francisco Alves, e de
cuja promoção Mário da Silva Brito se encarrega.
349
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/61.
183
350
Idem, de 01/09/59,
351
Idem, de 06/06/60.
352
Idem, de 21/06/60.
353
Idem, de 28/09/59.
354
Idem, de 23/05/61.
184
toa. (...)”.355 E ele vai mais longe, dando nomes aos livros: “Fazendo
Meninão do Caixote, primeiro livro de contos, e João Antônio Conta
Histórias, segundo livro com contos longos, terei ido à forra [do incêndio
ocorrido no ano anterior] ”.356 “Meu primeiro livro obedeceria a esta
provável colocação:
355
Idem, ibidem.
356
Idem, ibidem.
185
“Contos Gerais
Sinuca
8- Visita
9- Frio
10- Patroando Paraná (a escrever)
11-Meninão do Caixote (que será conto-título do livro)
365
Idem, ibidem.
366
Idem, de 27/01/62.
191
367
Carta de Ênio Silveira a João Antônio, de 09/07/62.
368
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 12/09/62.
369
Idem, de 25/08/62.
370
Idem, de 20/03/63.
192
371
Idem, de 07/06/63.
372
Idem, de 30/07/64.
373
Idem, de 04/05/65.
374
Idem, de 26/10/64.
375
Idem, de 23/09/59. Em carta a Ilka, de 10/12/59, diz que graças a Jorge Medauar terá texto seu, não
identificado, publicado no Diário de São Paulo. Em carta de 07/03/60, confirma que Joaquim Pinto
Nazário, editor da página de literatura deste jornal, publicará seu conto com destaque. O conto é “Retalhos
de Fome...”. Outros contos seguir-se-iam.
193
376
Idem, de 28/09/59.
377
Idem, de 01/09/59.
378
Idem, de 30/06/64, na qual ele diz que foi quem arrumou para o livro de estréia de Maria Geralda, As
Três Quedas do Pássaro, ser publicado pela Civlização Brasileira, em 11/08/65.
379
Idem, de 28/09/59.
380
Rolmes teria dito sobre ele: “(...) luta com um problema: a idade. Mas é nossa melhor esperança”. Idem,
de 22/04/60.
381
Idem, de 18/2/62.
382
Idem, de 30/07/64.
383
Na edição de que efetivamente participa, as inscrições do concurso terminavam em 31/3/62. Idem, de
27/01/62.
384
Idem, de 21/06/60.
385
Idem, de 27/01/62.
386
Idem, de 30/07/64.
387
Depoimento colhido por esta pesquisa em maio de 2000.
194
do Estado de São Paulo388; Paulo Emílio Salles Gomes, com quem diz ter um
projeto comum389, Ênio Silveira, que após a publicação do livro lhe
encomenda mil trabalhos390, Esdras do Nascimento, que lhe abre as portas da
Tribuna da Imprensa, no Rio, publicando “Meninão do Caixote”391,
encomenda a ele um texto sobre o livro que acabaria tornando-se seu
prefácio392, e publicando uma série de artigos sobre seu livro quando da
publicação um ano depois393; etc.
Por fim, vale citar novamente Sérgio Milliet. Embora não se tenha
informação de nenhuma ajuda concreta que possa vir a ter dado a João
Antônio, nas cartas para Ilka ele reproduz, em forma de anedota literária, um
episódio que envolve o veterano modernista e o jovem escritor, e ratifica assim
a informação de que se conheciam:
como Campinas e Jundiaí e que tais, vamos fazer de conta que fôsse assim.
Assim sendo, pombos fazem o correio. Vamos fingir. Praça da
República é partida e sede dos pombos.
Parte um pombo para Campinas. Diz à companheira que voltará dentro
de dois dias. (amam-se furiosamente e vivem vida passional com regular
fidelidade).
Mas o pombo se demora três-quatro dias, uma semana. A pomba é
cortejada por outros pombos, que são uns safados. A pomba não desliza.
Volta o pombo. Ciumeira danada.
– Seu isso, seu aquilo, seu cachorro, tipo à toa!
O pombo emagreceu, está poento. Se êle fosse um homem poder-se-ia
dizer que estava pálido. Como não é homem, que continue poento e mais
magro.
– Foram as farras, seu!
Há doçura na tarde, o pombo se justifica e a tarde fica mais azul:
– Nada, meu amor. Sabe por que me demorei tanto? É que os dias... Os
dias estavam tão bonitos, tão bonitos, que eu resolvi voltar a pé.”394
Além dos interesses literários, pode-se ver alguns outros pontos em
comum nas pessoas cujos nomes foram citados. Na esmagadora maioria,
vinham de famílias de maior respaldo social (educação, saúde, moradia e
poder de circulação) que João Antônio. Muito freqüentemente, estavam
melhor colocadas do que ele no mercado de trabalho. Por fim, algumas haviam
escrito obras já respeitadas e consolidadas. Sendo assim, e analisando-se o
contexto das menções a elas feitas nas cartas para Ilka, pode-se dizer que –
simultaneamente a sentimentos reais de amizade e admiração intelectual –
João Antônio construíra uma rede de pessoas que, sim, amavam a literatura
394
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 17/11/60.
196
como ele, mas que estavam na condição de ajudá-lo, fosse abrindo espaço para
seus contos em jornais ou revistas, aproximando-o de editores, presenteando-o
com livros, apresentando-o a outras pessoas, enfim, aproximando o jovem
escritor suburbano, então modesto redator de uma agência de publicidade, sem
sequer casa fixa, do centro dos acontecimentos. Fora justamente da busca do
reconhecimento literário que haviam nascido todas as aproximações.
Finalmente o menino suburbano, mau aluno, mau filho, deslocado, encontrara
um meio de auto-realização. Seu idealismo quase romântico, já aludido,
convivia com um savoir faire pragmático, como o do malandro exatamente,
seu personagem mais usualmente lembrado, que é suave enquanto arranca
tudo do “pato”.395 Exatamente como em sua relação com o amor entre homem
e mulher, a idealização excessiva e o desejo de que o amor o espiritualizasse
conviviam diariamente com a mais rasteira boemia sexual.
Mas ninguém existe no mundo apenas sob um ponto de vista. Em pelo
menos três casos importantes, João Antônio estabeleceu relações de mão dupla
com os amigos, ora ajudando, ora sendo ajudado. Ilka Brunhilde Laurito,
Hermann José Reipert e Caio Porfírio Carneiro estavam em igualdade de
condições com ele, pelo menos do ponto de vista da inserção literária.
Ao longo daqueles anos, 1959 a 1965, além de professora, Ilka escreveu
crônicas, poesias e novelas. Além, é claro, de ler e comentar tudo que ela lhe
mandava, mais de uma vez João Antônio usou seus contatos para favorecê-la.
Um primeiro caso diz respeito a uma Semana Mário de Andrade, que ela
organizava em Campinas. João Antônio lhe promete arranjar ítens para a
395
Mais de um dos entrevistados nessa pesquisa confirmaram que João Antônio era habitual pregador de
pequenos golpes entre amigos, do tipo prometer rachar o táxi e sair andando porta afora na chegada, ou
despistar e sair da mesa do restaurante na hora de rachar a conta, pedir livros de presente, etc. Além disso,
seu histórico com os editores, sobretudo a partir dos anos 80, é de suprema desconfiança. Como se o preço
por ser malandro fosse a paranóia. Um exemplo: “João Antônio foi o cara mais unha de fome que eu
conheci na vida, não pagava nem cafezinho pra Cristo”. Depoimento de Caio Porfírio Carneiro, colhido
para esta pesquisa em maio de 2000.
197
exposição com seus amigos Mário da Silva Brito e Menotti del Picchia.396 Mas
a luta pela publicação era o terreno onde aconteciam as verdadeiras
demonstrações de cumplicidade. E, na mesma carta, pede-lhe uma crônica, que
iria tentar publicar numa revista ainda em gestação.397 Em seguida, ao
anteriormente mencionado jornalista amigo no Ceará, para quem ele próprio
escreveria semanalmente, quer enviar crônicas de Ilka para publicação.398 Em
outro momento, também já citado, instiga-a a usar Paulo Dantas como
intermediário a uma editora.399 Recomenda, em diferentes ocasiões, que ela
procure os editores de suplementos literários José Armando Pereira400 e Décio
de Almeida Prado401, apresenta sua novela “Por Um Fio” a vários de seus
amigos, entre os quais Marcos Rey e Mário da Silva Brito, conseguindo-lhe
elogios e publicação no jornal Última Hora402 (Ricardo Ramos ainda estaria
por lá?), e mais tarde pede novamente que procure Marcos Rey.
Porém, ainda uma coisa mais: João Antônio incentivava-a regularmente a
escrever. Ela, entretanto, não tinha a literatura nem como missão e nem como
única forma de realização individual e social. Antes dividia seus interesses e
exercitava seu talento em vários domínios, em suas múltiplas atividades, que
incluíam por exemplo o canto e o estudo de violão. Mesmo sua atividade
literária ramificava-se por vários gêneros, sem preocupar-se com a
especialização. As cartas dão a impressão de que ela resistia inclusive a ser a
publicada. Mas João Antônio, mesmo assim, vivia tentando torná-la uma
396
“Mário da Silva Brito anda doente. Assim que ele melhore e volte à circulação tratarei sobre coisas do
modernismo, catarei algo sobre Mário de Andrade. Por estes dias irei a Menotti del Picchia e exporei seus
planos.” Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 24/03/60.
397
“É que amigos meus, ou simplesmente conhecidos, mas boa gente todos, andam aí a fundar uma nova
revista. Terá dimensões de Visão e livres assuntos, à maneira talvez aproximada da revista SR.” Carta a Ilka
Brunhilde Laurito, de 24/03/60.
398
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 21/06/60.
399
Idem, de 27/01/62.
400
Idem, de 20/03/63.
401
Idem, de 01/07/65.
402
Idem, de 18/02/65.
198
escritora profissional: “Ilka, não quero lhe jogar lantejoulas ou confetes. Nem
lhe agradar, nem nada. Nem lhe incentivar. Mas peço e repeço que se enfie
novamente na produção de outra novela. Sei que escrever é ruim, por princípio
– é duro e é difícil. Contudo, você sabe, é preciso produzir. A gente precisa
acreditar que tem a obrigação de aproveitar o pouco ou muito talento com que
nasceu. É preciso construir nesse sentido. Faça uma nova novela. Depois,
aprofunde e/ou estique ‘Por Um Fio’. Ali existem possibilidades sérias, a meu
ver. Entre mais na vida de Maria Eulália [a personagem principal do texto].
Queime as pestanas”.403 E depois: “Saiu a novela em UH. Ótimo. Apanhe o
tutu (ainda é só oitenta mil mangos?) e mande-se a fazer outra. O que é que
está esperando? O trem das onze? Ora...
Outra coisa semi-bêsta é essa de ‘PRECISO ESCREVER
REGULARMENTE PARA UM JORNAL OU REVISTA’. Embora respeite
em parte, acho francamente que, no fundo-fundo é desculpa. Você PRECISA
ESCREVER – isto sim. Pois faça o romance baseado em seus diários. Faça
nova novela para UH e depois procure o Marcos Rey (...)”.404
Em outra oportunidade, ele lhe escreve: “Mais umas palavras, falando
dos seus escritos. E dos meus. O Rosto de Deus me deixa com vontade de
possuir um jornal meu ou revista em que se pudessem publicar coisas suas.
Acho simplesmente legítima essa sua crônica”.405
Com Caio Porfírio Carneiro e Hermann José Reipert o negócio era bem
diferente. Ambos eram escritores convictos, a relação era mais igual. Caio,
nascido em 1928, era natural do Amazonas, mas criado em Fortaleza. Morava
em São Paulo desde 1955, trabalhando com o irmão em sua empresa
imobiliária. Havia refugado em sua primeira oportunidade de publicação,
403
Idem, ibidem.
404
Idem, de 14/04/65.
405
Idem, de 31/08/65.
199
acertada com a editora Saraiva no mesmo ano de sua chegada, e desde então
começara “a escrever outro [livro] baseado em contos regionais da fazenda do
Ceará”.406 Em seguida, começou a testar seus contos em concursos, vencendo
sete deles no espaço de poucos anos. Por fim, ele e João Antônio mediram
espadas no concurso literário promovido por Ricardo Ramos e pela Editora
Cultrix no Ultima Hora. Este concurso, já mencionado, tinha como orientação
temática o Natal. A comissão julgadora era formada por Lygia Fagundes
Telles, Ricardo Ramos e Antônio de Lia. João Antônio tirou primeiro lugar,
com “Natal na Cafua”, Julieta Godoy Ladeira tirou segundo e Caio Porfírio,
terceiro. Conheceram-se os três e ficaram amigos no dia da premiação. Julieta,
uma mulher muito bonita, casaria depois com Osman Lins, também escritor,
tendo sido provavelmente quem o apresentou a João Antônio. Mas foi sua
amizade com Caio que teve maior duração e profundidade. Ambos
trabalhavam no centro, e saíam para beber regularmente depois do trabalho.407
Conta Caio: “(...) ele era muito novinho [Caio era nove anos mais velho], mas
já tinha uns contos, já tinha escrito três ou quatro contos, estava idealizando
escrever, já estava esquematizando ‘Afinação da Arte de Chutar Tampinhas’,
estava quase pronto ‘Meninão do Caixote’ e fez amizade com a minha família.
Então ele ia e almoçava lá em casa; minha mãe gostava muito dele”.408
Caio teria seu primeiro livro publicado em 1961409, contando com
prefácio de Ricardo Ramos. João Antônio vibrou com o fato: “Entendo o que é
um livro quando Caio Porfírio Carneiro publicou o dele. Um livro pronto.
Tudo o que dele já conhecíamos toma de repente uma imponente e doce
dignidade. (...) Vivi Trapiá antes dele assim se denominar. Acompanhei
406
Depoimento colhido para esta pesquisa em maio de 2000.
407
Idem.
408
Idem.
409
Trapiá, Francisco Alves, S. Paulo, 1961, primeira edição.
200
muitas de suas coisas e as amei como amo, agora, os esboços que Caio fez de
suas novelas sobre o sal”.410
E que tipo de ajuda um escritor em fase ainda menos adiantada da
carreira poderia dar a Caio naquele momento? Bem, uma coisa é companhia
nos momentos de grande emoção. João Antônio menciona em suas cartas para
Ilka uma viagem que faria até Fortaleza, com Mário da Silva Brito e Paulo
Dantas, para o lançamento de Caio.411 Tal viagem, porém, foi adiada e
finalmente cancelada.412 Mas para que isto não soe exageradamente
sentimental, é importante registrar que João Antônio escreveu uma resenha
/crônica sobre o livro e tentou publicá-la em Campinas, por intermédio de Ilka,
que lá dava aulas.413 Mais tarde, volta a perguntar sobre o assunto.414 Era ele
ajudando na divulgação, e é muito provável que ela não tenha sido a única
destinatária do texto.
Caio, por sua vez, teve participação importante na reescritura de
Malagueta, Perus e Bacanaço, graças aos trechos que guardara após sua
leitura crítica. Tempos depois, ajuda o amigo a revisar as provas do livro, que
percorria sua produção na Civilização Brasileira.415
Anos mais tarde, a relação de ajuda mútua continua: “Tenho ajudado os
outros, também. Arranjei para Caio Porfírio Carneiro publicar o seu Sal Verde,
ou melhor, Sal da Terra (novela) pela Civilização Brasileira”.416 Não contente
com isso, João Antônio escreve uma pequena apresentação ao livro.417 Isto
ocorreu em 1965. A esta altura, ao que parece, a balança mudara de posição
410
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 13/09/61.
411
Idem, de 25/12/60.
412
Idem, de 06/10/61e 18/02/62.
413
Idem, de 13/09/61.
414
Idem, de 27/01/62.
415
Idem, de 20/03/63.
416
Idem, de 30/07/64.
417
O Sal da Terra, São Paulo, Ática, s/d. Idem, de 08/10/65.
201
entre os dois escritores, e aquele nove anos mais moço, porém empregado no
Jornal do Brasil, como repórter especial do Caderno B, e unha e carne com
Ênio Silveira, com quem estava envolvido em mil projetos de livros e revistas,
encontrava-se em condição de realmente contribuir para o sucesso do livro do
outro.
Com Hermann José Reipert, João Antônio também fez uma amizade
sincera: “Conheci Hermann José Reipert por circunstância, num papo que
batíamos eu e Paulo Dantas. Naquela ocasião apenas pude sentir a presença de
um homem tímido.
Honestamente, não me interessei pela Travessa do Elefante, Sem Número
[título do primeiro livro de Hermann].
Vindo o livro, li numa noite. Agüentar não agüentei e peguei num
telefone e disse a Hermann.
Conheci, então, um dos autênticos escritores destes lados, Ilka. Um
delirante, no melhor sentido e sabor que esta palavra pode emprestar a si
mesma. Um trágico na contingência irremediável de sua natureza. (...)”.418
Lido o livro, João Antônio lança uma profecia: “Livraria Francisco Alves
talvez nem o merecesse. Deixa estar que Ênio Siilveira ainda descobre
Hermann José Reipert. Que tem dois livros na gaveta”.419
A amizade resulta numa viagem dele e do “extraordinário Hermann” para
o Parque Nacional das Agulhas Negras, onde João Antônio passará seu
aniversário.420 E numa orelha para o segundo livro de Herbert, não por acaso
efetivamente publicado pela Civilização Brasileira poucos anos depois.421
Realmente, sendo Herbert um tímido, a balança daquela amizade parece estar
418
Idem, de 26/12/62.
419
Idem, ibidem.
420
Idem, de 22/01/63.
421
Idem, de 08/10/65.
202
ainda mais voltada para uma posição em que João Antônio aparece como
quem ajuda, e não como quem é ajudado.
Essa ajuda mútua entre amigos, entretanto, obedecia a uma ética que,
pelo menos nas cartas, é dita e repetida. João Antônio só se dispunha a ajudar
um colega escritor quando realmente gostava do livro. Aqui, novamente, ao
que tudo indica, um idealismo radical temperava suas atitudes. Um exemplo,
quando recomenda o livro de Caio a Ilka: “Caio fêz um bom livro, lhe garanto.
Se não fôsse bom o Trapiá eu faria coisa alguma – você me conhece. Trapiá é
bom e eu acato e prestigio e acho que faço um dever”.422 Outro exemplo, um
pouco mais dramático, é relatado por Manoel Lobato, amigo e escritor
mineiro, também um grande amigo com quem João Antônio jamais haveria de
perder contato, e que era uma espécie de revisor oficial da gramática de seus
textos. Anos depois, já um escritor famoso, João Antônio é jurado num
concurso literário no qual Manoel Lobato é um dos candidatos. Terminada a
votação, Lobato pergunta como foi seu voto, e recebe de João Antônio
garantias de que seu voto lhe é extremamente favorável. Mais tarde, tendo
acesso aos votos escritos dos jurados, Lobato descobre que João Antônio na
verdade recomendara a premiação de outra pessoa.423
O entusiasmo que as cartas mostram pelos livros de Caio Porfírio
Carneiro e Hermann José Reipert parece confirmar esse escrúpulo de João
Antônio. De fato, mesmo com todo o incentivo que dava a Ilka, ele era muito
preciso em seus juízos, elogiando na exata medida que desejava. Certo dia, lhe
escreve: “ ‘Os Reis da Sorte’ está bom, dentro daquilo que você pretende.
Parece-me que, ganhando a coisa assim em flagrantes e pormenores, você
acabará compondo painéis autênticos. Quer saber a minha opinião verdadeira
422
Idem, de 13/09/61.
423
Depoimento colhido por esta pesquisa em junho de 2000.
203
424
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 14/04/65.
425
Idem, de 22/04/60.
426
Idem, de 31/08/65.
427
Idem, de 19/07/64 e 30/07/64.
204
428
Trecho de resenha sobre o livro Galos de Aurora, de Hélio Pólvora. Última Hora, Rio de Janeiro,
27/011/58, p.21.
206
429
Trecho de resenha sobre o livro Água Preta, de Jorge Medauar. Última Hora, Rio de Janeiro, 11/09/58,
p.21.
207
430
Brito, Mário da Silva: “Os Malandros Paulistas Entram na Literatura”, in João Antônio: Malagueta,
Perus e Bacanaço, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963, 1 a edição.
208
que cada um dos escritores impregnava sua obra, Alcântara Machado era um
escritor mais leve, mais superficial, mais afeito a caricaturas e tipificações.
Sérgio Milliet, em sua resenha do livro de João Antônio, também evoca a
semelhança e a rechaça: “Todos aspiram a cantar a sua terra. E há mil
maneiras de cantá-la. Em tom de louvação ditirâmbica, como o fizeram os
românticos, com certo sentimentalismo marcado de humor, ver Antônio de
Alcântara Machado ou Mário Neme, ou simplesmente com amor a desculpar-
lhe as fraquezas, e é o caso de João Antônio em seus contos intitulados
Malagueta, Perus e Bacanço. (...)
Antônio de Alcântara Machado registrou a fala do italianinho, de novo
mameluco: João Antônio já não se preocupa mais com o pitoresco do filho do
imigrante. Os heróis de hoje são outros (...) São mais complexos, de uma
psicologia mais requintada, embora se afigure mais corriqueira”.431
Fernando Góes, um dos jurados do prêmio Fábio Prado, justificava assim
a escolha do livro de João Antônio: “entrou pela noite, absorvido na leitura de
histórias que, de perto, faziam lembrar o maior contista de costumes
paulistanos, o grande Antônio de Alcântara Machado”.432
Em sua resenha sobre Malagueta, Perus e Bacanaço, Bráulio Pedroso,
crítico do Estado de São Paulo, é mais incisivo: “E sabemos agora, passado o
impacto da renovação modernista e do entusiasmo fácil pelo novo, como são
caricatas e anedóticas as histórias de Alcântara Machado (...)”.433
Em que pesem as variações do apreço que esses resenhistas tinham por
Alcântara Machado, mesmo os que lhe reconheciam o valor tinham nítida
consciência de que a literatura de João Antônio era mais densa. O juízo que
431
Milliet, Sérgio: “Alguns Malandros”, in O Estado de São Paulo, SP, 23/07/63
432
Entrevista a Sadi Carnot Santana, intitulada “Vagabundagem Ganha Três Reis”. O recorte que faz parte
do acervo do escritor não informa sua procedência.
433
Pedroso, Bráulio: “São Paulo Tem o Seu Romancista”, in O Estado de São Paulo, 16/08/63.
209
impera, já presente nas linhas de Sérgio Milliet, é que João Antônio não olhava
seus personagens à distância, como um fenômeno social. Continua Bráulio
Pedroso: “(...) literariamente, João Antônio não é um cronista, um repórter, um
simples narrador de fatos verdadeiros. É um escritor, comprometido com seus
personagens, entranhado nas suas peles, nos seus sentimentos. Já este não era o
caso de Alcântara Machado com seus ‘italianinhos’”.434
João Alexandre Barbosa, crítico pernambucano que mais tarde viria para
São Paulo e mais tarde ainda faria a apresentação do último livro do escritor,
na época de sua estréia já assinalava essa ligação visceral entre ele e seus
personagens, identificando um realismo emocionado em seus contos: “E isto
João Antônio revela saber muito bem: a sua arte agarra pela raiz o significado
dessas pequenas vidas miseráveis que a organização social põe de lado, em um
louco processo de desumanização e morte lenta. Mas sem cair na lamentação
chorosa ou no panegírico das frustrações. (...) O que é muito importante é que
este roteiro não é simplesmente descrito ou fotografado, mas relacionado com
toda a gama de experiências vitais que carregam os três jogadores”.435
Mário da Silva Brito também concorda com a maior carga emocional de
João Antônio, em comparação com Antônio de Alcântara Machado: “João
Antônio não levanta personagens pitorescas, engraçadas, anedóticas e nem as
suas histórias são amenas, humorísticas, de mero entretenimento. Sua gente é
típica, mas nada caricatural. (...) Surge do proletariado da pequena burguesia
fronteira da pobreza e são as lutas, revoltas, frustrações e sonhos desse povo
que o autor interpreta ou sustenta em contos onde os heróis são tratados como
almas vivas, como pessoas humanas sofridas e desvalidas, espezinhadas e
434
Idem.
435
Barbosa, João Alexandre: “Malagueta, Perus e Bacanaço”, in Jornal do Comércio, Recife, 17/11/63.
210
438
Entrevista a Sadi Carnot Santana, intitulada “Vagabundagem Ganha Três Reis”. O recorte que faz parte
do acervo do escritor não informa sua procedência. João Antônio, a convite de Paulo Rónai, escreveu uma
nota crítica sobre Novelas Paulistanas, de Antônio de Alcantara Machado, para a revista Comentário.
Infelizmente esse artigo não foi encontrado por essa pesquisa em tempo hábil. Carta a Ilka Brunhilde
Laurito, de 25/11/60.
439
O autor assina L.M.: “Um Cronista da Noite”, in O Estado de São Paulo, SP, 03/10/67. Quatro anos
depois do lançamento do livro, a comparação ainda era evocada. Aqui, o resenhista estabelece a diferença,
segundo ele, entre Alcântara Machado e João Antônio: o primeiro seria um escritor do dia, o segundo, da
noite.
440
Cartas a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/09/59, 25/11/61 e 09/07/62.
212
443
Resenha não assinada: “Enfim uma Esperança”, in revista Visão, 13/09/63, no 11.
444
Página literária intitulada Escritores e Livros, e assinada por José Condé, sem indicação mais detalhada
na cópia do acervo João Antônio em Assis.
445
Rossetti, José Paschoal: “Três Cafés Fiados”, in Suplemento Literário do O Estado de São Paulo, SP,
15/02/664.
446
Alves, Helle: “Contos Paulistas em Ritmo de Bossa Nova”, in Diário de São Paulo, 10/10/65, p.6.
214
447
Nunes, Cassiano: “Nota Sôbre João Antônio”, in Correio Brasiliense, Caderno cultural, 28/10/67.
448
Pires, Herculano: “Favela e Samba”, in Diário Ilustrado, seção Mundo dos Livros, 07/12/67.
215
451
Idem, de 27/01/62.
452
Idem, de 23/09/59
218
Não por acaso, saído o livro, João Antônio é convidado para um projeto
que refaz a “linhagem” a que ele pertencia: “Muita gente quer trabalhos
literários meus. O pessoal da Vera Cruz já me procurou. Querem filmar
‘Meninão do Caixote’ que, seria incluído num filme de três histórias. Uma de
Mário de Andrade, outra de Antônio de Alcântara Machado e outra minha:
‘Meninão do Caixote’.453
O romance urbano, porém, não era a única trilha aberta pelo modernismo
de 22. E, mesmo dentro do gênero, havia mais de uma vertente a seguir. Seria
bom, a essa altura, complicar um pouco o quadro feito algumas páginas atrás,
tão rígido e esquemático, do establishment literário da época.
Um resenhista, ao falar da insistência da crítica em louvar dois novos
escritores, Dalton Trevisan e Clarice Lispector, dizia que louvar alguém era
mesmo uma necessidade: “Necessidade, porque a geração de críticos que
então se manifestava atuante não se conformava que após 22 apenas alguns
poucos valores houvessem aparecido e, mesmo assim, muitos deles não
resistindo à pressão de facilidades preconizada e imposta pela geração 45.
Não raro apareciam balanços, onde se salvava, no gênero da poesia, um
homem chamado João Cabral de Melo Neto; no romance, alguns poucos da
envergadura de Guimarães Rosa e de Cyro dos Anjos; no conto, Samuel
Rawet, Mauritônio Meira, Ricardo Ramos e Carlos Lacerda, que não
conseguiram, entretanto, sair do esboço para uma obra mais concisa e
penetrante. Mas os balanços ainda desacorçoavam, sob o ponto de vista
453
Idem, de 30/07/64.
219
457
Mendes, Arnaldo: “Um Cronista de São Paulo”, in Última Hora, 13/07/63.
458
Barbosa, João Alexandre: “Malagueta, Perus e Bacanaço”, in Jornal do Comércio, Recife, 17/11/63.
221
459
Este artigo, encontrável sob a forma de recorte de jornal no Acervo João Antônio, não possui
infelizmente indicações básicas, como o título, seu autor, o veículo e a data em que foi publicado.
222
460
Rossetti, José Pascoal: “Três Cafés Fiados”, in O Estado de São Paulo, SP, s/d.
461
Autor não identificado: “João Antônio Ou A Hora e a Vez do Anti-Herói” , veículo não identificado,
MG, 03/10/68.
462
Jesus, Carolina Maria de: Quarto de Despejo – Diário de Uma Favelada, Francisco Alves, SP, 1960.
223
464
Carneiro, Caio Porfírio: Trapiá, Francisco Alves, SP, 1961.
465
Idem.
225
466
Carneiro, Caio Porfírio: Sal da Terra, Ática, SP, s/d. A resenha de João Antônio é contemporânea ao
lançamento do livro, em 1965.
226
467
Assim Caio relata o episódio da publicação de seu livro: “A partir daí comecei a me relacionar mais com
escritores: conheci Ricardo Ramos. Conheci Jorge Medauar e através dele cheguei até Paulo Dantas, que
dirigia o departamento de literatura brasileira da Livraria Francisco Alves. (...) Depois desse primeiro livro,
com a ajuda de Mário da Silva Brito, comecei a colaborar no Suplemento Literário de O Estado de São
Paulo, o que vim fazendo até recentemente”. Entrevista introdutória à edição acima citada.
468
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 13/09/61.
469
Idem, de 31/10/61. Castro, Osório Alves de: Porto Calendário, Francisco Alves, SP, 1961.
470
Até a presente data não localizados por esta pesquisa.
227
471
Orelha não assinada da primeira edição do livro.
472
Ver pp. 216-217.
228
Capítulo 3
Impressão e Movimento
233
Matéria autobiográfica
insatisfação generalizada com a vida que entende ser rasteira, com a falta de
ambição dos que o rodeiam. Diz o personagem: “Para essa gente de subúrbio
mesquinho, semana brava suada nas filas, nas conduções cheias, difíceis,
cinema à tarde, pelo domingo, é grande coisa”.477 Também são mencionados
a sinuca e o serviço militar, dois elementos que também marcaram a
juventude do escritor, bem como um terceiro elemento, o problema no
fígado, algo pelo menos semelhante ao que João Antônio também tinha,
desde muito jovem, tendo sido operado dos rins em 61, enquanto que em 66,
aos 29 anos, já fora “definitivamente” [grifo dele] proibido pelos médicos de
beber, por ter uma “complexa complicação fidagal”.478
No conto seguinte, “Afinação da arte de chutar tampinhas”, é narrada
a história de um jovem que, em menino, fora um bom jogador de futebol,
mas, com as mudanças da família, premido pelas obrigações do colégio, pela
autoridade paterna e, mais tarde, pelo serviço militar (novamente presente),
vira desfeito seu sonho de ser jogador. O subúrbio em que se passa a história
é, nomeadamente, Presidente Altino. A União dos Moços de Presidente
Altino, a U.M.P.A., nome sob o qual jogava o time de futebol do bairro,
parece ter existido de fato. Outro bairro mencionado no conto é a Mooca,
mais especificamente as redondezas da rua Caiovás, perto de onde ficava o
Beco da Onça, local de residência da família Ferreira por bons anos. O irmão
do narrador, também, como o do escritor, era um contraponto familiar
perfeito: “só pensa em seriedade”.479
477
Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 15.
478
Cartas a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/05/61, 30/05/61, 09/06/61 e carta a Caio Porfírio Carneiro, de
11/07/66.
479
Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 25.
236
Embora o próprio João Antônio diga que “É o conto mais ‘livre’ que
escrevi. Muito livre, sabe?”480, ele mais parece estar se referindo à estrutura
“descosturada” do conto do que à dose de invenção ficcional, pois, numa de
suas cartas, comentando seus reais e maiores prazeres na vida, até o motivo
que dá título ao conto aparece: “Tão bom andar despenteado, chutar
tampinha, bebericar ali pelos lados da Santa Efigênia rodeado dos
considerados da boca”.481
Em seguida, “Fujie”, talvez o mais belo conto de amor jamais escrito
por João Antônio. Ele próprio reconhece: “Talvez não seja o meu melhor
trabalho, Ilka. Mas se emoção contasse, eu não teria dúvida restante: ‘Fujie’
é o melhor que fiz, que poderia fazer. ‘Fujie’ sou eu, sabe? E aí vai tudo.
É o meu conto do coração, do coração meu, que só eu conheço. Do
coração numa noite de chuva.
Um homem chora poucas vezes. É a protocolar dignidade besta que se
inventou para determinar machidão.
Pois eu, em ‘Fujie’, chorei”.482
Não por acaso, o escritor cogitou, durante um mês, dar o título a seu
primeiro livro de Fujie, desistindo depois em favor de Aluados e cinzentos,
que mais tarde seria descartado pelo título definitivo.483
Afora a qualidade literária do conto, capaz realmente de transmitir
com força a emoção do narrador, não fica difícil se entender o tamanho do
envolvimento do escritor com a história do jovem ocidental que, obrigado
pelo pai a praticar judô, encontra seu maior e melhor amigo em um colega
japonês, Toshitaro, ou Toshi, filho de um fotógrafo dono de um estúdio no
480
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 14/03/60.
481
Idem, de 05/11/62.
482
Idem, de 13/07/60.
483
Idem, de 27/01/62 e 18/02/62.
237
484
Idem, de 24/01/61.
485
Depoimento colhido em 23/03/2000.
238
maior às coisas que lhe davam prazer, como escrever literatura, por
exemplo. Afinal, a trajetória da família Ferreira é uma sucessão de mudanças
de patamar econômico, para pior, em geral exigidas pelos revéses
financeiros do pai do escritor, para não falar do incêndio de 1960. Enfim,
algum sentimento de perda biográfica irresgatável, tido ainda na infância e
na primeira juventude, parece haver permanecido dentro de João Antônio, e
parece expressar-se indiretamente nessas histórias iniciais.
Apenas como um parêntese ilustrativo do valor central da música em
sua sensibilidade e de como funcionava seu processo criativo, que
transpunha para a ficção, quase diretamente, as figuras que lhe interessavam
na vida, vale citar o conhecimento que trava com um mendigo que toca
flauta, tendo como repertório, segundo João Antônio, “Lizst, Mozart e
Pinxinguinha…”. Ele imediatamente o imagina como um personagem: “Eu
lhe dei dinheiro e ele me deu sua história. Um dia, eu crio vergonha e o
escrevo. (…) Se o dia é bonito, ele toca; se chove, ele toca. É um homem e
sua flauta — uma coisa não vai sem a outra. É um artista da sua solidão e
não admite interrupção da sua música. (…) O vagabundo me tomou conta e
eu lhe contei. Valeu mais, você ficou conhecendo um personagem”.486
Os dois contos que compõem a seção do livro chamada Caserna,
“Retalhos de fome numa tarde de G.C.” e “Natal na cafua”, também estão
evidentemente enraizados nas experiências vividas pelo escritor durante o
ano de serviço militar. E, para quem, como já se viu, tinha especial vocação
para o conflito, para o desrespeito a comandos que lhe parecessem impostos
e externos a sua própria vontade, pode-se imaginar como essas experiências
foram vividas. Ele diz à amiga Ilka, quando ela recusa o convite para ser a
editora de uma página de cultura, bancada por padres que iriam interferir em
486
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 28/22/61.
239
487
Idem, de 07/03/60.
488
Idem, de 27/01/62.
240
489
Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 54.
490
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/61.
491
Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 48.
492
Idem, p.35.
241
493
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 28/09/59.
494
Idem, de 24/01/61.
242
495
Idem, de 15/09/60.
496
Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 70.
243
497
Idem, pp. 73-74.
498
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/09/60.
244
palhaços que você ama e que conversa com eles. Mostre-os, um escritor
mostra o que tem [grifo meu]”.500
Contos de Homens
500
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 27/01/62.
247
501
Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 76.
248
O espírito da cidade
503
Idem, p. 75.
504
Idem, p. 87.
250
505
Idem, p. 12.
506
Idem, p.75.
507
Idem, p. 76.
251
508
Idem, p. 16.
509
Idem, p. 33.
252
510
Idem, p. 113.
511
Idem, p. 12.
253
512
Idem, pp. 124-125.
254
por ali passaram três malandros, murchos, sonados, pedindo três cafés
fiados”.515 Isto significa que nem de um lado nem de outro está a paz. É no
deslocamento.
Ora, com esse estado de espírito, o olhar que os personagens de João
Antônio lançam sobre a cidade em suas perambulações não poderia deixar
de ser predominantemente melancólico, para não dizer totalmente. Os casos
são inúmeros, de observações repletas de tédio, de enfado diante das
impossibilidades de suas existências mesquinhas, por razões sociais
sobretudo, mas também de uma certa mesquinhez inerente ao “jogo de
vida”. São cenários em geral vazios, a cidade é predominantemente cinzenta,
o vento é predominantemente frio (e não só no conto que leva esse nome).
Alguns exemplos, colhidos propositalmente ao longo do livro, como
demonstração de que é este o sentimento geral que o atravessa do início ao
fim: “Um domingo tão chato! Depois do almoço, as coisas ficam paradas,
sem graça”516; “Sábados à tarde, e domingos inteirinhos — a cidade se
despovoa. Todos correm para os lados, para os longes da cidade. (...) Fica
outra a minha cidade!”517; “Os lados da City, tão diferentes, me davam uma
tristeza leve. Essa que sinto quando como pouco, não bebo, ouço música”518;
“Muito bom pela madrugada, quando os carros são poucos e a luz dos postes
se atira sobre as tampinhas no asfalto”519; “Havia um jeito de preguiça em
tudo. Até lá fora, nos autos que comiam o asfalto da rua Abílio Soares”520;
“Nas ruas da cidade, os preparos de Natal, repetiam aqui, ali, além, numa
fachada de loja, numa entrada de cinema, cores vibrantes na manhã. Mas não
515
Idem, p. 159.
516
Idem, p. 11.
517
Idem, p. 22.
518
Idem. p. 12.
519
Idem, p. 23.
520
Idem, p. 38.
256
521
Idem, p. 49.
522
Idem, p. 66.
523
Idem, p. 67.
524
Idem, p. 72.
525
Idem, p. 131.
526
Idem, p. 133.
527
Idem, p. 139.
528
Idem, pp. 139-140.
529
Idem, p. 143.
530
Idem, p. 144.
257
A cidade, ao que parece, é uma fonte de tristeza, como ele diz em suas
cartas: “Nas ruas há muita gente feia. Mal vestida e sofrida. Os tipos
marcadíssimos. Mal vestidos na concepção e na realização. Para que o
marrom, o preto, ou o horrível azul fechado? Nem… / Nem se enxergam que
não são complicados e pálidos. / (…) / E os corpos deformados. Há banhos
dispensáveis como há pêlos a aparar como há peitos que se deviam levantar.
Também há cabeças que se deviam levantar, como há ânimos./ E nem sei
porque repito essas coisas. Todos sabem que na terra o clima é ruim, a
cidade é ruim. Não tem verde, não tem mar. A gente se lembra que era
preciso fazer esporte quando vê um jogador de futebol, moreno e bonito, nas
ruas. Aparecem, empertigados, diferentes, superiores”.531
Há, entretanto, na representação de São Paulo feita por João Antônio,
um outro elemento importante, a luz elétrica. Ela desempenha inúmeras
funções. Em alguns momentos, compõe o tom geral da cena:
“Os luminosos ainda resistiam, os postes de iluminação com seus três
globos ovalados eram agora de todo silentes, e atiravam sobre a cidade um
tom amarelo, desmaiado, místico no sossego geral da hora”.532
Em outros, marca as fases do dia, e portanto distribui novos papéis a
todos:
“Bacanaço deu com a primeira luz. Lá no meio da cara da locomotiva.
Num golpe luzes brotaram acima dos trilhos dos bondes. Os luminosos dos
bares se acenderam e a fachada do cinema ficou bonita./ A Lapa trocava de
cor”.533
Em outros, ecoa a subjetividade dos narradores/protagonistas:
531
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 13/06/61.
532
Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 142.
533
Idem, p. 108.
258
534
Idem, pp. 32-33.
535
Idem, p. 64.
536
Idem, p. 140.
537
Idem, p. 128.
259
538
Idem, p. 76. De passagem, mais um elemento autobiográfico vale menção, pois, como se viu no Cap. 1,
o pai de João Antônio foi efetivamente pastor de ovelhas em Portugal.
539
Idem, p. 73.
540
Idem, p. 38.
260
Estado de ebulição
os de Antônio de Alcântara Machado, por exemplo. (...) Pode crer que não é
modéstia não. A coisa que eu menos tenho é modéstia”.549
Ele, portanto, percebia que seu jeito de escrever estava mudando, e a
avaliação crítica que fazia do conjunto de seus escritos até ali, oscilante ao
extremo, refletia esse momento de mutação estética. “Meninão do Caixote”
não era o único conto a ser constantemente reavaliado, mas estava no bolo.
Esta oscilação já se verificava em 1960. Falando de “Afinação da arte
de chutar tampinhas”, ele menciona esta constante mutação: “Por isso, de
quando em quando, aqui, ali e além, reconheço surgir algum recurso que é e
não é suficiente para a minha atual concepção de conto. E assim, de chute
em chute, entre uma e outra calçada, aparece muita coisa que mais parece
crônica. Não quero refazer o conto, agora. Parece-me que sou um péssimo
artesão, sabe? Quando escrevo um conto é porque estou vivendo-o há
tempos, não haverá libertação se não houver eclosão do fardo. Muito
necessário fazê-lo — se não o escrever (palavra de honra) a vida passa a não
prestar./ Uma vez escrito, morreu. Não quero mais saber. (...) Isto se deu
com ‘Afinação’. Surgido, desejado, amado, realizado, esquecido. E tchau.
Qualquer outra coisa na vida já me picava. [grifos meus]”.550
“Garanto-lhe, entretanto, não ser [o conto “Afinação da arte de chutar
tampinhas”] tudo o que dele você espera. Quando o escrevi pareceu-me
estranho, original, vibrante. Hoje, parece-me tolo.”551
E até 1965, pelo menos, o processo continua, e dele não escapa o
conto que, para muitos, é sua obra-prima, “Malagueta, Perus e Bacanaço”:
“Isso tudo, fatalmente, vai influir na minha literatura. E posso entrever uma
realidade esmagadora: eu preciso reler quase todos os autores que li, que eu
549
Idem, de 23/09/59.
550
Idem, de 14/03/60.
551
Idem, de 07/03/60.
263
não entendia totalmente antes. Por inexperiência de vida e até cultural, sob
certo aspecto. Eu, hoje, não escreveria mais os contos de Malagueta, Perus e
Bacanaço. Dificilmente sairiam como saíram. Talvez sobrassem apenas
dois, ‘Fujie’ e ‘Meninão do Caixote’. A própria história principal do livro
seria reescrita, porque, embora não pareça, ali existe muita coisa falsa e
‘literária’, para agradar aos ‘literatos’, ‘críticos’ e ‘editores’/ Ilka, é uma
mudança muito grande para que eu consiga extrair uma essência agora, já,
de pronto. Acho que é preciso madurar o fruto”.552
Porém, no momento de composição de “Meninão do Caixote”, são os
contos iniciais que estão na berlinda, eles são o modelo a ser superado. Neles
está espelhado o jeito de escrever que, para o escritor, começa a demonstrar-
se insuficiente.
As mudanças pelas quais passava seu trabalho eram de duas
naturezas. Uma diz respeito a uma diminuição do coeficiente autobiográfico
em seus contos.
Todos os oito primeiros contos do livro, como já se viu, apresentam
ligações fortes entre autobiografia e fabulação literária. Nuns, predominam
ligações diretas, e estes muitas vezes caracterizam-se pelo uso da primeira
pessoa e de um tom confessional, introspectivo, absolutamente pessoal. Em
outros — notadamente, na ordem em que foram escritos, “Frio” (1955),
“Retalhos de Fome Numa Tarde de G.C.” (1958), e “Meninão do Caixote”
(1959) —, tais ligações se dão de forma indireta (não por acaso, nos dois
primeiros a narrativa é feita em terceira pessoa), a partir de um “fundo
autobiográfico”, que foram a experiência na caserna e a convivência com os
jogadores de sinuca e com a alta e baixa malandragem.
552
Idem, de 09/10/65.
264
553
Como se verá no Cap. 4, no que se refere à dicotomia vida e obra, referências autobiográficas e ficção,
que já tão cedo vivia momento de reequilíbrio, em prol da ficção e rumo ao distanciamento das
experiências diretas, o jornalismo, mais tarde, criaria ainda a instância da experiência indireta, nem ficção
nem autobiografia, testemunho. A veia autobiográfica de João Antônio nunca deixou de existir, mas
quando reapareceu já veio assumidamente separada da ficção, com textos cujo caráter literário decorre
exclusivamente da elaboração estilística, e não do cruzamento vida e fabulação.
265
que eu vi e sofri e vivi tudo o que vou contar. Vai de primeira pessoa, vai de
terceira. Farei uma saga. (...) Minha vinda para o Rio de Janeiro está, de
certa forma, me dando uma visão um tanto diferente do mundo ou mundos
que vi em São Paulo. Um sentir mais amadurecido e muitíssimo mais real,
menos lírico, menos paternal. Um paternalismo que apenas comecei a perder
em “Paulinho Perna Torta”. (...) / Corro um perigo sério. Como Pratolini,
esses livros (romances, sagas) poderão ter cheiro forte de autobiografia. O
que devo evitar a todo custo”.554
Mas a segunda natureza das mudanças que estão ocorrendo na época
não dizem respeito ao coeficiente autobiográfico da sua produção, mas a seu
estilo. No Cap. 2 já se viu que, quando escrevia seus contos de estréia,
enquanto trocava idéias com seus interlocutores literários, em especial Ilka
Brunhilde Laurito e Caio Porfírio Carneiro, especulando sobre os motivos de
o homem paulistano, urbano, não ser objeto de uma literatura tão
característica quanto o homem rural, mineiro ou nordestino, de um
Guimarães Rosa ou da turma de Paulo Medauar e companhia, com destaque
para Osório Alves de Castro, João Antônio começava a rejeitar sua
representação do mundo até ali.
“Meninão do Caixote” é o primeiro conto em que a inovação na
linguagem é tematizada por ele em suas cartas. E o fenômeno se aprofunda
durante a redação da novela-título de seu livro de estréia:
“Creio em ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’. Como em tudo o que
escrevi, acredito nos meus vagabundos. Mas desta vez é diferente o sentir.
(...) Tenho a certeza humilde, quieta e grandiosa que estou diante de uma
554
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 01/07/65.
266
obra de arte e minhas mãos, meu coração, meu todo pulsar de vida carregam
uma enorme responsabilidade”.555
“Bato-me na faina dura de explicar o que se passa nas almas de três
sujeitos, que você conhece pelos nomes: Malagueta, Perus e Bacanaço. Os
safados andam irrequietos na fala, nos gostos chinfrins e teimam sempre em
esconder alguma coisa. Vivem fingindo e domá-los é um custo. O conto
anda pela décima-terceira página datilografada em papel ofício, não sei se
trinta páginas darão para abrigar aquele mundo. A fatura é difícil, para o
malandro uma palavra tem trezentos significados, porque como nas suas
outras coisas a fala prolifera negaças, manhas num intrincado rebolado. [ele
então anexa um longo trecho do conto] Este trecho, como é natural, não é
definitivo. O conto está ainda em estado de ebulição. Imporei tratamento
mais rigoroso porque a forma atual não me agrada, ainda.”556
“Vou-lhe confessar que ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’, cuja refeitura
está me consumindo é uma tentativa de encontrar uma linguagem paulistana
de determinado grupo. (...) E vislumbro, emocionado, que a linguagem
paulistana para os problemas de São Paulo levará uma vantagem sobre a
linguagem nordestina — problemas mais universais criam uma linguagem
mais universal.”557
A julgar por estes trechos, insinua-se a hipótese de que o abandono do
tom intimista dos primeiros contos, bem como o novo e mais elaborado
tratamento dado ao material autobiográfico, foram acompanhados por uma
mutação estilística, que nasce em “Meninão do Caixote”, conto híbrido em
tudo — por misturar reminiscências pessoais e trama imaginária de forma a
555
Idem, de 06/06/60.
556
Idem, de 24/03/60.
557
Idem, de 27/01/62. Esta carta é escrita já durante o processo de reescritura de “Malagueta, Perus e
Bacanaço”.
267
559
Antônio, João. “Paulinho Perna Torta”, in Leão de Chácara, Civilização Brasileira, RJ, 1975. Este
número de páginas vale para esta edição, sem contar as epígrafes do conto. Nunca se deve esquecer que,
embora publicada em livros do autor apenas em 1975, a novela “Paulinho Perna Torta” foi escrita em 1964,
apenas um ano depois de Malagueta, Perus e Bacanaço, numa antologia de contistas editada pela mesma
Civilização Brasileira.
560
Prestando atenção nesse aspecto dos livros futuros de João Antônio, percebe-se que ele nunca perderia a
mania de pontuar seus contos com subdivisões. E o futuro faria com que a veia autobiográfica voltasse a se
fortalecer, e se tornasse uma das marcas mais recorrentes do universo literário do autor. Mas, nesse
momento, as transformações aqui arroladas de fato estão, temporariamente, minimizando tanto a
característica de estruturação dos contos à base de cortes quanto o apelo da transcrição direta da
experiência pessoal. Uma enorme responsabilidade nesse retorno futuro de ambos os traços de seu estilo
inicial — seria possível dizer retrocesso? — deve ser creditada ao jornalismo. “Leão-de-chácara”, por
exemplo, nasceu como uma reportagem para a revista Realidade, como se verá no Cap. 4, e, nem mesmo
numa revista tão moderna, no conteúdo e na forma, absorveria matéria tão longa sem a inclusão de alguns
“chapéus”, como se diz no jargão jornalístico, isto é, pequenas subdivisões que indicam minimamente o
rumo do texto, e dão um tempo para o leitor respirar.
273
561
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 26/05/60.
562
Idem, de 27/01/62.
274
(2) nas poças do campo da U.M.P.A. (3) Depois da janta (1), cada um vinha
do seu lado (2) e a gente se juntava na sede (3)”. Ou: “Então folgados (1),
fumávamos à vontade (2) e contávamos coisas (3)”.
O mesmo vale para o início de “Busca”: “Um domingo tão chato! (1)
Depois do almoço as coisas ficam paradas (2), sem graça (3). Mamãe não
precisava lavar roupa aos domingos (1). Eu lhe digo (2). Bobagem (3).”
“Bota um sorriso na boca (1), agradecendo (2), como se eu estivesse
elogiando (3)”.
Há um padrão rítmico muito presente, com certeza.
Entre as demais características que sobressaem nesses contos iniciais
de João Antônio, estão o vocabulário simples, com uma ou outra gíria,
marca de oralidade ou expressão idiomática, mas cujo significado jamais
fica obscuro ao leitor e, sobretudo, o fato das frases, marcadas pelas elipses
acima exemplificadas ou não, serem muito diretas. Muitas vezes, após a
variação 1, 2, 3, segue-se uma frase direta, curta, seca.
E em raras oportunidades as estruturas variam grandemente do
modelo acima citado, como acontece em “Golpe, dor, choque, sangue,
escuridão, zoeira, lona.”565
Há uma possível complementaridade entre o estilo sincopado e os
cortes de continuidade que estruturam os contos iniciais. Talvez ambos
fossem instrumentos de controle absoluto sobre o texto, uma tendência
compreensível no escritor iniciante, de origem humilde, que se candidatava a
um campo de atividade muitas vezes idealizado e tido como social e
culturalmente “elevado”, o da literatura. Como se, por defesa inconsciente,
ou estratégia premeditada de inserção, nada pudesse fugir a seu controle.
João Antônio, a julgar por esses primeiros contos, era escritor de estilo
565
Idem, ibidem, p. 13.
278
566
Machado, Antônio de Alcântara. Brás, Bexiga e Barra Funda, IMESP, SP, 1994, pp.23-24.
280
567
“Busca”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, p. 13.
568
Andrade, Mário de. “Caim, Caim e o Resto”, in Os Contos de Belazarte, Livraria Martins
Editora/Instituto Nacional do Livro, SP, 1972, pp. 56-57.
281
perceber que aquilo não estava certo, nem era vida que se desse aos
meninos. Eu saía do botequim, chateado e fatalmente enveredava mal.
Encabulação, cachaça, erradas, desnorteava-me no jogo. Um sentimento
confuso, uma necessidade enorme de me impingir que não era culpado de
nada”.571
Em Contos de Belazarte, o tom é outro, e mesmo nos momentos de
sofrimento dos personagens a narrativa é atravessada por um humor fino,
gracioso, que dá uma leveza bastante diferente da força confessional e/ou
dos dramas de João Antônio. Um exemplo:
“Nízia escutando. As palavras caíam dentro dela talqualmente flor de
paina, roscando a alma devagar. Foi-se embora mais cedo? Não fazia mal!
Nem soube que eram nove horas, que eram dez e muito mais, ficou sozinha
no trabalho, sem saber que trabalhava, acabando carreira numa conta,
acabando sapatinho, acabando outro sapatinho, escutando. Não tinha nem
bulha na noite fora. Os homens estavam dormindo em São Paulo. Nem
poeria nem grilo nem vento, que nada! Um silêncio de matar gesto no braço.
Nízia tricotando sem saber. A luz do lampião mariposava em volta da cabeça
dela e, no calor seco da sala, as palavras de seu Lemos se pronunciavam
ainda, sonorosas de verdade, como afago doce de companheiro. Nízia sofreu
que você não imagina. Sofreu aquele sapatinho de lã (…)”.572
Como se vê, a dor da personagem não é inteiramente compartilhada
pelo narrador. Os “sapatinhos” que costura, no diminutivo, por exemplo, o
verbo “mariposava”, a expressão de comadre “você não imagina” etc,
produzem um efeito cômico em sua hora de dor ou, no mínimo, atenuam a
intensidade deste sofrimento.
571
“Visita”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, p. 77.
572
Andrade, Mário de. “Nízia, Sua Criada”, in Contos de Belazarte, Livraria Martins/Instituto Nacional do
Livro, SP, 1972.
284
573
Cartas a Ilka Brunhilde Laurito, de 25/11/61, 27/01/62 (nessas ele comenta de um artigo sobre A.A.
Machado que lhe fora encomendado e que ele publicou) e 30/07/64 (“Vai daí, continuo sendo muito
solicitado. Muita gente quer trabalhos literários meus. O pessoal da Vera Cruz já me procurou. Querem
filmar ‘Meninão do Caixote”, que seria incluído num filme de três histórias. Uma de Mário de Andrade,
outra de Antônio de Alcântara Machado e outra minha. Antunes Filho, diretor teatral, também me procura
querendo que lhe arranje assunto para um filme ‘diferente de tudo o que já se fez’ para o público das
europas. O Conselho Estadual de Cultura pede um conto meu, para ser incluído em uma antologia do conto
paulista.”).
285
577
Idem, de 12/10/62.
578
Idem, de 25/12/60.
287
579
“Afinação da Arte de Chutar Tampinhas”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, pp.
18-19.
580
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/09/59. Quando rejeita o conto, ele o faz não por rejeitar o modelo,
mas sim a impostura que havia cometido.
288
581
Ramos, Graciliano. Angústia, José Olympio, RJ, 1952, pp. 189-190.
582
Idem, p. 78.
583
Idem, p. 151.
289
584
In Pasquim, Ano VII, n. 320, 15 a 21/08/75.
290
mas na verdade se torna língua geral dos homens, por ser fruto de
estilização eficiente” [grifo meu].585
Anos antes, em 1982, o mesmo Antonio Candido, na orelha de Dedo
Duro, outro livro de João Antônio, escrevera: “Talvez a sua narrativa seja
tão forte porque nela é o todo da vida que explode nas palavras; e porque o
ritmo em que estas se arranjam (curto, falado, incrivelmente vertiginoso)
[grifo meu], seja apto para acompanhar o nosso tempo (…) Por estar situado
bem dentro de sua matéria, João Antônio pode criar este ritmo, em cujo
fluxo constrói os personagens como se arrancasse de si mesmo os
sentimentos e os feitos, com uma violência capaz de quebrar a visão
escovada e remota própria do nosso mundo de classe média, em torno do
qual a literatura é muitas vezes uma espécie de fortaleza, mas no qual pode
também ser jogada como bomba./ Embutido pela imaginação e a escrita no
seu submundo, que é o mundo, João Antônio não enfeita, porque não se
enfeita”.586
Vale repetir que, apesar do grande intervalo entre o primeiro e o
segundo livros, dos quatro contos reunidos em Leão-de-chácara, pelo menos
dois haviam sido escritos ainda dos anos 60, ou seja, na fase imediatamente
posterior à publicação do livro de estréia; a novela “Paulinho Perna Torta” e
o texto-título, meio conto meio perfil de uma sub-categoria profissional,
originalmente publicado na revista Realidade, onde o escritor trabalhou
entre 67, 68 e 69. Um terceiro texto, chamado “Três cunhadas — Natal
1960”, apesar do título, não tem a data de sua composição conhecida. O
último, “Joãozinho da Babilônia”, tem tudo para ser um sub-produto do
585
Candido, Antonio. Remate de Males, n 19, Departamento de Teoria Literária IEL/Unicamp, 1999, p.88.
586
Antônio, João. Dedo Duro, Record, RJ, 1982.
291
587
“Meninão do Caixote”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, pp. 81.
292
589
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 13/09/61.
590
Esta correspondência viria a ser publicada em 1975, com o título de Sagarana Emotiva.
295
591
“Malagueta, Perus e Bacanaço”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, p. 137.
296
595
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 03/03/61.
596
Idem, de 11/08/65.
298
599
Antônio, João. Leão-de-chácara, Record, RJ, 1975, p. 88.
600
Castro, Osório Alves de. Porto Calendário, Francisco Alves, RJ, 1961, p. 160.
601
Antônio, João. Leão-de-chácara, Record, RJ, 1975, p. 97.
301
602
Castro, Osório Alves de. Porto Calendário, Francisco Alves, RJ, 1961, p. 186.
603
Dantas, Paulo. Capitão Jagunço, Global, SP, 1982, p. 110. a primeira edição deste livro é de 1959.
302
Cap 4
Literatura na Realidade
306
604
Entrevista a José Edson Gomes, para a revista Leitura, n.94, maio-junho de 1965, Rio de Janeiro, p.45.
605
“Malagueta, Perus e Bacanaço, com todas as entrevistas a jornais, rádios e televisão, meu livro de
estréia não me deu nem 300.000 mil cruzeiros... Não posso, absolutamente, fazer nada com esse dinheiro.
Com um mês de trabalho publicitário, consigo ganhar mais do que com Malagueta, Perus e Bacanaço.”
307
vinculadas às palestras que desde tão cedo propôs-se a dar pelo país afora.
Pelo menos assim permite especular uma declaração da União Brasileira de
Escritores, resumo de suas atividades até o ano de 1972, na qual é
mencionada a realização das tais palestras, ainda que restringindo-as a São
Paulo capital e ao interior do estado.606 Mas é possível que tenha
simplesmente ido fazer turismo, conhecer o Brasil, como foi o caso de sua
ida a Apiaí, interior de São Paulo, onde esteve em fevereiro de 1965.607
Também não se encontra registro de com quem viajou pelo Sul, se é que
estava acompanhado, ou de onde ficou hospedado nos diferentes estados que
visitou, ou mesmo sobre quais cidades visitou em cada um deles. O que se
sabe com certeza é que, nesse período, esteve em Santa Catarina, no Rio
Grande do Sul e no Paraná.
Em fevereiro de 1965, voltando de Apiaí, João Antônio foi ao Rio de
Janeiro, onde passaria o Carnaval e visitaria os parentes por parte de mãe
que ainda lá residiam, em especial seu tio Otacílio.608 Novamente, nesse
caso, a intenção consciente de procurar uma nova cidade para residir é
controversa, ora afirmada ora negada pelo próprio João Antônio.609 Na
capital carioca, foi hospedado pelo amigo Mário Peixoto, jornalista e
610
Depoimento de Marília Andrade, colhido em 20/07/2003. O endereço completo de Mário Peixoto era:
Rua São Salvador, 30/ apto. 102, Flamengo. O livro de Mário Peixoto tinha publicação prevista para 1966.
611
Entrevista a José Edson Gomes, para a revista Leitura, n.94, maio-junho de 1965, Rio de Janeiro, p.45.
612
João Antônio - Literatura Comentada: volume organizado por João da Silva Ribeiro Neto, editora Abril,
SP, 1981, p. 5.
613
Entrevista a José Edson Gomes, para a revista Leitura, n.94, maio-junho de 1965, Rio de Janeiro, p.45.
614
Idem.
309
Mas João Antônio tinha também motivos bem pessoais para sair de
São Paulo. O mundo literário da cidade não lhe agradava, e nem os efeitos
do sucesso de seu livro em sua vida. O jovem de origem proletária, apesar
do “cartaz” junto à crítica, não se reconhecia na imagem que dele queriam
fazer, e não sentia pertencer ao mundo das letras tal como o via. De uma
hora para outra, julgou-se “Transformado em menininho gigante do talento,
quase obrigado a aceitar a minha mistificação, premiado e pobre, sem Boca
do Lixo, vivendo mal sem mar, liberdade, eu teria de fazer anúncios de
publicidade para viver, enquanto o dono da agência de propaganda diria a
seus clientes: ‘Olha, este aqui, meu redator, é um escritor premiado, etc.’; já
não mais fazendo a minha prosa e não podendo conviver com os meus
verdadeiros amigos, os malandros, ali eu me sentia como um homem
exilado”.615 Sua nova situação profissional parecia obrigá-lo a apagar sua
adolescência, juventude e, por que não dizê-lo, sua índole boêmias. A
identificação com São Paulo e suas coisas, tão marcante no primeiro livro, e
mais tarde em todos os seus textos autobiográficos, estava pela primeira vez
ameaçada. A cidade o estranhava, e ele a ela: “Estando dentro da cidade eu
já não enxergava São Paulo. Precisava ganhar visão do lado de fora, sei lá.
(...) Quiseram me transformar em entidade, ‘jovem ilustre escritor’ e outras
porcarias. Fui eleito diretor da União Brasileira de Escritores616 e já era
apontado para ser julgador de concursos de contos. O ‘jovem mestre’. Isso
tudo me incomoda e me toma um tempo que eu não tenho. Achavam que eu
devia viver a chamada ‘vida literária’”.617 Ele, do Rio, confessa à amiga Ilka
o quanto a repercussão do livro havia, ao contrário do que se poderia
esperar, contribuído para diminuir sua produção literária em São Paulo: “Eu
615
Idem.
616
Exerceu o cargo de diretor entre 1964 e 1965.
617
Entrevista a José Edson Gomes, para a revista Leitura, n.94, maio-junho de 1965, Rio de Janeiro, p.45.
310
estava vivendo bem aí? Não. Eu estava escrevendo bem aí? Ultimamente
não. Eu amava aí? Não”.618
Mas não só a entrada no mundo literário o “desencaixara” na vida;
havia motivos mais profundos, cicatrizes antigas, que agora iam ficando
insuportáveis, velhos constrangimentos, que uma fase nova na vida
precisaria abolir: “A cidade de São Paulo me deu e me tirou uma porção de
coisas essenciais. Amei muito ali, me dei muito ali. Muitas coisas, pessoas,
ruas, esquinas, avenidas, viadutos já me doíam na alma quando eu os via,
que me lembravam uma porção de dores. Eu fui muito jovem em São Paulo,
um dia. E isso me custou porradas. Dei-me demais e isso também me custou.
Hoje as coisas me doem lá”.619 Ou: “São Paulo, com tudo o que me deu —
prêmios, dores, frustrações e algum nome — fique para lá. Já começo a
sentir o quanto São Paulo é província, é formalidade. Como e quanto São
Paulo prende a liberdade de um artista, de uma pessoa. A liberdade até de
andar nas ruas, conversar nos botequins, de passear. Eu não quero voltar
àquilo, Ilka. (...) Eu não quero mais. Aquelas criaturas complicadas,
retorcidas, difíceis, que, apesar de tudo, eu tanto respeitei e até (de minha
forma) amei. Mas chega. Que eu não sou o gerador de tanta complicação e
enrolamento, de tanta solidão, incomunicação humana e aflição de espírito.
Eu quero viver um pouco livre. Diabo!”.620
Ele parecia, mais do que nunca, confiante em suas virtudes, em sua
capacidade de levar uma vida menos atormentada, menos cheias de
oscilações vertiginosas de humor, que o levavam da euforia à depressão em
questão de horas. Mais do que nunca, João Antônio tinha a esperança de
equilibrar-se, fazendo conviver homogeneamente profissão e prazer. Ao
618
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 31/03/65.
619
Entrevista a José Edson Gomes, para a revista Leitura, n.94, maio-junho de 1965, Rio de Janeiro, p.45.
620
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 31/03/65.
311
624
Antônio, João: Abraçado ao Meu Rancor, Cosac & Naify, SP, 2001, pp. 76-77.
625
Idem, p.77.
313
626
João Antônio - Literatura Comentada: volume organizado por João da Silva Ribeiro Neto, editora Abril,
SP, 1981, p. 5.
627
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 31/03/65.
628
Idem, de 04/05/65.
629
Idem, ibidem.
314
632
Idem, ibidem.
633
Idem, ibidem.
316
mar, tem o espírito do povo, tem a beleza da cidade, tem o melhor que o
Brasil possui em termos culturais. E tem samba e ginga cariocas. Tem
gafieiras autênticas, mulatas, quase todas inconseqüentes, tem a Lapa (que já
não é o que foi), tem o Zicartola, a Estudantina, o Amarelinho, o Régio, a
Elite — bares, casas de samba e chope da noite”.634
O Rio de Janeiro atuava como um lugar onde lhe parecia ser possível
crescer sem perder a autenticidade, ou até mesmo se reinventar sem ter que
prestar contas à ninguém. Ele está mudando tudo em sua vida, abrindo-se
para outro mundo, outras pessoas e até, em pouco tempo, para o amor (ele
que antes defendia uma muralha protetora contra os males e as distrações do
coração).635
A confidente Ilka chega a repreendê-lo por sua injustiça para com São
Paulo, gerando nele um mea-culpa: “Agradeço-lhe de coração o acerto de
ponteiros. Nesses meus arroubos anti-paulistas, inda acabarei me perdendo
gratuitamente. A verdade é que São Paulo me proporcionou muita coisa boa
e muita coisa autêntica. Outra coisa: São Paulo, a cidade, as coisas, as
pessoas e os animais, as praças, as ruas, os cheiros, os jeitões não estão
errados não. Errado sou eu com o meu temperamento de explosões bestas e
alegres. (...) Ando vivendo numa alforria de liberdade vital e preciso andar
com a cabeça no lugar para que não desande a dizer besteiradas por aí”.636
Mas é um mea-culpa pouco convincente. Em meio a esse movimento
interior, é claro, novos projetos literários brotavam. “Por outro lado, coisas.
De literatura. Tenho uma porção de encomendas. Contos, novelas, uma
634
Idem, de 31/03/65.
635
Quanto a sua abertura para o amor, João Antônio diz: “E até de amar eu sinto vontade. Aqui [no Rio de
Janeiro] me sinto lavado, é a verdade. O carioca me deu amor e calor humano para sentir as coisas e tentar
levar alguma coisa de útil e bom, inteligente e exportável”. Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 04/05/65.
Quanto a sua tese de fechar-se para o amor em nome da total independência, ver o capítulo 2 deste trabalho.
636
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 10/07/65.
317
637
Idem, de 04/05/65.
638
Idem, ibidem.
318
639
Idem, de 01/07/65.
640
Idem, de 11/08/65.
319
saber por aí, ocupadíssimo com as starlets que compõem a beleza feminina
do Festival Internacional do Filme. Na qualidade de repórter-especial do
“Caderno B” do Jornal do Brasil, não posso deixar minhas irmãs
desamparadas. Vivo no Copacabana Palace, na areia da praia e nos arredores
do Cine Rian, Copacabana, Posto 5 e meio, pesquisando formas e pescando
novas. É de lascar, meu irmão. Falando claro: ando tonto diante de tanta
gatinha em flor. Taí, bom título pra livro — À Sombra das Gatinhas em
Flor. E o chato do Proust que vá lamber sabão!”.644
Em suma, por um breve período naquele primeiro semestre de 1965,
João Antônio encontrou satisfação profissional em algo que não era
propriamente a literatura. E algum motivo de orgulho, que ele chega mesmo
a ostentar, como se finalmente sua condição social tivesse deixado de
obrigá-lo à humildade proletária de suas primeiras cartas para escritores e
críticos literários. A agência Petinatti era uma lembrança ruim, graças à
literatura e, agora, ao jornalismo cultural. Malagueta, Perus e Bacanaço
promovera na escala social o filho do português (nesta época seu pai vivia de
fretes como caminhoneiro), alçando-o à condição de repórter diferenciado, e
promovera-o de forma tão rápida e insofismável que, mais tarde, o escritor
não pôde se conformar que a ascensão social exclusivamente via literatura, e
ainda que somada àquela permitida pelo jornalismo, tivesse novos limites
logo adiante, agora intransponíveis e ditados por leis de oferta e demanda na
indústria cultural brasileira. Mas a frustração viria um pouco mais tarde, já
no início dos anos 70. Em inícios de 65, houve momentos de alegria e
encheu-lhe o peito o sentimento de estar sendo, enfim, recompensado.
Tão bom era o emprego no JB que, além do prestígio, o trabalho lhe
parecia manso. Diz ele, novamente na terceira pessoa: “João Antônio vivia
644
Carta a Caio Porfírio Carneiro, de 20/07/65.
321
647
Depoimento de Marília de Andrade, colhido em 20/07/2003. O prénome do fotógrafo era Jair.
648
Idem. Nas palavras de Marília, a noiva de seu avô “trouxe de dote quase metade do Leblon”.
323
Já casado, com Maria Mendonça, nascida entre 1917 e 1918, ele e sua
família viajavam pela estrada de ferro Mogiana, mudando-se de cidade para
cidade, a cada vez que uma nova agência bancária era aberta e necessitava
de alguém que planejasse e implementasse sua dinâmica de funcionamento.
Assim a família chegou a Campina Verde (MG), onde nasceu Marília, em 26
de março de 1945, uma de nove filhos. Seu pai era então gerente do Banco
Hipotecário Agrícola do estado. Dali foram para Franca, e de lá para Jaú,
então a serviço do Banco Sudameris.
Educada em colégios religiosos, Marília, na juventude, era uma moça
de saúde frágil, muito magra (beirando os vinte anos, pesava apenas 38 kg) e
com sérios problemas respiratórios. Seu temperamento, porém, era forte, e
seu apetite de vida, grande. Prova disso é a trajetória que percorreu nos anos
que antecederam seu primeiro contato com João Antônio. Ela deixara Jaú
pela primeira vez aos 17 anos, em 1962, “gentilmente deportada” pelos pais
devido a um indesejado namoro com um moço austríaco, e judeu, da cidade.
Foi abrigada então por uma irmã que morava em João Pessoa, na Paraíba,
casada com um grande fazendeiro do estado. No liceu em que foi
matriculada, Marília tomou parte nas iniciativas de alfabetização rural no
Nordeste (fazendo uso do método Paulo Freire de alfabetização e
conscientização política simultâneas), promovidas pelas Ligas Camponesas,
organização identificada como subversiva e de propósito revolucionário pelo
status quo político da época.649 Nos meses seguintes ao golpe de 64, as
atividades das Ligas começaram a ser reprimidas por toda a região. Diante
da possibilidade de ser presa e enviada ao arquipélago de Fernando de
Noronha, para onde iam todos os envolvidos, Marília confessou à irmã e ao
649
De fato, Francisco Julião, chefe das Ligas Camponesas, anunciava que “a vontade do povo prevalecerá,
com Congresso ou sem Congresso”. Gaspari, Elio: A Ditadura Envergonhada, Cia. das Letras, SP, 2002,
p.76.
324
650
Quanto à mesada, ver a carta a ela endereçada por João Antônio, em 26/07/65 (a).
651
Depoimento de Marília de Andrade, colhido em 20/07/2003.
325
“Há muito, desde junho, que estou para lhe contar um caso extremo de
minha vida, Ilka. Estava, como se diz na sinuca, escondendo o leite. No meu
caso, não estava escondendo uma jogada futura, nem me esquivando de um
assunto grave. Estava era experimentando a intensidade e a permanência dos
sentimentos./ Quatro meses depois do surgimento, lhe falo, com algum
sentido mais claro sobre o que está se passando entre mim e Marília./ Este
nome aí, Marília, significa talvez a maior loucura de minha vida feita até
então. Uma loucura equilibrada a meu modo, e que me deixa à vontade para
652
Idem.
653
Carta a Marília de Andrade, de 29/07/65.
326
não ter que dar satisfações a ninguém. (...)/ Houve o amor, Ilka. Inesperado e
aguardado, não planificado e livre, rebelde e intenso, sem horários ou
alianças, imperturbável na sua forma anárquica, espontânea, natural.
Cresceu, tomou conta de Marília e de mim. Vivermos um longe do outro
vem se tornando impossível (o que é viver, afinal?). Uma coisa doída./ O
amor arrebentou, Ilka. Numa menina de vinte anos, disposta a muitas coisas,
com ou sem aliança. Tenho vivido de tudo com essa menina. Desde a beleza
dolorida e alegria funda até mágoa, ciúme, saudade. De qualquer forma,
Ilka, uma coisa da realidade se fez presente, de pronto, em minha vida. Eu
não sou mais um”.654
Em carta endereçada à própria Marília, vê-se que o desejo de ter perto
de si a mulher por quem estava apaixonado já deixara o nível do mero
discurso amoroso e estava mesmo sendo posto em prática: “Sim. O
apartamento será pequeno, como você diz. Será no Flamengo, eu sinto que
será./ Não quero lhe passar pormenores. Para quê?/ Já falei até com o
proprietário. Esta semana fecho o negócio que apenas está na dependência
do meu ordenado aqui no Jornal do Brasil que sairá ali pelo último dia deste
mês”.655 “Agora você está aí no Nordeste [para onde ela voltara, agora, que
se saiba, a passeio656] e em São Paulo eu resolvo umas coisas relativas,
654
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/10/65.
655
Carta a Marília de Andrade, de 26/07/65 (b).
656
Idem, ibidem. Diz ele: “É um homem de pé quebrado que espera a volta da mulher amada que foi ao
Nordeste ver Brasil”. Mas, há, entretanto, várias demonstrações de que a viagem ao Nordeste tenha
ocorrido num momento de sofrimento; talvez pela rejeição de sua família ao “caso” consumado com o
escritor? Ou por culpa? As linhas de João Antônio, nesse aspecto, não são conclusivas: “Sinto um pouco de
pena de você. Além de tudo o que me confessa: ‘Não me conformo de ser mulher’. Repita isso
mentalmente a todo o instante. Às vezes tortura. Você aprenderá a ser mulher com o tempo e com o gosto.
Você se sente chocada diante de uma realidade nova, nunca provada. Natural. Você vem de uma criação
imprópria, sobre a qual nem preciso dizer nada. A sociedade em que vivemos, Marília, simplesmente anula
a mulher como ser autônomo. Uma menina de quatro anos já tem dentro de si, marcado firmemente, um
sentimento de pudor ao nu. Para não falar de outras crueldades medievais. (...) Você não tem preparo algum
para a vida sexual. Simplesmente porque não lhe ensinaram. Mas com o tempo você descobrirá que o sexo
é uma realidade bela e sadia”. Em carta a Marília de Andrade, de 26/07/65 (a).
327
657
Carta a Marília de Andrade, de 29/07/65. O apartamento foi alugado no mesmo prédio em que morava
Mário Peixoto, no Flamengo, o de número 808.
658
Idem, ibidem.
328
de casamento. Mas não quero ver você apartada completamente dos seus
parentes. Eles também lhe querem bem, Marília. Apenas a querem de
maneira diferente, porque são frutos de outra mentalidade, anterior à nossa e
que serve a uma falsa tabela de valores morais, cívicos e humanos. (...)/
Você pode voltar ao Rio de Janeiro. Viver comigo. Mas não abandonar
inteiramente o convívio com Ester, com sua irmã, com sua tia no Leblon,
com seus pais. Seu pai não lhe manda um cheque todos os meses? Então
Marília, essa também é sua realidade”.659
Ainda tentando contemporizar, João Antônio chega a propor que ela
esconda dos pais sua relação com ele. Ou que façam uma cerimônia simples,
no Rio, e não em Jaú, conforme exigência da família dela. Mas nem com
toda sabedoria e generosidade ele deixa de expressar a força de seus juízos.
Ao pai, de quem diz ter gostado e enquanto pede a ela calma e esforço pelo
não-rompimento com a família, chama de “carrancudo e moralista”. Diz
ainda: “Não pise em sua família, eles querem bem a você, embora
aparentemente sejam antiquados, retrógrados, amantes irrestritos da ordem
social e do sagrado casamento etc...”.660
Há uma certa sabedoria e generosidade no que diz a ela, tentando
expor melhor, aos olhos da namorada, os motivos de seus pais. E deveria
haver também um certo medo de, após vê-la romper com a família, sentir-se
demasiadamente preso àquela relação. Afinal, era ele o mais experiente nas
questões amorosas. E é ele quem diz: “Mas eu quero lhe explicar o seguinte:
se amanhã ou depois eu lhe faltar, por quaisquer motivos, como será,
Marília? (...)/ Faça o que seu coração mandar e pedir. Eu não quero mandar
em você. Nunca. Mas veja que não se prejudique por causa do amor. O amor
659
Carta a Marília de Andrade, de 26/07/65 (a).
660
Idem, ibidem.
330
(a realidade é uma só) é efêmero e é falível. Ele nasce, vive e morre. Como
todo o resto no mundo. E não há nada mais triste do que o amor quando
acaba”.661
Nessa mesma linha de raciocínio, ele se colocava em relação a ela na
condição de “abridor de caminhos”, mostrando-se aberto à possibilidade
dela um dia não mais desejá-lo: “Primeiro, a sua libertação de Jaú, de sua
família, do provincianismo gasto e incompreensão geral daí, num meio
social inteiramente ultrapassado no tempo e no espaço. Bestinha e metido a
importante, alto burguês, aristocrático etc. (...)/ Segundo, a sua libertação de
mim mesmo. Para viver a sua vida, que você há de construir de acordo com
as suas forças, gostos e interesses”.662
Mas o tom de suas cartas vai se modificando ao longo das semanas;
ou melhor, se deteriorando. Primeiro em relação à família dela: “Sou franco
e digo o que sinto. Sem peias na língua. Gostei muito de seu pai e não gostei
de sua mãe. Sua mãe é protocolar, metida a aristocrata e matriarca. Não
gosto disso. Dia mais, dia menos, é ela capaz de aparecer aqui no Rio, para
fiscalizar as condições do apartamento em que nós iremos viver. E vai
encontrar um milhão de defeitos. Nesses comentários, a senhora sua mãe vai
encontrar um interlocutor firme, que sou eu. E que não demorarei muito em
abrir a porta do apartamento e lhe dizer calmamente: ‘Ponha-se daqui para
fora. E vá reclamar com o Papa.’ E fim”.663 “Sua mãe se assusta à toa. Desde
que não lhe digam coisas cristãs, bem comportadas, protocolares e formais.
Desde que se finja, para ela o fingidor vira ‘pessoa decente’. É uma
prisioneira do bom comportamento. Meus pêsames!”664
661
Idem, ibidem.
662
Idem, ibidem.
663
Idem, de 13/09/65.
664
Idem, de 23/09/65.
331
665
Idem, de 20/09/65.
666
Idem, de 23/09/65.
332
667
Idem, ibidem.
668
Idem, de 19/11/65.
669
Idem, de 29/11/65.
670
Idem, ibidem.
333
seu caminhão para fazer uma presença para o meu casamento. A esta altura
nós dois quase brigamos. Mamãe me confessou claramente as duras
dificuldades que todos atravessam lá”.675
A mãe de João Antônio havia conhecido Marília por ocasião de uma
ida da jovem a São Paulo, na qual o escritor fê-la entregar um pacote para a
futura sogra, sem entretanto identificá-la como futura nora. Após a notícia
do possível casamento, a mãe do escritor expõe suas impressões sobre a
jovem Marília e sobre o projeto do casamento em si: “Mamãe gostou do
jeito seu, mas acha o seguinte:/ 1) Nosso casamento é por demais apressado./
2) Ela e meu pai não podem admitir que seus pais gastem todo o dinheiro
sozinhos. Querem dividir, meio a meio, as despesas./ 3) Achou você muito
fraca e nutrida inconvenientemente, além de lhe parecer que você, em três
meses [prazo até o casamento] não mudará muito. Ademais, acha
simplesmente que eu devo procurar, além de um segundo, um terceiro
emprego, pois parece-lhe que não vai dar: você é uma criatura doente e
sempre haverá fortes despesas com farmácia, médico etc./ 4) Se nós
casássemos aqui mesmo no Rio de Janeiro, em cerimônia simples, sem
nove-horas, seria muitíssimo melhor. Para nós dois. (Veja a que ponto vai a
lucidez e a objetividade de mamãe) ”.676
Como se vê, a dificuldades financeiras da família dificultam a
obtenção de uma aprovação consensual do casamento, sendo a mãe a
principal porta-voz das forças de resistência. Em uma carta, João Antônio
cita a mãe: “Meu filho, não tem nada que eu não gostasse na Marilda
(mamãe troca o seu nome de Marília para Marilda [que típico!]) mas acho
que você está tomando uma decisão muito rápida. Pode fazer o pedido ao pai
675
Idem, de 13/09/65.
676
Idem, ibidem.
336
dela, mas pense um pouco mais. (...) Eu melhor que ninguém sei as
dificuldades que acabam vindo, logo com os encantos cor de rosa. Não
misture a pureza com o amor”.677
E João Antônio é franco com os pais, sem esconder as verdadeiras
circunstâncias por trás do casamento: “Falei, quando estive a última vez em
São Paulo, declaradamente a meu pai e a minha mãe, que nem eu e nem
você queríamos casar. Que por nossa vontade já estaríamos vivendo juntos e
fim. As famílias que fossem lamber sabão. Um sabão medieval,
ultrapassado, fedorento e cheio de mofo de séculos. Meu pai abaixou os
olhos e minha mãe ficou olhando a toalha de plástico que cobria a mesa da
sala de jantar”.678
Logo, infelizmente, as preocupações práticas da mãe começaram a
ganhar um sentido urgente e impiedoso. A situação econômica do país, e a
dele, pareciam piorar também, agravando as preocupações do noivo
relutante: “(...) o custo de vida vai aumentar e o João Antônio, este infeliz
que lhe escreve, não poderá aguentar o tranco aumentista”.679 Ele diz que sua
capacidade financeira já está exaurida: “O apartamento vai como você o
deixou. Nem mais coisas, nem menos coisas. Resolvi não comprar mais
nada: o meu orçamento já está suficientemente tenso com o que tenho de
pagar: aluguel, prestações destes móveis e da máquina de escrever. Preciso
viver na realidade e não posso me enfiar com novos compromissos, que
acabariam me comendo por uma perna. É. Quando arrumar outro emprego,
com entradas fixas de mais dinheiro, verei o negócio da compra da geladeira
e da estante de livros”.680
677
Idem, de 15/09/65.
678
Idem, de 27/09/65.
679
Idem, de 15/09/65.
680
Idem, de 21/09/65.
337
Quanto mais apertada sua situação, mais ressentida sua atitude para os
pais dela e os seus próprios: “Cheguei de viagem e já comecei a verificar as
coisas. Estou me transformando em máquina de fazer dinheiro. Ou melhor:
dinheirinho (que o que tenho arranjado nos últimos meses não merece
classificação mais digna). O entusiasmo de meus pais e dos seus diante do
nosso casamento é um misto grotesco de ingenuidade, otimismo tôlo e
vaidade aos montes. São casamenteiros por convicção e estão cegos
completamente”.681
Entre a aprovação das famílias e o aumento insuportável das despesas,
a situação realmente se complicou. Um panorama, de próprio punho: “Mário
Peixoto prometeu-me arranjar uns quarenta mil cruzeiros para que eu
complete o total do pagamento do aluguel deste apartamento. Afinal, vou-
lhe passar o raio-x da situação presente do João Antônio: estamos no dia 9
de novembro e ele ainda não pagou o mês de outubro; pagando o
apartamento, além de ficar inteiramente sem dinheiro, fica também devendo
uns quarenta ou cinquenta mil cruzeiros. Que, por coincidência, também não
tenho. Hoje já dei um pulo na revista Reunião e tive a notícia de que tudo
está parado. (...) Se eu não conseguir vender a Erika portátil [sua máquina de
escrever nova, comprada para escrever “Paulinho Perna Torta”] até o dia 20
de novembro estarei estrepadinho. E para comer até lá. Não sei não. Alguém
ou alguns terão de me emprestar dinheiro. O que significa dizer que em
começando o mês de dezembro, eu já começo durinho. Durinho”.682
A ânsia por dinheiro, as necessidades prementes que o projeto
conjugal lhe colocava, fizeram com que João Antônio revelasse sua extrema
681
Idem, de 09/11/65.
682
Idem, ibidem. A revista Reunião vinculava-se à editora Civilização Brasileira, e também era dirigida por
Ênio Silveira. Mas João Antônio nunca receberia por esse trabalho. A revista fechou exatamente nessa
época.
338
683
Idem, de 13/11/65.
684
Idem, de 19/11/65.
685
Idem, de 21/11/65.
339
686
Idem, ibidem.
687
Gelsomina é a atriz mambembe, entre a pureza absoluta e a inteligência limítrofe, do filme La Strada, de
1954.
340
sozinho!”.688 Ele vai ainda mais longe, dizendo: “Você me faz falta o tempo
todo. Durante a noite a sua falta aumenta. De manhã é ruim amanhecer só na
cama. Para dizer tudo: até o banho sem você é ruim”.689
Ao longo dos meses em que ficaram separados em 1965, muito
amorosamente, algumas vezes ele explicita sua preocupação com a saúde da
namorada. Além disso, comentando a difícil condição da mulher na
sociedade, e de Marília na vida, ele parece prometer que com ele seria
diferente: “Quero ajudar você. E quero que você me ajude a ajudá-la — é
inteligente e sobretudo, a seu favor, tem a vantagem de uma índole muito
boa. Eu sou seu amigo, não se esqueça. Mesmo que você se encante de outro
homem aí no Nordeste ou no Rio ou onde for, eu sou seu amigo. Não se
esqueça disso. Não vou abandonar você como se fosse uma camisa já usada
e rota. Eu lhe quero bem, não se esqueça. Quero-lhe como mulher, como
fêmea e como amiga. Eu lhe quero bem como as pessoas a quem quero bem.
Isto é, como aquelas criaturas cujas coisas, acontecimentos, dores, alegrias,
esperanças, anseios, lutas, mexem com as minhas entranhas. E me dói que
minha mãe sofra, que meu pai, meu irmão, minha avó-madrinha. Porque eu
os amo e os quero bem. Sabe? É assim com você também. Como se você
fosse carne minha e se tocam em você, em mim também me tocam. É assim
mesmo e não é um fingimento ou um galanteio ou um agrado que eu lhe
esteja querendo fazer através de uma carta. Eu não minto para você. Porque
respeito suas coisas e quero você, como você é”.690
Ele que, antes de encontrá-la, dizia-se “pan-sexual”691, agora faz juras
de fidelidade: “E isto tudo, Gelsomina, é para que você não pense que ando
688
Carta a Marília de Andrade, de 16/07/65.
689
Idem, de 26/07/65.
690
Idem, ibidem.
691
Idem, ibidem.
341
vagabundeando à toa por aqui, em São Paulo [onde fora visitar a família]./
Aqui ainda teria, se quisesse, minhas mulheres. Porque aqui em São Paulo
eu fui muito jovem um dia e já tinha alguma fama, afinal ganhei meia dúzia
de prêmios literários aqui e até um jornal (Última Hora) chegou a dar o meu
retrato em primeira página. (...) Mas lhe escrevo para lhe confessar que não
procurei nenhuma das duas ou três mulheres que foram minhas amantes em
São Paulo e que, não tenho dúvidas em lhe afirmar, bem que aceitariam a
minha volta. E seria intenso renovar o ato de dormir uma nova noite com
qualquer uma delas. No entanto, vou dormir só./ Estou me guardando para
você”.692
E pede-lhe que volte do Nordeste: “Hoje a minha saudade lhe manda
um beijo. E que você me apareça logo aqui, o mais rápido possível que já
estou cheio de solidão. Nem que seja para ficar só uns dias”.693
E novamente, enquanto tenta impedi-la de romper com os pais, e ao
admitir suas carências, seu tom é de extremo carinho e devoção: “Eu não
estou querendo ‘tirar o corpo fora’. Seria um absurdo, já que a quero aqui,
perto de mim, que você me ajuda a viver e a lutar”.694
Ele, sem rodeios, admite estar totalmente apaixonado:
“Espiritualmente estou vivendo de uma sensação que há muito não sentia.
Há anos não sentia. É algo tão inexplicável que não adianta lhe escrever nem
apenas uma linha. É algo imponderável, fatal, totalizante. Creio que apenas
sinto a tal impressão sensorial de tempos em tempos e que, no fundo, é uma
marca de meu amadurecimento. Inútil lhe explicar. Posso lhe garantir que a
maioria dos homens chama a isto de estado de graça”.695
692
Idem, de 31/07/65.
693
Idem, de 27/09/65.
694
Idem, de 27/07/65.
695
Idem, de 20/09/65.
342
699
Idem, de 01/10/65.
700
Idem, de 26/07/65.
345
701
Idem, de 29/07/65.
347
702
Idem, de 15/09/65. Aparentemente, ele pede que ela arranje em Jaú, muitas vezes por intermédio da
família, artigos que pudesse vender no Rio. Só isso explica o pedido de cabelo aqui mencionado. Novos
exemplos disso aparecerão a seguir. Em outra carta a Marília, de 20/09/65, ele volta ao tema da
racionalização das compras: “O tapete que você comprou e a colcha desfiam. A vassoura de pêlos continua
a deslocar o cabo, o filtro também encrencou e vaza água, necessário que eu vá reclamar. Tudo errado.
Você, além de péssima compradora é também azarada. Dá um azar dos capetas. Não se amofine, todavia,
por causa disso. Napoleão, Machado de Assis e Dostoiévski eram epiléticos. E nem por isso deixaram de
ser geniais”. Ele, numa terceira carta a Marília, de 23/09/65, pede-lhe inclusive que explore a sabedoria e o
impulso consumista da própria mãe: “(Mas já que ela [a futura sogra] é uma compradora por vocação, não
se esqueça de que o apartamento do João Antônio está pelado como o seu ocupante quando nasceu. Precisa
de mesa, cadeira, geladeira, estante, cortinas, tapetes e o resto todo)”.
348
703
Idem, de 13/09/65.
704
Idem, de 09/11/65.
349
705
Idem, de 13/11/65.
706
Idem, ibidem.
350
uma coisa qualquer. Você vai para a casa de sua tia ou para onde bem
entender. Eu passo imediatamente os móveis e vou morar numa pensão.
Depois se cuida imediatamente da anulação em Cartório aqui do Rio”.711
Claro que, como costumava lhe acontecer, todas essas frases ácidas
compunham um outro lado da moeda, que se alternava com um lado
positivo. Na manhã seguinte a uma carta de fúria anti-matrimonial, ele diz:
“Você aí acima, Marília, vê o retrato de metade de um homem. Prestes a ser
engolido pela pressão econômica. Não lhe exagerei em nenhum dos números
e quantias. (...)/ Mas seria uma estupidez agredir você com isso. Você não
tem nada com isso. Você não encomendou essa situação, ela é minha. É uma
burrice acabar com as coisas entre nós. O meu lado sentimental — que ainda
existe, apesar de tudo — me diz claramente que você serve como
companheira. (...) Eu maltrato você e depois fico magoado comigo mesmo.
Não adianta nada. Acabo me estraçalhando nessa luta entre o homem cínico
e o sentimental que moram dentro de mim. Nem sei qual dos dois vencerá.
Ambos são fortes e terríveis. Enquanto um dos dois não se declara vencedor,
eu vou sendo isto, Marília: uma briga danada comigo mesmo. Nessa briga,
sempre resta uma porrada para você”.712
Logicamente que, às vésperas do casamento, a alternância de humores
do noivo pôs o compromisso à beira do rompimento. Marília, em novembro
daquele ano, responde-lhe duramente, com frases do tipo “Joguei toda a
minha vida no lixo”, ou “Depois dessa carta não sei mais se suportaria viver
a seu lado”. E até ameaçando se matar.713 E ele acusa o golpe: “Se é assim
como você me escreve, se a náusea chegou e já está nesse pé, agora é que
nosso casamento não vai significar nada mesmo. Nem o contrato oficial,
711
Idem, ibidem.
712
Idem, de 20/11/65.
713
Idem, de 24/11/65.
352
715
Idem, de 13/11/65.
716
Idem, de 17/07/65.
717
Idem, de 27/07/65.
354
editor do ‘Caderno B’] espera matéria todos os dias até as onze da matina.
É”.718
E, à medida que o casamento vai se confirmando e aproximando, o
salário insuficiente também pesa, obrigando-o a acumular serviços:
“Profissionalmente continuo no Jornal do Brasil e [em] trabalhos avulsos
para a Civilização Brasileira. Ainda não consegui intensificar os contatos
para a obtenção de um segundo ou terceiro emprego, pois, o atual Festival
Internacional do Filme, me leva o tempo quase todo. E ainda tenho os
avulsos compromissados com a Civilização Brasileira. É fogo”.719
Mas estava ficando difícil disfarçar para si mesmo o quanto o glamour
do “Caderno B” já o havia saturado: “O trabalho intenso, aquele em que não
acredito e que detesto, aquele aliterário e até mesmo o pára-literário, o
jornalístico, o editorial, me serve como uma ferramenta nojenta com que
tapeio os meus dias e a minha realidade mais imediata./ É uma espécie de
veneno tão imoral ou amoral como a cocaína, o ópio ou a maconha. Há
pouca diferença. Enquanto o infeliz está tomado do que fazer, estando a
lutar, sem dúvida alguma, se esquece das outras solicitações essenciais do
homem. Aquelas necessidades mais intensas e profundas, porque afinal,
quem vai dormir bem cansado e com coisas metidas na cabeça para o dia
seguinte, não tem vontade de sonhar, nem de mulher na cama, nem de
cafuné e nem do resto. Também não é dormir. É morrer./ A pior desgraça,
Marília, é quando um homem tem imaginação demais ou lucidez demais.
Eu, otário impenitente, ora fico num caso, ora noutro. Só não consigo ser um
ser normal. Também eu não me esforço. Como não acredito no trabalho em
série, posso fazer trabalho em série muito sossegadamente. Ele não me dói,
718
Idem, de 15/09/65.
719
Idem, de 20/09/65.
355
porque não acredito nele. O pior é ficar nessa porcaria de vida como um ser
pensante, isto é, como um homem que faz algo além de comer, beber,
trabalhar e dormir sozinho”.720
“Calorão no Rio, e é bom: diminui a fome da gente. Engana-se o
estômago apenas uma vez por dia. O Jornal do Brasil continua o mesmo
ramerrão da mesma droga. Mas os donos do Jornal do Brasil devem estar a
multiplicar seus lucros: sorte deles. Azar dos empregados.”721
A partir de uma certa hora, desaparece qualquer interesse pelo
trabalho no JB, e prevalece a já citada sensação de estar numa “péssima
situação profissional”. Mesmo os frilas que descolava em outras
publicações, além de tomarem seu tempo, muitas vezes sequer lhe
pagavam.722
E foi assim, pressionado pela extrema falta de dinheiro, literalmente
passando fome, acossado pela família da namorada, pelo amor que sentia por
ela, pela solidão quando Marília lhe faltava, que João Antônio atravessou o
ano de 1965, seu primeiro como escritor reconhecido, jornalista profissional,
e residindo na cidade que escolhera. O deslumbramento com a vida nova
durou pouco, e logo a realidade tratou de provocar novamente sua oscilação
emocional. Só um quadro geral de deterioração pessoal explica a dura
constatação que faz numa das cartas da época:
“Eu venho me matando aos poucos e matando todas as pessoas que
me amam. Isso é há muito tempo, desde quando não sei”.723
720
Idem, de 27/09/65.
721
Idem, de 10/11/65.
722
Idem, de 21/11/65.
723
Idem, de 24/11/65.
356
longo dos anos, ao invés de tentar uma convivência pacífica entre suas duas
profissões (escritor/jornalista), reservando a cada uma seu espaço e
respeitando suas particularidades, busca obstinadamente fundir sua atividade
literária à de jornalista no próprio nível do texto. Razões para tanto não lhe
faltavam. Era, em parte, uma estratégia para impedir que o trabalho
jornalístico, imprescindível para seu desesperado sustento, roubasse-lhe o
tempo necessário para escrever literatura. Era, também, uma maneira de
profissionalizar a atividade literária, remunerando-a não com base em
magros e incertos pagamentos de direitos autorais (pelos quais lutaria
também), mas a partir de um salário mensal, que permitisse ao escritor viver
de maneira estável com sua atividade “lítero-jornalística”. Além disso, tal
fusão combinava bem com sua tendência a transformar suas experiências
pessoais – ou seus testemunhos, pois também são experiências pessoais,
afinal – em literatura de forma bastante direta e imediata. Para não dizer que
se beneficiava em larga dose de sua total naturalidade em descer aos níveis
mais baixos da sociedade brasileira. Por fim, este era de fato um caminho
promissor para seu projeto estilístico, cuja meta, como foi visto no capítulo
2, era a composição de um gênero híbrido entre o regionalismo e a literatura
urbana. O jornalismo, tal como ele o idealizava e o praticava, permitia-lhe
um contato diário tanto com a força poética da linguagem inculta quanto
com o dia-a-dia na cidade. As regras de composição do texto jornalístico, os
gêneros nele trabalhados, a princípio tão diferentes dos de seus textos
literários, logo se amalgamam ao estilo anterior de João Antônio.
Ele não foi o único escritor da geração a trazer elementos jornalísticos
para sua literatura. Afinal, como antes mencionado, o jornalismo e a
publicidade eram os territórios que se abriam a novos “profissionais do
texto”, os quais, devido às circunstâncias políticas do momento (anos 60 e
359
726
Wolfe, Tom (org.). The New Journalism, Picador, London, 1973.
727
Brandão, Ignácio Loyola de. Zero, São Paulo, Clube do Livro, 1986.
728
Antônio, João (org.). Extra: Realidade Brasileira – Coleção Livro-Reportagem, no 4, São Paulo, 1977.
Deste número faziam parte ainda: Tânia Faillace, Chico Buarque, Antônio Torres, Marcos Rey, Wander
Piroli, Plínio Marcos, Márcio Souza e Aguinaldo Silva.
362
729
João Antônio credita esta citação a Balzac,
730
Sobre isso ver Lacerda, Rodrigo. “De princesinha a cadela desdentada”, in Ô, Copacabana!, Cosac &
Naify, SP, 2001, p. 6. “O livro insere-se no gênero do conto-reportagem, uma das especialidades do
escritor, que lhe permitia a ponte entre a observação realista e o estilo literário. (...) Poder-se-ia dizer que Ô,
Copacabana! Margeia também a crônica, desde que não se tenha em mente a postura contemplativa e
nostálgica em geral predominante nesse território.”.
363
O Jornal do Brasil
731
Leão-de-chácara (1975); Malhação do Judas Carioca (1975); Casa de Loucos (1976); Ô, Copacabana!
(1977); Calvário e Porres do Pingente Afonso Henriques de Lima Barreto (1978).
364
Antônio, vê-se que na verdade esse nunca foi bom. A redação parece
descuidada, com repetições freqüentes de informações, de palavras, um
método subjetivo de apuração, opiniões pessoais se evidenciando a cada
parágrafo.732 Portanto, no plano estilístico, no âmbito estritamente do texto, a
análise do acervo do JB não permite que se vá muito longe no rastreamento
da combinação entre o jornalismo e a literatura.
Não obstante, em que pese a ausência de interesse do ponto de vista
estilístico, este acervo traz muitas informações importantes, e de abordagens
sintomáticas a determinados assuntos, que não só moldam o projeto literário
de João Antônio, como também reaparecerão nas etapas subseqüentes de seu
envolvimento com o jornalismo. Por tudo isso, tais informações justificam
alguns comentários. No Jornal do Brasil, a plataforma ideológica da fusão
que viria foi esquematizada.
Logo em seguida à mudança para o Rio de Janeiro, como vimos nas
suas cartas para Ilka e para a noiva, João Antônio fica deslumbrado com a
liberdade de comportamento que encontra na cidade. Era o momento áureo
da liberação sexual, a cena artística vivia um momento bastante rico e
variado; o Rio era ainda a capital cultural do país. A rebeldia sem causa dos
anos 50, que se contentava em ajeitar o topete no espelho, sair com o carro
do pai cantando pneu, pegar a namorada e ir ao baile havia perdido seus
adeptos, e a triste realidade política dos anos 70 ainda não tinha chegado.
Havia uma nova rebeldia no ar, mais ambiciosa, com causa e disposta
realmente a mudar o mundo. Na família, no trabalho, no plano político e,
como não poderia deixar de ser, nas artes. Os conflitos de geração
produziam novos equilíbrios, e confrontos. Inclusive no Distrito Federal.
129
Ver, por exemplo, no que se refere às deficiências de estilo, as matérias dos dias 06/06/65, 17/06/65, s/d
agosto de 65 e 22/08/65.
365
que, do ponto de vista desse trabalho, muitas vezes não têm qualquer
interesse. São os comentários e as edições de João Antônio que nos
interessam, como expressões diretas ou indiretas de suas próprias opiniões.
Para quem lê o acervo de sua colaboração no JB, um primeiro
elemento a ser destacado é a recorrente ênfase na função, ou nas funções
sociais da arte. Como já foi dito, João Antônio endossava a idéia de que a
arte deveria refletir, o mais diretamente possível, a realidade que cerca o
artista e a sociedade em que ele vive. E, sendo essa sociedade injusta,
caberia a arte a missão de fazer esta denúncia.
Seguindo esse raciocínio, por exemplo, João Antônio valoriza a
produção contida num festival de cinema amador: “(...) os jovens cineastas
revelam uma grande preocupação pelo social. Assim, a maioria dos filmes
retrata as gentes pobres do Rio de Janeiro, sempre abarcando elementos de
ruas, calçadas e natureza e retratando seus homens, mulheres e crianças,
como expressões vivas do povo-povo carioca.”733 Ou, em um elogiosíssimo
perfil sobre o escritor Hélio Pólvora, então lançando o livro Estranhos e
Assustados, João Antônio põe a seguinte fala na boca de seu escritor:
“Literatura é um compromisso com a vida e com a arte, implica em conhecer
bem o nossos semelhante. (...) Somente com os olhos postos na nossa
realidade, na nossa gente, nos nossos costumes e nas ânsias que nos marcam,
o escritor brasileiro poderá respeitar o compromisso e, através da cultura do
povo, chegar à plena realização estética”.734
733
“Um cinema novo vem das ruas”, in JB, RJ, 18/08/65.
734
“Um contista maior”, ”, in JB, RJ, 08/05/66. Não será a única vez que tomarei as palavras dos
entrevistados como sendo as do próprio João Antônio. Tal procedimento deve ser entendido não como
“forçação” metodológica, mas como parte da hipótese exposta neste capítulo. Segundo ela, na condição de
repórter-especial, João Antônio tinha amplas margens de negociação em relação às suas pautas.
Considerando-se que, em 63 matérias, entre perfis, resenhas, críticas e outras formas de texto jornalístico, o
escritor jamais falou mal de algum espetáculo, não é ir muito longe dizer que ele escolhia os temas de suas
matérias. Nem é preciso invocar uma análise mais minuciosa do discurso, para ressaltar a completa adesão
367
740
“Singela é a graça da guerra”, JB, RJ, 25/04/65.
741
“O festival e a irreverência tranqüila”, JB, RJ, 20/09/65.
369
valendo mais pela serventia que pelo significado, devendo ser vistas,
primeiro, como instrumentos de luta. Na boca de João, a palavra
transbordava para estrangular seus interlocutores (...) João desandou a falar,
emendando histórias irrelevantes a comentários furiosos, casos antigos a
vaticínios pessimistas a respeito do futuro brasileiro”.742
Artistas como ele, dotados de visão crítica da realidade, de capacidade
de auto-análise, de liberdade interior suficiente para romper com os padrões
de bom-comportamento, deveriam unir-se com o intuito de potencializar o
impacto de sua crítica, e, ao mesmo tempo, de alargar o seu raio de alcance.
Daí o grande entusiasmo de João Antônio em todas as iniciativas que
possibilitassem a integração de diferentes formas de arte e dos indivíduos
nelas atuantes. Por isso merece elogios a iniciativa da editora Brasiliense de
montar uma coleção de autores latino-americanos, “uma ponte de
aproximação cultural”, então tornada possível porque “Nos últimos anos de
vida da América Latina, principalmente nos últimos cinco, uma atribulada
atualidade política e social, conseqüente de um subdesenvolvimento crônico,
criou uma situação objetiva, ‘uma consciência continental que não mais se
desentende de nosso comum destino americano’”.743
Nessa mesma linha, ele destacara, meses antes, o intercâmbio cultural
Brasil-Venezuela, iniciado com a vinda de um maestro e uma pianista às
festividades do IV Centenário do Rio de Janeiro.744
Foi esse ideal de união também que o levou a endossar, em matéria
sobre o grupo Teatro Universitário Carioca (TUCA), sua plataforma de
atuação: “[o TUCA] propõe simultaneamente se constituir em ponto de
encontro e união, tribuna de debates, movimento cultural identificado com o
742
Castello, José. O inventário das sombras, Record, RJ, 1999.
743
“As outras vozes da América”, in JB, RJ, 08/06/66.
744
“Venezuelanos no IV Centenário”, in JB, RJ, 03/09/65.
370
748
“O homem que aprendeu grego sozinho”, in JB, RJ, s/d.
749
“A Fosca se vê ou se mostra”, JB, RJ, 23/04/65.
372
É o tal olhar “zangado” que lhe inspira tamanho desprezo pelos tipos
mais enfatiotados no teatro e pela forma operística em si, tida por ele como
passadista, uma modalidade de arte ultrapassada e cujo poder expressivo era
por demais formalizado, característica que ele também identifica na platéia.
Era também para ir contra artes desse tipo que a união dos artistas
“zangados” tornava-se vital, bem como a difusão das novas formas de arte.
Nisso parece querer chegar Ignácio Loyola Brandão, e por tabela João
Antônio, numa das matérias do JB. Diz o entrevistado: “O interior tem sido
descuidado, porque essa turma que anda escrevendo é esnobe demais e não
tem a humildade de carregar os livros debaixo do braço e vendê-los de
cidade em cidade, de porta em porta, de faculdade em faculdade”.750 E as
viagens foram, de fato, uma marca da carreira de vários escritores da
geração. Elas permitiam que se levasse o interesse pela nova literatura às
várias regiões do país, participando-se de debates com o público em geral,
mas em especial com estudantes universitários, difundindo a produção da
nova geração de escritores etc; tudo isso fazia parte. Outros militantes
contumazes da geração no esforço de difusão da literatura brasileira foram
Antônio Torres, Sérgio Santanna e Wander Pirolli. Todos eles prontificaram-
se a correr o Brasil divulgando seus livros e a literatura em geral, numa onda
que, com o espírito idealista inicial, durou da segunda metade dos anos 60
até quase os anos 80. Lembra Antônio Torres, dizendo ser incrível que, de
um debate sobre literatura, organizado por ele e João Antônio, “(...) ia sair
um trio de estradeiros e não sei bem o porquê da escolha. João Antônio,
Ignácio de Loyola Brandão e eu passamos a ser convidados para palestras
em praticamente todo o país. Dependendo da agenda de cada um,
viajávamos os três, às vezes dois, e daí a pouco, enquanto um estava no
750
“Um filme e um livro contra a engrenagem”, in JB, RJ, 14/12/65.
373
755
“Estranhos e assustados no purgatório”, in JB, RJ, 08/05/66.
756
“Um violão e um gênio de mãos dadas”, in JB, RJ, 04/05/65.
375
762
“De Opinião a Reação todos cantam o povo”, JB, RJ, 23/05/65. A expressão esquerda-festiva-lítero-
perfumada-intelectual não é do diretor do espetáculo, mas do próprio João Antônio e de seu uso corrente,
377
764
“Canto e memória do samba”, in JB, RJ, 12/11/65.
765
“A bossa e os gols”, in JB, RJ, 07/06/66.
379
766
“Estranhos e assustados no purgatório”, in JB, RJ, 08/05/66.
767
“A revolta que vem do silêncio”, in JB, RJ, 15/12/65.
380
768
“A fábula da divina música”, in JB, RJ, 14/10/65.
769
In JB, RJ, 05/05/65.
381
770
“Os interesses criados”, in JB, RJ, 08/09/65.
771
“Estranhos e assustados no purgatório”, in JB, RJ, 08/05/66.
382
mas que guarda muitas semelhanças com a natureza das matérias que faria
mais tarde, no momento da fusão entre literatura e jornalismo.
Em primeiro lugar, o texto não tem “gancho”, isto é, não há notícia a
ser divulgada. Em segundo, não se trata da crítica de um espetáculo, do
perfil de um intelectual ou artista, da cobertura de um evento. É um episódio
de vida. A matéria, chamada “Uma lição de abismo”, com fotos de Brás
Bezerra, narra um quase acidente com um páraquedista.772
Ela tem uma abertura nitidamente diversa das usuais no JB: “Quando
se lança, queixo baixo contra o peito, os punhos se cruzam firmes quase
como se estivesse orando, as pernas juntas completam o encolhimento à
espera da queda. O contra-guerrilheiro Severino, Severino do Nascimento,
está prestes a cair”.
É um belo começo, de tom fortemente literário. Os punhos cruzados,
“como se estivesse orando”, uma imagem forte e a escolha do verbo menos
usual “orar” em vez de “rezar”, é sintoma de liberdade na redação.
Curioso que, na primeira matéria mais livre de João Antônio, o tema
escolhido tenha sido o exercício de um regimento de pára-quedistas da Força
Aérea Brasileira, no centro de manobras simuladas de capturas de
guerrilheiros, em Resende (RJ), e, mais especificamente, o episódio ocorrido
com um contra-guerrilheiro. Mais um traço da independência político-
ideológica da arte?
Assim como a abertura e a imagem da reza, há várias outras
formulações de índole eminentemente literária. Há, por exemplo, efeitos de
estilo, como quando, com frases curtas, sincopadas, ele parece transformar
cada nova informação em uma revelação impactante sobre seu
“personagem”: “O último homem da ala direita. Além do nome, ou antes,
772
“Uma lição de abismo”, in JB, RJ, 27/10/65.
383
redor da cauda da nave e não haja amortecedor para seu flutuar desesperado,
pássaro sem asas, preso ao cordão. O 1.309 está lúcido e a mão esquerda à
cabeça é o sinal convencionado”.
O uso do jargão específico do universo retratado e seus personagens
ainda é tímido, verificando-se uma ou duas ocorrências, o que para João
Antônio, como se verá, é bem pouco. Mas, como vimos nas cartas e nos
textos de ficção, João Antônio rompe com a sintaxe cartesiana do jornalismo
clássico e adiciona aqui os seus “breques” tão característicos. São partículas
de frases, cujo contexto e cuja emenda com as que vêm antes torna
inteligíveis. Um parágrafo, por exemplo, se abre com “A certeza líquida.”,
outro com “Uma dúvida.” Uma outra frase é somente “E apenas.”, outra “E
lúcido”.
Essa matéria está longe do brilho das que viria a publicar na revista
Realidade. Porém, comparada ao formato conservador de suas outras
matérias no JB, ainda que os temas fossem palpitantes instantâneos da cena
artística carioca, isto é, nacional, e a “zanga” pulsasse nas entrelinhas, esta
pequena matéria sobre os pára-quedistas contra-guerrilheiros tem muito mais
a ver com o projeto literário que o escritor iria desenvolver dali em diante.
São combinações como essa, feita à base de recursos como esses, que
lhe permitiram cristalizar um jeito muito próprio de escrever, no qual as
fronteiras entre ficção e não-ficção se perdem quase completamente. Para o
bem e para o mal. O crítico José Castello foi o primeiro a enxergar o que
chamou de a explosão de gêneros na obra de João Antônio.773 Algum outro
menos generoso poderia chamar da diluição dos gêneros. Mas, antes de se
tomar uma posição, vale a pena se acompanhar a segunda etapa na gestação
desse projeto: a revista Cláudia.
773
Em palestra proferida na Unesp de Assis, nunca publicada em livro.
385
Revista Cláudia
775
“Como é que o caboclo Juca Mulato viveu 50 anos e ainda está forte”, in Cláudia, Ano VII, n. 71, ago.
67.
387
776
“A cegonha morreu de parto”, in Cláudia, Ano VII, n.74, nov. 67.
388
A Realidade
779
Na data da redação deste capítulo, 11 de maio de 2004, esta biografia ainda estava em processo de
composição.
395
que cargas d’água, me coube a parte do Atlético, sua charanga, sua gente,
desde o mais pobre e desdentado até um sizudo político de alto coturno.”781
Como se vê, enviado por Realidade para cobrir o evento, João
Antônio mobilizou a seu serviço boa parte da elite intelectual de Belo
Horizonte, e mais, pagando bem:
“– E vai ter pagamento?
– Na boca do caixa. Assistimos o jogo, entregamos a nossa parte, e
pronto.
Como o Bley não perguntasse qual seria nosso cachê, falei da
importância.
– Você está brincando.
– É a pura verdade.
– Mas eles vão pagar isso tudo por uma lauda e meia?
E pagaram. Por uma lauda e meia, receberíamos muito mais do que
dando duro durante o mês inteiro no Sol”.782
Era natural que, sendo a revista um posto avançado da elite
jornalística nacional, a projeção de João Antônio como jornalista
aumentasse. O sucesso chegava, e sem que concessões fossem exigidas de
volta. O artista encontrara o seu lugar no mundo real, no mundo produtivo.
O autor de um ensaio sobre a história da revista define-a da seguinte forma:
“A revista Realidade representaria um exemplo destacado do momento
inicial de implantação e consolidação de uma indústria cultural no país. (...)
apesar de fazer parte de um projeto editorial marcado pelas ligações e
contratos internacionais da Editora Abril, a execução da revista esteve a
cargo de um grupo de jornalistas sensível às necessidades da época,
781
Crônica de Wander Pirolli, escrita em 1992. Arquivo do autor.
782
Idem.
398
785
Antônio, João. Leão-de-chácara, Record, RJ, 1975.
786
Antônio, João. Malhação do Judas Carioca, Record, RJ, 1975.
787
João Antônio foi convidado a escrever n’ O Pasquim pelo cartunista Jaguar, que leu um retrato do
jogador de futebol Almir, escrito por João Antônio e publicado no suplemento literário do jornal Minas
Gerais. Mais tarde, o texto seria republicado no próprio O Pasquim (Ano VI, n. 267, 1974), provavelmente
com poucas modificações, e no livro Casa de Loucos (Record, RJ, 1976), provavelmente com muitas
modificações. Sua colaboração no tablóide começou em 1974 e foi até 1976. A atuação de João Antônio na
imprensa alternativa como um todo foi intensa e notável, tendo ele escrito também para Movimento,
Opinião, Cultura Contemporânea, Protótipo, entre outros; mereceria um capítulo à parte. Destaca-se, no
caso d’ O Pasquim, o texto “Aviso aos nanicos” (Ano VII, n.318, 1975), do qual gaba-se, entre outros
motivos, por nele haver cunhado a expressão “imprensa nanica”.
402
788
Neto, João da Silva Ribeiro. João Antônio – Literatura Comentada, Abril, SP, 1981.
789
Antônio, João. Casa de Loucos, Record, RJ, 1976.
790
Antônio, João. Calvário e Porres do Pingente Afonso Henriques de Lima Barreto, Record, RJ, 1977.
791
Antônio, João. Ô, Copacabana!, Record, RJ, 1978.
792
Antônio, João. Dedo-duro, Record, RJ, 1982.
403
793
In Realidade, Ano I, n.19, Abril, SP, 1967; Ano II, n.30, Abril, SP, 1968; Ano II, n.30, Abril, SP, 1968;
Ano II, n.32, Abril, SP, 1968, respectivamente.
404
de um texto. “Um dia no cais”, inclusive, sempre foi apontada por João
Antônio como o texto que inaugura um novo gênero na literatura nacional, o
“conto-reportagem”. É também, um texto tipicamente da categoria
paisagem.
Nas outras três, o nível de semelhança é o mesmo, seria perda de
tempo esmiúça-lo aqui. Já os dois textos publicados em Realidade e depois,
com modificações, em livros, merecem análise mais detida. Sobretudo para
mostrar o quanto essas modificações são também relativas e, desta forma,
sustentar a tese de que, após a passagem pelas redações de Realidade, João
Antônio desfaz as fronteiras tradicionais entre literatura e jornalismo,
criando o seu próprio leque de gêneros. E, se ainda preciso for, como
atenuante à existência destas modificações, pode-se invocar o fato de serem
as duas com maior intervalo de tempo entre as publicações na imprensa e no
âmbito do mercado editorial de livros.
Uma delas, “Ela é o samba”794, foi publicada na Realidade em outubro
de 1968 e depois apareceu no livro Dama do Encantado795, de 1996, ano da
morte do escritor. A outra, “Quem é o dedo-duro?”796 saiu na Realidade em
julho de 68 e em livro quase homônimo, somente no ano de 1982. As quatro
matérias publicadas de forma idêntica foram veiculadas em livros que
saíram até 1976, ou seja, no calor do momento, e portanto menos
retrabalhadas, esforço que ao longo de tanto tempo mais diz respeito a um
processo natural de todo escritor que à negação de sua subversão pessoal dos
gêneros literários.
“Ela é o samba” faz um perfil de Aracy de Almeida, a intérprete mais
identificada com um grande ídolo de João Antônio: Noel Rosa. Embora
794
In Realidade, Ano II, n.31, Abril, SP, 1968.
795
Antônio, João. Dama do Encantado, Nova Alexandria, SP, 1996.
796
In Realidade, Ano II, n.28, Abril, SP,1968.
405
797
“Um violão e um gênio de mãos dadas”, in JB, RJ, 04/05/65.
406
798
Antônio, João (entre outros). “Paulinho Perna Torta”, in Os Dez Mandamentos, Record, RJ, 1965. Este
foi o ano em que a novela apareceu publicada, mas sua redação, claro, o antecede. Os manuscritos de
“Paulinho Perna Torta” existem e há muitas referências, como viu-se no capítulo 2, sobre o processo de
redação da novela.
407
E no conto:
“Olhem aí, se eu disser que sou homem forte ou essas coisas, estarei
mentindo. E em historiada de mulher, aqui miúdo, a sensação me vem,
várias vezes, de ser pouco homem diante de certos mulherões que vejo
passar.
Nem sou bom jogador, não aprendi furto e nem soube, pelo esforço
certeiro – e meu – descolar uma maconha, uma bolinha, um brilho de
cocaína. Não me dei bem no trato com as coloridas na sinuca, não fui um
linha-de-frente no jogo do carteado, nem bom escrevedor de jogo do bicho,
pego mal nas corridas de cavalo, não consegui fazer meio de vida nos
entorpecentes.”
Quanto aos parênteses explicativos das gírias, são mudanças ainda
mais sutis. Na publicação em livro, quando o texto é apresentado como um
conto “puro”, ora a explicação da gíria é, entre vírgulas, agregada ao texto,
ora é eliminada. Em ambos os casos, desfaz-se o caráter explicativo
puramente jornalístico. Exemplo na reportagem:
“Era fracote, mas estava no ambiente. Com o tempo, arranjou uma
moleza, um mingau, uma otária (mulher da vida, fácil de dar dinheiro a seu
homem, fácil de dobrar) ”.
E no conto:
“Isso. Fracote, pequeno, mas no ambiente. E com o tempo, até o mais
morto, arranja uma moleza, um mingau, uma otária fácil de dobrar”.
Como se vê, mudanças que, teoricamente, poderiam resultar em algo
crucial, que diferenciaria de maneira radical os dois textos, na verdade nada
mais são que ajustes destinados a afiar e enfatizar o tom marginal, o
linguajar da malandragem, e a intensificar a verossimilhança e a adesão
entre leitor e personagem.
409
800
Antônio, João. Zicartola e que tudo mais vá para o inferno!, Scipione, SP, 1991; apresentação de
Ricardo Ramos, p.3.
412
801
Entre esses cacoetes, vale mencionar sua mania de fazer listas de palavras em papéis de cigarro, dos
quais tirava o laminado. Como a que aparece na reportagem sobre o dedo-duro: “Chacal, alcagüeta,
cagüete, cachorrinho, delator, informante, reservado, federal, engessador, falador, boca mole, boca de litro,
dedo duro, são a mesma coisa”. E em Ô, Copacabana: “picardo (aquele quem tem picardia, o bom, o
413
pesquisa de fato coloca uma distância entre o olhar e o objeto maior que a
mantida por ele. Ele não se imaginava como um mero pesquisador, pois
convivia com esses “personagens reais”. E essa mesma necessidade
testemunhal, para ele, permanecia constante, fosse no jornalismo, na ficção e
num texto de caráter memorialístico. E o resultado, freqüentemente,
encaixava-se em todos esses domínios ao mesmo tempo, tornando difícil
classificar a natureza de seus “textos”.
Um bom exemplo disso é o livro Ô, Copacabana!. Ele é ao mesmo
tempo uma colcha de retalhos, compostas por partes inéditas e coisas que ele
já publicara antes, na imprensa e em forma de livro, e uma fonte de textos
usados por João Antônio em ocasiões futuras, na imprensa e, recortadas, em
seus livros subseqüentes.
Mas é curioso observar que tanto os retalhos que dão forma ao livro,
quanto os subprodutos que ele rendeu, são usados por João Antônio como se
tivessem naturezas múltiplas – crônica, texto de intervenção, memorialismo,
reportagem ou ficção –, que, como numa reação química, reagiriam ao
contexto em que fossem veiculadas. Mas, no que se refere ao aspecto
estilístico, pouco variam. Assim, o próprio livro Ô, Copacabana! é um livro
indefinível. O que ele é? Depende, do momento e do ponto de vista.
Algumas das fontes de Ô, Copacabana:
1) matérias d’ O Pasquim, uma delas, tomada ao acaso, intitulada “O
festival do osso”, e outra “Tome vergonha na cara: Mexa-se”, que se
encaixam, por exemplo, na sub-categoria comportamento.802
quente, o sabido, o malandreco, o moita). / Estar ruço (estar mal de vida, estar em situação nebulosa, feia,
difícil, enrolada e quase fatídica). / ratatuia (patuléia, igrejinha, canalha, patota, curriola, grupo fechado,
súcia, cambada, turma, bando, gangue, a boa gente)”.
802
In O Pasquim, Ano VII, n.350, 1975; Ano VII, n. 328, 1975, respectivamente.
414
803
Hohlfeldt, Antônio (org.). “Mariazinha tiro a Esmo”, in Os Melhores Contos de João Antônio, Global,
SP, 1986.
417
Durante algum tempo era bem para essa faixa de nossa população
urbana freqüentar determinadas casas de samba no Rio de Janeiro. Depois,
era muito chique esticar até alguma gafieira típica. O surgimento mais
incisivo da nova música popular brasileira, que também virou moda, apagou
aquelas idas e vindas noturnas àqueles redutos populares. A presença maciça
dessa faixa de população às areias no último dia do ano para a consagração
de Iemanjá e outros orixás parece se ligar sutilmente ao movimento dos
hippies.
É bem atirar flores e ainda fica mais harmonioso quando se pode unir
essa atitude à ocasião de uma festa folclórica”.
Novamente, o tom de crônica ácida se mantém. Não varia conforme o
veículo. Para o autor, não havia diferença. Apenas um certo estatuto externo
ao texto varia, reagindo à química convencionada pela recepção,
transferindo-o do patamar jornalístico para o literário quando da publicação
em livro.
Mas agora convém falar não das fontes, mas dos subprodutos desse
livro símbolo do processo de fusão entre jornalismo e literatura que é Ô,
Copacabana!.
E o caso mais interessante é o de um trecho publicado, a que se saiba,
originalmente no livro, e depois reaparecido despojado de qualquer intenção
literária evidente na coluna assinada pelo escritor durante a Copa do Mundo
de 1990804, e, seis anos depois, em seu livro Dama do Encantado805,
novamente revestindo-se de caráter literário.
Vejamos como o trecho aparece no primeiro livro, de 1978:
804
O nome da coluna era “Histórias de Torcedor”, e ela foi publicada n’ O Estado de São Paulo, entre
17/06/90 e 10/07/90.
805
Antônio, João. Dama do Encantado, Nova Alexandria, São Paulo, 1996.
419
– Mengo!”.
De uma versão para a outra, como se pode verificar, embora a cena
tenha sido deslocada de Copacabana para o bairro do Flamengo, e os
ambientes a que o texto foi exposto em cada uma das suas veiculações sejam
muito diversos, não há uma alteração de registro, de estilo equivalente. São
mudanças leves (supressão de vírgulas, pequenos acréscimos descritivos
etc), apenas. E um enxugamento, o texto está mais sintético e rápido, mas,
não é descabido imaginar, sobretudo por uma questão de espaço na sua
coluna de jornal, e não por transformações estilísticas.
Em sua terceira aparição, o texto está idêntico à primeira versão
publicada em Ô, Copacabana!, mas longe de significar um tratamento
estilístico específico para a versão literária, diferenciando-a da versão
jornalística. Não é necessário aqui reproduzi-lo, apenas deixar registrada a
polivalência, pois se não há propriamente diferenças formais entre os dois
livros, há entretanto diferenças grandes na índole de ambos. Ô, Copacabana!
é um texto longo e único, que funde crônica, jornalismo e ficção, lastreado
sobretudo na categoria paisagem, a qual compreende, como sempre, os tipos
anônimos a ela pertencentes, como é o caso de Mariazinha Tiro a Esmo. Já
Dama do Encantado, seu último livro publicado em vida, é um livro
composto de textos não-inéditos, curtos, e em sua maioria calcados em
retratos (Nélson Rodrigues, Garrincha, Mário Quintana, Joubert de Andrade,
Dalton Trevisan, João do Rio, Lima Barreto, Aracy de Almeida). É
eloqüente dessa condição múltipla dos “textos”, que um deles apareça em
dois livros tão diferentes.
421
806
Hohlfeldt, Antônio (org.). “A Lapa Acordada Para Morrer”, in Os Melhores Contos de João Antônio,
Global, SP, 1986; e “Última Memória da Lapa”, in O Pasquim, Ano VI, n.271, 1974).
422
Mais do que uma frase, era um código nas noites do passado do bairro
que tinha em seu corpo, além dos malandros conhecidos e que acabaram
virando lenda – Nélson Naval, Meia-Noite, Camisa Preta, Miguelzinho da
Lapa e uma figura maldita, Madame Satã – um rosário de cabarés, cafés-
concerto, restaurantes, leiterias e bares”.
E no conto:
“– Quem vai à Lapa, deixa a alma em casa.
Balela. Esse antigo código da noite tentou ainda se sustentar na boca
dos cronistas e guias anônimos, arremedando o apogeu valente e malandro
de uma Lapa que não existe mais e, quando muito, imita a si mesma, olhos
compridos no passado”.
Novamente o tom do texto e a alma nostálgica do escritor são
idênticos.
Os exemplos se multiplicam: poderíamos citar muitos, entre os quais
o texto “Zicartola, recordações de uma casa de samba”, publicado n’ O
Pasquim, em 75807, e num livro da década de 90, Zicartola e que tudo mais
vá para o inferno! 808; ou os textos “Carlinhos, Marquinhos e a indústria do
pânico”809 e “Carlinhos, o inconveniente”810, publicados n’ O Pasquim e em
livro contemporâneo do tablóide. Os casos de “multi-ação” dos textos
“joãoantonianos” – que começam a acontecer a partir da fusão entre
literatura e jornalismo – citados por essa pesquisa são, com certeza, uma
gota d’água num oceano de refacções, republicações, auto-rechupinhações.
A dificuldade do próprio João Antônio em classificar seus textos
transparece, por exemplo, na forma como, nos anos 70, organiza seus livros
807
In O Pasquim, Ano VIII, n.332, 1975.
808
Antônio, João. Zicartola e que tudo mais vá para o inferno!, Scipione, SP, 1991.
809
In O Pasquim, Ano VII, n.322, 1975.
810
Antônio, João. Malhação do Judas Carioca, Record, RJ, 1975.
423
embaralhamento das fronteiras, ainda que esse esforço já não lançasse mão
das categorias clássicas de ficção, não-ficção literária e jornalismo.
Em Casa de Loucos, de 76, há uma tentativa semelhante. Há nove
categorias, todas com apenas um ou dois textos, tamanho era o esforço de
particularizar. São elas: Protesto (com “Olá, professor, há quanto tempo!”,
um retrato de Darcy Ribeiro; Comportamento (com “55 anos de casados”,
típica reportagem-literária, onde terá sido publicada antes?); Música Popular
(com um retrato de Nélson Cavaquinho e um de Noel Rosa); Costumes (com
os textos “Merdunchos”, um retrato de anônimos, e “As virgens blindadas
do footing”, caracterização maldosa de uma sociedade interiorana); Futebol
(com “Raul, meu amor”, trecho da matéria de Realidade, e “Uma banana
para os valentes”, texto de variedades que reaproveita trechos de pelo menos
um anterior, retratando o jogador de futebol Almir); Gente (com retrato de
Sérgio Milliet); Habitação (com um texto sobre o conjunto habitacional
Cidade de Deus, típica paisagem/retrato de anônimos); Vida (“A morte”, de
Realidade); e Drama (o texto-título, que conta da temporada que o escritor
passou no sanatório da Muda, no Rio de Janeiro, nos anos 70, episódio que
foi ao mesmo tempo um laboratório literário, uma reportagem-de-campo e
uma internação real811).
Mas esse esforço de categorização, no entender dessa pesquisa, não
era um esforço consciente de interromper a fusão entre as naturezas de seus
textos e suas linguagens. Era antes um último suspiro da idéia de separação,
uma contra-corrente logo desaparecida. Basta dizer que desaparece nos
811
Marília, então esposa de João Antônio, conta que se assustou quando ouviu-o pedindo a ela que o
levasse ao sanatório e inventasse mil atos e sintomas que justificassem sua internação. Dostoievski, talvez,
que também havia escrito sobre o tema e era um dos leitores de cabeceira do escritor na sua “primeira
dentição” literária, o tenha inspirado. Mas certamente também Lima Barreto, outro escritor que flertava
com a fronteira entre sanidade e loucura. Susto maior, porém, veio depois. Ela, recusando-se a mentir para
o médico, simplesmente relatou o comportamento boêmio e o temperamento explosivo do escritor, e só isso
já bastou. O médico recomendou a internação na hora!
425
812
Antônio, João. Dedo-duro, Record, RJ, 1982; Abraçado ao meu rancor, Guanabara, RJ, 1986;
Guardador, Record, RJ, 1992.
426
Nunca é demais lembrar que, em 1975, João Antônio lançou dois livros de
sucesso – Leão-de-chácara chegou a ter sua edição esgotada em
pouquíssimo tempo – e relançou, com pompa e circunstância Malagueta,
Perus e Bacanaço. No ano seguinte, Casa de Loucos chega a ter duas
reimpressões no ano de seu lançamento. Tudo isso ao mesmo tempo em que
ele colaborava em órgãos da imprensa alternativa e não.
Mas, após a decisão de não ter mais vínculos empregatícios, fica
praticamente impossível mapear, com um mínimo de abrangência, sua
colaboração em jornais e revistas – o que significa, como se viu, mapear boa
parte da produção que depois reaparecerá em seus livros “de literatura”.
Fazer este mapa completo possibilitaria, contudo, poder cruzar –
talvez infinitamente – textos que saem daqui e reaparecem ali, que são
refeitos e reescritos até que ganhem uma natureza polimorfa e um caráter
múltiplo. Rastreando, assim, o destino de cada fragmento espalhado pela
explosão dos gêneros.
Espera-se ter conseguido uma amostra suficiente de exemplos e
comprovações das teses proposta neste capítulo: 1) fusão entre jornalismo e
literatura; 2) manutenção de um viés regionalista urbano em seu estilo; 3)
surgimento de gêneros internos em sua obra, que não obedecem
necessariamente a formulações clássicas e que espelham um determinado
ideário estético-ideológico.
O poder de persuasão dessas premissas será, também, o da tese
principal deste trabalho: a de que o processo de formação de João Antônio
como escritor – que compreende as duas “dentições literárias” mencionadas
no capítulo 1, a inflexão rumo ao regionalismo da segunda geração
modernista agora aplicado ao ambiente urbano, como visto nos capítulos 2 e
3, e a fusão de nascença entre ficção e memorialismo – ainda não estava
427
813
“Um Sedutor na Arte de Narrar”, in Jornal da Tarde, 24/06/95.
814
“Popular e Sofisticado a um só Tempo”, in Tribuna da Imprensa, 29 e 30/07/95.
429
816
Antônio, João, “Meus Respeitos” in D’Incao, Maria Ângela e Scarabotolo, Eloísa (orgs.), Dentro do
Texto, Dentro da Vida – Ensaios sobre Antonio Candido, Instituto Moreira Salles, Cia. Das Letras, SP, s/d.
817
Dama do Encantado, Nova Alexandria, SP, 1996; e Hohnfeldt, Antônio (org.). Os Melhores Contos de
João Antônio, Globo, SP, 1986.
432
por editoras as mais díspares, uma triste série de antologias mal costuradas,
com fins para-didáticos, que requentavam textos publicados anteriormente
em outros lugares.
Em outubro de 1996, como todos os que acompanharam o noticiário, fiquei
chocado com as circunstâncias da morte do escritor: abandonado em sua
cobertura decadente no mais decadente dos bairros da Zona Sul carioca
(sendo o Rio talvez a capital mais decadente do país), apodrecendo durante
semanas até que as moscas denunciassem a “presença do cadáver”. Os
detalhes triste e mórbidos, a meu ver, pareciam de fato comprovar que um
“vento ruim” batera forte sobre João Antônio nos últimos anos, mas que os
prejuízos causados pelo vendaval não se limitaram a sua reputação como
escritor. Também o homem João Antônio encontrava-se na situação de
alguém “esquecido”, ou, no mínimo, isolado, cuja permanência neste mundo
não repercutia imediatamente na vida de ninguém.
Amarguei a frustração de não tê-lo conhecido pessoalmente.
Essa tese, em forma de biografia intelectual, dando igual destaque
aos fatos biográficos e a questões internas da obra de João Antônio,
explica-se, portanto: como uma retribuição, ainda que póstuma, aos dois
tipos de incentivos que ele me deu (o literário, manifesto nas duas resenhas
sobre meu livro, e o moral, expresso no bom juízo que fez de mim,
cabotinamente citado acima); como um desejo de alertar para o quanto se
enganam todos da minha e de outras gerações que imaginam conhecer a
obra de João Antônio apenas a partir de Malagueta, Perus e Bacanaço; e,
ainda, talvez mais que tudo, como um desejo, ambivalente e encoberto sob
o pretexto acadêmico, de entender um homem que caminha
voluntariamente em direção ao total isolamento.
433
819
Depoimento de Marília de Andrade, colhido em setembro de 2000.
437
820
Antônio, João. Abraçado ao Meu Rancor, Cosac & Naify, SP, 2001.
821
Fonseca, Rubem. A coleira do cão, Edições GDR, RJ, 1965.
438
823
Bosi, Alfredo. “Um boêmio entre duas cidades”, in Antônio, João. Abraçado ao Meu Rancor, Cosac &
Naify, SP, 2001.
824
Antônio, João. “A Lapa Acordada Para Morrer”, in Os Melhores Contos de João Antônio, Global, SP,
1986.
825
“Mudou o mundo...”, in Vogue, no 260, SP, 2000. Além de Ignácio Loyola, os demais participantes da
matéria eram: Joyce Pascowitch, colunista social; José Zaragoza, publicitário; David Zingg, jornalista;
Érika Palomino, jornalista de moda e costumes; José Hugo Celidônio, dono de restaurantes; Wesley Duke
Lee, artista plástico; Andréa Carta, editor da revista; Washington Olivetto, publicitário; Carlos Heitor
Cony, escritor e jornalista; Flávio Marinho, autor e diretor teatral; Millôr Fernandes, escritor e desenhista.
A matéria foi escrita quatro anos depois da morte de João Antônio.
443
826
Carta a Mylton Severiano da Silva, de 10/10/96. A carta foi escrita às vésperas de sua morte.
827
“Copacabana é um termômetro”, entrevista a Cláudio Uchoa, in O Globo, RJ, 1992.
445
828
“João Antônio: retrato de um escritor brasileiro”, de Moacyr Scliar, in Folha de São Paulo, SP, 02/11/96
829
“João Antônio”, resenha de Leo Gilson Ribeiro, in Jornal da Tarde, SP, 23/8/1975.
446
“Sabe quando você vê, em algum lugar público, uma mãe batendo
no filho? E você sabe que não deve interferir, sabe que não adianta, sabe
que vai apenas se desgastar, mas fica tão revoltado com o que está vendo
que vai lá e se mete mesmo sabendo de tudo isso? Pois é. A minha geração
830
“Estética do rancor”, matéria assinada por Sonia Salomão Khéde, in Jornal do Brasil, RJ, 03/08/86.
448
foi assim com a literatura. A gente sabia que devia estar escrevendo outras
coisas, mas não conseguíamos fazer diferente.”
Essa era a imagem e o juízo que o escritor Ivan Ângelo tinha da
Geração 70, da qual foi um dos expoentes, quando foi entrevistado por esta
pesquisa.831
A seu modo confrontado com a situação descrita por Ivan Ângelo,
João Antônio tenta proteger os “filhos” maltratados pela sorte,
envolvendo-os em lirismo, muitas vezes num lirismo nostálgico, outras
numa revolta opiniática e estéril. Mas ele, já em 1963/64, pressentia que
sua obra, para ser realmente grande, precisaria transcender os limites
estreitos, por mais ricos em potencial dramático, que tinham as vidas dos
merdunchos. “Vou-lhe fazer uma confissão, Ilka. Cá entre nós, fique claro.
Eu não sou o escritor dos malandros. Já estou cansado desse slogan que
certos jornais, revistas e repórteres andaram pespegando por aí. (...) Meu
futuro literário, a meu ver e sentir de agora, é continuar a linha iniciada
pelos contos mais universais e de análise de certas essências do homem,
como ‘Busca’ e ‘Afinação da arte de chutar tampinhas’. Lembra-se?
Aquela me parece agora ser a minha verdadeira rota. Um corte vertical na
alma dos personagens, botando-os para fora sem prosas moles, porém, não
exagerando nunca o tamanho de seus vazios interiores.”832 E dizia mais:
“Quero ver se parto já para o universal, seja ele em ambiente malandro ou
não. Todo e qualquer sinal de pitoresco ou regional deverá ser evitado,
todas as facilidades em me deter em exteriores e superfícies, extraindo daí
efeitos estéticos, plásticos, psicológicos, são perigosos (assim penso eu) na
831
Depoimento colhido em junho de 2000.
832
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/06/64.
449
837
“João Antônio, fascinado pelas palavras. É um perigo?”, resenha de Leo Gilson Ribeiro, in Jornal da
Tarde, SP, 13/11/82.
838
Idem.
839
“Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralho”, in Dedo-Duro, Record, RJ, 1982.
454
841
Idem.
842
Idem.
456
fazia o narrativo junto com o descritivo, agora, com muito poder narrativo,
porque ele tinha um ‘como dizer’ único”.843
Após uma primeira fase, em que sua ficção está plasmada com o
real, mas onde o real é de uma visceralidade completa, porque
autobiográfico, ele passara por uma segunda fase em que a fabulação se
libertou, tomou conta da sua produção e deu origem a seus melhores
contos; mas, a partir da entrada do jornalismo em sua alquimia criativa, ele
volta a subordinar sua fabulação ao real, porém um real mais frio, que, por
mais vivido que seja, o foi como observador, não é mais de uma
autenticidade e de uma identidade completas. João Antônio vai se
tornando, com o passar dos anos, testemunha da existência “merduncha”,
mas ele próprio já não pode mais ser considerado um deles.
O primeiro sintoma deste processo é o fim da trama. A partir de uma
certa hora, os personagens retratados por João Antônio muitas vezes
deixam de estar envolvidos em uma história, como em “Malagueta, Perus e
Bacanaço” e “Paulinho Perna Torta”. Claro que esse é o caso dos retratos
literários em si, estáticos e descritivos quase que por definição, mas é
também o caso de vários dos personagens colhidos nas ruas. Sem trama,
muitas vezes, os personagens viram tipos, tratados na maior parte do
tempo de forma puramente expositiva, ainda que muito elaborada do ponto
de vista estilístico. Novamente vale a pena ouvir as palavras do amigo e
colega escritor: “‘João’, eu dizia, ‘você é muito mais ficcionista do que
escritor’, e ele perguntava, ‘O que você quer dizer com isso?’, e eu
explicava, ‘É porque teus personagens não têm alma. Você só não é
maniqueísta porque tem muito talento. Mas quem é aquele cara daquela
boate, cadê a alma daquele cara, cadê o mundo interior dele?’. Eu dizia pra
843
Depoimento de Caio Porfírio Carneiro, colhido em maio de 2000.
459
844
Idem.
845
Respectivamente, in Dedo-duro, Record, RJ, 1982 e in Abraçado ao Meu Rancor, Guanabara, RJ, 1986.
460
Bibliografia Selecionada:
Bibliografia Geral:
Bibliografia teórica: