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João Antônio: Uma Biografia Literária

Tese de Doutorado
Orientador: Joaquim Alves de Aguiar
Aluno: Rodrigo Lacerda
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada
2

Essa pesquisa não teria sido possível sem o apoio da


Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP). Desde quando se tratava ainda de um Mestrado,
e depois, quando promovido a um Doutorado Direto,
este projeto sempre recebeu de seus consultores
o máximo apoio e a mais produtiva colaboração.
3

Resumo:

Este trabalho visa entender o amálgama de fatores – biográficos, sociais,


psicológicos e, claro, literários – que resultou no estilo maduro do escritor
João Antônio. Conclui que após uma fase inicial, em que se aproxima do
estilo modernista da primeira hora, ele desenvolve o que se chama aqui
de um “regionalismo urbano”, e que o último passo para seu estilo
maduro é a fusão entre jornalismo e literatura.

Abstract:

This work envisages to understand the mingle of factors – biographical,


social, psychological and, obviously, literary – that resulted in the mature
writing style of João Antônio. It concludes that after an initial stage,
drawn to the first hand modernist style, he develops what is here called an
“urban regionalism”, and that the last step to his mature style is the fusion
between literature and journalism.

Palavras-chave/ Key words:

biografia - biography
estilo - style
modernismo - modernism
regionalismo - regionalism
jornalismo - journalism
4

Sumário

Apresentando João Antônio, 5

Capítulo 1 — 1913 a 1963

Origem trasmontana, 26; Presidente Altino, 33; A crise de 1929 e a música, 36; O
casamento e o frigorífico Armour, 39; Estado Novo, primeiro filho, 43; O Morro da
Geada, 46; Formação religiosa, 50; Vila Pompéia, 52; Um espírito proverbial, 59;
Primeira incursão na “malandragem”, 65; Sai a música, entra a literatura, 71; Vila
Jaguara e novo empreendimento paterno, 75; Falência, isolamento familiar e
literatura, 76; Tempo de saias, sinuca e bebida, 83; Graciliano, Noel e a 2a dentição
literária, 95; Um primeiro conto e dois maus poemas, 100; Passagem pela caserna,
105; Cabeça aberta pela literatura, 108; Mudança para o Jaguaré e incêndio, 116;
Perda e Recuperação de seus originais, 118.

Capítulo 2 — A alma das Cartas

Marcos de início de carreira, 127; Algumas definições de literatura, 131; Vocação


para o conflito, 137; Idiossincrasias de um jovem escritor, 148; Ciclotimia?, 154;
Isolamento e rejeição ao amor, 159; Amor x cotidiano, 166; Fontes e establishment
literário, 171; Pilares da inserção literária, 173; Uns malandros inéditos, 183;
Alianças secundárias, uma força para os amigos e a ética das alianças, 192; Diga-me
com quem tu andas..., 204; Encruzilhadas da segunda onda modernista, 218.

Capítulo 3 — Impressão e Movimento

Matéria biográfica, 233; Contos de homens, 246; O Espírito da Cidade, 248; Estado
de Ebulição, 260; Da Autobiografia Descontínua à Fantasia em Liberdade, 267; Um
Estilo Bem Comportado, 273; Um Antônio de Alcântara Machado Deprimido, 281; O
Regionalismo Urbano de João Antônio, 289.

Capítulo 4 — Literatura na Realidade

São Paulo x Rio de Janeiro, 306; Primeira Redação de Jornal, Primeiro Amor, 318;
Problemas no Amor e no Jornalismo, 325; Jornalismo e Projeto Literário: A
Experiência no Jornal do Brasil, 356; O Jornal do Brasil, 363; Revista Cláudia, 385; A
Realidade, 394; A Explosão de Gêneros, 410.

Para nunca mais, 428

Bibliografia, 461
5

Apresentando João Antônio

Rio de Janeiro, Copacabana, Praça Serzedelo Correia, número 15A.


No dia 31 de outubro de 1996, o apartamento 702, na cobertura do edifício,
foi encontrado pela polícia na mais perfeita ordem. Os pesados móveis de
jacarandá estavam cada um em seu canto; a foto de Pixinguinha aos 17
anos, já de flauta em punho, bem pregada na parede; o disco raro de Noel
Rosa, o orgulho da coleção, com sua capa desenhada por Di Cavalcanti,
ocupava solenemente seu respectivo lugar na estante; a imagem de um
jogador de sinuca, envolto em sombras, reinava sobre a mesa de trabalho, e
até a televisão, habitual delatora de tragédias imprevistas, estava
discretamente apagada. As únicas coisas fora de lugar eram alguns livros
empilhados no sofá da sala, um embrulho de carne abandonado na pia da
cozinha e o maço de correspondência não recolhido junto à fresta da porta
de entrada. A data de postagem da carta mais antiga era 8 de outubro.
João Antônio estava deitado na cama, de barriga para cima, com uma
perna esticada e uma apoiada no chão. Sem sapatos, vestia calça de abrigo e
camiseta. 1
Na secretária eletrônica, várias mensagens não respondidas se
acumulavam. Recados de seu único irmão, Virgínio Antônio, que nunca
trocara o subúrbio onde a família Ferreira havia fincado suas raízes,
Presidente Altino, um subdistrito de Osasco, São Paulo. Recados dos
amigos, entre eles o do publicitário Paulo Maldonado, deixado no dia 14 de
outubro, convidando João Antônio para uma leitura que faria no dia
seguinte, no Centro Cultural Banco do Brasil, na Cidade. E por fim recados
6

profissionais, como o de uma faculdade em Santa Catarina, a qual, por


aqueles dias, o escritor acertara de visitar e lá fazer uma palestra. 2
Já fazia 33 anos que o primeiro livro de João Antônio – Malagueta,
Perus e Bacanaço, certamente o mais conhecido, talvez o melhor – fora
publicado. Sucesso de crítica na época e depois, o livro trouxera-lhe
prêmios, a consagração como o “porta-voz dos marginalizados” na
moderna literatura brasileira, e comparações com grandes cronistas
urbanos, entre eles os modernistas da primeira geração, e também com
outros grandes escritores, não necessariamente cronistas, urbanos ou
modernistas. Trouxera-lhe, também, num curto espaço de tempo, amizades
com intelectuais, artistas de outras áreas, editores, homens de letras e de
imprensa. E lhe havia trazido, sobretudo, em 1965, o invejável convite para
ir trabalhar no Rio de Janeiro, como repórter-especial no Caderno B do
Jornal do Brasil.
João Antônio nascera em 1937 e se criara em quase favelas, como o
Beco da Onça, na Vila Pompéia, ou em vizinhanças ainda com ares rurais,
como o Morro da Geada, nas imediações de Presidente Altino. Deixara o
convívio diário com a família pela primeira vez aos 23 anos, após um
incêndio na casa dos pais, causador da mais completa desorganização na
vida de todos. João Antônio Ferreira Filho, o Joãozinho, como era chamado
na intimidade, após o incêndio ficou sem pouso fixo, dormindo de favor
cada noite em um lugar; na casa de amigos da boêmia e da sinuca, como
hóspede na casa dos pais, em hotéis e pensões, com namoradas aqui e ali,
com prostitutas da Boca-do-Lixo etc. Foi quando seu livro aconteceu.
Para o jovem ex-office-boy, ex-assessor de contabilidade em um
frigorífico, ex-bancário, e então redator anônimo numa pequena agência de
publicidade, o convite do Jornal do Brasil, a ida para a Cidade
Maravilhosa, na época ainda a capital cultural do país, significava o início
de uma vida nova. No mínimo.
7

“Meu livro é bonito. O que sinto é meio difícil de expressar. O que já


senti e aquilo que sinto as primeiras vezes que o vi e folheei, é indescritível.
Faz dois-três que Malagueta, Perus e Bacanaço circulam nas
principais livrarias paulistanas. O que estou sentindo é algo tremendo.”
João Antônio 3

“Beleza Tropical é no Nordeste. Beleza sem adjetivo é no Rio. Não


vim para o Rio. Corri para o Rio.”
João Antônio 4

Mas o tempo havia passado. Muita coisa acontecera desde o dia 21


de junho de 1963, data da primeira noite de autógrafos, na Livraria
Teixeira, em São Paulo, quando seus convidados — familiares, vizinhos,
amigos da família, colegas de trabalho e de sua precocemente desenvolvida
rede de relações no meio literário-editorial, afora alguns conhecidos do
mundo boêmio da sinuca e umas poucas prostitutas mais amigas — foram
comemorar a saída do livro, em cuja história principal três personagens
atravessam a noite paulistana jogando suas “vidas” sobre o pano verde. 5
Esta combinação entre proletariado, malandragem e literatura, na
vida, na sintaxe e na semântica, de fato marcaria a personalidade do
escritor, de fato identificaria-o, de maneira irreversível, aos olhos dos
críticos e dos leitores.
Entre as décadas de 60 e 90, porém, entre o lançamento do livro e a
chegada da polícia a seu apartamento, a malandragem tradicional havia
deixado de existir. Sobraram apenas os rótulos.
8

“A cidade deu em outra.


Deu em outra cidade, como certos dias dão em cinzentos, de repente,
num lance. As caras mudaram, muito jogador e sinuqueiro sumiu na
poeira. Maioria grisalhou, degringolou, esquinizou-se para longe, Deus
saberá em que buraco fora das bocas-do-inferno em que eu os conheci. Ou
a cidade os comeu.”
João Antônio 6

“Já no início dos anos 80 eu era um autor para quem os ventos da


moda literária não ventavam lá muito a favor, e que chegava a receber
alguns tratamentos reticentes, não direi caricaturais, mas esvaziantes,
como: Rabelais da Boca do Lixo, Astro da Literatura Amassada, Clássico
Velhaco, e outros. Afinal, vivemos num país em que a estrela passa a carne
de vaca com uma rapidez meteórica.”
João Antônio 7

E, para ele, a literatura era mais importante que tudo. Mais até do que
a família. Marília, sua principal ex-mulher, pois mãe de seu único filho,
Daniel, e próxima até sua morte, saiu do casamento no início dos anos 70,
decidida a morar fora do país. João Antônio não era um marido fácil,
embora seu incrível apetite para a conversação o tornasse extremamente
envolvente. Não era fácil, entre outros motivos, porque, muito ciumento,
não permitia que Marília, também jornalista, trabalhasse fora de casa, e
tratava ele mesmo de conseguir-lhe pautas e encomendas. Além disso, diz
ela: “Eu e o Daniel éramos alguma coisa que ficava no quarto dos fundos.
Ele não contava para ninguém que nós existíamos. A não ser nos livros, nas
dedicatórias”. 8 Marília se casaria mais tarde com um engenheiro inglês de
multi-nacionais, criando Daniel enquanto acompanhava o novo marido em
suas transferências pelo mundo afora. Ao falar a outra mulher muito
9

importante na vida do escritor, a colega de letras e confidente Ilka


Brunhilde Laurito, a própria Marília concluiria: “Ele procurou por você ou
alguém como você durante toda a vida. Não conseguiu encontrar porque
também queria dar satisfações a sua literatura, e acabava com alguma
mulher do submundo ou de classe social e intelectual inferior a sua. Por
isso acendia um eterno fogo de palha”. 9
Quanto ao filho Daniel, embora mantivesse boas relações com João
Antônio, morava longe há vários anos, tendo se radicado, a partir da
juventude, nos Estados Unidos. Tinha o pai como um amigo, e o padrasto,
como pai.
O intencional isolamento familiar do escritor parecia haver chegado
no auge, naquele último dia de outubro de 1996, início do verão carioca.
Haveria na secretária eletrônica, entre as mensagens acumuladas, alguma
de Marília, ou de Daniel? Talvez sim, provavelmente não. Os jornais do dia
1o de novembro nada dizem a respeito.
Apenas alguns amigos, sem notícias de João Antônio há quase trinta
dias, estavam preocupados. A ponto de publicar notas aqui e ali na
imprensa carioca, solicitando qualquer informação sobre seu paradeiro. Só
então a família, por eles alertada, deu-se conta de que alguma coisa de mais
grave poderia ter acontecido ao escritor longe de casa. Foram contactados
os hospitais da cidade, as delegacias e, como não poderia deixar de ser, o
Instituto Médico Legal. Nada se apurou. O irmão Virgínio, em declarações
aos jornais, explicou a despreocupação inicial: “Ele sempre teve o hábito de
desaparecer por uns dias”.
O escritor Antônio Callado, comentando a posteriori o acontecido,
foi direto ao ponto, com sua proverbial elegância: “Quando fiquei sabendo
que tinha sumido, achei que tivesse desaparecido como o boêmio, que some
por uns dois dias e depois volta”.
10

Mas um jornal carioca, com a rispidez factual típica da imprensa, pôs


abaixo as meias-verdades: “Ultimamente, João Antônio alternava
momentos de lucidez com outros de amnésia, atribuída ao alcoolismo. Ele
vinha bebendo muito, o que fez alguns amigos se afastarem. E tinha o
hábito de viajar sem avisar”. A demora da família em se alarmar era
compreensível, afinal.

“A literatura nos tira tudo e só nos dá a embriaguez absoluta do ato


de fazer. Nem um pinguinho mais. Ou, então, você não gosta dela.”
João Antônio 10

O jornalista Carlos Menezes, residente a poucos quarteirões da praça


Serzedelo Correia, foi, a pedido do irmão do escritor, até a portaria do
edifício 15A. Conversando com o porteiro, teve confirmado o
desaparecimento de João Antônio.
Ele fora visto pela última vez entre os dias 7 e 9 de outubro, por
outro porteiro do prédio, chamado Francisco Artenísio. Vestia então
bermuda, camiseta e calçava sandálias. Estava bêbado, tossia e fumava
muito.
Na manhã do dia 31 de outubro, portanto mais de vinte dias depois,
igualmente preocupado com o sumiço do amigo, o cartunista Lapi
telefonou insistentemente para vários conhecidos comuns, pedindo
informações. Ninguém sabia de nada. Já no fim da tarde, Lapi tentou
novamente o telefone do próprio desaparecido. Do outro lado da linha,
quem atendeu foi a delegada Ângela Costa.
No apartamento do escritor há horas, ela chefiava pessoalmente a
ação de alguns policiais militares da 12a Delegacia de Polícia. A 12a está
situada na rua Hilário de Gouveia, próxima à Praça Serzedelo Correia, e é,
com certeza, uma das mais agitadas de Copacabana.
11

O bairro, naquele miolo, era um resumo do Brasil, para o bem e para


o mal. A Praça Serzedelo Correia, onde João Antônio morava, era o resumo
do resumo.

“Cada milímetro tem história. Cada horário, seu povo particular.


Seu chão é talvez o mais vivido e sofrido de Copacabana. Recebe de tudo,
não rejeita nada, espécie de capital cultural do bairro (...). Não se pode
negar que seja um dos últimos redutos livres da Zona Sul do Rio de Janeiro
(...). Na Praça dos Paraíbas fervem, enquanto o progresso não vem,
botecos xexelentos, de uma portinha só. Apertados, abafados, fedidos, do
tipo engasga-gato, para receber vizinhando o desemprego, o lúmpen, o
provisioriado. O zero.”
João Antônio 11

O porteiro do edifício 15A, instado pelos demais moradores, que


reclamavam de um forte mau cheiro, havia subido no telhado no início
daquela tarde. De fato, a podridão empesteava o ar. E um enxame de
moscas debatia-se contra a vidraça do apartamento 702.
Após ouvir o relato de Francisco Artenísio, foi a vizinha do 502
quem se contentou com os indícios existentes e ligou para a 12a DP.
Falando com a delegada Ângela Costa, pediu-lhe que viesse arrombar a
porta do apartamento do escritor João Antônio.
Pouco tempo depois, acompanhada de um chaveiro, a polícia se
apresentou. Este driblou a fechadura sem maiores dificuldades, e abriu
caminho para a descoberta do corpo.
12

“O escritor João Antônio aparentemente morreu sozinho “nesse local


chamado ainda hoje de Brasil” e ficou morto vários dias em seu quarto. Eu
digo “aparentemente”, pois desconfio que o escritor João Antônio estava
morto “nesse local ainda hoje chamado de Brasil” algum tempo antes
disso...”
Fernando Bonassi 12

“Um coração acordado, espantado com o espetáculo da vida e com


alguns silêncios que as criaturas fazem e que tento ouvir, abelhudo,
cauteloso e, creio, respeitoso. A meu modo.”
João Antônio 13

Num primeiro momento, a delegada supôs que a morte tivesse


ocorrido há pelo menos vinte dias. Chamada imediatamente, a perita
Márcia Gonçalves, após examinar o cadáver, concordou com seu parecer.
Afinal, o corpo estava em adiantado estado de putrefação, já
esqueletizando, e isso de fato indicava que João Antônio havia morrido, se
tão tarde, no dia 11 de outubro.
Foi de outra opinião Suzana Vargas, a organizadora do projeto “Roda
de Leituras”, que então ocorria no já citado Centro Cultural Banco do
Brasil. Conforme suas declarações aos jornais, a data da morte do escritor
ficava entre a noite do dia 14 de outubro e a manhã do dia 15. Se isso fosse
verdade, o convite de Paulo Maldonado na secretária eletrônica chegara ao
escritor na noite exata de sua morte.
No mesmo dia 14 de outubro, uma carta de João Antônio, datada do
dia 10, chegou à casa do veterano jornalista Mylton Severiano da Silva. A
correspondência que os dois amigos mantinham é a única a rivalizar, em
volume e intensidade, com a de Ilka Brunhilde Laurito. João Antônio lhe
escrevia, muitas vezes, sem nem um único dia de intervalo entre um
13

aerograma e outro. A amizade com Mylton, ou Myltainho, tivera início em


1967/68, na redação da revista Realidade, onde ele já trabalhava quando
João Antônio lá publicou, ainda em caráter de colaboração esporádica, seus
primeiros “contos-reportagem”. A Realidade era então um grande sucesso
editorial, inovando nos temas e nos enfoques, no design gráfico e no estilo
fotográfico. Um verdadeiro marco do jornalismo brasileiro, cuja equipe
João Antônio não demorou a integrar. Nesta época, a redação vivia o
melhor dos dois mundos: atitude política, ousadia estética, e o caixa de um
grande grupo empresarial. De lá, quando logo depois, em 1969, a equipe foi
desmontada pelos constrangimentos políticos que provocava, os dois
amigos partiram juntos, ainda que morando em cidades diferentes, para
uma entusiasmada participação na imprensa alternativa dos anos 70.
Myltainho ofereceu para publicação, n’O Estado de São Paulo, a carta
que recebeu no dia 14 de outubro de 1996, acreditando ser ela a última
redigida pelo amigo. Era uma suposição razoável. O texto veio a público
uma semana após a descoberta do corpo. Myltainho situa a data da morte de
João Antônio entre os dias 11 e 14 daquele mês.
Do núcleo familiar original do escritor, agora sobrava apenas o irmão
Virgínio. O pai morrera em 1987, com adiantada artério-esclerose nos
membros inferiores e um quadro diabético agudo, que o obrigara, tempos
antes, a amputar uma perna. Já em novembro de 1995, quase exatamente
um ano antes de sua morte, João Antônio havia perdido as duas mulheres a
quem mais fielmente amou durante toda a vida. Primeiro, a avó Nair. Em
seguida, poucas horas antes da missa de sétimo de sua avó, morreu sua
mãe, Irene Gomes Ferreira.
14

“Todos os meus amigos, conhecidos, parentes e chegados estão


atrapalhados no país que sofre de melancolia da escravidão e em que
somos tratados como massa de manobra. O miserê que vi no Largo de
Pinheiros, no Largo da Batata é um quadro asiático sem a cultura da Ásia,
claro. Camelô acabou. Agora são uma legião triste, de cor enferrujada, só
os empregados dos contrabandistas. No Largo de Osasco se planta um
pedaço do Nordeste miserável. E a alegria está mais longe dali do que da
lua. É o Brasil das periferias esquálidas.”
João Antônio 14

“Agora, tempos piorados. E as nossas cidades nunca souberam


esconder o miserê. O que tinha, o que tem de miséria, sempre gritou.
Hoje a miséria desceu o morro e escorreu de algum canto rural e se
plantou no asfalto. A rua virou lugar de tumulto e isto não é nenhuma
novidade. Os tempos estão brabos e, sem pedir licença, a miséria substitui
a pobreza em plena rua. Feia, suja, ela dá também para atrevida,
perturbadora, inconveniente. À noite, se enfia debaixo do que pode, mais se
agasalhando do que se escondendo; de dia, mostra a boca desdentada e se
arreganha pedindo ou furtando pelas calçadas. São famílias pouco família;
as crianças cheiram cola e fumam logo cedo e os mais velhos pedem,
roubam, exigem, xingam. Há tropelias, correrias, gritarias e ninguém está
brincando de pega-ladrão.”
João Antônio 15
15

Cipião Martins Pereira, ex-colega na redação do Jornal do Brasil nos


anos 60, apareceu no edifício 15A para presenciar a retirada do cadáver, a
ser conduzido ao Instituto Médico Legal, onde a causa mortis seria
oficialmente identificada. A delegada Ângela Costa sempre deixou claro
que não acreditava em assassinato. “Ele deve ter passado mal e, como não
tinha ninguém, morreu sem assistência” – declarou ela aos jornais. A
morte natural era quase evidente. Provavelmente, coração. O apartamento
só fora arrombado na chegada da polícia, e também não havia, em
nenhum dos cômodos, qualquer sinal de violência. Segundo o mesmo
Cipião Pereira, “A morte do escritor era parte da tragédia da grande
cidade. João Antônio era um solitário que, mesmo doente, sentindo
dormência nos dedos [devido à crônica e possivelmente hereditária má
circulação], resistia a ser levado ao médico”. Mas não era só isso. A
tragédia de João Antônio tinha uma dupla face. Além da interiorização do
caos social — sofrido por ele de maneira muito peculiar, pois sua infância
de extrema pobreza o deixara irremediavelmente sensibilizado para a
realidade dos menos favorecidos —, a dor pela degradação das condições
de vida das classes baixas tinha uma segunda origem. Uma insolúvel
crise ético-ideológica-literário-existencial. João Antônio sempre
lamentara o fato de que seus leitores, na maioria provenientes da classe
média, não pertenciam à faixa social que seus contos tematizavam, da
qual ele procedia e cuja beleza invertida procurava demonstrar. Mas, com
o passar dos anos, a desilusão de João Antônio com a classe média
brasileira crescera galopantemente. O irmão Virgínio se recorda bem
disso: “Ele responsabilizava a classe média pelas dificuldades do
capitalismo brasileiro que não tinha tradição; o objetivo da classe média
era servir; ele costumava dizer que todo aquele pessoal só era de esquerda
enquanto não passavam a ser empresários”. 16
16

Sem reconhecer o potencial dramático, a humanidade, da classe


média, sua literatura ficara obrigada a se alimentar exclusivamente
daquilo que mais condenava: a pobreza, ou a miséria. A crítica social
embutida em seus textos não o escondia, e os rótulos impostos pela crítica
ou não lhe permitiam se renovar ou simplesmente estavam cegos para as
variações literárias que esboçava.
Para piorar, à medida que os anos passaram, João Antônio se viu
impotente para evitar uma crescente promiscuidade com aquela que era,
na sua opinião, a maior inimiga do povo e da cultura popular: a classe
média. Ele abrira mão dos tradicionais valores familiares, da convivência
familiar, de alguns bons empregos que tivera, da amizade dos bem-
sucedidos, de tudo que remetesse a seu “aburguesamento”, mas nada
evitou o pior. O desaparecimento da antiga malandragem, o acirramento
dos conflitos sociais, a dose sempre crescente de violência no dia-a-dia da
cidade, e a própria carreira de escritor, haviam comprometido seu
convívio profundo com os “merdunchos” que tanto admirava, colocando-
o em outros ambientes, apresentando-o a outros países e realidades,
“enriquecendo-o” culturalmente, enfim, alçando-o a uma faixa mental-
social em que não estava confortável.
João Antônio, ao final da vida, era, portanto, um cidadão
desiludido com o processo histórico do país, um autor enredado pelas
contradições de sua própria literatura, e um homem deslocado em sua
nova classe social.
17

“Desaprendi a pobreza dos pobres. E, já creio, aprendi a pobreza


envergonhada da classe média. (...) Quando os conheci e gostei deles,
quando me estrepei e sofri na mesma canoa furada, a perigo e a medo, eu
não tinha esses refinamentos, não. Mudei, sou outra pessoa; terei tirado de
onde estas importâncias e lisuras? De teu pai não foi, mano.”
João Antônio 17

“É que a brutalidade da exploração capitalista no Brasil parece ter


aumentado nos últimos anos, e seu reflexo na esfera ideológica,
principalmente entre intelectuais de classe média (escritores, professores,
artistas, jornalistas), tende a se polarizar em duas atitudes: a cooptação de
um lado, ostentando o brilho do dinheiro justificado pelo elogio da
racionalidade, da modernidade, do internacionalismo; o inconformismo do
outro, levantando a arma da indignação e do rancor. Se a primeira atitude
tem algo de cínico em seu exibicionismo triunfante, a segunda não
consegue esconder uma incômoda, desajeitada, visão do processo social.”
João Luiz Lafetá 18

Alguns dias após a descoberta do corpo, mais especificamente no dia


6 de novembro de 1996, a revista Istoé desmentiu as prováveis data de
morte apontadas pela polícia e sua perita. Em 14 de outubro, portanto três
dias depois do início previsto pela polícia para a putrefação do cadáver,
João Antônio havia telefonado à redação, convidando a revista para uma
palestra em que discorreria sobre a crônica moderna. Ao resumir sua
posição sobre o tema, suas palavras textuais foram: “Vamos mostrar que
hoje em dia os verdadeiros cronistas não existem mais”. (Só os cooptados
não eram nostálgicos nos anos 90.)
18

Remover o corpo do local onde fora encontrado mostrou-se mais


difícil do que se imaginaria. Devido à esqueletização, pedaços de carne
soltavam dos ossos quando se tentava suspendê-lo. E caíam na cama,
desfazendo-se até o chão. Naquele ano de 1996, a tão esperada reedição de
seu primeiro livro vinha sendo retumbantemente anunciada, com a reunião
da fortuna crítica até então produzida. Terminaria, porém, sem jamais vir à
luz. Apenas duas antologias de seus contos haviam saído recentemente:
Patuléia e Sete Vezes Rua.19 Vinham, no entanto, comprometidas pelo
simples fato de não trazerem quase nenhum texto inédito, além do caráter
para-didático das edições, com capas puxando para o visual infanto-juvenil,
ou simplesmente feias, e um formato acanhado. Por fim, a má sorte dessas
antologias talvez se deva também a pouca tradição de ambas as editoras em
literatura. Muito diferente dos anos áureos da Civilização Brasileira, editora
por excelência dos intelectuais e artistas de esquerda, que fez história no
mercado editorial do país. O último livro propriamente dito de João
Antônio, Dama do Encantado, viera à luz no mesmo ano de 96, apenas
alguns meses antes do dia 1o de novembro.20 O que mostra ser este um
autêntico novo “lançamento”, de maior relevância no conjunto da obra do
escritor é, também, o melhor acabamento da edição, o fato da editora não
estar dirigindo-se exclusivamente ao mercado das adoções escolares, e o
investimento feito na legitimação crítica dos textos ali reunidos, estratégia
explicitada na encomenda de orelhas ao escritor Moacyr Scliar, integrante
da mesma geração literária de João Antônio, e de um prefácio ao professor
João Alexandre Barbosa, da Universidade de São Paulo. Acima de tudo,
porém, dos três livros publicados naquele ano, Dama do Encantado é o
único que traz a marca de uma variação literária importante. Uma possível
resposta aos desafios que sua obra lhe impunha. Percebe-se nele um certo
deslocamento do foco, que deixa os marginalizados no sentido estrito do
termo, ou a nostalgia da antiga malandragem, e se detém em figuras de
19

variadas procedências e circunstâncias sociais. É um livro de retratos de


personalidades, eminentemente. Mesmo alguns dos textos já havendo sido
publicados em outras versões, por jornais e revistas, e mesmo os retratos já
constituindo, desde os anos 70, um de seus campos de intervenção literária,
um livro quase inteiramente composto por esse tipo de “conto”
representava um fato novo. Era como se ele, de sua nova posição social,
tentasse uma nova síntese entre popular e erudito, tentasse escapar da
“armadilha” que sua literatura lhe havia armado. 21
Apesar disso, era forçoso reconhecer que o livro não havia
“acontecido”. Fora pouco resenhado pelos jornais e estava longe de esgotar
sua primeira edição. E pensar que, vinte anos antes, os cinco mil
exemplares da primeira edição de Casa de Loucos foram vendidos em três
dias! 22 Sua Dama do Encantado parece ter chegado tarde demais.
Após escrever as tais orelhas, conta Scliar que recebeu uma carta de
João Antônio, agradecendo pelo apoio. “Isso me deixou perplexo e
consternado. Apoio? Um grande escritor como ele precisava de apoio? Mas
assim era: a trajetória de João Antônio, com seus altos e baixos, é um
exemplo das vicissitudes pelas quais passa o escritor brasileiro.” Em seus
comentários feitos imediatamente após a notícia da morte do antigo
companheiro, Scliar disse ainda: “Ele passou por todas as vicissitudes do
escritor popular (...). Era uma pessoa muito alegre, mas a gente sentia uma
certa tensão, uma certa ansiedade. Era um homem sofrido e, embora nunca
falasse desse sofrimento, a gente podia sentir sua amargura pela falta de
reconhecimento”.
20

“Uma das coisas mais importantes da ficção literária é a


possibilidade de ‘dar voz’, de mostrar os indivíduos de todas as classes e
grupos, permitindo aos excluídos exprimirem o teor de sua humanidade,
que de outro modo não poderia ser verificada. Isso só é possível quando o
escritor, como João Antônio, sabe esposar a intimidade, a essência
daqueles que a sociedade marginaliza, pois ele faz com que existam, acima
da sua triste realidade.”
Antonio Candido 23

Meses antes de sua morte, João Antônio havia dito em uma


entrevista que só sairia da Praça Serzedelo Correia, onde morou
aproximadamente 27 anos, quando ela tivesse seu nome.
Os jornais do dia 01 de novembro mencionam que o irmão Virgínio
era esperado no Rio de Janeiro para o dia seguinte, ou seja, dois dias após a
descoberta do corpo. A ex-mulher e mãe do único filho chegaria em
seguida. O filho Daniel, que morava nos EUA, recebendo a notícia durante
uma festa a fantasia, viajou para o Brasil ainda encarnando o sheik árabe.
Velado com algumas honras municipais, o escritor foi enterrado no
Cemitério São João Batista, na Zona Sul da cidade.
21

Notas:

1
Quando não explicitamente mencionadas outras fontes, as informações sobre a morte do escritor aqui
reunidas provêm das seguintes matérias publicadas na grande imprensa: “Escritor João Antônio é
encontrado morto no Rio”, de Roberta Jansen, in O Estado de São Paulo, SP, 01/11/96; “João Antônio,
59 anos, cronista dos marginalizados”, não assinada, in O Globo, RJ, 01/11/96; “João Antônio é
encontrado morto”, não assinada, in O Jornal do Brasil, RJ, 01/11/96; “João Antônio é encontrado morto
no RJ”, não assinada, in Folha de São Paulo, SP, 01/11/96; “João Antônio: retrato de um escritor
brasileiro”, de Moacyr Scliar, in Folha de São Paulo, SP, 02/11/96; nota na seção Datas, da revista Istoé,
SP, 6/11/96; “Morreu o escritor João Antônio que tão bem sentiu a alma do povo”, não assinada, in A
Gazeta da Zona Norte, SP, 09/11/96; e “Últimas Notícias”, de Mylton Severiano da Silva, in Caros
Amigos, Ano 1, n. 1, abril de 1997, pp.6-7.

2
Depoimento de Virgínio Antônio Ferreira, colhido em março de 2000.

3
Carta a Ilka Brunhilde Lurito, de 23/06/63.
4
Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: O Escritor Brasileiro Hoje. Imprensa Nacional/Casa
da Moeda de Portugal/Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, SP, s/d (anos 80), p.273.
5
Três depoimentos atestam essa mistura sui generis entre os convidados; o de Ilka Brunhilde Laurito,
colhido em maio de 2000, o de Caio Porfírio Carneiro, colhido em maio de 2000, e o de Virgínio Ferreira
colhido em março de 2000.

6
Antônio, João – Abraçado ao Meu Rancor, Guabanara, SP, 1986, p.80.
7
Antônio, João, “Meus Respeitos” in D’Incao, Maria Ângela e Scarabotolo, Eloísa (orgs.), Dentro do
Texto, Dentro da Vida – Ensaios sobre Antonio Candido, Instituto Moreira Salles, Cia. das Letras, SP,
s/d.

8
Depoimento de Marília Andrade, ex-mulher de João Antônio, colhido em setembro de 2000.
9
Carta enviada por Marília a Ilka Brunhilde Laurito, de 10/02/97.
10
E-mail a Wilson Bueno, de março de 1996, aproximadamente.
11
Antônio, João – Ô, Copacabana, Civilização Brasileira, RJ, 1978, pp. 36-37.
12
Pronunciamento de Fernando Bonassi no Simpósio “Brasil, país do passado?”, organizado por Lígia
Chiiappini e Berthold Zilly, em Berlim, em junho de 1998.

13
Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Ladeira, Julieta de Godoy (org.) – Memórias de
Hollywood, Nobel, SP, 1988.

14
Trecho da possível última carta, publicada in O Estado de São Paulo, SP, 09/11/96.
15
Sete Vezes Rua, Scipione, SP, 1996, p.51.

16
Depoimento colhido em 23/3/2000

17
Antônio, João – Abraçado ao meu rancor, Guanabara, RJ, 1986, p.83.

18
“João Antônio e sua estética do rancor”, in Folha de São Paulo, SP, 05/10/86.

19
Antônio, João – Patuléia, Ática, SP, 1996. Antônio, João – Sete Vezes Rua, Scipione, SP, 1996. Para
não dizer que todos os textos eram “requentados”, esta antologia traz duas pequenas crônicas antes nunca
publicadas em livro, chamadas “Flagrante pequeno da miniguerra do Metrô” e “Mendigos e Mafueiros
22

20
Antônio, João – Dama do Encantado, Nova Alexandria, SP, 1996.
21
Virgínio, o irmão, diz algo importante: “Meu irmão passou a escrever não só sobre os
marginalizados socialmente falando, mas sobre os marginalizados num sentido mais amplo. Os
marginalizados de todas as classes sociais.” Depoimento colhido em 23/03/2000. Não que se tratasse
de algo inédito para João Antônio escrever sobre figuras perseguidas politicamente, ou mal vistas por
questões morais, ou mesmo sobre artistas e intelectuais esquecidos e/ou espoliados. Na Folha de São
Paulo, em 05/10/86, referindo-se ao livro Abraçado ao Meu Rancor, João Luiz Lafetá já identificava o
fenômeno: “Mas algo mudou, sim, no mundo de João Antônio. Sete dos contos são centrados sobre
personagens de classe média, e ainda que neles o pano de fundo continue a ser a pobreza do lúmpen, o
foco está decididamente deslocado. Seu centro não é mais o malandro cheio de picardia, mas o escritor
ressentido, que vê o capitalismo brasileiro reduzir as artes da malandragem à miséria descorada,
esfarrapada e pedinte”. Vale dizer que, se o processo vinha de longe, nunca fora tão evidente, tão
assumido antes de Dama do Encantado. Em entrevista publicada aproximadamente quatro meses antes
de suas morte, o próprio autor considerou uma novidade o perfil de Dama do Encantado: “De uns
tempos para cá, venho desenvolvendo uma certa mania que é a de escrever ensaios sobre situações e
figuras brasileiras.”, in Jornal do Brasil, entrevista a Cláudio Cordovil, RJ, 08/06/96.
22
Antônio, João – Casa de Loucos, Civilização Brasileira, RJ, 1976. A informação quanto à rapidez das
vendas da primeira edição está contida em uma carta de Ilka Brunhilde Laurito para o escritor,
comentando, provavelmente, informação recebida por ele: “Fiquei duplamente feliz! 1) pelo sucesso de
Casa de Loucos – que só se pode chamar de “sucesso”, no Brasil, essa coisa incrível de se esgotar uma
edição de 5.000 exemplares em 3 dias (mais de 1.000 exemplares por dia!)”. Carta de 19/08/1976.

23Candido, Antonio, “Na Noite Enxovalhada”, prefácio a Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço,
Cosac & Naify, SP, 2004.
23
24

Capítulo 1

1913 a 1963
25

“O primeiro filho, o primeiro amor,


o primeiro livro. Eu gosto das coisas da
minha juventude, que são insubstituíveis.”
João Antônio
26

Origem trasmontana

A partir dos depoimentos de Virgínio Antônio Ferreira, o único


irmão de João Antônio, e de um tio deles, Benjamim dos Anjos Ferreira,
irmão do pai e padre residente em Oswaldo Cruz, interior de São Paulo,
pode-se esboçar um quadro da família do escritor, embora incompleto e
com algumas lacunas, inclusive de datas. Mas, por exemplo, bagagem
cultural do pai do escritor, tão crucial na sua formação, não pode ser
entendida sem este mergulho no tempo.1
Em 1913, José Antônio Ferreira e Felicidade dos Anjos Machado
deixaram Trás-os-Montes, no nordeste de Portugal, em direção à Lisboa. Lá
chegando, subiram num navio rumo ao Brasil. Esta seria a primeira viagem
dos avós de João Antônio em busca de uma vida menos sacrificada. A avó
era natural da aldeia de onde partiram, chamada Macedo de Cavalheiros. O
avô nascera em 1878, longe dali, na fronteira com a Galícia, numa outra
aldeia, chamada Campo de Víveres, assim denominada por ser uma região
historicamente plantadora de trigo, desde os tempos do Império Romano e
inclusive durante a ocupação árabe. A pequena aldeia, toda com casas de
pedra, recebera também o apelido de Campo de Víboras, em parte por um
desvio de pronúncia provocado pelo sotaque lusitano, em parte pela atração
que as plantações exerciam sobre as cobras. José e Felicidade nunca haviam
aprendido a ler. Ela estava grávida de sete meses e o filho mais velho do
casal, Domingos Antônio Ferreira, era ainda uma criança.
Prematuramente, e antes do embarque, nasceu João Antônio Ferreira,
futuro pai do futuro escritor. O comandante do navio, tendo em vista que a
família tinha apenas três passagens, quis impedir o acesso dos Ferreira.

1 Quando não indicado o contrário, todas as informações reproduzidas neste capítulo foram extraídas
destes dois depoimentos, básicos para a montagem de uma “biografia familiar” do escritor João
Antônio. O do irmão Virgínio foi colhido em 23/3/2000, e o de seu tio Benjamim dos Anjos em
15/02/1999.
27

Felicidade protestou, alegando que o nascimento do filho só estava previsto


para dali a dois meses, e que ele viajaria em seu colo. “Esses cabreiros!”,
teria dito o comandante, em tom praguento, resignando-se e sugerindo uma
das ocupações de José Antônio, que era também carpinteiro ou, mais
especificamente, goivista. Segundo Virgínio, seu pai recém-nascido foi
aceito no navio mediante registro como carga, “café, pão, mortadela”.
A família desembarcou em São Paulo ainda no ano de 1913. Mas a
primeira estada no Brasil foi curta e problemática. Um único acontecimento
feliz marca essa fase, o nascimento de Antônio, o terceiro filho do casal.
Dois anos depois da chegada, porém, toda a família partiu novamente para
Portugal. O motivo principal do retorno, segundo se sabe, foi a saúde de
José Antônio, cujo corpo fora tomado por furúnculos, os quais, segundo o
médico, só regrediriam graças à mudança radical de clima, o que teria
levado o carpinteiro a voltar ao hemisfério norte.
Lá chegando, porém, os Ferreira reencontraram a mesma situação
difícil, a mesma vida sem perspectivas. A Primeira Guerra Mundial havia
começado no ano anterior, e países pobres como Portugal, embora não
participassem diretamente do conflito, sentiam suas duras conseqüências.
Maria, a quarta filha do casal, nasceu nessa época, aumentando ainda mais
as necessidades familiares.
Diante desse quadro de penúria, José Antônio decidiu partir para a
França, onde as condições de trabalho eram melhores. Fez a viagem
acompanhado de seu filho mais velho, Domingos, e de um irmão. Eles
saíram de Portugal e atravessaram a Espanha de trem, chegando a uma
cidade ao norte, chamada San Sebastian. De lá seguiram até Iun, uma
localidade basca situada exatamente na fronteira com a França. Nenhum
deles, entretanto, possuía uma Carta de Chamada, documento que atestava
a existência de um vínculo profissional pré-estabelecido no território
francês, e requisito imprescindível para que as autoridades aduaneiras os
28

deixassem entrar no país.


Enquanto tiveram dinheiro para esperar um golpe de sorte qualquer,
que lhes permitisse a entrada na França, ficaram em Iun. Como o golpe de
sorte não veio, precisaram voltar para Portugal e, agora já sem dinheiro,
foram obrigados a cumprir o longo trajeto a pé. Durante 30 dias seguiram
os trilhos do trem e, ao chegarem, estavam tão famintos que seu aspecto
magro e puído impediu-os de serem reconhecidos imediatamente.
Por ironia da história, no entanto, a modesta família camponesa foi
ajudada pelo advento da I Guerra Mundial pela artilharia aérea alemã. A
cidade francesa de Reims, um dos alvos prediletos da Tríplice Aliança,
havia sido praticamente destruída. Segundo a tradição familiar, o único
prédio deixado em pé pela artilharia alemã teria sido a Igreja. A cidade,
portanto, a despeito dos bombardeios, tinha uma extrema necessidade de
operários da construção civil. Como a população masculina da região, na
sua maioria, estava ou no front ou nos hospitais, recorreu-se à mão-de-obra
estrangeira. José Antônio Ferreira foi então beneficiado com uma Carta de
Chamada.
Entre 1915 e 1916, viajou para Reims. Uma vez instalado, mandou vir
a família. Nenhum deles falava francês. Enquanto José trabalhava como
carpinteiro, aprimorando seus conhecimentos técnicos, Felicidade montou
uma pensão. Tiveram um quinto filho, Benjamim, batizando-o na tal igreja
da cidade que sobrevivera aos bombardeios. De acordo com a lei francesa,
que exigia para todos os batizados feitos em território nacional um padrinho
francês, e tendo em vista a escassez de homens na cidade, ou a ainda
mínima rede de relações da família, o próprio padre precisou apadrinhar
Benjamim.
Reza a lenda que apenas duas semanas após instalados, José Antônio
recebeu uma intimação policial. As autoridades haviam sido informadas
pelo Serviço Alfandegário de que sua família possuía duas crianças em
29

idade escolar, Domingos e João Antônio, e que estes ainda não haviam sido
registrados em nenhuma instituição de ensino. Deram-lhe mais sete dias
para fazê-lo. Assim começou a educação formal do pai do escritor João
Antônio, cujos benefícios viriam a ser cruciais na sensibilização intelectual
do futuro contista.
Os dois meninos foram matriculados em horário semi-integral, com
seis horas de aula por dia, recebendo alimentação e uniformes do Estado.
Assim que puderam, inclusive, José Antônio e Felicidade deixaram de falar
português em casa, acelerando, a partir do manejo fluente da língua
francesa, a integração dos filhos à nova cultura. Na escola, sabe-se que José
Antônio aprendeu rudimentos de matemática, mas não a ler.
A Primeira Guerra Mundial terminou em 1918. Data mais ou menos
dessa época o projeto de José Antônio de voltar para Portugal. Há três
razões básicas para que essa idéia tenha brotado em sua cabeça: com a volta
da população masculina do front, o mercado de trabalho diminuiu para os
estrangeiros; as propriedades da família em Portugal davam contínuos
prejuízos, e ele achava que poderia inverter a situação; goivista experiente,
José Antônio ressentia-se de estar sendo sub-aproveitado, sem poder
exercitar ao máximo suas habilidades profissionais nos bicos que
conseguia. Felicidade, entretanto, foi contra a volta. Diz Virgínio, seu neto:
“(...) minha avó, apesar de analfabeta, tinha uma visão muito grande. Não
queria sair da França, dizia que era melhor ser jardineiro em Reims do que
latifundiário em Portugal.”
Seu marido, porém, era reconhecidamente uma pessoa teimosa, e
acabou vencendo a disputa. A família Ferreira voltou para seu país natal
entre 1920 e 1921. João Antônio, o segundo filho, tinha aproximadamente
oito anos.
A volta para Portugal provou-se traumática. De novo em Trás-os-
Montes, a família dedicou-se às propriedades que havia deixado para trás,
30

cuidando pessoalmente da criação de cabras. Como diz Virgínio, seu pai


João Antônio crescera inserido no meio urbano francês, com escola e criado
“com leite condensado e pão de trigo até quase dez anos de idade.
Chegando lá [em Portugal], teve de pastorear ovelhas. Sabe como se faz
isso? O cara fica com elas, anoitece, amanhece, chove, faz frio. O pastor de
ovelhas não as abandona. Foi um choque tremendo”. Outra lembrança do
pai do escritor João Antônio, narrada por Virgínio, bastante prosaica e
bastante eloqüente, conta que “quando chegou [José Antônio] em Portugal,
na primeira semana, num domingo, eles foram à missa, os homens iam de
terno e descalços, porque realmente não tinham dinheiro para comprar
calçado. E, na volta da missa, dois primos deles já adultos, um disse ao
outro: ‘Escuta, não temos nada que fazer, então vamos nos dar aí [brigar, na
gíria da região]?’ Tiraram a roupa, ficaram só de calção e começaram
aquela luta de soco, pontapés e rasteiras. Depois que já estavam bem
machucados, um olhou para o outro e falou: ‘Já chega, pois não?’. O outro
falou: ‘Pois sim’. Aí pararam, se lavaram no rio, colocaram a roupa e foram
embora. Quer dizer: Isso foi um choque muito grande para o meu pai. (...)
Na França, um sujeito parava o outro na rua e dizia: ‘Desculpe, por favor,
poderia me dizer as horas?’. O outro enfiava a mão no relógio, e dizia: ‘São
tantas’. E o outro agradecia reverenciando.”
Tamanho foi o trauma que, até morrer, seu pai nunca o superou. “No
fim da vida, ele pôde passear em Portugal, eu ofereci para ele. ‘O último
lugar onde eu quero voltar é Portugal, porque foi o único lugar onde eu
trabalhei dia e noite e passei fome. (...) Lá onde eu vivi, cortava-se a
sardinha no meio, um comia uma parte e o outro outra. Ninguém comia
uma sardinha inteira na mistura.”
As propriedades em Portugal não foram capazes de segurá-los.
Novamente a necessidade de procurar vida melhor em outro país se
colocou. Os Estados Unidos foram a opção preferencial de Felicidade dos
31

Anjos. Quando o marido resistiu à idéia, alegando que não falavam a


língua, ela retrucou: “Também não falávamos francês”. Mas era difícil
convencer seu marido de qualquer coisa, e ele acabou vencendo a disputa
com um argumento desconcertante: “Vamos para o Brasil, porque lá, no
inverno, se nós estivermos na rua, pelo menos não morremos de frio”.
Em 1923, a família Ferreira desiste de pastorear suas cabras em
Portugal, vende suas propriedades e transfere-se novamente para o Brasil, e
novamente para São Paulo. Alugam então um casarão na avenida Angélica,
em Higienópolis. Este, certamente, não era o bairro valorizado que é hoje,
apenas começava a crescer. O vale do Pacaembu era uma floresta, onde os
passantes desprotegidos eram assaltados. Mesmo assim, era melhor uma
vizinhança dessas do que passar fome em Trás-os-Montes. E a casa era boa,
grande, com dois níveis. Instalaram-se os Ferreira no andar de cima, e
transformaram o grande porão em albergue, do qual tirariam uma renda
adicional.
José Antônio, retornando ao clima brasileiro, dessa vez não caiu
vítima dos furúnculos. No exercício de sua profissão, desde logo tomou
parte em algumas construções importantes, que marcariam a história da
cidade. Ainda em 1923, foi contratado para trabalhar nos alicerces da Igreja
da Sé. Não era, por enquanto, um emprego que lhe permitisse exercer suas
qualidades de goivista experimentado, mas lá teve contato com os
beneditinos, que procuravam profissionais para trabalhar na construção do
Mosteiro de São Bento. Por eles contratado, tempos depois, coube a ele dar
o entalhamento inicial em todo o madeirame que seria posteriormente
finalizado pelos escultores.
Enquanto trabalhava fora, sua esposa Felicidade gerenciava o
albergue, oferecendo, no andar de cima, refeições aos hóspedes
interessados.
O segundo filho do casal, João Antônio, demorou um pouco mais a se
32

adaptar ao Brasil. Diz Virgínio sobre o pai: “Quando chegou no Brasil foi
recebido pela garotada com couro”. Uma das primeiras lembranças dessa
fase de sua vida é a musiquinha xenófoba cantada pelos meninos com os
quais ele e seu irmão Domingos jogavam bola de gude: “Português é burro,
brasileiro não”. Assim Virgínio analisa a triste memória: “Como isso deve
ter marcado meu pai, né? Tanto que ele fez sempre questão de ser melhor,
falava muito pouco”. De início, nem português falava, na verdade. “(...) e
os meninos falavam tal coisa para ele, e só o irmão mais velho, nascido em
Portugal, entendia. Então ele perguntava: ‘Qu’est-ce que c’est?’. E meu tio
explicava para ele, e ele foi aprendendo”.
As instituições educacionais brasileiras, por sua vez, estavam longe de
propiciar ao jovem imigrante o amparo experimentado na França. Virgínio
fala assim desta segunda fase da educação de seu pai: “O pouco que ele
aprendeu a ler e escrever – ele tinha uma redação muito boa, meu pai –, foi
na França. Depois aprendeu convivendo, lendo gramáticas, uma coisa e
outra”.
Sem vínculo escolar, já por volta dos doze anos, João Antônio
começou a arrumar seus primeiros empregos. Um deles foi como cobrador
de uma das primeiras linhas de bondes de São Paulo, que saía do Brás e
vinha até o Centro. Mas a experiência não foi das melhores. Sua obrigação
era entregar a receita do dia nas mãos do dono da empresa. Porém, os filhos
do ditocujo começaram a exigir que João Antônio entregasse a eles o
dinheiro. Ao resistir, apanhava. Terminou demitindo-se do emprego. Diz
Virgínio sobre o pai: “Ele trabalhou num sem número de lugares. Ele
trabalhava num lugar, não estava bom, ele saía e ia de porta em porta: ‘Está
precisando de um rapaz?’, ‘Não está precisando de ninguém para ajudar?’.
E assim trabalhou”.
33

Presidente Altino

Por volta de 1926, com as economias que tinham, possivelmente


oriundas da venda das propriedades em Portugal, ou feitas com a renda da
pensão, os Ferreira tiveram então a chance de comprar o casarão da
Angélica. Preferiram, porém, buscar uma região da cidade economicamente
mais ativa. Felicidade queria ir para o Brás, bairro de economia dinâmica,
cheio de pequenas firmas e fábricas ligadas às atividades típicas dos
italianos, entre elas o trabalho com o couro, fosse para sapatos ou para selas
de cavalos. Nas palavras de Virgínio, seu neto: “A minha avó tinha muita
visão comercial (...) era o lugar onde mais corria dinheiro em São Paulo”.
José Antônio, porém, não achava tão boa a idéia de ir morar num dos
bairros da colônia italiana. Preferia, ao contrário, aproximar-se dos seus
conterrâneos. Ele tinha alguns primos morando na cidade, que haviam
chegado ao Brasil junto com a família Ferreira, ainda em 1913, instalado-
se, de início, na região da Cantareira, depois dispersando-se pela cidade,
sendo que alguns tinham montado base num bairro chamado Presidente
Altino. Era para lá que José Antônio queria ir.
Felicidade, novamente, discordava do marido. Ele, no entanto, tinha
argumentos para defender seu projeto. Em primeiro lugar, os imóveis no
Brás eram mais caros, e com o dinheiro de dois lotes lá comprava-se quatro
em Presidente Altino. Embora mais afastado do Centro, o bairro já
dispunha de dois trens por dia, um às seis da manhã e outro às seis da tarde.
E, finalmente, era cenário de uma intensa atividade industrial. Um grupo
americano havia comprado o frigorífico Continental e estava construindo
mais um frigorífico. Havia uma fábrica de cerâmica, uma de tecidos, a
empresa Soma, que fabricava e fazia manutenção de vagões de trem e, por
fim, a fábrica de fósforos Granada, pertencente a um português enobrecido
por um título de Barão.
34

Tudo isso, mais a determinação férrea de José Antônio, foi o


suficiente para cancelar os projetos de Felicidade. A família Ferreira
comprou naquela oportunidade seus primeiros quatro lotes de terreno em
Presidente Altino, onde até hoje mora a família de Virgínio Antônio, e onde
o escritor João Antônio, depois de mudar-se para o Rio, ficava hospedado
quando vinha a São Paulo.
Mas o crescimento da cidade realmente iria pregar uma peça na
família, que não apostou no futuro do bairro de Higienópolis. Conta
Virgínio que José Antônio e Felicidade viveram o suficiente para se
arrepender. “Em 62, 63, eu fui à cidade com o meu avô. Ele me convidou,
pois já precisava de companhia. Tinha 84 anos de idade. E nós tomamos o
bonde da Lapa para a cidade, e subimos a avenida Angélica e ele me
mostrou, à esquerda de quem sobe, a propriedade onde ficava o casarão, e
me contou da burrada que fez: ‘Se eu tivesse comprado aquela propriedade,
compraria o quarteirão inteiro em Presidente Altino”.
José Antônio, João Antônio e João Antônio Filho, a despeito das
especificidades biográficas inevitáveis, eram todos reconhecidos por seus
familiares imediatos como homens extremamente determinados e, às vezes,
quase teimosos. A isso soma-se um temperamento orgulhoso bastante
evidente. Os três acertaram muito graças a essas características, e erraram
outro tanto. No caso da mudança para Presidente Altino, os anos
mostrariam o quanto a avaliação feita por José da futura importância
econômica do bairro fora equivocada, assim como o fora a decisão de
deixar a França e voltar para Portugal.
O que estava feito, no entanto, estava feito. Uma vez em Presidente
Altino, José Antônio continuou em sua profissão de goivista. Enquanto
isso, o jovem João Antônio, aproximadamente com treze anos na época, fez
progressos importantes. Conta seu filho Virgínio: “Embora fosse um
homem que, pela própria natureza de vida, já falava espanhol de galego, e
35

aprendeu a falar francês, nunca foi na escola aprender a ler e escrever no


Brasil”.
Foi então que a mãe, Felicidade, ajudou-o a compensar os prejuízos
causados em sua formação pela vida errante da família. Não se sabe
exatamente quando, mas ela, ao contrário do marido, ao longo dos anos
havia aprendido a escrever. Ensinou portanto as letras ao filho, em casa,
tendo a Bíblia como cartilha, segundo Virgílio, que ainda acrescenta o que
isso representou, dali em diante, na estrutura daquela família extremamente
simples: “Era um que lia para todos (...) lia novela, os romances de
Dostoiévski por fascículos semanais (...) era muito importante ser o leitor e
foi o que obrigou meu pai a ler. Mandavam ele buscar na cidade e, voltava,
no caminho vinha estudando para poder ser o leitor”.
Para o menino João Antônio, que nascera no parêntese francês de sua
história familiar, o crescente domínio da língua portuguesa ligava-o a seu
passado português e ao futuro brasileiro simultaneamente. Se de fato, em
Reims, a família falava francês mesmo entre si, tendo sido esta a única
língua conhecida por João, não é impossível que tenha havido um duplo
estranhamento na chegada ao Brasil; um no espaço público, o que seria
esperado, mas um também dentro de casa. O contato com a língua,
portanto, seria uma experiência poderosa. O menino desajustado, que se
tornou um homem silencioso, escondia um profundo respeito pelo ato de
falar.
Após alguns anos fazendo serviços de toda a sorte, que lhe davam a
chance de ajudar em casa – relembra Virgínio –, João Antônio encontrou
sua primeira profissão: “Foi garçom de tudo quanto era bar dessa cidade”.
36

A crise de 1929 e a música

Aos dezesseis anos, e três anos depois de instalado no novo bairro,


João Antônio, testemunhou o crack da bolsa americana. A crise do café se
acirrou, puxando o tapete econômico brasileiro e disseminando suas
perversas conseqüências por todo o país. Conta Virgínio: “Uma das firmas
que atraíram meu avô [para Presidente Altino] era um grande depósito, do
Instituto Brasileiro do Café. A produção de café, que vinha de toda a
Paulista e do Paraná, era estocada aqui em Presidente Altino, ao lado de
Osasco. Então, quando o cais de Santos e os depósitos ficaram abarrotados,
aqui ficou abarrotado. Passaram a pôr o café no pátio. Vinha do vagão e
eles iam despejando. Fizeram uma pilha ali de uns oito metros de altura por
uns trezentos de largura, por uns dois quilômetros de comprimento, só de
café”.
O jovem garçom, no entanto, ia resistindo à caótica macroeconomia.
Até progrediu. Na virada de 1929 para 1930, enquanto o país ardia na
revolução, João Antônio estava empregado no Cassino dos Oficiais, que
ficava junto às instalações militares de Quitaúna.
No mesmo ano de 1930, foi instaurado o governo revolucionário.
Reformas de toda a sorte tiveram início, inclusive econômicas. Caminhou-
se em direção a uma centralização da política cafeeira, tirando-a do controle
exclusivo dos estados produtores. Além disso, em fevereiro de 1931, o
governo assinou um decreto no qual se comprometia a comprar todos os
estoques existentes.2 Com isso, a pilha de sacos em Presidente Altino só
tendia a aumentar. No intuito de reduzir a oferta e segurar os preços,
determinou-se que o governo destruiria parte dos estoques. Ordenou-se,
então, a queima da muralha de café existente em Presidente Altino, que
àquela altura não valia mais nada e só ocupava espaço. Ao longo de 90
2 Fausto, Boris – História do Brasil, Edusp, São Paulo, 1998, pp.333-334.
37

dias, toneladas e toneladas arderam na região. Alguns dias de fumaça


incessante, que ocupava todos os espaços, e o ar ficou irrespirável,
provocando inúmeras crises respiratórias na população.
Apesar das reservas nacionais estarem virando cinzas, o jovem João
Antônio se virava. Entre 1930 e 1932, arrumou um emprego num dos
frigoríficos de Presidente Altino, o Wilson. Conta Virgílio: “Meu pai foi
trabalhar naquele frigorífico, e como raramente aparecia quem soubesse
escrever, e ele sabia escrever e calcular – era o mais elementar de
matemática, somar, subtrair, multiplicar e dividir –, colocaram ele na planta
fazendo serviços de anotações de pesos.”
Controlado por ingleses, o frigorífico era reduto de gente vinda de
todos os lugares do Brasil e do mundo. Pessoas “que não tinham dado
certo” em nenhum lugar; árabes, armênios, russos, polacos, húngaros,
portugueses, espanhóis e italianos, cuja língua comum era o português.
Nos frigoríficos da época, muitas vezes, não havia nenhum sistema
para aferição de custos. Para implantá-lo no Wilson, foi contratado um
príncipe russo, ou que assim se dizia, exilado pela Revolução de 1917. Seu
nome era Misahel Misaki, homem de excelente nível, “que estudou em
Paris”. O russo, necessitado de técnicos para sua equipe, e sendo informado
das habilidades matemáticas de João Antônio, chamou-o para trabalhar em
sua equipe como cronometrista. Para um leitor de Dostoiévski, como era
João Antônio pai, esta relação profissional deve ter sido uma experiência,
no mínimo, divertida. Ao que parece, deram-se bem, o russo ensinando
tudo que sabia a seu assistente e, este, inteligentemente, aprendendo.
Ao lado disso, cristalizava-se na personalidade de João Antônio outra
característica fundamental – e que exerceria uma influência
importantíssima em seu filho escritor –, o seu amor pela música. Não se
tem certeza de quando exatamente começou, e sabe-se que certamente não
foi resultado de um ensino ou treinamento musical propriamente dito, mas é
38

inegável que este amor conferiu a sua vida tão dura e cheia de percalços
uma dimensão mais leve e alegre. Conta Benjamim dos Anjos, seu irmão
mais novo, que ele “assobiava muito”, o que deve ser verdade, mas não é
tudo. Ele era também um violonista de primeira, conhecido de outros
importantes especialistas no instrumento, como, por exemplo, nada mais
nada menos, que o famoso Garoto. “A música era o grande passatempo
dele, teve grandes amigos músicos. (...) Ele disse que teve duas aulas com o
Garoto, depois que ia lá [na Casa Verde], ficavam conversando e iam para a
cidade, até aqueles cafés de antigamente.” Foi companheiro também de
Geraldo Ribeiro da Silva, o violonista, e de Romeu Di Giorgio, famoso
artesão responsável pela fabricação de violões e bandolins de grande
qualidade.3
Outros amigos, feitos ao longo da vida, não se tornaram conhecidos,
como João Dias, flautista e bêbado que, certa vez, presenteou-o com um
caderno cheio de partituras musicais escritas à mão, predominantemente de
peças clássicas. Ou “seu”Ascendino, violinista original de Araraquara e
colega de trabalho, cuja habilidade musical permitia-lhe tocar, de primeira,
partituras nunca antes examinadas, e que dominava o repertório erudito
com naturalidade, incluindo Mozart, Beethoven e o virtuoso acrobático
Paganini.
Além de intérprete, João Antônio, pai, escrevia as próprias músicas,
embora não tenha passado para o papel nenhuma de suas composições.
Talvez, mesmo querendo isto lhe fosse impossível. João Antônio tirava as
músicas de ouvido e, auxiliado por uma excelente memória musical,
conseguia tocá-las com brilho e emoção. Também “por instinto” deveria
funcionar seu processo criativo. Seu filho homônimo, dali a alguns anos,
assistindo-o nas rodas de choro, entraria em acordo com o bandolim,
também graças à pura habilidade natural. A convivência com o universo da
3 Da Silva, João Ribeiro Neto – João Antônio, coleção Literatura Comentada, Abril, SP, 1980.
39

malandragem, ainda que não tenha afetado diretamente a conduta na vida


de João Antônio, pai, tirando-o dos eixos morais e profissionais usualmente
aceitos, terminaria por atrair para este outro sistema alternativo de valores,
irresgatavelmente, seu filho mais velho.
João Antônio, pai, costumava dizer que a música para o homem “é só
até os 35 anos” – conta seu filho Virgínio, que em seguida explica:
“Acredito que depois dos 35 anos ele nunca mais teve aquele ímpeto para
tirar determinada música, para estudar a noite inteira. E porque a
criatividade diminuiu muito, não tinha mais choros na cabeça dele”. Deve-
se, entretanto, entender essa frase como um afastamento apenas relativo do
meio musical. Ao que tudo indica, João Antônio foi gradativamente
perdendo contato com os profissionais que conhecia, deixando de atuar
nesse meio, mas não como conseqüência de um desinteresse completo pela
música. Ela continuará presente em sua vida, ainda que de forma bem mais
caseira e bem menos ambiciosa. Amigos com dotes musicais amadores,
como ele, nunca lhe faltaram. Ao final da vida, já sem a agilidade manual
de um jovem, para se distrair em grupo, ele mesmo trocou de instrumento e
acomodou-se ao bandolim.

O casamento e o frigorífico Armour

Foi a crise de 1929 que trouxe a Presidente Altino também a família


da mãe do escritor João Antônio. Nem todos ficariam em São Paulo por
muito tempo, mas, naquela época, foram lá tentar a vida. Original de
Vassouras, no vale do Paraíba, a família deixa os morros da Capital Federal
para buscar melhores oportunidades de trabalho em São Paulo. Deste lado
da família, o futuro avô do futuro escritor se chamava Virgínio Ferreira, e a
avó, Nair Cardoso de Sá Gomes. Eles viviam numa ampla comunidade
40

familiar na Zona Norte carioca, que incluía os doze irmãos de Nair


(Zulmira, ou Zulma, Maria, Cecília, ou Ciloca, Elisa, Rubens, Otacílio,
Waldemar, João, Diógenes, Helena, José e Carivaldo). O avô Virgínio foi
muito querido do escritor e de seu irmão, que viria a ser batizado em sua
homenagem. João Antônio, filho, acreditava ter puxado um pouco pelo seu
temperamento, e conta: “Sou neto de meu avô, um homem chamado
Virgínio, macho, muito macho. Tinha um pescoço de touro, tinha uns
antebraços como filão de pão, trezentos mil defeitos, todos diziam. Quando
morreu todos disseram que ele era um santo. É. O seu defeito em vida foi
um só – pensar com a cabeça dele. Com a dele, só com ela. Por isso, curtiu
muitas coisas, necessidades, sabe? Curtiu até fome, eu garanto. Mas macho,
como sempre”.4
A mãe de Nair, Júlia Nóbrega, que também veio para São Paulo, era
descendente de escravos e a ela sobretudo, mas não apenas, deve-se o
sangue negro da família do escritor João Antônio. Ele assim descreve a
bisavó: “Vó Lula (seu apelido), escura e geniosa, cabelos lisos de provável
mameluca, quem sabe, na mocidade, sensual e com certeza supersticiosa e
de arroubos imprevisíveis, acostumada e mandona. Vó Lula abominava
orquídea dentro de casa. Orquídea era mau agouro, vento encanado, fio
desencapado, asa-negra, ziquizira. Tratava filhos, netos e bisnetos pela
homeopatia”.5
Ou assim: “Minha bisavó Júlia, apelidada Lula pela gente miúda, uma
penca de bisnetos amulatados. Vó Lula, crioula geniosa, supersticiosa e de
arroubos, filha de escravos e acostumada a mandar, tratava filhos, netos e
bisnetos pela homeopatia, tinha cabelos lisos como os dos mamelucos, mas
nariz afilado, alta e magra até o fim, que nunca botou corpo, como se dizia,

4 Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 17/10/1959.


5 Antônio, João – “No Morro da Geada”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o Inferno!, Scipione,
São Paulo, 1991. Este mesmo texto, editado e reorganizado, mas sem acréscimos, foi republicado no
último livro do escritor, Dama do Encantado, sob o título “Meus Tempos de Menino”.
41

em cima dos cambitos lustrosos, irrequietos, treze filhos, um horror a


orquídeas dentro de casa como outro não vi, centenária com certeza, que
sua idade legítima calculou-se. E ninguém soube.”6
A filha de Virgínio e Nair, Irene Gomes Ferreira, nascida em 1920,
era, nas palavras do seu futuro cunhado Benjamim, “uma morena bonita”,
“muito simples, mas com uma facilidade de conversar, de falar. Aquilo
vinha espontâneo, vinha crescendo”. No que se refere ao gosto pela
conversa, Benjamim acredita, inclusive, que “essa parte o João pegou da
mãe. E também a parte meditativa própria do africano”.
João Antônio era generoso em sua descrição física da mãe na
juventude: “Naquela época mamãe era grandiosa (...) Um corpo
espetacular, uns olhos de santa, qualquer coisa de menina andava pelo rosto
moreno”.7
Em um de seus contos, ele resume assim suas origens: “Meu cabedal é
pobre, de livros e descendentes e, elas por elas, filho de um transmontano
emigrado e de uma mestiça do Estado do Rio, neta de negros, nasci sem
maior lordeza. A família de mestiços, fluminense naquele tempo, andava
arada de fome; correu para São Paulo nas beiradas de 29, ano ruço, e tentou
se arrumar no que restava de mercado de trabalho nos intestinos industriais
de Presidente Altino, Osasco e Jaguaré”.8
Ou assim, brincando, em uma das cartas: “Preciso fazer uma constante
verificação genealógica. Vim de pretos e de ibéricos e há reparadores que
me acham com jeito de filho de sírios. Naturalmente esses atentos analistas
da minha empolgante beleza física desconhecem o simples fato histórico –
muçulmanos dominaram por séculos a Península Ibérica, deixando por lá

6 Antônio, João – “Pequena Especulação em torno de Três Momentos do Poeta da Vila”, publicado em
O Estado de São Paulo, em 01/05/83.
7 Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/09/1960.
8 Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Record, Rio de

Janeiro, 1982.
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uma herança cultural e humana”.9


Para se entender, porém, o ambiente familiar onde cresceu o escritor
João Antônio, há que se levar em conta o desnível cultural entre sua família
paterna e sua família materna, ou, mais especificamente, entre seu pai e sua
mãe. Enquanto seu pai havia aprendido a falar francês, e depois, ainda que
informalmente, fora alfabetizado em português, Irene e a mãe eram semi-
analfabetas.
Ao chegar a Presidente Altino, mais especificamente ao Morro da
Geada, onde toda a família se baseou, a jovem Irene arrumou trabalho na
fábrica de fósforos Granada, onde também trabalhava Maria, irmã de João
Antônio e através de quem ela conheceria o futuro marido.
O Morro da Geada é talvez uma das mais citadas referências espaciais
na obra do escritor João Antônio. “Tomando sol acabei no morro” – diz ele,
no principal de seus textos memorialísticos10 –, “que tem muitos nomes e
que eu não aceito nenhum deles. Dizem Morro da Continental, para outros
é Morro do Wilson, há os que chamam de Morro da Geada – porque ali, à
noite, faz muito frio e nos frios de geada no morro costuma gear. Ainda
arrumaram um nome mais oficial – Morro de Presidente Altino. É o nome
mais feio que o morro tem. Para mim, nenhum serve.”
“Não haverá outra terra de tanta criança de gama tão vária, que arme
um bulício de tanta cor. (...) Subir o morro era fácil; descer, já não era, não.
O coração não pedia pra gente descer.”
O casamento dos pais do escritor ocorreu, portanto, entre 1930 e 1936.
Nessa mesma época, João Antônio, pai, foi convidado a implantar o serviço
de custos em outro frigorífico da região, controlado por americanos, o
Armour. Conta Virgínio: “As indústrias brasileiras não tinham serviço de
cronometragem, meu pai foi o criador do serviço de custo no Armour. Pela

9 Carta a IlkaBrunhilde Laurito, de 31/10/1961.


10 Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Record, Rio de
Janeiro, 1982.
43

primeira vez, os americanos do Armour ficaram sabendo quanto tinha


custado a mortadela. (...) Ele montou as primeiras reportagens. O preço da
carne chegava a ser um décimo do que era nos Estados Unidos, e a mão-de-
obra era de graça. Isso dava lucro de qualquer jeito”.11 E Virgínio continua:
“(...) porque essas firmas americanas tinham sede em Chicago, e o pessoal
de lá não botava a mão na massa, os brasileiros que se virassem. Meu pai e
mais uns três que tinham algum conhecimento, supervisionados por ele,
preparavam reportagens diárias, semanais, mensais”.
Os oito anos que João Antônio passou como chefe do departamento de
custo do frigorífico seriam anos de relativa prosperidade para a família
Ferreira, e de prestígio para seu chefe. O trabalho que lá desenvolveu foi
tão bem sucedido que chegou a destacá-lo na comunidade trabalhadora em
que vivia, destaque este que o teria acompanhado por muitos anos. Pelo
menos é o que dá a entender um episódio contado por Virgínio: “Um dia,
numa pizzaria com meu pai, enquanto ele tocava bandolim, levantou um
sujeito da mesa e disse assim: ‘Ô, Ferreirinha, pensei que você só sabia
fazer as melhores reportagens do Armour, mas você também toca
bandolim.’ Meu pai riu, eu era menino”.

Estado Novo, primeiro filho

Alguns meses antes do golpe de 10 de novembro de 1937,


especificamente a 27 de janeiro de 1937, nasceu o escritor João Antônio
Ferreira Filho, assim batizado em homenagem ao pai homônimo, claro, e a
um bisavô materno, que se chamava João Cardoso de Sá. O nascimento
ocorreu na maternidade São Paulo, na rua Frei Caneca, próxima à Avenida
Paulista.
11 Entenda-se aqui “reportagens” como versão brasileira de report, ou relatório, em inglês.
44

Uma conseqüência crucial o período getulista trouxe para vidas como


as dos integrantes da família Ferreira: a implantação das leis trabalhistas.
Conta Virgínio: “Quando o Getúlio entrou, não existiam leis trabalhistas no
Brasil; para o pessoal do frigorífico, no período da safra, o horário de
entrada era às seis da manhã e saía-se quando acabava a matança. Ora, às
vezes a matança acabava às oito horas da noite, para quem tinha entrado às
seis, e o pessoal da picação, que dá seqüência ao tratamento da carne,
ficava até às dez. Trabalhava, portanto, das seis da manhã às dez da noite. E
não existia pagamento de hora extra. (...) O Brasil era um país selvagem, e
os americanos que vinham para cá eram os mais duros, os superintendentes
do frigorífico Wilson chegavam a bater nos empregados”.
O próprio escritor João Antônio resume as conseqüências benéficas
dos aprimoramentos trabalhistas: “A argumentação era bem assim: Getúlio
deu as leis das férias, da indenização. Uns diziam já não trabalharem como
escravos”.12
Fazendo a ressalva de que “meu pai não era getulista, mas era
admirador do Getúlio”, Virgínio continua, dizendo que “o país começou a
melhorar [saindo da crise de 29], e foi o que fez o povo gostar do Getúlio, o
povo brasileiro nunca entendeu, quem gostava do Getúlio eram os
despolitizados, ou aqueles que tinham uma visão de mundo, da vida
econômica, independente dos partidos, porque quem tivesse idéias clássicas
não o tolerava, porque era antidemocrático e foi um ditador durante 15
anos”.
João Antônio Ferreira, pai do escritor, por ser um profissional mais
qualificado, estava protegido contra certos abusos. Terminando seu horário
de expediente, muitas vezes ficava tocando seu instrumento, enquanto os
colegas hierarquicamente inferiores, como o primo João Anzol, acabavam
de tirar o couro dos animais. Mas ele conhecia de perto os excessos
12 Antônio, João – Lambões da Caçarola, Porto Alegre, LP&M, 1977.
45

impostos aos trabalhadores. E o Estado Novo, para a família Ferreira,


marcou realmente uma época de fortalecimento dos direitos dos
empregados. Ficou registrado, por exemplo, o caso de um superientendente
do frigorífico Armour que foi deportado do Brasil, após ser denunciado por
um empregado a quem havia estapeado na cara. “Era o Estado Novo, era
ditadura, o governo tinha força” – diz Virgínio.
Uma segunda marca importante deixada por Getúlio, na consciência
daquela típica família de trabalhadores, foi a valorização do trabalho. Diz
Virgínio: “Ainda se tinha a mentalidade que determinados trabalhos eram
feitos por negros. (...) Quando o Getúlio tentou reativar o país, assumindo a
direção do grupo de militares durante o Estado Novo, ele encontrou todo
um quadro. Quem era o compositor mais cantado do Brasil? Noel Rosa.
Noel Rosa era o elogio à maladragem. Os outros compositores brasileiros,
como Almirante, também iam na mesma linha: ‘trabalho como louco, mas
ganho muito pouco’. (...) Somente quem se preocupava em trabalhar eram
os imigrantes. Menos árabes e judeus, que queriam viver daqueles que
trabalhassem. Mas o resto eram os italianos, a portuguesada, a espanholada,
os alemães, os polacos, esse pessoal que pensava em trabalhar, que dava
valor ao trabalho. Brasileiro não, e os filhos dos imigrantes, à medida que
foram aprendendo o português, foram aprendendo a vadiagem. Quando
Getúlio tomou o poder, ele se deparou com isso. E chegou, através de seus
ministros, a convocar os músicos, Francisco Alves, Orlando Silva, para que
parassem de cantar aquele negócio ‘Eu vivo na malandragem, vida melhor
não há. Se eu precisar um dia deixar a orgia para ir trabalhar vou sofrer’. Aí
começaram a surgir músicas do tipo: ‘Quem trabalha é que tem razão’.”13

13 A pesquisadora Cláudia Matos ratifica as lembranças de Virgínio, dizendo: “A noção de malandro


está associada à de sambista desde os anos 20. (...) Mesmo num quadro de contestação ao culto do
trabalho, Getúlio continuava a ser uma figura muito prezada pelos sambistas e por grande parte da
massa popular. (...) O que se pode verificar em parte da criação musical daquela época – essa criação a
que chamo samba malandro – é um manejo especial da linguagem que põe em questão, ainda que
sorrateiramente, os valores essenciais da ideologia pequeno-burguesa, bem como pontos importantes
46

Essas memórias familiares, antes de tudo, mostram a importância da


música naquela família; ela cumpria o papel de veículo informativo do que
acontecia no país, social e politicamente falando (embora essa questão, é
claro, transcenda a esfera familiar de João Antônio). Mas há um segundo
ponto a ser destacado, ou seja, a identificação da música com a
malandragem – por mais que o Estado Novo tenha tentado dissolver esta
aliança. Esse vínculo explicaria, no futuro, a preocupação de Irene, mãe do
escritor, quando seu filho mais velho, introduzido pelo pai nas rodas de
samba, começou a ganhar autonomia no mundo dos músicos.

O Morro da Geada

Ainda que o século XX tenha sido, no Brasil, um período de constante


crescimento urbano, e ainda que o Estado Novo, ao promover a primeira
fase de industrialização da economia brasileira, tenha contribuído bastante
para uma nova ocupação dos espaços na cidade, é importante perceber o
quanto a vida em um subúrbio como Presidente Altino era, em muitos
aspectos, mais próxima à do meio rural.
O Morro da Geada, local de residência do núcleo familiar do escritor,
limita-se, de um lado, com o município de São Paulo, de outro, com Osasco
e Presidente Altino. O vale do Tietê vem da capital e vai contornando o
morro, em forma de anfiteatro, um U. Conta o tio do escritor, Benjamim:
“As crianças iam pescar no rio Pinheiros, ou caçar passarinhos com
atiradeira. (...) Naquele tempo, da janela do nosso dormitório, eu via minha
mãe dando milho pras galinhas. Não tinha nada, era tudo campo”.
Ele tem lembrança da liberdade com que o menino João Antônio
gastava seus dias: “Quando eu era padre novo, bastava descer o morro e ele

do credo trabalhista-nacionalista.” Matos, Cláudia – Acertei no Milhar: Samba e Malandragem nos


Tempos de Getúlio, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.
47

vinha correndo falar com o tio. Eu perguntava: ‘Como é que vai


Joãozinho?’”.
O próprio escritor, para muitos dono de uma obra essencialmente
urbana, tem recordações muito fortes dessa fase “rural” de sua vida: “Que
eu moro na roça, não sei viver na cidade; compro o jornal para saber as
novidades...
Assim balangado, jongado, arteiro, cheio de marras era o viver
espontâneo do morro. Completa liberdade, do balacobaco. (...)
Mas lá em cima. Dali a gente espiava os primeiros espigões da cidade
surgindo na linha do horizonte, naquele tempo chamados arranha-céus. A
gente tão perto da cidade e tão longe dela.
No morro, roça. Uma cachorrada sem conta, uma molecadinha
mestiçada de quase-tudo, que o morro, de emigrantes, era um mar. (...)
Pois. Tínhamos horta, cuidávamos das verduras, do milho, do inhame,
da mandioca, bebíamos leite de cabra e leite de vaca.
No morro éramos rurais. Batíamos café e amendoim no pilão,
fazíamos nossa paçoca e nosso quentão com gengibre, nas festas de junho.
Gostávamos da mandioca frita, o aipim, do pinhão assado, dos cuscuz
paulista que aprendêramos a comer no morro. Nosso curau”.14
Em outro texto memorialístico, ele continua: “Depois, lá no alto do
Morro da Geada, minha bisavó Júlia, a vovó Lula, mais a avó Nair, a que
eu chamava de madrinha, e meu avô Virgínio, o padrinho, criavam
galinhas, patos e marrecos, pescavam no Rio Tietê ou nas lagoas dos
campos do frigorífico estrangeiro e tinham ovos frescos e leite de vaca e de
cabra. Havia cabras, vacas e porcos no morro, embora não houvesse água
encanada, rádio, televisão... e nem inflação. A carne era carne, o leite era

14Antônio, João – “No Morro da Geada”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o Inferno!, São
Paulo, Scipione, 1991.
48

leite, a manteiga era manteiga e o amor era ‘amor pra chuchu’”.15


Havia, como se vê, um universo urbano crescendo em volta da família
Ferreira, e facilidades modernas que já haviam chegado ao morro:
“Descendo, virávamos bichos urbanos, que conheciam a água encanada, o
automóvel, o bonde, a luz elétrica, o rádio. O paralelepípedo e o asfalto”.16
Todavia, nesse período, não é este o sabor que predomina em suas
memórias sobre o morro, eminentemente rurais.
Mesmo as pescarias mencionadas pelo tio Joaquim estão presentes:
“Eu conheci, lá longe, o sol de montanha no Morro da Geada, lá pelos lados
do Jaguaré, de onde se avistava, mais à direita, um ponto meio preto, quase
azulado, tão vistoso – o Pico do Jaraguá. Ah, tempos... O rio Tietê, como o
Pinheiros, dava peixe, a gente atravessava os dois de balsa ou de bote, uns
caíques que enchiam o coração das velhas de medo e o deste aqui de um
tropel.(...)
E lá no Morro da Geada, além do futebol17 e do jogo de malha, a gente
criava de um tudo. Havia galinha, cabrito, porco, marreco, passarinho, e a
natureza criava rolinha, corruíra, papa-capim, andorinha, quanto. Tudo ali
nos Jaguarés, no Morro da Geada, sem água encanada, com luz só recente,
sem televisão, sem aparelho de som e sem inflação”.18
Mesmo suas recordações relativas ao convívio com seus familiares
está marcada por um certo toque pré-urbano. “Não há lembrança que me
chegue sem os gostos” – diz ele –, “o gosto de fel do chá para os rins, chá
de carqueja empurrado goela abaixo pelas mãos de minha bisavó Júlia
(...)”. Ou então: “difícil esquecer o gosto bom do leite quente na caneca
esmaltada estirada, amorosamente, também no Morro da Geada, pelas mãos

15 Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o Inferno,
São Paulo, Scipione, 1991.
16 Idem.
17 Referência ao“campinho de futebol da U.M.P.A. (União Mocidade de Presidente Altino)”. Antônio,

João – “Vibrações. Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o Inferno, São Paulo,
Scipione, 1991.
18 Idem.
49

de minha avó Nair, filha de bisavó geniosa. (...) É Nair, Dona Nair, Dona
Nair de Cardoso de Sá Gomes, a que sabe fazer, até hoje, aos oitenta e seis
anos, uns olhos azuis e sararás, tão femininos e bons fora da conta se
viajam para os netos”.19
A família, concentrada naquele morro, era grande e querida, fazendo-o
sentir-se protegido: “Sou, assim, homem de sorte. De pequeno, paparicado
por avó, bisavó e doze tios e tias avós”.20
“Nenhum de nós sabia dizer a palavra solidariedade. Mas na casa de
outro tio, o nosso tio Otacílio, criavam-se até filhos dos outros e estou certo
de que o nosso coração era simples, espichado e melhor. Não
desandávamos a reclamar da vida, não nos hostilizávamos feitos
possessos.”21
“Nossa pobreza não era envergonhada. Ainda não fora substituída pela
miséria nos morros pobres como o da Geada. Tínhamos um par de sapatos
para o domingo. Só. A semana tocada de tamancos ou de pés no chão.”22
Mas João Antônio, também por essa época, aprendeu a circular pela
cidade, de bonde, ensinado pelo tio Rubens, irmão de sua avó Nair, um
“mulherengo de topete, bigode frajola, pobre, carioca, porém caprichoso
nas roupas (...) Mas os bondes. Nada fácil esquecê-los. Os abertos, que a
gente pegava e de que saltava andando; os fechados, a que chamávamos de
camarões. Vinham, volata, que cantavam nos trilhos, cortando desde o
Largo do Correio, pegando toda a avenida São João, entrando pelos bairros
e acabando lá longe, no Anastácio. Ou, ainda melhor, lá em Domingos de
Morais. Uma viagem em todos os sentidos”. 23
Não obstante todas as brincadeiras e afazeres de menino “da roça”, o
intenso convívio familiar e a liberdade proporcionada pelos bondes, o

19 Idem.
20 Idem.
21 Idem.
22 Idem.
23 Idem.
50

interesse de João Antônio pelas letras logo se manifestou. Em sua mini-


biografia autorizada, ele registra que aprendeu a escrever em 1942, aos
cinco anos, na escolinha particular de uma professora da vizinhança, D.
Cecília, que cobrava 500 réis por aula, pagos com uma única moeda de
prata, com a efígie de Santos Dumont.24 “Cinco mil réis por mês custava.
Eu me lembro: uma moeda branca, com a careca de Santos Dumont de um
lado. Se papai pagasse em papel, pagaria com uma nota de cinco: Barão do
Rio Branco, também careca.”25 Graças a isso o futuro escritor pôde iniciar
suas primeiras leituras: as histórias em quadrinhos. Diz um de seus resumos
biográficos: “O pai o pôs na escola com cinco anos. E cobrava a leitura de
dois jornais por dia, porque o menino precisava se preparar para a vida”26.
Tempos depois, ingressou no Externato Henrique Dias, na rua João
Ramalho, onde fez o curso primário.27

Formação religiosa

José Antonio, o avô, era católico fervoroso. Seu filho Domingos, por
exemplo, que a uma bela altura da vida decidiu abandonar o catolicismo e
tornar-se presbiteriano, indignou o velho português. Para contra-atacar, o
goivista analfabeto aprendeu a ler depois dos 70 anos, com o único intuito
de discutir passagens do Livro com o novo protestante da família.
João Antônio Ferreira, o pai, havia aprendido português lendo a
Bíblia, para depois se transformar num grande leitor, inclusive de livros
religiosos. Adulto, já não pertencia a nenhuma Igreja. Possuía, entretanto,

24 Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada: João Antônio, São Paulo, Abril Cultural, 1980.
25 Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 0/09/1960.
26 Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: O Escritor Brasileiro Hoje, Lisboa, Imprensa

Nacional Casa da Moeda, Lisboa, , e São Paulo, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, s/d. O
texto foi republicado no O Estado de São Paulo, em 14/10/84.
27 Neto, João da Silva Ribeiro – João Antônio, Literatura Comentada, Abril, SP, 1980.
51

um sentimento próprio de religiosidade, assim descrito por seu filho


Virgínio: “A religião, Deus, estava acima de qualquer Igreja”. A família de
Irene, sua esposa, que era religiosa, segundo Virgínio, também tinha idéias
próprias quanto ao tipo de educação religiosa a ser dada aos filhos do casal.
Deveria ser religiosa, sim, mas, antes de tudo, deveria ser educação:
“Minha mãe, insatisfeita com os ensinamentos católicos comuns, e mesmo
nunca tendo ido à escola – com uma visão de 25 anos de comércio atrás do
balcão, a pessoa adquire uma visão diferente do mundo –, minha mãe nos
levava a uma Igreja chamada Christian Science. Nós éramos católicos, eu
era coroinha na Igreja, mas ela nos levava a essa Igreja norte-americana
baseada no livro de uma mulher chamada Mary Bakerard. Nesse livro ela
dividia Deus em sete coisas: a verdade, o amor, etc. Divididas por idade, as
crianças estudavam semanalmente uma parte do Velho Testamento, mas
não como religião, como história, e do Novo Testamento, aí sim como
religião. Segundo a teoria deles, Cristo deixou sem valor todo o Velho
Testamento, e mudou a maneira de pensar, a filosofia”.
Por acreditar na mediunidade, João Antônio, pai, voltou-se ao
espiritismo. Mas não freqüentava centros, ou terreiros de Umbanda, lia.
Conta Virgínio: “Meu pai era um grande leitor de coisas religosas. (...) A
educação espiritual que recebemos do meu pai não era dogmática.
Procurava mudar a maneira da gente pensar. Ele não aceitava a condição de
pecado da Igreja Católica. Nós tínhamos toda capacidade de julgar o
pecado, nós já sabíamos que é preciso perdoar, que deve ajudar, que não
deve se submeter pelo medo, que é preciso ser firme. Quem teve esse tipo
de educação tem a capacidade de ver que está fazendo uma coisa errada. O
João não era muitos dessas idéias, o meu pai era dessa forma. Conheceu
Chico Xavier em pessoa”.
Quando Virgínio diz que o escritor João Antônio “não era muito
dessas idéias”, ao que parece, está querendo dizer é que seu irmão não
52

pensava as relações humanas em termos religiosos. Porém, sua futura


concepção pluralista do universo religioso, até certo ponto apreendido
como uma manifestação cultural, e/ou psicológica, mais do que metafísica,
tem origem na concepção plural que seu pai tinha do fenômeno religioso e
em sua relação com o espiritismo, bem como no conteúdo educacional que
a mãe valorizava em relação a tais assuntos.

Vila Pompéia

Entre 1943 e 1944, o pai de João Antônio decidiu mudar o rumo de


sua vida. O bom emprego no frigorífico Armour, como chefe do
departamento de custos, permitiu-lhe adquirir um estabelecimento
comercial na Vila Pompéia, um armazém de secos e molhados. Este ficava
na rua Caiovás, atrás do campo do Palmeiras, num beco que ia dar num
riacho por onde hoje passa a avenida Sumaré.
Lá, em outubro de 1946, nasce o segundo e último filho do casal,
único irmão do escritor, Virgínio de Andrade Ferreira. Lá, os dois meninos,
mas sobretudo o mais velho, tiveram o primeiro contato direto não com a
pobreza orgulhosa do subúrbio quase rural, mas com a miséria da cidade. O
beco era um lugar onde as pessoas conseguiam durante o dia o dinheiro
para alimentar a família à noite. O próprio pai apelidou o local de Beco da
Onça, apelido que, explicado pelo filho Virgínio, dá uma idéia do que
estava querendo dizer: “Buraco onde quem não come é comido”. Mas o
apelido “oficial” do lugar era Navio Negreiro, por lá estarem concentradas
muitas famílias compostas por ex-escravos e seus descendentes.
Conta João Antônio: “O mais querido local da minha infância foi
também o mais miserável, onde vivi de 1943 a 1947 (...), num gueto onde
só havia gente desprofissionalizada ou de profissões muito humildes, como
53

catadores de papel, sapateiros, homens que trabalhavam num frigorífico e


na Estrada de Ferro Sorocabana”28. Foi este “um dos lugares mais alegres
que conheci [o Beco da Onça], apesar de toda aquela miséria, precariedade,
no meio de gente boa, é claro, mas que estava a um passo da
marginalidade”.29
As lembranças que o escritor tinha desse período encontram-se
reunidas em seu livro Lambões da Caçarola, onde faz um relato do Brasil
dos tempos do Estado Novo, sob a ótica dos trabalhadores.
“Pé no chão, barriga de fora, nariz moncoso, cabeça despenteada,
caras de fome, lombrigada. Aqui no Beco da Onça a molecada negra passa
o dia debaixo do sol, na rua de terra. Remexe, apronta e perturba com
carrinho de rolemã, papagaio, bola de vidro, bolão. (...) Não havendo troços
de brincar, a atração é com algum gato ou cachorro. Os moleques, então, se
espojam na terra fofa da beirada da rua. (...) O Beco da Onça é getulista,
negro, negróide, mestiço, emigrante, cafuso, mameluco, migrante, pobre,
operário, corintiano roxo [o escritor era corintiano] e paulista da gema”.30
E dois episódios lá acontecidos, ambos relativos à dura percepção da
fome, viriam a merecer descrições pontuais. O primeiro: “Encostou um
caminhão das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo para a entrega do
açúcar em pacotes de meia arroba. Azuis, de faixa vermelha, sete quilos e
meio. Os homens taludos empilhavam uns quatro daqueles nas costas, iam
ligeiros, ganhando ritmo, o movimento corridinho. Traquejo. Bíceps
enormes, tríceps enormes, cinturas finas, canelas finas de sabiá. Do
caminhão à pilha de pacotes do estrado da vendola do velho. Uns quinze
metros, se tanto.
Vai que um pacote no ombro do homem sofre um furo, o açúcar

28 Steen,Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.


29 Entrevista a Nilo Sclazo, Lourenço Dantas Mota, Waldecy Tenório e Teresa Odonto, publicada em
O Estado de São Paulo, 13/02/83.
30 Antônio, João – Lambões da Caçarola, Porto Alegre, LP&M, 1977.
54

escorre do caminhão à pilha, estira um fino, fininho de linha branca


pintando um rastro, carreirinha na terra. A molecada esfomeada se agacha,
quase se deita. E, rápida, mete a língua naquilo, raspando o chão, nariz
ranhento.
Eu não vou esquecer mais. Ele [aqui o escritor refere-se ao pai] usará a
cena como porrada viva e exemplo. Quando eu torcer o nariz, não querendo
comer”.
E o segundo:
“O fio de açúcar na terra não foi nada. Pior, o sanduíche.
Mamãe fez um, de mortadela, cortada na faca. Eu rondava por perto
azucrinando. E ela, para se ver livre, me deu, com um xingamento leve.
— Desguia, tralha!
Vou comer na porta da venda. Vou me sentar no degrau da estrada.
Olhar a rua, os caminhões carregados de areia passarem. Será bom. Vem
um moleque, marrom de pó, chispando. Rápido e, de passagem, me patola.
Já gadanhou para a sua boca o pão com mortadela. Não dá nem para piar. O
bicho voava. Ventava nos cambitos, já se enfiando para o cotovelo da rua,
dobrando no rumo do Rio Aimberé. E se esquinizou”.31
Embora, em ambos os episódios, esteja subentendida a melhor
situação da família Ferreira em relação aos demais moradores do beco, fica
claro que o contato com a pobreza crua do lugar, com sua “gente que só
come carne de galinha aos domingos”, foi impressionante.
Ele dali se lembra também dos blackouts comandados pelo governo,
dos retratos de Getúlio por todos os cantos, das histórias dos pracinhas no
front europeu, das fichas cor-de-rosa de racionamento dos mantimentos e
produtos fundamentais (óleo, açúcar, querosene, etc), e da carestia. E do
trabalho que o pai tinha como dono de armazém, carregando e
descarregando caminhões, sacos de carvão, cereais, batatas, sobretudo para
31 Idem.
55

um homem muito magro, como ele, cuja saúde, naquela época, era
debilitada por um problema digestivo crônico, provocado por uma má
formação em sua vesícula.
O filho primogênito, logicamente, era chamado a ajudar, naquele
início dos anos 40: “Faço viagens ao Mercado Municipal. Apanhar
mercadorias nas beiradas do Tamanduateí. Corre-corre lutado atrás do
balcão. Enlitro óleo de cozinha, querosene, ensaco carvão, ajudando os
velhos”.
Pouco se sabe das amizades de João Antônio nessa época. Em sua
obra, há poucas informações a respeito. Algumas referências contidas em
sua correspondência, entretanto, ajudam a compor uma imagem dos amigos
que fazia, e das experiências que com eles vivia. Por exemplo: “Paulo,
Mário e Quim. Paulo tinha olhos azuis e muito me considerava, que eu
deslizava bem com o meu patineti e dava melhor ainda para uma roda de
capoeiras. (Um dia, eu vou lhe contar que na minha infância, na rua
Caiovás, Vila Pompéia, eu joguei capoeira; e que apanhava em casa porque
sempre voltava rasgado). Mário tinha a testa enorme, bem menor que o
meu coração entretanto. Quim era negro, bêbado, ex-expedicionário, bem
mais velho que eu. Amigou-se com Boneca e por ela bebeu, bebeu, bebeu,
bebeu... Bebeu todo o seu dinheiro que em 1945 eram dezessete contos de
réis, recebidos como prêmio das Forças Expedicionárias. E o meu Quim
que não morreu na Itália, morreu na Vicentina (hospital de bêbados já com
adiantamento de cólera-tremens), inchado, feio, com os olhos raiados de
sangue.
Encabulei, entristeci. Quim me fazia falta e ao meu mundo de menino.
Mundo de piratas, de estilingues e de meninas. Todas fatais me
estraçalhando...”.32
Mas, além desses três primeiros, havia dona Amélia, e seu Augusto,
32 Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 24/08/1960.
56

maquinista de trem da Barra Funda, de quem João Antônio, ou Joãozinho,


gostava muito, e que viria a casar com a mulata Boneca, a negra mais
bonita das redondezas, que antes havia destroçado os corações de Quim e
Dentinho, ambos fregueses do bar; havia os homens da sacaria, com quem
o futuro escritor jogava trilha à noite; e o vizinho “burruga, o transmontano
Joaquim Moço”, trabalhador durante as madrugadas nas matanças de bois
nas câmaras frias do Tendal da Lapa. Estes eram os “personagens” com
quem o futuro escritor convivia desde cedo.
A origem e a vida extremamente humildes dos pais, o severo senso de
justiça que o pai, aos trancos e barrancos, lhe inculcava, as vizinhanças
miseráveis por onde a família Ferreira ia passando, unida e, na medida do
possível, feliz, deram a João Antônio um sentimento positivo da pobreza.
Foi nos olhos de gente pobre que a vida o fez enxergar o amor, a confiança,
a honestidade, a bondade. Não por acaso ele dizia: “Sinto, claramente sinto,
uma irrefreável ternura pelo homem do povo, pelo pé rapado, pelo
vagabundo, pelo esmoleiro, pelos feios”.33 Nunca é demais enfatizar o
quanto sua literatura está impregnada por esta ética positiva da pobreza.
De acordo com suas descrições, a vida em Vila Pompéia, apesar de
todas as carências materiais, parecia mesmo ser alegre. A vizinhança com o
estádio do antigo Palestra Itália, então recém-rebatizado como Palmeiras,
talvez devido, durante aquele período de guerra, a uma “Confusa rejeição
aos japoneses, alemães e italianos”, não impediu a paixão do menino João
Antônio pelo Coríntians. “Viajo. A gente acompanha o Coríntians.
Ansiosos, conluiados, na aflição e sem dinheiro.
Tocávamos ao Pacaembu. E, olhem, era uma estirada. Íamos a pé,
varávamos a Pompéia, pegávamos as Perdizes, saíamos no Pacaembu.
Levávamos merenda, que não tínhamos com que comprar sanduíche ou
refrigerante. Uns, por fidelidade ou paixão, mais do que por posse ou
33 Idem, de 31/10/1961.
57

capricho, metiam camisetas brancas-e-pretas, como as da torcida


uniformizada, bacana. Onde as mães esticaram dinheiro, apertaram
economias para a compra daquilo, Deus sabe. Aquelas duas cores
deslumbravam e endoideciam a gente. A primeira vez que a molecadinha
do Beco da Onça desceu a Santos foi atrás do Coríntians. Contra o time de
Vila Belmiro. Até nossas mães acompanharam a gente”.34
Também foi nessa época que João Antônio, pela primeira vez
freqüentou e se deixou encantar pelo cinema. Um dos mais freqüentados
era o Cine Glamour, que ficava depois do Largo de Osasco e era vizinho de
um salão de sinuca e de uma gafieira chamada “Briga de Corvo”: “Os
seriados do Zorro, do Flash Gordon, a pirataria de Errol Flynn, os bangue-
bangues de Randolf Scott e os taitis enluarados de Dorothy Lamour faziam
as excelências das tardes dos domingos da gente. (...) Ninguém entendia
nada de golpes de câmara, efeitos de estilo, tetos-baixos ou travellings. Juro
que não.
(...)
Lá dentro do Glamour, gritaria tempo todo, a participação suspirada,
conversada e, nos filmes românticos com Lana Turner e Merle Oberon, ao
culminar, ansiada, a cena do beijo na boca. Gritávamos em coro:
— Gol!
As poltronas de madeira estalavam com o nosso levanta-e-senta
alvoroçado, infernizando os lanterninhas alertas (...) E, naqueles escuros, lá
nos fundos, casais de adolescentes aproveitavam para o namoro esfregado.
Bolina.
(...)
Semana toda esperávamos os seriados da matinê. Piratas e corsários,
mercenários árabes, espadachins, bandido, mocinho e mocinha, falsários do
espaço, pistoleiros infalíveis que só mais tarde, quando vim a me entender,
34 Antônio, João – Lambões da Caçarola, Porto Alegre, L,P&M, 1977.
58

senti como pistoleiros do ocaso, do entardecer. Caídos, cansados, feito


martelo sem cabo. Cinzentos.
Havia as mulheres na tela tão bonitas quanto vagas. Antes que o meu
coração maliciasse, macunaímico, e pendesse para Michele Morgan, a de
olhos sombreados, sestrosa e classuda, que ombros e que olhos... houve
outras. Além de Dorothy Lamour e de Merle Oberon, houve outras. Greta,
claro, Greta Garbo. Havia Bette Davis, Lauren Bacall e, noutra dimensão e
força, aquela mulher, a que trazia uma enciclopédia da vida na cara,
silenciosamente, Ingrid Bergman”.35
“Aos dez anos conhecia metade dos cinemas paulistas. (...) Amei, por
essa época, os piratas de lenço verde brilhante à cabeça. Amei”.36
E uma importante lembrança que o escritor tinha do pai também
estava ligada ao cinema: “Na Rua Guaicurus, antes do tendal, um cinema
maneiro, a gente atingia rápido pegando o bonde da Lapa no Largo da
Pompéia. Bem. Lá fomos os dois, um dia, àquela sala que cheirava limpeza,
toda cheia de frisos dourados. Levava um filme italiano e meu pai, calado.
Pouca trela me dava.
Vieram na tela, em preto-e-branco marcado, o homem magro de
chapéu e seu filho, molecote de calças curtas. Era história carregada,
desemprego ou cata de emprego que fracassa. Eu pouco entendia a trama
italiana, mal e mal podia seguir as legendas. Sabia, no fundo, haver
sofrimento pesado. E misterioso para mim. (...)
Acenderam-se as luzes, olhei o pai e dei com algo sequer imaginado.
Terminado o filme, aquele macho ali chorando. Não vou me esquecer,
muita água já correu e não esqueci. Aquele homem eu nunca vira chorar.
Era Ladrões de Bicicleta”.37

35 Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o Inferno,
São Paulo, Scipione, 1991.
36 Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/1960.
37 Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o Inferno,
59

Um espírito proverbial

A essa altura da vida, a “primeira dentição literária” de João Antônio


estava para se formar, e seu primeiro contato com o mundo da
malandragem também estava prestes a aparecer. Em ambos os
acontecimentos, a presença do pai é fundamental. Antes, entretanto, de
mergulhar nesses dois assuntos centrais da juventude do escritor, vale a
pena fazer um breve parêntese para que se possa, da melhor maneira
possível, tentar entender um pouco o temperamento de João Antônio
Ferreira, pai, e sua relação com o filho mais velho.
Alguma coisa já foi dita sobre sua infância, cheia de altos e baixos; da
estabilidade doméstica na França, onde também tinha acesso a ensino
público de boa qualidade, passando pela dura vida de “cabreiro” na volta
para Portugal, tempos de pouca comida e de nenhum estudo, e de sua
chegada ao Brasil, sem falar a língua e sendo discriminado pela criançada
de Presidente Altino. E também sobre sua enorme capacidade de superação
das dificuldades, que o elevou a um cargo de responsabilidade no
frigorífico em que trabalhava.
Um traço sempre importante é seu ar reservado. Falava pouco e era
contido, para muitos tímido. Mas amava a música, e tinha nela seu principal
espaço de liberdade e de expansão. Diz João Antônio de seu pai: “Vivo,
falador, atiçado. Isso, com o bandolim contra o peito. Fora das rodas do
chorinho, descaía, amuava, para dentro de si. Então, sério como um
sapato”.38
Era amante também de orquídeas, que conhecia e hibridava, sabendo-
lhes os nomes latinos. “Aquele homem tinha uma chave escondida com que
fazia a seleção das coisas, amorosamente. Onde diabo teria aprendido

São Paulo, Scipione, 1991..


38 Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982.
60

aquilo? Fino, acima daqueles ambientes. Dava também para o cultivo de


orquídeas. Desconcertava-me. Eu lhe percebia a fineza, a categoria se
esbatendo no meio daquelas brutalidades. Levava na ponta da língua alguns
nomes em latim. Eu me lembro – onde se escrevia Helvetia, ele
pronunciava com c. Onde teria aprendido? Cuidava que cuidava de
hibridações e, muita vez, viajou em grupo à Serra do Mar, para caçar
parasitas. Difícil usar a palavra orquídea. Um dia, me explicou que elas
parasitavam os troncos de árvores enormes da serra. E a que eu não podia ir
devido à mata cerrada, ao caminho duro, às pragas e aos enxames de
mosquitos bravos”.39
“Atarracado, mãos quadradas e grossas. Mas de onde haveria
arrancado aquela sensibilidade?”40
“Meu pai é um chorão e seresteiro. Toca todos os instrumentos
musicais de corda, inclusive alguns renascentistas. É um homem raro, na
medida em que consegue misturar uma rudeza de trabalhador braçal, que só
encontrei nos contos e romances de Miguel Torga, a uma sofisticação de
espírito de homens que são capazes de hibridar orquídeas, conhecendo
todos os seus nomes em latim. É desconcertante.”41
“E não perdia a linha, homem de poucas falas. Difícil alguém
desentranhar ou pilhar, ao acaso, ainda que de passagem, opinião sua.
Quem o buscasse, atirando um lero para colher coisa concreta, sairia de
mãos abanando. Tempo e tempo, ouvia quieto, medidor. Uma ruga na testa
e ironia desconfiada, parada nos olhos. No canto da boca fechada. Prosa
não interessando, se aquietava mais. Aquela conversa fiada o punha
abespinhado. Ou calmo? Sei lá. Parecia mais explodir por dentro. Avançava
e não abria a guarda. Aí, o freguês vacilava, pejado, tropeçando, perdia a
margem da manobra, vacilão. Desencorajado, desguiava. Papai, sem

39 Idem.
40 Idem.
41 Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.
61

nenhuma palavra, plantado, teimosamente. Mas em posição de cobrança.


Que marra! E ninguém lhe aventurava uma liberdade. Firme,
atarracado, boca presa. Nos romances de Torga, mais tarde, e só com os
pedreiros de Vasco Pratolini, eu saberia de gente com igual espessura de
munheca. E de caráter assim.”42
Ainda segundo o filho escritor, não se pode dizer que não estivesse
adaptado ao país. “Mais brasileiro que eu. Que vinte fedelhos da minha
marca. Ganhou, em menino, o gosto pelo chorinho e pelas serestas e no
caminho de seus anos todos, com sacrifício, fiel ao bandolim, ao
cavaquinho, ao violão, às rodas dos chorões suburbanos. Se a seleção
jogava contra Portugal, torcia, abespinhado e incandescente, pelo Brasil.
Portugal ganhava, ele emburrava; se puxavam conversa, brigava. Na casa
dos quarenta, ia gramando ruço na vida, ele e mamãe. O transmontano aqui
chegado, uma mão na frente e outra atrás, aos trinta e poucos dias de idade,
nascido em águas portuguesas de Macedo de Cavalheiros, trabalhador das
padarias, empurrando vagonetas nos aterros e nos portos de areia do Tietê,
operário de frigorífico, tendo depois com economias estabelecido negócio
miúdo em secos e molhados.”43
Era também um homem orgulhoso, que não se rendia facilmente à
atração dos poderosos. Foi o que demonstrou quando Getúlio visitou São
Paulo, durante uma Feira das Nações Unidas. Conta João Antônio que toda
a população do Beco da Onça foi ver o grande homem, menos seu pai:
“Atolado de trabalho na vendinha no começo da rua Caiovás. Não amarrou
a cara, mas disse que não ia. Aquilo nos valeu como um desprendimento
esparramado. Então, alguém poderia perder a oportunidade de ver Getúlio?
Um cara assim estava bem acima da maioria. Ainda nos encabulou:

42 Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982..
43 Idem.
62

— Eu vejo ele na moedinha”.44


Mas como esse homem, tão sofrido e batalhador, tão orgulhoso, que se
expandia com o instrumento ao peito, mas era silencioso no geral, se
comunicava com seus familiares (vale lembrar que D. Nair, mãe de Irene e,
portanto, sua sogra, morava em sua casa)?
João Antônio dá uma dica sobre como o pai se comportava em relação
às mulheres: “ [elas] Queimavam tempo mexericando, pinimbavam
intrigas, engordavam lamúrias, fuxicavam namoricos e fiscalizavam os
desregramentos. Enérgicas no juízo das pessoas que extrapolassem, ainda
que pouco (...) Umas leoas com filhos e netos.
Não lhes dava trela, silencioso e cordato. Por dentro, ia se moendo,
aporrinhado com aquelas misérias. De comum, perpassado, aturava o
falatório. Fazia não ouvir. Raro em raro, estourava. Aí, se entornava de todo
e disparava com um:
— Santa Ignorância!”.45
Nem tudo era espinho, porém: “Ainda assim se entendiam, no
comprimento daqueles anos todos”.46
Para com os filhos, no entanto, João Antônio Ferreira tinha uma
atitude bem mais construtiva. Virgínio, o irmão do escritor João Antônio,
dá seu depoimento: “Meu pai tinha um relacionamento com a gente em que
tudo era ensinamento, tudo o que ele fazia conosco era proposital, para que
aprendêssemos alguma coisa. Às vezes deixava de ensinar que era para
descobrirmos, deixava inclusive de falar. Falava até a metade, por
parábolas”.
E o próprio João Antônio completa: “De comum, seu ensino me batia

44 Antônio, João – Lambões da Caçarola, Porto Alegre, L,P&M, 1977.


45 Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982..
46 Idem.
63

de modo curto e pontudo”.47


A referência a parábolas, e a um ensino de “modo curto e pontudo” é
facilmente comprovável, seja lendo os textos de João Antônio, ou os
resumos biográficos sobre ele já feitos, seja conversando com seus amigos
e familiares. Aquele homem sempre lembrado por ser silencioso, é também
sempre lembrado por algumas de suas frases, que marcavam os ouvintes
por um motivo ou por outro. Era, em resumo, um espírito proverbial, um
temperamento contido na fala, mas que quando falava parecia assumir uma
autoridade maior, de sabedoria profunda. Os exemplos são inúmeros, e
vários ainda aparecerão em seu devido momento, ao longo deste capítulo
biográfico. Vão, aqui, apenas alguns, contados pelo filho escritor:
“Nesse tanto, contavam-se vantagens [sobre mulheres], arrotavam-se
grandezas.
O pai ouve. Nada de chegar sua vez de dizer.
Então, um dia, se deu aquilo.
Falaram. Refalaram. Até que algum, do mais afoito, vem que apalpa e
lhe toma o pulso. Vem outro. Mais um atiça. Insistem, rebeliscam, a patota
cobra-lhe uma opinião. Próprio nos jeitos, papai olha o bando. E fala
devagar, diz baixo. Larga para os sacanetas:
— O que dói não é dar dinheiro às putas. É elas nos chamarem de meu
bem.
As risadas pararam nas caras. Uns tipos bobeavam, apanhados. Mas a
prosa, aí encabulou.
Ou noutras vezes, chamado a falar, despejava rente, como quem não
quisesse nada. Um machucho que não se importava com o que pudessem
pensar. Entendessem ou não. E, tanto se lhe dava se o tomariam por tímido
ou babaquara. Debulhava mais para ele do que para os outros. Estava
limpo. Alguma coisa íntima, arranhando lá dentro, considerada muito
47 Idem.
64

tempo antes de lhe vir à boca, represada nas noites, remoída, remexida, ida
e vinda. Pensada e tamanha. Uma consideração:
— Mulher é imprescindível”.48
Ou ainda: “Meu pai tem a frase seca, que mal e mal vou ao fundo:
— A idade faz velhos, não faz sábios”.49
E mais uma sobre mulheres: “As mulheres são criaturas do sexo
feminino”.50
Ou, por fim: “Desses ensinos, outro que me ficou, bulindo, cedo – um
homem que não sabe brincar, vai morto no mundo”.51
Ele não tinha, a que se saiba, preferência por um ou outro filho. Estes
é que tinham, isto sim, uma diferença de dez anos de idade, o que viria a
influenciar a relação deles com o pai. Conta Virgínio que: “Meu irmão
conseguiu conviver com uma parte do meu pai que eu não consegui. Veja,
esse período de convivência [entre pai e primogênito] durou poucos anos,
até 1951, mais ou menos, quando o João tinha uns 14 anos. Eu depois
convivia com o meu pai mais tempo, mas não entendia certas coisas que o
João entendia, coisas da vida. Meu pai não falava certos assuntos comigo
que falava com ele, por causa da nossa diferença de idade”.
Mesmo com esse contato relativamente mais profundo, que começou
na Vila Pompéia e durou até 1951, a figura do pai é contraditória na vida do
filho mais velho, assumindo ora o contorno de um severo preceptor,
moralista e até violento, ora o homem das sensibilidades, amigo das artes e
das coisas delicadas.

48 Idem.
49 Idem.
50 Idem.
51 Idem.
65

Primeira incursão na “malandragem”

Curiosamente, a primeira incursão do futuro escritor João Antônio nas


franjas da malandragem se dá pelas mãos de seu próprio pai. É nessa época,
com aproximadamente 8 anos, que o Joãozinho começa a acompanhá-lo
nas rodas de choro, os chorões.
“Que me lembre” – conta João Antônio –, “freqüentei de cedo, rodas
de chorões e seresteiros, levado pela mão de meu pai. O velho sequer tinha
escola primária completa. Mas tocava por música. Banjo, violão,
cavaquinho, bandolim e os instrumentos de corda que conheço. Todos”.52
“Vou quieto, sondando. Corremos, eu e papai, as rodas de Presidente
Altino, Osasco, Vila Leopoldina, Lapa e nos trens caxinguentos e
estropiados da Sorocabana viajamos a Jandira e Itapevi. Ou tocamos para o
outro lado da cidade, para a Luz e para Santana. Reviramos os bairros, os
dois nos damos as mãos nas travessias das ruas, andejos.”53
Mas as peregrinações rumo ao desabafo da música iam ainda mais
longe: “Será difícil esquecer que meu pai me trazia ao Rio, quando vinha
visitar Garoto, Aníbal Augusto Sardinha, tocando no Cassino da Urca, nas
rádios ou em cantões outros e noturnos, eu não sabia onde, ali pelos meus
sete anos. Eu pousava em Nilópolis, em casa de Tia Zulma, Zulmira,
magrinha, de olhos contentes e que girava excelente leveza num salão de
danças e era ciumosa do marido espanhol, um Manoel, que jurava, era um
sonso. (...) Ou parava na Favela da Cachoeirinha, boca pesada já então, lá
com o tio-avô de cabelos brancos, embora moço, Otacílio”.54

52 Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralho”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
53 Idem.
54 No texto “Pequena especulação em torno de três momentos do poeta da vila”, in O Estado de São

Paulo, SP, 01/05/83, que funde memórias dos primeiros contatos do escritor com o Rio de Janeiro e
uma análise das fases da carreira de Noel Rosa, João Antônio apresenta mais recordações dessas
primeiras viagens ao Rio: “Uma vez que não parávamos, andejando de trem por aí, chegamos até
Maxambomba, pela Leopoldina, longe pra danar, e visitamos a parenta baiana Ercília [não foi possível
saber o grau de parentesco do escritor com esta pessoa], velhusca, de lenço à cabeça e que vendia mel
66

Nada mais natural que, de tanto ouvir e de tanto gostar, o menino João
Antônio começasse a sentir-se desafiado a tocar.
“Aprendo chorinho sem tocar. (...) Ali pelos nove anos, pinicava
rápido, jeitoso, o Apanhei-te, Cavaquinho e uns pedaços avulsos da Marcha
Turca.”55
E não apenas a música fascinava o menino, mas também as pessoas
daqueles ambientes e seus códigos todos especiais. Ele se torna, pouco a
pouco, uma espécie de mascote dos grupos: “Como não falte aos encontros,
passo a conhecido. E faço parte. Claro que não toco, mas sou da turma. Pra
lá e pra cá, de tanto ir e vir, os homens brincam comigo e nos temos
amizade. (...) Dão de presente a meu pai. Uma miniatura de chupeta num
laço de fita vermelha, que o velho pendura na cravelha do bandolim. A
chupeta ao bandolim como eu ligado a meu pai. Todos sentem e ninguém
fala”.56
O episódio acima transcrito introduz, singelamente, a ambigüidade
dos ambientes em que tinham lugar os chorões. De um lado, as rodas de
choro costumavam ocorrer num clima de razoável decência. Pixinguinha
mesmo, do alto de sua autoridade no assunto, dizia sobre isso: “O choro
tinha mais prestígio naquele tempo. O samba, você sabe, era mais cantado

de abelhas. De pequeno, andando com meu avô Virgínio a atravessar a cidade de bonde e de bonde
varar aquela colméia que porejava gentes, cheiros e sons, a Galeria Cruzeiro, hoje Edifício Avenida
Central (...) Com esse Virgínio, avô materno, eu vi teatro, cinema, circo, favelas, subúrbios, cidades do
Estado do Rio e o filme “A Rua do Delfim Verde”, no Metro Copacabana. E o mar, pela primeira vez,
claro. (...) Nada fácil esquecer o tio mais alto, o ainda tio-avô Rubens, mulherengo, pobre porém
caprichoso, vestido todo de branco, impertigado, namorador, impenitente e alegre como poucos, a me
ensinar nos bondes a olhar para as pernas das mulheres e também a lhes oferecer o lugar; aquele tio
Rubens que, de predestinado a novas mulheres, ficou viúvo duas vezes. Difícil será esquecer as
bolinhas de gude e o jogo da porrinha aprendido com o pessoal da Favela da Cachoeirinha, enquanto se
empinava pipa ou se ia levar os restos de comida aos porcos, que naqueles morros criavam-se, como se
criavam galinhas, cabritos, patos, marrecos. E passarinho, quanto. No barraco do tio Otacílio, criavam-
se, inda mais, filhos dos outros. Que assim era o coração do mulato de cabelos brancos, contínuo de um
Ministério lá no centro da cidade. Descia no Lins, tocava a pé para o barraco e, chegando, me salvava:
‘O, batuta!’ (...) Mas assim, de lá pra cá e retornando, dos cinco aos dezessete anos, meu coração ainda
pequeno, andou de trem, e muito, de São Paulo ao Rio, ida e volta. Dentro das duas cidades, ele viajou
nos trens miseráveis e incertos de subúrbios pelas velhas Central do Brasil e Sorocabana. Sempre na
Segunda classe, com ou sem as mãos dadas aos mais velhos”.
55 Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralho”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982.
56 Idem.
67

nos terreiros, pelas pessoas muito humildes. Se havia uma festa, o choro era
tocado na sala de visitas e o samba, só no quintal, para os empregados”. 57
Porém, a condição de mascote, a brincadeira com a chupeta, parecem
indicar que a presença de crianças no ambiente, como ouvintes fiéis, não
era tão corriqueira e usual. Afinal, embora os ambientes das rodas de choro
não fossem propriamente os da malandragem “profissional” – pois essas
rodas costumavam ocorrer em casas particulares e não em salões de sinuca,
no jóquei ou em bordéis –, as músicas e as figuras, mais ou menos famosas,
porém cheias de estilo e filosofia popular, e a bebida, claro, compunham
uma atmosfera em boa dose malandra, talvez até, muitas vezes,
involuntariamente. Irene, esposa e mãe zelosa, “enérgica no juízo das
pessoas que extrapolassem”, devia consentir nas idas seu primogênito com
alguma hesitação. Pixinguinha falava dos chorões dos anos 20, e agora o
Brasil já estava à beira da década de 50.
As descrições que João Antônio deixou do ambiente dos chorões
parecem indicar realmente uma atmosfera ambivalente, entre a segurança
do lar e o círculo da malandragem: “Até parece família, na aparência, a
companheiragem que segue nas rodas. (...) Grupinhos se conluiam dentro
do grupo. Sinais convencionados e falas cifradas surgem e funcionam
criando combinações, habilidades. Há derrubadas que se armam aos
poucos, calibram-se com estratégia manhosa, marotamente”.58
E mesmo a relação de um compositor com seu choro, e de ambos com
os companheiros, se parece com um jogo sutil, cheios de velações: “Na
derrubada do choro, só o bom fica de pé. Na derrubada do choro, de duas
você passa a desconfiar. Quando alguém lhe diz: ‘deixa isso comigo’.
Quando alguém lhe diz: ‘este cachorro não morde’. Você aprende. Quem
corre, cansa. A derrubada do choro faz com que, só depois dos vinte e

57Matos, Cláudia – Acertei no Milhar, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 27.
58Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralho”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
68

cinco, trinta anos um nome de chorão comece a correr as rodas e se


imponha considerado, temido, conhecido de longe. Solista, bandolim,
cavaquinho ou sopro são, em geral, os compositores. E guardam feito ouro,
represando meses, uma composição nova. Trabalham, gramam em silêncio,
ensaiam longamente, em exercício solitário. Não mostram a niguém, nem à
mulher. Trancam-se num quarto, se encafuam. Que ninguém os ouça e não
os roube. Soltarão a música mais tarde. Dominada, acabada, todo o traquejo
finalizado. Quando se sentirem os melhores intérpretes de si mesmos e
dominem os acompanhamentos, os improvisos, certos de que serão
imperdíveis e de que ninguém os baterá naquelas rodas de espertos [grifo
meu], rápidos e afiados”.59
A importância daquele período, das pessoas que conheceu nas rodas,
da estima por seu ambiente artístico e descontraído marcou-o
profundamente, e marcaria também sua literatura. É um ambiente próximo
a esse, ainda que menos romantizado, que João Antônio, um pouco mais
velho, a partir dos quinze ou dezesseis anos, reencontrará nos salões de
sinuca, em outras “rodas de espertos”.
Mas, na época, o curso dos acontecimentos não favoreceu sua ligação
com a malandragem e com a música. Sua mãe não aprovava a idéia.
“A mãe, desafinada. O pai, musical de todo”.60
“Mamãe, implicada, encalistrava, mas quieta. Cautelosa, zelosa, por
perto campanando. Forte.
Para ela, o mundo dos chorões e dos cantores era a vida na farra.
Eu não levasse o vidão das rodas de choros e serestas, perdendo-me na
boêmia, nas bebidas, sapecando-me de mulheres, artes, maturutagens.
Extravagância antes do tempo. E escondia-me o bandolim. Tão, assim, o
velho saía para o trabalho, encafuava o instrumento longe do meu alcance.

59 Idem.
60 Idem.
69

Que me entretivesse com outra coisa”.61


A familiaridade do pai com o mundo da música, e a introdução do
primogênito nesse ambiente vai gerar um conflito surdo dentro da família,
uma vez que a mãe do escritor combatia com todas as forças a atração de
seu filho pelo choro. Ela, como era comum naquele tempo, via a música
como sinônimo de malandragem e descompromisso.
“Não toco no correr da semana. Nas tardes e noites de folga, sigo
papai. Estou numa prensa, entalado e bem. O pai me quer enlaçando o
instrumento, a mãe me esconde o bandolim.
Boca presa, boca de mocó. Não entregarei mamãe. Que, se o pai
descobre, haverá frege. Ficará fulo, tiririca, um bicho, desandará.
Guardarei com jeito, até onde eu puder, na tranca e no enruste.
Esconderei dos dois, não desconfiarão. A ciumada da mãe e o ensino do
velho não se trombariam. Mas a minha vida, aos nove anos, assim é um
nó”.62
Enquanto o conflito se prolongava, o menino ia esquecendo o pouco
que sabia do manejo do instrumento, visto que não praticava. João Antônio
conta um episódio dessa época, no qual, aliás, novamente o espírito
proverbial do pai entra em ação:
“Uma tarde, já boca da noite, a gente num alpendre da Lapa-de-cima e
a primeira estrela da tarde espetou aquele céu. Pedi com os olhos para que
ela me desse sorte. Os homens tocaram um número, ganharam uns aplausos
e foram para a sala beber. (...)
Espiei. Não vinha ninguém. Peguei o cavaco e o encostei ao peito.
Dedilhando brando, brando, a palheta para baixo e para cima, apertada nos
dois dedos da mão direita. Brando.
Papai chegando sem que eu o visse, me pilhou, fala curta:

61 Idem.
62 Idem.
70

— Ah, gosta de tocar.


Um frio nos joelhos de fora, que a calça curta não cobria. Pousei o
bandolim, num arrepio. (...) Ele teria percebido que não treinara mais a
Marcha Turca e o Apanhei-te Cavaquinho? Que, por último, eu nem relava
no bandolim?
O pai fez uns olhos pretos, miúdos, certeiros.
— É mais difícil ouvir do que tocar”.63
Mas o surdo conflito familiar não foi eterno; teve um vitorioso. João
Antônio se rendeu. Esta é sua versão do desfecho do episódio.
“Corre um tempo em que, naqueles pedaços suburbanos, a mulher não
intervém na andança do marido. Mas finca uma ditadura e impõe o
paradeiro dos filhos. Uma gestapo feminina. Isso, a que depois os autores
preferiram chamar de chauvinismo na mulher.
(...)
Não entregaria a mãe. Para final, os adultos vão, vêm e brigam. Mas
sempre arranjados, no entanto. E se as manobras engripam e derrapam,
sobra um safanão para os pequenos distraídos nas redondezas. Gente
grande é isso.
Então, não pegava no instrumento”.64
Essa resignação, essa capacidade precoce de abrir mão de um desejo
tão forte, em nome da paz doméstica, ao que tudo indica, nasceu de um
temperamento temeroso, bastante sufocado pelas autoridades de pai e
mãe.65 O amor platônico que, passivamente, da platéia das rodas de choro,
manteve durante alguns anos com o cavaquinho, mostra seu poder de
resistência silenciosa. Assim como o pai, João Antônio, criança, era de
poucas falas. “Ninguém dava nada pelo João” – conta o irmão Virgínio, –

63 Idem.
64 Idem.
65 Conta João Antônio: “Fumei aos 12 anos. Apanhei como boi ladrão. Amei os cigarros”. Trecho de

carta enviada a Ilka Brunhilde Laurito, em 06/10/1960. Apesar da dura repressão familiar, o escritor
tornar-se-ia um fumante inveterado, mantendo uma média de três maços por dia.
71

“ele não falava, só ouvia. João Antônio sentava nos lugares e ficava quieto,
sempre foi assim.”

Sai a música, entra a literatura

O escritor, em outra oportunidade, conta a história de sua abortada


vocação musical. A importante diferença, nessa nova versão do episódio, é
o elo que explicita entre a repressão a seu interesse musical e sua guinada
para a literatura:
“Talvez eu seja uma vocação espúria de escritor. Quem sabe não passe
de um músico frustrado, de quem afastaram os instrumentos na primeira
infância. (...) Ele [o pai] me colocou um instrumento musical na mão logo
aos oito anos de idade: um bandolim. E eu cheguei a tirar de ouvido, sem
saber uma nota, alguns trechos de choros difíceis como o Apanhei-te
Cavaquinho. A minha formação musical é incrível pois, embora seja
urbana, eu convivia com grandes músicos, como Garoto e João
Pernambuco. Possuo ouvido musical apurado, a ponto de fazer observações
profundas em termos de musicalidade. Quem me afastou da música foi o
senso protetor de minha mãe que jamais pôde compreender a viabilidade
prática da profissão musical. Achava ela que os músicos eram, em geral,
dissumuladores e que se valiam do fato musical para acobertar suas farras,
porres, boêmias, e, principalmente, pluralidade de mulheres. E, assim, em
nome de um valor no qual eu nunca acreditei, ou seja, a monogamia – para
ambos os sexos –, acabei desembocando na literatura. Caí na literatura, que
parece ter, após um amor que já dura mais de vinte anos, todos os
ingredientes do risco e da paixão que tanto me fascinam. Mal sabia minha
mãe que se eu me tivesse dedicado à música popular, hoje seria um homem
talvez melhor situado, em termo de status, do que é geralmente o escritor no
72

Brasil”.66
Mas a literatura não era apenas uma alternativa à música.
Era também um espaço onde o ritmo, o tom e a melodia se podiam fazer
presentes. Música e literatura confundiam-se ainda de outra maneira em sua
vida, diz ele: “(...) comecei a descobrir o gosto pela leitura porque meu pai,
por medo que eu lesse coisas que não prestassem, quando me via lendo
alguma coisa, mandava que eu lesse em voz alta; então comecei a perceber
que aquilo tinha um ritmo; comecei a perceber que tinha frases que, por
melhor que eu lesse, não davam aquela melodia, aquele ritmo. Acho que
aprendi literatura muito por ouvido, de tanto ler em voz alta”.67
“O João Antônio chegou a tocar bandolim de ouvido. A primeira parte
da Marcha Turca meu pai disse que ele tirou, eu mesmo nunca vi ele
tocando bandolim, mas era muito afinado o ouvido dele (...). O ouvido do
João era afinadíssimo, inclusive para as palavras – isso é muito importante
– ele gravava muito o que as pessoas falavam”.68
É mais ou menos com doze, treze anos, que João Antônio conhece
Homero Mazarém Brum, um gaúcho de São Sepé que, residente em São
Paulo, publicava um pequeno jornal infanto-juvenil chamado O Crisol. A
redação ficava na Avenida Juriti, em Moema, onde João Antônio chegava
de bicicleta.69

66
Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.
67
Ricciardi, Giovanni – Escrever. Libreria Universitaria de Bari, 1988.
68
Depoimento de Virgínio Gomes Ferreira, colhido em 23/03/99.
69
A mania ambulatória de João Antônio será recorrente em sua vida e obra. A pé, de bicicleta, de
bonde, trem ou ônibus, em São Paulo, no Rio de Janeiro ou em Amsterdã, o deslocamento do escritor
na cidade será sempre intenso, funcionando como parte de seu processo criativo, fonte de inspiração, e
como estratégia de anestesia para as dores sociais e financeiras tal processo se verifica no próprio livro
Malagueta, Perus e Bacanaço (ver cap. 3). Sobre os tempos de bicicleta, ele diz: “Passo, escabriado, a
pedalar na magrela, amorosamente; é a bicicleta Calói, meia-corrida, companheira. Pequena, princesa,
magrela. E vou mais atiçado, alegre como um moleque. Atravesso, de enfiada, capeta, trim-trim, uma
volada chispando nas manhãs de Domingo, varando Vila Anastácio, Lapa, Água-Branca, Perdizes,
Santa Cecília, Centro. Pego a Avenida Nove de Julho, o Paraíso, flecho até Moema. De um lado a outro
da cidade pedalando a minha magrela, chispa, trim-trim, firme envergo o lombo do selim para o cano,
ganhou, são duas horas voadas no selim, a redação do jornalzinho infanto-juvenil, num quartinho dos
fundos de uma casa em Moema, na Avenida Juriti, onde começo a escrever.” Antônio, João – “Paulo
Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro, Record, 1982. E também:
“Ciclo de bicicleta. Um acidente. Outro acidente. Possuí uma de corrida, Bianchi. Custava na época
73

Suas primeiras linhas foram publicadas nos últimos anos da década de


40. “Colaborei escrevendo artiguinhos, coisas; poesia não, nunca. Escrevia
sobre heróis nacionais, como o Henrique Dias, por exemplo, ou escrevia
sobre a árvore. Eram composições infantis. Acho que peguei o gosto pela
palavra escrita daí.”70
Diz ele que não era propriamente escrever a sua tarefa no jornal, mas
sim “exortar, em patriotadas, a elevação das honras de heróis no fragor das
batalhas que nem entendo. Mas imagino.”71
Com todas as óbvias limitações de textos de uma criança de 12 para
13 anos, conta o irmão Virgínio que: “Meu pai leu um conto dele no Crisol,
onde falava de um passeio de bicicleta e, depois de muitos anos, meu pai
admitiu que o conto era tão fotogênico; os lugares que meu pai conhecia tão
bem, tudo andando de carroça, de jipe, de caminhão, os locais que o João
descreveu, meu pai fazia entrega de secos e molhados nessa região, e ele
descreveu no conto o ar batendo no rosto, o sol, os buracos, a grama, e aí
meu pai percebeu que ele tinha uma grande vocação para redator”.
A experiência no Crisol, além de sensibilizá-lo para escrita,
sensibilizou-o para alguns dos primeiros autores favoritos. Era sua primeira
“dentição literária” se formando:
“Assim, tomei gosto por escrever pequenas biografias, crônicas e
dissertações que, uma vez publicadas, me davam livros de presente.
Comecei então a tomar conhecimento da literatura, a ler tudo. Aprendi a
usar dicionário. Lia Monteiro Lobato, Viriato Correia. E outros,
principalmente publicados pela Melhoramentos e pela Brasiliense, e por
uma editora que hoje não existe mais, cujo nome deve ter sido Piratininga e
que publicava os livros de Jerônimo Monteiro. Tomei conhecimento de

três mil cruzeiros. Desisti das bicicletas como já havia desistido dos patinetes.” Trecho de carta a Ilka
Brunhilde Laurito, de 06/10/1960.
70
Ricciardi, Giovanni – Escrever. Libreria Universitaria de Bari, 1988.
71
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
74

muita coisa séria através desses livrinhos. (...) Havia muitos motivos para a
empolgação de uma vocação literária, por exemplo, as figurinhas do Café
Jardim. Saíam álbuns e os garotos os enchiam com figurinhas tiradas do pó
do café. O primeiro álbum que eu enchi era uma história chamada O
Homem das Cavernas, escrita por Monteiro Lobato. Também as figurinhas
do Café Jardim premiavam os colecionadores com livros e assim li um livro
incrível chamado Os Moedeiros Falsos, de André Gide”.72
Entre seus marcos iniciais, consta também o poema “Canção do
Expedicionário”, de Guilherme de Almeida.73
“Disso [da experiência no Crisol] caí para a escrita. Destrambelhei-me
no gosto pelas palavras e que me lembre, havia uma, lá longe, nos tempos
em que lia gibi, minha primeira criação: mononstro. Numa historiada de
Mandrake ou Brucutu havia um monstro de tal modo horripilante, que nem
era monstro só. Era mononstro e nem houve sabedoria que emagrecesse ou
esfriasse a minha nova palavra.
O redator-chefe da revistinha, gaúcho de São Sepé, me premiava as
colaborações com livros, sem dúvida, de qualidades magníficas. Eu podia
imaginar uma porção de coisas boas ou pressentidas como A Vida do
Escravo Tartamudo Esopo, sua inteligência e picardia, a inclinação para a
justiça e a luta pela liberdade. Minha comoção o acompanhou, fabulista,
escravo, trácio ou frígio, até que o jogavam num abismo”. 74
O livro sobre Esopo foi, na verdade, segundo ele próprio, o primeiro
que o futuro escritor leu, e do qual diz o seguinte: “Esse livro teve uma
influência fundamental na minha primeira dentição literária. Eu me
apaixonava pelo escravo frígio e tartamudo que tinha duas obsessões: a
liberdade e a justiça. Era tão brilhante nessa perseguição, que acabou

72
Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.
73
Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: O Ecritor Brasileiro Hoje, Lisboa, Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, e São Paulo, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, s/d.
74
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
75

jogado num abismo. Essa tragicidade da história de Esopo mexeu


fundamentalmente comigo e terminei a leitura apaixonado e revoltado”.75

Vila Jaguara e um novo empreendimento paterno

Em 1951, quando João tinha 14 anos, sua família se muda novamente,


para a Vila Jaguara, onde seu pai havia comprado um segundo armazém.
Virgínio, o segundo filho, então já havia nascido, e tinha nove meses de
idade à época da mudança. De início, tudo corre bem. Até a saúde do pai
melhora, apesar dele começar nessa época a beber bebidas alcoólicas e a
comer comidas mais fortes.
João Antônio, ou Joãozinho, como ainda era chamado, lá ingressou no
colégio Campos Sales, que não era dos melhores, e ficava na rua 12 de
Outubro, na Lapa. Lá estudou português, francês e latim, em seguida inglês,
matemática, geografia, história, geometria, etc. Seu gosto, não por acaso,
inclinou-se para o português. Em matemática, era fraco. Seu pai, que abrira
caminho na vida graças à capacidade de calcular, no início estudava com
ele. Virgílio conta que o pai não admitia que seu irmão tivesse tanta
dificuldade: “Tudo aquilo que os outros aprendem, você é capaz de
aprender. Você pode demorar mais, mas como você não pode repetir de
ano, tem que estudar mais do que os outros”.
Virgínio conta ainda que havia outra zona de conflito entre João
Antônio e o pai, qual seja, o desinteresse do futuro escritor pela vida de
comerciante. O esforçado emigrante, que do nada chegara a uma posição
bem mais confortável na vida, que se educara e se profissionalizara com
muito esforço e pouca ajuda, que mantinha a família com sacrifício mas em
geral numa situação melhor do que as demais famílias da vizinhança, não
75
Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.
76

conseguia aceitar, do filho, o corpo mole demonstrado diante das


oportunidades que a vida estava lhe oferecendo. Ele era dono de seu
próprio negócio, orgulhoso disso, e não admitia que o filho não enxergasse
o valor desse fato.
Em parte por um desdobramento natural de sua prosperidade, em parte
por estar desiludido com o filho, não sentindo-o motivado a dar seqüência a
sua atividade no armazém, foi que João Antônio, pai, decidiu arrendar,
junto com dois sócios, uma pedreira que pertencia ao frigorífico Armour,
perto de Pirituba, num lugar que hoje adotou o nome da empresa,
Cantagalo.

Falência, isolamento familiar e literatura

De início, tudo correu bem na pedreira arrendada pelo pai de João


Antônio. De seus dois sócios, um era amigo, seu Antunes, português que já
havia negociado com pedras, e o outro era alemão, Kurtz, ex-gerente de
uma construtora. Os dois sócios, porém, quiseram crescer rapidamente,
tomando empréstimos junto a bancos. Segundo a família Ferreira, não era
essa a intenção, ou mesmo o estilo, de João Antônio, pai. Entretanto, de
acordo com o contrato social da firma, bastava o aceite de dois dos sócios
para que as resoluções fossem legitimadas e, no caso, os empréstimos
fossem tomados. Com esse dinheiro montaram um silo, importado dos
Estados Unidos, e chegaram a tirar dois mil metros cúbicos de pedra por
dia. A pedreira chegou a ter, nesse período de auge da produção, 122
empregados. Mesmo assim a produção não era suficiente para o pagamento
das dívidas e dos juros. Ou o dinheiro sumia... Os três são obrigados, em
1953, a entregar a pedreira aos credores e estes a vendem à família Corazza.
Assim João Antônio escreve sobre o episódio: “Pula de uma mercearia
77

nos cafundós de Vila Jaguara, chega a sócio de uma pedreira em Pirituba,


tem setenta homens trabalhando e dois sócios safados. Provavelmente
sonhasse, emigrante, com exportação e negócios internacionais, raspando
de perto a riqueza. Inda agora não entendo onde foi buscar cabeça fria que
não enfiou uma bala nos dois”.76
Sua biografia autorizada, vai mais longe, acenando com o motivo de
estranhamentos que se provariam históricos e duradouros entre pai e filho:
“Mas pôde [João Antônio] enxergar [no pai] um defeito que ele, o filho,
superaria totalmente: o de ficar quieto, de não reagir ao ser enganado, como
ocorrera no caso da pedreira da Vila Jaguara. A sociedade o fizera perder
tudo o que havia conseguido no trabalho de vinte anos, obrigando-o a voltar
à condição de quem tinha de começar tudo de novo, numa idade em que já
não se começa tudo de novo”.77
Dois credores, percebendo que João Antônio, pai, fora vítima da má-
administração dos sócios (a quem João Antônio, como se viu, muitas vezes
acusa de roubo), montaram-lhe um estabelecimento comercial na rua
Conselheiro Ribas, em Vila Anastácio, onde poderia voltar a ganhar a vida
e a honrar integralmente seus compromissos. Ele, que nunca dera nome a
nenhum de seus estabelecimentos, instou os proprietários, Guido e Carlos, a
escolherem um. Escolheu-se a palavra “Gambrinus”. O comerciante
português, ironicamente, ficou conhecido por alguns da redondeza como
“seu” Gambrinus.
A família muda-se novamente, agora para a Vila Anastácio,
atravessada pela via Anhangüera, rua do Botocudos, no 61. É uma casa
pequena, de duas águas, em uma rua de terra. A paisagem, humana e
natural, não inspira nada de bom ao escritor, que assim a descreve: “Uma

76
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
77
Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada – João Antônio, São Paulo, Abril Cultural,
1980.
78

casa quase trepada na outra. Ali pelas beiradas dos trilhos dos trens da
Sorocabana, o casario apequenado e imundo, um e outro barracão de
madeira no meio da alvenaria. Um grupo escolar, nenhum posto médico,
pouco telefone, vendolas, quitandas pingadas, alguma padaria, uma igreja
de padre húngaro e muito desejo, amores atravessados, rompante de
macheza, molecadinha tremelicando friorenta e miúda de pés no chão,
murro semana brava nas fábricas. Maisena, fósforos, frigoríficos, fundições
da Sofunge, serrarias, Anderson Clayton. Muito botequim. A vila, de pobre
e de tristeza, nem campinho de futebol tem. (...) Nas ruas, monturos
proliferam moscas, ratos e insetos ruins. Que saem à noite com os
pernilongos dos seus escondidos. E espetam, azucrinam os ouvidos, fazem
ferver os nervos. Azoam. Algumas calçadas redescobertas de massa escura
e pegajosa, que fede, pregando-se aos sapatos e desconfiamos seja borra de
sabão roubada da refinaria”.78
Vila Anastácio era o bairro onde o recolhimento municipal de lixo
acontecia “uma vez, e uma só por semana”, “era um bairro de mil cheiros,
da madeira das serrarias ao odor do lixo.”.79
João Antônio, pai, estava na faixa dos cinqüenta anos em meados da
década de 50. Enquanto o Brasil caminhava para crescer 50 anos em 5, ele
voltava para trás. Foi dos bastidores que João Antônio, pai, e filho,
assistiram ao sonho da modernidade e do progresso se materializando à
brasileira.
Anos depois, porém, o escritor conseguiu recuperar alguns pontos
positivos do lugar: “Eram [os membros das rodas de choro] imigrantes de
todas as partes do mundo – húngaros, lituanos, russos, poloneses. Lá em
Vila Anastácio, às margens do Tietê, recordista nacional do consumo de

78
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
79
Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada – João Antônio, São Paulo, Abril Cultural,
1980.
79

cachaça, naquele gueto de gente empilhada, que não tinha dado certo na
cidade, eu vivia musicalmente. Conheci a aguardente de pêssego e os
palavrões húngaros, a música cigana, o som do violino”.80
Outro dos resumos biográficos existentes sobre o escritor registra mais
alguns personagens da Vila Anastácio: “povo mestiço de húngaros, russos,
lituanos, polacos e todos os migrantes mais conhecidos. Como passar por
cima das histórias de um russo que, abandonado pela mulher, morreu de
paixão. Como esquecer aquele outro russo, o Estálin, que dizia
seguidamente: ‘Não adianta falar na comunisma, procurar a comunisma, a
comunisma vem sozinha.’ E os árabes? Fuad Auada, da rua dos Armênios,
fugiu com uma mulher, ganhou fortunas roubando areia dos rios, ficou rico
e foi parar no Pacaembu”.81
Arruinado, sem outra saída, João Antônio, pai, vai à luta. É seu filho
quem relata: “Estava rodado. Cavou de novo, corpo-a-corpo com a vida,
com os dedos, com as unhas, minha mãe ao lado depois da porrada.
Catando e catando e catando algum equilíbrio (...) Onde só havia sapos e
tartarugas, conforme a humilhavam os moradores da Lapa, folgados e
limpinhos, lambuzados das importâncias. O pai pelejava e se batia, os
nervos estalavam. Mamãe sofria e ia pra luta, se botava ao lado dele, dentro
do balcão. Ali, mexendo-se como formiguinhas insistentes, aturando
bêbados, gringos e ralados pelos credores, os dois começavam a
envelhecer”.82
Este é um momento crucial na relação entre pai e filho. O primeiro,
proverbial e severo, vira o esforço de toda sua vida ir por água abaixo, e
junto com ele, muito provavelmente, fora sua auto-confiança, sua

80
Entrevista a Nilo Scalzo, Lourenço Dantas Mota, Waldecy Tenório e Teresa Odonto, publicada em O
Estado de São Paulo, 13/02/83.
81
Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: O Ecritor Brasileiro Hoje, Lisboa, Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, e São Paulo, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, s/d.
82
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
80

convicção nos valores que havia defendido, e que vinha procurando passar
aos filhos, em geral, mas sobretudo ao mais velho. João Antônio, de sua
parte, tem a vida radicalmente transformada; e para muito pior. Sua vida
profissional começa aos treze anos de idade. Matricula-se no curso normal
noturno, para poder trabalhar. É inevitável a revolta, o esfacelamento do
conjunto de valores que o mantinham integrado à família. Aos quatorze,
descobre o sexo, a bebida e a sinuca. E tudo o mais que essa trinca costuma
trazer junto.
É ele quem diz, sobre as dores de seus pais: “Eu entendia, e não, essas
dores, que pensava nas minhas.
Vamos dizer. Entendia que, nos filmes, uma mulher rica e burguesa,
com as comodidades aos pés, chorasse. Tédio, nojo ou escárnio. Entendia.
Só não me cabia no juízo que mamãe, cozinhando, se fanando sem
empregadas na lida da casa, ajudando no bar e lavando louça no tanque –
depois daquela pilha viria outra pilha e outra – encontrasse jeito de, às
vezes, baixinho e desafinado, cantarolar”.83
A autoridade paterna, dentro de casa, nunca mais foi a mesma.
Aparentemente, João Antônio, pai, deixou de forçar o destino do filho.
“Meu pai só brigou com o João até o normal. Principalmente porque minha
mãe logo arrumou emprego para ele, pondo-o na Anderson Clayton, a
indústria de laticínios, que ficava no bairro da Saúde”.
De fato João Antônio trabalhou lá, como menino de recados e
entregador da correspondência, office-boy da divisão de refino de óleo. E
suas lembranças do local de trabalho também não eram boas:
“Há fartum da refinaria de óleo, (...) dos esgotos que desembocam e
correm, grossos, pelo Rio Tietê, águas espessas, escuras, encalacradas de
entulhos e arruinadas pelo óleo e pelas imundícies. Correm lerdas, pesadas.
O rio fedido, a que atiram o nome indígena, é o maior esgoto da cidade”.
83
Idem.
81

E nem as lembranças da relação com os chefes:


“Estafeta, ganho salário-mínimo de menor na Anderson Clayton,
refinaria de óleo dos americanos, sou chamado de office-boy. E obedeço.
Aturo chefões estrangeiros, importantes, americanos e limpos, gordos,
mandões, charutos no bico. Os chefes brasileiros fumam cigarros sem filtro
e são aduladores ativos e rápidos. Acompanham-me os atrasos, falhas
grandes e pequenas.
O livro de ponto.
— Quem chegar atrasado assina em vermelho.
O chefe do pessoal, tipo baixote, tem nome espanholado e capa
branca, barrigudo, pendura na cara um bigode de centopéia. Uma lesma, a
lesma.
(...)
Os do escritório pegaram mania com os gringos mandões. Uma é
tratar pelo sobrenome.
Lambança. Tipos insuportáveis, limpinhos, óculos, escanhoados e
solertes, no escritório me aborrecem. Para mim, uns ensebados. Mexem-se
aos passinhos sovinas, que morrinhas até para andar fazem pose de chefe,
me dão gana. Capas brancas”.84
Se há algo positivo no trabalho, é sua amizade com os desenhistas e
operários: “E os desenhistas, única gente do escritório com quem me dou,
engendra uma justiça [contra os patrões super-exigentes].
(...)
Não estão nessa camorra os desenhistas, faladores, gravatas
desabotoadas, cantando e assobiando em expediente, alegres, loucos,
largados.
Armam. Uns arreliados, aprontam gozações. Queimam horas, com
paciência, engendrando sacanagem. Gozam os outros, a parentada dos
84
Idem.
82

outros. Depois, metem no fogo a própria família, sapecam a mãe. Por


último, cansados, gozam a si mesmos. Por isso, eu lhes tenho amizade.”85
Mas, ao contrário do que ele diz, não só os desenhistas o atraíam. O
futuro escritor, como viria a fazer sempre, tinha trânsito livre entre os
operários e funcionários menos qualificados. Mais tarde, essa tendência
natural se tornaria parte fundamental de seu processo criativo, estando
mesmo na gênese de vários contos e personagens.
“Convivo, me entendo, charlo com tudo quanto é pintor, funileiro,
homem da sacaria e do transporte, pedreiro, almoxarife, guarda, apontador,
ajudante, operário sem nenhuma qualificação, maioria salário mínimo,
fresador, mecânico, motorista, caldeireiro e quando venho lá longe, muito
papel dentro da pasta-sanfona, o pessoal se vira e me conhece o nome.
Operário não é funcionário do escritório e logo me chama pelo prenome.”86
É assim que ele resume sua vida naqueles tempos difíceis: “Dezesseis
anos. Meus sapatos levam meia-sola, como no engasga-gato ou de marmita,
arrasto uma vidinha chulé. Arrumo namoradas e não tenho o do cinema. O
estudo é à noite; o trabalho, de dia. Ando de ônibus e, muita vez, a pé. À
noite, vou sonado e saído das aulas em que me impõem ciências físicas e
naturais, latim, história da civilização e história do Brasil, inglês, francês,
português, desenho, canto orfeônico, geografia do Brasil e geografia geral,
matemática e uma fricoteira a exigir paciência vasta. Trabalhos manuais.
As mocinhas agüentam instruções sobre economia doméstica. Equilibram
calorias, proteínas, vitaminas. O colégio noturno esbarra, no entanto, na
vida. Todos trabalham, não há tempo e o dinheiro é curto. Há sanduíches ou
pastéis dos chineses na hora do almoço. De carne, palmito e queijo.
Banhudos, encharcados e saídos do tacho escuro de óleo de amendoim,

85
Idem.
86
Idem.
83

fervente, o mais ordinário, usado vezes”.87


Por fim, a mudança para Vila Anastácio coincide, também, com a
mudança de seu apelido. Antes “Joãozinho”, agora João Antônio Ferreira
Filho passou a ser conhecido como “Jafa”, uma corruptela da junção de
suas iniciais.

Tempo de saias, sinuca e bebida

Mas nem só de experiências negativas foram aqueles anos em Vila


Anastácio. A descoberta do sexo, por exemplo, ocorreu nessa época.
Conta João Antônio que, muito cedo, ele já pensava em mulheres, até
exagerando bastante seu desinteresse pelas brincadeiras da infância: “Eu,
menino, detestava quase tudo. Desejava as mulheres. (...) Eu, em sonhos,
era um desesperado. Desejava tudo quanto fôsse mulher. Bastava ser
mulher. Ah, se as tias soubessem... (...) Amei minha primeira professora e a
possuí em pensamento. Seu corpo tinha sardas, era diferente. Eu era mais
violento. Chamava-se Dona Lurdes, hoje é avó”.88
Ele fala ainda de algumas de suas namoradas: “Amei Aldônia. Gostei
de Dirce. Amei a minha prima. Briguei com um namorado dela. Amei
Maria, primeira namorada. Maria era besta e eu a mandei...
(...)
Amores, amores. Beijar na boca. Eu não entendia os assobios dos
homens às mulheres
Mas como era bom gostar de uma mulher sem que ela soubesse.
Como era bom!”.89

87
Idem.
88
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/1960. João Antônio deve estar referindo-se a sua primeira
professora no externato Henrique Dias, sem mencionar a escolinha particular onde aprendeu a ler.
89
Idem.
84

É interessante ver, porém, como, e em que contexto, essas antigas


fantasias apareciam e eram alimentadas:
“Era a roda se formar, o assunto dava em futebol ou nelas. Os machos
remoçavam das canseiras da vida e uma alegria nova corria.
Descarregavam, gingavam, expandiam, desataviados. Desoprimiam. Os
mais moços apetrechavam exaltações exageradas, onde o que de melhor se
ouvia, o mais, bandalha. Ou rememoravam criaturas magníficas,
fantasiando qualidades exuberantes, só imaginadas, inatingíveis. Havia
pernas, havia rabos e havia peitarias multiplicando atenção. (...) Os mais
vividos queixavam-se, azucrinados, das fêmeas frias, velhas precoces.
Deixavam entrever calvários. Neles, o amor, horrível, se fazia como uma
solidão a dois, na madrugada, nos quartos de luz apagada. Trepar família,
aquilo na zona era melhor bem; lá havia alguma alegria”.90
Essa “roda”, embora comum na vida de um adolescente, em que se
torna quase obrigatória, seguia o modelo mais usual no que se refere às
“exaltações exageradas” e às referências a “criaturas magníficas”. A
valorização da prostituta, porém, não é tão comum, e pode ser melhor
explicada. Ela decorre, ao que parece, segundo o próprio João Antônio, do
papel da mulher na vida suburbana da época: “As mulheres encaravam
espetos dificultosos. Comiam feijão com arroz requentado no banho-maria
das marmitas levadas de casa. E não se cuidavam. Operárias, quase todas.
(...) E, corridas, agüentavam fortes, rápidas e se afobando, o serviço da
casa. (...) Enfeiavam cedo, prejudicadas, banhudas e sem cintura. Afobadas
e sem ginga. (...) O mulherio mais gordo que magro, mais despachado que
elegante. Barulhento, enfezado, raivoso, quando reunido. Nada esguio e
todo aferrado ao trabalho braçal”.91
A dureza da vida, e a precoce decadência física, aliadas ao

90
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Record, RJ, 1982.
91
Idem.
85

temperamento vigilante das mulheres, por vezes “raivoso”, encaminhava os


jovens, ao menos assim foi com João Antônio, para as prostitutas e os
bordéis, onde o amor era eminentemente um ato de prazer e de grande
apelo sexual. As fantasias correm soltas na cabeça do jovem adolescente:
“Tempo de saias. De raro em raro, mulher veste calças compridas. Os olhos
nas pernas nuas, compridamente, de quem sem meias vai ao trabalho.
Muita vez, em solidão, sonho com elas na cama de solteiro e me aferro.
Masturbação no meu quarto da Rua dos Botocudos”.92
João Antônio, em uma entrevista, comenta o período: “Eu pertenço a
uma geração em que todas as manifestações de virilidade se passavam
clandestinamente. O primeiro ato sexual, a primeira cerveja, os primeiros
jogos, tudo isso pertencia ao mundo dos adultos e não dos adolescentes e
jovens menores de 21 anos”.93
Também por isso os bordéis eram atraentes, pois lá certas experiências
poderiam ser antecipadas. Diz ele: “Só num lugar seria permitido provar
essas proibições: a zona do meretrício, embora para lá entrar fosse preciso
ter 18 anos. Assim, os mais aflitos, curiosos ou angustiados, se enfiavam lá
antes da idade. Foi o meu caso. Aprendi a beber cerveja na zona, jogar
sinuca, jogar palitinho, jogar trilha. Eu ia para lá aos 16 anos. Aquele lugar
era, sem dúvida alguma, o mais alegre e o mais libertário da cidade.”94
Não é de se estranhar, tendo em vista as rupturas que João Antônio
vivia na época em sua vida familiar, e também levando em conta as
pressões de uma vida já atarefada, de dia no trabalho, à noite na escola, com
a mãe vigiando e com um distanciamento crescente entre ele e o pai, que o
futuro escritor procurasse um lugar onde pudesse descarregar as tensões do
dia-a-dia, e também afirmar sua personalidade que vinha sendo atacada por

92
Idem.
93
Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.
94
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
86

todos os lados.
“Vou indo, indo, procurando. Sozinho encontro, depois de pegar e
juntar, no quieto, pedaços de conversa de companheiros na fábrica. Zona da
Rua Itaboca e dos Aimorés, único canto da cidade que não briga comigo e
até para beber cerveja envieso para lá.
(...)
O coração na mão. A medo e ressabiado. Sem idade e sem condições,
driblando as farejadas e olhadelas das polícias, de guanacos, de civis, de
militares, de secretas, de cabeças-de-penico, me enfio pelo bordel, que para
mim é mulher e acaba sendo mais que mulher.”95
Mulheres, bebida e sinuca. Três novos interesses na vida. A sinuca é
uma paixão à primeira vista: “O joguinho, o joguinho ladrão. Espiando
maroteiras no bar do Tico, bebendo misturas, ouvindo casos, um dia. Um é
o primeiro. Nos fundos, havia duas mesas de sinuca e depois, em noite alta,
a conversa continuava lá. Uma vez, catei o taco. Sem acreditar que viciasse.
Nisso de pano verde, bigorna, salão, boca-do-inferno, costumo dizer
que a natureza, dadivosa, me deu esta cara de otário. Ou antes, de homem
do povo. Habilidade pouca, mas jogueiro, beliscado nos ambientes do
joguinho, olheiro e apostador. Que até para uma cerveja, eu procurava o
salão.
(...)
Peguei o vício na zona. Ali entendo, pouco rodeio, jogo se aprende
perdendo dinheiro, tempo, sola de sapato em volta da mesa, sono. O mais é
fricote, leite-de-pato, passatempo, embromação de gente família e
desocupada, distração. Mais se apanha de um malandreco, mais se pega os
efeitos, as tabelas, as combinações, a visão da mesa. Se se perde – se perde
no perde-e-ganha – já se aprende a bater. (...) O bom taco, antes disso, já é
um olheiro de jogo. Necessário pendurar o chapéu onde a mão alcance. Só
95
Idem.
87

a fome ensina.
(...)
E bebemos à noite nas bibocas, porres aos domingos, feriados e dias
santos de guarda. À noite, de comum, entornamos, jogamos sinuca, falamos
de futebol, mulher, ou tocamos para o cinema, na Lapa, que Vila Anastácio
também cinema não tem. Os certinhos vão aos namoros. Os apertados pelos
pais, à escola noturna [era o seu caso].
Dei-me com a cambada, recordista na categoria consumidora de
cachaça nos subúrbios paulistas. Deu no jornal. Não deu que, no inverno a
umidade nos entrava nos ossos e nos doía. Gente abandonada, sem eira nem
beira, e deixada pra lá, morria de frio nas ruas, amanhecendo dura. Manhãs
de domingo, antes da missa do padre húngaro, a praça parece um fim de
guerra – bêbados derreados, batidos e sonando feito pedras nas portas dos
botecos. Gente feia e largada no chão: operários de vida suada, na
semana”.96
Era aquele momento o marco de sua entrada em ambientes
extremamente viris, mas que apesar do estímulo do jogo e do prazer sexual
disponível exibiam, simultaneamente, os males cotidianos do homem
urbano. O primeiro “amor bandido” do futuro escritor ensinou-o algo sobre
as ambigüidades da vida na zona.
“Sinuca e mulher aos dezesseis. Então, ficou tudo sério, sério demais.
Inevitavelmente sério. Indesejavelmente.
Ivete, francesa, rua dos Aimorés, no 178. Exigia-me todas as tardes de
Sábado. Se não viesse, apanharia na próxima vez. João Antônio era uma
espécie de masturbação dela. Malandragem eu entendi aos dezesseis anos
com Ivete, nome de guerra de uma francesa qualquer.
Loura e tinha uns trinta anos. Meu corpo boiava no dela.
Ivete me ensinou alguns truques. Mostrou-me uma cambada. Ocupou-
96
Idem.
88

me à vontade. Ria de mim, me batia quando eu não cumpria à hora


marcada. Comprava-me por bem pouco (eu era um menino). Eu me sentia
bem. Não lhe dava dinheiro.
Ivete, Ivete, você sabia o que fazia?
Devo ter sido bonito aos dezesseis anos. Outras já buliam comigo,
independentemente do dinheiro. Convidavam para dormir, para cinema,
para beber cerveja.
(...)
Ivete me xingava de muitos nomes que eu merecia e não. Pela
despedida se vê:
— Tchau, meu merdinha...
Ivete me roubava tempo: não foi o pior. Ivete me roubava
estupidamente a virgindade: não foi o pior. Ivete me queria só para ela
(enquanto me quis): não foi o pior. Ivete me inoculou um vício – mulher,
cama. Esse me pegou, desastroso. Mordeu-me.
(...)
A francesa me deu por despedida uma noite inteira e um endereço no
qual não a encontraria. Ivete foi substituída. Aprendi outras manobras.
Coisas simples: em mulher a gente bate, de mulher a gente não apanha. E
por aí assim...
Francamente, naquela idade, convivendo com aquele tipo de mulher,
qualquer outro tipo que me aparecesse recebia uma atribuição, que eu não
dizia mas pensava:
— Uma trouxinha, coitada.”97
O vício inoculado pela tal Ivete pegou-o rápido e forte, ensinando-o
como fazer para ganhar outras mulheres. O próprio João Antônio lembra de
outros “casos” da época: “Eu a trabalhei nos escuros da estação Domingos
de Moraes, a bolina foi de encontro a uma árvore que a iluminação mal
97
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/1960.
89

cobria”.98 Certa madrugada, levou uma mulher para seu quarto. Na manhã
seguinte, ao sair escondida, ela acaba deixando cair no assoalho da casa seu
pó-de-arroz. Conta o escritor: “Na manhã, o pai notou. Mas saiu para o bar,
nenhuma fala. Um silêncio de bofetada”.99
E tudo isso regado a cigarro, cerveja e a conhaque “Otard Dupuis,
nacional, depois sumido dos botequins.”100 Outros dois vícios que João
Antônio jamais perderia.
“Bebia, como jamais, sabe? Porres homéricos para enfeitar a
solidão.”101
O bar do Tico era o novo ponto do futuro escritor, onde ficava até de
manhã, varando as noites, bebendo, jogando, ouvindo os veteranos. Lá, e na
zona do meretrício como um todo, a passagem da infância para a vida
adulta não era tão dura. No meio familiar, no entanto, mesmo os rituais de
passagem autorizados, e teoricamente estimulantes para o jovem, parecem
não terminar bem. É o que indica um rápido episódio recuperado por João
Antônio: “Aos meus quinze [anos, o pai] deu para me ensinar a dirigir o
jipe. Abespinhado e orientando aos trambolhões, esquentava-me a cabeça.
Um esporro que assustava. Eu só sabia fumar escondido, jogar sinuca (ele
dizia bilhar), beber, aprontar, cranear o que não devia. E nota baixa no
boletim. Mordendo beiço, meu pai ao lado, ia aporrinhado no volante.
Desgovernei o jipe num muro de Vila dos Remédios”.102
Como se pode imaginar, o cartaz do jovem na família ia se tornando o
pior possível.
“Papai também errava comigo. E a vida também errava com ele.
Culpa de quem? Eu errava sabendo. A vida pespegava uma cambada de

98
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
99
Idem.
100
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/1960.
101
Idem, sem data.
102
Idem, de 06/10/1960.
90

aborrecimentos e de nervosismos em papai.


Chateavamo-nos.
Mamãe sofria num canto. Virgínio, já nascido, dava trabalho.
(...)
Eu fugia das festas familiares. (...) Como vivia só, meu Deus! E como
era boa a solidão!”.103
Não foram poucas as vezes em que foi repreendido por seu gosto pela
vida noturna e pelas companhias que vinha tendo. “Meu avô, da pele
azeitonada, mulato dobrado do Rio e Virgínio, filho de baianos, é cismado
como um mameluco, é difícil de rir; não compra fiado meio quilo de cebola
ou uma cabeça de alho, não põe uma gota de álcool na boca e não se dá
com aquele frege e com aquela devastação. Antes, me diz:
— A bebida dá de sete maneiras, fora as mungangas.
A gente se adora. E ele, querendo agradar, me chama de batuta.
Aquilo sim, era açúcar. Mas, aluado, agito e arrepio; eu ouço os seus bons
conselhos?
Nada. Gosto da rua.”104
O avô, infelizmente, não viveria para assistir ao sucesso do neto
escritor. Morreu em 1954, quando as loucuras de João Antônio ainda não
haviam sido legitimadas pelo uso literário que faria delas. “Meu avô
Virgínio, meu amigo batuta, o maior de todos, que me durou até os
dezessete anos.”105 “Não me adianta nada o cemitério. Fico mais triste.
Posso chorar o que agüentar – o velho avô não volta. E se voltasse não seria
pior? Ficaria decepcionado comigo, ele, que sempre me quis decidido, dono
do meu nariz. Homem.”106
Mesmo a avó, Nair, que tanto lhe escondeu os maus passos,

103
Idem, ibidem.
104
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
105
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/1960.
106
Idem, de 31/10/1960.
91

protegendo-o da severidade do pai, também fazia tentativas de


reencaminhar o jovem João Antônio:
“Sou um sonso, dos malhados. Nem a ela engano – dos que perdem o
pelo, mas o vício não perdem. Vigia-me os lances e me pega de quina.
Geniosa, os nervos fervem de novo, a veia do pescoço incha, azul, perigosa.
Derrapo repetidamente, e ela, me flagra; dobra as mãos na cintura e lacra:
— Malandando os seus dias. Você só vive com essa gente do erro.
Sujeitinho”.107
A ainda dolorida castração de seu talento musical, a falência do pai e
sua revolta contra a sociedade e contra o próprio pai, mais a força literária
de seus autores preferidos (que serão discutidos a seguir), quando postas
para agir em seu contexto social e familiar, provocaram o início da rebeldia,
que, ao despontar, desgarrou-o gradativamente dos padrões familiares.
Explica Virgínio: “Nós [os dois irmãos] conversávamos muito pouco, eu
depois de adulto percebi que era um moleque insuportável e ele [João
Antônio] me tolerava. Os irmãos brigam e eu era o caçula e minha mãe
vivia brigando com o meu irmão, para perder os maus costumes, ele comia
muito feio, ele não queria tomar banho, como todos os rapazes, e passava a
noite inteira na rua, voltava de manhã”.108
Aos dezesseis anos, freqüentando a sinuca no “bar do Tico”, nas
noites de final de semana, o jovem foi, certa vez, surpreendido pela polícia.
Menor, viu-se detido e o dono do bar obrigado a pagar uma pesada multa.
Para piorar, o pai ficou sabendo. Assim o próprio João Antônio narra a
difícil conversa com o pai: “Os dois na mesa. Fechou o punho, crispou a
cara quadrada, puxou um suspiro de boca fechada. Devia sofrer, devia
andar cansado – e bem. Minhas derrapagens desandavam em repetição.

107
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
108
Depoimento colhido em 23/03/2000.
92

Todo santo dia, pintando má notícia”.109


Quebrando o silêncio, João Antônio, pai, deu nova vasão a seu espírito
proverbial, proferindo uma frase célebre na família: “Você tem todos os
vícios que eu conheço e até os que eu não conheço”.110
Mas o difícil diálogo não termina aí: “Falou baixo e era como se
urrasse. Pesava um azedume. Havia uma barreira, sei lá, uma diferença me
arranhava o peito e me tangia. Por que eu agredia e agredia, sonso ou de
cara, aquele homem? Um nada deste mundo e estávamos enfarruscados.
Estamos bem sós, eu percebo. Um estrago. Ele, vindo de mau negócio,
rebordosa com uns sócios que o roubavam. Soprava um vento contrário
naquela vida”.111
O trecho parece de fato indicar um distanciamento quase completo
entre pai e filho, apesar de morarem na mesma casa. E ainda naquele
momento, quando em tese deveria sentir-se vulnerável, João Antônio
desafia o pai, negando o domínio completo da gama disponível de vícios:
“Sós na mesa, atirei:
— Ora, eu não sou tão genial assim.
Não se buliu, não me chapuletou a cara. Recolheu a hostilidade, a testa
enrugou-se e os olhos pequenos brilharam, antes de baixarem. Pendeu a
cabeça para o prato e comeu até o último. Eu também sofria com aquilo e
não podia dizer que me sentisse satisfeito. Mas arrostá-lo me dava força. Aí
me deu o golpe e me entravou:
— Eu já lhe dei categoria de adulto”.112
João Antônio, anos mais tarde, faz um comentário interessante sobre
esse tipo de conflito de gerações: “Sutil e corriqueiro é este fenômeno de
cada pessoa ter uma vida para cuidar. As pessoas sempre nos dizem; nosso

109
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
110
Idem.
111
Idem.
112
Idem.
93

pai, nossa mãe, nosso irmão e nossa avó sempre nos dizem: ‘Você tem uma
vida para cuidar’, e é como se dissessem: ‘Você tem que se responsabilizar
pela sua vida’, e nós, via de regra, entendemos assim: ‘Você nasceu e agora
não há remédio, está condenado a aturar a vida.’ (...) Se eu tivesse um filho
(eu ainda terei um filho), hoje ou daqui a vinte anos, diria: ‘Você tem uma
vida para viver’”.113
O fato do pai só ter se esforçado para corrigir os defeitos de
comportamento de “Joãozinho” até o normal, como nos disse Virgínio, não
se deve, aparentemente, a qualquer satisfação com os rumos do filho. Ele
ter recebido “categoria de adulto” no início da adolescência significa que
era precoce – intelectualmente, em sua mobilidade por toda São Paulo –,
mas essa maturidade antecipada não era, aos olhos dos pais, a mais
saudável. Continuava presente a frustração com a recusa do filho em
trabalhar no comércio e agora ela se somava à impotência diante da
vocação do filho para a boêmia. Uma outra hipótese seria um certo
desalento em relação a sua própria concepção de mundo, após a falência da
pedreira, em grande parte provocada por sua ingenuidade e incapacidade de
se impor perante os sócios. Ou ainda a culpa por ter, indiretamente,
contribuído para este gosto do filho pela malandragem. Afinal, vale notar
que foi através do pai que João Antônio esboçou seus primeiros passos no
mundo da música, e que esta lhe serviu, num primeiro momento, como
ante-sala da malandragem da sinuca e, num segundo, da literatura. Irene,
mãe do escritor, ao lhe tolher o gosto pelas rodas de samba, possivelmente
deu um tiro que saiu pela culatra, jogando-o em uma dimensão mais radical
da malandragem. Conta-nos a biografia autorizada de João Antônio: “Daí
para a frente passa a sentir certa dificuldade de comunicação com o pai, que
só seria superada após trinta anos”.114

113
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 19/12/1960.
114
Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada – João Antônio, São Paulo, Abril Cultural,
94

Como se vê, a falência do pai, em um momento crucial de sua vida


adulta, jogou-o novamente ao começo, provocou a mudança para um bairro
pior, enfim, deixou-o sem nada e endividado, atingindo a toda a família
diretamente. O filho mais velho, em plena adolescência, saiu do “eixo”
planejado, isolando-se na zona do meretrício e até mesmo dentro de casa.
Sabe-se que, enquanto estava por perto, estava sozinho no quarto lendo. E
obviamente também deveria contestar, questionar frontalmente, brigar,
duvidando da viabilidade da absoluta correção moral do pai, de seu
compromisso com o trabalho, que não o impedira de chegar ao fundo do
poço. Além da música, também os insucessos do pai devem ter contribuído
para aproximar João Antônio do mundo dos não “otários”, dos que não se
submetem à ordem produtiva de forma tão pacífica, dos “malandros” que
reagem, que ganham a vida de formas alternativas e com a impressão de
estarem vivendo-a mais intensamente, dos espertos que não se deixam
enganar, e que não têm sócios desonestos. Por outro lado, a recusa de João
Antônio em ser atacadista, como desejava o pai, também certamente
contribuiu para o esfriamento entre ambos.
Conta Virgínio: “Quando o João resolveu trabalhar no Rio [1964/65],
minha mãe comentou que ele ‘sempre havia sido do mundo, ele nunca foi
nosso’. Ela me falou isso quando eu arrumei um emprego nos Estados
Unidos, mas não fui com medo da Guerra do Vietnã, e ela disse: ‘É, quando
seu irmão foi para o Rio eu nem liguei, porque ele sempre foi do mundo,
agora de você eu vou sentir muita falta’”.115
Dessa época, apenas a avó Felicidade produziu uma frase capaz de
entender os motivos profundos daquele mau comportamento: “Prefiro que
você seja xingado de f.d.p. do que de coitadinho”.116

1980.
115
Depoimento colhido em 23/03/2000.
116
Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: O Ecritor Brasileiro Hoje, Lisboa, Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, e São Paulo, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, SP, s/d.
95

Mas o isolamento em relação aos familiares não era uma


exclusividade de João Antônio, pois também seu pai se isolou
relativamente. É o que nos conta Virgínio: “Depois da falência, meu pai
mudou muito, ele perdeu aquela determinação. Então as coisas realmente
sérias ele não falava. As poucas coisas eram uma piada, coisas de
responsabilidade mesmo ele não falou mais conosco, porque ele percebeu
que aquele negócio de só falar de coisas de responsabilidade... tocava a
gente, né?.”
As alianças familiares inverteram-se à medida que Virgínio foi
crescendo e João Antônio se envolvendo com a malandragem. Se antes este
era próximo do pai através da música, distanciou-se de todos, e Virgínio foi
ocupando o espaço do filho mais responsável, mais companheiro, que não
deixava os pais na mão.

Graciliano, Noel e a segunda dentição literária

“Havia uma coisa muito engraçada, era uma equivalência de realidade


de vida com a realidade artística que eu começava a descobrir em algumas
obras literárias.”117 Realmente, foi nesta época, aos dezesseis anos
aproximadamente, que João Antônio teve um segundo e mais profundo
envolvimento com a literatura. Conta seu irmão: “Foi na Vila Anastácio
que o João começou a escrever. O meu pai incentivava muito a leitura, só
que não especificamente de literatura, incentivava a leitura em termos
gerais, porque ele dizia, por exemplo: ‘Quem quiser conhecer Napoleão,
não pode ler só historiadores, tem que ler Guerra e Paz. Quem não ler os
autores russos, não vai entender o Encouraçado Potenkim. Então, a pessoa
tem que ler para poder saber das coisas, e tem duas maneiras de conseguir:
117
Steen, Edla Van – Viver e Escrever, L,P&M, Porto Alegre, 1981.
96

ou viajar muito e ser muito observadora, ou ler bastante.”


Conta Virgínio: “Meu irmão chegava a ler trinta horas seguidas. Ele
começava a ler na sexta-feira, não trabalhava no sábado, atravessava a noite
todinha lendo, amanhecia, lia o outro dia todo e ia dormir na madrugada.
Por exemplo a obra do Dostoiévski ele conhecia todinha, inclusive edições
diferentes, inclusive as portuguesas”.
Em outro depoimento, João Antônio dá mais detalhes sobre sua
“mania”: “Comecei a ler revistas, artigos de jornal. Achava que o escritor
era assim como o doutor, estava acima de tudo, era pessoa muito bem
comportada. Um dia li um perfil de Graciliano Ramos, escrito na primeira
pessoa. Vi aquela pessoa tão importante dizendo que não acreditava em
Deus e gostava de cachorros e não sabia o número do colarinho nem do
sapato e tinha 5 ternos estragados... Isso me fez descobrir uma nova
dimensão. Voltei à biblioteca e descobri Caetés, depois São Bernardo, e
assim por diante... Zola, Gorki, Hemingway... Eu não podia levar a sério o
cinema que via nem o rádio que ouvia. Mas aquilo que estava lendo
equivalia à vida que eu via e não era brincadeira. Era um sofrimento brutal.
A literatura era feita por gente que não mentia, ou mentia menos”.118
“Havia uma coisa muito engraçada [na zona do meretrício], era uma
equivalência de realidade de vida com a realidade artística que eu começava
a descobrir em algumas obras literárias. A literatura mereceu meu crédito
porque eu a conheci em livros em que ela não mentia.”119
João Antônio era capaz de mapear, ainda com um pouco mais de
precisão, algumas leituras fundamentais: “As minhas influências lietrárias
são muito claras. Não tive professores de literatura. Sou um autodidata.
Quase por acaso, lendo ‘Os Artigos Implacáveis’ de João Condé, no O
Cruzeiro, eu descobri um escritor chamado Graciliano Ramos e me
118
Entrevista a Nilo Scalzo, Lourenço Dantas Mota, Waldecy Tenório e Teresa Otondo, publicada no
O Estado de São Paulo, 13/02/83.
119
Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981,
97

surpreendeu muito a independência dele como escritor, tanto pelas


declarações que ele dava, como pelo ato dele escrever infinitamente melhor
que todos os outros. Bem, quem começa as suas leituras pelo Graciliano
Ramos, começa num estágio muito alto. As minha ligações posteriores
foram com escritores do mesmo naipe: Gorki, Zola, Jack London, etc. O
Graciliano foi, então, uma espécie de centro, de termômetro. Para trás eu
chegaria aos clássicos. Vieira, Eça, Fialho, etc. Para frente eu encontraria os
modernos: Mário e Oswald de Andrade, Guimarães. Aliás, Guimarães Rosa
surgiu muito depois para mim. (...) O Lima Barreto superou uma tendência
muito brasileira de se escrever mais com palavras que com idéias. Ele
venceu a angústia da palavra e fez uma obra seríssima. Ele fez uma
apropriação muito válida dos métodos jornalísticos e obteve um resultado
profundamente literário. A obra dele me sensibiliza muito”.120
Ele conta como o interesse por Graciliano se desdobrou, em suas
leituras e na condução que dava a sua vida: “Apanhei, seco e fascinante,
primeiro o Caetés; depois Vidas Secas, na biblioteca circulante da Lapa.
Difícil falar desse mergulho. Estava mordido. Um pensamento me ficou
cortando, líquido, certo, irrecorrível. Quase fatídico. Eu iria envelhecer,
azedamente, como um escriturário do Armour, gravata, camisa social
branca, passos miúdos e pesadão, pouco empertigado, alguma mulher
doméstica. E uns filhos medíocres, metidos no colégio da Lapa.
O tamanho do homem era outro, acordava-me consciências, revolvia.
Uma curiosidade me bulia, a mim, que fazia tudo pela conta de achar e,
sozinho, cacei a zona. Por Graciliano, que me intrigava – onde e com quem
teria aprendido a escrever com aquela garra e sentido? – desemboquei nos
clássicos, nos portugueses, e convivi com a chamada literatura de homem –
Gorki, Jack London, Hemingway, Steinbeck, Zola.121

120
Entrevista a Ruy Fabiano, publicada no Diário de Notícias, 14/02/76.
121
Diz João Antônio em uma entrevista: “Em contraposição, [à literatura de homem] havia a literatura
98

Um amor pela poesia começa. E eu me viajo, alta noite, dizendo


trechos em voz alta, no quartinho descascado da casa”122. Nesse ponto se
destaca a figura de Carlos Drummond de Andrade, o poeta mais citado nos
momentos líricos da correspondência de João Antônio.
É importante notar algumas coisas nesse trecho de suas memórias: a
referência à literatura de “homem”, ou, no caso, de caráter mais realista, em
que temáticas sociais e ambientes populares estavam presentes. Em outro
texto, esse elenco de escritores (Graciliano, Hemingway, Gorki, Zola)
também foi classificado de “literatura de homem”, rótulo que o autor jamais
recusou.123 Além disso, a literatura inspirou-lhe a recusa a seu destino
provável e a noção de que a família tipicamente constituída o prenderia a
esse destino.
Mas outros autores também foram fundamentais na formação de João
Antônio. Numa lista um pouco mais ampla, novos nomes aparecem, e a
ligação entre música e literatura novamente se configura em sua formação
literária: “Leu todos e os portugueses. Se deteve em Vieira, Bernardes,
Fialho de Almeida. (...) Baudelaire, Nélson Cavaquinho, Gregório de Matos
Guerra, Augusto dos Anjos, Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues, Oswald de
Andrade, Camões, Cesário Verde, a medida do desencontro do homem em
Fernando Pessoa ou em Kaváfis”.124
O samba propiciava-lhe, junto com a “literatura de homem”, todo um
universo de durezas e de personagens sofridos com os quais se identificava
e que o ajudavam a anestesiar a dor da pobreza e da solidão: “E o que
diziam os sambas doídos de Noel? A voz de Aracy, Araca, no disco ou nas

cor-de-rosa, os romances para moças, muito famosos na época, muito lidos, assinados por M. Delly,
que era Max Delly e todo mundo pensava que era Madame Delly.” Entrevista concedida ao programa
Certas Palavras, concedida em agosto de 1982.
122
Äntônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
123
Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: Escritor Brasileiro Hoje, Lisboa, Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, e São Paulo, Secretaria da Cultura de São Paulo, s/d.
124
Idem.
99

rádios, Rádio Record, principalmente, deixava intuir o tanto consumido de


vida, de solidão, de calvário e de atropelo – alto custo moral daquela poesia.
(...) O meu namoro solitário com a beleza e a agonia dos sambas vinha
rasgado e grande de joões-ninguém, tresvariando de marias-fumaça e cores
de cinza, chumbado e repleto de mulheres talvez bonitas e que mentiam,
eclodido de mulatas literalmente formosas, fiteiras, vaidosas e
necessariamente muito mentirosas, gingado de malandrices de morro, mas
ainda de prostitutas patéticas no asfalto ou nos paralelepípedos da Lapa,
descendo o degrau derradeiro, e escorria caudaloso de desocupados, de
usurários, de bêbados, de trabalhadores, de poetas, de caloteiros, de
amantes, de prestamistas, de jogadores, de visionários, de boêmios, de
gagos apaixonados, de rapazes folgados, de palpiteiros infelizes”.125
Noel, em especial, capturou a imaginação do futuro ficcionista:
“Penso nos grandes sambas de Noel. (...) Ali, excele o grande espírito de
sambista, sua riqueza, impressionante personalidade, muita coisa que dizer,
muito jeito de contar”.126
Foi com o samba, talvez, que João Antônio construiu a ponte entre a
“busca do entendimento da condição humana” e o cenário brasileiro das
populações menos favorecidas, e a chave para que o escritor, no futuro,
pudesse de certa forma enobrecer seus personagens pobres e/ou do
submundo, tornando-os mais líricos: “Não é preciso um grande tema pra
fazer uma boa literatura. Se tiver um grande tema, tanto melhor; mas o
marginal, o leão-de-chácara, o sinuqueiro, o jogador de sinuca, o mendigo,
podem ter momentos épicos. Acho que se um homem roubou um alimento
em um supermercado, é um momento épico da mais alta poesia, é a própria
luta pela sobrevivência”.127

125
Antônio, João – “Pequena Especulação em Torno de Três Momentos do Poeta da Vila”, publicado
em O Estado de São Paulo, em 01/05/83.
126
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 25/12/1960.
127
Ricciardi, Giovani – Escrever: Origem, Manutenção, Ideologia, Libreria Universitaria, Bari, 1988.
100

Não convém, entretanto, esquecer a importância do cinema, embora


muito menos freqüentemente citado como fonte de inspiração na literatura
do e sobre o autor. Se, durante os tempos de Beco da Onça, foi no Cine
Glamour que João Antônio conheceu as emoções baratas dos seriados e as
mais fortes do neo-realismo italiano, no período de Vila Anastácio o
interesse pela sétima arte continuou. Freqüentou, por exemplo, o Cine
Santa Cecília, que comparava, em sua gravidade, “ao clima gótico de uma
igreja católica às seis da tarde”, ou a um “templo hindu, com suas estátuas
de deuses”. Este ficava “bem na curva dos bondes que desciam a Praça
Marechal Deodoro”, para onde João Antônio ia de bicicleta.128 Mas
freqüentou também os cinemas da Avenida São João, o Metro, o Broadway
e o Avenida, e o Cine Carlos Gomes, na Lapa-de-Baixo. Era um percurso
intelectual e emocional, dos pulp fictions do tipo Zorro, rumo ao cinema de
arte, que ele conheceria por essa mesma época.

Um primeiro conto e dois maus poemas

No dia 24 de fevereiro de 1954, como prêmio em um concurso


literário, João Antônio publica, no jornal O Tempo, seu conto “Um Preso”.
Tem então 17 anos. Ele ainda não cunhou seu nome profissional, João
Antônio, assinando seu nome completo, João Antônio Ferreira Filho.129
Ele fala desse primeiro conto “adulto” que escreveu: “Num jornal de
São Paulo, já havia levantado um concurso com um monólogo interior

128
Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o
Inferno, São Paulo, Scipione, 1991.
129
Antônio, João – “Um Preso”, in Literatura Comentada – João Antônio, São Paulo, Abril, 1980. Em
sua biografia autorizada de João Antônio, João da Silva Ribeiro Neto escreve: “Sua experiência
jornalística já tinha começado no extinto jornal O Tempo, para o qual escrevera vários contos curtos.”
Entretanto, além de “Um Preso”, nenhum outro conto de João Antônio foi encontrado por esta pesquisa
nos números do jornal publicados no ano de 1954. Ao que tudo indica, há aqui ou equívoco do
biógrafo, ou um primeiro caso de reinvenção de episódios biográficos, a qual João Antônio recorreria
em outras circunstâncias da vida, como se verá no decorrer deste trabalho.
101

insuficiente a que meti o nome de Um Preso. (...) Digo que defequei aquilo,
a que chamei de conto”.130
O texto conta a história de um trabalhador honesto, acusado de
esconder armas em casa durante uma revolução. Sua casa é ameaçada de
invasão por soldados e ele, ao reagir, mata ou fere um dos homens, assim
indo parar na cadeia. É inevitável, para quem conhece os desdobramentos
de sua obra, que discutiremos mais para a frente, não enxergar, mesmo que
ainda tão cedo, algumas constantes em seu futuro estilo literário. Em
primeiro lugar, o universo ficcional já é o dos oprimidos. Além disso, o
conto é narrado em primeira pessoa, pelo preso, que reflete sobre seu
passado e seu presente em tom de lamentação. Por fim, a voz narrativa
composta por João Antônio para seu preso já apresenta, também, sinais de
sua preocupação em reproduzir a linguagem das ruas, usando palavras
como “bóia”, “cachola”, etc.
Contudo, um começo é um começo. Há certa artificialidade na entrada
do conto, quando o prisioneiro contraria sua completa resignação e, à tôa,
decide perguntar ao carcereiro em que dia estão. Fica sabendo, por uma
coincidência um tanto forçada, que está completando dez anos de pena
justamente naquele dia. Além disso, a fala coloquial urbana brasileira
aparece misturada a um ou outro portuguesismo, o que produz uma
“interferência” na constituição daquela voz. Veja-se os casos “Os
companheiros da prisão (...), andam a arrastar-se por aí”, ou “Vivi anos a
lutar, sem parada”, ou “Ao cabo d’algum tempo”, ou ainda “ouvindo
humilhações duns e nostalgia doutros”. A interferência causada por essa
prodigalidade no uso dos verbos no infinitivo, e por certas sonoridades que
mais ou menos explicitamente “comem” uma letra, aproximando-se da
pronúncia portuguesa, é complementada pelo uso de construções artificiais,

130
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
102

como por exemplo “Entrementes, a revolução estourou.”, e pelo uso


absolutamente correto das regras de colocação pronominal, como em
“Prenderam-me. Vi-me num tribunal (...)”, “Sabia de suas safadezas – que
não me interessavam.”, “Fiz casa, e a vida se me suavizou um pouco.”, que
também prejudicam o espírito coloquial pretendido.
Ainda visível nesse conto, embora em estágio inicial, uma das marcas
mais fortes do que viria a ser o primeiro livro do escritor, isto é, o ritmo
entrecortado das frases. Com poucas exceções, estas são compostas de no
máximo 3 partes, e alternam-se com outras de duas partes ou mesmo com
frases compostas por uma única palavra. Um bom exemplo:
“Prenderam-me. Vi-me num tribunal onde me disseram palavras
difíceis, que não entendi. Não relutei, em nada. E ouvi, sem palavras, a
decisão do meritíssimo.
Madrugada. Angústia. Insônia. Lassidão. Silêncio cerrado. Lá fora, há
uma chuva que não estia por nada. E uma escuridão tremenda. E este sibilar
do vento que é um choro em desespero”.
As frases tem uma, duas ou três partes, e alternam-se numa estrutura
1, 2, 3, ou 3, 2, 1, ou 2, 3, 1, e assim por diante, compondo um jogo com
frases curtas ou apenas medianamente longas, que faz a leitura avançar
rápida, porém com pequenos trancos, interrupções algo bruscas na
sonoridade da frase e aceleradas repentinas.
A referência à sinuca, embora sumária, também vale a pena ser citada,
tendo em vista a importância que o assunto veio a ter em sua obra posterior.
É uma referência rápida, em que o narrador, um homem honesto e
trabalhador que teve sua vida arruinada por um momento de indignação e
fúria diante da invasão de sua casa pelas forças policiais, pensa em seu
passado retilíneo com orgulho, e diz: “Tinha com o que me entreter nas
folgas. Não estaria como Bento, antigo colega de quarto, a gastar o
ordenado nas mesas de bilhar. Vivia eu, pobre, mas sossegado”. Como se
103

vê, já aqui a sinuca aparece opondo-se a um padrão de vida mais regrado e


consciente.
Por fim, vale especular que esta não tão vaga sonoridade lusitana,
somada a certas passagens do conto, parecem ecoar pensamentos que
poderiam estar passando pela cabeça de João Antônio, o pai, justamente
naqueles anos de derrocada. É o caso de: “Trabalhar um tempão imenso,
sacrificar-se como um penitente, pular da cama pela madrugada todos os
dias, todos os dias correr para as fábricas (...) Para quê? Vem uma cambada
de patifes e me estraga a vida”.
Ou que seu filho estivesse tendo:
“Antes tivesse feito como o Lucas, que adentrou a casa de Alberto,
arrombou-lhe a burra, limpou tudo, encheu-se de dinheiro e ganhou o
mundo. Polícia? P’ra inglês ver.”
Tais hipóteses, porém, são talvez por demais fugidias. O conto “Um
Preso”, com todos os possíveis defeitos de composição apontados, e a
despeito de qualquer implicação autobiográfica, é de qualquer forma um
ponto de partida, e demonstra o quanto certas características formais e
certos temas já nasceram com o João Antônio escritor.
No ano seguinte, 1955, João Antônio publicou dois poemas que,
embora reconhecesse como ruins, guardou durante pelo menos seis anos.
O primeiro deles, “Utopia no Porto da Felicidade”, foi publicado no
Jornal do Povo, de Itápolis. Era assim:

“Iremos então, bem equipados e com vontade dupla.


Abrirei as lâminas do Tarô adivinhatório
e gritarei que nossa sorte é boa
e o sibilo do vento não me abafará os brados.
E a vida rirá de ébria...
104

Riremos com ela.


E nascerá uma chusma de querubins
Que rir-se-ão todinhos.

Daí então, fingirei acreditar na Virgem.


Erguerei odes de júbilo
Preexistirá a ufania ao som
Nesse dia, medrará água de pedra
E os meus cantos resistirão ao Tempo.
Eu fingirei crer na Virgem
E estaremos no porto da felicidade
O mundo nos irá abençoar muito...”

Vale notar que, seis anos depois de publicá-lo, em sua transcrição


desse poema, João Antônio faz os seguintes comentários: ao lado do quarto
verso, ele põe “(brados – horrível!)”. Quando começa a transcrição do
segundo poema, o faz com a frase “Outro horror:”. Este segundo poema,
também publicado no jornal de Itápolis, chama-se “Pausa”.

“As paredes pálidas,


Os sonhos da Vontade,
Os planos,
As ânsias,
As ilusões quedadas,
As estrelas do carvão da noite
Todas as histórias de braços caídos,
Tudo quanto exista estará no rés do chão, dormindo
E as ações terão sono.
105

A vida está descansando muito.


Para amanhã acordar bem cedinho.”

Ao fim da transcrição, seus comentários são os seguintes: “Como vê,


são ‘jóias’ antigas. Tinha também um ‘Credo’. Cruz, credo! Felizmente não
encontrei. (...) Ilka, claro que são versos ruins. Mas bem pensando, lá no
fundo, eles tinham alguma coisa de meu. Não sei...”.131

Passagem pela caserna

Um momento pouco conhecido da vida de João Antônio é sua


passagem pelo exército. Raramente citado em suas biografias, mesmo
quando o é, este período não está localizado no tempo com maior precisão.
Acontece, quase com certeza, em 1955, quando ele completa 18 anos.
Seu quartel era o da 2a Companhia de Infantaria Motorizada, que
ficava na rua Abílio Soares, no Paraíso. É um serviço externo, ao que se
sabe, não exigindo portanto um afastamento total de sua família, de sua
casa, de sua vida, enfim. Não obstante, a experiência é traumática.
Em seu primeiro livro, a ser publicado anos mais tarde, João Antônio
incluiu dois contos passados no interior da corporação militar, reunidos
numa divisão interna da obra chamada “Caserna”. São eles: “Retalhos de
Fome Numa Tarde de G.C.” e “Natal na Cafua”132. Ainda que não os
tomemos como fontes biográficas puras, o que de fato provavelmente não
são, algumas impressões gerais podemos tirar deles, e bastante eloqüentes.

131
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 15/08/1961. Estes versos foram recortados e guardados pelo
próprio escritor em seu caderno de coisas publicadas, um hábito nascido, como se vê, bem no início de
sua carreira, e que jamais o abandonou. Ao final de sua vida, João Antônio guardava em sua casa
pastas e mais pastas com uma enorme quantidade de recortes de jornais e revistas, compondo um
formidável acervo sobre sua obra e sua trajetória no meio literário. São entrevistas, resenhas, notícias,
contos, crônicas, perfis biográficos, um poema tardio, etc.
132
Antônio, João – Malagueta, Perus e Bacanaço, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963.
106

A começar pela epígrafe que serve a ambos: “Soldado é aquilo que fica
embaixo da sola do coturno do sargento”.
A juventude desregrada do escritor, que aceitava com dificuldade as
reprimendas paternas e maternas por seu gosto pela sinuca, pelas mulheres
e pela boêmia; que ignorava os conselhos do avô Virgínio, instando-o a
largar essa vida; que já tinha grande dificuldade em encarar seriamente os
estudos, agora ainda mais atrapalhados pelos compromissos militares; com
toda certeza teria ainda mais dificuldade em se enquadrar na severa
disciplina do exército. O coração do jovem João Antônio estava na
literatura e na noite de São Paulo, nunca no quartel.
Em ambos os contos relacionados ao exército, o ambiente que toma
forma é um ambiente, no mínimo, desagradável, cheio de injustiças, de
capitães caprichosos e sub-comandantes sádicos, de solidão, do desejo de
passar despercebido, a melhor estratégia para não arrumar confusão.
Embora não haja muitas informações sobre o período, o escritor o
deixa registrado em parte de suas memórias:
“Soldado, um fiasco. Lá no Paraíso, outro canto da cidade, dois ônibus
todos os dias, um dinheirão só de passagem. Minha mãe tenta me
resguardar e, no quieto, me atravessa uns trocados. O soldado número 178
da terceira companhia de infantaria toma cadeia, toma pernoite, dá
alterações, repete por castigo cangurus e exercícios físicos puxados, tropica
na ordem unida, é julgado incapaz na ginástica de cordas. Possivelmente
nunca se viu tamanha falta de jeito nem relapsia renitente para as artes
militares.
Um dia, o capitão-comandante gritou na tarde, como se fosse para
todo o Paraíso ouvir:
— Esse recruta é encruado e parece que vai ser paisano o tempo todo!
107

Deixo a farda, debando daqueles lados do Paraíso, (...)”.133


Muitos anos depois, em carta a um amigo, João Antônio fala da
experiência como de um tempo perdido: “Este país, estes governos de
merda jamais me deram um lápis de graça, e ainda me tomaram um ano de
serviço militar, e toda a minha mocidade”.134
Mas não foi um tempo tão perdido assim, no fundo, apesar do serviço
militar. Houve uma compensação nova, que o marcou. Ele próprio conta
qual foi: “No tempo de soldado raso, me veio um faniquito diferente, desses
no meio da febre em que eu vivia, entre mulheres, zona, sinuca e
aprontagens de rapaz. De repelão e inteiriço, um amor pelas coisas do
Japão. Judô, saquê, pintura, gravura, desenho, haicais, tudo de uma fonte,
uma mina, o filme Rashomon, de Akira Kurosawa, baseado em um conto,
‘Dentro do Bosque’, de Ryunosuke Akutagawa ou na junção de duas
histórias do admirável japonês.
Desandei a ver coisas no bairro da Liberdade, naquele tempo nada
badalado, não folclorizado em atração turística numa cidade forte no
trabalho, fraca nos postais por mais que a mintam ou a vistam a rigor.
Enfiava-me pelos restaurantes, lojas, academias de judô e tive, sim,
camaradinhas judocas, educados, umas moças. Mas feras no tatame.
Delicadeza das mulheres do Japão me tocava com suas manhas
dissimuladas. Sonsas, sutis professoras. Freqüentei cada sábado, cada
domingo, o Cine Niterói, perto da Rua Galvão Bueno e São Joaquim; neles
vi, pela primeira vez, o muito longo Guerra e Humanidade, do senhor
Kobayashi. E filmes, em épocas e épocas, mostrando lendas, quimonos,
gentes entre neves e montanhas e cerejeiras do Japão. (...)
Das composições notáveis em preto-e-branco, terá me ficado alguma
coisa. E da música rascante, dolorosa. Do teatro singular, da dança. Foi no
133
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
134
Carta a Mylton Severiano da Silva, de 21/01/80.
108

interior dos cinemas dos japoneses, na Liberdade, que senti pela primeira
vez, na pele, a força do preconceito de raça. Acendiam-se as luzes e, em
toda a sala, só um não era niponico. O único”.135

Cabeça aberta pela literatura

Ao sair do exército, João Antônio mudou de emprego, encontrando


lugar no mesmo frigorífico onde seu pai também havia trabalhado até 1944,
o Armour. Novamente, o trabalho não era dos mais estimulantes; auxiliar
de escritório, serviço burocrático do departamento pessoal. Ele mudaria de
emprego algumas vezes vezes nesse período, entre 1956, data aproximada
de seu vínculo com o serviço militar externo, e 1963, data de publicação do
livro. Após o Armour foi trabalhar numa agência bancária no bairro da
Lapa e, por fim, encontrou colocação numa agência de publicidade,
chamada Petinatti, cujo escritório funcionava na rua Conselheiro
Crispiniano. Não tinha, de fato, uma atividade estável, um rumo
profissional definido, longe disso, e portanto a família continuava tendo
problemas em aceitá-lo como era, com um temperamento forte, um tanto
revoltado, dado à boêmia, isolado dentro de casa (ainda que fosse para as
leituras), capaz de demitir-se do emprego a qualquer momento, enfim, uma
pessoa nada satisfeita com seu destino e com a realidade que o cercava.
No que se refere a sua educação escolar, uma vez terminado o curso
normal, João Antônio entrou na faculdade, cursando jornalismo na Escola
Casper Líbero.136
Mas esse período foi o de alguns episódios que diretamente o

135
Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o
Inferno, São Paulo, Scipione, 1991.
136
Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada: João Antônio, São Paulo, Abril Cultural,
1980.
109

inspirariam na composição dos primeiros contos – como é o caso da paixão


por uma japonesa namorada de um amigo –, e também o momento de
grande abertura para as mais diversas formas de fruição artística. Sua
curiosidade pelas artes está tão aguçada, sua solidão familiar tão completa,
que ele se volta em várias direções e não pára de conhecer e buscar. Pela
música, sua paixão cresce como nunca: “Não tendo com quem falar sobre o
que lia. Não tendo uma escola que me interessasse. Acabei na Liberdade, vi
as mulheres, a pintura, judô, sakê, gravura, fotografia, música. Nessa coisa
de música me apeguei, viciado. (...) Só exigia talento, que aprendi a ouvir
em rodas de chorões. Nada desafinasse. Nasceu-me, rasgando, o amor por
Noel, Araci, Ciro, Ismael”.137
Solidão e literatura serão coisas inseparáveis a partir daí. Seja por
simples característica de seu processo criativo, seja pelas diferenças de
gênios entre ele e sua família de origem, ou, no futuro, pela determinação
de não sacrificar sua carreira para sustentar dependentes, a literatura sempre
puxou João Antônio para a vida solitária: “É um ato de extrema solidão
[escrever], indivisível, que me torna uma criatura irascível – quando
escrevo, só penso em escrever –, que destrói as pessoas ao meu redor, que
anula os meus dependentes. É uma coisa meio brava”.138
A partir de 1956, ele já escreve com freqüência, além de fazer muito
mais: “Depois da nissei, o amor e não o conto, destrambelhei por uma
febre, de teatro e cinema, de bordéis e de muquinfos, de madrugadas e
armações, me enfiando e saindo de empregos, amanhecendo, taco de sinuca
na mão, nos cantões da Boca do Lixo, arrumando chavecos e me
enxodozando por lá, jogando, amando, bebendo e levando na cabeça. De
enfiada, danando a botar pra fora os vinte anos, mulherio e esbórnia,

137
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
138
Entreviata concedida a Lídice Leão e Maria Silva Pereira, publicada no Jornal da Tarde, São Paulo,
13/07/91.
110

solidão, alegrões e falências secretas. Vivi”.139


Neste mesmo ano, ele escreveu um conto chamado “Índios”,
atualmente desaparecido. Ele, porém, assim nos fala do resultado: “É um
conto péssimo, péssimo. Péssima experiência. Coisa pré-histórica, cheia de
influências, de manias, de cacoetes aprendidos com outros autores. Pouco
serve de referência.
‘Índios’ é de 1956, meu ano de influência de Graciliano Ramos. Eu lia
o velho Graça de trás para adiante, de vante a ré, de cima para baixo, de
baixo para cima. De todo o jeito, “Índios” é uma estupidez. Mas ganhei
com ele uma menção honrosa n’ A Cigarra. O que foi outra estupidez”.140
E o contato com o cinema de arte também é importante. “Um
jornaleiro de Vila Anastácio, o João Vigiano, me passava as informações de
um cinema que eu não tinha idéia que pudesse existir. Descobri o cinema
japonês em Santa Cecília e na Liberdade e, mais tarde, acabei entrando para
a Sociedade Amigos da Cinemateca, que foi muito importante para a minha
formação. Tinha lá o Paulo Emílio Salles Gomes, o Jean-Claude
Bernadet.”141 “Depois, só depois das lições de João Vigiano, pintor e
jornaleiro, descobri que um filme tinha diretor.”142 Conheceu também Rudá
Andrade e Maurice Capovilla, sendo que este último, muitos anos depois,
levaria para as telas o conto longo “Malagueta, Perus e Bacanaço”. Enfim,
139
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
140
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/09/1959.
141
Entrevista a Nilo Scalzo, Lourenço Dantas Mota, Waldecy Tenório e Teresa Odonto, publicada em
O Estado de São Paulo, 13/02/83. Em carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 05/09/1961, João Antônio diz:
“Surpreendente (na verdade – surpreendente!) conhecimento dos seus amigos lá da Cinemateca.
Maurice Capovilla, Jean-Claude e os que deles me vieram.” – parecendo indicar que Ilka era uma
referência importante entre eles e os membros da Cinemateca. Não obstante, se é que essa
intermediação de fato se deu, criou-se uma amizade sem intermediários entre João Antônio e os
cineastas, como prova uma carta a mesma Ilka, de 06/10/1961, em que João Antônio diz: “Maurice
Capovilla. Este menino, sabe Ilka, ele e Luís Paulino têm me ajudado muito, entusiasmando-me a que
me entusiasme com minhas coisas. (...) Finalmente Paulino conseguiu autorização para a produção do
documentário sobre o Tietê [projeto que juntos os três arquitetavam há alguns meses]. Eu e Maurice o
ajudamos também num roteiro de um filme de ficção sobre o Tietê. O título, difícil, parou aqui: A
Morte dos Luminosos. Por enquanto. (...) “Malagueta, Perus e Bacanaço” entusiasmou-os. Tanto que,
eu e Maurice começamos já a trabalhar o roteiro.”
142
Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o
Inferno, São Paulo, Scipione, 1991.
111

ele encontrava um cinema que não mentia, que mostrava as pessoas e suas
vidas como realmente eram, e nessa fase assistiu a ciclos de cinema sueco,
indiano, polonês, francês, japonês, russo, italiano e de cinema de
animação.143 Tudo isso se passava no Ibirapuera ou na sala Sete de Abril, o
cine Coral. Leu e estudou cinema na época.
Ele conta, desse envolvimento com o cinema, o seguinte episódio:
“Dei, também, para ouvinte de cursos de literatura na Faculdade de
Filosofia da Rua Maria Antônia. Diacho. Aquilo chamado romance era
sério. Também os filmes.
Uma noite, ninguém esperava, Antonio Candido começou sua aula
sobre o romance Senhora, de Alencar, dando um esporro na chamada
burguesia paulista.
Devíamos, de imediato, assistir a um filme que passava
comercialmente no Coral. Era um italiano, de Antonioni, A Aventura. Tão
bom que a platéia vaiava o tempo todo, xingava ou, debaixo de
reclamações, deixava a sala de exibição”.144
Em carta de 1960, ele dá uma idéia do repertório cinematográfico e de
sua familiaridade com os nomes de atores e diretores: “Vi bons filmes,
embora perturbado mentalmente. Febre. Vi ‘Hiroshima, Mon Amour’;
‘Roma, Città Aperta’, de Rossellini, com Aldo Fabrigi e Anna Magnani; vi
‘Paisà’, de Rossellini, com Maria Michi e Gar Moore, e vi, ‘Ossessione’ (ô
filme! ô loucura, sabe, o que é loucura?) com Massimo Girotti e Clara
Calamari, o diretor é Luchino Visconti”.145
Nesta mesma época, de insaciável abertura para as artes, João Antônio
chega ainda a fazer aulas com o grupo do Teatro Arena, “onde era mestre

143
Entrevista a Nilo Scalzo, Lourenço Dantas Mota, Waldecy Tenório e Teresa Odonto, publicada em
O Estado de São Paulo, 13/02/83.
144
Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o
Inferno, São Paulo, Scipione, 1991.
145
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/08/1960.
112

Kusnet e muitos outros pontificavam ou começavam a existir”.146 Lá teria


conhecido pessoas como Augusto Boal, Milton Gonçalves, Gianfrancesco
Guarnieri147 e Oduvaldo Viana Filho, com eles aprendendo várias técnicas
de interpretação e de memorização de textos. “Seus companheiros do Arena
Paulista apostavam em seu talento de ator cômico – mas João Antônio
preferiu escrever.”148
Em entrevista concedida em 1976, o escritor fala assim da experiência
no Arena:
“P: Quer dizer que o teatro foi importante na sua carreira de escritor?
R: Foi. Inclusive eu era bom ator, levava jeito. Tinha uma tendência
para o cômico.
P: E por que abandonou?
R: É que não dava para conciliar as duas coisas. São atividades
bastante absorventes e distintas entre si. Embora nunca tenha me
profissionalizado, continuo apaixonado por teatro.”149
A partir de 57-58, intensificou sua participação em concursos literários
e as publicações de seus contos em jornais e revistas.
Por essa época, por exemplo, publica o conto “Busca”, na Revista do
Globo150, e ganha um concurso do jornal Tribuna da Imprensa (1958), com
o conto “Meninão do Caixote”.
“Corria um tempo em que escrevia à mão e dizia o texto em voz alta.
Depois, só depois, bem mais tarde é que passava à máquina, na limpeza e
na pureza. Não me entrava na cabeça alguém escrever diretamente. Se
aquilo era me curtir e recurtir, sofrendo e sugando como quem extrai a vida.

146
Entrevista a Nilo Scalzo, Lourenço Dantas Mota, Waldecy Tenório e Teresa Odonto, publicada em
O Estado de São Paulo, 13/02/83.
147
Guarnieri viria a representar seu personagem Perus, na adaptação de seu conto mais famoso,
“Malagueta, Perus e Bacanaço” para o cinema, dirigida por Maurice Capovilla e lançada na segunda
metade dos anos 70.
148
Revista Veja, São Paulo, 16/07/75.
149
Entrevista a Ruy Fabiano, publicada no Diário de Notícias, em 14/02/76.
150
Mencionado nas cartas mas não localizado.
113

Lambendo e brincando, uma a uma as palavras, atento, embalado, amante –


do jeito, do sestro, do desenho, sonoridade, sensualidade, doçura, porrada,
murro, cipoada e suor particular de cada uma das palavras. Uma, duas e
cem vezes eu dizia, no quarto, voz alta. Diretamente à máquina. Onde já se
viu?”151
Como conseqüência desse esforço de afirmação literária, João Antônio
começa a fazer contatos com outras pessoas do meio, e vai abrindo
caminho para sua inserção definitiva na “carreira”.
Um episódio simbólico marca essa transição, o qual assim nos é
contado pelo irmão do escritor:
“Um belo dia meu pai estava no bar, a casa onde vivíamos era longe, e
chegou um automóvel [um modelo americano, Studebaker ou Mercury152].
Naquela época eram raros os automóveis e dele desceram quatro homens de
terno [eram: Ricardo Ramos, diretor editorial da editora Civilização
Brasileira, Otávio Issa, Roberto Simões e Ronaldo Moreira153], e
perguntaram pelo meu irmão. Meu pai levou um susto, achando que eram
policiais, pois estavam muito bem vestidos e meu irmão já freqüentava a
vida noturna, gostava de jogo, gostava de sinuca. Aí um deles se
apresentou. Era Ricardo Ramos, filho do Graciliano, e tinham vindo
conhecer meu irmão por causa de um dos contos que havia publicado. Aí
foram lá para casa e passaram o dia lá, depois voltando várias vezes”.154
A biografia autorizada do escritor diz mais: “Conversaram com João
Antônio e ficaram surpresos com a sua idade [entre 21 e 23 anos]: acharam
que o autor daquelas histórias de malandros, que revelavam muita vivência,

151
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
152
Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada – João Antônio, São Paulo, Abril, 1980.
153
Idem.
154
Depoimento colhido em 23/3/2000. No próximo capítulo deste trabalho, que enfocará justamente os
anos pré-publicação do primeiro livro, 1958 a 1963, procurarei demonstrar, a partir de sua
correspondência, como João Antônio montou uma verdadeira rede de contatos literários, que alicerçou
seu lançamento como escritor, e, na medida do possível, por que nomes era formada essa rede.
114

fosse uma pessoa bem mais velha”.155


Mas o próprio João Antônio tem sua descrição do episódio, que coloca
como determinante em sua vida:
“Um dia, mandei com pseudônimo maroto e lírico carta ao Rio
pedindo publicação de meus contos. E segui, tocando a vida. Que não há
nada para ser tocada quanto a vida, e se você está fora dos ambientes como
é que vai ver a festa do mundo?
Era um sábado, era um sol, era um dia 28 de setembro. E, claro, eu
bebera na sexta-feira da semana inglesa. Ressaca na boca e nas pernas. Os
olhos miúdos e inchados, a cara enorme. Provavelmente precisaria de
óculos escuros para enfrentar a luz do dia.
Esponjei-me na soleira do quarto. Naquele momento, o carro de
quatro portas, americano e cinza do romancista freava na porta do bar.
Desciam quatro homens, paletós e gravatas. Eles se chagavam para o
balcão. A carta do Rio indicava o endereço do bar. Um deles falou o
pseudônimo mais sestroso que já usei até hoje – Paulo Melado do Chapéu
Mangueira Serralha.
— É aqui que mora o senhor...?
Meu pai abaixou a cabeça. Atarracado, triste, português
envergonhado:
— Sim. Os senhores são da polícia?.”156
É possível imaginar o impacto dessa visita na vida de João Antônio,
de três formas. De um lado, legitimou, ou pelo menos ajudou a legitimar,
sua vocação literária aos olhos da família. De outro, colocou-o em contato
com escritores profissionais, com articulações literárias fortes e bem
posicionadas no meio editorial e jornalístico. Em contato com o filho de
Graciliano, seu ídolo maior até ali. Mas, sobretudo, estes homens
155
Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada - João Antônio, São Paulo, Abril, 1980.
156
Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,
Record, 1982.
115

personificavam certas diretrizes estéticas, oriundas do repertório


modernista, que o jovem escritor perseguia. Com eles aprendeu muito sobre
elas. O próximo capítulo esmiuçará a importância “política” da visita, bem
como a influência propriamente artística que Ricardo Ramos e seu grupo
exerceram sobre João Antônio. Por enquanto, basta dizer que o encontro
faz parte desse contexto de extrema abertura intelectual.157
Mas esta abertura intelectual para o mundo corresponde a uma
inquietação profunda, e a uma virtual ausência de endereço fixo. Ora está
na chácara de um amigo em Bororé, ora num endereço em Vila
Hamburguesa, ora vai ao Rio de Janeiro, para sua conhecida favela da
Cachoeirinha, na casa do tio Otacílio, onde desanda a “acreditar no modo
novo de cantar e viver das favelas, que é onde mais se canta no Rio, circulo
como se procurasse uma claridade (...) Minha mãe, chorosa, dá um nome a
isso. Andaço”.158 “Rio. Lapa. Os Arcos. Dezessete cabarés tendo por cima
dezessete salões de sinuca. Seis meses lá, doidando”.159
Em 1960, paralelamente ao trabalho de composição do conto longo
“Malagueta, Perus e Bacanaço”, João Antônio flertou com um outro conto,
chamado “Gibóia”, que “será o nome de uma história em pleno batifundo,
com toda a aparente imundície, a que eu prefiro e recomendo se chame
intensidade”. O personagem principal, de nome Rui e apelidado de Gibóia,
seria um gigolô, e o conto narraria “as tristezas, vergonhas, surras,
humilhações, que as mulheres de ‘Gibóia’ sofreram, prostituindo-se. E o
espigado, pálido, sentimental e arrogante Rui, sobre os telhados do mundo
baixo, gritando:
— Deus só faz conta da gente quando a gente pede alto!

157
Além de literatura, cinema e teatro, João Antônio sente-se também tentado à pintura e à fotografia:
“Por outro ângulo, Ilka, descubro a fotografia. Já é urgente, já me é urgente aprender a fotografar.
Estou apaixonado pela fotografia. É coisa séria, ouviu?” Trecho de carta enviada a Ilka Brunhilde
Laurito, de 05/09/1961.
158
Idem.
159
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/1960.
116

Gibóia não morrerá porque personagem meu não morre. Como todo
valente da macumba, ele apodrecerá como Paulinho-Perna-Torta, Aladim e
outros”.160
Num rápido parêntese, vale notar o quanto seus personagens são
inspirados em figuras reais, vários em lendas vivas do mundo da
malandragem. Vale notar também que, muito provavelmente, este conto
“Gibóia” foi a gênese da novela, ou conto longo, “Paulinho-Perna-Torta”,
escrita por encomenda após a publicação do primeiro livro do escritor.
Continua João Antônio a falar de seu projeto de conto: “Assim,
aproximadamente assim, terá início “Gibóia”. Sereno e quieto como uma
neblina paulistana. Frases iniciais hão de ser assim:
‘— Lembra?
E o homem estirou o dedo que indicava o prédio em demolição’.”161

Mudança para o Jaguaré e incêndio

Ainda em 1958, João Antônio Ferreira, pai, quita sua parte da dívida
com os credores de sua falida pedreira. A família Ferreira muda-se
novamente. Embora a biografia autorizada do escritor dê como novo
endereço o bairro do Jaguaré, “situado entre a Lapa e Osasco, formando um
triângulo com Presidente Altino e Vila Anastácio”, é mais facilmente
comprovável o endereço mencionado pelo irmão Virgínio: “Quando
terminou aquela coisa toda na Vila Anastácio, quando terminou o rebuliço
todo na nossa família, havia sobrado uma casa do meu avô no Morro da
Geada. Voltamos para o Morro, no dia em que o Brasil ganhou da Rússia

160
Idem, de 26/05/1960.
161
Idem, ibidem.
117

na Copa do Mundo. Em junho de 1958”.162


“A casa ficava no Morro de Presidente Altino” – confirma João
Antônio – “Era uma casa de 1928, construída pelo meu avô.”163
Dois anos se passaram. João Antônio teimosamente correndo atrás de
sua carreira literária, e Virgínio, o irmão caçula, crescendo: “Virgínio está
homem. Um tórax enorme, um enorme coração. Tenho amor nesse menino.
Gosto dele, do seu jeito simpático, bonitão, alegre, aberto. Tem uns olhos
bons e vive contente da vida.
— João.
Forte como um touro. Muito forte, corado, bonito, agradável. Só tem
amigos. Encanta, alegra, faz ambiente.
— João”.164
Porém, no fatídico dia 12 de agosto de 1960, um incêndio destruiu,
completamente, a casa dos Ferreira. Não sobrou nada. Foram-se todos os
pertences da família, os móveis, as roupas, o bandolim feito por Romeu di
Giorgio, a coleção de O Crisol, e, pior que tudo, foram-se os originais de
todos os contos de João Antônio, inclusive do inédito “Malagueta, Perus e
Bacanaço”.
“Pobre tem que fazer tudo duas vezes, e muito bem feito, se não quiser
fazer outra vez.” – foi a frase categórica e de trágica amplitude com a qual o
pai do escritor, com seu costumeiro espírito proverbial, esclareceu o
significado de mais aquele revés.
A desorganização geral na vida familiar obrigou os Ferreira a se
dividirem. O irmão Virgínio foi morar numa casa com a avó materna, Nair
Cardoso Gomes, lá mesmo em Presidente Altino. A mãe e o pai alugaram

162
A primeira carta do escritor para sua amiga, paixão platônica, interlocutora literária e confidente,
Ilka Brunhilde Laurito, data de 1o de setembro de 1959, e inicia-se da seguinte forma: “Esta carta vem
do último subúrbio. Do Morro de Presidente Altino, talvez seu desconhecido”. As demais cartas que
compõem esta ampla e comovente correspondência têm o mesmo endereço do remetente.
163
Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.
164
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 25/12/1960.
118

um quarto na Barra Funda, na Praça Olavo Pilar, sendo que ele, João
Antônio Ferreira, viu-se obrigado a abandonar o comércio, com quase
cinqüenta anos e após tantas cruéis rasteiras do destino, e a entrar no ramo
de carretos, no qual terminaria seus dias. João Antônio Ferreira Filho, após
a destruição provocada pelo incêndio, ficou sem pouso fixo, dormindo de
favor cada noite em um lugar, na casa de amigos da boêmia e da sinuca,
com namoradas daqui e dali ou com prostitutas da Boca-do-Lixo.
Conta João Antônio: “Esse incêndio foi motivado por um ferro
elétrico não automático e quando os vizinhos tomaram conhecimento a casa
já tinha ardido. Estávamos todos fora e eu trabalhava como redator numa
agência de publicidade, a agência Petttinati, na Rua Conselheiro
Crispiniano. Quando vi o incêndio, simplesmente perdi a fala. Aí, então,
começamos a ter todos os problemas de sobrevivência. Foi uma luta braba
que dividiu a família. Depois do incêndio fiquei muito traumatizado, a
ponto de não poder entrar em livrarias”.165

Perda e recuperação de seus originais

A perda dos originais do livro e do conto “Malagueta, Perus e


Bacanaço” leva o jovem escritor ao desespero. Um dos amigos que o
incentivou a reescrevê-los foi o poeta, jornalista e editor Mário da Silva
Brito. Não se sabe ao certo como os dois haviam se conhecido, mas tudo
indica que por meio dos contos enviados por João Antônio, durante os anos
de 1958 e 1959, ao jornal Estado de São Paulo, onde Mário da Silva Brito
era um dos colaboradores. Tendo nascido em 1916, Silva Brito era quase
vinte anos mais velho que João Antônio, e ao que se percebe nas cartas e na
interpretação dos fatos, tornou-se, por admiração sincera ao talento do
165
Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.
119

jovem escritor, e tendo em vista as dificuldades com que se defrontava,


uma espécie de conselheiro e protetor.166 “Graças a um ‘esporro’ que me
deu o Mário da Silva Brito, retomei o trabalho de reescrever o
‘Malagueta’.”167
Mas, como fazê-lo? Reza a lenda sobre o escritor, que ele teria
reescrito todo o livro, apenas a partir de sua prodigiosa memória. A verdade
é, e não é, bem essa.
Ilka Brunhilde Laurito reconstrói a situação, a princípio, de maneira
dramática: “Em princípios de agosto, depois de um largo silêncio, recebo
um telefonema desesperado de João Antônio. Sua casa havia pegado fogo.
E, junto com a perda de seus objetos queridos, seus quadros, seus livros,
sua máquina de escrever, ele também perdera os originais do conto que lhe
custara tantos meses de trabalho e sofrimento.
Apesar do irremediável de uma tragédia que, por extensão, também
me atingia, eu lhe dei quase uma ordem ao telefone: — Você vai
reescrever! Mas eu mesma não tinha a convicção, naquele momento, de que
esse milagre pudesse ser possível, eu, que acompanhara o laborioso
nascimento e crescimento da obra”.168
Porém, a mesma Ilka relativiza a gravidade da perda logo depois: “Ao
mesmo tempo, lembrei-me que minhas cartas continham largos trechos
transcritos do conto, que ele me enviava à medida que os produzia (...)
Assim, com o empréstimo de minhas cartas e de rascunhos de posse de
Caio Porfírio Carneiro – o amigo a quem ele confiava seus originais – mais
a prodigiosa memória que o fazia saber de cor trechos e trechos de uma
história com a qual convivera intimamente nos últimos meses, João

166
No próximo capítulo, onde será analisada a correspondência de João Antônio com Ilka Brunhilde
Laurito, formidável acervo documental inédito que se estende entre 1958 e 1963, analisaremos com
mais detalhe a relação de João Antônio com o meio literário, e nesse meio, com Mário da Silva Brito.
167
Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.
168
Laurito, Ilka Brunhilde – “João Antônio: o inédito”, in Remate de Males, Revista do Departamento
de Teoria Literária da Unicamp, no. 19, Campinas, 1999,
120

Antônio entregou-se ao árduo trabalho de reelaborar o conto incinerado”.169


Não se sabe ao certo que originais o colega Caio Porfírio detinha, mas
também o próprio João Antônio possuía, na segunda gaveta à esquerda de
sua mesa na Pettinatti – “um pouco de literatura no mundão de publicidade
que ali se amontoa” –, o seu velho álbum de coisas publicadas nos jornais e
nas revistas, entre as quais, logicamente, estava a sua produção.170 Caio
Porfírio disse o seguinte sobre a novela título do livro: “A Ilka tinha uns
esquemas das personagens. Eu tinha a história montada. Tinha 70% do
livro, descosturado, numa primeira versão. Você sabe que o João Antônio
começou a dizer a todo mundo que ele começou do zero. Eu dizia a ele:
‘Rapaz, você é um filho da puta. Você pegou todo o rascunho comigo.’ E
ele respondia: ‘Fica quieto, Caio. É marketing.’”171
Mas seria leviano demais imaginar que o duplo episódio, do incêndio
e da perda dos originais, não tenha sido realmente traumático.
Numa comovente carta, João Antônio se lamenta: “Saudade da voz
dos discos que eu tinha. Saudade da Araci, da voz dela, daquela cadência,
que me arrepiava. Saudade do retrato na parede, dos livros na estante, das
coisas de bronze, do giz americano, da escrivaninha. Ilka, o incêndio não
acabou ainda. Estou quase chorando”.172
Conta João Antônio: “No dia 12 de agosto daquele ano [1960], houve
um incêndio na minha casa que queimou tudo, inclusive os originais
manuscritos (naquele tempo, eu só escrevia à mão). Ficamos, eu, meu pai,
minha mãe, minha avó e meu irmão Virgínio, com a roupa do corpo.

169
Idem.
170
Este caderno sobreviveu ao incêndio, pois, naquele dia, estava na gaveta da mesa de João Antônio
na redação da agência de publicidade. Embora não se saiba o conteúdo completo do caderno, cheio de
recortes de jornais e revistas, é quase certeza absoluta que seus contos já publicados deveriam estar lá.
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 15/06/1961. Além disso, pelo menos mais um amigo também
colaborou, cedendo ao escritor recortes de jornal com um de seus contos anteriormente publicados. O
amigo se chamava Osvaldo, e o conto em questão era “Natal na Cafua”. Carta a Ilka Brunhilde Laurito,
de 30/12/1960.
171
Depoimento colhido para esta pesquisa em maio de 2000.
172
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/08/1960.
121

Depois, a vida correu de novo, comemos o pão que o diabo amassou, (...)
Refiz todos os contos, com auxílio de vários amigos, de lá para cá, em
apartamentos emprestados e onde pudesse.”173
É fato que Mário da Silva Brito, novamente ajudando o escritor, e com
a desculpa de que João Antônio faria uma pesquisa sobre história da
literatura brasileira, conseguiu-lhe o direito de usar uma cabine da
Biblioteca Mário de Andrade, à noite, depois do trabalho, para reescrever o
livro.
“Agora, quando a noite começa eu já estou na minha cela. Cela – é a
cabina da Biblioteca Municipal. Cabina 21, cela da ressurreição de
“Malagueta, Perus e Bacanaço’ – três vagabundos em busca de uma
definição. Como é tranqüila a minha cela! Nem cigarros, nem café. Só, lá
fora, o relógio de ‘O Estado de São Paulo’ marca a noite.
E eu sou um monge na noite da minha cela. Há um silêncio religioso
que lembra, cá no segundo andar, uma viagem de ficção-científica. Eu
monge, faço a oração nervosa:
— Meu Deus: dá fé do artista, que, só tem na vida um terninho chacal,
muita zonzeira e uma vontade maluca de fazer uma quizumba a que ele
chamou de ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’. Meu Deus, me dá esta colher de
chá.
E ponho-me a desenterrá-los.”174
Mas um dado menos conhecido é a importância de sua participação no
Teatro Arena no episódio da reescritura do livro, e que explica a fama de
sua “memória prodigiosa”. Explica João Antônio: “Não, não foi apenas de
memória [que reescreveu o livro]. Se eu dissesse isso, estaria exagerando.
Acontece que eu estudei teatro, no Arena, com o Guarnieri, o Vianinha,
Milton Gonçalves e toda essa geração. Bem, no teatro, nós tínhamos aulas

173
Matéria não assinada de O Globo, RJ, publicada em 29/08/69.
174
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/09/1960.
122

de mnemônica, para facilitar a memorização do texto, e isto foi


fundamental para a recomposição do texto [do conto “Malagueta, Perus e
Bacanaço”].”175
“Aprendi um pouco do processo mnemônico, o que me favoreceu a
lembrança de trechos inteiros de ‘Malagueta’, porque todo o texto é ritmado
e tem um movimento para cada capítulo; por exemplo, Barra Funda é
assim: ‘O boteco era um de uma fileira de botecos’. Isso me ajudou muito
na composição, porque, empiricamente, eu escrevia por música.”176
Mas sua capacidade de guardar, por meio de sons, as frases, deve-se
também, como se vê, a sua antiga ligação entre sonoridade e leitura, música
e literatura. Diz um de seus resumos biográficos anteriormente publicados:
“Quando lia em voz alta para o pai, ainda pequeno, aprendeu, junto com o
choro, que as frases devem ter um ritmo, melodia. Foi lendo os clássicos e
modernos da língua portuguesa e percebeu que cada escritor tinha seu
ritmo”.177
Nem a perda foi total, como muitas vezes se acredita, nem a
reescritura se deu sem grande esforço e mérito do jovem escritor. Que mais
não fosse, pela escassez de tempo livre. Este processo de recomposição do
conto que viria a ser título de seu primeiro livro, e que se tornaria o mais
famoso de toda a sua obra, deu-se paralelamente ao trabalho como redator
de publicidade na Agência Pettinati e aos estudos noturnos.
E a dor do incêndio acompanhou-o por algum tempo, voltando para
incomodá-lo de quando em vez: “Vontade agora me veio dos meus livros.
Faziam-me bem e o fogo os queimou. Dos meus quadros e fotografias e
tudo”.178
Se alguma herança positiva lhe deixou o triste episódio, foi a liberdade

175
Entrevista a Ruy Fabiano, publicada no Diário de Notícias, em 14/02/76.
176
Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.
177
Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: O Ecritor Brasileiro Hoje, Lisboa, Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, e São Paulo, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, SP, s/d.
178
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 25/12/1960.
123

para sair de casa e viver a vida que imaginava mais adequada para seu
temperamento: “Eu talvez vá viver a vida que eu quis sempre, que eu tentei
tantas vezes e que fracassei, trazendo na volta uma cabeça baixa, alguns
quilos a menos e passagens escabrosas.
Mas daquelas vezes eu ia como que de empréstimo, temporariamente.
Desta, eu sei, irei certo como um relógio. Eu mesmo irei.
Quero viver, como já lhe disse, por telefone. A vida faz um jogo
errado comigo – quanto mais me castiga, mais eu gosto dela.”179
E foi adiante publicando, ou tentando publicar, seus contos nas
revistas e nos suplementos.180 “Meninão do Caixote”, diz o escritor, na
Revista da Academia Brasileira de Letras. Na propaganda, além do fixo na
Pettinatti, pegava trabalhos por fora.181 Nos suplementos, “Mário da Silva
Brito abriu-me novas portas. Décio de Almeida Prado também. Eu vou”.182
N’ O Estado de São Paulo, por exemplo, teve publicado seu conto
“Visita”.183
Em 1962, decide concorrer ao Prêmio Fábio Prado, promovido pela
União Brasileira de Escritores, com o conto “Malagueta, Perus e
Bacanaço”, ainda em fase de reeescritura. “O Prêmio Fábio Prado foi
prorrogado até 31 de março, o que me dá tempo para uma fatura literária

179
Idem, de 24/08/1960.
180
João Antônio elaborou idéias para contos que ou nunca chegaram a ser escritos ou estão perdidos.
Nesse último caso, espera-se, apenas temporariamente. Em carta a Ilka Brunhilde Laurito, de
25/12/1960, menciona um conto que gostaria de ter escrito chamado “Natal Por Aí”; “um conto que
fosse eu mesmo, purinho, agitado, intenso, profuso (...) anti-conto de natal ou coisa que o valha.” Em
outra carta a Ilka, de 24/01/1961, menciona mais dois projetos: “Avô Morto”, sobre o avô Virgínio, e
“Primeiro Prêmio a Um Jovem Escritor”, sobre o incêndio de sua casa. Em 06/10/1961, também em
carta para a amiga, menciona o conto “Depois dos Luminosos”, “título de um conto que ando
engendrando (...), visão da madrugada depois das quatro horas.” Em 31/10/1961, novamente em outra
carta para a mesma destinatária, refere-se a “Pequeno Amor em Terra Vermelha”, cuja frase final,
“com o personagem de centro caminhando, seria assim: ‘Tem nada não. Irei mesmo a pé a Terra
Vermelha. Tem nada não. Viverei em Terra Vermelha. Ali viverei.”
181
“Jorge Rizzini entregou-me mais trabalho. Extras publicitários.” Trecho de carta a Ilka Brunhilde
Laurito, de 08/09/1960. Não identificou-se, por enquanto, quem é Jorge Rizzini. Algum colega mais
experiente na própria Pettinatti? Um contato externo?
182
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/09/1960.
183
Idem, de 25/12/1960. Deve-se dizer, no entanto, que João Antônio não gostou dessa publicação,
pois o conto estaria “todo mudado, sem a quentura que tinha. ‘O Estado’ não se dá com as minhas
quenturas.”
124

mais digna e o que está me proporcionando uma experiência literária


séria.”184
Apesar de toda sua atividade, e dessa rede de contatos literários, em
1962, ao completar vinte e cinco anos, o escritor ainda se ressente de
solidão. “Este é o meu aniversário mais ilhado. Nem no quartel, entre
promiscuidade e imundície, eu estive tão solitário.”185 Sem endereço fixo,
“Quando morarei em algum lugar?”186, insatisfeito no emprego na agência
de publicidade, “Uma agência de publicidade é exatamente uma casa de
apostas.”187 – que o obrigava a cumprir horários, usar terno, anunciar como
grandes acontecimentos produtos que para ele não tinham a menor
importância –, sem um amor que o satisfaça, “Não amo como deveria,
como preciso. Não encontro a quem amar. Em matéria de amor o que
conheço são restos. Restos espirituais de restos humanos. Amor mesmo não
sei o que é. Sou um cru. Virgem inteiramente”.188, o jovem escritor
agarrava-se a sua literatura e dizia ser “necessário que eu me grite que
tenho amigos, bons amigos, que sou simpático, e por isso tenho amigos,
tenho minha mãe que me quer, tenho a ternura de Virgínio, tenho uma
porção de outras coisas, igualmente úteis e simpáticas. Mas nasci torto e
tais simpatias e utilidades não me resolvem quando deveriam”.189
De fato, seu relacionamento com o irmão parece ser uma fonte de
tranqüilidade, mas a vida sempre lhe reservava alguma surpresa: “À noite,
bati papo com Virgínio, meu irmão. Ele solou violão para mim, eu lhe falei
dos livros que vou publicar. Fomos dormir e à entrada da madrugada uma
dor aguda me acordou e eu acordei os outros. Eu não me agüentava. Veio o
médico. Injeções, isso e aquiilo. Há uma complicação nas minhas vias

184
Idem, de 27/01/1962.
185
Idem, ibidem.
186
Idem, de 31/10/1961
187
Idem, ibidem.
188
Idem, ibidem.
189
Idem, ibidem.
125

urinárias e sexta-feira serei cortado”.190


Esse pequeno incidente médico não foi grave e logo o escritor se
restabeleceu. Porém, antecipava muitos outros que viriam nos anos
seguintes, ainda com ele bastante jovem, típicos de uma saúde por um lado
férrea, capaz de suportar uma vida em geral desregrada e boêmia, mas com
pontos fracos, que revelar-se-iam ao longo do tempo, nos rins, no fígado e
na má-circulação sangüínea nas pernas.
No ano de 1962, porém, uma notícia importante pressagiou o sucesso
do primeiro livro de João Antônio. Sua vitória no Prêmio Fábio Prado era,
de longe, a mais significativa já conseguida por qualquer um de seus
contos. No ano seguinte, uma vez publicado em livro, Malagueta, Perus e
Bacanaço191, que reúne os oito contos em que trabalhara mais
sistematicamente até então, e mais a novela-título, reescrita, a vida do
escritor se transformou radicalmente.
Um detalhamento, porém, desses anos que antecederam ao
lançamento do livro – que mostre suas preocupações estéticas na época,
seus dilemas profissionais e literários; que evidencie como o sucesso
deveu-se à qualidade literária dos contos, e também a uma rede de apoios
no meio literário, competentemente montada pelo próprio João Antônio; ou
como funcionava, mais profundamente, a cabeça do jovem escritor; quais
as características primordiais de seu temperamento e qual o papel da
literatura em sua vida, etc –, é assunto para o próximo capítulo.

190
Idem, de 23/05/1962. Embora a carta esteja datada de 1961, e embora seja estranho que, ainda em
maio, o escritor se enganasse quanto ao ano em que estava, a rigorosa ordem cronológica com que Ilka
Brunhilde as guardava, e várias referências contidas no texto da carta indicam o ano de 1962 como a
única datação possível.
191
Antônio, João – Malagueta, Perus e Bacanaço, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963.
126

Capítulo 2

A alma das cartas


127

Marcos de início de carreira

“Prezada Sra. Ilka Brunhilde Laurito,

Esta carta vem do último subúrbio. Do Morro de Presidente Altino,


talvez seu desconhecido. (...) Também acontece que sou môço e faço
alguma literatura. Se é literatura mesmo, não sei. O fato é que tenho
logrado ganhar alguns prêmios e tenho escrito uns troços que alguns
escritores de meu convívio dizem prestar.”192
Com este tom humilde, no dia 1o de setembro de 1959, portanto aos
22 anos, o ainda iniciante João Antônio inicia um longo período de
correspondência regular com a cronista/poetisa/professora/cinéfila Ilka
Brunhilde Laurito. Natural de São Paulo, e doze anos mais velha que
João Antônio, Ilka Brunhilde seria até 1965 a interlocutora preferencial
do jovem escritor, com quem ele trocaria suas mais íntimas confidências,
tanto no nível pessoal quanto no que se refere a seus projetos literários e
estéticos. Nesse intervalo de seis anos ocorrem alguns marcos
fundamentais na evolução da história literária de João Antônio, e a
correspondência, se não nos fornece datas absolutamente precisas para
todos eles, nos dá ao menos balisas bastante nítidas para que possamos
situá-los num plano cronológico.
Como vimos no primeiro capítulo, a partir de 1956 João Antônio
começa a composição dos oito primeiros contos que mais tarde
aparecerão em seu livro de estréia, Malagueta, Perus e Bacanaço. Os
prêmios a que ele se refere na carta para Ilka são, com certeza, os
conquistados em concursos promovidos por jornais e revistas da época,
alguns já citados anteriormente e que merecerão referência mais
192
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 01/09/59.
128

aprofundada adiante. Mas o início da composição da novela título do


livro – última peça a ser escrita e também premiada antes de sua
publicação –, seria o primeiro marco a despontar na leitura da
correspondência. A partir das cartas com Ilka podemos deduzir que sua
produção começou por volta de março de 1960: “Amo. Malucamente
adoro três vagabundos numa noite paulistana com suas misérias,
camaradagens e um relógio de pulso. Trabalho na história Malagueta,
Perus e Bacanaço”.193 O segundo marco seria o incêndio de sua casa,
ocorrido em 12 de agosto de 1960 e mencionado em carta a Ilka que data
do dia 8 de setembro de 1960: “O incêndio não passou, Ilka. Inúmeras
vezes senti uma vontade bêsta de me sentar à mesa de um boteco
qualquer, e, ali ficar quieto, bebericando com serenidade, quieto”.194 O
terceiro marco seria, então, o início do processo de reescritura da novela
título que, como já foi discutido, foi o único texto do livro cuja reescritura
realmente esteve prestes a se tornar impossível e cujos trechos guardados
por Ilka foram fundamentais para que a obra ressurgisse na cabeça do
jovem escritor: “E ainda porisso (sic) lhe agradeço muito pela remessa
inicial de ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’, que eu amo tanto! Prometo-lhe
devolver-lhe (sic) todas as cartas e todos os trechos. Só que me
demorarei. Não faz mal, não? / Estremeço diante dos pedaços do conto.
Estremeço, é o verbo. Sem literatura: é o verbo. Mande-me o resto, Ilka,
por favor. Não sei quando voltarei a êles. Sinto vontade, maluca vontade
de voltar a êles. Não é o momento e só eu posso saber quando será o
momento. Então, voltarei com fúria”.195 Vale dizer que, em carta de 13 de
setembro de 1960 ele agradece o envio de novos trechos por ela
encontrados em meio às cartas, fazendo ainda uma longa digressão

193
Idem, de 07/03/60.
194
Idem, de 08/09/60. Vale frisar que, pelo tom da carta, fica implícito que já haviam conversado sobre
o assunto, num encontro ou, mais provavelmente, por telefone.
195
Idem, de 24/08/60.
129

explicativa sobre a ciência e a grandeza existencial da sinuca e da


malandragem e incluindo a primeira versão da dedicatória que apareceria
anos depois no livro; era ele esquentando os motores para a reescritura.
Finalmente, em 10 de outubro de 1960, ele toma a decisão: “Chego à
conclusão que já me chegou o momento em que não escrever é,
decididamente, perder tempo. Meus marginais querem solução. Dá-las,
dá-las. Já é tempo de voltar à lida brava”.196 Este processo de refatura da
novela título, cheio de idas e vindas, de crises de confiança em sua
capacidade de levar o trabalho a têrmo e de arroubos de entusiasmo com
os resultados parciais, tem sua última menção nas cartas em janeiro de
1962, quando as sub-divisões “Pinheiros”, “Água Branca”, “Barrafunda”,
“Cidade” já estavam quase prontas e ele ainda reescrevia “(...)
integralmente a fase ante-final de Pinheiros e a volta à Lapa. Um
trabalhão. A reconstrução não foi nada fácil.”197 O fim da reescritura seria
o quarto marco. Uma carta assinada pelo editor Ênio Silveira, dono da
editora Civilização Brasileira, formalizando o compromisso de publicar o
livro e datada de 9 de julho de 1962 estipula uma baliza óbvia para o
término do trabalho de refacção da novela título.198 A chegada do livro às
livrarias do Rio de Janeiro, cidade sede da editora, ocorreria em maio de
1963, aproximadamente no dia 22: “No Rio de Janeiro, meu livro já está
sendo vendido há bem quinze dias. (...) Fax dois-três que Malagueta,
Perus e Bacanaço circulam nas principais livrarias paulistanas. Meu
lançamento e tarde de autógrafos se realizará na Livraria Teixeira, à Rua
Marconi número 40, no dia 21 dêste junho às 18,00 hs. É uma sexta-feira.

196
Idem, de 10/10/60.
197
Idem, de 27/01/62.
198
Esta carta foi encontrada nos arquivos da editora, que atualmente é um selo subsidiário da editora
Record.
130

Você receberá um convite”.199 O lançamento, obviamente, seria um


quinto marco.
Em seguida, outro marco neste período da carreira e do
desenvolvimento literário de João Antônio é a encomenda, feita pelo
mesmo Ênio Silveira, para que ele escrevesse um conto baseado no
mandamento bíblico “Não Roubarás”, que seria incluído na antologia Os
Dez Mandamentos, com publicação prevista para o ano seguinte, 1964.
Este convite é de fundamental importância não apenas porque João
Antônio integraria no projeto uma lista de ilustres escritores, como Jorge
Amado, Guilherme Figueiredo e Marques Rebêlo, entre outros, mas
também porque a novela que resultou da encomenda, “Paulinho Perna
Torta”, evidenciará, como veremos no capítulo 3 deste trabalho, a
profunda reorientação estética e estilística do escritor, coroando o mesmo
processo que separa, do ponto de vista formal, os oito primeiros contos
do livro de estréia de sua novela título. Foi impossível a essa pesquisa
situar com maior precisão a data em que a encomenda teria sido feita,
mas pelas cartas a Ilka fica-se sabendo que desde a época do lançamento
do primeiro livro João Antônio ganhara maior proximidade com o editor,
e mais, que um de seus “padrinhos” no meio literário, Mário da Silva
Brito, havia recentemente migrado para o Rio de Janeiro para trabalhar na
própria Civilização Brasileira: “(...) Mário da Silva Brito que está no Rio,
como você sabe, na posição de diretor editorial da Civilização
Brasileira”.200 Em junho de 64, finalmente, o último marco nessa fase
inicial de sua carreira como escritor; a novela “Paulinho Perna Torta”
acabara de ser terminada: “Quanto a mim, tenho algumas boas novas.
Terminei (uma semana antes do tempo fatal) a novela que Ênio Silveira
me pediu e confiou para constar da nova coletânea a ser lançada pela

199
Idem, de 07/06/63.
200
Idem, de 20/03/63.
131

Editora Civilização Brasileira, Os Dez Mandamentos. E nem foi


necessária a minha chegada ao Rio de Janeiro: uma vinda muito
providencial de Mário da Silva Brito a São Paulo permitiu-me que lhe
entregasse os originais de ‘Paulinho Perna Torta’. A coletânea seria
publicada no ano seguinte. Na segunda-feira passada, eu recebia um
telefonema da Civilização Brasileira, dizendo-me que a novela foi
recebida como ‘impressionante’. Ênio Silveira já autorizou a pagamento
do combinado sôbre os direitos autorais.”201
Este processo de seu lançamento no meio literário, e de
consolidação de seu projeto estético, foi impulsionado, em 1964, com sua
ida para o Rio de Janeiro, contratado pelo Jornal do Brasil, à época uma
dos mais importantes do país, como repórter especial.
Estes são os marcos que se destacam no rico acervo documental de
Ilka Brunhilde Laurito e que é preciso ter sempre em mente na leitura
deste capítulo. Voltaremos a eles todos, com maior vagar, no desenrolar
do trabalho. Antes, porém, uma vez que este se propõe a cobrir também
os aspectos mais relevantes na vida do jovem escritor, é preciso ainda
uma vez acrescentar e/ou retomar certos dados biográficos,
aprofundando-os na medida do possível, para que fique mais nítido o
entendimento que João Antônio tinha de si mesmo, dos que o cercavam,
da forma com que se relacionava com os outros (no âmbito pessoal e
profissional), de sua vocação literária e do papel da literatura em sua vida.

Algumas definições de literatura

Em setembro de 1959, João Antônio escreve a Ilka e agradece-a


por alguns livros de poesia que lhe havia presenteado: “Há bons poemas
201
Idem, de 08/06/64.
132

de que eu gostei e há outros. Bons, mas que não se afinam comigo.


Quando você me conhecer, talvez perceba que êste negócio da afinação é
mania minha. Não é afinidade não. É afinação”.202 Este primeiro trecho
traz novamente à tona dois aspectos importantes da relação de João
Antônio com a literatura. O primeiro diz respeito à já mencionada
simbiose entre música e literatura. Mas o termo afinação remete também
à literatura como uma forma de auto-conhecimento.
Em seguida, em junho de 60, uma nova definição de literatura
aparece nas cartas, quando ele discorre sobre uma nova história que está
escrevendo, a já mencionada “Gibóia”: “‘Gibóia’ será o nome de uma
história em pleno batifundo, com tôda a aparente imundície, a que eu
prefiro e recomendo se chame intensidade (grifos do autor). Sei que a
imagem é pretensiosa, mas eu gostaria de fazer de ‘Gibóia’ um conto tão
amarelo e tão vermelho quanto um quadro de Van Gogh! Vermelho e
amarelo, amarelo e vermelho como o desejo e a paixão dos homens e das
mulheres. E, às vêzes, nas madrugadas eu usaria um cinza-chumbo, para
as tristezas, vergonhas, surras, humilhações que as mulheres de ‘Gibóia’
sofreram, prostituindo-se.”203 Essa associação entre imundície e
intensidade, entre literatura e sofrimento, é um pilar da obra de João
Antônio, que pode ter resultado da influência de Graciliano Ramos sobre
ele, ou dos escritores russos que adorava, ou dos sambas suburbanos de
Noel Rosa e da velha guarda da MPB, ou mesmo daquilo que ele
chamava de “literatura de homem”.
No mês seguinte, outra carta vai além: “E contente com Deus, que
me deu êste coração e que me tem concedido a graça de sofrer pelos
caminhos que me indicou. Porque só escrevendo sou inteiro. Tudo é meu
então. (...) Se não escrevo eu não sou ninguém. Se não amar o que

202
Idem, de 23/09/59.
203
Idem, de 26/5/60.
133

escrevo, não escrevo. (...) Coisas passei e curti dores, que absolutamente
não eram para um rapaz de menos de vinte anos. Não eram. Minha vida é
tôda novelesca. E há fatias imundas, que não se contam na primeira
pessoa. Mas a natureza me premiou com o Dom da Contemplação diante
dos castigos e eu fui purgado.”204 Neste trecho, não apenas se integram
literatura e imundície exterior, leia-se miséria e injustiça sociais, mas
também a elas soma-se sua própria experiência biográfica. A escrita se
transforma num instrumento de purgação do sofrimento e das baixezas
que o jovem sentia dentro dele próprio. Diz ele ainda: “Melhor escrever
contos do que dizer que a vida não presta. Não? Todos sabem que a vida
não presta. Todos saberão escrever contos?”.205 A literatura se
transforma, inclusive, numa forma de se “afinar” consigo próprio, auto-
conhecendo-se e não mentindo: “Rememoro ‘Meninão do Caixote’,
mentalmente vivo a história e redescubro que ainda a amo e que não
minto quando escrevo”.206 Ou: “Trabalhando. Já descobri ou redescobri
pela décima vez, que se me vem alguma alegria nesta vida tonta, vem da
literatura. / Não negarei que sofro. Tristezas nêstes últimos dias. Fácil ver
que não sou ninguém como é fácil ver que sou um privilegiado. Escrever
é lindo e se nos custa, muita recompensa vem. Escrever é um Dom, Ilka.
Não é privilégio? Machuca, arrebenta, me larga quase chorando. Mas fico
inteiro. (...) Preciso dizer a mim mesmo o que sou no fundo de tudo, e há
de ser num conto, que é meu instrumento. Eu, eu, dolorido,
desengonçado, sublime ou maldito, profuso. Eu que não grite, que sofra,
que enxergue e ame, silenciosamente. Eu preciso me contar que apesar
dos tropicões, sou eu mesmo, quieto, orgulhoso. Humilde”.207

204
Idem, de 06/06/60.
205
Idem, de27/10/60.
206
Idem, de 19/12/60.
207
Idem, de 24/01/61
134

Pode-se especular, nesse entroncamento entre sua própria vida e a


literatura, que faz sentido sua divisão entre análise fria e análise
participante, que diferenciaria os dois tipos básicos de escritor: “Volto
após meses, aturdimento e confusão, à mesma consciência de escritor que
me fêz e que me deu ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’, ‘Meninão do
Caixote’, ‘Fujie’ e outros gritos. À análise. Não a análise fria de um
Flaubert. Torno à análise participante, a que nasceu comigo, a coerência,
a justiça, que são sensos que eu sinto, desde menino, e que me faz (sic)
até hoje um estrepado, auto-fiscalização até mesmo do número de
cigarros fumados”.208
Essa procura por um espaço onde pudesse ser “inteiro”, onde seu
senso de verdade e de justiça aflorasse sem os freios das conveniências
cotidianas, pessoais ou profissionais, o torna simultânea e
obrigatoriamente um escritor cuja carga autobiográfica nos contos é
evidente. “Bicho complicado, meio vagabundo, meio escritor, devo para
meu bom governo verificar minhas origens. Maldito ou sublime ou
qualquer coisa menos empolada – isto sou. (...) Não obstante quando me
surpreendo enternecido na examinação de um personagem, dum isto ou
dum aquilo, duma rosa, por exemplo, me reconheço. Puro, nítido, ali
estou. Tanto faz ser uma rosa ou não rosa. Qualquer imundície desta vida
serve. Importante é estar enternecido para amar direito”.209
Muitos exemplos poderiam ser aqui enumerados para a
transposição de dados ou episódios biográficos do escritor para sua
literatura. A repressão materna contra o amor do filho pela sinuca em
“Meninão do Caixote”, por exemplo; ou a experiência no exército que
transparece em “Natal na Cafua” e “Retalhos de Fome Numa Tarde de G.
C.”; ou o know-how da vida sinuqueira evidente em “Malagueta, Perus e

208
Idem, de 03/03/61.
209
Idem, de 30/06/61.
135

Bacanaço”. Poderia-se citar ainda os depoimentos de duas das pessoas


que mais conheceram João Antônio na época em questão, Ilka Brunhilde
Laurito e Caio Porfírio Carneiro. Diz ela: “João Antônio era um malandro
ele mesmo. Era a realidade que ele vivia. (...) a freqüentação dele era a
malandragem, onde ele achava o pessoal mais autêntico, mais dentro da
realidade do que o de outra classe social. Não acho que ele ter se voltado
para o mundo da malandragem tenha sido uma opção artificial, não, acho
que foi fruto da vivência. João Antônio era profundamente
autobiográfico, ele escrevia o que ele vivia. (...) Tudo é tirado da vida. Os
nomes ele tirava da realidade, eram os malandros que ele conhecia, as
prostitutas que ele conhecia”.210 Caio Porfírio Carneiro vai ainda mais
longe: “Eu dizia para ele: ‘João, você é mais escritor do que ficionista.’
(...) Daí porque ele fazia literatura voltada para o jornalismo, ele não fazia
ficção pura”.211 O próprio João Antônio dizia que: “Realmente não fui eu
quem os criou [aos seus personagens]. A vida foi quem. E depois me deu.
Deu por dar, simplesmente. Deu de graça, de presente. Eu os conheço
todos, eles e elas ainda vivem por aí, se agitam, se arrastam nas ruas”.212
João Antônio, certa vez, dando conselhos a Ilka, deixou
transparecer em parte seus procedimentos e, ao fazê-lo, mostrou o quanto
de fato escrevia preso à experiência direta e à sua biografia: “Escreva
sôbre a necessidade do amor que talvez seja tão intensa e ainda mais
sofrida mensagem. Fale de solidão, de pessoas sós, fale do valor que tem
o correio para você e esteja certa – quantas criaturas não se sentirão
identificadas, prontas a amar o que você escreveu. Escreva crianças,
adolescentes que se vincularam a você, que dependeram, que receberam e
depois se foram. Naturalmente, sem nenhuma crueldade. Como é na vida.
Escreva suas amizades e até suas contrariedades, que a vida é uma coisa e
210
Depoimento de Ilka Brunhilde Laurito, colhido em maio de 2000.
211
Depoimento de Caio Porfírio Carneiro, colhido em maio de 2000.
212
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/09/59.
136

é outra. Não se envergonhe e diga na primeira ou terceira pessoa, que


você é muito sensível e que sai do cinema torta, amassada, pequenina. E
não esqueça de dizer, por favor, que você tem vontade de morrer. Tenha
coragem e descreva suas orações e o seu oratório, mostre o seu quarto, o
seu amor às bonecas, apresente suas vizinhas de olhar pensador e amores
frustrados. Fale dos palhaços que você ama e que conversa com êles.
Mostre-os, um escritor mostra o que tem. Escreva que você ri em grupo, é
sociável, alegre, agita, convive; mas que em seu quarto você costuma
chorar, quieta. Pequenina porque não era toda a verdade. / Confesse que
foi-lhe necessário fugir da cidade e voltar a ela, como se volta à casa com
vontade de silêncio. / Se você fala sozinha, confesse; faça uma crônica
olhando-se no espelho, mostre o mistério – você tem muito mistério”.213
Mas é preciso atentar-se para um sentido mais profundo dessa
projeção autobiográfica defendida e praticada por João Antônio, que não
se limita a uma ou outra experiência direta transposta para o plano
ficional, ou a um determinado ambiente conhecido e recriado
literariamente. João Antônio quase sempre imbui seus personagens de
uma ideologia ou concepção de vida que são as suas, confundindo-se com
eles na medida em que os transforma em porta-vozes de sua revolta
social, ou de seu senso de justiça, ou de suas posturas diante da vida. No
caso dos seus “merdunchos”, que era como chamava as figuras do
lúmpem-proletariado que focalizava em seus textos, o sub-texto
ideológico é óbvio. Mas as concepções de vida merecem ser identificadas
igualmente, ainda que sejam um pouco mais sutis. Um caso gritantemente
explicitado pelo próprio escritor é o do personagem Paulinho Perna Torta.
Diz João Antônio em carta a Ilka: “(É Paulinho Perna Torta e um nôvo
João Antônio quem lhe escreve, num binômio muito bem encontrado: o
binômio que evita qualquer tipo de dissimulada, de coisa escondida). /
213
Idem, de 27/01/62.
137

Meu Paulinho Perna Torta me ensinou muitas coisas. Porque, para criá-
lo, eu precisei vivê-lo, eu precisei ter mil amantes prostitutas, eu precisei
descer a detalhes, fumar charutos holandêses, da marca ‘Duc George’.
(...) E fazendo Paulinho, também me ensinei. (...) Aprendi fazendo
Paulinho Perna Torta a lição da franqueza absoluta”.214

Vocação para o conflito

O desejo de se escrever por inteiro em sua literatura, sem meias


palavras, e de transformá-la num meio de promoção da justiça,
transforma-a num campo para que pudesse fazer esta última com as
próprias mãos: “Raiva, Ilka. Não há um dia em que não apareça um tipo
para eu detestar. As vontades do animal, justificáveis, inteiramente
humanas, são abafadas, às vêzes, com um abraço. (...) / Mas eu irei à
forra desta cidade e dêstes homens e destas mulheres. Êles hão de ver em
literatura. Cedo ou tarde, sem nome falso, sem abraço falso, sem outras
dimensões, sem sátira. Êles mesmos. Especialistas em matar qualquer
sensibilidade, intoxicados, narcotizados. Monstros. São Paulo é habitada
por monstros”.215
A expressão “vocação para o conflito” usada para caracterizar a
atitude do escritor em relação à literatura foi criada pelo prof. Antônio
Arnoni Prado, em seu texto sobre o “parentesco” literário estabelecido
entre João Antônio e Lima Barreto, que diz: “Um primeiro veio de
convergência possível poderia estar na disponibilidade ideológica para o
conflito, que define, tanto em Lima Barreto quanto em João Antônio, não
apenas a definição do espaço do texto, mas particularmente os modos de

214
Idem, 06/06/64.
215
Idem, de 28/03/61.
138

elocução no argumento”.216 João Antônio parece dar uma ligeira


confirmação para essa hipótese, ao dizer: “Sabe, Ilka, eu sou muito
rasgado na forma de falar. Rasgo o verbo”.217
Mas, além de explorar essa idéia no âmbito da sua produção
literária propriamente dita, não seria despropositado aplicá-la também em
termos biográficos. Um aspecto recorrente na correspondência com Ilka,
e que revela as implicações dessa índole voltada para o conflito no
cotidiano do escritor, é sua dificuldade em conciliar a atividade literária
com outras profissões. Desde 1959, por exemplo, João Antônio
aproximava-se do mercado publicitário, a princípio provavelmente como
redator free-lancer e, a partir de algum ponto no intervalo entre janeiro e
junho de 1960218, como funcionário regular da Agência Pettinati de
Publicidade.219 Mas já em junho daquele ano sua revolta contra o serviço
publicitário começa a aparecer: “É uma a minha vontade e um o meu
propósito – não permitir que nada me afaste da literatura. Nem profissão,
nem mulheres, nem nada”.220 Em novembro do mesmo ano, ele
diferencia: “Redigir é uma coisa, escrever é outra. Há muita diferença
entre os dois verbos. Redigir é fácil, escrever é difícil. Redigir é ruim,
escrever é bom. Quando um escritor redige um anúncio de publicidade (

216
Prado, Antônio Arnoni: “Lima Barreto Personagem de João Antônio”, in Remate de Males, no 19,
Departamento de Teoria Literária IEL/Unicamp, Campinas, 1999.
217
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/09/59.
218
Em carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/01/60, João Antônio menciona o fato de ainda estar
desempregado.
219
Em 10/11/59, envia uma carta a Ilka em envelope da Affonseca Publicidade. Em 20/05/60, escreve a
ela já em papel de carta da Pettinati, com a marca do departamento de “redação”. Segundo Caio
Porfírio Carneiro, em seu depoimento colhido em maio de 2000, a agência ficava em frente ao antigo
Mappin, no centro da cidade, e o emprego lhe fora arranjado por alguém chamado Jorge Isi. João
Antônio está longe de ter sido o único escritor de sua geração a se colocar no mercado de trabalho
como “profissional do texto”, segundo categoria definida por Antônio M. C. Braga. Diz este
pesquisador: “Ainda que quase nenhum deles [os escritores da geração 70, da qual João Antônio faz
parte] sobrevivesse exclusivamente da literatura, em sua quase totalidade eles encontravam sustento na
produção de textos jornalísticos, publicitários, de roteiros televisivos, radiofônicos, etc.” Braga,
Antônio M. C.: Profissão Escritor: escritores, trajetória social, indústria cultural, campo e ação
literária no Brasil dos anos 70, p. 5, tese defendida em 2000, no Departamento de Sociologia da
FFLCH – USP.
220
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/06/60.
139

se êle é escritor), êle se prostitue”.221 Mais adiante, João Antônio


acrescenta: “Uma vez, Maurice Chevalier declarou que o maior prazer de
sua vida lhe chegava através do trabalho. Esqueceu-se de dizer que êle
gosta do trabalho que faz. / É velho dizer-se que o trabalho enobrece. /
Talvez seja novo dizer que o trabalho, quando não gostamos,
acanalha”.222 Em outros momentos, ainda, ironiza a própria condição:
“Pois eu não devia estar alegre, trabalhando quieto, fazendo êste folheto
para o Super Cimento Portland Irajá, quieto, trabalhando? Claro. (...) Se
eu fôsse um sujeito menos sensível, a esta hora estaria ali, metido no
folheto do Cimento Irajá, dizendo mentiras sobre o Cimento Irajá. As
mentiras, eloqüentes, seriam lidas por muitas pessoas, homens de
indústrias e de negócios, superficiais como o meu folheto. Mas sabem
ganhar dinheiro e se dizem homens realizados. Eu não me realizei em
nada”.223 E depois resume sua opinião sobre a atividade publicitária:
“Uma agência de publicidade é exatamente uma casa de apostas”.224 Em
outros momentos, o escritor e o publicitário entram em conflito no nível
mais profundo da sensibilidade, ainda que levado na brincadeira, como
quando ele procura o título para seu primeiro livro: “Honestamente, Fujie
e Outros Contos era um título bolado e cuspido pelo publicitário João
Antônio Ferreira Filho, pessoa muito distante, objetiva e insolente na
maioria de seus ‘slogans’, ‘copys’, ‘lay-outs’ e outras coisas. João
Antônio só é pessoal e inteiro e êle em Aluados e Cinzentos. Para além de
ser vendável ou não, bonito ou feio, é um título e tem uma
personalidade”.225
Havia momentos, contudo, em que procurava relativizar a
legitimidade de sua insatisfação: “Ilka, viver é viver e aprender. Não devo

221
Idem, de 04/11/60.
222
Idem, de 11/11/60.
223
Idem, de 31/10/61.
224
Idem, ibidem.
225
Idem, de 10/02/62.
140

exigir muito da vida, apenas devo me atilar. Um sapateiro deve fazer bons
sapatos. Sapatos bons, bem feitos, dão trabalho. / Não me acanalho. Até
redigindo anúncios não me acanalho”.226 Mas logo a revolta contra a
publicidade voltava: “[tenho trabalhado] Muito, Ilka, creia. E lutado
também para que a publicidade não mate o escritor. O escritor é êste
menino que eu trago por dentro; não pode morrer. À luz do dia ou do
refletor devo escrever. Fazer alguma coisa que não dizer que aquêle é o
melhor conhaque, o melhor cigarro ou o novíssimo fio ondulado que
pode produzir as mais lindas camisas para o verão”.227
Além de uma questão de acanalhamento ou não, a publicidade
tomava-lhe algo talvez igualmente precioso como escritor, o tempo:
“Desculpe se não a procuro para encontro. Ando lotado, o que já disse.
Estou aproveitando uma hora do almoço para lhe escrever. / A
publicidade já não me deixa fazer coisas boas que eu quero. E de que
necessito”.228
Mas não só a publicidade o revoltava. Além de um bico como
doleiro229, pelo menos um outro tipo de trabalho o colocou frente à frente
com os dilemas éticos que sua concepção de escritor e de literatura lhe
trazia. Durante algum tempo do ano de 1960, João Antônio escreveu um
romance como ghost-writer para um contratador não identificado nas
cartas. A primeira referência a esse bico ocorre em agosto daquele ano:
“Briguei com o sujeito para quem escrevo capítulos de romance. Pedi o
dôbro e êle não quis. A maré ia melhorando, quando piorou mesmo. O
homem aceitou por fim”.230 Novamente, a constatação de suas
necessidades para a sobrevivência cotidiana vai de encontro à ética e à
função moralizante da literatura: “João Antônio se prostitui com menos

226
Idem, ibidem.
227
Idem, de 25/08/62.
228
Idem, de 22/01/63.
229
Mencionado em carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/09/60.
230
Idem, de 08/08/60.
141

desonestidade. Faz anúncios, recebe. Faz capítulo de romance, um outro


assina, êle recebe fácil. Dinheiro é bom quando se necessita. Melhor
ainda quando chega adiantado com a desculpa de que é incentivo. Olho
para a cara balofa do comprador. Como é rico e pobre! / Mas o nojo vai
sumindo, sumindo. Há uma consolação, uma resposta íntima: pior seria se
me pedissem um artigo político”.231 Além da prostituição profissional,
outro perigo estava embutido no trabalho de ghost-writer, o de gostar do
resultado, o de ver sua sensibilidade estética alterada involuntariamente:
“Aquele antepenúltimo capítulo foi horrível. O diabo, sabe, é que acabei
gostando dêle. Acabei sentindo o que fazia e nas doze páginas
datilografadas é possível que haja ficado alguma coisa minha, embora
tenha evitado, torcido meu estilo, minhas palavras, meu jeito, enfim, de
ser quando escrevo. Eu não queria sentir, mas como acontece a certas
prostitutas, acabei sentindo o que fazia, acabei gostando. / Fiquei com
raiva de mim, da minha sensibilidade, que não ficou (quando deveria),
embotada, quieta. Porcaria! / Ilka, é muito mal escrito, propositadamente.
Escrevi-o nuns três-quartos de hora. É muito dialogado, leva a lugares
comuns, é chinfrim, propositadamente. É triste prostituir-se. Mas gostei. /
Superficial, superficial. Falso como os nomes dos personagens –
Elisabeth, Marcos, Cid, dr. Fernando. Tudo porco, arranjado. (...) Mas
gostei do maldito, que me deu desgôsto e dinheiro, que me deu
derivados”.232
Ao que tudo indica, assim como sua autêntica produção literária
era o espaço de auto-afirmação para o jovem João Antônio, onde seu
senso de justiça, suas ideologias e concepções de vida podiam aparecer
integralmente, a publicidade e este romance de aluguel eram, sobretudo,
espaços de humilhação. Não por acaso a prostituição é um termo

231
Idem, de 08/09/60.
232
Idem, de 04/11/60.
142

constante de comparação. As profissões que haviam se aberto para ele,


embora muito melhores do que já haviam sido, considerando que já fora
office-boy, bancário, etc, eram-no apenas superficialmente. No fundo,
implicavam no mesmo sacrifício, isto é, o de não fazer exclusivamente o
que lhe fosse natural e espontâneo. Por isso João Antônio voltava suas
baterias contra o emprego na Pettinati e contra aquele que lhe contratara
para ser ghost-writer. O dinheiro, que muitas vezes era bem
recebidíssimo, em outros momentos lhe causava repulsa, pois era o
resultado de sua canalhice: “Oito mil cruzeiros espalhados na pequena
mesa. Um passatempo bêsta. Uma nota, outra nota, a mesa tomada. Eu
olhando. Analiso. / Pego no dinheiro. Sinto nota por nota nas mãos.
Como é pegajoso, como é sujo! Como intimida, enoja, atrae, como não
presta e como é bom! E humilha. / Como a humanidade a esta altura dos
acontecimentos admite ainda pegar em dinheiro, essa imundície? /
Guardo as notas, arrumo por valor, bebo, resmungo um palavrão. Apalpo
as notas. Amanhã as utilizo”.233
Mas não bastava ser escritor para que um homem fosse
considerado, por João Antônio, uma pessoa decente. Longe disso. Sua
vocação para o conflito, que aqui combina expectativas idealizantes do
métier com recalque social e arrogância, o joga contra os próprios colegas
das letras, quando por um motivo ou por outro não concorda com a
“atitude” dos mesmos. “Uma coisa é certa – ninguém me transformará
num escritor de porta de Fazano, tomando grandes porres, inúteis porque
estudados, à sombra de frases em estrangeiro, macaquices infinitas,
modas gostinhos e afirmações assim: ‘Nós, nós os contistas...’. / Eu
gostaria muitíssimo de que êsses meus contemporâneos, promovendo
coquetéis, tardes de autógrafos, modismos e manias para escorar A
GRANDE AUSÊNCIA DE TALENTO, vivendo de relações públicas, ou
233
Idem, de 03/11/60.
143

melhor: da adulação comum, um endeusando o outro, eu gostaria de que


essa nojeira... fôssem todos para a casa do diabo”.234
Em outra carta, ele diz duvidar até mesmo dos elogios que vinha
recebendo: “Literatura me acena. Vou contente. (...) Perambulo e é tudo
egoísmo. ‘Você só tem razão. Você é bom. Você é fabuloso.’ Quando, na
verdade, gostariam de xingar-me a mãe.”235
É essa índole em certa medida belicosa que o levava por exemplo a
desprezar concursos literários, embora viesse ganhando vários desde
1957, e a nutrir verdadeiro ódio a coquetéis literários, do qual nas cartas
pelo menos duas menções merecem destaque: “Ontem. Festa e coquetel
na Livraria Francisco Alves em lançamento do novo livro de Jorge
Medauar. Um sucesso. Jamais vi coquetel tão concorrido. A sala estava
entupida. (...) Mas havia muitas coisas tristes naquela reunião. Muito
coquetismo (para não escrever uma palavra feia). Muito imbecil e muito
nulo falando da vida dos outros. Enfim... / Mingou a bebida e os
basbaques foram embora”.236 A segunda referência, esta realmente
notável, ocorre dois meses depois: “Um coquetel mais estúpido aquêle da
Revista Brasiliense! Estúpido ali é apelido. Idiotice por todo canto.
Coquetel literário não tem finalidade literária. Tapeação, esculhambação.
Espécie de prostituição. / Já entendi e para sempre. E se voltar a coquetéis
há de ser com os intentos de filar uísque, flertar com mulher dos outros,
marcar cópula, embebedar-me. Aos tais, definitivamente, eu não posso
retornar com o mínimo de seriedade. O de ontem era uma opereta
bufa”.237
Como se vê, para quem tinha em relação à literatura tão grandes
expectativas, era difícil conviver com o caráter mundano dos

234
Idem, de 17/10/59.
235
Idem, de 06/10/60.
236
Idem, de 21/06/60.
237
Idem, de 08/08/60.
144

lançamentos. A leviandade que enxergava em certas pessoas o indignava.


Era a ética da literatura sendo quebrada. Mas também se poderia supor
que houvesse, no jovem escritor que a cada conto escrito recebia um
prêmio, mas que no entanto ainda não conseguira ter seu livro publicado,
uma revolta em ver pessoas não próximas a ele e teoricamente de menor
talento mais bem colocadas no meio. Uma revolta misturada à inveja e a
um possível recalque social. Uma forte necessidade de ser respeitado
como escritor, ou talvez fosse melhor dizer como criador. Isso, a meu ver,
é o que dá a entender a passagem seguinte da mesma carta: “Uma besta
quadrada uíscada, falando por todos os cotovelos, veio me dizer que é
isto, e é aquilo, e também é aquil’outro. Eu estava entre Paulo Dantas,
Caio Porfírio Carneiro e Jamil Almansur Haddad. (...) / A besta quadrada
só vomitava asnice. Eu lhe falei, olhando os livros de uma estante:
– O senhor é quem?
– Sou fulano, diretor disto e daquilo, membro atuante daquilo e
daquil’outro, presidente de tal firma, sou julgador de arte, sou consultor...
E eu o interrompi, dando de olhos no colarinho torto de Jamil:
– O senhor também é presidente da República dos Estados Unidos do
Brasil?
– Meu nome é João Antônio, faço contos, redijo publicidade, o
Dantas, aí, vai se publicar em livro. Sou um pixote, não sei nada. Tenho
muitas coisas que aprender. Mas sei que não sei e fico quieto na minha
ignorância, na minha falta de estudos, nas minhas incongruências. O
senhor é muito importante e não deve conversar comigo. E agora, com
licença, porque ninguém lhe chamou e eu preciso conversar com meus
amigos.
(...)
Ilka, aquêle coquetel literário era o clímax dos coquetéis literários.
Ô regular mediocridade dos colarinhos duros dos basbaques! Gente que
145

joga no vigésimo quinto esquadrão da literatura nacional, dita cátedra,


cita Proust. Todos entendem de tudo. São doutores, todos. São donos da
bola. Grandes talentos reunidos em instrutivo bate-papo, muito embora
ninguém precise aprender mais nada. São doutores em tudo. Não há
tímidos, há sábios. Não há problemática porque já está tudo
excelentemente bem solucionado. Pois é... Ali, tudo excele!”.238
Como se vê, havia um duplo movimento dentro do jovem escritor.
De um lado, os “doutores de literatura” o revoltavam por
instrumentalizarem a literatura como forma de atingir prestígio social.
Mas, por outro, a orgulhosa modéstia do escritor parece trair um certo
complexo de inferioridade. Ambos os aspectos alimentavam sua
“vocação para o conflito”. Uma carta de 1961, se não servir como
comprovação dessa hipótese, serve ao menos como metáfora: “Adormeci
na poltrona e sonhei um sonho bonito, daqueles sonhos bons que a gente
sonha aos dez anos. / Eu vigiava e estava em Campo Grande e fazia
poucas horas e eu jogava e ganhei. Estava com côres, sorria, jogava numa
roda de homens ricos que ganhavam ou perdiam sorrindo. Ganhei oitenta
e oito mil cruzeiros e fui para o hotel onde me banhei. Dormi.” 239 A idéia
de estar ele em um jogo de homens ricos, para quem a seu ver o dinheiro,
ou o mérito literário, não era o mais importante, quando ele próprio era
bastante atormentado pela busca da excelência literária, parece reproduzir
com fidelidade alegórica o sentimento de João Antônio em relação aos
coquetéis literários e aos bem colocados no meio das letras.
Sob este ponto de vista, é preciso que se diga, até mesmo para
alguém que idealizava de forma tão radical a prática literária, a
valorização social que o relativo sucesso literário lhe trazia não passava
despercebido. E disso ele gostava. “Representam [as cartas que trocou

238
Idem, ibidem.
239
Idem, de 31/07/61.
146

com Ilka] uma espécie multicor e em diferentes papéis, uma espécie de


testemunho da minha solidão. Contam, mais do que a minha própria
literatura, a minha literatura. A vontade enorme de crescer, a luta que no
fundo outra coisa não era que a fuga do anonimato. / Agora, Malagueta,
Perus e Bracanaço ganhou prêmios, editor, referências e antologias”.240
O sucesso, porém, tinha incômodos. Intimidou a própria Ilka,
mulher informada e ela própria escritora. Em resposta a esse momento de
fraqueza de Ilka, João Antônio cita as palavras dela: “Mas não passe por
cima: depressa, antes que você fique famoso demais e se esqueça de
mim” – para então responder – “Você está estranhando o João Antônio,
Ilka? (...) De duas, uma: você estará brincando na carta ou estará
pensando que o fato do meu nome andar por aí, nas antologias boas e
autênticas, me subirá à cabeça e eu venha me comportar e a me sentir um
homem importante”.241 E se intimidou a Ilka, que efeito teria tido na sua
família, em especial na sua mãe pouco letrada, nos parentes, nos amigos
de Presidente Altino, nos malandros e nas prostitutas seus amigos? Ele
deve ter pensado nisso.
O sucesso, que chegou antes mesmo do livro ser publicado, outras
vezes vinha acompanhado por uma nota de melancolia: “Em São Paulo
sou procurado. Comunico-me diariamente, e almoço e janto e tomo cafés
e tomo outros líquidos ao lado dos maiores nomes da literatura da terra,
vivo entre artistas e publicitários. Ênio Silveira esteve em São Paulo e me
telefonou e conversamos até as tantas. Tratam-me quase de igual para
igual. Sou respeitado, meus patrões [da Pettinati] pedem-me por favor,
desperto simpatias, falando envolvo, os meus colegas olham-me com
certo respeito. Meu nome já vale. Ganho elogios, abraços, almoços,

240
Idem, de 12/10/62.
241
Idem, de 06/07/64.
147

dinheiros, mas a menina que faz faxina cá no escritório vive cantando e


eu não”.242
Talvez essa nota de melancolia se explique porque o sucesso
precoce, o reconhecimento de seu talento antes mesmo da publicação do
livro, o fez querer ainda mais: “As teimosias dos meus dezessete anos
andam agora menos ferozes e mais esclarecidas. O diabo é que o Prêmio
Fábio Prado e outros prêmios e publicações privilegiadas e condição
profissional, acenderam de vez a minha independência. Que nem sei
quem é que vai entender”.243
Ou talvez porque, para alguém nascido no subúrbio de Presidente
Altino, de família absolutamente humilde, ascender na sociedade
implicasse em certas mudanças na vida que o deixavam inseguro. Em
1962, ele reclama que “Tantas coisas se passam comigo, Ilka! Os prêmios
e o Contrato de Edição já em meu poder, assinado e reconhecido, a
subida profissional, o trabalho dobrado. Como cansa! Como,
especialmente, me afasta de vocês, do cinema, do teatro, e até da vida. A
vida como eu gostaria de viver. Mais simples, mais observada, mais
andada, a pé, de ônibus, de barco. (...) O fato líquido, Ilka, é que me
construo. E até corro o risco de me tornar um homem importante, visto
que já me comparam a Antônio de Alcântara Machado, o que cá entre nós
que ninguém nos ouve, é mero exagero. E, sobretudo, Ilka, Deus me livre
e guarde de me tornar um homem importante!”.244
Era como se a relativa consagração amenizasse seu tônus
combativo, arrefecendo sua vocação para o conflito.
Mas todas essas hesitações em relação ao sucesso literário não
eliminam o evidente orgulho e a alegria do jovem João Antônio. A
ascensão profissional e social via literatura era a única que lhe permitia
242
Idem, de 05/11/62.
243
Idem, ibidem.
244
Idem, de 25/08/62.
148

melhorar sua condição sem abandonar o universo da malandragem, da


prostituição, da bebida e dos muquinfos que ele jamais deixou de gostar e
de freqüentar. É que apenas uma personalidade tão complexa não poderia
deixar de viver esse sucesso sem criticá-lo de alguma maneira,
vacinando-se contra a vaidade comum das gentes e mergulhando na sua
própria modalidade, absolutamente particular, de humildade orgulhosa.

Idiossincrasias de um jovem escritor

A relação ambígua de João Antônio com o meio literário, amado e


odiado, que despertava nele inveja e desprezo, ambição material e
aspirações existenciais, de um jeito ou de outro se verificava em vários
campos de sua vida particular. Não apenas sua imagem como escritor o
fascinava e incomodava, como homem também. Em pelo menos três
cartas esse estranhamento íntimo chega a se manifestar em relação a sua
própria imagem física, ora porque vê em seu rosto uma expressão
ressacada, ora porque se percebe desarmado de qualquer pose, ora porque
está profundamente melancólico.
“Olho-me no espelho e os olhos estão acanalhados, feios, tristes. /
A cara redonda expõe bochechas inchadas, pés de galinha nos cantos. (...)
Encaro-me. O espêlho devolve-me a cara dura, pesadona. Rio como um
tonto, digo baixinho:
– Desculpe ter nascido”.245
Outra vez, ele relembra o fato de ter sido flagrado por uma
fotografia: “Uma vez, eu tinha vinte e dois anos, Kodama, um amigo
japonês e fotógrafo, me pilhou e me fotografou. Ali eu me via,
estranhamente, eu mesmo. Não havia pose, não havia eufemismo. Aquela
245
Idem, de 25/12/60.
149

fotografia será transformada em prosa. / Tenho a obrigação de me aceitar


como sou. Não há jeito”.246
“Olho minha vida e a dimensão me choca. Olho-me no espêlho e
os olhos ficam mais úmidos.”247
Há, em outro nível, mesmo para seus leitores e admiradores de
hoje, uma certo distanciamento entre a imagem que viria a se cristalizar
de João Antônio nas fases posteriores de sua vida e a do jovem escritor e
publicitário do início dos anos 60. De hábito, a idéia que se tem dele é a
do escritor despreocupado com sua aparência, perambulando de short e
chinelos pelas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo à procura de
figuras e experiências que pudesse utilizar em seus textos, sempre indo
encontrá-las nos ambientes mais populares ou até mesmo sórdidos.
Mas Caio Porfírio Carneiro frisa que, na época em análise, essa
figura despojada de vaidade não havia ainda conquistado sua hegemonia.
“João Antônio, novo, com 22 anos, estava sempre bem vestido, sempre
com as mãos no bolso, gordinho, rosto cheio.”248 E, em outra
oportunidade, completa: “Tudo o que rompia com os padrões
estabelecidos, com a falsa moral burguesa lhe agradava, embora andasse
sempre bem vestido e engravatado”.249 Outro conhecido, Lourenço
Diaféria, ao narrar seu primeiro encontro com João Antônio, dá uma idéia
mais clara da dicotomia em sua figura: “Naquela manhã da apresentação,
o escritor João Antônio vestia-se com proverbial elegância, terno
completo, calça, colete, paletó, barba feita com gilete azul, rosto
escanhoado, perfume de gardênia. João Antônio fazia boa figura. Mas,
mesmo sem querer, ele fazia de sua elegância e de sua aparência bem-
comportada o contraponto da malandragem natural e sobrenatural de suas

246
Idem, de 24/01/61.
247
Idem, de 01/09/61.
248
Depoimento de Caio Porfírio Carneiro, colhido em maio de 2000.
249
Carneiro, Caio Porfírio: “Meu perfil de João Antônio”, in Remate de Males, no 19, Departamento de
Teoria Literária IEL/Unicamp, Campinas, 1999, p.14.
150

criaturas esfoladas pelas laminas da desproteção social”.250 O próprio


João Antônio, numa das cartas, descreve-se assim: “Se eu fôsse visto por
um imbecil qualquer, êle diria que sou um sujeito infinitamente feliz. A
barba bem feita, houve massagem antes e houve creme após. O terno de
casemira inglêsa – treze-catorze contos no alfaiate. O sapato de três
contos, polido. A gravata é linda. Emagreci uns quatro-cinco quilos, o
que me confere certa elegância. As meninas suburbanas olham-me o
terno e os cabelos (...) Ah, ia me esquecendo – a camisa é de cambraia de
linho”.251
Para ele próprio, a gravata era um símbolo importante da briga que
ocorria dentro de si mesmo: “Andam querendo me taxar de importante.
Dizem que há substância e essência dentro de mim, que sou uma fonte e
que serei fatalmente um dos grandes homens do país... / Mas de repente
apareço no escritório sem gravata. / Eles não me entendem e eu entendo
claramente que não me aceito de outro jeito”.252 Ou quando diz:
“Também dei para trajes esportivos e quero acreditar que fico mais môço.
Nem só de literatura vive o homem”.253
Poucos anos mais tarde, quando o sucesso do primeiro livro o
catapultou para o cargo de repórter especial do Jornal do Brasil, ele volta
a tocar no assunto: “[No Rio] Não necessito paletó, gravata, sapatinhos
polidos”.254
Muito provavelmente as convenções sociais obrigassem um
publicitário a usar terno e gravata no início dos anos 60. Ou talvez os
patrões na Pettinati o fizessem. Porém, explicar essa atração e repulsão
pelo terno e gravata apenas por fatores externos a sua personalidade é

250
Diaféria, Louranço: “Do Joãozinho ao João Antônio”, in Remate de Males, no 19, Departamento de
Teoria Literária IEL/Unicamp, Campinas, 1999.
251
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 12/11/60.
252
Idem, de 05/11/62.
253
Idem, de 18/02/62.
254
Idem, de 31/03/65.
151

uma opção um tanto reducionista. Ao que parece, a “elegancia


proverbial” de João Antônio era um salvo-conduto que ele encontrara
para se inserir socialmente, ainda que nunca tenha abandonado a vida
boêmia da malandragem e do baixo meretrício. Mas não apenas como um
pedágio social, e sim como algo interno, espontâneo e sincero: o desejo
de ser aceito e bem quisto. Porém, à medida que sua posição como
escritor vai se firmando, novamente a vocação para o conflito se
manifesta, e sua aparência mais desleixada vira um instrumento de auto-
afirmação. O que, é claro, não se dá sem algum conflito pessoal.
Deixando um pouco de lado a questão da elegância, mas ainda na
tentativa de expor com nitidez a dificuldade do jovem João Antônio em
definir seu perfil, vale a pena contrapor algumas auto-definições
presentes nas cartas para Ilka. Algumas delas são simplesmente
contraditórias, em que ele vê as coisas boas e ruins de sua personalidade,
sem entretanto saber apontar a predominância de umas ou de outras: “Vá
perguntar quem é João Antônio e talvez ainda êles [os amigos do
passado] se lembrem do menino moreno, de cabelos crespos, que lhes
parecia sério e que diziam ter sombrancelhas de gente ruim. Deles se
poderá ouvir as piores e as melhores coisas sôbre o João Antônio”.255
Claro que essa indefinição de predominância em seu caráter pode
vir temperada por um momento melhor ou pior de auto-estima, por
exemplo quando recebe alguns convites para publicar seus contos e diz:
“Hoje eu me quero, Ilka. Como sou, com tudo que tenho de bom e de
ruim, e que ninguém me deu. Só meu o bom e só meu o ruim porque
meus. Sofrido, vivido, tangido, amado”.256
Mas a indefinição profissional continuava sempre colocando-o
diante de dilemas que afetavam sua opinião de si mesmo: “Que pessoa é

255
Idem, de 06/06/60.
256
Idem, de 19/05/62.
152

essa pessoa aí acima? [ele próprio] / Um amontoado, todo estúpido. (...)


Tudo é uma imundície muito grande. Tudo é tapeação. A minha profissão
é uma tapeação. Sou um malandro que me prostituo para receber
ordenado de quinze em quinze dias. Estou cansado, Ilka”.257
Outro sintoma desta indefinição em sua auto-imagem é o fato de
ora ele se refugiar na figura de um homem pouco ambicioso, como o seria
o cágado que achou na rua e levou para casa: “Sou um homem simples,
avêsso a grandezas e importâncias. Prefiro criaturas e viventes que se
mexam com humildade, que tenham tolerância, humanas e boas como o
cágado. Que se alimenta da sua persistência e solidão, que é um bichinho.
(...) Eu lhe conto essas coisas, Ilka, da condição de cágado e da minha
condição, porque você é Ilka”.258
Ora as fantasias de glória se fazerem presentes, ainda que
atrapalhadas pelo medo de seu temperamento e de sua vida desregrados:
“Não sei se chegarei a ‘big-shot’ de publicidade. Possívelmente, antes
terei vomitado até os sapatos pelo caminho. Porque apenas digo que
aquela é a melhor marca de tôrno mecânico de precisão. Prefiro ser o
cobra nos salões de sinuca. O homem que tem amante negra, apenas
doméstica e analfabeta cujo sobrenome nem êle sabe (...).”259
Em outros momentos, procura forçar-se a uma auto-valorização e,
meio brincando com sua angústia, remontar às origens para se entender:
“Necessário que eu me grite que tenho amigos, bons amigos, que sou
simpático, por isso tenho amigos, tenho minha mãe que me quer, tenho a
ternura de Virgínio, tenho uma porção de outras coisas, igualmente úteis
e simpáticas. Mas nasci torto e tais simpatias e utilidades não me
resolvem quando deviam. / Deve ser falta de estirpe. Preciso fazer uma

257
Idem, de 06/10/60.
258
Idem, de 25/03/63.
259
Idem, de 05/11/62.
153

constante verificação genealógica. Vim de prêto e de ibéricos e há


reparadores que me acham com jeito de filho de sírios”.260
Mas no geral ele admite sua dificuldade em constituir uma
personalidade sólida, ou, nas suas palavras, em ser homem, e descamba
para um esvaziamento total de si próprio: “Não posso chorar porque sou
homem. Não posso gritar que tudo é uma porcaria, porque me taxam de
louco. / Sigo a manada. Canso-me. Sou um: minha cidade são milhões.
(...) Sou um, num milhão, nuns milhões, e, não sou nada. A exceção
desnecessária. O vida torta. (...) Eu não sou ruim. Eu já tive
oportunidades para ser péssimo e não fui péssimo. Eu confiei, eu
esperei”.261 Outro exemplo disso é: “Bicho complicado, meio vagabundo,
meio escritor, devo para meu bom govêrno verificar minhas origens.
Maldito ou sublime ou qualquer coisa menos empolada – isto sou. /
Desconheço-me. Talvez eu nem tenha nascido ainda. Bem provável que
esteja se formando um embrião. Depois serei um homem. Ser um homem
é muito difícil, muito especialmente no momento passante. Horrível e
grandioso”.262
João Antônio, dolorosamente, reconhecia suas idiossincrasias e
dilemas internos, que fazem a tônica de sua correspondência com Ilka, e
que ele compensava escrevendo, mesmo que nas relações pessoais estes
ainda o atrapalhassem demais. Exemplo disto são os trechos abaixo: “Não
é exagero, não. Porque sou também um complicado, egoísta, maníaco e...
nem queira saber. Dias sem falar, cansaço no amor-próprio (sei lá o que é
amor...) sou um sujeito que só se sente bem escrevendo. Aí, a minha
timidez vai embora e eu mando o mundo às favas. Porque êste é o único
tipo de amor que conheço completamente, Ilka”.263 “E nela [numa carta

260
Idem, de 31/10/61.
261
Idem, de 06/10/60.
262
Idem, de 30/06/61.
263
Idem, de 30/07/64.
154

enviada por Ilka da Inglaterra] você me diz bem clarinho (embora com
civilizados cuidados) que eu sou um problema para você. Claro que sou,
Ilka! Mas para quem, cruzando a minha vida, eu não fui problema? A
quem, se metendo comigo ou eu me enfiando na vida da pessoa, não fui
problema? Se eu sou todo um problema... (...) O problema sou eu mesmo,
minha complicação sou eu mesmo, minha solução (muito provavelmente)
seja eu mesmo”.264

Ciclotimia?

Difícil saber o que foi causa o que conseqüência, mas, ligada a essa
auto-imagem radicalmente contraditória e fluida – ora com desespero
procurando valorizar-se e em outros momentos dizendo-se, sem meias
palavras, imundo –, estava uma alternância de humores indisfarçável e,
até certo ponto, excessiva. Num minuto estava de excelente ânimo,
otimista, feliz com seus progressos na literatura e satisfeito consigo
mesmo; mas no minuto seguinte recriminava-se por sua “prostituição
profissional” na publicidade, por sua vida de dissipações e bebedeiras,
lamentava a solidão e a carência afetiva. Ele próprio não hesitava em
considerar-se uma pessoa dramática265, para o bem ou para o mal.
Admitia, por exemplo, ser homem de “explosões bestas e alegres”.266
Quanto às explosões de raiva e outros sentimentos menos positivos,
tome-se o perfil de João Antônio feito pelo crítico literário José Castello,
no qual o freqüente mau-humor é registrado com destaque: “João
Antônio estava sempre tão indignado, sentia tanta aversão pela realidade,

264
Idem, de 07/10/64.
265
“Pessoas dramáticas, como eu, como você, costumam enegrecer o negro das coisas.” Idem, de
18/02/62.
266
Idem, de 01/07/65.
155

tanta raiva, e sabia expressar essas visões entristecidas com tanta clareza,
que a vida, com ele, parecia vacilar”.267
Num balanço da correspondência para Ilka Brunhilde Laurito, que
se estende por seis anos, vê-se logo que era incrível sua capacidade de,
rapidamente – no espaço de um mês, de semanas, de dias, às vezes de
parágrafos numa página –, alternar sentimentos às vezes opostos. Tome-
se como exemplo uma das primeiras cartas: “Ando cheio e qualquer dia
mando tudo para o diabo. Vivo num mundo de imbecis. (...) Ô, Ilka...
Quanto desencontro! E ninguém vê que estou cheio de bem-querer,
lotado de amor”.268
Ou a disparidade entre o tom de uma carta de 10 de outubro de
1960 e uma do dia 2 do mês seguinte. Na primeira, ele escreve: “As
coisas correm boas e a semana começará menos dura. (...) Mamãe estava
menos triste. Virgínio mais alegre. Papai ia bom. E eu também. / Ilka,
Ilka, como estou contente! Hoje poderia escrever um conto de amor à
vida, com alguma honestidade”.269 Na segunda, sem que nada
especificamente ruim tenha acontecido problemas cotidianos contaminam
tudo: “Abrir o jornal é um choque. Greves, levantes, aumentos. Mais
greves. Falar a parentes surburbanos é um choque. Tudo difícil, a carne a
duzentos cruzeiros. Mamãe me explicou o que é um caseado de camisa:
– Custa quarenta cruzeiros.”270
Certamente que toda pessoa tem dias de melhor ou pior disposição,
mas a intensidade das palavras mostra a força dos sentimentos, e
sobretudo a alternância entre a forma carinhosa com que se refere à
família na primeira carta e a confissão “politicamente incorreta” contra os
suburbanos na segunda.

267
Castello, José: “A Arte de Ser João”, in Inventário das Sombras, RJ, Record, 1999, p.45.
268
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 10/12/59.
269
Idem, de 10/10/60.
270
Idem, de 2/11/60.
156

Neste mesmo mês de novembro de 1960, entre os dias 12 e 13, fica


patente a passagem inversa, aqui do mau-humor para a euforia: “Peguei
uma notícia péssima agora há pouco e a notícia me deixou sério e triste.
Gosto muito de ficar assim sério e assim triste. Eu me adoro nesses
estados. Porque neles ninguém folga comigo, não me tira o que tenho,
não me ludibria. Vou mandando todos para a casa de Satanás. / Gosto de
mim, quando abespinhado. Porco nenhum se aproveita de mim, de minha
sensibilidade. Vou xingando, desaforando, brigando. Não sou cruel, não
sou bom. Apenas ninguém se me aproveita. (...) Você não imagina como
estou descoroçoado”.271 Para, no dia seguinte, dizer: “Quando se
apagaram as luzes, se acenderam os desejos. Vontade de viver, correr,
cantar. / Passavam grupos de moços e môças que iam aos piqueniques, e,
eu pretendi me enfiar num grupo daqueles e ir com êles”.
Se a menção explícita das datas parece dispensável, vale ressaltar
que a percepção da brevidade dos intervalos entre os rompantes do jovem
escritor – ora de alegria ora de tristeza, ora de ternura ora de raiva –, é um
reforço importante para o argumento que aqui se pretende desenvolver.
Uma coisa é a maneira radical com que se entregava a suas emoções, e
outra é a rapidez com que alternava seus estados de espírito”.272
Por essa época, Manoel Lobato, um farmacêutico e também
escritor nascido em Minas Gerais, então residente em Vitória (ES),
escreveu a João Antônio elogiando tremendamente um de seus contos,
“Frio”, que havia sido publicado num suplemento literário que circulava
na capital capixaba. A partir dessa carta, João Antônio e ele fundaram
uma forte amizade, que nunca chegou a se desfazer completamente. Pois
bem, comentando essa alternância de estados emocionais do amigo, o

271
Idem, de 12/11/60.
272
Idem, de 17/11/60.
157

farmacêutico Manoel Lobato não hesita em diagnosticá-lo como um caso


de psicose maníaco-depressiva.273
O próprio João Antônio, em várias passagens das cartas, menciona
sua vizinhança com a patologia psiquiátrica, seja concretamente, seja
apenas uma maneira de dizer. “Alguém me quer bem? Importa a alguém
que eu morra? Tenho a certeza de que vão me lavar ao manicômio”,
escreve ele.274 Ou ainda: “Estou triste. Eu já estava triste. Ontem fiquei
muito triste, estupidamente, sem motivo. Eu devia ficar alegre quando
minha mãe me analisou, deitada, a minha infância. Mãe conhece a gente.
Minha mãe me conhece muito. / Estou triste de ser assim, Ilka. Cansado.
Cansado de complicações. Estou me cansando de me aturar todos os dias,
todos os dias. Começo a ter mêdo de que uma porção de coisas que
carrego por dentro saiam. / Psiquiatra?”. Mais tarde, volta ao assunto de
raspão: “Se a cabeça está pesando e a amargura vem, o cansaço na
medula, eu respiro fundo e afrouxo os músculos. Repito o exercício
muitas vêzes. Nem álcool, nem tranqüilizadores idiotas”.275 E, finalmente,
ele narra uma primeira intercorrência psiquiátrica real, ainda que
temperada por sua revolta de praxe contra qualquer autoridade: “Ilka,
venho saindo de uma crise que me levou ao clínico e depois ao psiquiatra,
por indicação do clínico. Quer saber qual a conclusão a que cheguei: o
clínico tinha menos saúde que eu e o psiquiatra podia ouvir magníficos
conselhos meus”.276

273
Depoimento de Manoel Lobato, colhido em junho de 2000.
274
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/60.
275
Idem, de 18/02/62.
276
Idem, de 07/10/64. Vale dizer que, em 1970, João Antônio foi internado no Sanatório da Muda (RJ).
Marília, sua ex-mulher e mãe de seu único filho, conta que João Antônio teria pedido a ela que
convencesse o psiquiatra responsável pelas internações a aceitá-lo. O objetivo do marido seria fazer um
laboratório literário, evocando a experiência de Dostoiévski e de Lima Barreto. Ainda segundo ela, na
entrevista não foi necessário inventar nenhum sintoma psiquiátrico, pois uma simples descrição real do
comportamento do marido naqueles últimos dias teria sido suficiente para que o encarregado
recomendasse a internação. Depoimento colhido em maio de 2000.
158

Que papel a bebida poderia ter nessa instabilidade emocional? É


outra pergunta legítima, mas também de difícil resposta. Há muitas
menções a ela nas cartas: “Vou indo bem. Se não houvessem bolado o
conhaque, tudo iria melhor”.277 Ou que as bebedeiras exacerbavam os
atos: “Desculpe os telefonemas do dia 24. Tantos e possivelmente
insensatos. Eu estava num crescendo etílico e emotivo que acabou às três
da madrugada numa crise de chôro”.278 Mas há pelo menos uma descrição
de bebedeira que merece nota: “O porre de ontem foi homérico e foi
memorável, como são todos os meus porres. Rio, canto, choro, faço mil e
uma presepadas. Reviro São Paulo, vasculho, desesperado. Acabo mal,
como de costume. Mal dormido, uma cara de cadáver, sem dinheiro, a
roupa esculhambada, um sinal qualquer no corpo. Depois, um dia novo,
litros de água, limonada, laranjada, coalhada, o diabo”.279
O que se pode afirmar com certeza é que, algumas vezes, esta
suposta tendência ao que se poderia chamar de ciclotimia é indicada pelo
próprio João Antônio. Um exemplo: “Tudo em mim está bem, exceto os
sapatos. A verdade é: comigo as coisas andam erradas e nada vai bem”.
Outro: “Às vezes, a minha alegria como a minha tristeza não cabem
dentro de mim. E sai pela bôca. Perder a linha, então, é fatal. Fico à beira
do ridículo e do grotesco por uma asa de barata. Fatalmente faço
besteiras. Burradas”.280 E um terceiro: “Sou um aluado, devo ter um
coração desatado, completamente exagerado. Devia viver cantando e
chorando ao mesmo tempo, feito louco. E eu seria mais sincero”. 281 E um
quarto: “Eu sinto a vida de uma maneira feroz e boa, violenta e
tranqüila”.282

277
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 13/07/60.
278
Idem, de 26/11/62.
279
Idem, de 25/12/60.
280
Idem, de 26/11/62.
281
Idem, de 08/08/60.
282
Idem, de 02/06/61.
159

Isolamento e rejeição ao amor

No primeiro capítulo deste trabalho já ficou dito que, na família, o


jovem João Antônio sentia-se um tanto isolado, tendo chegado a dizer,
retrospectivamente: “Fugia das festas familiares. (...) Voltar à casa
paterna. Guerras terminavam em beijos para depois recomeçarem. / Eu
odiava os tipos suburbanos”.283 A vida boêmia, de prostitutas, malandros
e porres homéricos – iniciada na adolescência e mantida ou até
radicalizada no início da vida adulta, apesar do emprego na Pettinati –,
certamente mantinham-no na defensiva em relação à mãe e ao pai, sendo
que este ressentia-se ainda do fato de João Antônio não ter desejado
sucedê-lo no ramo do varejo de secos e molhados. E certamente que a
disparidade cultural do filho grande leitor e dos demais membros da
família também o deixavam numa posição estranha dentro de casa. Com
o passar dos anos, do ângulo dos pais, certamente que ver o filho
publicitário, vestindo ternos elegantes e usando sapatos polidos, poderia
oferecer algum consolo moral, mas não tanto material, pois
financeiramente a vida de João Antônio continuava bastante apertada,
como se viu pelo tipo de bicos que era obrigado a aceitar.284 A opção pela
literatura, por sua vez, embora o talento de João Antônio fosse
reconhecido pelo pai e, conseqüentemente, por todos dentro de casa,
também não parecia algo muito seguro para aquela família já duramente
traumatizada pelos azares de uma falência e de um incêndio.
Antes de continuar, o seguinte deve ser frisado: ao longo de sua
vida, a solidão teve para ele um duplo sinal; ora negativo, pois o deprimia
e o deixava sentindo-se desprovido de laços afetivos que compensassem a
tarefa de viver, mas também positivo, pois na solidão ele parecia capaz de
283
Idem, de 06/10/60.
284
Pelo menos nos primeiros anos. Mas, em carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 19/07/64, ele já
considera que vive confortavelmente com o que ganha como publicitário.
160

centrar sua personalidade. As cartas para Ilka ratificam essa afirmação.


Diz João Antônio: “Como era boa [na infância] a solidão!”285 e ainda
“João Antônio vivia bem quando morador em Vila Anastácio, sozinho em
suas noites, tardes e dias. João Antônio não tinha que se juntar a
ninguém. Quando leu O Capote ficou triste, mas triste de não haver saída,
doido de solidão, porque tinha dezessete anos e se fôsse comentar Gogol
com alguém ririam dêle. Mas eu era inteiro, não me dispersava”.286
Mas não só no passado e no seio da família a sensação de
isolamento o perseguia. Foi assim no exército, durante “alguns pavorosos
meses de farda”287, e continuava sendo assim no período coberto pelas
cartas de Ilka e de seu lançamento no meio literário. “Julgo que vivo no
meio de macaquinhos. Todos fora de lugar. Macacos. E eu a aturar.
Aturando, aturando. Isto não vai durar a vida inteira não”, escreveu ele
certa vez.288
Mesmo quando estava num bom momento, rotulava-se um
desajustado: “Minha vida corre bem. Descobri com encanto que há
pessoas que gostam de mim e isto me fêz bem. (...) Sinto, do fundo do
coração, que também não sou tão mal. E que aos justos, à maneira de
Jacques Tati, pertence o mundo, por mais desajustados que estejam”. 289
Ou quando pensava em coisas boas de sua vida, lamentava não ter uma
pessoa especial, ligada a ele em profundidade ímpar, com quem pudesse
partilhar a felicidade: “E ali [no Morro de Presidente Altino] pensei nos
mistérios da vida, do amor, do jogo, da repetição inútil do dia-a-dia, na
grandeza da arte, na beleza das crianças, na sabedoria do povo, na minha
solidão. / Não tem sentido uma vida assim, Ilka. O que é que eu vou fazer

285
Idem, ibidem.
286
Idem, de 27/10/60.
287
Idem, de 28/09/59.
288
Idem, de 10/12/59.
289
Idem, de 26/05/60.
161

dos meus prêmios, a quem dedicarei o meu livro, onde está o filho que
não tenho?”.290
Ele assumia francamente sua carência de amor, fosse quando fazia
um balanço de sua vida até ali: “Sabe, Ilka, sempre fui uma criatura muito
necessitada de carinho. Mulher alguma me deu tanto amor que fôsse
suficiente. Amigo? Nenhum. (...) Há uma fileira de nomes, homens e
mulheres e coisas e ambientes, que entraram e saíram da minha vida, que
me deram prejuízos e gozos. Mas que sempre me largaram incompleto,
desejando o que não tive. (...) Ainda outra vez, reitero que você me é
muito necessária porque sabe me compreender muito bem. Guardarei e
reguardarei sua amizade”.291 Ou quando tira uma norma geral da vida
humana: “Ilka, o grande problema, o problema mesmo, a essência de tudo
é o amor. Como um homem tem necessidade de amor! Que condição!”.292
Um grande amigo, porém, é citado mais de uma vez na
correspondência, e merece aqui ser mencionado. Jordão, como se
chamava este amigo, é um personagem misterioso. Ao que parece, era
uma amizade da noite malandra e das ruas de luzes vermelhas que o
jovem escritor freqüentava. Nem o irmão o conheceu, e muitos menos os
demais entrevistados, mais integrados a outras esferas sociais. Mas João
Antônio adianta alguma coisa: “No fundo eu sei que Jordão está mais do
que prevenido, rodou o Brasil inteiro, pegou cadeia, passou fome, viveu,
tem um nome a cuidar”.293 Era, portanto, alguém que conhecia os
subterrâneos da vida. Havia sem dúvida grande intimidade entre os dois:
“Tenho Jordão em São Paulo. Tenho aquêle menino e só eu sei o que isto
me significa. Aquêle falhado, aquêle caipira, aquêle vida torta é, como
me foram outros amigos, uma variação de Toshitaro de ‘Fujie’, lembra-

290
Idem, de 05/11/62.
291
Idem, de 06/06/60.
292
Idem, de 08/08/60.
293
Idem, de 08/09/60.
162

se?”.294 Jordão e João Antônio dividiam os bicos que apareciam e


ficavam incomodados quando alguma coisa interferia na amizade: “Faço
câmbio. Pequenos capitais, cinco, dez mil cruzeiros unidos[?] e outros
iguais de Jordão dão oportunidade para negócios de algum lucro.
Virações, sabe? No fundo não passam de virações para multiplicar
dinheiro. / Cautela. Não me deixo afundar nessas e noutras inversões. A
grana sae do meu bôlso e volta aumentada. Jordão trabalha. Findo o
negócio dou-lhe algum a somar-se ao combinado. / A perspectiva ruim é
uma menina de dezessete anos, que deu de aparecer na vida dêle. Capaz
que tudo se entorte. (...) Espeto-lhe o peito. (...) E antes de qualquer coisa
– [Jordão] sabe quem sou. É”.295 Pensam, até mesmo, em morar juntos:
“O menino Jordão e eu vamos fazer conluio para a compra de um
apartamento central em São Paulo. Anda tudo na dependência de dinheiro
graúdo que virá de Itajubá, da fazenda de seu pai. Tôrço, ele torce.
Partiremos depois, com juízo e um bom bocado de picardia para o
negócio do contrabando branco – bom negócio, legalizado, negócio do
bom. Que nos fará ricos ou nos enterrará no buraco. Iremos firmes. /
Viver”.296
E agora já se depreende um pouco mais da figura. Era um rapaz
experimentado nas dificuldades do país, e no prazer das mulheres, como
João Antônio, mas cujo background não havia de ser tão modesto quanto
o do amigo escritor, posto que o pai era fazendeiro e dispunha de algum
dinheiro. Seria Jordão um jovem rebelde, que fugira de casa e abandonara

294
“Fujie” é conto que fecha a primeira parte de seu livro de estréia e foi, como já se viu, o início da
produção literária de João Antônio. No conto, o amigo Toshitaro é assim descrito: “Lá na Liberdade
achei o ótimo Toshitaro. Nunca vi ninguém como. Costumo dizer que o sujeito que não se der com
Toshitaro não presta. Ou não conhece Toshi. / Toshitaro, com cinco anos à minha frente, me levava
pela mão direita ao judô. Esquecia a condição de faixa preta e o 3 o dan, me dava o lado direito na luta.
Dava tudo. Sujeito espetaculatrt, enorme no tatami e fora dêle. Aprendi mais com Toshi do que com os
três professores que já tive.” Antônio, João: “Fujie”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1963, p. 28.
295
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/09/60.
296
Idem, ibidem.
163

a família, viajando pelo Brasil e passando dificuldades desconhecidas


para ele até então? É o que se poderia deduzir superficialmente, nada
mais que isso. Outra especulação possível é a de que, logo em seguida,
tenha havido algum problema na amizade, segundo parece indicar outra
das cartas: “Jordão, foi meu amigo? Sim e muito meu. Unha e carne, um
amigão. Mas, vá uma verdade – ele precisava mais de carinho do que
eu”.297 O verbo estar no passado é curioso, pois depois disso ele ainda
volta a falar de Jordão com muito afeto uma ou duas vezes. Jordão chega
a aparecer em seus sonhos, ao mesmo tempo em que sua experiência de
easy rider e a de João Antônio se misturam oniricamente: “[no sonho]
Dois, três meses andei por aí, virando o Brasil. Rodei. E arrumei um
amigo, espécie de Jordão e voltei sem quê nem pra quê à Cidade de
Campo Grande. (...) O amigo ia comigo”.298 É difícil, no entanto, afirmar
quando e por que a amizade com Jordão acaba. De um momento para o
outro ele desaparece nas cartas, reaparecendo depois, é fato, mas como
outra coisa, como um novo projeto literário, como um futuro primeiro
romance.299
Além de Jordão, para curar a solidão, o escritor tinha outros amigos
na malandragem, os do meio literário e publicitário, que em boa medida
eram dois grupos que se fundiam, e Ilka. Difícil caracterizar a relação
entre ele e a destinatária desse formidável acervo de cartas. Amiga,
confidente e orientadora são categorias absolutamente pertinentes, mas
não parecem dizer tudo. As cartas estão, sim, repletas de declarações de
gratidão, por ser ela tão paciente com suas carências e loucuras
(telefonemas fora de hora e do tom, confusões sentimentais etc). Mas há
também vários momentos em que um clima amoroso se insinua; ora
diretamente pelo que ele escreve, ora quando se infere, pela resposta, o
297
Idem, de 06/06/60.
298
Idem, de 31/07/61.
299
Os planos de João Antônio para o romance Jordão serão tratados adiante neste trabalho.
164

que teria recebido por carta. Ilka relembra assim a situação: “Eu fiquei
encantada com a carta [a primeira, de 01/09/59], porque era uma carta
inteligente, diferente. Respondi e assim começou nossa correspondência.
Um dia, escrevi: ‘Escuta, moramos na mesma cidade, porque você não
aparece aqui’. Aí ele começou a telefonar, ele telefonava, telefonava. Era
uma voz, uma palavra, ele precisava sentir que eu existia, mas não
interessava freqüentar. Ele telefonava de um bar, bêbado. Eu parecia mãe:
‘Vai embora para casa’. E ele: ‘Tá bom, tá bom.’ Ele estava perdido, ele
era uma pessoa que estava procurando um ponto de apoio, o que depois
veio a encontrar na Marília. (...) Teve uma época que ele ficou meio
desvairado: ‘Você é a mulher da minha vida!’. Eu disse: ‘Não sou! Você
está enganado, você está misturando as coisas’. Houve uma certa
confusão sentimental com essa ligação. Porque era uma ligação tão
profunda entre nós que tudo ele precisava contar para mim, e eu também
tinha uma ligação de espírito tão forte [com ele] que a gente não sabia
exatamente definir o que era.”300 Como se vê, o que começa descrito
como algo unilateral, ao término de sua fala transforma-se em algo
compartilhado. Ele, a princípio, concordava com este sentimento difuso:
“O diabo é que você é mulher e eu sou homem. E o pior é que só agora eu
sei realmente. Minhas cartas descaradas e sem o mínimo tão usual e
consagrado de reserva... / Vai ou ia daí você me respondia no mesmo
tom, talvez mais entusiasmada porque eu devia tê-las encharcado de
intensidade. Então, minha carta seguinte seguia mais gritante. / E depois,
um ficou olhando para o outro, perguntando-se o que se haviam feito”.301
Num dado momento, em poucas palavras, João Antônio tira uma

300
Depoimento de Ilka Brunhilde Laurito, colhido em maio de 2000.
301
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 24/08/60.
165

conclusão: “Tenha sido lá o que foi, consciente ou inconsciente, foi a


amizade maior que tive”.302
Expressando materialmente essa vida afetiva de essência duvidosa,
além de instável, dessa ausência de laços afetivos mais nítidos, pairou
sobre o jovem escritor, até a ida para o Rio, o espectro do incêndio que
destruíra a casa de sua família. Mais do que uma associação de idéias, um
fator prático mantinha latentes a dor que a triste lembrança provocava:
João Antônio não tinha moradia fixa e estável. Entre a data do incêndio,
1960, e sua ida para o Rio de Janeiro, em 1964, João Antônio não teve
pouso em São Paulo. Ora estava com os pais, ora hospedado na chácara
de um amigo em Bororé303, ora dormindo com as putas, ora em Vila
Hamburguesa.304 Pelo menos duas vezes nas cartas ele mostra o quanto
isso o incomodava. Uma: “Quando eu morarei em algum lugar?”.305 E
outra, anos depois, já num tom desesperado: “Se não me comuniquei
ainda foi por uma trabalheira danada que invadiu minha vida, inclusive
com ocupações domésticas, uma mudança, UMA NOVA MUDANÇA,
MEU DEUS DO CÉU! Quando é que eu vou morar em algum lugar?”.306
E tudo isso na cidade de São Paulo, que, considerando seu contexto
de relativa dispersão emocional, de briga com a falta de tempo para
escrever e com a necessidade de ganhar dinheiro, não facilitava sua
integração e àquela altura começava mesmo a lhe sufocar. Escreve ele:
“A consciência acima do trilhão de coisas que me rodeiam, que às vêzes
tentam me esmagar, e das quais não sou parte integrante. Não quero, nem
posso. / Eu, eu mesmo, talvez diante de mim. A terrível perspectiva
certeira de que para defender a minha dignidade de escritor e de homem
(...) vá arrostar quase tudo. Ou tudo. (...) Sinto-me perseguido

302
Idem, de 12/10/62.
303
Idem, de 31/07/61.
304
Idem, de 12/11/60.
305
Idem, de 31/10/61.
306
Idem, de 20/03/63.
166

injustamente, já com vinte e poucos anos, porque não sou o homem da


rotina, porque não a aceito e não me torço. Tenham paciência, façam
restrição, que eu não vou mudar. Esta humildade orgulhosa continua”.307
“Também não quero mais sujeitos afobados à minha roda,
contaminando-me com afobação. Pra casa de Satanás! (...) Só aturo quem
me der dinheiro. Não agüento mais ninguém não. (...) As pessoas de meu
convívio são muito estúpidas para merecer minha atenção.”308
“São Paulo é uma cidade terrível. / Em São Paulo não se anda. Nas
ruas de São Paulo as pessoas correm e os lentos são contaminados,
empurrados, levados em multidão... (...) Vamos correr! Esta ordem parece
vir do céu e os homens, mulheres, crianças correm e se fanam.” 309

Amor x cotidiano

Novamente é imprescindível lembrar que a solidão, mesmo a da


cidade grande, tinha sempre um sentido positivo para João Antônio. Em
primeiro lugar, era digna: “Por enquanto é solidão, solidão, solidão. Mas
não é uma mentira e tem sua dignidade”.310 E era autêntica: “Não troco,
Ilka, com todo o orgulho e a hombridade, a verdade da minha Solidão
pela mentira de qualquer Amor”.311
O que João Antônio esperava era um amor ideal que o
espiritualizasse e não que o algemasse à realidade. Quando cita música de
Ataulfo Alves, é isso que está sendo dito: “Mulher a gente encontra em
tôda a parte/ Só não encontra a mulher que a gente tem no coração”.312

307
Idem, de 03/03/61.
308
Idem, de 27/10/60.
309
Trecho de texto sem título, anexo à carta de 13/07/60.
310
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/07/64.
311
Idem, ibidem.
312
Idem, de 05/11/62. No ano de sua morte João Antônio estava trabalhando em seu único poema que
167

Ou quando escreve: “Já ando cansado de paixões que não resolvem nada.
(...) Já era tempo do amor acontecer, Ilka, sinto claramente. Mas eu me
referi ao amor, entenda. Um amor que conduza, que espiritualize, que
melhore a criatura amada melhorando êste aqui. / O diabo é que não
aceito pela metade. Nem dou. E nada me leva a aprender esta infame
habilidade dos oportunistas e especuladores do casamento. (...) [o
casamento] É muito humilhante, é terrível. Não é sadio”.313
O que ele gostaria era de um amor que lhe ocupasse toda a vida,
capaz até mesmo de inviabilizar a amizade entre ambos: “Porque se eu
amanhã ou depois tivesse achado o amor noutra mulher, imediatamente
pararia de lhe escrever, de lhe telefonar, de lhe procurar. Eu sinto,
estranhamente sinto que não teria mais êsse direito. É muito confuso o
que lhe digo mas é verdadeiro e se resume assim: se eu encontrar amor
noutra mulher, não quero nem ouvir falar de você, Ilka. Se existe pecado
nêste mundo, para mim mesmo, este seria o pior de todos. Seria uma
violentação, eu sinto assim. Pode parecer um absurdo total. Entretanto, é
o sentimento mais profundo que sinto no tocante a você”.314
A idéia de amor e, conseqüentemente, a de uma esposa, vinha
associada ao sacrifício da auto-determinação, colocando em risco projetos
e relações anteriores: “Mulher sempre entorta. Só quando a gente não
gosta é que mulher não nos entorta a vida”.315
Para João Antônio, a convivência prolongada era causa de
sofrimento: “Convivendo muito, sofro muito, muito nervoso, um pêso na
testa, sabe? Basta de pêso, disto e daquilo. Quero paz”.316 Isso em geral,
imagine-se entre marido e mulher: “O amor (homem + mulher), agora eu

chegou a ser publicado, chamado “Choros – Para Pintagol e Cuíca”. Neste, um dos versos diz: “A
mulher que eu não terei,/ dessa não me esqueço.” In O Estado de São Paulo, 09/11/96.
313
Idem, de 05/11/62.
314
Idem, de 30/07/64.
315
Idem, de 08/09/60. Esta frase é dita referindo-se ao temor de que uma nova namorada de Jordão
ameaçasse a amizade entre eles.
316
Idem, de 27/10/60.
168

sei, estragaria você para mim. Quero-a, direi, distante e indistante. Aqui
comigo e além, com seus problemas”.317 Fosse quem fosse: “Não quero
mais um amor ou qualquer coisa que o valha. Por falar em amor –
apareceu-me na vida, ocasionalmente, uma nova mulher, de quem desisti
no primeiro dia. Quero crer que a arrasei com o meu pessimismo, a minha
insipidez e o meu desencanto. (...) Ainda me telefona e talvez, com algum
jeito, alguma torção no meu temperamento e muita mentira, a mulher
viesse morar comigo. Dessas mulheres que à rua chamam atenções, um
tipo diferente e cujo amor que sabe fazer é muito igual às outras.
Espiritualizada em alguma coisa, sofre. O que ela quer não lhe dou.
Egoísmo, talvez, porque aquilo que ela me pode dar não me interessa.
Ponto final. (...) Crianças não me interessam”.318
Mas há, subjacente a esse desencanto com a instituiçào do
casamento e mesmo com a idéia de felicidade a dois, uma dinâmica
fundamental para que se compreenda a vida de João Antônio, desde essa
época até o fim. A literatura era, de fato, um consolo para as agruras
cotidianas e um bálsamo que lhe transformava a solidão em algo
existencialmente enriquecedor e, por isso, positivo. Mas era, ao mesmo
tempo, uma cobradora exigente, que se alimentava de solidão e sugava
sua vida. Só isolando-se ele conseguiria escrever ao máximo de suas
forças: “Vou fazer o que certos malandros fazem. Não ligam pra droga
nenhuma. Fazem o que bem entendem. Andam sempre contentes da vida,
mas de cara amarrada, para que as pessoas não os olhem. Certos, certos.
Sabem muito bem, que a solução é o egoísmo total. Tirar tudo o que
puder, extrair de um momento de prazer todo o possível. Ter, ter, ter. / E
só terei se me isolar. Eu só terei escrevendo. (...) Aqui neste apartamento

317
Idem, de 13/09/60.
318
Idem, de 12/11/60.
169

não quero ninguém. Quero eu, se me fôr dada graça tanta”.319 “Aí
[escrevendo], a minha timidez vai embora e eu mando o mundo às favas.
Porque êste é o único tipo de amor que conheço completamente, Ilka”.320
E para de fato viver a literatura como único amor de sua vida, por
mais que ansiasse pelo carinho de uma mulher, por mais que às vezes
sentisse a falta de um filho, por mais que admitisse a importância dos
amigos, ele precisaria eliminar de sua vida qualquer sombra de novos
compromissos sociais e familiares. Mulher e filhos, sobretudo, seriam
uma interferência fatal para sua vocação: “Você precisava viajar. E
muito. Está em Londres. Livre. Não foi melhor, mais racional, mais
higiênico? Pois. Porque eu preciso também fazer coisas de minha vida.
Ganhar dinheiro, escrever, me firmar. Não foi assim que concluímos, há
muito tempo, (...) juntos naquele banco do jardim? (...) Você tem sua luta
livre com seu trabalho, (...). Eu carrego coisas profissionais e me carrego
literariamente”.321
A desejada dedicação exclusiva à literatura, somada ao medo de se
“aburguezar” constituindo família, e sem esquecer a já vista vocação para
o conflito, dava em frases retumbantemente firmes: “Brasil não é terra
para intelectual ou artista viver. Brasil é para cachorros, exploradores e
negocistas. (...) A solução é fugir daqui e correndinho. Osman quebrou
com a família; fugir para a França. Deixar mulher, filhos, ir, ir. Cavar
uma bolsa e desaparecer. De – sa – pa – re – cer. / Osman fêz bem”.322
Afinal, num mundo onde ele só via o atrito de interesses e projetos
pessoais – “Perambulo e é tudo egoísmo”323 – o remédio seria o próprio
veneno: “Arrisco-me a um conselho, eu, João Antônio, que não gosto de

319
Idem, de 27/10/60.
320
Idem, de 05/11/62.
321
Idem, de 06/07/64.
322
Idem, de 03/11/60.
323
Idem, de 06/10/60. “Osman” é Osman Lins, o escritor. A julgar pela correspondência, não era um
amigo próximo. Esta é a única menção a Osman Lins em seis anos de cartas.
170

conselhos. Ilka, sofra menos. Não haverá uma saída? Seja egoísta, pense
em você, seja até má”.324
Ou, se não um egoísmo e uma maldade assumidos, ele defendia
uma barreira de proteção contra as armadilhas do coração, e da sociedade:
“E, chegando a uma idade em que me vou esclarecendo humanamente
para mim, em certas coisas da vida sentimental, resolvi pela saída dos
perfeccionistas e de alguns personagens de Ingmar Bergman. Necessário
que se construa uma muralha em redor da gente para que não venhamos a
sucumbir antes do tempo. A tal muralha é certa habilidade em não nos
deixar envolver por comoções e que fatalmente se alongam e nos dão um
trabalhão danado, na tarefa soturna de engordar tristezas. Não é cinismo
meu, não. A Ilka me conhece. Apenas evito emoções através de um
raciocínio que me parece por demais, equilibrado”.325 “E nós precisamos
contornar a emoção, sabe? Fazer aquela tôrre em tôrno da gente, como
ensinou Ingmar Bergman em um dos seus filmes (Juventude?) Não me
lembro. Mas a tôrre é necessária. Porque não podemos viver nos
estraçalhando em dissimuladas”.326
E assim a vida do jovem escritor se armava, de fato sem qualquer
laço mais estável que a literatura. Durante todo o período entre 1959 e até
sua mudança para o Rio de Janeiro, João Antônio realmente conseguiu,
ainda que aos trancos e barrancos, manter de pé a muralha com que
defendia sua vocação e independência, ou melhor, sua “dignidade” de
solitário.

324
Idem, de 13/09/60.
325
Idem, de 08/06/64.
326
Idem, de 06/07/64.
171

Fontes e establishment literário

Até aqui, foi feito um levantamento o mais detalhado possível dos


principais fatos biográficos da primeira fase da vida do escritor João
Antônio, de seu nascimento ao início da vida adulta (no primeiro capítulo)
e, em seguida, esse levantamento foi complementado por alguns aspectos
mais subjetivos de seu temperamento, levantados a partir de suas cartas
para a amiga Ilka Brunhilde Laurito. Agora, ainda tomando por base
primordialmente as informações contidas nesse mesmo acervo epistolar,
mas não só, tentar-se-á atingir um duplo objetivo. De um lado, antes da
análise mais detalhada dos contos que formam seu livro de estréia e de
“Paulinho Perna Torta”, novela escrita logo em seguida, a meta será
delinear, em traços mais largos, a trajetória formal de sua literatura,
identificando basicamente dois momentos: suas primeiras influências e seu
primeiro desvio ou desdobramento estilístico. De outro lado, como
complemento a essa trajetória, é enriquecedor perceber o quanto essas
primeiras influências, na prática, estão ligadas a um determinado grupo de
críticos e escritores, que formariam, por assim dizer, a primeira roda
literária do escritor e a base de sua inserção no meio literário.
Pode-se dizer que as quatro principais fontes do jovem João Antônio
foram: 1) a própria literatura; 2) o cinema de arte europeu; 3) a música
popular brasileira, mais especificamente o samba a partir dos anos 20; 4)
sua biografia. Desses quatro manaciais saíram os elementos formais e de
conteúdo de suas primeiras criações. As exatas contribuições da música e
do cinema de arte para sua obra hão de merecer, no futuro, estudos
específicos por parte de pesquisadores qualificados para tanto.327

327
Com base nas cartas para Ilka, escritas entre 1959 e 1965, podemos apenas fazer uma lista de nomes
e arriscar uma ou outra linha de análise. Além de freqüentar festivais de cinema italiano, francês, etc,
entre os diretores de cinema e ou filmes citados estão: Ingmar Bergman, Visconti e “os moços da
nouvelle vague”, O General Desnudo, Rashomon, Michelangelo Antonioni, Orson Welles, Hiroshima
172

No âmbito da literatura, seria o caso agora de nos afastarmos um


pouco das influências distantes, no tempo e no espaço, como clássicos do
porte de um Dostoiévski ou um Balzac, e concentrarmo-nos naqueles
escritores que possam ter influído mais diretamente sobre o jovem João
Antônio.
Há que se levar em conta, antes de descermos a nomes, o momento
literário na segunda metade dos anos 50, época em que João Antônio
começou a escrever e deu à luz as primeiras versões dos contos que
comporiam a primeira parte de seu livro de estréia. O modernismo,
inaugurado no início dos anos 20, criara um novo horizonte literário no
país. No que se refere ao conteúdo, grosso modo, sua maior contribuição
foi a ênfase dada aos assuntos nacionais e a seus tipos, digerindo de
maneira nova, “antropofágica”, as influências culturais européias. Do ponto
de vista formal, criara a possibilidade de novas linguagens, menos apegadas
a grandes rebuscamentos formais, mais livres do ponto de vista sintático e
vocabular, mais próximas de uma linguagem cotidiana e da realidade da
época. A primeira geração literária do modernismo elegera suas estrelas de

Mon Amour, Ligações Amorosas, Dolce Vita, Albert Lamorisse e Grigori Kosintev. Duas observações
são interessantes. Uma, a respeito da nouvelle vague: “Acho que os moços da ‘nouvelle vague’ têm
muito o que dizer. E têm linguagem cinematográfica para”. Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de
08/08/60. E outra, sobre Antonioni: “Os cineastas modernos estão mesmo a fim de nos estraçalhar. (...)
Vendo o filme de Antonioni, Ilka, concluo que nós não sabemos nada sôbre o amor. (...) Antonioni
talvez seja o mais revolucionário dos cineastas atuais. Ensina que não sabemos nada sobre os nossos
sentimentos”. Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 25/08/62. Casando esses pensamentos com o já
referido impacto do filme Ladrões de Bicicleta, de Vittorio de Sica, sobre o pai do escritor e sobre ele
próprio, e com sua preocupação por encontrar um “cinema que não mentia”, algumas possíveis linhas
de análise já se delineam, por exemplo a influência do neo-realismo italiano na obra de João Antônio.
Sintomaticamente, após a publicação de seu livro de estréia, João Antônio é contactado para ceder os
direitos de filmagem da novela “Malagueta, Perus e Bacanaço” ao diretor Roberto Santos, num filme a
ser produzido por ninguém menos que Nélson Pereira dos Santos, o expoente do neo-realismo
brasileiro. Carta para Ilka Brunhilde Laurito, de 30/07/64.
No que se refere à música, embora as referências nas cartas não sejam tão numerosas, a importância
dela sobre sua obra não pode jamais ser menosprezada. Um exemplo está na carta a Ilka Brunhilde
Laurito, de 05/11/62, na qual ele cita um samba cantado por Ataulfo Alves, em que um dos versos lê:
“Mulher a gente encontra em tôda a parte/ Só não encontra a mulher que a gente tem no coração.”
Curiosamente, o tema e o pathos do samba reaparecem no único poema mais conhecido do escritor,
publicado postumamente e dedicado à idéia de uma mulher que se deseja e não se encontra. Diz João
Antônio, no último verso: “A mulher que não terei,/ dessa não me esqueço”. Um futuro cruzamento
entre as letras dos sambas clássicos e a obra do escritor certamente encontrará outros ecos semelhantes.
Da mesma forma o cruzamento da idealização da malandragem feito pelo samba tem conexões
importantes com a própria biografia de João Antônio.
173

primeira grandeza, entre elas: Mário de Andrade (1893-1945), Oswald de


Andrade (1890-1954) e Manuel Bandeira (1886-1968), trinca digna de
encabeçar qualquer lista, e outras a seu modo também brilhantes, entre elas
Antônio de Alcântara Machado (1901-1935) e Sérgio Milliet (1898-1966).
A chamada “segunda geração” modernista, constituída a partir dos anos 30,
e que durante os anos 50 ainda estava em plena produção, dividira-se
basicamente em duas correntes, os regionalistas, que deslocavam o foco de
suas narrativas dos grandes centros e recuperavam o caráter e, em alguns
casos, a fala rural do Brasil, e os romancistas modernos por excelência,
urbanos e introspectivos. No primeiro grupo podemos destacar José Lins do
Rêgo (1892-1953) e Guimarães Rosa (1908-1967); no segundo, Marques
Rebelo (1907-1973) e Clarice Lispector (1925 –1977).
Obviamente, além de simplistas, as generalizações acima deixam de
fora nomes como Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Jorge
Amado, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles etc. E mais: é preciso
sempre estar atento para aqueles autores que transitam entre essas linhas,
como por exemplo Graciliano Ramos. Mesmo assim, não creio que seja
necessário abrir um longo parágrafo para essa parte da história literária
brasileira. Basta, aqui, entender vagamente como se estruturava o
establishment literário que pairava sobre a cabeça do jovem João Antônio e
de seus contemporâneos, que mais tarde iriam compor a chamada “Geração
70”.

Pilares da inserção literária

Como já ficou evidente em relação a Ilka Brunhilde Laurito, João


174

Antônio era, desde cedo, um inveterado missivista.328 Além disso, era


contumaz pleiteante a prêmios literários, o que fazia também por carta.
Estes prêmios, promovidos pelos órgãos de imprensa, consistiam
eminentemente na publicação do primeiro colocado. Várias das inserções
de contos de João Antônio na imprensa da época devem-se a sua vitória em
um “concurso”. O nível de imparcialidade dos editores de jornais e revistas
no processo de seleção deveria logicamente variar, com alguns concursos
tendo um corpo de jurados conhecido e constituído como uma instância
independente do veículo de imprensa seu promotor, enquanto outros
decidiam-se ou por consulta aos colaboradores regulares ou mesmo por
preferência pessoal do editor.
Como tudo começou, é difícil dizer. O que se pode afirmar
categoricamente é que, além de um talento literário precoce, João Antônio
tinha consciência das estratégias que usava para se aproximar dos
profissionais do meio329, e que, por volta de 1959, já constituíra uma rede
consideravelmente ampla de contatos literários. Dela faziam parte o escritor
Ricardo Ramos, o sábio húngaro-brasileiro Paulo Rónai, o crítico Mário da
Silva Brito, de importância já mencionada, o escritor Jorge Medauar,
Fúlvio Camargo, diretor de “um departamento” da editora Cultrix, Paulo
Bonfim, então assumindo cargo de diretor de criação da Revista SR,
Joaquim Pinto Nazário, editor da página literária do Diário de São Paulo,
Menotti del Picchia, Rolmes Barbosa, que mantinha a coluna semanal sobre
livros no “Suplemento Literário” d’ O Estado de São Paulo, Orígenes
Lessa, Marcos Rey, escritor e jornalista cultural, Fernando Góes, escritor e

328
Ainda nos anos 80, quando o telefone já se tornara de longe o meio de comunicação mais usado, era
seu hábito manter correspondência assídua com os amigos e, através primordialmente das cartas,
estabelecer contatos literários os mais diversos.
329
Em uma versão inicial de seu livro de estréia, localizado em seu acervo, na Unesp de Assis, mas
ainda não devidamente catalogado, ele anexou uma lista com 47 nomes para quem o mandaria e mais
13 nomes de pessoas a quem já havia mandado. Tempos depois, ele aconselha Ilka, em dada
oportunidade, a fazer como ele: “Tiraremos várias cópias [de um livro dela] e seu livro irá para as mãos
de Rubem Braga, Paulo Rónai, Ênio Silveira. Não é sonho não; é tudo muito viável”. Carta a Ilka
Brunhilde Laurito, de 27/01/62.
175

jornalista cultural, José Armando Pereira, que tinha página literária num
jornal de Sto. André, Marques Rebelo330, Hermann José Reipert, escritor,
Jamil Almansur Haddad, poeta e dramaturgo, Levi Carneiro, da Revista
Brasileira, Caio Porfírio Carneiro, escritor, Décio de Almeida Prado, crítico
teatral d’ O Estado de São Paulo e Sérgio Milliet, literato e crítico. Vários
deles serão novamente citados no correr deste capítulo, tendo detalhadas
suas intervenções na vida de João Antônio.
Há, é claro, alguns poucos nomes citados na correspondência com
Ilka, que ficaram de fora dessa lista, mas esses se destacam seja pela
intimidade de que gozaram junto ao escritor, pela ascendência que tiveram
sobre ele, pela quantidade de vezes em que o ajudaram a publicar textos, ou
simplesmente pelo papel que exerciam nos meios literários paulistano e
brasileiro. Com alguns havia uma amizade direta, de corpo presente, mas
com muitos, entre eles a própria Ilka, a relação era sobretudo epistolar. Para
essa variação contribuía certamente a distância física, e muito
provavelmente a geracional.
Analisando-se a lista de nomes constantes na rede literária de João
Antônio, entre o final dos anos 50 e o início dos 60, é difícil deixar de
enxergar grandes figuras, sendo que algumas muito intimamente ligadas à
herança do primeiro momento modernista e ao corpo-a-corpo presente da
segunda geração. Estes homens de letras, alguns já reconhecidos por sua
obra, de criação ou crítica, embebidos dos ideais de renovação da literatura
brasileira e, muitas vezes, da crítica ao status quo social vigente, irão influir
duplamente na carreira literária do jovem escritor. De um lado, é com eles –
e de preferência por carta – que João Antônio vence qualquer insegurança
ou complexo e dá à luz seus textos, ouvindo críticas e sugestões. É também
por influência deles que os ideais estéticos e sociais dos “modernismos”

330
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/08/90. Reza a lenda, foi Marques Rebelo quem aplicou ao
livro de João Antônio o epíteto de “clássico da literatura velhaca”.
176

brasileiros se materializam nos contos do jovem João Antônio. De outro,


mais materialista, são estes homens que abrem as portas da imprensa para
os contos do jovem escritor – já devidamente lidos, comentados e muitas
vezes com sugestões incorporadas. Os dois lados da moeda poderiam vir
juntos ou separados, mas em geral estavam juntos, ou seja, uma espontânea
concordância estética e ideológica propiciava uma aliança pragmática no
que se refere à circulação de sua obra.
Foi provavelmente via correio (afinal, a revista era no Rio de Janeiro e
também lá residiam os jurados) que o jovem escritor inscreveu-se no
prêmio d’A Cigarra, que teve como júri a dupla Aurélio Buarque de
Holanda e Paulo Rónai, e no qual sua vitória foi divulgada em abril de
1958.331 Paulo Rónai, nascido em 1907, em Budapeste, chegara ao Rio em
1940, muitos anos depois, portanto, da Semana de Arte Moderna de 22.
Mas viera a convite do Itamaraty, por ter, em 1939, na condição de
divulgador de literaturas estrangeiras em sua cidade natal, aprendido
sozinho o português e concebido, traduzido e publicado uma antologia da
moderna poesia brasileira. Cinco anos depois de sua chegada, era
naturalizado brasileiro, com dispensa do prazo oficial de residência no
território, por serviços culturais ao Brasil. Embora especializando-se na
carreira de tradutor de obras clássicas para o português, toda sua conhecida
trajetória pessoal ligava-o aos escritores em atividade na época. Rónai
soube enxergar os textos de João Antônio na cena literária de então, e
dispôs-se a com ele discutir critérios estéticos, a cada leitura que fazia de
seus textos.
Pois bem, nos anos seguintes, Paulo Rónai, embora fosse trinta anos

331
P. 91. Vale dizer que o já citado conto “Indios”, de 1956, ganhara anteriormente uma menção
honrosa em outro concurso de A Cigarra. Não é possível afirmar, contudo, quem foram os jurados
nesse caso. Ver carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/09/59. Nesta segunda oportunidade, “Fujie” é,
embora vencedor na opinião dos jurados, censurado pela direção da revista, que o substitui para
publicação pelo conto “Frio”, publicado em abril de 1958. Os motivos da censura são, provavelmente,
o forte apelo sensual do conto e a ruptura ética do personagem central e narrador.
177

mais velho que João Antônio e já um grande nome das letras brasileiras,
tornar-se-ia um correspondente regular do jovem escritor e uma referência
sua no Rio de Janeiro. João Antônio, certa vez, comentou essa amizade
com Ilka: “Recebi também, Ilka, uma carta de Paulo Rónai. Uma carta
assim como a sua. Boa e franca. Um grande coração atrás das palavras, um
homem limpo. Uma pessoa que não precisava jamais descer de onde está,
para dar a mão a um escritor novo como eu, rapaz e que oscila. Mas Paulo
me escreve, analisa meu novo conto, aponta isto e aquilo. / Sou um
felizardo, Ilka, claro que sou. Dou as costas aos bonecos e macacos da
literatura e ainda dou sorte – valores verdadeiros se afinam comigo, me
incentivam, me aconselham, me entendem nas cartas escritas quase
amorosamente”.332
Quase um ano depois de João Antônio escrever isso, Paulo Rónai, que
secretariava a revista da Academia Brasileira de Letras, prometeu nela
publicar o conto “Meninão do Caixote”.333 De fato veio a publicá-lo, mas
apenas dois anos depois. Haver transcorrido tanto tempo, conforme
demonstra a gratidão e admiração de João Antônio pelo crítico, não era
sinal de que Paulo Rónai o estivesse “cozinhando”, ao contrário do que se
pode deduzir à primeira vista. Ao que tudo indica, esse intervalo de tempo é
melhor entendido se visto como todo um período de contato entre o
veterano homem de letras e o jovem paulistano.
Houve também o convite de Rónai para que escrevesse na revista
Comentário.334 E um artigo de João Antônio veio de fato a ser publicado,
também passado quase um ano do convite.335 Por fim, outra demonstração
real do apreço de Paulo Rónai pelos contos que recebia de Presidente
Altino e de sua ajuda espontânea à veiculação dos mesmos, vem citada em

332
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 17/10/59.
333
Idem, de 08/09/60 e de 19/05/62.
334
Idem, de 25/12/60.
335
Idem, de 25/11/60.
178

carta pelo escritor: “Paulo Rónai me escreve. Vou aparecer numa antologia
de contistas novos assinada por Paulo Rónai e Aurélio Buarque de
Hollanda Ferreira”.336
Há outras menções a esse veterano amigo e incentivador nas cartas de
João Antônio, quase sempre ligadas a encomendas de textos ou a
publicação dos contos.337 Mas nem só de Paulo Rónai vive o homem. Já foi
mencionada a visita inesperada do escritor e editor Ricardo Ramos,
acompanhado de outros “homens engravatados”, à modesta casa do pai de
João Antônio, em busca do remetente desconhecido que postara seus
primeiros contos sob pseudônimo, apenas com o endereço correto dando
uma pista involuntária de como poderia ser encontrado.338 Esta visita
ocorreu necessariamente entre 1954, data da publicação do primeiro conto
adulto de João Antônio, e 1958. Ela significou um marco em sua inserção
literária de várias formas. Ricardo Ramos, nascido em 1929, deveria ser
visto na época como uma espécie de menino prodígio. Para começar, era
filho de Graciliano, o que fatalmente o tornava uma pessoa conhecida no
meio. Mas tinha méritos próprios. Lançara o primeiro livro aos 24 anos, e
talvez, àquela altura, já tivesse publicado o segundo, ou então estava em
vias de.339 Por fim, além de escritor, era jornalista cultural com entrada em
vários veículos e mantinha contato com várias editoras. Isso tudo sendo
apenas oito anos mais velho que João Antônio.
A amizade literária entre os dois se firmou nos anos seguintes. E se é
lícito datar com tanta convicção a data mais tardia possível para aquele
primeiro encontro, isso decorre do fato de que a partir de 1958, mais
especificamente de 11 de setembro, João Antônio tem seus contos

336
Idem, de 25/12/60.
337
Idem, de 27/01/62 e 19/05/62.
338
Pp. 92, 93 e 94.
339
Tempo de Espera (contos), 1954; Terno de Reis (contos), 1957. Até 1963, ano de publicação de
Malagueta, Perus e Bacanaço, publicaria mais dois: Os Caminhantes de Santa Luzia (novela), 1961;
Os Desertos (contos) 1961. Menezes, Raimundo de: Dicionário Literário Brasileiro, Rio de Janeiro,
LTC, 1978, p. 563.
179

publicados na página literária dirigida por Ricardo Ramos no jornal Última


Hora. Primeiro “Afinação da Arte de Chutar Tampinhas”, em seguida
“Fujie”, depois “Retalhos de Fome Numa Tarde de G.C.”, e finalmente
“Natal na Cafua”.340 E a contribuição de Ricardo Ramos para que a obra do
jovem escritor que tanto o impressionara circulasse ainda não parou por aí.
Ele viria a fazer, nos anos seguintes, dois convites para João Antônio
publicar seu primeiro livro, convites estes dos quais falaremos mais à
frente.
O quanto essas publicações em jornais e revistas estavam
condicionadas a mudanças nos textos, eventualmente sugeridas pelos
“consultores” informais de João Antônio, ou mesmo o quanto eles de fato
ajudavam o jovem talento a direcionar sua criação para mais perto dos
preceitos estéticos vigentes, é impossível dizer com precisão. Vale ressaltar
o caráter independente do jovem João Antônio e a sua já discutida “vocação
para o conflito”, que em tese deveria torná-lo um tanto impermeável a
interferências externas. Certamente, sua dose de humildade deveria variar
de acordo com a diferença de idade ou de prestígio entre ele e seu
interlocutor.341 Em geral, seus contemporâneos têm de João Antônio a
imagem de alguém extremamente orgulhoso e cioso de sua independência,
e isso está de acordo com o que se vê nas cartas para Ilka. Mas, em
publicações menos definitivas que a de um livro, ele já havia aceito
modificações unilaterais em seu texto: “Leia meu conto ‘Visita’, que O
Estado de São Paulo publicou. O conto está todo mudado, sem a quentura

340
A edição de “Afinação”, que data de 19 de julho, embora mencionada nas cartas, não foi encontrada
por esta pesquisa. “Fujie” saiu em 11 de setembro de 1958. “Retratos da Fome” em 22 de novembro de
1958. “Natal”, em 8 de janeiro de 1959.
341
Para precisar a exata medida em que esses amigos de pena interferiram direta na elaboração do
primeiro estilo de João Antônio seria necessário confrontar as várias versões dos contos, já localizadas
no acervo do escritor e coletadas por essa pesquisa, com a correspondência ativa e passiva com cada
um desses homens de letras, que infelizmente ainda não foi catalogada no mesmo acervo. Além disso, a
família do escritor não autorizou a pesquisa no acervo epistolar nem no material emprestado à Unesp
de Assis para catalogação e nem num lote de cartas cuja guarda conservou, de tamanho e conteúdo
desconhecidos. Todos os núcleos de documentação epistolar obtidos ao longo desta pesquisa foram
encontrados nas mãos de não-familiares.
180

que tinha. O Estado não se dá com as minhas quenturas”.342 De qualquer


forma, uma coisa é censura, como esta e a que sofreu na revista A Cigarra
(ver nota 354). Outra coisa é estar aberto para ouvir sugestões e até
eventuais críticas de amigos e colegas.
Porém, ainda que a cota de mudanças feita por sugestões de terceiros
tenha sido mínima, é inevitável que houvesse alguma “contaminação”
estética entre João Antônio e seus correspondentes. Longe de com isso
dizer que ele escrevia o que achava que os outros iriam gostar, mas
dizendo, isto sim, que ele sabia farejar aqueles que gostariam de seus
textos, fazendo contato preferencial com quem imaginava ser próximo de
sua estética ou de seu pathos literário. O que, aliás, é natural. Viviam a
mesma época, liam os mesmos lançamentos, trocavam opiniões e estavam
todos inseridos em latitudes relativamente próximas do mesmo
establishment estético, a despeito das diferenças de idade e prestígio
individual.
A forma gradual com que João Antônio foi se tornando conhecido no
meio literário apresenta inúmeras ramificações, com contatos sendo feitos
aqui e ali. Outro amigo importante foi o escritor Paulo Dantas. Quinze anos
mais velho, sergipano que passara pelo Rio de Janeiro, trabalhando no
mercado livreiro e editorial, e viera a se fixar em São Paulo, Dantas era
também já um escritor experimentado, com dois livros publicados.343 Como
se conheceram não se sabe, podendo ter sido apresentados por amigos em
comum ou o contato pode novamente ter sido feito por carta de João
Antônio, pedindo-lhe opinião sobre seus contos. Mas o fato é que depois
tiveram contato direto, freqüentando juntos, por exemplo, lançamentos
literários.344 Também um homem de seu tempo, Dantas estava bastante

342
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 25/12/60.
343
Os livros eram: Aquelas Muralhas Cinzentas (novela), 1943; As Águas Não Dormem (novela),
1946.
344
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 26/05/60.
181

enfronhado nos ideais estéticos da segunda geração modernista.345 No que


se refere ao prestígio que gozava junto a João Antônio, e a seu nível de
interferência nos escritos do jovem escritor, é interessante voltar às cartas:
“Dantas é um rico. Um homem rico de belezas interiores. Como me
entende! Como sabe me dar força:
– Certo, tudo é certo. Mas você tem talento para refazer tudo.
É um homem sofrido, sabe o que diz”.346
Mário da Silva Brito, anteriormente citado, entre outras coisas, como o
homem que conseguiu a cabine da biblioteca Mário de Andrade onde João
Antônio reescreveu, após o incêndio, a novela-título de seu primeiro livro, é
um personagem que merece ter seu papel ampliado e detalhado nessa fase
de inserção de João Antônio no meio literário. Como travaram contato, é
mistério. Apresentados por terceiros? Por Ricardo Ramos? João Antônio
lhe escreveu? Procurou? Certamente que João Antônio deveria conhecê-lo
de nome. Nascido em São Paulo, em 1916, desde 1943 Silva Brito vinha
atuando como escritor, professor e jornalista cultural, tendo tomado parte
em inúmeros movimentos literários, sempre em oposição às estéticas
conservadoras, e publicara, em 1958, o célebre livro História do
Modernismo Brasileiro: Antecedentes da Semana de Arte Moderna, até
hoje uma fonte bibliográfica obrigatória para o período e, no ano de seu
lançamento, vencedor dos prêmios Fábio Prado e Jabuti. À época em que o
núcleo documental aqui destacado se inicia, Mário da Silva Brito
colaborava com a Editora das Américas.
Logo de saída, vale citar uma de suas contribuições fundamentais para
a carreira de João Antônio: o nome artístico. Até 1958, João Antônio

345
Para isso basta dizer que seu livro Capitão Jagunço, publicado originalmente em 1960, na época de
sua amizade com o ainda inédito João Antônio, já nasce comparado a Guimarães Rosa. Ver citação
sem maiores indicações bibliográficas do verbete do Anuário da Literatura Brasileira de 1960, escrito
por M. Cavalcanti Proença, e reproduzido in Capitão Jagunço, São Paulo, Global, 1982, pp. V,VI e
VII, 5a edição.
346
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/08/60.
182

assinava suas publicações com o nome completo, ou seja, João Antônio


Ferreira Filho. Mas, já em 1959, ele diria: “Costumo assinar João Antônio
nos meus contos. Foi o Mário da Silva Brito e foi o Ricardo Ramos, quem
me puseram na cabeça: meu nome é muito comprido e não haveria cristão
que o retesse (sic) guardasse. Bem. Fiquei sendo João Antônio (...)”.347
Mas não só isso. Era leitor assíduo e obrigatório de tudo o que João
Antônio escrevia, devia indicá-lo a muita gente, em especial a outros
escritores e diretores de suplementos literários, recomendava leituras348, e
lia aquilo que João Antônio lhe recomendava, era uma possível fonte de
novos livros. João Antônio, nessa época, tinha uma situação financeira
difícil, Mário passava a notícia de novos concursos, instando-o a participar,
estimulava-o a escrever.
Mário da Silva Brito era, quase com certeza, o amigo mais influente
de João Antônio. Além de veterano do mercado editorial, pois já passara
por vários selos, era um homem de grande penetração institucional.
Contribuíra para a fundação da Câmara Brasileira do Livro, tendo ocupado
cargos na diretoria, integrara os conselhos municipal e estadual de literatura
de São Paulo, era consultor da Fundação Armando Álvares Penteado e,
entre outras coisas, fizera parte da comissão encarregada de reformar os
estatutos da União Brasileira de Escritores (UBE). Em 1961, é eleito
presidente da UBE, fato que João Antônio não deixa de comentar,
transparecendo alguma reserva à instituição: “Mário da Silva Brito foi para
a presidência da União Brasileira dos Escritores. Vamos ver, desta feita.
Pelo menos presidência a UBE tem”.349
São inúmeras as vezes, nas cartas, em que Mário da Silva Brito
aparece descolando uma publicação para os contos do seu jovem amigo. É

347
Idem, de 01/09/59.
348
Pelo menos uma autora recomendada por ele causam impacto em João Antônio. Uma é Carolina
Maria de Jesus, com seu livro Quarto de Despejo, publicado em São Paulo, pela Francisco Alves, e de
cuja promoção Mário da Silva Brito se encarrega.
349
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/61.
183

quem o leva para a revista Anhembi.350 Juntamente com Orígenes Lessa,


tenta conseguir-lhe publicação na Revista SR.351 Em viagem à Bahia, leva
contos de João Antônio na mala.352 E por duas vezes tenta publicar um livro
seu, fracassando na primeira tentativa e logrando na segunda, como se verá.

Uns malandros inéditos

Ricardo Ramos, Paulo Dantas e Mário da Silva Brito, homens bem


colocados no mercado editorial, foram os homens que realmente lutaram
para que o jovem João Antônio fosse publicado. Entretanto, o primeiro
convite para publicação em livro mencionado nas cartas para Ilka, parte de
um editor não identificado, em 1959.353 Onze meses depois, porém, João
Antônio menciona a combinação entre ele, Paulo Dantas e Ricardo Ramos
para sua estréia em livro. Este seria um segundo caminho potencial para
uma publicação. E por fim, sete meses depois do segundo convite, portanto
já em 1961, Mário da Silva Brito o convida a publicar pela Editora das
Américas.354
Por um momento, João Antônio cogita fazer dois livros, um com
Paulo Dantas e Ricardo Ramos em Autores Reunidos e um com Mário da
Silva Brito na Editora das Américas: “O convite para o segundo livro,
estendido por Mário da Silva Brito, modifica na base meus planos originais
para o livro que darei à Edições Autores Reunidos. Há o que fazer. (...) Mas
dá vontade, Ilka. O sentimento bom de que estou me realizando, Ilka. Gente
complicada como eu, sentimentalões à toa, à toa, não se realizam à toa, à

350
Idem, de 01/09/59,
351
Idem, de 06/06/60.
352
Idem, de 21/06/60.
353
Idem, de 28/09/59.
354
Idem, de 23/05/61.
184

toa. (...)”.355 E ele vai mais longe, dando nomes aos livros: “Fazendo
Meninão do Caixote, primeiro livro de contos, e João Antônio Conta
Histórias, segundo livro com contos longos, terei ido à forra [do incêndio
ocorrido no ano anterior] ”.356 “Meu primeiro livro obedeceria a esta
provável colocação:

355
Idem, ibidem.
356
Idem, ibidem.
185

“Contos Gerais

1- Afinação da Arte de Chutar Tampinhas


2- Retalhos de Fome Numa Tarde de G.C.
3- Natal na Cafua
4- Índios (conto ruim que deve aparecer)
5- Busca
6- Natal por aí (a escrever)
7- Fujie

Sinuca

8- Visita
9- Frio
10- Patroando Paraná (a escrever)
11-Meninão do Caixote (que será conto-título do livro)

Malagueta Perus e Bacanaço fica para o segundo livro.”357

Ficam no ar duas perguntas: 1) por que João Antônio, embora


interessado, não agarrou imediatamente nenhum desses convites?; 2) quem era
o editor desconhecido e por que não entrou no planos dos escritor? Com base
na documentação encontrada, a segunda pergunta não tem resposta. Mas, de
outro lado, é interessante especular sobre os motivos que o teriam levado a
resistir contra seu próprio sonho de publicação. Afinal, ele gostava da sensação
de se ver publicado, visto que batalhava a cada dia para figurar nas páginas
desta e daquela revista, ou em jornais; então por que não fez logo um livro?
Por que, em vez de dividir seus textos em dois conjuntos, não se precipitou a
fazer um o mais rápido possível, antes que os convites murchassem, ainda que
a reescritura da novela “Malagueta, Perus e Bacanaço” não estivesse pronta? A
explicação mais forte para que mais de um ano e meio tenha transcorrido entre
357
Idem, ibidem.
186

o primeiro convite e o terceiro é que João Antônio não se considerava


literariamente pronto para cristalizar seus contos em livro. As publicações em
revistas eram passageiras, permitindo-lhe mudar e ajustar passagens que
julgasse carentes de melhora. Ele era crítico em relação a seu trabalho. Um
exemplo é sua reação, anos depois, à recepção de “Paulinho Perna Torta”: “A
história de ‘Paulinho Perna Torta’, violenta e quase cruel, arrancou das três
únicas pessoas que a leram até agora uma porção de elogios (ou melhor: foram
quatro pessoas). Maria Geralda do Amaral Mello, Mário da Silva Brito,
Hermann José Reipert e Caio Porfírio Carneiro – todos seus conhecidos, não?
Pois. Alguns acham que superei ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’. (...) Mas eu,
honesta e simplesmente, não acho nada disso. (...) Para mim, a novela
‘Paulinho Perna Torta’ tem ainda muitos defeitos de composição, linguagem e
até sintaxe à malandra; e, daqui a um mês quero repegar o trabalho e
decentizá-lo.”358
Mas há outras explicações concomitantes. Uma, que parece reforçada
pela lista acima transcrita, é que ele julgava não ter ainda material suficiente
para fazer o livro em 1959. Havia contos a escrever. Também elaborou mais
de uma combinação possível entre os contos de que dispunha, o que revela sua
incerteza quanto à forma final do livro. Perguntou-se muitas vezes qual o
melhor título: se Meninão do Caixote, se Malagueta, Perus e Bacanaço, se
Aluados e Cinzentos etc. Em 1960, por fim, ele perdeu os originais de
“Malagueta, Perus e Bacanaço”, o que o embotou literariamente por um
tempo, e depois o deixou às voltas com a reescritura da novela. Ou seja, o
primeiro livro tinha lacunas, o segundo precisava ser reescrito.
O ritmo lento da produção editorial, a informalidade mesma das
combinações com as editoras, uma ganância exagerada, de estrear com um
358
Idem, de 08/06/64.
187

livro já tendo outro engatilhado, o otimismo exacerbado que o cegou para os


percalços econômicos das editoras no país, a insatisfação com a parte
financeira das propostas, são possivelmente fatores adicionais a contribuir para
que ele não fechasse nada com ninguém.
Exatamente neste momento, o presidente Jânio Quadros cortou os
subsídios para diversos setores industriais, entre eles o dos fabricantes de
papel. A isto seguiu-se um drástico aumento nos custos da matéria prima
essencial dos livros.359 João Antônio foi pego no contrapé. Ele escreve a Ilka:
“(...) à instrução 204 o senhor Jânio Quadros anuiu a 208, que é carga terrível.
Livreiros, editôres, escritores e todo o resto do pessoal se assutou de verdade.
Chegou-me à cabeça da crise do problema livro. Papel a não sei quanto.
– E os meus livros? Sairão?
José Olympio, Martins, Saraiva, Brasiliense, Civilização Brasileira,
Francisco Alves, Autores Reunidos – todos reunidos a portas fechadas na
Câmara Brasileira do Livro para debate. Debate vale?
– E os meus livros? Sairão?
Mêdo, Ilka. Esta 208, agora, me aterra.
Uma briga aí nos círculos, jornal descendo o pau. Eu queria saber:
– E os meus livros? Sairão?”.360
Três meses depois, seus receios se confirmam: “Muitas notícias, umas
boas outras más. Mais más do que boas, desta feita em que após as instruções
204 e 208 e renúncia de um ilustre presidente que deixou o Alvorada, em
Brasília, como se deixasse o Clubinho Recretativo Flor de Mandioca numa
ruela do Brás; meus dois livros não sairão. As Edições Autores Reunidos e a
Editôra das Américas não estão dispostas. (...) Entre um Caymmi e um copo,
359
Tais medias foram em conseqüência do déficit fiscal brasileiro e das pressões dos credores estrangeiros.
Ver Fausto, Boris: História do Brasil, São Paulo, Edusp, pp. 439 e 440.
360
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 05/07/61.
188

Ricardo Ramos me deu a primeira má notícia. Dentro em pouco, Mário da


Silva Brito jogou-me a outra bomba”.361
Difícil não ouvir uma das principais máximas do velho João Antônio
Ferreira, seu pai, que dizia que aos pobres não basta fazerem bem feito, é
preciso que façam duas vezes. Toda a rede de contatos e todas as portas
habilmente abertas por João Antônio para a publicação de sua obra em livro se
fecharam de uma vez só. Como era de seu feitio, sua reação oscilou entre a
fúria e a depressão: “Escrevo atacando govêrno, editôres, mentores de
suplementos e escritores que se calam com covardia. Quem publicará minhas
croniquetas e meus artigos? Não sei. Escrevo atacando. Ataco com
argumentos, falo de alienação, de indiferença dos escritores e dos editores
diante do absurdo com que o governo está matando nossas possibilidades já
fraquinhas”.362 Mais tarde, na mesma carta, o tom é outro: “A não saída de
meus livros me largou triste. Mas de uma tristeza silenciosa, sem desesperos.
Afinal, não foi a qualidade dos contos que impediu a publicação.
Aborrecimento sem motivo fundo, seria. Mais importante é escrever”.363
Alguns meses se passaram, porém, e a situação se reverteu
completamente, ainda no primeiro semestre de 1962. O que se pode deduzir é
que as editoras retomaram seus projetos de publicação, adaptando-se à nova
conjuntura econômica e/ou reconquistando seus subsídios após a renúncia de
Jânio. O momento era de euforia para o jovem escritor, indisfarçável e
merecidamente orgulhoso de si mesmo, que vibrava: “Ilka, venci. Nessa terra
em que todos catam editores, editores é que me catam. Um, dois, três. Três
convites deles, três propostas deles, três negações minhas. É que me queriam
aceitando e não queriam aceitar-me.
361
Idem, de 06/10/61.
362
Idem, ibidem.
363
Idem, ibidem.
189

Venci, Ilka. E eu nem sei o quê. Uma grande humildade orgulhosa me


enche o coração de grandeza nascida daquilo que realmente é meu, das minhas
andanças, dos meus porres, dos meus vagabundos, dos meus amores a meu
jeito. Só isso eu tenho, Ilka. Amor por tampinhas, histórias de sinuca, procuras.
O meu livro será a única coisa minha que dei, dei, dei. Porque minha. E essas
coisas tão bestas e tão lindas fazem falar os diretores das Edições Autores
Reunidos:
– Você representa São Paulo na presente coleção.
(...) a Ilka merece receber a alegria que sinto agora, hoje, que levo meus
vagabundos, minha tristeza, meus meninos, minhas doidices a um livro, que
me foi solicitado para figurar numa coleção de livros de contos aberta pela
ressonância de um nome atual, como o de Jorge Medauar”. 364
Volta, ao jovem escritor, a idéia de fazer dois livros. A identidade de um
dos três editores, porém, permanece desconhecida nas cartas desse período. O
desconhecido editor a convidá-lo primeiro, dois anos antes, ainda continuava
no páreo?
Mas duas coisas são certas: Ricardo Ramos estava na jogada, em nome
da Autores Reunidos. São palavras de João Antônio: “Ouça: recebo, dia
dêsses, o convite de Ricardo Ramos. Analiso, torço o nariz, imponho
condições. Ricardo me estranha. Eu firme:
‘– Nêgo velho: quero isso e quero aquilo. Senão não tem negócio’.
Houve negócios. A Edições Autores Reunidos lançar-me-á o livro de contos
em edição de gente. Cinco ilustrações dentro do livro. Ilustrador que eu
mandar e pedir. Do lado de lá da capa do livro – retrato meu e notícias.
Prefácio de Mário da Silva Brito. Dinheiro adiantado. E os contos como eu
quizer. Quando eu botar palavrão, há de ser palavrão. Mas eu não prefiro
364
Idem, de 19/05/62.
190

palavrões. Escolhi Mário”.365


Há duas coisas a comentar a partir dessas palavras de João Antônio. De
um lado, elas dão a impressão de considerável poder de negociação em sua
conduta junto aos colegas do meio. De tratamento “passional” àqueles mesmos
amigos que o ajudavam e que ele tanto respeitava intelectualmente. Assim
como na frase dita para Ilka, na mesma época: “Você merece e talvez esteja
precisando de um grande empurrão. Veja, Ilka: Paulo Dantas é mola para
editor”.366 Em matéria de malandragem, João Antônio não era um teórico,
como já vimos. E poder-se-ia inclusive dizer que ela era a sua natureza
original, mesmo naqueles anos de labuta na propaganda e de inserção no meio
literário. Ele estava no mundo, se virando, cheio de idealismo e cheio de
vontade de se dar bem.
Além disso, vê-se que ele e Mário da Silva Brito tinham uma questão no
que se refere ao uso de palavrões, com o experiente crítico e poeta
condenando-o. E isso vai ao encontro da tese de que, em vários aspectos de
sua literatura, João Antônio pode ter se deixado influenciar diretamente pelos
padrões estéticos de membros seus amigos da segunda geração modernista.
A segunda coisa certa nesse segundo momento de “iminência
publicatória” é que uma nova editora havia entrado no páreo e corrido por
fora, a Civilização Brasileira. O livro de João Antônio fora a ela indicado por
ninguém menos que Mário da Silva Brito, que a essa altura ou se havia
desligado da Editora das Américas ou, diante da impossibilidade de publicar o
livro de estréia do jovem amigo lá, o recomendara ao colega Ênio Silveira).
Dois meses depois de ter fechado com Ricardo Ramos, João Antônio revê sua

365
Idem, ibidem.
366
Idem, de 27/01/62.
191

decisão e fecha com o dono da Civilização.367 Imediatamente o projeto do


segundo livro desaparece das cartas, e aparentemente de seus planos.
“Malagueta, Perus e Bacanaço”, já reescrita, está incluída no livro da
Civilização com os demais contos escritos, à exceção de “Índios”. E, assim, o
título do livro fica decidido. Teria sido isso uma exigência de Ênio, um desejo
de João Antônio, ou uma desistência de Ricardo Ramos e das Edições Autores
Reunidos? Impossível saber, mas é sempre bom ter todas as hipóteses em
mente.
Fazendo par com a euforia natural de qualquer autor inédito ao saber
que finalmente fechou seu primeiro contrato editorial – quinze dias depois da
carta de Ênio Silveira ele ainda estava “apaixonado pela vida”368 –, ele já
colocava em funcionamento seus estratagemas para o sucesso – “Tenho
travado contatos para Malagueta, Perus e Bacanaço. Os amigos têm recebido
a notícia com grande expectativa e alegria. Ando traçando um plano de venda
para o livro, que abrangerá todos os meus conhecidos em diversos setores.
Assim, além da venda normal que a Editora Civilização Brasileira fará do
livro, além de distribuição em todo o país, procurarei pedir aos amigos – sem
nenhuma vergonha – que propaguem e até vendam meu livro. Tenho obtido,
em princípio, bons resultados”.369
Também no período de lançamento do livro, o amigo e mentor Mário da
Silva Brito teve participação destacada. Isso porque, aproximadamente cinco
meses depois da assinatura do contrato com Ênio Silveira, João Antônio conta
a Ilka que Mário da Silva Brito tornara-se diretor editorial da Civilização
Brasileira.370 Ele então supervisiona a noite de autógrafos no Rio de Janeiro371,

367
Carta de Ênio Silveira a João Antônio, de 09/07/62.
368
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 12/09/62.
369
Idem, de 25/08/62.
370
Idem, de 20/03/63.
192

e promove o livro junto ao meio literário. De lá, também, intermedia sua


inclusão na antologia de contistas Os Dez Mandamentos, para a qual, como já
se viu, João Antônio escreve “Paulinho Perna Torta”. Insta-o a aprontar o
romance Jordão. E não teria ele alguma coisa a ver com o fato do Conselho
Estadual de Cultura de São Paulo incluir João Antônio numa antologia de
contistas372, ou com os prêmios que o livro recebe, o da Prefeitura
Municipal373 e o Fábio Prado, e os dois prêmios Jabutis, concedidos pela
CBL?374
Uma coisa é certa: apenas os críticos mais distraídos do eixo Rio-São
Paulo foram pegos de surpresa pelo estreante. Muitos de seus contos já haviam
sido publicados, alguns mais de uma vez, e mesmo a novela “Malagueta, Perus
e Bacanaço”, a última a ser escrita, já havia ganho fama após o prêmio Fábio
Prado.

Alianças secundárias, uma força para os amigos e a ética das alianças

Além desses aliados preferenciais no seu trabalho consciente e


meticuloso de inserção no meio literário, havia amigos menos constantes que,
entretanto, deram sua contribuição. Alguns já foram mencionados, mas agora
suas ajudas específicas merecem ser citadas: o escritor Jorge Medauar375, que
lhe abre as portas do Diário de São Paulo; Joaquim Pinto Nazário, editor da

371
Idem, de 07/06/63.
372
Idem, de 30/07/64.
373
Idem, de 04/05/65.
374
Idem, de 26/10/64.
375
Idem, de 23/09/59. Em carta a Ilka, de 10/12/59, diz que graças a Jorge Medauar terá texto seu, não
identificado, publicado no Diário de São Paulo. Em carta de 07/03/60, confirma que Joaquim Pinto
Nazário, editor da página de literatura deste jornal, publicará seu conto com destaque. O conto é “Retalhos
de Fome...”. Outros contos seguir-se-iam.
193

página literária do mesmo jornal e que publica mais de um conto; Fúlvio


Camargo, diretor de “um departamento” da editora Cultrix376, co-promotora,
junto com o jornal Última Hora de Ricardo Ramos, de um concurso de contos
que João Antônio vence377, antes ou depois de fazer Fúlvio seu amigo, pouco
importa; Maria Geralda do Amaral Mello, escritora a quem ele muito
admirava378, Paulo Bonfim, então assumindo cargo de diretor de criação da
Revista SR, que o convida a apresentar trabalhos379, Rolmes Barbosa, que
mantinha a coluna semanal sobre livros no “Suplemento Literário” d’ O
Estado de São Paulo380; Levi Carneiro, da Revista Brasileira381; Nelly Novaes
Coelho, professora de literatura, que tenta publicá-lo em Portugal382, Antônio
D’Elia, que o incentiva desde 1959 a concorrer ao prêmio Fábio Prado, o que
só se arrisca a fazer quase três anos depois383; um amigo jornalista do Ceará
não nomeado, conhecido quando ainda trabalhava no Diário Carioca, mas que
agora, de volta a sua terra, trabalhava em um jornal e tenta dar a João Antônio
uma coluna semanal384; contatos não nomeados nos jornais cariocas Correio
da Manhã, Diário de Notícias e Jornal do Comércio; Paulo Amaral Mello, do
Jornal do Comércio de Recife385, Renard Peres, editor da revista Leituras, que
lhe pede trabalhos386, Manoel Lobato, que escrevia para um jornal de
Vitória387, Décio de Almeida Prado, um dos cabeças do suplemento literário

376
Idem, de 28/09/59.
377
Idem, de 01/09/59.
378
Idem, de 30/06/64, na qual ele diz que foi quem arrumou para o livro de estréia de Maria Geralda, As
Três Quedas do Pássaro, ser publicado pela Civlização Brasileira, em 11/08/65.
379
Idem, de 28/09/59.
380
Rolmes teria dito sobre ele: “(...) luta com um problema: a idade. Mas é nossa melhor esperança”. Idem,
de 22/04/60.
381
Idem, de 18/2/62.
382
Idem, de 30/07/64.
383
Na edição de que efetivamente participa, as inscrições do concurso terminavam em 31/3/62. Idem, de
27/01/62.
384
Idem, de 21/06/60.
385
Idem, de 27/01/62.
386
Idem, de 30/07/64.
387
Depoimento colhido por esta pesquisa em maio de 2000.
194

do Estado de São Paulo388; Paulo Emílio Salles Gomes, com quem diz ter um
projeto comum389, Ênio Silveira, que após a publicação do livro lhe
encomenda mil trabalhos390, Esdras do Nascimento, que lhe abre as portas da
Tribuna da Imprensa, no Rio, publicando “Meninão do Caixote”391,
encomenda a ele um texto sobre o livro que acabaria tornando-se seu
prefácio392, e publicando uma série de artigos sobre seu livro quando da
publicação um ano depois393; etc.
Por fim, vale citar novamente Sérgio Milliet. Embora não se tenha
informação de nenhuma ajuda concreta que possa vir a ter dado a João
Antônio, nas cartas para Ilka ele reproduz, em forma de anedota literária, um
episódio que envolve o veterano modernista e o jovem escritor, e ratifica assim
a informação de que se conheciam:

“Uma Piada Lírica

– retalho de uma conversa com Sérgio Milliet em 23-11-60, ou melhor,


na madrugada do dia seguinte, às quatro. Restaurante Parreirinha, ambiente
popular, Rua Conselheiro Nébias, dois ovos estrelados com farinha de
mandioca e conhaque –

Vamos fingir. Não há correios, nem há carteiros. Para cidades próximas


388
“Mário da Silva Brito abriu-me novas portas. Décio de Almeida Prado também.” Carta a Ilka Brunhilde
Laurito, de 08/09/60. Segundo João Antônio na mesma carta, os contos “Meninão do Caixote” e “Visita”,
por essa época, estavam para ser publicados pelo O Estado de São Paulo. Mas, localizados por esta
pesquisa, foram “Busca”, publicado em 11/04/59, e “Frio”, em 01/08/59.
389
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 30/08/65.
390
Entre 1964 e 65, João Antônio colabora regularmente com a Civilização Brasileira.
391
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 26/12/62. À vitória neste concurso da Tribuna, e à publicação nos
jornal, somava-se a inclusão do conto numa antologia a ser lançada pela editora GRD. Carta a Ilka
Brunhilde Laurito, de 26/12/62. A antologia de fato veio à luz. Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 26/10/64.
392
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 22/01/63. Os artigos publicados por Esdras são assinados por Guido
Wilmar Sassi.
393
A série de artigos intitula-se “Os Contos de João Antônio”, tendo sido publicada nos dias 24/06/63,
25/06/63, 26/06/63. Tribuna da Imprensa, seção Livros, Rio de Janeiro, 1965.
195

como Campinas e Jundiaí e que tais, vamos fazer de conta que fôsse assim.
Assim sendo, pombos fazem o correio. Vamos fingir. Praça da
República é partida e sede dos pombos.
Parte um pombo para Campinas. Diz à companheira que voltará dentro
de dois dias. (amam-se furiosamente e vivem vida passional com regular
fidelidade).
Mas o pombo se demora três-quatro dias, uma semana. A pomba é
cortejada por outros pombos, que são uns safados. A pomba não desliza.
Volta o pombo. Ciumeira danada.
– Seu isso, seu aquilo, seu cachorro, tipo à toa!
O pombo emagreceu, está poento. Se êle fosse um homem poder-se-ia
dizer que estava pálido. Como não é homem, que continue poento e mais
magro.
– Foram as farras, seu!
Há doçura na tarde, o pombo se justifica e a tarde fica mais azul:
– Nada, meu amor. Sabe por que me demorei tanto? É que os dias... Os
dias estavam tão bonitos, tão bonitos, que eu resolvi voltar a pé.”394
Além dos interesses literários, pode-se ver alguns outros pontos em
comum nas pessoas cujos nomes foram citados. Na esmagadora maioria,
vinham de famílias de maior respaldo social (educação, saúde, moradia e
poder de circulação) que João Antônio. Muito freqüentemente, estavam
melhor colocadas do que ele no mercado de trabalho. Por fim, algumas haviam
escrito obras já respeitadas e consolidadas. Sendo assim, e analisando-se o
contexto das menções a elas feitas nas cartas para Ilka, pode-se dizer que –
simultaneamente a sentimentos reais de amizade e admiração intelectual –
João Antônio construíra uma rede de pessoas que, sim, amavam a literatura
394
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 17/11/60.
196

como ele, mas que estavam na condição de ajudá-lo, fosse abrindo espaço para
seus contos em jornais ou revistas, aproximando-o de editores, presenteando-o
com livros, apresentando-o a outras pessoas, enfim, aproximando o jovem
escritor suburbano, então modesto redator de uma agência de publicidade, sem
sequer casa fixa, do centro dos acontecimentos. Fora justamente da busca do
reconhecimento literário que haviam nascido todas as aproximações.
Finalmente o menino suburbano, mau aluno, mau filho, deslocado, encontrara
um meio de auto-realização. Seu idealismo quase romântico, já aludido,
convivia com um savoir faire pragmático, como o do malandro exatamente,
seu personagem mais usualmente lembrado, que é suave enquanto arranca
tudo do “pato”.395 Exatamente como em sua relação com o amor entre homem
e mulher, a idealização excessiva e o desejo de que o amor o espiritualizasse
conviviam diariamente com a mais rasteira boemia sexual.
Mas ninguém existe no mundo apenas sob um ponto de vista. Em pelo
menos três casos importantes, João Antônio estabeleceu relações de mão dupla
com os amigos, ora ajudando, ora sendo ajudado. Ilka Brunhilde Laurito,
Hermann José Reipert e Caio Porfírio Carneiro estavam em igualdade de
condições com ele, pelo menos do ponto de vista da inserção literária.
Ao longo daqueles anos, 1959 a 1965, além de professora, Ilka escreveu
crônicas, poesias e novelas. Além, é claro, de ler e comentar tudo que ela lhe
mandava, mais de uma vez João Antônio usou seus contatos para favorecê-la.
Um primeiro caso diz respeito a uma Semana Mário de Andrade, que ela
organizava em Campinas. João Antônio lhe promete arranjar ítens para a
395
Mais de um dos entrevistados nessa pesquisa confirmaram que João Antônio era habitual pregador de
pequenos golpes entre amigos, do tipo prometer rachar o táxi e sair andando porta afora na chegada, ou
despistar e sair da mesa do restaurante na hora de rachar a conta, pedir livros de presente, etc. Além disso,
seu histórico com os editores, sobretudo a partir dos anos 80, é de suprema desconfiança. Como se o preço
por ser malandro fosse a paranóia. Um exemplo: “João Antônio foi o cara mais unha de fome que eu
conheci na vida, não pagava nem cafezinho pra Cristo”. Depoimento de Caio Porfírio Carneiro, colhido
para esta pesquisa em maio de 2000.
197

exposição com seus amigos Mário da Silva Brito e Menotti del Picchia.396 Mas
a luta pela publicação era o terreno onde aconteciam as verdadeiras
demonstrações de cumplicidade. E, na mesma carta, pede-lhe uma crônica, que
iria tentar publicar numa revista ainda em gestação.397 Em seguida, ao
anteriormente mencionado jornalista amigo no Ceará, para quem ele próprio
escreveria semanalmente, quer enviar crônicas de Ilka para publicação.398 Em
outro momento, também já citado, instiga-a a usar Paulo Dantas como
intermediário a uma editora.399 Recomenda, em diferentes ocasiões, que ela
procure os editores de suplementos literários José Armando Pereira400 e Décio
de Almeida Prado401, apresenta sua novela “Por Um Fio” a vários de seus
amigos, entre os quais Marcos Rey e Mário da Silva Brito, conseguindo-lhe
elogios e publicação no jornal Última Hora402 (Ricardo Ramos ainda estaria
por lá?), e mais tarde pede novamente que procure Marcos Rey.
Porém, ainda uma coisa mais: João Antônio incentivava-a regularmente a
escrever. Ela, entretanto, não tinha a literatura nem como missão e nem como
única forma de realização individual e social. Antes dividia seus interesses e
exercitava seu talento em vários domínios, em suas múltiplas atividades, que
incluíam por exemplo o canto e o estudo de violão. Mesmo sua atividade
literária ramificava-se por vários gêneros, sem preocupar-se com a
especialização. As cartas dão a impressão de que ela resistia inclusive a ser a
publicada. Mas João Antônio, mesmo assim, vivia tentando torná-la uma

396
“Mário da Silva Brito anda doente. Assim que ele melhore e volte à circulação tratarei sobre coisas do
modernismo, catarei algo sobre Mário de Andrade. Por estes dias irei a Menotti del Picchia e exporei seus
planos.” Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 24/03/60.
397
“É que amigos meus, ou simplesmente conhecidos, mas boa gente todos, andam aí a fundar uma nova
revista. Terá dimensões de Visão e livres assuntos, à maneira talvez aproximada da revista SR.” Carta a Ilka
Brunhilde Laurito, de 24/03/60.
398
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 21/06/60.
399
Idem, de 27/01/62.
400
Idem, de 20/03/63.
401
Idem, de 01/07/65.
402
Idem, de 18/02/65.
198

escritora profissional: “Ilka, não quero lhe jogar lantejoulas ou confetes. Nem
lhe agradar, nem nada. Nem lhe incentivar. Mas peço e repeço que se enfie
novamente na produção de outra novela. Sei que escrever é ruim, por princípio
– é duro e é difícil. Contudo, você sabe, é preciso produzir. A gente precisa
acreditar que tem a obrigação de aproveitar o pouco ou muito talento com que
nasceu. É preciso construir nesse sentido. Faça uma nova novela. Depois,
aprofunde e/ou estique ‘Por Um Fio’. Ali existem possibilidades sérias, a meu
ver. Entre mais na vida de Maria Eulália [a personagem principal do texto].
Queime as pestanas”.403 E depois: “Saiu a novela em UH. Ótimo. Apanhe o
tutu (ainda é só oitenta mil mangos?) e mande-se a fazer outra. O que é que
está esperando? O trem das onze? Ora...
Outra coisa semi-bêsta é essa de ‘PRECISO ESCREVER
REGULARMENTE PARA UM JORNAL OU REVISTA’. Embora respeite
em parte, acho francamente que, no fundo-fundo é desculpa. Você PRECISA
ESCREVER – isto sim. Pois faça o romance baseado em seus diários. Faça
nova novela para UH e depois procure o Marcos Rey (...)”.404
Em outra oportunidade, ele lhe escreve: “Mais umas palavras, falando
dos seus escritos. E dos meus. O Rosto de Deus me deixa com vontade de
possuir um jornal meu ou revista em que se pudessem publicar coisas suas.
Acho simplesmente legítima essa sua crônica”.405
Com Caio Porfírio Carneiro e Hermann José Reipert o negócio era bem
diferente. Ambos eram escritores convictos, a relação era mais igual. Caio,
nascido em 1928, era natural do Amazonas, mas criado em Fortaleza. Morava
em São Paulo desde 1955, trabalhando com o irmão em sua empresa
imobiliária. Havia refugado em sua primeira oportunidade de publicação,
403
Idem, ibidem.
404
Idem, de 14/04/65.
405
Idem, de 31/08/65.
199

acertada com a editora Saraiva no mesmo ano de sua chegada, e desde então
começara “a escrever outro [livro] baseado em contos regionais da fazenda do
Ceará”.406 Em seguida, começou a testar seus contos em concursos, vencendo
sete deles no espaço de poucos anos. Por fim, ele e João Antônio mediram
espadas no concurso literário promovido por Ricardo Ramos e pela Editora
Cultrix no Ultima Hora. Este concurso, já mencionado, tinha como orientação
temática o Natal. A comissão julgadora era formada por Lygia Fagundes
Telles, Ricardo Ramos e Antônio de Lia. João Antônio tirou primeiro lugar,
com “Natal na Cafua”, Julieta Godoy Ladeira tirou segundo e Caio Porfírio,
terceiro. Conheceram-se os três e ficaram amigos no dia da premiação. Julieta,
uma mulher muito bonita, casaria depois com Osman Lins, também escritor,
tendo sido provavelmente quem o apresentou a João Antônio. Mas foi sua
amizade com Caio que teve maior duração e profundidade. Ambos
trabalhavam no centro, e saíam para beber regularmente depois do trabalho.407
Conta Caio: “(...) ele era muito novinho [Caio era nove anos mais velho], mas
já tinha uns contos, já tinha escrito três ou quatro contos, estava idealizando
escrever, já estava esquematizando ‘Afinação da Arte de Chutar Tampinhas’,
estava quase pronto ‘Meninão do Caixote’ e fez amizade com a minha família.
Então ele ia e almoçava lá em casa; minha mãe gostava muito dele”.408
Caio teria seu primeiro livro publicado em 1961409, contando com
prefácio de Ricardo Ramos. João Antônio vibrou com o fato: “Entendo o que é
um livro quando Caio Porfírio Carneiro publicou o dele. Um livro pronto.
Tudo o que dele já conhecíamos toma de repente uma imponente e doce
dignidade. (...) Vivi Trapiá antes dele assim se denominar. Acompanhei

406
Depoimento colhido para esta pesquisa em maio de 2000.
407
Idem.
408
Idem.
409
Trapiá, Francisco Alves, S. Paulo, 1961, primeira edição.
200

muitas de suas coisas e as amei como amo, agora, os esboços que Caio fez de
suas novelas sobre o sal”.410
E que tipo de ajuda um escritor em fase ainda menos adiantada da
carreira poderia dar a Caio naquele momento? Bem, uma coisa é companhia
nos momentos de grande emoção. João Antônio menciona em suas cartas para
Ilka uma viagem que faria até Fortaleza, com Mário da Silva Brito e Paulo
Dantas, para o lançamento de Caio.411 Tal viagem, porém, foi adiada e
finalmente cancelada.412 Mas para que isto não soe exageradamente
sentimental, é importante registrar que João Antônio escreveu uma resenha
/crônica sobre o livro e tentou publicá-la em Campinas, por intermédio de Ilka,
que lá dava aulas.413 Mais tarde, volta a perguntar sobre o assunto.414 Era ele
ajudando na divulgação, e é muito provável que ela não tenha sido a única
destinatária do texto.
Caio, por sua vez, teve participação importante na reescritura de
Malagueta, Perus e Bacanaço, graças aos trechos que guardara após sua
leitura crítica. Tempos depois, ajuda o amigo a revisar as provas do livro, que
percorria sua produção na Civilização Brasileira.415
Anos mais tarde, a relação de ajuda mútua continua: “Tenho ajudado os
outros, também. Arranjei para Caio Porfírio Carneiro publicar o seu Sal Verde,
ou melhor, Sal da Terra (novela) pela Civilização Brasileira”.416 Não contente
com isso, João Antônio escreve uma pequena apresentação ao livro.417 Isto
ocorreu em 1965. A esta altura, ao que parece, a balança mudara de posição

410
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 13/09/61.
411
Idem, de 25/12/60.
412
Idem, de 06/10/61e 18/02/62.
413
Idem, de 13/09/61.
414
Idem, de 27/01/62.
415
Idem, de 20/03/63.
416
Idem, de 30/07/64.
417
O Sal da Terra, São Paulo, Ática, s/d. Idem, de 08/10/65.
201

entre os dois escritores, e aquele nove anos mais moço, porém empregado no
Jornal do Brasil, como repórter especial do Caderno B, e unha e carne com
Ênio Silveira, com quem estava envolvido em mil projetos de livros e revistas,
encontrava-se em condição de realmente contribuir para o sucesso do livro do
outro.
Com Hermann José Reipert, João Antônio também fez uma amizade
sincera: “Conheci Hermann José Reipert por circunstância, num papo que
batíamos eu e Paulo Dantas. Naquela ocasião apenas pude sentir a presença de
um homem tímido.
Honestamente, não me interessei pela Travessa do Elefante, Sem Número
[título do primeiro livro de Hermann].
Vindo o livro, li numa noite. Agüentar não agüentei e peguei num
telefone e disse a Hermann.
Conheci, então, um dos autênticos escritores destes lados, Ilka. Um
delirante, no melhor sentido e sabor que esta palavra pode emprestar a si
mesma. Um trágico na contingência irremediável de sua natureza. (...)”.418
Lido o livro, João Antônio lança uma profecia: “Livraria Francisco Alves
talvez nem o merecesse. Deixa estar que Ênio Siilveira ainda descobre
Hermann José Reipert. Que tem dois livros na gaveta”.419
A amizade resulta numa viagem dele e do “extraordinário Hermann” para
o Parque Nacional das Agulhas Negras, onde João Antônio passará seu
aniversário.420 E numa orelha para o segundo livro de Herbert, não por acaso
efetivamente publicado pela Civilização Brasileira poucos anos depois.421
Realmente, sendo Herbert um tímido, a balança daquela amizade parece estar

418
Idem, de 26/12/62.
419
Idem, ibidem.
420
Idem, de 22/01/63.
421
Idem, de 08/10/65.
202

ainda mais voltada para uma posição em que João Antônio aparece como
quem ajuda, e não como quem é ajudado.
Essa ajuda mútua entre amigos, entretanto, obedecia a uma ética que,
pelo menos nas cartas, é dita e repetida. João Antônio só se dispunha a ajudar
um colega escritor quando realmente gostava do livro. Aqui, novamente, ao
que tudo indica, um idealismo radical temperava suas atitudes. Um exemplo,
quando recomenda o livro de Caio a Ilka: “Caio fêz um bom livro, lhe garanto.
Se não fôsse bom o Trapiá eu faria coisa alguma – você me conhece. Trapiá é
bom e eu acato e prestigio e acho que faço um dever”.422 Outro exemplo, um
pouco mais dramático, é relatado por Manoel Lobato, amigo e escritor
mineiro, também um grande amigo com quem João Antônio jamais haveria de
perder contato, e que era uma espécie de revisor oficial da gramática de seus
textos. Anos depois, já um escritor famoso, João Antônio é jurado num
concurso literário no qual Manoel Lobato é um dos candidatos. Terminada a
votação, Lobato pergunta como foi seu voto, e recebe de João Antônio
garantias de que seu voto lhe é extremamente favorável. Mais tarde, tendo
acesso aos votos escritos dos jurados, Lobato descobre que João Antônio na
verdade recomendara a premiação de outra pessoa.423
O entusiasmo que as cartas mostram pelos livros de Caio Porfírio
Carneiro e Hermann José Reipert parece confirmar esse escrúpulo de João
Antônio. De fato, mesmo com todo o incentivo que dava a Ilka, ele era muito
preciso em seus juízos, elogiando na exata medida que desejava. Certo dia, lhe
escreve: “ ‘Os Reis da Sorte’ está bom, dentro daquilo que você pretende.
Parece-me que, ganhando a coisa assim em flagrantes e pormenores, você
acabará compondo painéis autênticos. Quer saber a minha opinião verdadeira

422
Idem, de 13/09/61.
423
Depoimento colhido por esta pesquisa em junho de 2000.
203

sôbre seu trabalho? Eu sinto São Paulo nêle. É legítimo”.424


Ele próprio fala a respeito de como lidava com essa situação. Uma vez,
em 1960: “não sou um catador de pérolas, leio e sinto”.425 E outra cinco anos
depois, após comentar poemas de Ilka: “Seria preciso uma longa conversa, que
envolveria fatalmente muitas coisas relativas à Arte e à Vida, para que você
compreendesse que, de uns tempos para cá, eu venho aprendendo a dispensar o
‘otimismo’. A vida não dá meios tons, Ilka. Ela é. Simplesmente. E não perde
tempo com suavizações e jeitinhos. Ela bate para ferir e acertar. Para que,
diante dela ou da sua retratação ou recriação, andarmos com panos quentes ou
jeitinhos? Ora.
(...)
Minha opinião é de que um escritor, poeta, ensaísta, escreve coisas
quando tem algo a transmitir. Portanto, embora fazendo algo que, antes de
tudo, é para ele mesmo, no fundo é um homem que deseja mostrar as coisas
que faz. Para tanto, as publica. É quando não deve publicar nada de graça. (...)
Eu vou tentar editor para um livro seu. De poesia. E nessa base aí acima”.426
Porém mesmo Ilka, de vez em quando, era chamada a colaborar com o
bom andamento de sua carreira. Por exemplo quando, após a publicação do
livro, e estando ela em Londres, ele duas vezes lhe pede que sonde canais de
tradução de seu livro para os países europeus.427

424
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 14/04/65.
425
Idem, de 22/04/60.
426
Idem, de 31/08/65.
427
Idem, de 19/07/64 e 30/07/64.
204

Diga-me com quem tu andas...

Estabelecida a rede de relações literárias do jovem João Antônio, não


obstante as lacunas pontuais e a incompletude do conjunto, mais ou menos
pôde-se compreender em que sentidos essas relações podiam funcionar (ele na
posição de favorecido, ele em igualdade de condições, ele na condição de
“mola” para os outros). Postos os dados, é interessante especular se sua rede,
além de amizade e vantagens profissionais, estava de fato amparada em ideais
estéticos comuns. Na prática, não havia, em absoluto, nenhuma idéia de grupo
mais consistentemente verificada, isto é, uma atuação em bloco e um projeto
absolutamente coerente entre membros, com manifestos ou coisa do tipo.
Eram alianças que se verificavam, em ajudas pontuais. Uma leitura crítica, um
contato visando publicação, uma resenha. Mas essas eram iniciativas que
beneficiavam um indivíduo por vez, e não um grupo formalmente constituído.
Na teoria, porém, é natural que, subjacente a essa movimentação “de
guerrilha”, houvesse uma pauta comum, mais ou menos implícita, de
procedimentos técnicos e/ou ideológicos. Não há de ser no levantamento dos
nomes de seus colegas mais próximos que os rumos da trajetória estética de
João Antônio irão de fato se explicar. Afinal, entre 1959 e 1965 ele só fez
aumentar sua rede de contatos, sem entretanto alterá-la substancialmente. Se
os contatos literários de fato correspondem a um “momento” de uma
orientação estética, e se de fato houve uma alteração nesses rumos, então é a
própria rede de contatos que, por ser mais informal e frouxa do que a
organização de um grupo, permite e dá condições para que o artista evolua
dentro dela própria.
Na tentativa de identificar quais seriam os primeiros ideais estéticos, e
portanto ideológicos, agindo sobre o jovem João Antônio, seria talvez
205

interessante pensar em dois de seus aliados de primeira hora, mentores na


carreira: Ricardo Ramos e Mário da Silva Brito.
Ricardo Ramos, em sua página no suplemento literário do Última Hora,
na abertura de pequenas resenhas, faz algumas considerações sobre o tipo de
estreante que ele gostava. Escreve ele: “Não somos dos que acham deva
necessariamente o estreante apresentar novidades, entrar em tom de quem
pretende ‘arrombar as portas da eternidade’. Como escreveu Drummond, bem
poucos o fizeram, e o seu número e a sua maneira somente as reforçaram. Por
outro lado, há inovações que enganam, confundem, escondem várias
deficiências, desde as de pensamento às de estilo. Isso nos faz preferir o autor
novo que vê na literatura não um torneio a vencer, uma conquista que
prescinde da aprendizagem e para a qual bastaria o auxílio ou a participação de
muitos, mas uma atividade solitária, uma forma de contribuição que se
desdobrará por acúmulo, certamente lúcida e honesta. É possível que se veja
nisso uma atitude meio conservadora. Engano. Apenas se pretende distinguir
os que vêm com alarde, dos que não precisam de clarinadas para se impor. E
destes, sem dúvida, é que vive a literatura”.428
Antes disso, ele identificara a porta por onde os bons estreantes estavam
entrando: “A maior freqüência do conto nos últimos tempos, vem favorecendo
o debate em torno do gênero. Nunca se teorizou tanto, nem se procurou
classificar autores e tendências com maior fúria. (...) Um pequeno setor da
crítica, por exemplo, agrupa autores mais novos de estranha maneira. Uns
descuidados com o lado formal, pretenderiam o espontâneo, a explosão, o
renovar através de experiencias múltiplas. Outros se encaminhariam para as
fontes da história curta, avançariam por acréscimo, em pesquisa lenta, mais

428
Trecho de resenha sobre o livro Galos de Aurora, de Hélio Pólvora. Última Hora, Rio de Janeiro,
27/011/58, p.21.
206

atentos à linguagem e à construção literária. À margem dos jornais, seriam


apontados como escritores precários ou frio tecnicistas. Ora, sabemos que,
apesar de algumas inclinações mais acentuadas, não chegaríamos à total
inclusão de ninguém nêste ou naquele grupo, já que antes prevaleceria o
critério de contistas verdadeiros ou não. Esse é sem dúvida um aspecto lateral,
quase desimportante, mas que diz bem de uma atmosfera, de uma nova fase de
ascensão de um gênero. Convém registrá-lo. Pois enquanto floresce a crônica
ou a conversa, vivendo sempre de contribuições poucas, isoladas, mas nítidas,
o conto se enriquece mesmo nas estréias, com autores que nos chegam alheios
ao colunismo, à ação entre amigos, voltados para as suas reservas amplas e
sérias”.429
Muita coisa poderia ser dita sobre estes dois pequenos trechos de Ricardo
Ramos, por exemplo, a imensa responsabilidade que deveria pesar sobre ele,
de ser um ainda jovem escritor sendo filho de Graciliano. Mas, mantendo o
foco em João Antônio, por tudo que já se viu, pode-se dizer que ele obedecia
fielmente ao figurino prescrito pelo resenhista. Não arrombava as portas da
literatura. Enviava seus contos, ouvia opiniões de literatos mais experientes,
tinha perfeita consciência e absoluto respeito pelas correntes estéticas que
haviam revolucionado a literatura brasileira desde 1922. Além disso, era
contista e, sendo contista, era da família dos que “avançariam por acréscimo,
em pesquisa lenta, mais atentos à linguagem e à construção literária”. A
intenção de obter apuro formal sempre foi assumida por parte do jovem
escritor, e flagrante em seus contos.
Mário da Silva Brito teve oportunidade de escrever sobre João Antônio

429
Trecho de resenha sobre o livro Água Preta, de Jorge Medauar. Última Hora, Rio de Janeiro, 11/09/58,
p.21.
207

na orelha de seu livro de estréia.430 Seria exagerado reproduzi-la na íntegra,


porque longa demais. Ao invés disso, que sejam ressaltados seus pontos
básicos: 1) classifica João Antônio como um contista urbano e ao mesmo
tempo evoca e renega uma semelhança entre ele e dois escritores, cada um a
seu modo, tipicamente urbanos: Antônio de Alcântara Machado e o americano
Damon Runyon; 2) identifica o universo ficcional do estreante como o das
“criaturas sem eira nem beira” das grandes cidades; 3) chama atenção para o
universalismo dos contos, decorrente da ausência do tom pitoresco, dos traços
caricaturais; 4) elogia a elaboração e a espontaneidade da linguagem; 5)
destaca a novela-título como o melhor trabalho, por sua “linguagem orgânica
em termos de sintaxe específica, incorporada à língua geral, e não simples
efeito, mero ornamento, espécie de décor lingüístico. Linguagem que
funciona, tonifica a sua frase, faz o seu estilo, fundamenta a sua verdade
humana e artística”.
A evocação de Damon Runyon, mais inesperada, é entretanto facilmente
explicada. Os personagens do escritor americano eram bookmakers, cafetões,
prostitutas, jogadores etc. A mesma “fauna” dos contos de sinuca do jovem
escritor. Mas a comparação com Antônio de Alcântara Machado parece capaz
de suportar dois níveis de leitura. No primeiro, além de serem ambos contistas
urbanos, a óbvia coincidência de dois elementos básicos para qualquer livro de
ficção: a cidade eleita para abrigar os enredos, São Paulo, e a classe social dos
personagens, o proletariado e suas adjacências. A comparação era antiga, e
antecedia de muito ao lançamento do livro. No entanto, há uma diferença de
tom entre Antônio de A. Machado e João Antônio. Assim como Mário da
Silva Brito, muitos outros críticos viram que, do ponto de vista do pathos com

430
Brito, Mário da Silva: “Os Malandros Paulistas Entram na Literatura”, in João Antônio: Malagueta,
Perus e Bacanaço, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963, 1 a edição.
208

que cada um dos escritores impregnava sua obra, Alcântara Machado era um
escritor mais leve, mais superficial, mais afeito a caricaturas e tipificações.
Sérgio Milliet, em sua resenha do livro de João Antônio, também evoca a
semelhança e a rechaça: “Todos aspiram a cantar a sua terra. E há mil
maneiras de cantá-la. Em tom de louvação ditirâmbica, como o fizeram os
românticos, com certo sentimentalismo marcado de humor, ver Antônio de
Alcântara Machado ou Mário Neme, ou simplesmente com amor a desculpar-
lhe as fraquezas, e é o caso de João Antônio em seus contos intitulados
Malagueta, Perus e Bacanço. (...)
Antônio de Alcântara Machado registrou a fala do italianinho, de novo
mameluco: João Antônio já não se preocupa mais com o pitoresco do filho do
imigrante. Os heróis de hoje são outros (...) São mais complexos, de uma
psicologia mais requintada, embora se afigure mais corriqueira”.431
Fernando Góes, um dos jurados do prêmio Fábio Prado, justificava assim
a escolha do livro de João Antônio: “entrou pela noite, absorvido na leitura de
histórias que, de perto, faziam lembrar o maior contista de costumes
paulistanos, o grande Antônio de Alcântara Machado”.432
Em sua resenha sobre Malagueta, Perus e Bacanaço, Bráulio Pedroso,
crítico do Estado de São Paulo, é mais incisivo: “E sabemos agora, passado o
impacto da renovação modernista e do entusiasmo fácil pelo novo, como são
caricatas e anedóticas as histórias de Alcântara Machado (...)”.433
Em que pesem as variações do apreço que esses resenhistas tinham por
Alcântara Machado, mesmo os que lhe reconheciam o valor tinham nítida
consciência de que a literatura de João Antônio era mais densa. O juízo que

431
Milliet, Sérgio: “Alguns Malandros”, in O Estado de São Paulo, SP, 23/07/63
432
Entrevista a Sadi Carnot Santana, intitulada “Vagabundagem Ganha Três Reis”. O recorte que faz parte
do acervo do escritor não informa sua procedência.
433
Pedroso, Bráulio: “São Paulo Tem o Seu Romancista”, in O Estado de São Paulo, 16/08/63.
209

impera, já presente nas linhas de Sérgio Milliet, é que João Antônio não olhava
seus personagens à distância, como um fenômeno social. Continua Bráulio
Pedroso: “(...) literariamente, João Antônio não é um cronista, um repórter, um
simples narrador de fatos verdadeiros. É um escritor, comprometido com seus
personagens, entranhado nas suas peles, nos seus sentimentos. Já este não era o
caso de Alcântara Machado com seus ‘italianinhos’”.434
João Alexandre Barbosa, crítico pernambucano que mais tarde viria para
São Paulo e mais tarde ainda faria a apresentação do último livro do escritor,
na época de sua estréia já assinalava essa ligação visceral entre ele e seus
personagens, identificando um realismo emocionado em seus contos: “E isto
João Antônio revela saber muito bem: a sua arte agarra pela raiz o significado
dessas pequenas vidas miseráveis que a organização social põe de lado, em um
louco processo de desumanização e morte lenta. Mas sem cair na lamentação
chorosa ou no panegírico das frustrações. (...) O que é muito importante é que
este roteiro não é simplesmente descrito ou fotografado, mas relacionado com
toda a gama de experiências vitais que carregam os três jogadores”.435
Mário da Silva Brito também concorda com a maior carga emocional de
João Antônio, em comparação com Antônio de Alcântara Machado: “João
Antônio não levanta personagens pitorescas, engraçadas, anedóticas e nem as
suas histórias são amenas, humorísticas, de mero entretenimento. Sua gente é
típica, mas nada caricatural. (...) Surge do proletariado da pequena burguesia
fronteira da pobreza e são as lutas, revoltas, frustrações e sonhos desse povo
que o autor interpreta ou sustenta em contos onde os heróis são tratados como
almas vivas, como pessoas humanas sofridas e desvalidas, espezinhadas e

434
Idem.
435
Barbosa, João Alexandre: “Malagueta, Perus e Bacanaço”, in Jornal do Comércio, Recife, 17/11/63.
210

perseguidas, desoladas e tristes, líricas e cruéis”.436


Havia quem não concordasse nem mesmo com a semelhança entre
cenário e origem social dos personagens. Guido Wilmar Bassi, em seus artigos
publicados nas páginas literárias editadas por Esdras do Nascimento na
Tribuna da Imprensa, é um desses radicais: “Antes mesmo de João Antônio
aparecer em livro, quando alguns dos seus contos saíram publicados em
jornais e revistas, muita gente quis compará-lo com Antônio de Alcântara
Machado, procurando situá-lo ou classificá-lo como discípulo ou sucessor
daquele contista paulista. Agora, que sua coletanea de contos acaba de ser
editada, por certo mais reforçado ficará esse ponto de vista, mormente pela
semelhança dos títulos: Brás, Bexiga e Barrafunda, Malagueta, Perus e
Bacanaço. Contudo, a semelhança entre João Antonio e Antônio de Alcântara
Machado é tão somente essa: a parecença dos títulos de seus livros e nada
mais.
Antônio de Alcântara Machado explorou, nas suas histórias, uma das
múltiplas facetas de São Paulo. João Antônio explorou uma outra muito
diferente [descendentes de italianos x submundo da caserna e da cidade]. (...)
Os dois escritores são visceralmente paulistanos; porém, cada um a seu modo.
(...) [João Antônio] Será, talvez, quando muito, seu sucessor”.437
“João Antônio ama sua terra. Não a canta, porque seria uma exibição de
lirismo sempre perturbadora para um civilizado”, diz Sérgio Milliet.
Mas o próprio João Antônio, em entrevista da época, sabia ter bebido em
Antônio de Alcântara Machado, embora tivesse consciência do que os
diferenciava, consciência que não abria mão de registrar numa entrevista:
“Entre suas influencias estão Antônio de Alcântara Machado (com a ressalva
436
Brito, Mário da Silva: “Os Malandros Paulistas Entram na Literatura”, in João Antônio: Malagueta,
Perus e Bacanaço, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963, 1 a edição.
437
Bassi, Guido Wilmar: “Os Contos de João Antônio”, in Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 1963.
211

do autor, de que é menos anedótico e mais de ‘mergulho’) e Graciliano


Ramos”.438 Talvez os oito primeiros contos do livro de estréia sejam mesmo
uma bela mistura entre essas duas influências, ou seja, tipicamente paulistanos,
mas com densidade emocional e psicológica. E seria bom poder contentar-se
com a singela definição de um crítico: “É um Antônio de Alcântara Machado
do ‘bas fond’.”439
Mas se havia o consenso de que as semelhanças entre os dois escritores
se limitavam quando muito a características superficiais, por que o nome de
Antônio de Alcântara Machado é tão freqüentemente evocado na recepção dos
contos de João Antônio? Só a admissão da influência, por parte do jovem
escritor, ou a referência a Alcântara Machado na orelha de seu livro não
explicam isso, afinal, a comparação antecede a publicação. Ela é mencionada
nas cartas de João Antônio anteriores ao lançamento, e está por trás do convite
de Paulo Rónai para que ele escrevesse sobre o livro Novelas Paulistanas, de
Antônio de Alcântara Machado, para a revista Comentário, e é até mesmo
citada na carta em que Ênio Silveira confirma o interesse de publicar seu livro.
440

Para entendermos essa insistência em evocar uma baliza anterior no


esforço por melhor avaliar a literatura de João Antônio, talvez seja interessante
levar em conta um ponto recorrente em algumas das resenhas de que seu livro
de estréia foi alvo, e presente também em suas cartas para Ilka. Havia na época

438
Entrevista a Sadi Carnot Santana, intitulada “Vagabundagem Ganha Três Reis”. O recorte que faz parte
do acervo do escritor não informa sua procedência. João Antônio, a convite de Paulo Rónai, escreveu uma
nota crítica sobre Novelas Paulistanas, de Antônio de Alcantara Machado, para a revista Comentário.
Infelizmente esse artigo não foi encontrado por essa pesquisa em tempo hábil. Carta a Ilka Brunhilde
Laurito, de 25/11/60.
439
O autor assina L.M.: “Um Cronista da Noite”, in O Estado de São Paulo, SP, 03/10/67. Quatro anos
depois do lançamento do livro, a comparação ainda era evocada. Aqui, o resenhista estabelece a diferença,
segundo ele, entre Alcântara Machado e João Antônio: o primeiro seria um escritor do dia, o segundo, da
noite.
440
Cartas a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/09/59, 25/11/61 e 09/07/62.
212

uma percepção disseminada de que a cidade de São Paulo, principal base do


movimento modernista, era sub-representada na ficção brasileira. Ou as
representações não lhe eram fiéis em essência, como as de Antônio de
Alcântara Machado, ou a cidade mesmo mudara desde então, dado seu
crescimento vertiginoso entre os anos 20 e 50. E mesmo que para muitos
precariamente, Antônio de Alcantara era em São Paulo o homem que
começara a reparar essa injustiça. Fora da cidade, havia outros.
Um crítico diz: “Depois de longo interregno [trecho ilegível] São Paulo
passa, pela primeira vez em nossa história literária, a funcionar como autêntico
personagem e não como mero ambiente ou cenário da composição”.441
Outro, em resenha intitulada “São Paulo tem seu romancista”, acredita:
“Romancista da cidade, dos bairros, dos tipos, dos costumes [ilegível] São
Paulo não tinha. [ilegível] para citar [ilegível] da vida paulistana temos que
recorrer a Antônio de Alcântara Machado. (...) O que ficou de Alcântara
Machado, num critério histórico rigoroso, não é o romancista da cidade, mas o
libertador e o nacionalista da língua (...) Mas no caso de João Antônio
podemos afirmar, mesmo que permaneça neste livro Malagueta, Perus e
Bacanaço, que São Paulo tem seu romancista, que São Paulo pela primeira vez
surge dramaticamente na expressão acanhada de seus bairros afastados, na
promiscuidade de sua aglutinação central, no traço convincente de seus
personagens típicos e na contribuição lingüística de sua fala particular”.442
Um terceiro ecoa: “Falta a São Paulo o romancista urbano, que explore a
cidade, seus prédios, bairros proletários, costumes, contrastes e maneiras de
falar. O crítico paulista olha quase com inveja o Rio de Janeiro de Manuel
Antônio de Almeida, Machado de Assis, João do Rio, Lima Barreto e Marques
441
Mendes, Arnaldo: “Um Cronista de São Paulo”, in seção Livros em Revista, Última Hora, São Paulo,
13/07/63.
442
Pedroso, Bráulio: “São Paulo term seu romancista”, in O Estado de São Paulo, SP, 16/08/63.
213

Rebelo. Como consolo, só lhe resta Antônio de Alcântara Machado. E assim


mesmo sem as exigências de um julgamento histórico rigoroso, que para
alguns colocará o autor de Brás, Bexiga e Barra Funda apenas como
inovador”.443
Mesmo Mário da Silva Brito parece concordar: “Malagueta, Perus e
Bacanaço, livro que é uma visão de São Paulo como até agora as nossas letras
não conheciam”.444
E outros ecoam: “E a nova visão, pela primeira vez voltada às ruas de
São Paulo, poderá tanto resultar ‘uma janela aberta para o cemitério’ ou como
‘dois olhos de criança voltados para um doce’, dependendo da maneira como
daqui para adiante João Antônio tratar das preocupações e dramas dos
submundos de São Paulo”.445 “São Paulo é uma cidade quase inédita na
literatura brasileira. E se tivemos outrora um Alcântara Machado e um Mário
de Andrade, se temos agora um João Antônio, êles são poucos para a riqueza e
a exuberância da temática paulistana. Principalmente quanto à ficção, pois a
poesia tem encontrado mais arautos”.446
Cassiano Nunes, menos catastrofista, enxerga uma produção continuada
sobre São Paulo, cidade e estado. Lista o regionalismo de Monteiro Lobato e
Valdomiro Silveira, anterior a 22, e em seguida, Oswald de Andrade,
Alcântara Machado, Afonso Schmidt, Galeão Coutinho, David Antunes
Ranulfo Prata, Alberto Leal. Mas considera que todas as tentativas de trabalhar
literariamente a alma do paulista e do paulistano ficaram a dever. E bota João
Antônio nas alturas, ao escrever: “Já se pode falar em ficção paulista não

443
Resenha não assinada: “Enfim uma Esperança”, in revista Visão, 13/09/63, no 11.
444
Página literária intitulada Escritores e Livros, e assinada por José Condé, sem indicação mais detalhada
na cópia do acervo João Antônio em Assis.
445
Rossetti, José Paschoal: “Três Cafés Fiados”, in Suplemento Literário do O Estado de São Paulo, SP,
15/02/664.
446
Alves, Helle: “Contos Paulistas em Ritmo de Bossa Nova”, in Diário de São Paulo, 10/10/65, p.6.
214

apenas como produção continuada, mas também caracterizada. (...) A obra de


João Antônio sobressai pela sua poderosa humanidade, mas não se salienta só
pelo conteúdo emotivo: sua essência subjetiva se substancializou com
harmonia ininterrupta, numa linguagem perfeitamente adequada. Não
encontrei brecha nessa criação compacta”.447
Para explicar esse consensual ponto fraco da hegemonia paulista como
cenário nacional, justo na literatura, alguns invertiam a lógica da maioria das
resenhas, tirando os escritores do banco dos reús e nele colocando os críticos.
É o que faz, por exemplo, Herculano Pires, ele próprio um escritor: “O
romance urbano de São Paulo, tão malsinado, tantas vezes relegado às
calendas por certos críticos demasiado exigentes, vai aos poucos se impondo.
E não surge apenas através do gênero propriamente dito, pois se revela
também nos contos de um Marcos Rey, de um João Antônio, secundando o
esforço dos que no passado recente, como Galeão Coutinho e Afonso Schmidt,
ou no presente, como Mário Donato e Maria de Lourdes Teixeira vão fixando
a vida da cidade em várias dimensões”.448
Como diz o ditado, “Quem protesta já perdeu...”, e de fato a história
derrotou sua tentativa de elevar tantos nomes esquecidos à condição de
escritores reconhecidamente à altura do homem e do meio paulista. O que
prevalece mesmo é a idéia de que São Paulo não encontrara ainda seu
intérprete na literatura, e que Antônio de Alcântara Machado, Mário de
Andrade, Oswald de Andrade, haviam apenas aberto a trilha na floresta, sem
entretanto produzir continuadores.
Como se vê, mais grave do que São Paulo estar carente de intérprete
naqueles anos específicos, havia uma sensação de que o esforço inicial das

447
Nunes, Cassiano: “Nota Sôbre João Antônio”, in Correio Brasiliense, Caderno cultural, 28/10/67.
448
Pires, Herculano: “Favela e Samba”, in Diário Ilustrado, seção Mundo dos Livros, 07/12/67.
215

locomotivas pioneiras do romance urbano paulistano haviam acabado junto


com a primeira geração modernista. Uma estiagem mais prolongada que o
normal. Então João Antônio não apenas vinha a calhar como intérprete da
cidade, mas como novo e prestigioso elo para uma tradição literária que
precisava de uma afirmação presente, de um novo gás. E muitos homens de
letras viram isso. Com ele em São Paulo, a ramificação urbana do movimento
modernista tinha um representante notável e precoce. Dos anos 20 até o fim
dos 50 haviam aparecido nomes menores, se tanto. João Antônio, diante dessa
carência, era o homem certo.
E até aí, tudo bem. Ele sempre se interessara pela cidade, por seus
personagens. E pelo que escreviam sobre ela. O motivo mesmo do início de
sua correspondência com Ilka foi uma crônica dela sobre São Paulo, que o
agradou imensamente: “Escrevo esta carta porque gostei da sua crônica
‘Trânsito’, e achei muito verdadeira. O seu trabalho no BBB, carrega tôda uma
realidade pungente – a tragédia duma dimensão humana na luta brava da
cidade de São Paulo. A solidão dos dias iguais, do cansaço da lida, da ausência
da camaradagem, solidariedade, outras coisas. E é uma verdade. A senhora
soube sentir (o que difícil acontece) e a senhora soube transmitir (o que é mais
difícil), tôda essa tragédia do dia-a-dia, que nós vivemos, sofremos, e vamos
tocando com uma rusga nas sobrancelhas. Tocamos, vencidos,
envelhecendo”.449
Era a cidade que inspirava seus insights: “‘Creio em Malagueta, Perus e
Bacanaço’. Como em tudo que escrevi, acredito nos meus vagabundos. Mas
desta vez é diferente o sentir. Às vezes, zanzando por essas ruas, nas noites de
frio e de neblina de minha terra, nos trens de subúrbios ou nos melhores
bondes rangedores, para os lados da alameda Nothmann e Bom Retiro, em
449
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 01/09/59.
216

especial, locais de meus giros silenciosos, ao escoar maravilhoso do salto de


couro dos meus sapatos na calçada, eu penso. Tenho a certeza humilde, quieta
e grandiosa de que estou diante de uma obra de arte e minhas mãos, meu
coração, meu todo pulsar de vida carregam uma enorme responsabilidade”.450
Era a cidade que lhe fornecia seus personagens, enredos, cenários, climas,
linguagem.
Se tudo mais não bastasse, João Antônio concordava com a noção de que
o homem paulista ainda não tivera um tratamento à altura. Apenas não era
exatamente com o Rio de Janeiro que ele procurava equiparação, mas com o
nordeste. Se a literatura era sua missão, sua única ambição, era exatamente
como intérprete do homem paulistano e sua cidade que ele esperava realizá-
las, mas suas referências estilísticas não eram Machado de Assis e Lima
Barreto: “Tenho feito sondagens e pesquisas, que talvez me levem ao
entendimento do ‘porquê’ e ‘como’ não possuímos ainda uma literatura
paulistana tão definida quanto e como a nordestina. E eu hei de descobrir o
‘porquê’! Alcancei algumas conclusões parciais e continuáveis – a ausência de
uma linguagem paulistana, especialmente, e o desconhecimento por parte dos
escritores do homem paulistano (a meu ver muito mais rico humana e
espiritualmente, mais sofrido e dramático que quaisquer outros tipos
brasileiros – e pelas mesmas razões, muitíssimo mais difícil e arisco e
inacessível, literariamente. Homem difícil, fragmentado, prisioneiro de uma
cidade de que em geral não gosta. Homem limitadíssimo, mal formado,
piorado terrivelmente nestes últimos dez anos. Homem que não é covarde, mas
a quem quase sempre falta coragem. Homem de transição e de solidão (repare
nos bares cheios), cujo destino é desaparecer, dar lugar a um tipo mais
concreto e de algum caráter.
450
Idem, de 06/06/60.
217

Vou-lhe confessar que Malagueta, Perus e Bacanaço, cuja refatura está


me consumindo, é uma tentativa de encontrar uma linguagem paulistana de
determinado grupo. Acredito, até agora, que se eu partir de um conhecimento
verdadeiro do homem que vou trabalhar, das suas formas de comportamento
aparente e inaparente, encontrarei a sua linguagem, literariamente. E
maliciosamente evitando cacoetes e idiossincrasias típicas nordestinas
(aperrear, mangar, vexar, por exemplo) estarei próximo de tal linguagem. E
vislumbro, emocionado, que a linguagem paulistana para os problemas de São
Paulo, levará uma vantagem sôbre a linguagem nordestina – problemas mais
universais criam uma linguagem mais universal.
O que você está achando dessas idéias, Ilka?”.451
Diante disso, fica fácil ver que houve uma daquelas sincronias entre o
mundo interior de um indivíduo e o mundo que o cerca. Por isso, embora
literariamente secundária, a evocação de Alcântara Machado se explica, feita
por terceiros ou admitida com ressalvas pelo próprio João Antônio. E, via
Alcântara Machado, faz-se a ligação com o modernismo da mais pura cepa.
Havia, de fato, uma essência comum ao projeto do jovem escritor e o dos
expoentes do primeiro momento modernista. O que os afastava era o vácuo
dos anos 40 e 50. E João Antônio estava cercado de amigos ligados
diretamente ao modernismo que o apreciavam mais na medida em que se
inseria e desdobrava essa tradição. E ele fêz isso. Vestiu a camisa. Tinha
consciência do que fêz. Ao falar sobre “Meninão do Caixote”, ele diz: “O
conto é feliz, eis tudo. O tema é excelente e a realização supera certos avanços
na literatura paulistana, como os Antônio de Alcântara Machado, por
exemplo”.452

451
Idem, de 27/01/62.
452
Idem, de 23/09/59
218

Não por acaso, saído o livro, João Antônio é convidado para um projeto
que refaz a “linhagem” a que ele pertencia: “Muita gente quer trabalhos
literários meus. O pessoal da Vera Cruz já me procurou. Querem filmar
‘Meninão do Caixote’ que, seria incluído num filme de três histórias. Uma de
Mário de Andrade, outra de Antônio de Alcântara Machado e outra minha:
‘Meninão do Caixote’.453

Encruzilhadas da segunda onda modernista

O romance urbano, porém, não era a única trilha aberta pelo modernismo
de 22. E, mesmo dentro do gênero, havia mais de uma vertente a seguir. Seria
bom, a essa altura, complicar um pouco o quadro feito algumas páginas atrás,
tão rígido e esquemático, do establishment literário da época.
Um resenhista, ao falar da insistência da crítica em louvar dois novos
escritores, Dalton Trevisan e Clarice Lispector, dizia que louvar alguém era
mesmo uma necessidade: “Necessidade, porque a geração de críticos que
então se manifestava atuante não se conformava que após 22 apenas alguns
poucos valores houvessem aparecido e, mesmo assim, muitos deles não
resistindo à pressão de facilidades preconizada e imposta pela geração 45.
Não raro apareciam balanços, onde se salvava, no gênero da poesia, um
homem chamado João Cabral de Melo Neto; no romance, alguns poucos da
envergadura de Guimarães Rosa e de Cyro dos Anjos; no conto, Samuel
Rawet, Mauritônio Meira, Ricardo Ramos e Carlos Lacerda, que não
conseguiram, entretanto, sair do esboço para uma obra mais concisa e
penetrante. Mas os balanços ainda desacorçoavam, sob o ponto de vista
453
Idem, de 30/07/64.
219

crítico-universal, porque João Cabral, Cyro e Rosa entupiram-se (é triste


apontar e reconhecer este pormenor) com um regionalismo pesado, embora
virtuoso: o poeta voltou-se à aridez dos sertões nordestinos e os romancistas às
grupiaras, aos costumes e aos tipos das Minas Gerais. Havia, pois, a
necessidade (que se configurava quase psicológica) de se procurar alguém para
representar ‘o conto contemporâneo’”.454
Segundo este mesmo crítico, “A fórmula [de Dalton Trevisan] foi ótima,
pois trouxe à tona, mais uma vez, o valor de uma obra necessariamente
participante (ponto de vista crítico) que não incorresse nas facilidades da
retórica falida”.455
Como se vê, o regionalismo à la Guimarães Rosa, por incrível que possa
parecer ao leitor de hoje, já acostumado à devida reverência, de um lado é
visto como uma possível recaída dos escritores brasileiros na retórica, na
medida em que recupera a dicção das “grupiaras”, e de outro pode significar
um afastamento do escritor do ambiente onde de fato o novo poderia surgir, o
ambiente urbano. Daí cobrar-se a atitude “participante” do escritor.
Em contrapartida, o romance urbano, com a exceção possível de
Graciliano Ramos, ainda é visto como um gênero à procura de seus caminhos
na nova geração. Segundo os críticos da época, esta parece cair em diferentes
armadilhas alternadamente. Diz, por exemplo, Sérgio Milliet, enquanto elogia
o primeiro livro de João Antônio: “Conta com um máximo de naturalidade e
de compostura o que vai vendo e ouvindo por aí. Não é pudico não, mas
tampouco faz chantagem com esse realismo, quase caricatural, muito em voga
no momento”.456 Uma primeira armadilha seria, portanto, uma espécie de
excesso de realismo, que descarna o conteúdo literário de emoção e, quase
454
Rossetti, José Pascoal: “Trevisan: Sexo e Cemitério”, in O Estado de São Paulo, SP, 06/04/63.
455
Idem.
456
Milliet, Sérgio: “Alguns Malandros”, in O Estado de São Paulo, SP, 23/07/63.
220

inevitavelmente, de maior acabamento literário.


Como já vimos, a carga emocional dos contos de João Antônio,
responsável pela principal diferença entre ele e o sempre invocado Antônio de
Alcântara Machado o protegeria desse perigo. Por isso, aqui e ali nas resenhas
da época, é com Marques Rebelo que o comparam: “Se [Malagueta, Perus e
Bacanaço] tem como antecedente as novelas paulistanas de Alcântara
Machado, encontra na ficção carioca um surpreendente paralelismo. Isto
porque os contos de João Antônio nos trazem os bairros proletários e os
subúrbios paulistas, como os bairros da zona norte e os subúrbios cariocas são
os locais por onde a pena apaixonada do autor de Oscarina passeia seu amor à
cidade de Estácio de Sá. Como Rebelo, João Antônio povoa o seu mundo com
a pequena burguesia e o proletariado fabril, semelhantemente apresenta os
mesmos feixes de motivação: a caserna, a malandragem, a boemia, a música
popular, o esporte. Outro ponto de contato é o tratamento lírico que reveste a
fabulação de ambos, se bem que Marques Rebelo seja um poeta mais
recôndito, mais profundo, mais amargo”.457
Mas a literatura urbana implicava ainda outros riscos, conforme alertam
os críticos. Um deles escreve: “Por entre a enxurrada de mediocridades
pseudo-psicológicas ou pseudo-metafísicas que vem enchendo a ficção
brasileira moderna, é com a maior alegria que se lê o volume de contos
Malagueta, Perus e Bacanaço (...) Sem que se possa perceber, um só
momento, a presença do mau gosto ou da sentimentalização besta com que
costumam cobrir a verdade desses seres à margem. É realista, mas a realidade
é, para o autor, um pedaço de vida e não uma inimiga da existência. Por isso,
sabe até onde pode levar a introspecção ou o diálogo de seus personagens”.458

457
Mendes, Arnaldo: “Um Cronista de São Paulo”, in Última Hora, 13/07/63.
458
Barbosa, João Alexandre: “Malagueta, Perus e Bacanaço”, in Jornal do Comércio, Recife, 17/11/63.
221

E não é o único a alertar para a pseudo-psicologização e para o


esgarçamento da essência dos conteúdos na metafísica. Outro crítico renova o
alerta, acrescentando a pesquisa de linguagem como fator de risco: “Em vista
disso, à medida que o escritor moderno, na pretensão mascarada de se desligar
do homem e de escrever em linguagem ‘mais avançada’ que a utilizada em seu
tempo, foi ganhando terreno em nosso meio, patenteou-se o desprestígio da
intelectualidade (enquanto monologal) e todos, do abismo, passamos a olhar
para a infinidade de céus abertos sobre nossas cabeças. (...) O romancista
buscou o engajamento numa solução mais ou menos sartriana ou através do
esnobismo pelo pseudo-amor aos ambientes, em imitação grotesca ao
Hemingway das touradas”.459
Ora, portanto, o romance urbano caía na metafísica sartreana,
existencialista, ou numa má imitação do realismo americano, com a afetação
de ambientes e situações pitorescos, caricaturais.
Em ambos os casos, mas sobretudo no primeiro, a atitude não-
participante da literatura regional se manifestaria também na literatura urbana:
“Mas cá em nossa terra, onde o intelectual cada vez mais procura fugir à
responsabilidade social de sua tarefa, isolando-se propositadamente do homem
comum que o cerca e que lhe poderia fornecer material densamente
‘humanizado’, um escritor com tal preocupação ainda não dera, antes de João,
o ar de sua graça. Principalmente em São Paulo. (...) E o transporte desta nova
visão dimensionada coincide, historicamente, com a necessidade que está a
literatura brasileira sentindo sem sua própria pele, de ser mais entrante no
homem, de se despojar das elucubrações muitas vezes cretinas e infundadas,
acerca de personagens que não se conhecem e que compõem os quadros de

459
Este artigo, encontrável sob a forma de recorte de jornal no Acervo João Antônio, não possui
infelizmente indicações básicas, como o título, seu autor, o veículo e a data em que foi publicado.
222

vivências dos contos e romances urbanos e suburbanos que se tentam impingir,


desonestamente, ao mercado que quer somente consumir alguma coisa que se
identifique com suas necessidades. É chegada a hora, todos sabemos, da
literatura formulada na participação e no compromisso (...)”.460
Para se entender o processo de amadurecimento do estilo de João
Antônio é necessário, portanto, saber como ele se colocava diante dessas
diferentes opções literárias. Já vimos o quanto ele devia não apenas à literatura
modernista de caráter urbano, mas aos representantes dessa literatura, seus
mentores literários. Haveria outras influências pairando sobre sua criação?
Em 1968, ao ser perguntado sobre como andava a literatura urbana
brasileira, ele respondeu: “Chego a achar que a literatura urbana brasileira
ainda não existe. O que há é um equívoco: não se trata de situar uma estória
numa grande cidade, entre edifícios, automóveis e vida agitada, descrever tipos
urbanos. A verdadeira literatura urbana é aquela capaz de captar em
profundidade o sentimento, o viver do homem da cidade”.461
Mas desde bem antes ele já se inquietava com a busca por uma literatura
capaz de dar vida literária a esse homem urbano. Em suas cartas da época, a
referência a alguns autores chama atenção. O primeiro deles é Carolina Maria
de Jesus, moradora de uma favela de várzea às margens do Rio Tietê. Em
agosto de 1960, ela publicou o livro Quarto de Despejo – Diário de uma
Favelada.462 Por intermédio de Mário da Silva Brito, muito provavelmente,
João Antônio toma conhecimento do livro e se encanta: “[o livro] faz pensar
na vida, em São Paulo e faz pensar no Brasil. Ilka, por que nossas misérias hão
de ser tão terríveis? O livro é povoado de coisas horríveis, tenebrosas, que

460
Rossetti, José Pascoal: “Três Cafés Fiados”, in O Estado de São Paulo, SP, s/d.
461
Autor não identificado: “João Antônio Ou A Hora e a Vez do Anti-Herói” , veículo não identificado,
MG, 03/10/68.
462
Jesus, Carolina Maria de: Quarto de Despejo – Diário de Uma Favelada, Francisco Alves, SP, 1960.
223

chegam na ingenuidade emocionada de uma mulher que é escritora por


vocação. Não tem alquimia literária e isto é um bem para ela. Sintaxe
estrepada. Beleza grande nas descrições simples do arco-íris e da descrição
bruta de uma fome que não é fome de Knut Hansum. Não é fome literária, e
nem é fome lírica. É fome de estômago, tão somente.
(...)
A mulher, o livro da mulher, o lançamento do livro da mulher são
acontecimentos revolucionários. Seu livro é lido e muito.
Muitos escritores fugiram e andam fugindo com mêdo de tamanho
talento e da ingenuidade de Carolina Maria de Jesus. Outros, menos calhordas,
lêem a mulher e sabem aplaudir. Seu livro é um libelo e é de doer que os
homens do govêrno não façam nada. Não sei porque nunca fazem nada.
Mário da Silva Brito irá fazer um artigo sobre Quarto de Despejo, e o
publicará no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo. Nunca gostei
tanto de Mário.
Poucos escritores compareceram à festa de lançamento. Por isso farei
uma croniqueta para o Ceará com um título assim: ‘Um Coquetel Sem
Calhordas Literários’. E depois farei outra sobre o livro. É”.463
Para não falar de uma possível projeção de si próprio, habitante proletário
e outras vezes semi-favelado, sobre a autora do livro, outra despossuída
abrindo caminho no mundo literário, talvez seja mais prudente ater-se aos
elogios concretos que João Antônio faz a Carolina, e por meio deles entender o
universo de valores literários do jovem escritor. Ele chama atenção para a
força que atinge a linguagem simples da estreante. A linguagem “sem alquimia
literária” transmite uma “ingenuidade emocionada” mesmo enquanto narra
“coisas tenebrosas”.
463
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 24/08/60.
224

Quando lê Quarto de Despejo, João Antônio já havia completado todos


os oito primeiros contos que comporiam o livro Malagueta, Perus e Bacanaço.
Sua faceta “modernista”, portanto, a mais próxima de Antônio de Alcântara
Machado, já estava delineada. Para o livro ficar pronto, faltava “apenas”
reescrever a novela título. É possível que, mais do que nunca, a ligação direta
entre a linguagem e a realidade narrada fosse um ideal perseguido pelo
escritor. A tarefa de dar vida literária à cidade e ao “mais autêntico” povo
brasileiro, herdada dos pioneiros modernistas, talvez só se completasse através
de um casamento perfeito, ou melhor, de um ménage à trois, entre linguagem-
personagens-cenários. A alma literária de São Paulo, quem sabe assim, estaria
a seu alcance com toda a intensidade que tinha.
Nos meses seguintes, outros escritores chamam-lhe a atenção. Um é
Caio Porfírio Carneiro, com seu romance Trapiá.464 Em sua apresentação ao
livro, Ricardo Ramos escreve: “Qual a matéria central destes contos? Diríamos
que a alma da gente humilde, a feição do nordestino comum. Partindo daí,
Caio Porfírio Carneiro vai puxando os fios que o conduzem às nossas mais
puras fontes regionais, e nelas encontra a violência dramática, a rudeza com
uns longes de sentimental, o brutal patético mergulhando em dura paisagem. E
temos a linguagem. Ela é rica (o calado sertanejo é um imaginoso), por vezes
de um inesperado retórico, apresenta aquele novidadeiro sabor que realça e
não amacia, é pitoresco sem cair no raso cromático, tem os tons básicos da
verdade popular”. Ele elenca ainda outras qualidades: “perfis de impressiva
beleza”, “prisma necessariamente crítico [da realidade social]”, “boa mescla de
ação e reflexão, de cortes interiores e tomadas externas”, economia “no corte
psicológico”.465

464
Carneiro, Caio Porfírio: Trapiá, Francisco Alves, SP, 1961.
465
Idem.
225

É curioso como os elogios feitos a Caio Porfírio Carneiro se assemelham


aos dirigidos a João Antônio pela maioria da crítica da época. Há, ao que
parece, algo que transcende as diferenças entre um escritor “urbano”, como
João Antônio, e um “regionalista”, como Caio. Há pontos de contato literário:
ação e reflexão balanceadas; a denúncia social, sem maiores sentimentalismos;
a economia nos cortes psicológicos; transposição fiel das linguagens como
forma de obter verossimilhança e aumentar a intensidade dramática. Há, é
claro, pistas de que exista ainda uma certa aproximação ideológica entre o
grupo de João Antônio. Ele próprio ainda levaria alguns anos até se pronunciar
publicamente sobre política nacional, mas a atenção focada nos deserdados do
progresso brasileiro, e a convicção de que o status quo social do país precisava
ser transformado, certamente deveriam aproximá-lo dos intelectuais de
esquerda, e em seu grupo torná-lo mais querido. Sua história de vida, tendo ele
sido vizinho da miséria e auto-didata literário, havia de derreter alguns
corações, além de habilitá-lo a concorrer à vaga de porta-voz dos
despossuídos.
Em sua resenha ao segundo livro de Caio, Sal da Terra, o próprio João
Antônio escreve: “Caio Porfírio Carneiro não é exatamente um escritor de
tramas simples, isento das complexidades psicológicas de seus personagens. É
a simplicidade das gentes das salinas que motiva a economia das palavras e
objetividade desta obra, por isso mesmo mais verdadeira”.466
Há, como se vê, um universo de valores literários por trás dessas
resenhas. Economia, objetividade, autenticidade, ação e reflexão conjugadas
etc. Ao que parece, certos padrões contemporâneos procuravam se sobrepor à
divisão entre literatura regional e urbana. João Antônio, em seu grupo,

466
Carneiro, Caio Porfírio: Sal da Terra, Ática, SP, s/d. A resenha de João Antônio é contemporânea ao
lançamento do livro, em 1965.
226

convivia com elementos de ambas as designações. Se Mário da Silva Brito,


Paulo Rónai e Sérgio Milliet, não atuaram nas trincheiras regionalistas, Jorge
Medauar, Paulo Dantas, Ricardo Ramos e Caio, sim.467 Não parece absurdo
afirmar-se que João Antônio estava submetido a ambas as influências.
Em seguida, nas cartas, João Antônio parece ter, mais acentuadamente,
uma fase de leituras regionalistas. Cita Guimarães Rosa. O comentário, por
eloqüente que seja, é breve: “Duas descobertas – Ryumosuke Akutagawa, o de
Rashomon e Guimarães Rosa, o de Grande Sertão: Veredas”.468 Um mês
depois, cita Osório Alves de Castro, autor do livro Porto Calendário.469 Então,
decorridos mais trinta dias, cita Antônio Olavo Pereira, autor de O Mundo de
Apú e Marcoré.470 De Antônio Olavo, apenas o título dos livros parece indicar
para a literatura não-urbana. Mas o perfil literário de Osório Alves de Castro é
impressionantemente parecido com o de Guimarães Rosa. Ele escreve sobre as
populações à beira do rio São Francisco, com um tom geral bastante próximo
ao usado por Guimarães em Grande Sertão: Veredas, ou seja, buscando na
linguagem aparentemente vulgar a força poética e quase mítica da vida rural.
Na própria orelha do livro de Osório, é Guimarães a principal referência:
“Escrito antes de Guimarães Rosa, mas somente agora revelado, êste legítimo
romance de um autêntico barranqueiro da zona, é obra que vai dar muito o que
falar, principalmente pela linguagem dialetal em que foi escrita, de cunho
saboroso e arcaico, espelhando todo o espírito da região”. O próprio
Guimarães Rosa o recomenda: “escreve com um fervor novo, numa prosa

467
Assim Caio relata o episódio da publicação de seu livro: “A partir daí comecei a me relacionar mais com
escritores: conheci Ricardo Ramos. Conheci Jorge Medauar e através dele cheguei até Paulo Dantas, que
dirigia o departamento de literatura brasileira da Livraria Francisco Alves. (...) Depois desse primeiro livro,
com a ajuda de Mário da Silva Brito, comecei a colaborar no Suplemento Literário de O Estado de São
Paulo, o que vim fazendo até recentemente”. Entrevista introdutória à edição acima citada.
468
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 13/09/61.
469
Idem, de 31/10/61. Castro, Osório Alves de: Porto Calendário, Francisco Alves, SP, 1961.
470
Até a presente data não localizados por esta pesquisa.
227

carnuda e tutanuda, com o Sertão do São Francisco nosso, inteiro, despejando


gente célebre...”471.
Talvez como resultado dessa seqüência regionalista, João Antônio volta à
indagação sobre a linguagem ideal para flagrar a humanidade do homem
urbano, agora sob uma ótica mais programática, na já citada passagem das
cartas em que reconhece a pouca representatividade do homem paulistano na
literatura, e visa superar a tradição nordestina, literariamente mais nítida,
estabelecendo de uma vez por todas a autêntica literatura de São Paulo.472
A princípio herdeiro da tradição urbana do modernismo, aprofundador de
seus mergulhos psicológicos a partir dos cenários e populações visceralmente
representativos da mesma tradição, João Antônio vai pouco a pouco se
convencendo que é partindo da elaboração acentuada da linguagem, opção até
aquele momento por excelência dos regionalistas, que conseguirá recriar
literariamente, em seu estado mais acabado, a alma do homem paulistano. Não
há propriamente rupturas, pois o que ele buscava era a síntese, mas sua posição
entre dois pólos literários varia ao longo daqueles anos. Esse processo ocorreu
durante os anos de elaboração dos primeiros oito contos do livro de estréia e
até 1964, quando escreve “Paulinho Perna Torta”, coroamento do processo,
mas já está patente, ainda em grau menos agudo, no seu livro de estréia, em
que a forma literária dada aos oito primeiros contos difere bastante da
empregada na novela-título.
Não por acaso, na época de lançamento de Malagueta, Perus e
Bacanaço, até os críticos mais severos identificaram uma diferença entre a
novela-título e os oito primeiros contos do livro. Um deles, especialmente
sensível para a variação na linguagem, escreve: “A coletânea está dividida em

471
Orelha não assinada da primeira edição do livro.
472
Ver pp. 216-217.
228

três partes, levando em conta o assunto, mas na realidade, em sua medida


valorativa, o volume divide-se apenas em duas: trabalhos tratados da primeira
pessoa e na terceira. (...) Os contos tratados na primeira pessoa nos parecem
muito pessoais, muito memorialísticos; isso não teria nada de mais se o autor
não se repetisse (sempre o personagem central) em vários outros trabalhos; a
psicologia é a mesma e até as ações. (...) Queremos salientar que, quando o
autor se volta para a narrativa na terceira pessoa, então encontramos o
verdadeiro ficionista e o verdadeiro inventor. Seu trabalho ‘Frio’ é um
exemplo. Mas só com ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’ pudemos medir,
verdadeiramente, a força do artista. A construção dos malandros é muito boa.
A linguagem com ricas expressões localistas, nunca atinge o exagero”.473 É
comum, na crítica da época, leitores que destacam a novela-título como o
melhor texto do livro, e também a adequação da linguagem com que foi
escrita. Mas quase ninguém chegou ao ponto de separar o livro em duas partes,
a novela-título distante da quase totalidade dos demais contos.
Outro crítico, assinala a oscilação do estilo: “João Antônio, com seu
Malagueta, Perus e Bacanaço encarta-se nitidamente nesse quadro,
vinculando-se a uma lírica que começa por Antônio de Alcântara Machado e
Mário de Andrade.
Não me parece ainda ter um estilo próprio. Pelo contrário, tem por vezes
um intenso cheiro de mato verde.
Também não é um estilo novo. (...) Um estilo sincopado, irregular, às
vezes inseguro, mas com grande força, uma vibração interior. (...) O grande
painel de João Antônio, a novela que dá título ao livro, é de certa maneira o
tratamento que impressiona melhor, pois dá a medida de suas impossibilidades
criadoras. O escritor experimenta suas armas (não ainda o romancista), mas os
473
Brasil, Assis: “Romancista na Vérpera”, in Jornal do Brasil, RJ, 26/06/63.
229

fios de vez em quando se afrouxam. ‘Meninão do Caixote’ é um conto mais


poderoso e, no entanto, ainda mais solto. Nele se observa uma das deficiências
(ou, quem sabe, das futuras qualidades) de João Antônio: a incapacidade de
concatenar em linha reta. Ele aparentemente não consegue o princípio, meio e
fim da história. Seus contos tendem ao episódico, ao incidental.
Estruturalmente são falhos. Mas ele possui uma qualidade que
contrabalança quase tudo: autenticidade vivencial. João Antônio estabelece
uma ligação direta e por vezes instantânea, entre o leitor e os seres humanos
que enfoca. Transmite inclusive um código de fala que dá o sopro de vida
[grifo meu]. É certo que insiste no detalhe, no pitoresco, no coloquial, na gíria.
Algumas repetições indicam uma busca de efeitos desnecessária. Há certas
defasagens temporais: locuções mais recentes são atribuídas a personagens que
viveram na infância do narrador, o tratamento do diálogo parece acentuar
anacronismos de expressão. Mas são detalhes”.474
As diferenças entre os oito primeiros contos e a novela-título eram, para
uns, índice de irregularidades de estilo e de desequilíbrio do livro de estréia.
Para outros, um patamar de excelência atingido no texto mais longo do livro,
mas sem qualquer conotação negativa na avaliação geral.
Os exemplos disso são diversos. Eis um dos mais eloqüentes: “Todos os
contos são bons. Mas sem comparação, o que dá nome ao livro é o de mais
perfeita realização. (...) Há que se notar ainda o vocabulário, toda a variada e
rica gíria da malandragem com aplicação exata, dando cor local e veracidade à
narração. Quanto a este aspecto, o jovem ficionista está perfeitamente situado
dentro da nova posição da prosa de ficção brasileira, que é o entrosamento
tema-linguagem-construção formando um todo unitário; uma espécie de
romance compacto, bloco, em que o estilo do autor se adapta à sua temática e
474
Cunha, Fausto: “Um Estreante”, in Correio da Manhã, RJ, 12/10/63.
230

o desenvolvimento também acompanha o assunto”.475


Outra crítica que torna bastante visível uma diferença, ou evolução, entre
os contos do primeiro livro, é generosa o suficiente para dar a todos os contos
dedicados ao mundo da sinuca o mesmo status de acabamento literário que a
da novela “Malagueta, Perus e Bacanaço”. Apesar desse critério variar – o que,
se pensarmos em termos de um processo de amadurecimento estilístico,
apenas faz a baliza andar, sem entretanto modificá-la essencialmente – outro
ponto dessa resenha chama maior atenção. Ela inova no parâmetro de
comparação para a obra do jovem escritor. Em vez de Antônio de Alcântara
Machado e demais pioneiros da literatura urbana modernista, surge Guimarães
Rosa: “(...) João Antônio é, acima de tudo, um estilista. Não abandonando o
aspecto humano de seus personagens, seus dramas e introspecções, João
Antônio consegue transformar em estilo literário (densamente povoado de
novas imagens) as gírias, as palavras da esquina e as expressões de rua dos
malandros. E, como em Guimarães Rosa, o novo linguajar não vai aqui
desvinculado da narrativa, mas se enleia a esta, numa fusão homem-ambiente
de surpreendentes resultados”.476
Então, o herdeiro do pioneirismo urbano modernista, para alguns olhos
mais penetrantes, ou mais críticos, absorvia desdobramentos do ideário que
datavam de um tempo bem mais recente. Grande Sertão: Veredas, fora
publicado em 1956, apenas sete anos antes de Malagueta, Perus e Bacanaço.
Tal percurso estético não é explicitado em nenhuma resenha da época, mas
assim parece indicar a análise em conjunto da fortuna crítica. É uma hipótese a
demonstrar.
No próximo capítulo, analisando os contos do livro de estréia do escritor,
475
Alves, Helle: “Malagueta, Perus e Bacanaço: João Antônio recebe Novos Prêmios”, in Diário de São
Paulo, SP, 06/12/64.
476
Rossetti, José Paschoal: “Três Cafés Fiados”, in O Estado de São Paulo, SP, 15/02/64.
231

e em seguida relacionando-os com a novela “Paulinho Perna Torta”, procurar-


se-á demonstrar, a partir dos próprios textos, o que esse levantamento da
fortuna crítica e de suas próprias idéias estéticas demonstrou até aqui, ou seja,
que, entre a redação dos primeiros oito contos e a escritura de “Malagueta,
Perus e Bacanaço”, de fato houve um apuramento dos rumos de seu projeto
literário. Um amadurecimento de seu primeiro projeto literário. O objetivo
continuou sendo retratar a alma do homem paulistano, mas os recursos a serem
utilizados radicalizaram-se. Um novo conceito de realismo parece emergir,
determinado predominantemente não pela descrição discreta, pela emoção
econômica, mas pelo uso de um novo conjunto semântico, o da gíria, por uma
nova sintaxe, menos formal e elegante, ambos implicando é claro uma nova
sonoridade do texto. A escrita mais contida, de certa forma ainda obediente à
tradição pioneira modernista e às limitações da época, dá lugar a uma espécie
de “regionalismo urbano”, em que suas características anteriores, se não
desaparecem, são transformadas por uma linguagem diferente, que mergulha
mais fundo na reconstrução literária da fala popular. O autor, ao final de 1964,
estava “perfeitamente situado dentro da nova posição da prosa de ficção
brasileira, que é o entrosamento tema-linguagem-construção formando um
todo unitário”.
232

Capítulo 3

Impressão e Movimento
233

Matéria autobiográfica

Alguns livros mostram, veladamente, o amadurecimento do escritor e


de seu projeto literário. Malagueta, Perus e Bacanaço certamente, é um
exemplo. Reunindo nove histórias — sendo o conto-título bem mais longo,
uma autêntica novela —, o livro amadureceu (com exceção de um único
conto, escrito por volta de 1955), entre 1958 e 1962, isto é, entre os 21 e os
25 anos do autor. Não é difícil aceitar a idéia de que, numa idade dessas, se
possa mudar radicalmente o jeito de ser, pensar e, portanto, de escrever.
Seria até estranho que tal não acontecesse.
O que esse capítulo procurará demonstrar é que há mudanças
estilísticas, as primordiais para este trabalho, e de constituição do material
narrativo entre os oito primeiros contos do livro e o conto-título, sendo que,
entre esses oito, apenas um pode ser considerado híbrido. E que entre o
conto título e a novela escrita logo após a publicacão do livro, “Paulinho
Perna Torta”, o projeto de reformulação estética iniciado no percurso de
redação do livro chega a seu ápice. Ou seja, ao contrário do que a recepção
do livro parece indicar, da mesma forma que a crítica posterior, João
Antônio não é um escritor que já nasceu pronto. Apesar do sucesso
imediato, no primeiro livro nem todos os elementos que comporiam seu
estilo maduro estavam presentes.
Mas, antes de fazer o levantamento das mudanças por que passou o
estilo de João Antônio, talvez fosse conveniente mencionar, ao invés das
diferenças, aqueles elementos que os contos de Malagueta, Perus e
Bacanaço têm em comum.
Quando o livro foi lançado, como se viu, imediatamente João Antônio
transformou-se no sucessor da mais nobre linhagem da prosa urbana
234

paulistana, a mesma fundada pelos pioneiros modernistas, com destaque


para Mário de Andrade e Antônio de Alcântara Machado. Seus contos,
entretanto, e isso também já ficou dito, eram muitas vezes considerados
superiores aos dos mestres, por trazerem, ao retratar a vida proletária na
cidade, uma densidade que só a experiência direta poderia inspirar. Desde
logo todos perceberam: aqueles contos estavam atravessados pela carga
autobiográfica.
E esta é, de fato, uma das articulações mais abrangentes do livro, o
que a torna merecedora de especial atenção, ainda que o cruzamento de
informações biográficas e trechos de ficção pareça a alguns procedimento
metodológico um tanto ingênuo. Não é, realmente, o caso de se perder longo
tempo analisando cada conto. Uma breve descrição da história e a
recuperação de alguns dados sobre a biografia do autor, vistos nos caps. 1 e
2, serão suficientes para revelar os pontos de contato entre ficção e
experiência, e a importância disso numa avaliação geral do livro.
Malagueta, Perus e Bacanaço é dividido em três partes: Contos
Gerais, Caserna e Sinuca. “Busca”, o conto de abertura da primeira parte,
narra a história de Vicente, um jovem suburbano, chefe da solda em uma
mecânica de automóveis. Um rapaz de temperamento melancólico, frustrado
em seu amor pelo boxe, que fora obrigado a largar devido ao fracasso de
uma operação para curar-lhe de um problema no fígado. Em um domingo de
tarde, enquanto perambula pela cidade vazia, desguiando de sua própria mãe
e de Lídia, a menina da vizinhança que a mãe lhe tenta impingir como
namorada, ele relembra o fim de sua carreira nos ringues e encara sem
ânimo suas perspectivas.
Há uma base geral comum entre a vida do protagonista e a de João
Antônio: a rotina do domingo de subúrbio, da mãe dona de casa, a
235

insatisfação generalizada com a vida que entende ser rasteira, com a falta de
ambição dos que o rodeiam. Diz o personagem: “Para essa gente de subúrbio
mesquinho, semana brava suada nas filas, nas conduções cheias, difíceis,
cinema à tarde, pelo domingo, é grande coisa”.477 Também são mencionados
a sinuca e o serviço militar, dois elementos que também marcaram a
juventude do escritor, bem como um terceiro elemento, o problema no
fígado, algo pelo menos semelhante ao que João Antônio também tinha,
desde muito jovem, tendo sido operado dos rins em 61, enquanto que em 66,
aos 29 anos, já fora “definitivamente” [grifo dele] proibido pelos médicos de
beber, por ter uma “complexa complicação fidagal”.478
No conto seguinte, “Afinação da arte de chutar tampinhas”, é narrada
a história de um jovem que, em menino, fora um bom jogador de futebol,
mas, com as mudanças da família, premido pelas obrigações do colégio, pela
autoridade paterna e, mais tarde, pelo serviço militar (novamente presente),
vira desfeito seu sonho de ser jogador. O subúrbio em que se passa a história
é, nomeadamente, Presidente Altino. A União dos Moços de Presidente
Altino, a U.M.P.A., nome sob o qual jogava o time de futebol do bairro,
parece ter existido de fato. Outro bairro mencionado no conto é a Mooca,
mais especificamente as redondezas da rua Caiovás, perto de onde ficava o
Beco da Onça, local de residência da família Ferreira por bons anos. O irmão
do narrador, também, como o do escritor, era um contraponto familiar
perfeito: “só pensa em seriedade”.479

477
Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 15.
478
Cartas a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/05/61, 30/05/61, 09/06/61 e carta a Caio Porfírio Carneiro, de
11/07/66.
479
Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 25.
236

Embora o próprio João Antônio diga que “É o conto mais ‘livre’ que
escrevi. Muito livre, sabe?”480, ele mais parece estar se referindo à estrutura
“descosturada” do conto do que à dose de invenção ficcional, pois, numa de
suas cartas, comentando seus reais e maiores prazeres na vida, até o motivo
que dá título ao conto aparece: “Tão bom andar despenteado, chutar
tampinha, bebericar ali pelos lados da Santa Efigênia rodeado dos
considerados da boca”.481
Em seguida, “Fujie”, talvez o mais belo conto de amor jamais escrito
por João Antônio. Ele próprio reconhece: “Talvez não seja o meu melhor
trabalho, Ilka. Mas se emoção contasse, eu não teria dúvida restante: ‘Fujie’
é o melhor que fiz, que poderia fazer. ‘Fujie’ sou eu, sabe? E aí vai tudo.
É o meu conto do coração, do coração meu, que só eu conheço. Do
coração numa noite de chuva.
Um homem chora poucas vezes. É a protocolar dignidade besta que se
inventou para determinar machidão.
Pois eu, em ‘Fujie’, chorei”.482
Não por acaso, o escritor cogitou, durante um mês, dar o título a seu
primeiro livro de Fujie, desistindo depois em favor de Aluados e cinzentos,
que mais tarde seria descartado pelo título definitivo.483
Afora a qualidade literária do conto, capaz realmente de transmitir
com força a emoção do narrador, não fica difícil se entender o tamanho do
envolvimento do escritor com a história do jovem ocidental que, obrigado
pelo pai a praticar judô, encontra seu maior e melhor amigo em um colega
japonês, Toshitaro, ou Toshi, filho de um fotógrafo dono de um estúdio no

480
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 14/03/60.
481
Idem, de 05/11/62.
482
Idem, de 13/07/60.
483
Idem, de 27/01/62 e 18/02/62.
237

bairro japonês. Fujie, a noiva de Toshitaro, e depois sua esposa, encanta o


narrador e fica atraída por ele, empreendendo uma longa campanha de
sedução, finalmente bem-sucedida na última cena do conto. No Cap. 1 deste
trabalho foi mencionado como a cultura japonesa e os encantos orientais da
Liberdade atraíram a João Antônio numa determinada fase de sua juventude.
E ele pontua, numa carta, que “Uma vez, eu tinha vinte e dois anos,
Kodama, um amigo japonês e fotógrafo, me pilhou e me fotografou”.484 E se
alguma dúvida ainda restasse de que o conto é acentuadamente
autobiográfico, o depoimento do irmão Virgínio encarregar-se-ia de eliminá-
la: “Fujie existiu. A situação existiu. Ele [João Antônio] lutou até a faixa
preta, menor de idade ainda”.485
É curioso notar como, de alguma forma, os protagonistas dos três
primeiros contos falam de coisas muito queridas que certos desvios
biográficos lhes tiraram. No primeiro, a doença tirou-lhe o boxe, no
segundo, os estudos, as mudanças da família e o exército interromperam
para sempre sua “carreira” de centro-médio, no último, a amizade de Toshi é
perdida ou, pelo menos, profundamente conspurcada. Esse leitmotiv da
vocação frustrada reaparece ainda com nitidez em pelo menos dois outros
contos do livro, “Visita” e “Meninão do Caixote”.
Seria ir muito longe no terreno da especulação atrelar essa
coincidência à vocação interrompida de João Antônio para a música,
também por causa dos estudos, da autoridade materna, e devido aos
compromissos da juventude (trabalho, exército etc). Ou, quem sabe,
abarcando toda sua experiência familiar, ao desejo recorrentemente frustrado
por uma vida financeira-familiar mais estável, que lhe permitisse dedicação

484
Idem, de 24/01/61.
485
Depoimento colhido em 23/03/2000.
238

maior às coisas que lhe davam prazer, como escrever literatura, por
exemplo. Afinal, a trajetória da família Ferreira é uma sucessão de mudanças
de patamar econômico, para pior, em geral exigidas pelos revéses
financeiros do pai do escritor, para não falar do incêndio de 1960. Enfim,
algum sentimento de perda biográfica irresgatável, tido ainda na infância e
na primeira juventude, parece haver permanecido dentro de João Antônio, e
parece expressar-se indiretamente nessas histórias iniciais.
Apenas como um parêntese ilustrativo do valor central da música em
sua sensibilidade e de como funcionava seu processo criativo, que
transpunha para a ficção, quase diretamente, as figuras que lhe interessavam
na vida, vale citar o conhecimento que trava com um mendigo que toca
flauta, tendo como repertório, segundo João Antônio, “Lizst, Mozart e
Pinxinguinha…”. Ele imediatamente o imagina como um personagem: “Eu
lhe dei dinheiro e ele me deu sua história. Um dia, eu crio vergonha e o
escrevo. (…) Se o dia é bonito, ele toca; se chove, ele toca. É um homem e
sua flauta — uma coisa não vai sem a outra. É um artista da sua solidão e
não admite interrupção da sua música. (…) O vagabundo me tomou conta e
eu lhe contei. Valeu mais, você ficou conhecendo um personagem”.486
Os dois contos que compõem a seção do livro chamada Caserna,
“Retalhos de fome numa tarde de G.C.” e “Natal na cafua”, também estão
evidentemente enraizados nas experiências vividas pelo escritor durante o
ano de serviço militar. E, para quem, como já se viu, tinha especial vocação
para o conflito, para o desrespeito a comandos que lhe parecessem impostos
e externos a sua própria vontade, pode-se imaginar como essas experiências
foram vividas. Ele diz à amiga Ilka, quando ela recusa o convite para ser a
editora de uma página de cultura, bancada por padres que iriam interferir em
486
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 28/22/61.
239

suas escolhas literárias: “Ademais, pelo que pude concluir de sua


personalidade, você não é pessoa para ser ‘mandada’ por ninguém. O
admirável desta tendência não tem preço, porém, não se afina nem com a
batina nem com a farda”.487
Ao completar vinte e cinco anos, ele descreve sua depressão, citando
de passagem o juízo que fazia da vivência militar: “Este é meu aniversário
mais ilhado. Nem no quartel, entre promiscuidade e imundície, eu estive tão
solitário”.488 A solidão pode até haver aumentado, como ele diz, mas nem
isso distancia a imagem que guardava do exército da imagem que seus
personagens fazem da vida na caserna.
Em “Retalhos de Fome numa tarde de G. C.”, o narrador, Ivo, numa
tarde modorrenta no quartel, em meio a observações prosaicas da rotina
militar, entre menções a episódios laterais envolvendo a política nacional (o
golpe natimorto de Jacareacanga, em 1955, que impediria a posse de J.K.) e
personagens secundários da tropa e do oficialato (por exemplo o
autoritarismo do sargento Isaías), conta como Tila, uma jovem mulata que se
oferecia por dinheiro aos soldados é a causa da remoção do ex-pracinha
Domício, o único a cometer a imprudência de engravidá-la, e de realmente
amá-la. E ao final do conto, uma aparente conversão da moça, após o
nascimento do filho, abre caminho para uma relação entre ela e o
protagonista.
Em “Natal na cafua”, a marca maior do narrador é uma fúria contida
contra o sub Moraes, autoritário, grosseiro, especialista em humilhar os
subordinados, entre eles o próprio narrador, motorista encarregado de, todas
as manhãs, ir a uma espécie de armazém central do exército, a chamada

487
Idem, de 07/03/60.
488
Idem, de 27/01/62.
240

“subsistência”, buscar pão e carne. Numa dessas viagens, justamente, com a


indesejada companhia do sub Moraes, o narrador é vítima de um motorista
que vinha na contramão. Dá-se o acidente, o sub Moraes machuca o braço e
o narrador tem o rosto e as mãos feridos pelos estilhaços do vidro dianteiro
do carro. E, por determinação do sub Moraes, vai injustamente preso, isto é,
para a “cafua”. O conto termina com uma descrição do sentimento
melancólico de passar o dia de Natal no xadrez: “Tenho sofrido muito neste
meses de quartel, ouvi muito xingamento, muito deboche e muita ofensa. E
tenho me desdobrado tentando acertar, bestamente. Perco aulas no colégio,
me prejudico. Tenho aturado, agüentado, perdi injustamente meu curso para
cabo, sou o melhor motorista da companhia e dei com o lombo na cadeia
duas vezes...”.489
Já foi citado, no Cap. 1, um trecho de carta que diz: “Aos meus quinze
[anos, o pai] deu para me ensinar a dirigir o jipe. Abespinhado e orientando
aos trambolhões, esquentava-me a cabeça. Um esporro que assustava. (...)
mordendo o beiço, meu pai ao lado, ia aporrinhado no volante. Desgovernei
o jipe num muro de Vila dos Remédios”.490 E como esse trecho é parecido à
descrição do narrador de “Natal na cafua”: “Ele estava ali [o sub Moraes],
velhote e meio surdo, fumando, berrando, xingando, com o braço passeando
do lado de fora da janela. (...)/ E eu aturando aquele homem nas viagens
diárias, boçalidades, xingamentos. (...) Quem ouvisse, que calasse. Senão,
era cadeia”.491
A epígrafe desta segunda parte do livro é eloqüente — “Soldado é
aquilo que fica debaixo da sola do coturno do sargento”492 — e não deixa

489
Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 54.
490
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/61.
491
Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 48.
492
Idem, p.35.
241

dúvidas quanto à semelhança entre os sentimentos do autor e dos


personagens no tocante à vida militar.
João Antônio não tinha meias palavras para falar de sua experiência
no exército, e seus personagens ecoam isto: “(...) meus vinte e dois anos me
parecem cem quando penso numas coisas. Anos de balcão, uma infância que
Deus sabe, uma adolescência irrefreada nas doidices acéfalas, a escola e
alguns pavorosos meses de farda [grifo meu]. Pavorosos, isto mesmo. (...)
“Natal na cafua” leva pouca invenção literária. Bastou que eu retornasse à
memória da verde-oliva, repuxasse o tempo e rememorasse sargentos,
cigarros baratos, misérias e condições próprias de um exército de um país
como o nosso”.493
O conto que abre a terceira parte do livro, “Frio”, é o mais antigo de
todos, escrito por volta de 1954. Lembra o escritor da época de sua
composição: “João Antônio vivia bem quando morador de Vila Anastácio,
sozinho em suas noites, tardes e dias. João Antônio não tinha que se juntar a
ninguém. (...) Se eu olhava a chuva e me vinha vontade de chorar, chorava.
Estava só e chorava e estava bem. Amei o menino de ‘Frio’, como se amasse
uma criatura que era minha e era da rua também”.494
Neste conto, um engraxate de dez anos, “pequeno, feio, preto,
magrelo” é acordado por seu protetor, Paraná, no fim da madrugada, e dele
recebe um embrulho, cujo conteúdo não é explicitado, e que deve ser
entregue pelo menino em Perdizes, o que o obriga a uma longa travessia pela
cidade durante o seu despertar gélido. Neste conto, Paraná está para o
menino assim como Laércio Arrudão está para Paulinho Perna Torta, que
também era engraxate quando criança, ou como Vitorino está para o

493
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 28/09/59.
494
Idem, de 24/01/61.
242

Meninão do Caixote; ou seja, é um malandro que tem uma espécie de


mascote, a quem ensina as práticas do submundo, as gírias, os trejeitos, as
espertezas, a sinuca, e, inclusive, a caftinagem.
João Antônio conhecia bem a obrigação de, ainda criança, se deslocar
pela cidade no cumprimento de missões estipuladas pelo pai, sobretudo na
época em que este administrava um armazém, ao qual o filho, mesmo contra
a vontade, ajudava a abastecer. Além disso, existiu o jogador de sinuca
chamado Paraná495, bem como a convivência direta com tipos como esse na
Boca do Lixo, e era profundo o conhecimento que tinha o escritor das
paisagens suburbanas nas madrugadas desertas.
O conto seguinte é “Visita”. Neste, enquanto seu ônibus o leva, num
dia calmo da cidade, para a casa de um ex-parceiro de sinuca, chamado
Carlinhos, o narrador rememora fragmentos da passagem da dupla pelas
mesas da cidade. Não se vêem a “uns dois meses”, e o motivo da separação
foi “emprego novo, vida diferente”.496 O narrador compara seu atual
emprego com o antigo, a situação de assalariado à de jogador, queixa-se da
irmã, das amigas da irmã. Chegando à casa do amigo, é informado pela irmã
de Carlinhos que este saiu, e o narrador volta a perambular pela cidade,
questionando seu estilo de vida mas recusando as alternativas, e termina em
um salão de sinuca, onde se percebe enferrujado para o jogo, embora ganhe
trezentos cruzeiros.
A vivência que o narrador tem da sinuca novamente remete a uma
habilidade sufocada, aqui pela premência financeira mas, também, pela
moral do trabalho, que se manifesta por meio da pressão familiar e por uma
dividida opção pessoal.

495
Idem, de 15/09/60.
496
Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 70.
243

“Já curti um desemprego, cinco meses que só eu sei... Vida do


joguinho. O dia na cama, a noite na rua. Cinco meses. Mas naquele tempo eu
fumava cigarros estrangeiros e mandava polir as unhas. Não engolia um
desaforo. (...) A casa... a família reunida para as reprimendas que duravam
duas horas. (...) Moral para a família rezadeira é agüentar máquina de
cálculo oito horas por dia, agüentar chefe estrangeiro, bitola, manha, idiotice
e ganhar seis contos no fim do mês. Hoje sou um bom rapaz...”.497
A divisão do narrador, entre a vida de jogador e a de trabalhador,
entre a liberdade noturna e as reprimendas familiares, entre a nostalgia dos
tempos de boêmia e a dureza da vida “regular”, entre a consciência de que a
malandragem cobra um preço e a pouca esperança de que a vida de
funcionário traga recompensas, é muito semelhante à que se depreende do
seguinte trecho de uma carta do escritor: “Fiz as minhas, dei gingadas,
perturbei. Ambientes que me largavam só no meio de todos e que acabaram
me enfarando, passada a primeira onda de curiosidade. Assim, malandragem
de sinuca, carteado, cavalos; vigarismos de ‘contos’ ou de mulher; churrear
ou passar tóxicos, tudo não me seduziu. Chamavam-me atenção, é claro, as
infinitas habilidades de tomar, roubar, estraçalhar. Mas a dependência, o
convívio com infelizes demais, as próprias condições de afobado, inquieto,
insatisfeito, deram cabo de toda a vontade. Eu proclamei (aqui o verbo é
bom), um dia — me lembro e confesso:
— A maior malandragem é a honesta”.498
Isso para não mencionar o quanto a rotina do narrador lembrava à de
João Antônio na juventude e o emprego mesmo do narrador remete ao seu e
ao de seu pai no frigorífico Armour, como auxiliar de contabilidade, sob as

497
Idem, pp. 73-74.
498
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/09/60.
244

ordens de patrões americanos. Eis um trecho do conto: “Pelo ano inteiro,


este tonto trabalha e agüenta escola noturna. Dorme seis horas, acorda
atordoado de sono, vai buscar dinheiro numa profissão inútil. Dia todo
somando, dividindo, subtraindo, multiplicando. (...)/ Aqueles ingleses do
escritório deviam aturar desaforo para saberem o que é a vida. Aturar
desaforos. Figurões que se agrupam, vêm para cá, moram em palacetes, aqui
encontram bobos a servirem-lhes em idioma e escrita. Sou um deles. O que
sei aí está — língua estrangeira para servir a estrangeiros. E ganhar seis
contos por mês. Para que eu viva é preciso tanto”.499
No penúltimo conto do livro, “Meninão do Caixote”, novamente o
ambiente familiar é um quase decalque da vida do escritor. A história é a de
um menino que, levado por um patrão de jogo, mergulha no mundo da
sinuca e, para surpresa geral, torna-se um campeão, mas depois, por pressão
da mãe, desiste da vida de jogo e opta por andar na linha. O pai
caminhoneiro é um traço evidente da confluência entre ficção e realidade,
pois, em seguida a um de seus tombos profissionais, o pai de João Antônio
chegou realmente a trabalhar como motorista de caminhões, fazendo fretes.
E a personagem da mãe, lutando contra a inclinação do filho pela sinuca,
evoca muito fortemente a mãe do próprio escritor, afastando-o dos
instrumentos, do mundo musical, da malandragem.
Se a presença dos índices autobiográficos nos primeiros contos do
livro é, a esta altura, indiscutível, uma aparente conseqüência disso parece
surgir no quadro geral. Percebe-se, no conjunto, uma forte preferência pelo
uso da primeira pessoa como ponto de vista narrativo. “Frio” e “Retalhos de
fome numa tarde de G.C.” são as únicas exceções até aqui. O último texto
escrito para o livro, “Malagueta, Perus e Bacanaço”, é também narrado em
499
Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, pp. 70 e 78.
245

terceira pessoa. Já a primeira produção posterior ao lançamento do volume,


“Paulinho Perna Torta”, é novamente narrada em primeira. Mas essas duas
últimas novelas têm em comum a ambientação no mundo da sinuca e da
marginalidade, que é um veio autobiográfico sabido. Se levarmos em conta
que a história de Malagueta, Perus e Bacanaço, por apresentar os três
protagonistas em igualdade de condições, praticamente exigia o uso da
terceira pessoa, de uma voz narrativa não colada à subjetividade de apenas
um deles, vemos que, no compto geral, a ligação direta entre experiência e
obra fez prevalecer em João Antônio o gosto pelo uso da primeira pessoa em
seus textos de ficção.
Ao dar conselhos literários para a amiga Ilka Brunhilde Laurito, João
Antônio mostra o quanto acreditava na transposição das experiências diretas
para a obra literária: “Peço-lhe, como amigo e leitor do que você escreveu e
eu pude ler, que volte a escrever. Atenda, Ilka. (…) Escreva sobre a
necessidade do amor que talvez seja tão intensa e ainda mais sofrida
mensagem. Fale de solidão, de pessoas sós, fale do valor que tem o correio
para você e esteja certa — quantas criaturas não se sentirão identificadas,
prontas a amar o que você escrever. Escreva crianças, adolescentes que se
vincularam a você, que dependeram, que receberam e que depois se foram.
Naturalmente, sem nenhuma crueldade. Como é na vida. Escreva suas
amizades e até suas contrariedades, que a vida é uma coisa e é outra. Não se
envergonhe e diga na primeira ou terceira pessoa que você é muito sensível e
que sai do cinema tonta, arrasada e pequenina. E não se esqueça de dizer,
por favor, que você sente vontade de morrer. Tenha coragem e descreva suas
orações e o seu oratório, mostre o seu quarto, o seu amor às bonecas,
apresente suas vizinhas de olhar pensador e amores frustrados. Fale dos
246

palhaços que você ama e que conversa com eles. Mostre-os, um escritor
mostra o que tem [grifo meu]”.500

Contos de Homens

Outra das articulações gerais do livro parece decorrer daquilo que, ao


se falar, no Cap. 1, das “dentições literárias” de João Antônio, chamou-se,
segundo terminologia do próprio escritor, “literatura de homem”. Para ele,
essa literatura era composta por escritores como Górki, Gógol, Gide, Zola, e
tinha como expoente dos expoentes Ernest Hemingway. Tal “família
estética” deveria ter como característica básica a dureza; falava de temas
duros, tendo como personagens pessoas duras, que atravessavam
experiências difíceis, e era estilisticamente seca, contida, econômica, ou
seja, máscula.
Ao menos esse é o perfil possível de se delinear a partir dos
depoimentos e entrevistas do escritor. A sensibilidade cheia de cicatrizes e
ferimentos, típica desse tipo de literatura, em Malagueta, Perus e Bacanaço
aparece de várias formas. No conto “Visita”, manifesta-se como uma
valorização de homens simples e fortes, em detrimento de outros poderosos
mas fisicamente subdesenvolvidos, e como um certo desejo de vingança
social do narrador: “Por que diabo mandam-me [os chefes no escritório]
tantos relatórios? Os dedos pretos de fumo são fins de braços sem bíceps,
sem tríceps, nada. Pudera! Às vezes, vejo na expedição homens de sacaria,

500
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 27/01/62.
247

braços enormes. Imagino-me vivendo à sombra deles. Parece-me que a vida


teria músculos e sossego, não cálculos e ocupações domésticas”.501
Mais comumente, porém, e sobretudo, a sensibilidade “de homem”
aparece na escolha dos ambientes freqüentados pelos protagonistas, como é
o caso da dita “sacaria”. Mas também a oficina mecânica, em “Busca”, e o
ginásio de boxe; o vestiário do time de futebol, em “Afinação da arte de
chutar tampinhas”; a academia de judô, em “Fujie”; o quartel, de vários
contos; os escritórios de contabilidade, também de “Visita” (que hoje talvez
tenham perdido esse caráter eminentemente masculino, mas certamente
ainda o tinham no final dos anos 50); e, claro, os salões de sinuca, de
“Visita”, “Meninão do Caixote” e “Malagueta, Perus e Bacanaço”.
Essa ênfase na experiência masculina permeia todo o livro. E
nenhuma narradora é mulher. O único conto em que uma mulher disputa
importância com o protagonista é, exatamente, o que leva o nome de uma,
“Fujie”. Mesmo assim, Fujie é uma psicologia impermeável, que põe à
prova a fidelidade do narrador para com seu melhor amigo, com quem ela é
casada. Mas nada ficamos sabendo sobre como a própria Fujie pensava e
vivia a forte atração pelo homem de confiança do marido. Ela faz o papel de
estopim do drama, mas como uma força externa que atua sobre a voz
narrativa, mais como a encarnação da tentação feminina, da diferença entre
os sexos (ela ser japonesa é um signo que reforça este efeito), do que como
uma pessoa com nível de elaboração igual ao do narrador.
A epígrafe de tom bíblico, tirado de um poema de Vinícus de Morais,
é sintomática: “Nem tu mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres
como as plantas, imovelmente e nunca saciada. / Tu que carregas no meio de

501
Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 76.
248

ti o vórtice da paixão”.502 Remete à idéia da mulher como uma força da


natureza, eventualmente. E da idéia da mulher como ser vegetal, “nunca
saciada”, para a idéia da mulher como ser animal, ou, mais especificamente,
como a cobra que tentou Adão, não há uma distância muito grande, tendo
em vista que o título do poema é “Dia da Criação”. Ou seja, há uma razoável
fabricação alegórica nessa única figura feminina que disputa o primeiro
plano com um narrador homem.

O espírito da cidade

Um terceiro elemento de ligação que permeia todo o livro, certamente,


é a cidade. É ele, mais que qualquer traço puramente estilístico, que justifica
a vinculação de João Antônio à tradição de Mário de Andrade e Antônio de
Alcântara Machado. Todos os contos, sem exceção, mapeiam pontos da
cidade, trajetos, discorrem sobre o caráter desta ou daquela paisagem, os
tipos que freqüentam cada uma etc.
Ao longo do livro, pode-se montar um autêntica lista dos bairros de
São Paulo: Lapa, City, Piqueri, Presidente Altino, Mooca, Penha, Liberdade,
Centro, Santa Cecília, Perdizes, Pompéia, Pacaembu, Água Branca, Vila
Mariana, Tucuruvi, Vila Ipojuca, Vila Leopoldina, Osasco, Pinheiros,
Moinho Velho, Cruz das Almas, Vila Alpina, Limão, Perus.
Ou de algumas de suas ruas, alamedas e avenidas: Caiovás, Galvão
Bueno, av. Liberdade, Abílio Soares, Quintino Bocaiúva, Cleveland, João
Teodoro, av. Duque de Caxias, av. São João, av. Água Branca, av. Ipiranga,
Amador Bueno, Líbero Badaró, rua das Palmeiras, Teodoro Sampaio.
502
Idem, p. 27.
249

Ou, ainda, de alguns de seus edifícios e cenários mais conhecidos:


Estação Júlio Prestes, Teatro Municipal, Viaduto do Chá, Mosteiro de São
Bento, Largo Santa Ifigênia, Praça da República, pico do Jaraguá, o cinema
Niterói, Estação Sorocabana, Igreja das Perdizes, Largo da Barra Funda,
Largo Padre Péricles.
E, finalmente, de certas paisagens menos conhecidas
individualmente, mas por isso mesmo talvez ainda mais típicas, como por
exemplo uma vila operária, com ruas de paralelepípedos, “rodeada de
fábricas, dezenas de bares, três igrejas, um grupo escolar”503; ou “Um prédio
velho da Lapa de Baixo, imundo, descorado, junto dos trilhos do bonde. À
entrada ficavam os tipos vadios, de ordinário discutindo jogo, futebol e
pernas que passavam. Pipoqueiro, jornaleiro, o bulício da estrada de
ferro”.504
São Paulo é sim, com fidelidade documental, o cenário dos contos,
mas não apenas de maneira tão direta João Antônio tenta capturar o espírito
de sua cidade. Outros elementos, eleitos por sua intuição criativa, levam-no
ao ponto desejado: um sentimento profundo da cidade, ao mesmo tempo
pessoal e compartilhável por meio da literatura. Esses elementos, a princípio,
são quatro: movimento constante, distância subúrbio x centro e bairros, o
misticismo da luz elétrica, a cidade como espaço de degradação.
O simples acúmulo de referências toponímicas sugere o quanto os
personagens se deslocam pela cidade, mentalmente muitas vezes, mas,
sobretudo, fisicamente. Os narradores dos contos, e/ou seus protagonistas,
estão sempre em movimento. O próprio conto-título não é dividido em
partes, cada qual com o nome de um bairro? Lapa, Água Branca, Barra

503
Idem, p. 75.
504
Idem, p. 87.
250

Funda, Cidade, Pinheiros? Por conseqüência disto os meios de transporte,


trens, bondes, automóveis, bicicletas, são objetos de atenção constante,
elementos quase obrigatórios das passagens descritivas da paisagem.
Parte dessa recorrente movimentação pela cidade advém da distância
entre o subúrbio, local de origem e residência da maioria dos personagens, e
os bairros: “Que horas tem trem para São Paulo?/ Meia hora não esperaria.
Fui caminhando para a Lapa. Mesmo a pé.”505; e “A última sessão [do
cinema] termina pela meia-noite passada, o último ônibus parte às onze e
meia. Porcaria de subúrbio!”506; e ainda “Minutos de espera, o que me
sobrou foi tédio e raiva. Onde se viu uma linha de ônibus tão relaxada? E
ainda querem aumento de tarifas... (...) Abandono a idéia do ônibus, vou a
pé.”507
Entretanto, é importante não se confundir esse constante movimento
com a imagem mais banalmente veiculada da cidade de São Paulo, a de
Meca brasileira do dinamismo e da correria laboriosa. Essa movimentação
constante dos narradores e/ou protagonistas, em geral é motivada mais por
inquietações interiores (de causas sentimentais ou familiares etc., ou por
necessidades de uma certa economia) do que por demandas do capitalismo
ortodoxo. Por sinal, muitos dos contos se passam em sábados e domingos,
ou no quartel, lugar relativamente à margem da rotina produtiva da capital
financeira do país. Como se, em momentos de interrupção do trabalho
massacrante, durante os deslocamentos pela cidade que lhes dão perspectiva,
lhe permitem olhar o outro, e olhar para dentro de si, os homens
recuperassem a humanidade.

505
Idem, p. 12.
506
Idem, p.75.
507
Idem, p. 76.
251

Como conta o narrador de “Busca”, sentado num banco de jardim,


onde fora parar vagando angustiado pelas ruas, em direção frouxa rumo ao
Piqueri: “Uma criança passou-me, deu-me um tapinha no joelho. Achei
graça naquilo, sorri, tive vontade de brincar com ela. Ficamos nos
namorando com os olhos. Ela se chegou, conversamos. (...) / A garotinha do
jardim público poderia ser minha filha. Este pensamento agradou-me, jogou-
me uma ternura”.508
Em pelo menos três contos, a movimentação, o deslocamento
constante dos personagens, é nitidamente fruto de certa inquietude interior:
“Busca”, “Afinação da arte de chutar tampinhas”, e “Visita”. E, embora este
fenômeno não ocorra de forma idêntica em “Retalhos de fome numa tarde de
G.C.”, ou em “Natal na Cafua”, vale lembrar que o motivo do sofrimento de
seus protagonistas é, justamente, a interdição da capacidade de ir e vir, o
isolamento do quartel e, no tocante ao segundo, da prisão.
Em “Fujie”, os bondes são a promessa de escapar da tentacão:
“Bondes que vão para o outro lado da cidade rangiam-me na cabeça.
Adoraria estar longe”.509 É como se a movimentação pela cidade fosse uma
saída, ou pelo menos um anestésico, para as situações difíceis que vivem os
narradores e/ou protagonistas. Há uma sensação de liberdade e de superação
das dificuldades que o simples deslocamento parece poder propiciar.
Os três personagens do conto-título, que se deslocam pela cidade ao
longo de uma noite, atrás de jogos de sinuca e otários que possam ludibriar,
de certa forma, também são movidos por inquietações. A do ganho
pecuniário propriamente dito, sim, mas também pela necessidade de,

508
Idem, p. 16.
509
Idem, p. 33.
252

deslocando-se, atuar, “fazer a noite”, encontrar onde mais se está jogando “o


joguinho mais ladrão de quantos há na sinuca”, o “jogo de vida”.510
Afinal, no espaço urbano, para pessoas da classe social a que
pertencem os personagens de João Antônio, se deslocar é viver, e a
estabilidade e a estagnação foram feitos para os outros, não para eles. Os
operários e malandros de João Antônio são como as bolas em uma mesa de
sinuca, que não fazem sentido se imóveis, e portanto se deslocam e se
chocam pelo pano verde à espera de caírem definitivamente na caçapa e lá
morrerem, ou encontrarem a paz.
“Desde que papai morreu, esta mania. Andar. Quando venho do
serviço, num domingo, férias, a vontade aparece. O velho, quando vivo,
fazia passeios a Santos, uma porção de coisas. Bom. A gente se divertia, a
semana começava menos pesada, menos comprida, não sei. Às vezes, penso
que poderia recomeçar os passeios.”511
Quando passam num trecho de bairros mais chiques da cidade,
quando se defrontam com uma vida estática, de conforto satisfeito e que não
exige o escape do deslocamento constante, sentem-se corpos estranhos,
nômades viscerais, sem direito a descanso: “Mas era uma noite de sábado e
houve outros lados por onde passaram, apequenados e tristes. / Vai-e-vem
gostoso dos chinelos bons de pessoas sentadas balançavam-se nas calçadas,
descansando. / Com suas ruas limpas e iluminadas e carros de preço e
namorados namorando-se, roupas todo-dia domingueiras dos lados bons das
residências da Água Branca e dos começos das Perdizes. Moços passavam
sorrindo, fortes e limpos, nos bate-papos da noite quente. Quando em
quando, saltitava o bulício dos meninos com patins, bicicletas, brinquedos

510
Idem, p. 113.
511
Idem, p. 12.
253

caros e coloridos./ Aqueles viviam. Malagueta, Perus e Bacanaço, ali


desencontrados. O movimento e o rumor os machucava, os tocava dali. Não
pertenciam àquela gente banhada e distraída, ali se embaraçavam. (...)/ Um
sentimento comum unia os três, os empurrava. Não eram dali. Deviam
andar. Tocassem.”512 É também esta distância, cheia de significados
econômico-sociais, que confere uma dimensão mais profunda aos
deslocamentos, transformando-os quase em travessias entre mundos
diferentes.
O dinamismo normalmente associado ao habitante da capital paulista
manifesta-se, portanto, nos contos do livro de estréia de João Antônio, no
deslocamento físico constante, na fuga de um “mal” interior, ou de uma
situação material adversa, como remédio a um desconforto silencioso e, na
maioria das vezes, cheio de uma revolta resignada. Tenha o personagem
optado pela vida de mão-de-obra barata ou pela de malandro, há sempre
revolta e resignação. E para enfrentá-las, para anestesiar a dor, há sempre
deslocamento físico. O trabalhador mão-de-obra barata, o lúmpen, e o
malandro, claro, são apenas os dois lados da mesma moeda mesquinha. Essa
necessidade de movimento existe nos protagonistas dos primeiro oito contos,
ex-malandros, ex-boxeadores, ex-campeões de sinuca, ex-alguma coisa que
foram obrigados a aceitar a vida de um trabalhador como outro qualquer —
o que também é verdade nas duas histórias passadas na caserna, pois seus
protagonistas são, também, ex-civis obrigados a abaixar suas cabeças diante
de forças maiores. Mas existe inclusive nos malandros “profissionais”, que,
por não terem aceitado jamais a exploração de sua força-de-trabalho, sequer
são capazes de entender as compensações da vida “honesta”.

512
Idem, pp. 124-125.
254

Numa das poucas (e quando digo poucas, na verdade estou dizendo


que me recordo de apenas uma outra513) passagens em que o livro faz uma
daquelas típicas descrições da efervescência urbana-produtiva de São Paulo,
Bacanaço vê outra coisa: “Gente. Gente mais gente. / A rua suja e pequena.
Para os lados do mercado e à beira dos trilhos do trem — porteira fechada,
profusão de barulhos, confusão, gente. Bondes rangiam nos trilhos, catando
ou depositando gente empurrada e empurrando-se no ponto inicial. Fechado
o sinal da porteira, continua fechado. É pressa, as buzinas comem o ar com
precipitação, exigem passagem. Pressa, que gente deixou os trabalhos,
homens de gravata ou homens de fábricas. Bicicleta, motoneta, caminhão,
apertando-se na rua. Para a cidade ou para as vilas, gente que vem ou que
vai. (...) / Trouxas. Não era inteligência se apertar naquela afobação da rua.
Mais um pouco, acendendo-se a fachada do cinema, viria mais gente dos
subúrbios distantes. A Lapa ferveria. Trouxas. (...) Corriam e se afobavam e
se fanavam como coiós atrás de dinheiro. Trouxas. Por isso tropicavam nas
ruas, peitavam-se como baratas tontas.”514
O dinamismo produtivo, quando aparece, recebe um sinal negativo, e
aquele que o observa nega a possibilidade dele representar uma fonte de
felicidade.
Também a vida de jogador, de malandro, é em vários momentos
questionada como outro possível escape das durezas da realidade. A
superioridade de Bacanaço, para continuar no exemplo acima, se esvai nos
sucessivos tropeços da trinca de jogadores, e a resignação pelas agruras
próprias da malandragem o invade também: “Falou-se que naquela manhã
513
“A Chinesa [uma pastelaria em Pinheiros] fervia, dia e noite sem parar, que ônibus expressos vindos de
longe, ou caminhões de romeiros, condutores, surrupiadores de carteira, estudantes, mulheres da vida,
bêbados, tipos sonolentos e vindos da gafieira famosa do bairro (...) Movimentos vibravam, vozerio, retinir
de xícaras, buzinas.” Idem, p. 148.
514
Idem, p. 106.
255

por ali passaram três malandros, murchos, sonados, pedindo três cafés
fiados”.515 Isto significa que nem de um lado nem de outro está a paz. É no
deslocamento.
Ora, com esse estado de espírito, o olhar que os personagens de João
Antônio lançam sobre a cidade em suas perambulações não poderia deixar
de ser predominantemente melancólico, para não dizer totalmente. Os casos
são inúmeros, de observações repletas de tédio, de enfado diante das
impossibilidades de suas existências mesquinhas, por razões sociais
sobretudo, mas também de uma certa mesquinhez inerente ao “jogo de
vida”. São cenários em geral vazios, a cidade é predominantemente cinzenta,
o vento é predominantemente frio (e não só no conto que leva esse nome).
Alguns exemplos, colhidos propositalmente ao longo do livro, como
demonstração de que é este o sentimento geral que o atravessa do início ao
fim: “Um domingo tão chato! Depois do almoço, as coisas ficam paradas,
sem graça”516; “Sábados à tarde, e domingos inteirinhos — a cidade se
despovoa. Todos correm para os lados, para os longes da cidade. (...) Fica
outra a minha cidade!”517; “Os lados da City, tão diferentes, me davam uma
tristeza leve. Essa que sinto quando como pouco, não bebo, ouço música”518;
“Muito bom pela madrugada, quando os carros são poucos e a luz dos postes
se atira sobre as tampinhas no asfalto”519; “Havia um jeito de preguiça em
tudo. Até lá fora, nos autos que comiam o asfalto da rua Abílio Soares”520;
“Nas ruas da cidade, os preparos de Natal, repetiam aqui, ali, além, numa
fachada de loja, numa entrada de cinema, cores vibrantes na manhã. Mas não

515
Idem, p. 159.
516
Idem, p. 11.
517
Idem, p. 22.
518
Idem. p. 12.
519
Idem, p. 23.
520
Idem, p. 38.
256

era alegre, era tristeza na manhã de corpos agitados, de pressa, de frio


bravo”521; “Por ali ninguém. Tudo dormido”522; “Ainda olhou para a
avenida. Frio. Queria ver um vulto. Ninguém. Só um ônibus lá em cima, que
dobrava o largo, como quem vai para os lados da Vila Pompéia” 523; “O
ônibus vazio me dá calma”524; “A madrugada geral continuava; lentos,
525
safados passavam” ; “Despediram-se do maior taco do Brasil, ligeiros e
firmes entraram pela Santa Efigênia, rua de virações como outras, àquelas
horas dormidas”526; “Tomaram o viaduto Santa Efigênia maquinalmente,
numa batida frouxa e dolorida. Só se ouvia, à frente, o ‘plac-plac’ dos saltos
de couro de Bacanaço. A gana do jogo lhes passara de todo e não percebiam
o vento quieto e úmido batendo-lhes agora, nas caras e nas pernas. As três
cabeças seguiam baixas. Eram três vagabundos e nada podiam. Seguissem,
ofendidos”527; “O velho viaduto Santa Efigênia ficava solene na sua velhice
de construção antiga e mais velho, àquela hora de calma. O viaduto velho, os
prédios novos, muito enormes se atirando em vertical, dormidos agora. Visto
de cima, o Vale do Anhangabaú era um silêncio grande de duas tiras pretas
de asfalto”528; “Na rua comprida, parada, dormida — vento frio, cemitério,
hospital, trilhos de bonde; bar vazio, bar fechado, bar vazio...” 529; “Pinheiros
dormia de todo; nem gente, nem carros, na rua Teodoro Sampaio nenhum
bonde passava”.530

521
Idem, p. 49.
522
Idem, p. 66.
523
Idem, p. 67.
524
Idem, p. 72.
525
Idem, p. 131.
526
Idem, p. 133.
527
Idem, p. 139.
528
Idem, pp. 139-140.
529
Idem, p. 143.
530
Idem, p. 144.
257

A cidade, ao que parece, é uma fonte de tristeza, como ele diz em suas
cartas: “Nas ruas há muita gente feia. Mal vestida e sofrida. Os tipos
marcadíssimos. Mal vestidos na concepção e na realização. Para que o
marrom, o preto, ou o horrível azul fechado? Nem… / Nem se enxergam que
não são complicados e pálidos. / (…) / E os corpos deformados. Há banhos
dispensáveis como há pêlos a aparar como há peitos que se deviam levantar.
Também há cabeças que se deviam levantar, como há ânimos./ E nem sei
porque repito essas coisas. Todos sabem que na terra o clima é ruim, a
cidade é ruim. Não tem verde, não tem mar. A gente se lembra que era
preciso fazer esporte quando vê um jogador de futebol, moreno e bonito, nas
ruas. Aparecem, empertigados, diferentes, superiores”.531
Há, entretanto, na representação de São Paulo feita por João Antônio,
um outro elemento importante, a luz elétrica. Ela desempenha inúmeras
funções. Em alguns momentos, compõe o tom geral da cena:
“Os luminosos ainda resistiam, os postes de iluminação com seus três
globos ovalados eram agora de todo silentes, e atiravam sobre a cidade um
tom amarelo, desmaiado, místico no sossego geral da hora”.532
Em outros, marca as fases do dia, e portanto distribui novos papéis a
todos:
“Bacanaço deu com a primeira luz. Lá no meio da cara da locomotiva.
Num golpe luzes brotaram acima dos trilhos dos bondes. Os luminosos dos
bares se acenderam e a fachada do cinema ficou bonita./ A Lapa trocava de
cor”.533
Em outros, ecoa a subjetividade dos narradores/protagonistas:

531
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 13/06/61.
532
Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 142.
533
Idem, p. 108.
258

“Dali eu via o luminoso de seu Teikan e adivinhava o quarto dela.


Fumei muito olhando para o luminoso. (...) Luzes iam, sumiam na avenida.
O luminosos de seu Teikan brilhava, se apagava, brilhava. Tive a impressão
de que ele sabia o que se passava comigo. Zonzo, caminhei para ele”.534
E ainda lhes serve de colírio para os olhos. Aparecendo à noite, como
uma Lua feita pelo homem, ameniza os contrastes, suaviza os contornos da
realidade, inspira os corações:
“Olhava para as luzes do centro da Avenida, bem em cima dos trilhos
dos bondes, e pareceu-lhe que elas não iriam acabar-se mais. Gostoso olhá-
las”.535
“Lua lá em cima, o menino olhou. Já se percebia, à frente, o contorno
do Mosteiro de São Bento também sossegado no seu jeito antigo. Luz
elétrica dos postes jogava uma calma...”536
“Uma, duas, três, mil luzes na avenida São João! (...) A cidade
expunha seus homens e mulheres da madrugada. E quando é madrugada até
um cachorro na Praça da República fica mais belo. Luz elétrica joga calma
em tudo.”537
Mas nem sempre a luz elétrica conseguia esconder a degradação da
cidade, da natureza que a cerca e das pessoas que nela vivem: “Até há
pouco, aquilo era do futebol da molecada. Indústrias querem surgir
acompanhando a estrada de ferro, acompanhando tudo, provavelmente serão
usinas de concreto. Várzea escura, breu. Meu pai disse-me que, quando
menino na Europa, transpunha vales escuros, para pastoreio, onde lobos

534
Idem, pp. 32-33.
535
Idem, p. 64.
536
Idem, p. 140.
537
Idem, p. 128.
259

uivavam. Aqui há mosquitos e fartum do cortume próximo. Luzes ao longe,


luzes da serraria”.538
“O ônibus rolava pelo viaduto. Rio sujo lá embaixo. Ainda dizem ser
grande coisa lá na escola. (...) Mas dizer-se maravilha do rio fedorento, lá
isto é asneira da grossa. Até um ignorante como eu, percebe. Xingam isto de
nome indígena...”539 O mundo natural, em seu estado puro, parece mesmo
distante da cidade e da vida cotidiana, e o mar de Santos, o pico do Jaraguá
longe no horizonte, são últimos elos entre o homem e a paisagem natural.
Mesmo uma singela manifestação da natureza só pode ser observada no
quartel, como já foi dito, um lugar meio à parte no espaço urbano, que tem
outro ritmo: “Agora o pardal mais a fêmea faziam festa no fio”.540
Mas a degradação pior era a das pessoas, privadas de sua humanidade.
Elas deixam de fazer o que amam, por doença ou por dinheiro, ou
simplesmente por falta de tempo. Elas se rebaixam por necessidade, perdem
o direito à poesia e ao amor. E ao próprio tempo. No movimento do qual não
podem fugir, distanciam-se umas das outras, ou se chocam. Um dos
exemplos mais fortes da degradação humana na cidade, conforme João
Antônio, está em “Malagueta, Perus e Bacanaço”: “A rua estreita, escura. De
um lado e de outro, falhas no calçamento, basbaques espiavam e malandros
iam a perambular. Mulheres da hora moviam as cabeças para a direita, para a
esquerda, para a frente, na tarefa de chamar homem. A pintura nas caras e
nos cabelos se exagerava e elas encostavam-se às beiradas, mascavam

538
Idem, p. 76. De passagem, mais um elemento autobiográfico vale menção, pois, como se viu no Cap. 1,
o pai de João Antônio foi efetivamente pastor de ovelhas em Portugal.
539
Idem, p. 73.
540
Idem, p. 38.
260

coisas, fumavam muito. Ficavam nos cantos, intoxicadas, para enfrentar a


rua. (...) / A Amador Bueno era triste”.541

Estado de ebulição

“Lá [na revista Anhembi, por indicação de Mário da Silva Brito],


muito possivelmente, sairá um conto que atende pelo nome de ‘Meninão do
Caixote’. Segundo a opinião de dois amigos, Mário da Silva Brito e Jorge
Medauar, a temática por mim ali erguida é completamente nova na literatura
brasileira. Além do que, meus exagerados amigos acham que o conto, quase
uma novela, é uma obra-prima. Nem tanto, Ilka. Eu lhe garanto. O conto é
feliz, eis tudo.”542
“Meninão do Caixote”, de fato, viria a ser um conto pelo qual João
Antônio desenvolveu especial carinho. Escrito ao longo de 1959, em 1960,
ano em que foi publicado pelo O Estado de São Paulo, ainda ecoava na
cabeça do autor: “Rememoro ‘Meninão do Caixote’, mentalmente vivo a
história e redescubro que ainda a amo e que não minto — quando
escrevo”.543 Seis meses depois, revê todo o texto do conto.544 Em 1962, o
conto sai na revista da Academia Brasileira de Letras, por intermédio de
Paulo Rónai, e no mesmo ano ganha prêmio na Tribuna.545
“Meninão do Caixote” é, ao mesmo tempo, por tudo que sua
correspondência demonstra, um dos contos que mais lhe deu trabalho. O
processo de composição é cheio de idas e vindas, e suas cartas demonstram
541
Idem, p. 131.
542
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/09/59.
543
Idem, de 19/12/60.
544
Idem, de 09/06/61.
545
Idem, de 26/12/62.
261

uma ansiedade e, por vezes, uma insatisfação insuperável: “Passo-lhe meu


‘Meninão do Caixote’./ A você, que escreve também, será fácil compreender
certas durezas da fatura literária. Vai encontrar frases riscadas, palavras
manuscritas voando à cabeça das datilografadas./ Carrego comigo a angústia
de sempre achar que uma redacão ainda não está no ponto, e por isso, não
está pronta. Falta isso, sobra aquilo. À noite, hora da gente dormir, cinema,
televisão, qualquer coisa, é minha hora de correr atrás das imperfeições.
É...”.546
Nesta mesma carta, chega a ser divertido vê-lo encontrando pequenos
defeitos, repensando cada linha do conto: “Desgraçadamente fedia na
segunda página um cacófaton — a ‘Lapa tinha’. No entanto me escapou, me
escapou, me escapando, como se não existisse. Já no finzinho da terceira
página, havia uma dessas grandes proposições primárias. Muitas palavras
não dizendo nada. Primária, infantil. Era assim: ‘Ademais, não é comum em
São Paulo, entre pessoas desconhecidas, essa camaradagem franca, de
primeira mão, gostosa, que nos dá vontade de ficar conversando com uma
pessoa’. Ora, não era ficção. Parece-me, agora, que, essa coisa, só se
prestaria para reportagem, ou algum relatório sociológico. De mais a mais,
tem ranço de dogma”.547
Mas, apesar de uma certa insatisfação insuperável, ele parece
consciente de que está abrindo uma fronteira, fazendo alguma coisa que
ninguém, nem ele próprio, fizera antes: “Leia com calma, viu? (...) Nem se
deixe carregar pelas vantagens do conto — novidade do tema, vocabulário
especial, atmosfera original, etc. Veja friamente”.548 Ou: “O tema é
excelente e a realização supera certos avanços na literatura paulistana, como
546
Idem, de 10/11/59.
547
Idem, ibidem.
548
Idem, ibidem.
262

os de Antônio de Alcântara Machado, por exemplo. (...) Pode crer que não é
modéstia não. A coisa que eu menos tenho é modéstia”.549
Ele, portanto, percebia que seu jeito de escrever estava mudando, e a
avaliação crítica que fazia do conjunto de seus escritos até ali, oscilante ao
extremo, refletia esse momento de mutação estética. “Meninão do Caixote”
não era o único conto a ser constantemente reavaliado, mas estava no bolo.
Esta oscilação já se verificava em 1960. Falando de “Afinação da arte
de chutar tampinhas”, ele menciona esta constante mutação: “Por isso, de
quando em quando, aqui, ali e além, reconheço surgir algum recurso que é e
não é suficiente para a minha atual concepção de conto. E assim, de chute
em chute, entre uma e outra calçada, aparece muita coisa que mais parece
crônica. Não quero refazer o conto, agora. Parece-me que sou um péssimo
artesão, sabe? Quando escrevo um conto é porque estou vivendo-o há
tempos, não haverá libertação se não houver eclosão do fardo. Muito
necessário fazê-lo — se não o escrever (palavra de honra) a vida passa a não
prestar./ Uma vez escrito, morreu. Não quero mais saber. (...) Isto se deu
com ‘Afinação’. Surgido, desejado, amado, realizado, esquecido. E tchau.
Qualquer outra coisa na vida já me picava. [grifos meus]”.550
“Garanto-lhe, entretanto, não ser [o conto “Afinação da arte de chutar
tampinhas”] tudo o que dele você espera. Quando o escrevi pareceu-me
estranho, original, vibrante. Hoje, parece-me tolo.”551
E até 1965, pelo menos, o processo continua, e dele não escapa o
conto que, para muitos, é sua obra-prima, “Malagueta, Perus e Bacanaço”:
“Isso tudo, fatalmente, vai influir na minha literatura. E posso entrever uma
realidade esmagadora: eu preciso reler quase todos os autores que li, que eu
549
Idem, de 23/09/59.
550
Idem, de 14/03/60.
551
Idem, de 07/03/60.
263

não entendia totalmente antes. Por inexperiência de vida e até cultural, sob
certo aspecto. Eu, hoje, não escreveria mais os contos de Malagueta, Perus e
Bacanaço. Dificilmente sairiam como saíram. Talvez sobrassem apenas
dois, ‘Fujie’ e ‘Meninão do Caixote’. A própria história principal do livro
seria reescrita, porque, embora não pareça, ali existe muita coisa falsa e
‘literária’, para agradar aos ‘literatos’, ‘críticos’ e ‘editores’/ Ilka, é uma
mudança muito grande para que eu consiga extrair uma essência agora, já,
de pronto. Acho que é preciso madurar o fruto”.552
Porém, no momento de composição de “Meninão do Caixote”, são os
contos iniciais que estão na berlinda, eles são o modelo a ser superado. Neles
está espelhado o jeito de escrever que, para o escritor, começa a demonstrar-
se insuficiente.
As mudanças pelas quais passava seu trabalho eram de duas
naturezas. Uma diz respeito a uma diminuição do coeficiente autobiográfico
em seus contos.
Todos os oito primeiros contos do livro, como já se viu, apresentam
ligações fortes entre autobiografia e fabulação literária. Nuns, predominam
ligações diretas, e estes muitas vezes caracterizam-se pelo uso da primeira
pessoa e de um tom confessional, introspectivo, absolutamente pessoal. Em
outros — notadamente, na ordem em que foram escritos, “Frio” (1955),
“Retalhos de Fome Numa Tarde de G.C.” (1958), e “Meninão do Caixote”
(1959) —, tais ligações se dão de forma indireta (não por acaso, nos dois
primeiros a narrativa é feita em terceira pessoa), a partir de um “fundo
autobiográfico”, que foram a experiência na caserna e a convivência com os
jogadores de sinuca e com a alta e baixa malandragem.

552
Idem, de 09/10/65.
264

Mas não parece absurdo afirmar que “Meninão do Caixote” parece


marcar uma virada neste aspecto. Depois deste conto, João Antônio entra
numa safra em que o cruzamento direto entre vida e obra simplesmente pára
de ocorrer, a moldura autobiográfica que dá o tom da primeira leva de
contos se desfaz, sendo substituída por uma elaboração mais indireta de suas
experiências pessoais. A nova safra continua com “Malagueta, Perus e
Bacanaço” (1962), “Paulinho Perna Torta” (1964) e, no ano de 1975, com
seu segundo livro, que reúne os contos “Leão-de-chácara”, o conto-título,
dois outros contos, que são “Três cunhadas — Natal 1960” e “Joãozinho da
Babilônia” e o próprio “Paulinho Perna Torta”. Após “Meninão”, numa lista
de sete contos, nenhum remete diretamente a sua história pessoal. Ao que
parece, a experiência e a ficção encontram um novo equilíbrio no interior de
sua obra.553
Em 1965, após a publicação de “Paulinho Perna Torta”, instado a
escrever um romance, ele diz: “O romance. Acertou em cheio. Nem vou
falar. A única solução minha (e que aceito com alegria) para a frente é o
romance. (...) Apenas o seguinte, Ilka: no romance, ou antes, num romance,
não cabe fazer o que pretendo. Eu vou partir para a saga. Eu lhe conto.
Preciso contar tudo o que vi, vivi, sofri, conheci em São Paulo. Bem.
Tenho, sem exagero e de pronto, vinte personagens consumadas. Homens,
mulheres, crianças, velhos, botequins, curriolas, ambientes opostos e
contraditórios, um mundo. (...) Então, a própria vivência, interpretada e
meditada, me trouxe a solução estética e técnica. A saga. (...)/ Não me perco,

553
Como se verá no Cap. 4, no que se refere à dicotomia vida e obra, referências autobiográficas e ficção,
que já tão cedo vivia momento de reequilíbrio, em prol da ficção e rumo ao distanciamento das
experiências diretas, o jornalismo, mais tarde, criaria ainda a instância da experiência indireta, nem ficção
nem autobiografia, testemunho. A veia autobiográfica de João Antônio nunca deixou de existir, mas
quando reapareceu já veio assumidamente separada da ficção, com textos cujo caráter literário decorre
exclusivamente da elaboração estilística, e não do cruzamento vida e fabulação.
265

que eu vi e sofri e vivi tudo o que vou contar. Vai de primeira pessoa, vai de
terceira. Farei uma saga. (...) Minha vinda para o Rio de Janeiro está, de
certa forma, me dando uma visão um tanto diferente do mundo ou mundos
que vi em São Paulo. Um sentir mais amadurecido e muitíssimo mais real,
menos lírico, menos paternal. Um paternalismo que apenas comecei a perder
em “Paulinho Perna Torta”. (...) / Corro um perigo sério. Como Pratolini,
esses livros (romances, sagas) poderão ter cheiro forte de autobiografia. O
que devo evitar a todo custo”.554
Mas a segunda natureza das mudanças que estão ocorrendo na época
não dizem respeito ao coeficiente autobiográfico da sua produção, mas a seu
estilo. No Cap. 2 já se viu que, quando escrevia seus contos de estréia,
enquanto trocava idéias com seus interlocutores literários, em especial Ilka
Brunhilde Laurito e Caio Porfírio Carneiro, especulando sobre os motivos de
o homem paulistano, urbano, não ser objeto de uma literatura tão
característica quanto o homem rural, mineiro ou nordestino, de um
Guimarães Rosa ou da turma de Paulo Medauar e companhia, com destaque
para Osório Alves de Castro, João Antônio começava a rejeitar sua
representação do mundo até ali.
“Meninão do Caixote” é o primeiro conto em que a inovação na
linguagem é tematizada por ele em suas cartas. E o fenômeno se aprofunda
durante a redação da novela-título de seu livro de estréia:
“Creio em ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’. Como em tudo o que
escrevi, acredito nos meus vagabundos. Mas desta vez é diferente o sentir.
(...) Tenho a certeza humilde, quieta e grandiosa que estou diante de uma

554
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 01/07/65.
266

obra de arte e minhas mãos, meu coração, meu todo pulsar de vida carregam
uma enorme responsabilidade”.555
“Bato-me na faina dura de explicar o que se passa nas almas de três
sujeitos, que você conhece pelos nomes: Malagueta, Perus e Bacanaço. Os
safados andam irrequietos na fala, nos gostos chinfrins e teimam sempre em
esconder alguma coisa. Vivem fingindo e domá-los é um custo. O conto
anda pela décima-terceira página datilografada em papel ofício, não sei se
trinta páginas darão para abrigar aquele mundo. A fatura é difícil, para o
malandro uma palavra tem trezentos significados, porque como nas suas
outras coisas a fala prolifera negaças, manhas num intrincado rebolado. [ele
então anexa um longo trecho do conto] Este trecho, como é natural, não é
definitivo. O conto está ainda em estado de ebulição. Imporei tratamento
mais rigoroso porque a forma atual não me agrada, ainda.”556
“Vou-lhe confessar que ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’, cuja refeitura
está me consumindo é uma tentativa de encontrar uma linguagem paulistana
de determinado grupo. (...) E vislumbro, emocionado, que a linguagem
paulistana para os problemas de São Paulo levará uma vantagem sobre a
linguagem nordestina — problemas mais universais criam uma linguagem
mais universal.”557
A julgar por estes trechos, insinua-se a hipótese de que o abandono do
tom intimista dos primeiros contos, bem como o novo e mais elaborado
tratamento dado ao material autobiográfico, foram acompanhados por uma
mutação estilística, que nasce em “Meninão do Caixote”, conto híbrido em
tudo — por misturar reminiscências pessoais e trama imaginária de forma a

555
Idem, de 06/06/60.
556
Idem, de 24/03/60.
557
Idem, de 27/01/62. Esta carta é escrita já durante o processo de reescritura de “Malagueta, Perus e
Bacanaço”.
267

que a segunda prevaleça; por combinar recursos estilísticos comuns nas


primeiras histórias a outros da segunda fase, que ficariam mais evidentes a
partir de “Malagueta, Perus e Bacanaço”.

Da autobiografia descontínua à fantasia em liberdade

Não é muito difícil demonstrar que, a altura do oitavo conto do livro


Malagueta, Perus e Bacanaço, “Meninão do Caixote”, configura-se uma
mudança no estilo de João Antônio, que essa mudança avança ainda mais no
conto título, e que ela atinge seu ápice na novela escrita logo no ano seguinte
à publicação do livro, “Paulinho Perna Torta”. Estes novos conceitos
estilísticos jamais seriam abandonados, receberiam apenas o influxo das
técnicas jornalísticas, o que será tema do Cap. 4 deste trabalho.
Uma primeira mutação constitutiva dos contos que pode ser citada é a
mudança de peso e, em alguns casos, de função, dos cortes de continuidade no
interior das narrativas. Nas histórias iniciais, marcados por simples vinhetas
gráficas, mas sem títulos, estes cortes de continuidade têm mais de uma
função. Tomemos alguns exemplos ao acaso.
“Busca”, o conto de aberturas do livro, é dividido em três partes. Na
primeira, que se passa no presente da narrativa, há uma apresentação do
narrador, de seu mundo familiar e profissional. Após o primeiro corte, há um
flashback, desenrola-se seu drama no mundo do boxe, o abandono forçado a
tão sonhada carreira de lutador. Em seguida, após o segundo corte, uma cena
na casa de um colega de trabalho dá seqüência ao momento presente.
“Afinação da Arte de Chutar Tampinhas”, um conto praticamente sem
trama, possui três cortes: na primeira parte, o narrador, que fala no presente,
268

recorda o tempo de juventude, futebol e samba; na segunda, também no


presente, ele recorda os tempos de quartel; na terceira, apresenta sua
“mania”, que dá título ao conto, e elabora sobre as diferenças entre as
tampinhas e descreve as várias formas de chutá-las; por fim, na última
unidade narrativa, fala do novo emprego que odeia e reclama da mãe.
“Frio”, por sua vez, tem quatro cortes de continuidade. No começo, o
protagonista é apresentado, a ação central do conto já está ocorrendo e é
mencionada uma figura que permanece misteriosa, Paraná; depois do
primeiro corte, vai-se para um passado recentíssimo, no qual a ação já em
andamento na primeira parte é explicada; depois do segundo corte, a ação é
suspensa para uma visita a um passado menos recente, que explica quem é
Paraná e como ele e o protagonista se conheceram e que tipo de relação têm;
depois do terceiro corte, de volta ao presente, outras pessoas das relações do
protagonista e de seu “protetor” são descritas; por fim, após o quarto corte
de continuidade, a ação é retomada até o final.
“Visita”, como último exemplo, tem início no presente, mas com o
narrador relembrando um passado recente, quando era jogador de sinuca
com “o formidável Carlinhos”; após o primeiro corte, é apresentado o meio
familiar e profissional do narrador, e neste ponto começa a ação do conto,
isto é, a ida do narrador à casa do antigo companheiro de jogo; após o
segundo corte, o conto volta a mencionar o ambiente familiar do narrador e,
mais especificamente, seus problemas com a irmã e suas amigas; depois do
terceiro corte a ação principal é retomada e o narrador chega à casa do
amigo, que saiu, conforme a irmã dele informa ao visitante. O narrador então
perambula pelas ruas, entra num bilhar e por fim volta para casa, maldizendo
a vida.
269

Como se vê, na maior parte dos primeiros contos, os cortes de


continuidade têm duas funções principais. Uma delas é marcar as
alternâncias cronológicas. “Fujie” e “Natal na Cafua” são os dois únicos
contos de fluxo temporal linear, enquanto nos demais há sempre flashbacks
para o passado remoto ou recente do narrador e/ou protagonista.
A segunda função primordial dessas “quebras” é criar intervalos na
ação principal, que permitam informar ao leitor detalhes sobre a vida
cotidiana do narrador ou protagonista, e assim criar sub-tramas, quase nunca
desenvolvidas, mas que explicam ou pelo menos enriquecem a introspecção
do narrador ou a subjetividade do protagonista.
Nesses dois contos de fluxo temporal linear, no entanto, os cortes de
continuidade continuam narrando a mesma trama e num fluxo linear, mas
servem para “comer”, “pular”, partes da ação. Ou seja, uma terceira função
dos cortes é acelerar o ritmo da história narrada.
Os trechos separados por esses cortes de continuidade são de tamanho
extremamente variável, podendo chegar a algumas páginas ou a dois
parágrafos apenas. E os contos, por sua vez, variam de cinco a onze páginas,
aproximadamente. Mas então chega-se a “Meninão do Caixote”, de dezoito
páginas, o conto mais longo além do conto-título, que chega a ter a extensão
de uma novela, 58 páginas. Ao encompridar sua primeira narrativa, João
Antônio parece ter sentido necessidade de intercalá-la com nada menos que
dez cortes de continuidade, como que para demarcar, ratificando, seu controle
sobre a matéria ficional. Mas, curiosamente, apenas do primeiro para o
segundo segmento há uma inversão cronológica. O conto começa pela
conclusão: “Fui o fim de Vitorino”.558 Mas da segunda até a décima-primeira
parte a trama ganha linearidade, e os cortes são apenas de continuidade,
558
Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, RJ, 1963, p. 81.
270

servem, como em “Fujie” e “Natal na Cafua”, para acelerar a narrativa,


fazendo-a cobrir o espaço de meses, talvez anos, e ainda fazê-la caber no
tamanho de um conto.
Pela primeira vez o escritor parece, portanto, querer transbordar o
formato que elegera para sua produção literária, a chamada “narrativa ficional
curta”, ou seja, o conto. Em paralelo ao processo de descolamento da
autobiografia que se verifica nas duas narrativas finais e nos textos que vieram
imediatamente após o livro de estréia, a fabulação de João Antônio parece
ganhar força, crescer, tomar conta, e se espraiar. Mas, em “Meninão do
Caixote”, algo ainda o contém, o impede de se demorar nos recortes das
margens de seu fluxo narrativo, ampliando o tempo e o espaço de sua
literatura. Daí a existência de tantos cortes. Mas, se quisesse, e ele chegou
mesmo a pensar nisso, João Antônio poderia tranqüilamente ampliar este
conto e transformá-lo em novela, ou até mesmo em romance. Mais do que nos
anteriores, “Meninão do Caixote” tem uma galeria de personagens ampla e
facilmente explorável, e uma trama que parece não caber em menos de vinte
páginas.
Desse ponto de vista, pode-se dizer que “Meninão do Caixote” é um
conto híbrido; ainda tem a fragmentação comum nas primeiras histórias, mas
seu vetor cronológico é mais poderoso que a maioria. E há uma longa história
a ser contada. Diminui drasticamente o tom confessional autobiográfico dos
demais contos, apesar da narrativa em primeira pessoa. Há um sentido
ficcional mais aventuresco que nos demais. O tempo não é o da introspecção
melancólica, no quartel, nos trens de subúrbio, nos botequins e bilhares, nem o
das rusgas familiares cotidianas, repetitivas e também fonte de melancolia,
pois inúteis e imutáveis; o tempo é o acelerado da trama que, com a ajuda dos
cortes de continuidade, comprime muito matéria em pouco espaço.
271

“Malagueta, Perus e Bacanaço” dá sequência a ambos os processos de


mutação na obra do escritor: decanta-se a dose de autobiografia, que passa a
fazer uma base disseminada, menos perceptível, e batem mais forte as asas do
vôo ficional; a matéria a ser tratada também parece exigir mais espaço, talvez
libertada do movimento ambivalente de mostrar e esconder tão típico dos
textos autobiográficos. Ela agora pode se mostrar livremente, sem ameaçar a
privacidade do escritor.
Sintoma disto é que apesar, do tamanho descomunal em relação aos
demais contos, esta novela tem apenas cinco sub-divisões. Mas, aqui, essas
sub-divisões, cada com o nome de um bairro, deixam de ser cortes, pois o
fluxo da trama é linear do começo ao fim. Não há sequer acelerações e
passagens de tempo entre um corte e outro. E as eventuais suspensões da
trama, quando ocorrem — como por exemplo na passagem em que o narrador
em terceira pessoa expõe ao leitor os planos que Malagueta faz de
comemorações com a prostituta com quem vive, ou na passagem em que é
descrita a caftinagem de Bacanaço com Marli, ou ainda nos trechos em que
Perus sonha com uma vida melhor em outros bairros da cidade —, não
guardam qualquer relação com as sub-divisões explicitadas pelos nomes dos
bairros por onde os três malandros vagueiam à procura de jogo. Lapa, Água
Branca, Barra Funda, Cidade, Pinheiros e Lapa novamente, marcam o fluxo da
trama, jamais seus desvios cronológicos ou suas suspensões, simplesmente
porque não os há. Os cortes, além de perderem presença, tornam-se
subordinados à ação principal, e não mais interferem em seu fluxo.
O mesmo ocorre em “Paulinho Perna Torta”. Em primeiro lugar, por
mais que a vivência de João Antônio na Boca do Lixo o tenha ajudado a
compor o cenário do conto, e a caracterizar alguns de seus personagens, a
história narrada — de um engraxate que à medida que vai crescendo entra e se
272

destaca no mundo do crime (caftinagem, extorsão, roubo, tráfico, assassinatos


etc) — está evidentemente muito longe da autobiografia do escritor. A
adolescência do personagem passada em cima de uma bicicleta e seu caso com
a prostituta Ivete, que têm certamente fundo autobiográfico, como já se viu nos
Caps. 1 e 2 respectivamente, estão contudo longe de desmentir esse viés
ficcional predominante.
Além disso, com quase 45 páginas,559 o conto, ou novela, tem apenas três
cortes. E pelos nomes desses cortes já se deduz qual função exercem e o nível
de interferência que têm na narrativa: “Moleque de Rua”, “Zona” e “De 1953
para cá”. Como se pode ver, assim como em “Malagueta, Perus e Bacanaço”, a
trama principal não admite mais que os cortes a interrompam, invertam seu
fluxo, ou queimem suas etapas. Eles fazem aparições na verdade dispensáveis,
e submergem no fluxo da narrativa.560

559
Antônio, João. “Paulinho Perna Torta”, in Leão de Chácara, Civilização Brasileira, RJ, 1975. Este
número de páginas vale para esta edição, sem contar as epígrafes do conto. Nunca se deve esquecer que,
embora publicada em livros do autor apenas em 1975, a novela “Paulinho Perna Torta” foi escrita em 1964,
apenas um ano depois de Malagueta, Perus e Bacanaço, numa antologia de contistas editada pela mesma
Civilização Brasileira.
560
Prestando atenção nesse aspecto dos livros futuros de João Antônio, percebe-se que ele nunca perderia a
mania de pontuar seus contos com subdivisões. E o futuro faria com que a veia autobiográfica voltasse a se
fortalecer, e se tornasse uma das marcas mais recorrentes do universo literário do autor. Mas, nesse
momento, as transformações aqui arroladas de fato estão, temporariamente, minimizando tanto a
característica de estruturação dos contos à base de cortes quanto o apelo da transcrição direta da
experiência pessoal. Uma enorme responsabilidade nesse retorno futuro de ambos os traços de seu estilo
inicial — seria possível dizer retrocesso? — deve ser creditada ao jornalismo. “Leão-de-chácara”, por
exemplo, nasceu como uma reportagem para a revista Realidade, como se verá no Cap. 4, e, nem mesmo
numa revista tão moderna, no conteúdo e na forma, absorveria matéria tão longa sem a inclusão de alguns
“chapéus”, como se diz no jargão jornalístico, isto é, pequenas subdivisões que indicam minimamente o
rumo do texto, e dão um tempo para o leitor respirar.
273

Um estilo bem comportado

Essa mudança na estrutura dos contos de João Antônio nos preparam


para outro tipo de mudança. Seu fraseado propriamente dito caminha de um
texto bastante contido, depurado, bem-comportado e escorado em balizas
temporais, temáticas etc, para uma linha de trabalho onde a voz narrativa é,
em suas próprias palavras “escarrapachada”561, na qual as histórias são mais
longas, o fluxo é mais direto e menos interrompido, a fabulação decola da
experiência pessoal, o tom informal do vocabulário é acentuado e
enriquecido por uma liberdade bem maior, e uma nova riqueza semântica é
incorporada. Um estilo, enfim, com menos pausas reflexivas, mais embalado
pelo ritmo da oralidade.
Pode-se ver que, entre 1960 e 1964, muda sua maneira de combinar as
palavras numa sentença, as sentenças num parágrafo, e sua gama vocabular.
No Cap. 2 viram-se as motivações conceituais que provocaram tais
mudanças. Repetindo: “Tenho feito sondagens e pesquisas, que talvez me
levem ao entendimento do ‘porquê’ e ‘como’ não possuímos ainda uma
literatura paulistana tão definida quanto a nordestina. E eu hei de descobrir o
‘porquê’! Alcancei algumas conclusões parciais e continuáveis — a ausência
de uma linguagem paulistana, especialmente, e o desconhecimento por parte
dos escritores do homem paulistano (...) Acredito, até agora, que se eu partir
de um conhecimento verdadeiro do homem que vou trabalhar, das suas
formas de comportamento aparente e inaparente, encontrarei a sua
linguagem, literariamente. E maliciosamente evitando cacoetes e
idiossincrasias (...) estarei próximo de tal linguagem”.562

561
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 26/05/60.
562
Idem, de 27/01/62.
274

Mas como as transformações se manifestam de fato? Um bom


começo é analisar trechos de alguns dos contos do livro de estréia.
Tome-se, ao acaso, o início de “Busca”:
“— Vicente, olha a galinha na rua!
Abri o portão, a galinha para dentro. Mamãe tinha o avental molhado
do tanque. Um balde pesava no braço carnudo.
— Deixa qu’eu levo.
Derramei, fiquei olhando a água no cimento. Aquilo estava era
precisando duma escova forte. Começo de limo nas paredes. Sujeira.
Quando voltasse daria um jeito no tanque. As manchas verdes sumiriam.
— Vai sair já? Espera o sol descer um pouco.
Que sol, que nada… Queria sair. Um domingo tão chato! Depois do
almoço as coisas ficam paradas, sem graça. Mamãe não precisava lavar
roupa aos domingos. Eu lhe digo. Bobagem. Ela nem responde, os olhos no
chão. Bota um sorriso na boca, agradecendo, como se eu estivesse
elogiando.
Andando. Um ar quente me batendo na cara. Daniel me havia
convidado para futebol na televisão, havia também Lídia… Por que diabo
essa menina cismou comigo? Vive de olhadelas, risinho, convite para festa
de casamento. Pequenina, jeitosa. Mamãe e ela se dão muito. Lá com suas
costuras e arrumações caseiras. Eu não quero é nada”.563
A primeira observação que ocorre é o tom direto e econômico das
frases, que chegam inclusive a eliminar certas partículas de conexão. Como
por exemplo na frase “Abri o portão, botei a galinha para dentro”, na qual a
vírgula substitui o “e” que poderia perfeitamente dar uma seqüência menos
pausada à ação. O mesmo acontece em “Derramei, fiquei olhando a água no
563
Antônio, João. “Busca”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, RJ, 1963, pp. 11-12.
275

cimento”. Ou em “Pequenina, jeitosa”, frase que, além do “e” que conectaria


os adjetivos, poderia muito bem começar com um “Ela era”, ou “Bem que
ela era”. Também na frase “Daniel me havia convidado para futebol na
televisão (…), caberia um “para assitir ao”, ou “para um futebol na
televisão”. Mas tudo é sempre feito a favor da máxima economia. E não
apenas na eliminação de conectivos está presente a contenção do estilo.
Veja-se a frase: “Mamãe não precisava lavar roupa aos domingos. Eu lhe
digo. Bobagem”. Pensando bem, uma mesma frase está decupada em três,
cuja ordem é invertida para que dê sentido. A frase teria uma ordem muito
mais direta se fosse: “Eu digo a mamãe que ela não precisava lavar roupas
aos domingos, mas é bobagem, e ela nem responde”. Mesmo a frase “Ela
nem responde, os olhos no chão”, na verdade parece omitir algo, “com os
olhos no chão”, ou “pondo os olhos no chão”, por exemplo.
O conto seguinte, “Afinação da Arte de Chutar Tampinhas”, começa
assim:
“Hoje meio barrigudo.
Mas já fui moleque muito bom centro-médio. Pelo menos Biluca
assegurava que eu era. E nunca peguei cerca nos quatro anos de U.M.P.A.
— queria dizer: União dos Moços de Presidente Altino. A voz de Biluca
mandava, porque era técnico e dono das camisas. Se era técnico de verdade,
não sei. Sei que as camisas eram suas, e sem elas não havia jogo. Mas a
família se mudou, o ginásio chegou e a presuncão de bom centro-médio foi-
se embora.
Na Mooca, agora, eu via os moleques do Caiovás F. C. Papai vivia me
apertando na escola. Era o único jeito, porque não estudaria de outro. Eu via
os moleques e não podia jogar.
276

À boca da noite os grilos e os sapos já cantavam nas poças do campo


da U.M.P.A. Depois da janta, cada um vinha do seu lado e a gente se juntava
na sede. Então folgados, fumávamos à vontade e contávamos coisas. Havia
certo ar de homem na gente enquanto fumávamos. Sérios nas calças curtas, o
dedo batendo no cigarro, a cinza caindo no chão. Contávamos coisas,
vantagens”.564
Neste início, embora algumas passagens incluam os elementos de
conexão entre as partes da frase — “fumávamos à vontade e contávamos
coisas”, “A voz de Biluca mandava, porque era técnico e dono das camisas”
—, há o caso de “Mas já fui moleque muito bom centro-médio.”, em que
uma vírgula, ou um “e”, cairia bem para dar uma fluência mais natural à
frase. E em pelo menos uma outra passagem, bastante eloqüente, este trecho
demonstra a mesma sintomática tendência à economia. Veja-se, por
exemplo, a passagem “nos quatro anos de U.M.P.A. — queria dizer: União
dos Moços de Presidente Altino”. O travessão elimina o “que”, capaz de
emendar uma parte da frase na outra.
Porém, mesmo quando as partes que compõem as frases se juntam
com a ajuda dos conectivos usuais, há uma segunda manifestação da alegada
economia de seu estilo inicial. É que a maioria dos raciocínios do narrador
tem um andamento comum, interrompido, ou pelo menos sincopado, que se
reflete nas frases e poderia ser esquematizado numa seqüência de 1, 2 e 3
partes. Por exemplo:
“Hoje meio barrigudo. (1)/ Mas já fui moleque (2) muito bom centro-
médio(3)”. Ou: “A voz de Biluca mandava (1), porque era técnico (2) e dono
das camisetas (3). Ou: “Na Mooca (1), agora (2), eu via os moleques do
Caiovás F. C. (3)”. Ou: “À boca da noite (1) os grilos e os sapos já cantavam
564
“Afinação da Arte de Chutar Tampinhas”, idem, pp.17-18.
277

(2) nas poças do campo da U.M.P.A. (3) Depois da janta (1), cada um vinha
do seu lado (2) e a gente se juntava na sede (3)”. Ou: “Então folgados (1),
fumávamos à vontade (2) e contávamos coisas (3)”.
O mesmo vale para o início de “Busca”: “Um domingo tão chato! (1)
Depois do almoço as coisas ficam paradas (2), sem graça (3). Mamãe não
precisava lavar roupa aos domingos (1). Eu lhe digo (2). Bobagem (3).”
“Bota um sorriso na boca (1), agradecendo (2), como se eu estivesse
elogiando (3)”.
Há um padrão rítmico muito presente, com certeza.
Entre as demais características que sobressaem nesses contos iniciais
de João Antônio, estão o vocabulário simples, com uma ou outra gíria,
marca de oralidade ou expressão idiomática, mas cujo significado jamais
fica obscuro ao leitor e, sobretudo, o fato das frases, marcadas pelas elipses
acima exemplificadas ou não, serem muito diretas. Muitas vezes, após a
variação 1, 2, 3, segue-se uma frase direta, curta, seca.
E em raras oportunidades as estruturas variam grandemente do
modelo acima citado, como acontece em “Golpe, dor, choque, sangue,
escuridão, zoeira, lona.”565
Há uma possível complementaridade entre o estilo sincopado e os
cortes de continuidade que estruturam os contos iniciais. Talvez ambos
fossem instrumentos de controle absoluto sobre o texto, uma tendência
compreensível no escritor iniciante, de origem humilde, que se candidatava a
um campo de atividade muitas vezes idealizado e tido como social e
culturalmente “elevado”, o da literatura. Como se, por defesa inconsciente,
ou estratégia premeditada de inserção, nada pudesse fugir a seu controle.
João Antônio, a julgar por esses primeiros contos, era escritor de estilo
565
Idem, ibidem, p. 13.
278

bastante preciso, calculado, depurado. Assim como a sua inserção no meio


literário foi calculada, e assim como a recepção de seu primeiro livro foi
laboriosamente construída, por meio de seus contatos e do envio de seus
originais a críticos e escritores, poder-se-ia dizer que também seu estilo era
construído com o máximo de racionalidade e critério de economia. Nada
sobrava em suas frases. Muitos significados eram subentendidos. Nada
sobrava em seus parágrafos.
Daí o engano recorrente da crítica, quando diz que ele foi um “escritor
que já nasceu pronto”. De fato, há um acabamento em seus contos iniciais, e
uma força dramática, que parecem de um escritor experiente à primeira
vista. Mas de jeito nenhum sua obra continuou uniforme a partir do primeiro
livro, sem que novos caminhos estilísticos se abrissem. Quem de João
Antônio conhece apenas Malagueta, Perus e Bacanaço, não conhece o
escritor maduro.
Ao se lembrar que o lançamento do livro fez João Antônio ser
comparado a Antônio de Alcântara Machado, por exemplo, pode-se dizer
que, de fato, ambos tinham em comum a já sabida atenção para os
paulistanos, e para a cidade em si. Pode-se dizer que João Antônio, por ser
filho de imigrantes, também começa com um ouvido para a fala
característica de outra nacionalidade, no caso a dos portugueses — como foi
demonstrado no conto “O Prisioneiro”, no Cap.1, e como poderia indicar,
como resquício quase único no livro, a frase “Deixa qu’eu levo”, do também
já analisado início de “Busca”.
Além disso, há, de fato, semelhanças estilísticas. Veja-se, por
exemplo, um trecho do famoso conto “Gaetaninho”, de Alcântara Machado:
“— Chi, Gaetaninho, como é bom!
279

Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o


derrubou e ele não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não
ouviu o palavrão.
— Eh! Gaetaninho! Vem pra dentro.
Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de
sardento, viu a mãe e viu o chinelo.
Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho.
Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo, parou. Balançou o corpo.
Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta
instantânea e varou pela esquerda porta a dentro.
Eta salame de mestre!”.566
Também é um texto composto por frases curtas, de vocabulário nada
rebuscado, que reaproveita certas expressões populares (“grito de mãe até
filho surdo escuta”), que ao discurso indireto combina o direto
fragmentando-o, encaixando-o em frases soltas na seqüência dos parágrafos
narrativos, dando-se ao direito de certos traços oralizantes, como o “pra” no
terceiro parágrafo. E que tira partido das repetições intencionais de palavras,
como aqui ocorre com ‘Ford”, “palavrão” e com o verbo “ver”.
Tome-se uma passagem de “Busca”, e logo se perceberá a semelhança
que levou os críticos da época a aproximarem os dois escritores:
“— Desta vez ele vai!
Girei para a esquerda, soltei o direto. Caprichava tanto, tanta certeza
eu tinha. Aquele mulato não agüentaria mais um round.
Um sujeito lá em baixo:
— Desta vez ele vai!

566
Machado, Antônio de Alcântara. Brás, Bexiga e Barra Funda, IMESP, SP, 1994, pp.23-24.
280

O mulato defendeu, deu uma gingada, ganhou a brecha. Largou o


braço. Que técnica! Quem é que poderia esperar aquilo?”.567
Da mesma forma com Mário de Andrade, outro fundador da linhagem
a qual João Antônio é assolado pela crítica, à época de sua estréia em livro, a
vizinhança estilística é razoável. Veja-se, por exemplo.
“O soco seguiu na trajetória, foi martelar na testa do Tino, peim!
Seco, seco. Tino com um jeito rápido, histérico, não sei como, virou um
bocado entre as pernas de Aldo. Conseguiu com as mãos livres agarrar o
pulso do outro. Encolheu-se todinho em bola e mordeu onde pôde, que
dentada! Aldo puxou a mão desesperado, pleque! Sofreu com o estralo do
dedo que não foi vida. Mas por ver sangue é que cegou.
— Morde agora, filho da puta!
Na garganta. Apertou. Dona Maria entrava”.568
Independente da semelhança ocasional entre o trecho de “Busca” e o
de “Caim, Caim e o Resto”, algumas aproximações formais são possíveis.
As repetições intencionais, a evocação da oralidade, em onomatopéias aqui e
em frases do tipo “não sei como”, ou “que dentada!”. Até a sintaxe
sincopada aparece, quase telegráfica, que parte as frases, “Na garganta.
Apertou. Dona Maria entrava”.
Como se vê, do ponto de vista da tradição, embora décadas o
separassem dos mestres modernistas, seu estilo era realmente bem
comportado, seguindo uma estética pré-estabelecida, palatável aos críticos
mais velhos com que se correspondia.

567
“Busca”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, p. 13.
568
Andrade, Mário de. “Caim, Caim e o Resto”, in Os Contos de Belazarte, Livraria Martins
Editora/Instituto Nacional do Livro, SP, 1972, pp. 56-57.
281

Um Antônio de Alcântara Machado Deprimido

Porém, não obstante as conexões que possamos descobrir, no âmbito


formal, unindo essa trinca de escritores, a índole do livro de João Antônio, é
preciso que se repita, não é a mesma da dos outros dois livros. Talvez pela
carga confessional/autobiográfica, e pela experiência de uma vida difícil,
talvez pelo lirismo herdado de Noel e da Velha Guarda do samba, seus
contos não têm a leveza dos de Ancântara Machado, por exemplo em Brás,
Bexiga e Barra Funda. Ele próprio dizia que dava a seus personagens um
tratamento “de mergulho”, significando que buscava maior profundidade na
observação psicológica, e realmente o que falta em frescor e alegria retorna
sob a forma de densidade dramática. Não se vê, em nenhum dos contos de
Brás, Bexiga e Barra Funda, qualquer tentativa de realmente recriar os
eventuais padecimentos de alma dos seus personagens. Quando muito, eles
são referidos pelo narrador, mas a relação do leitor com estes padecimentos
é distanciada pela própria narrativa.
O mesmo se poderia dizer, por exemplo, do livro Os contos de
Belazarte, de Mário de Andrade, aqui tomado como termo de comparação
por ser, entre seus livros de prosa, aquele umbilicalmente preso à cidade de
São Paulo. Os dois escritores coincidem na atenção à cidade, à fatia
proletária de sua sociedade, a seus habitantes antigos e aos recém-chegados
de outros cantos do mundo, bem como no ouvido para as corruptelas
estrangeiradas do português, ou mesmo para a mistura de línguas num
mesmo universo de comunicação. Porém, ainda que em menor dose em
relação a Alcântara Machado, pois mais malicioso no conteúdo de suas
histórias, num certo humor negro nos desfechos que compunha, nos quais
muitos personagens terminam infelizes, o fato é que, em “Belazarte”, a
282

ausência da nota autobiográfica, a consequente variação muito maior de


enquadramento social dos protagonistas, uma certa ingenuidade intencional
nos diálogos, dá ao livro do mestre modernista uma leveza que o de João
Antônio não tem.
A índole do livro de João Antônio é mais pesada, mais carregada e
melancólica. Em vários contos isso pode ser demonstrado, eis alguns
trechos:
“Tenho sofrido muito nestes meses de quartel, ouvi muito
xingamento, muito deboche e muita ofensa. E tenho me desdobrado tentando
acertar, bestamente. Perco aulas no colégio, me prejudico. Tenho aturado,
agüentado, perdi injustamente meu curso para cabo, sou o melhor motorista
da companhia e dei com o lombo na cadeia duas vezes”.569
Ou: “Ivo andando, andando. Crescia o vazio na barriga, impossível
estar quieto, a banana não fora bastante, não havia o sanduíche. Passou pelo
xadrez, pela casa da guarda, foi para a garagem velha. Agora só havia o
esqueleto da construção. Restos, restos. O portão escancarado, entrou. Não
havia onde se sentar, sentou-se no chão. Puxou o capacete, o pulso limpou a
testa, olhou para o bico do coturno”.570
Ou, por fim: “Bato a cinza do cigarro. A vila é bem mesquinha,
rodeada de fábricas, dezenas de bares, três igrejas, um grupo escolar. O
casario feio abriga mal gente feia, encardida, descorada. Nos meus cinco
meses de vagabundagem eu me acordava tarde, tarde, e podia ver melhor
aquilo. Ia aos bares. As ruas com seus monturos, cães e esgotos, muitas
vezes me davam crianças que saíam do grupo escolar. Não me agradavam
aqueles pés no chão movendo corpinhos magros. Qualquer ignorante podia
569
“Natal na Cafua”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, p. 55.
570
“Retalhos de Fome Numa Tarde de G.C.”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, p.
39.
283

perceber que aquilo não estava certo, nem era vida que se desse aos
meninos. Eu saía do botequim, chateado e fatalmente enveredava mal.
Encabulação, cachaça, erradas, desnorteava-me no jogo. Um sentimento
confuso, uma necessidade enorme de me impingir que não era culpado de
nada”.571
Em Contos de Belazarte, o tom é outro, e mesmo nos momentos de
sofrimento dos personagens a narrativa é atravessada por um humor fino,
gracioso, que dá uma leveza bastante diferente da força confessional e/ou
dos dramas de João Antônio. Um exemplo:
“Nízia escutando. As palavras caíam dentro dela talqualmente flor de
paina, roscando a alma devagar. Foi-se embora mais cedo? Não fazia mal!
Nem soube que eram nove horas, que eram dez e muito mais, ficou sozinha
no trabalho, sem saber que trabalhava, acabando carreira numa conta,
acabando sapatinho, acabando outro sapatinho, escutando. Não tinha nem
bulha na noite fora. Os homens estavam dormindo em São Paulo. Nem
poeria nem grilo nem vento, que nada! Um silêncio de matar gesto no braço.
Nízia tricotando sem saber. A luz do lampião mariposava em volta da cabeça
dela e, no calor seco da sala, as palavras de seu Lemos se pronunciavam
ainda, sonorosas de verdade, como afago doce de companheiro. Nízia sofreu
que você não imagina. Sofreu aquele sapatinho de lã (…)”.572
Como se vê, a dor da personagem não é inteiramente compartilhada
pelo narrador. Os “sapatinhos” que costura, no diminutivo, por exemplo, o
verbo “mariposava”, a expressão de comadre “você não imagina” etc,
produzem um efeito cômico em sua hora de dor ou, no mínimo, atenuam a
intensidade deste sofrimento.
571
“Visita”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, p. 77.
572
Andrade, Mário de. “Nízia, Sua Criada”, in Contos de Belazarte, Livraria Martins/Instituto Nacional do
Livro, SP, 1972.
284

Mas João Antônio já provara ser um homem de grande tino político,


pela forma com que construiu uma rede de contatos literários, embora ainda
fosse inédito e estivesse isolado em Presidente Altino, e não recusaria
filiação tão nobre de forma drástica. Ele aponta diferenças entre o seu “tom”
e o de Alcântara Machado, mas recusá-la inteiramente seria jogar fora um
gancho que só o beneficiava do ponto de vista da recepcão dos contos e do
livro, além de propiciar-lhe algumas oportunidades de trabalho.573 Quanto à
aproximação com Mário, que se saiba, jamais deixou registrado qualquer
comentário. A julgar pelos dias de hoje, e pelo papel de Mário em nosso
universo intelectual brasileiro, recusá-la seria desperdiçar muito prestígio
num arroubo iconoclasta. E, se aceitá-la publicamente também não era muito
autêntico, o melhor seria calar.
Mas, então, se se deseja levantar possíveis fontes para os traços de
estilo, mas sobretudo de índole, presentes no livro de estréia de João
Antônio, onde se deve procurar a origem dessa veia melancólica, desse tom
seco e confessional ao mesmo tempo, esse espírito pouco esperançoso e
desiludido?
Quatro respostas são possíveis, e vale dizer que não são, de forma
alguma, excludentes. Uma primeira fonte de densidade psicológica pode ter
sido, como se viu no Cap. 2, o cinema de arte. Antonioni, Visconti, a
nouvelle vague, o neo-realismo italiano, a turma da Cinemateca (Maurice
Capovilla, Jean-Claude Bernadet, a própria Ilka Brunhilde Laurito etc)

573
Cartas a Ilka Brunhilde Laurito, de 25/11/61, 27/01/62 (nessas ele comenta de um artigo sobre A.A.
Machado que lhe fora encomendado e que ele publicou) e 30/07/64 (“Vai daí, continuo sendo muito
solicitado. Muita gente quer trabalhos literários meus. O pessoal da Vera Cruz já me procurou. Querem
filmar ‘Meninão do Caixote”, que seria incluído num filme de três histórias. Uma de Mário de Andrade,
outra de Antônio de Alcântara Machado e outra minha. Antunes Filho, diretor teatral, também me procura
querendo que lhe arranje assunto para um filme ‘diferente de tudo o que já se fez’ para o público das
europas. O Conselho Estadual de Cultura pede um conto meu, para ser incluído em uma antologia do conto
paulista.”).
285

deram-lhe um gosto por novos caminhos para os sentimentos profundos da


alma humana.
Outra fonte, certamente, foi a poesia. Inúmeros poetas vêm citados em
suas cartas. Talvez a leitura deles tenha inoculado no jovem escritor a
capacidade, e o desejo, de transmitir seu sofrimento de maneira menos
censurada pela obrigação de virilidade, complementar à “literatura de
homem”, sofrimentos estes muitas vezes mais intensos e reais que os de
vários dos prosadores de sua eleição particular. Drummond, sobretudo,
parece haver marcado sua sensibilidade, o que o fazia citar o “Poema de sete
faces” de memória, ou crer sinceramente que “nasceu torto”, ou, num
momento de tristeza, reproduzir os versos “Sozinho no escuro/ qual bicho do
mato,/ sem teogonia,/ sem parede branca a que se possa encostar,/ sem
cavalo que fuja a galope”, e dizer deles, “Ilka, como é verdade!”. 574
Embora ele diga que não entende de poesia575, ela o afeta bastante,
sobretudo nos momentos de melancolia, abatido pelo sentimento de
desajuste: “Sinto do fundo do coração que não sou tão mal. E que aos justos,
à maneira de Jacques Tati, pertence o mundo, por mais desajustados que
estejam. / Também tornei a Fernando Pessoa. Como a poesia, Ilka, me faz
bem! E aqueles sofrimentos, violentíssimos gritos íntimos, não me deixaram
nem triste e nem alegre. Apenas tranqüilidade, como se houvesse passado
por uma purgação, mas a purgação já houvesse passado. É muito poeta
Fernando Pessoa. E como é bom ler quem é autêntico!”.576 Algo semelhante
ele diz, por exemplo, de Baudelaire, referindo-se ao poema “Tristeza da
Lua”, que somente o título já seria suficiente para evocar um estado de alma
lírico e melancólico: “A meu ver e sentir, só um gênio, um poeta, poderia
574
Cartas a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/08/60; idem, de 31/10/61; idem, de 01/09/61.
575
Idem, de 01/07/65.
576
Idem, de 26/05/60.
286

dar esta jóia à humanidade./ Dessas dádivas que só um poeta ‘humano e


bom’, cheio de coragem e de infinita ternura, seria capaz”.577 Coragem e
ternura, virilidade e sopro existencial, é desta química que se originam os
seus primeiros contos.
Outra fonte assumida de melancolia e desencanto é a música. E,
sobretudo, Noel Rosa. O antigo amor pela música, pelo choro [grifo meu],
pela tristeza simples e autêntica, de raiz, dos sambas das décadas anteriores,
pela glória humilde da Velha Guarda, não poderia deixar de ter tido, em João
Antônio, alguma influência marcante. Numa de suas cartas, por exemplo, ele
transcreve de cabeça o samba “Voltaste”, dizendo que “Ali, excele o grande
espírito do sambista, sua riqueza, impressionante personalidade, muita coisa
que dizer, muito jeito de contar. (…) Noel. É um bom bocado de
autenticidade. Tudo é marcado, dolorosamente”.578
E sua devoção por Noel é explicitada no próprio livro de estréia:
“Naquelas noites me surgia uma tristeza leve, uma ternura, um não sei quê,
como talvez dissesse Noel… Eu estava ali, em grupo, mas por dentro estava
era sozinho, me isolava de tudo. Era um sentimento novo que me pegava,
me embalava. Eu nunca disse a ninguém, que não me parecia coisa máscula,
dura, de homem. Não os costumes que a turma queria. Mas eu moleque
gostava, era como se uma pessoa muito boa estivesse comigo, me
acarinhando. As letras dos grandes sambas falavam de dores que eu apenas
imaginava, mas deixava-me embalar, sentia.
Aos pés da santa cruz
Você se ajoelhou,
E em nome de Jesus

577
Idem, de 12/10/62.
578
Idem, de 25/12/60.
287

Um grande amor você jurou.


(…)
Por esse tempo, comecei a prestar atenção nas letras dos sambas, e vi,
sem entender, que o tamanho de Noel era outro, diferente, maior, tocante,
não sei. Havia uma tristeza, uma coisa que eu ouvia e não duvidava que
fosse verdade, que houvesse acontecido. O gosto aumentou, eu fui
entendendo as letras, apanhando as delicadezas do ritmo que me
envolvia”.579
Porém, em prosa literária propriamente dita, para explicar esta índole
profunda de seus primeiros contos, não há como escapar de Graciliano
Ramos. Um dos primeiros contos do escritor, “Índios”, hoje desaparecido, é
assumidamente escrito com o intuito de reproduzir o estilo de seu ídolo
literário.580 Um romance como Angústia, por exemplo, ambientado no meio
urbano, narrado em primeira pessoa, com toda a carga dramática que o
mestre alagoano sabia conferir a seus personagens, está repleto de passagens
que poderiam, também do ponto de vista estilístico, mas sobretudo
emocional, ter sido escritas por João Antônio. Não existe a leveza flutuante
de Mário ou Alcântara Machado, e o tom que predomina é bem outro, de
uma melancolia desesperançosa, quase ranzinza. Chega a ser incrível, em
todas as críticas que compuseram a recepção do livro, e citadas no Cap. 2,
que o nome de Graciliano não seja mais frequentemente lembrado que os
nomes dos dois pioneiros modernistas, cujas semelhanças literárias com
João Antônio são tão mais superficiais. Dois exemplos rápidos, extraídos de

579
“Afinação da Arte de Chutar Tampinhas”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, pp.
18-19.
580
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/09/59. Quando rejeita o conto, ele o faz não por rejeitar o modelo,
mas sim a impostura que havia cometido.
288

Angústia, refletem a semelhança de índole entre Graciliano e os primeiros


contos de Malagueta, Perus e Bacanaço:
“Fui até o fim da linha de bonde e parei, como se me tivesse faltado a
corda de repente. Aquelas duas extremidades de trilhos roubaram-me os
movimentos e deram-me impressão desagradável. Esfreguei os olhos, senti-
me cansado. Até ali não havia experimentado nenhum cansaço. Teria andado
léguas se os trilhos avançassem para o interior, mover-me-ia regularmente
como um bonde. (…) Exatamente como se uma vontade estranha me
dirigisse, um sargento invisível que se descuidasse do exercício e fosse pelo
campo, embrutecido pela cadência (…)”.581
“Tornei a baixar a cabeça, desanimado, continuei a olhar os pés dos
raros transeuntes que passavam na rua. Ia e vinha.”582
Os exemplos já dados do livro de estréia de João Antônio são
suficientes para que a proximidade emocional com os trechos acima se
evidencie. A proverbial precisão narrativa de Graciliano, cujo estilo limpo,
direto, parece ter servido de modelo para o de João Antônio nos primeiros
contos. Bem como sua virilidade contida, de que se aproxima a voz literária
moldada pelo jovem escritor. Sem estardalhaço, a força do narrador de
Graciliano, como a dos narradores de João Antônio, enfrenta
introspectivamente as situações mais difíceis e perigosas: “Defuntos não me
comovem. Na vila apareciam muitas pessoas acabadas a tiro e a faca.
Habituei-me a vê-las de perto. Por fim não me produziam nenhum abalo”.583

581
Ramos, Graciliano. Angústia, José Olympio, RJ, 1952, pp. 189-190.
582
Idem, p. 78.
583
Idem, p. 151.
289

O regionalismo urbano de João Antônio

Em 1975, o cartunista Jaguar escreve, sobre Leão-de-chácara, o


segundo livro de João Antônio, publicado 12 anos depois de Malagueta,
Perus e Bacanaço: “Desses livros que, se você pega pra ler, só pára no fim.
Nosso chapinha João Antônio é desses caras que sabem contar uma história.
Eu diria que ele é uma espécie de Guimarães Rosa urbano. Inclusive criou
uma linguagem própria que se poderia chamar de ‘joãoantonês’. [grifo
meu] A história que dá título ao livro, por exemplo: se você, incauto leitor,
achar que o linguajar do leão-de-chácara é mesmo o que se fala no Capela da
Lapa, vai dançar. Nego vai te tirar de pinel se você, pra se enturmar, for
pintando e dizendo: ‘Mas eu estava no ambiente e não era grande vantagem
aliviar o pororó dos loques’”.584
Em 1996, por encomenda da editora que planejava publicar uma
reedição do livro de estréia, agora com toda a fortuna crítica já conhecida
mais textos inéditos, o professor Antonio Candido de Mello e Sousa escreve:
“Nos contos deste livro [Malagueta, Perus e Bacanaço], mas sobretudo nos
finais, ele é um verdadeiro descobridor, ao desvendar o drama dos
deserdados que fervilham no submundo; dos que vivem das lambujens da
vida e ele traz com força da sua arte ao nível da nossa consciência, isto é, a
consciência dos que estão do lado favorável, o lado dos que excluem. Sob
este aspecto, João Antônio faz para as esferas malditas da sociedade urbana
o que Guimarães Rosa fez para o mundo do sertão, isto é, elabora uma
linguagem que parece brotar espontaneamente no meio em que é usada,

584
In Pasquim, Ano VII, n. 320, 15 a 21/08/75.
290

mas na verdade se torna língua geral dos homens, por ser fruto de
estilização eficiente” [grifo meu].585
Anos antes, em 1982, o mesmo Antonio Candido, na orelha de Dedo
Duro, outro livro de João Antônio, escrevera: “Talvez a sua narrativa seja
tão forte porque nela é o todo da vida que explode nas palavras; e porque o
ritmo em que estas se arranjam (curto, falado, incrivelmente vertiginoso)
[grifo meu], seja apto para acompanhar o nosso tempo (…) Por estar situado
bem dentro de sua matéria, João Antônio pode criar este ritmo, em cujo
fluxo constrói os personagens como se arrancasse de si mesmo os
sentimentos e os feitos, com uma violência capaz de quebrar a visão
escovada e remota própria do nosso mundo de classe média, em torno do
qual a literatura é muitas vezes uma espécie de fortaleza, mas no qual pode
também ser jogada como bomba./ Embutido pela imaginação e a escrita no
seu submundo, que é o mundo, João Antônio não enfeita, porque não se
enfeita”.586
Vale repetir que, apesar do grande intervalo entre o primeiro e o
segundo livros, dos quatro contos reunidos em Leão-de-chácara, pelo menos
dois haviam sido escritos ainda dos anos 60, ou seja, na fase imediatamente
posterior à publicação do livro de estréia; a novela “Paulinho Perna Torta” e
o texto-título, meio conto meio perfil de uma sub-categoria profissional,
originalmente publicado na revista Realidade, onde o escritor trabalhou
entre 67, 68 e 69. Um terceiro texto, chamado “Três cunhadas — Natal
1960”, apesar do título, não tem a data de sua composição conhecida. O
último, “Joãozinho da Babilônia”, tem tudo para ser um sub-produto do

585
Candido, Antonio. Remate de Males, n 19, Departamento de Teoria Literária IEL/Unicamp, 1999, p.88.
586
Antônio, João. Dedo Duro, Record, RJ, 1982.
291

texto-título, pela profissão do protagonista, pelo ar, ainda não explícito,


assumido, de combinação entre fabulação ficcional e apuração jornalística.
Ao se comparar os sete primeiros contos de Malagueta, Perus e
Bacanaço com o oitavo, “Meninão do Caixote”, do ponto de vista
estritamente formal, as diferenças são menos evidentes que do ponto de vista
da diminuição da carga autobiográfica e da fragmentação da narrativa, como
já foi dito. Mas as mudanças estilísticas começam a aparecer. A primeira
parte da história diz assim:
“Fui o fim de Vitorino. Sem Meninão do Caixote, Vitorino não se
agüentava.
Taco velho, quando piora, se entreva duma vez. Tropicava nas
tacadas, deu-lhe uma onda de azar, deu para jogar em cavalos. Não deu
sorte, só perdeu, decaiu, se estrepou. Deu também para a maconha, mas a
erva deu cadeia. Pegava xadrez, saía, voltava…
E assim o corpo magro de Vitorino foi rodando São Paulo inteirinho,
foi sumindo. Terminou como tantos outros, curtindo fome quietamente nos
bancos dos salões e botecos.”587
Se o primeiro parágrafo acima respeita o ritmo 1, 2 3 visto
anteriormente em trechos antes analisados, se as frases continuam diretas, há
entretanto uma repetição de palavras e um jogo sonoro no segundo parágrafo
que aponta para uma prosa menos depurada, menos polida e contida, e cujas
ligações com a oralidade se dão não apenas no uso de gírias e expressões,
que entretanto parece ligeiramente acentuado, mas num “traquejo” sintático
maior. E esta oscilação entre o velho e o novo estilo continua por todo o
conto. Eis outra passagem:

587
“Meninão do Caixote”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, pp. 81.
292

“Partidas baratas e partidas caras. Funcionavam supetões, palpitações


e suor frio. Sorrisos quietos, homens secos, amarelos, pescoços de galinha,
olhos fundos nas caras magras. Aqueles não dormiam, nem comiam. E o
dinheiro na caçapa parecia vibrar também, como o taco, como o giz, como
os homens que ali vibravam. Picardia, safadeza, marmeladas também. O
jogo enganando torcidas para coleta das apostas.
Vitorino era o dono da bola. Um cobra. O jeito camarada ou
abespinhado de Vitorino, chapéu, voz, bossa, mãos, seus olhos frios e
medidores. O máximo, Vitorino. No taco e na picardia.”588
Não há, nos primeiros contos, uma descrição como essa de nenhum
ambiente. As unidades descritivas, sejam adjetivos simples ou não,
sucedem-se, se não propriamente de forma oposta à dos contos anteriores,
porém combinando-se de maneira mais trepidante, num ritmo mais
acelerado e que envolve o leitor não tanto pela introspecção do narrador,
mas pela música das palavras e das frases. É um contato sensorial que se
estabelece, mais que um racional. O jargão da sinuca se faz presente de uma
forma mais carregada. A gíria ganha força no interior do texto, antes mais
elegante, correto, bem-comportado. As repetições de palavras e de estruturas
frasais se fazem mais freqüentes e produzem um efeito oralizante proposital
— “Partidas baratas e partidas caras”, “Aqueles não dormiam, nem
comiam”, “como o taco, como o giz, como os homens que ali vibravam”. A
sintaxe, se guarda a característica das elipses, parece adquirir uma
flexibilidade maior, com maior número de frases longas — ou com quebras
artificiais — “O máximo, Vitorino. No taco e na picardia”.
Porém não se trata mais de um texto próximo da oralidade pelo
despojamento, ou pela escolha de um vocabulário coloquial, e pelo uso
588
Idem, p. 91.
293

controlado de gírias, digamos, neutras, usadas comumente. Aqui o


vocabulário escolhido ganha uma identidade marcada, é o jargão da sinuca, é
a fala de um grupo específico. Já em “Meninão do Caixote”, como depois
em “Malagueta, Perus e Bacanaço” e mais ainda em “Paulinho Perna Torta”,
João Antônio escava, por meio da elaboração estilística de um universo
linguístico determinado, em busca da essência do homem paulistano.
Mas, em “Meninão do Caixote”, todas essas novidades estilísticas
somadas ainda não justificam, nem de longe, as comparações citadas acima
entre João Antônio e Guimarães Rosa. Nem justificam a alegação de que
teria criado “uma nova linguagem, o “joãoantonês”. Não se justifica falar em
um “ritmo vertiginoso”, ou num texto cuja violência é a causa do impacto no
leitor.
“Meninão do Caixote” pode, portanto, ser considerado, também deste
ponto de vista, um conto híbrido entre o estilo inicial e sua nova forma de
escrever. Vê-se, neste conto, que já há um movimento em direção a “uma
linguagem que parece brotar espontaneamente no meio em que é usada, mas
na verdade se torna língua geral dos homens, por ser fruto de estilização
eficiente.”
Embora fosse o herdeiro ungido da primeira tradição modernista, urbana
por excelência, da qual de fato algumas semelhanças formais o aproximavam,
a índole diferente de sua literatura, a convivência com escritores cujas obras
voltavam-se para as populações de fora dos grandes centros, vista no Cap. 2,
levam-no a se deixar tocar pela essência do projeto regionalista tardio.
Naquela virada dos anos 50 para os 60, afora a literatura urbana, de
inclinação psicologizante, a outra corrente forte na literatura brasileira era
justamente o regionalismo à la Guimarães Rosa. O paradigma de Grande
sertão: veredas, publicado em 1956, estava ainda muito presente. João
294

Antônio iria lê-lo justamente em 1961, quando reescrevia “Meninão do


Caixote” e escrevia “Malagueta, Perus e Bacanaço”.589 E já foi visto como o
grupo de escritores e amigos-escritores ao qual João Antônio se agregou
reunia exatamente os “continuadores” da linha de trabalho rosiana. Entre
eles, Paulo Dantas, Osório Alves de Castro, Caio Porfírio Carneiro e Jorge
Medauar. Desses, todos eram nordestinos de origem, com maior propensão e
facilidade para trabalhar combinando cenários e populações distantes dos
grandes centros a elaborações de linguagem que reproduzissem seus
respectivos “dialetos”. E assim iam ocupando um lugar ao sol. Enquanto
Guimarães Rosa elogiava, publicamente, Osório Alves de Castro, Paulo
Dantas aglutinava as forças do movimento na coleção Terra Forte, da
Francisco Alves, e correspondia-se com Guimarães.590 Eles faziam a
contramão da literatura urbana.
Se o primeiro passo nessa direção, ainda de forma um tanto hesitante,
foi dado em “Meninão do Caixote”, na novela-título de seu primeiro livro já
há uma distância pronunciada em relação aos primeiros contos, e uma
aproximação considerável dos procedimentos estilísticos do regionalismo
tardio.
“Malagueta, Perus e Bacanaço”, por onde quer que se pegue,
apresenta características de estilo bastante próprias, que a diferenciam do
resto do livro. Um exemplo, da cena em que Perus é achacado pelo policial
Silveirinha:
“De longe, Bacanaço. Uma distância infinita eram aqueles cinco
metros os separando. A aperreação sobre o menino já fora a bem mais do
que devia, era muita folga. Assim faziam os homens da lei quando exigiam.

589
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 13/09/61.
590
Esta correspondência viria a ser publicada em 1975, com o título de Sagarana Emotiva.
295

Machucavam à vontade, satisfaziam-se, as aporrinhações só vagabundo


sabe. Sim. Se a gente sair por aí contando como é o riscado da vida de um
sofredor, os trouxas, com suas vidas mansas, provavelmente dirão que é
choradeira. Sim. E quando se manda um danado e folgado daqueles para a
casa do diabo, metendo-lhe com fé uma ferrada nos cornos, uma cortada na
cara ou um tiro no meio da caixa do pensamento, a coisa enfeia muito, vai-se
dar com o lombo na Casa de Detenção. E são abusados e desbocados e têm
apetite de aproveitadores. Piranhas esperando comida. Pisando o menino,
azucrinando, tentando surrupiar o menino… Os tais da lei”.591
A presença total das expressões coloquiais — “vidas mansas”, “caixa
do pensamento”, “riscado da vida”, “casa do diabo” — somado à ênfase
inédita no uso das expressões características do submundo —
“machucavam”, no sentido de “estorquir”, “trouxas”, referindo-se aos
trabalhadores, “uma ferrada nos cornos, uma cortada na cara”, significando
um tiro na cabeça e uma navalhada no rosto, “piranhas”, referindo-se aos
policiais — são características de estilo bastante próprias desta novela final,
pois infinitamente mais destacadas que nos contos anteriores. A veia
oralizante da prosa se fortalece, e a dicção da narrativa se aproxima do
falado, mas não reproduzindo-o, como tanto Jaguar quanto Antonio Candido
ressaltaram, mas estilizando-o fortemente, num procedimento que guarda a
sua força e frescor, mas que transcende o mero registro.
O tom geral é sempre esse, mas algumas passagens se destacam,
ratificando essa impressão, e oferecendo novos argumentos:

591
“Malagueta, Perus e Bacanaço”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, p. 137.
296

“O malandro e o tira eram bem semelhantes — dois bem ajambrados,


ambos sapatos brilhavam, mesmo rebolado macio na fala e quem visse e não
soubesse, saber não saberia quem ali era polícia, quem ali era malandro”.592
Na frase acima, mais do que as gírias e expressões coloquiais, mais do
que o tom de prosa nascida da fala, o que chama atenção é o
desenvolvimento mais tortuoso das frases, em muito diferente da ordem
direta característica dos contos iniciais.
E a diferença de ritmo, sentida em “Meninão do Caixote”, se distancia
ainda mais do fluxo contido dos primeiros contos, em que as frases se
arrumavam em seqüências mais ou menos constantes, ou em construções
simples e diretas. Segundo escreve o próprio João Antônio: “Gíria é bom
para espíritos intensos, de vulcânica agitação e sublime vibração”.593 E este
novo ritmo vulcânico, “trepidante”, ou “vertiginoso”, nas palavras de
Antonio Candido, se impõe para sempre em sua obra:
“Mas o joguinho virava, sorria, chamava, dava-lhe um parceirinho
fácil em duas partidas de duzentos e cinqüenta cruzeiros. Os pensamentos
bons iam embora, arranjava um patrão, caía na sinuca. Ganhava um tanto, se
arrumava por uns dias. Na continuação, de novo se estrepava, o joguinho
castigava. Perus combatia, entretanto. Doía-lhe na pele ver o capitalzinho
juntado ir-se minguando, pingando for a de seu bolso, feito coisa do alheio.
Desnorteava-se nas tacadas, com pouco estava sem nenhum, arruinado, sem
dinheiro e sem patrão. Dias depois, se mortificava com lamentações
novas”.594
Agora sim já se entende, pelo menos em parte, as aproximações com
Guimarães Rosa. Ou porque, por exemplo, ele que tinha Ernest Hemingway
592
Idem, p. 138.
593
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 05/11/62.
594
“Malagueta, Perus e Bacanaço”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, p. 145.
297

como principal referência na literatura americana, em 1961 descobre a


potência abarrocada e tortuosa de William Faulkner:
“Literatura arrazadora de Faulkner — Luz de Agosto. Sofri este livro,
me foi um pesadelo, um a um os trancos da desgraça total de Joe Cristmas./
Estive, contudo, ante um escritor que sem dúvida nenhuma criou um estilo.
E sua personalidade é de gênio, gênio puro”.595
Entende-se também porque, antes de 64/65, ele se dizia “um homem
incubado”.596
Nos termos da crítica de outros tempos, mas que neste caso parecem
encaixar bem, João Antônio deixa de ser um escritor apolíneo e transforma-
se num escritor dionisíaco. Chega a ser incrível que quase toda a crítica, até
hoje, o veja como um escritor “que já nasceu pronto”.
Invocar o modelo regionalista tardio como modelo geral de João
Antônio na elaboração da segunda fase de seu processo de formação como
escritor, e assim aproximá-lo de Guimarães Rosa, não significa, em
absoluto, que se esteja pretendendo dar a ele a mesma estatura que o
fenômeno mineiro ocupa no panteão da literatura brasileira. Na conclusão
deste trabalho, os “pontos cegos” da obra de João Antônio, que justamente a
distanciam, no conjunto, da excelência literária de Guimarães Rosa serão
abordados. Para justificar tal invocação, em primeiro lugar, as cartas citadas
no Cap. 2 mostram o quanto é fato documentado o espelhamento dos
procedimentos regionalistas no projeto literário de João Antônio. Isto não é
uma interpretação. Em segundo lugar, há antecedentes na crítica que já
faziam tais conexões muito antes deste trabalho sequer começar a ser escrito.
Mas o “insight” da crítica jamais foi desenvolvido, e muito menos

595
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 03/03/61.
596
Idem, de 11/08/65.
298

relacionado, e confirmado, à luz da correspondência do escritor. Vale, então,


fazê-lo, dando a uma tese apenas insinuada, maior solidez, contrapondo
trechos de João Antônio de Guimarães Rosa e dos outros com quem
interagiam, e a partir daí demonstrando o quanto João Antônio seguiu sua
intuição e desenvolveu um projeto literário consciente e consistente, nesta
segunda fase de sua carreira.
Tudo fica mais claro no momento seguinte do desenvolvimento de seu
estilo literário, isto é, na elaboração de “Paulinho Perna Torta”. Não por
acaso, muitos acreditam ser esta novela, ou conto longo, a obra-prima do
escritor.
Um exemplo da exuberância formal de seu novo estilo: “Crio nome de
piranha. Como os trouxas pela perna, cobiço. Torno a tomar a verba do
alheio. Corro por dentro dos pacatos. Há tipos basbaques, pivetes ainda,
aprendizes principiantes na roda da malandragem, que vêm de longe para me
espiar jogando carteado. Porque atiço os dedos e vou ao jogo alto, não
querendo nem saber se ando certo ou errado. Vou lá. Sou um relógio. Mamo
a grana. Meu nome corre. O diz-que-diz me exagera, começa a me pintar de
negro. Anda por aí que, por uma herança, matei meu pai a tiros…
Trouxas!”.597
O universo semântico, elaborado a partir da linguagem oral do
submundo, ganha uma marca autoral evidente graças ao nível de elaboração
formal. As frases são mais curtas e quebradas, as redundâncias — “pivetes
ainda, aprendizes principiantes” —, bem como as repetições de palavras e
aliterações, onde antes havia economia e elegância, tornam-se permitidas, a
sonoridade sensível onde antes havia introspecção e racionalidade, e a veia
melancólica dá lugar a um tom combativo, vulcânico.
597
Antônio, João. Leão-de-chácara, Record, RJ, 1975, p. 88.
299

Agora tome-se um trecho de Guimarães Rosa:


“Ele gostava de matar, por seu miúdo regozijo. Nem contava
valentias, vivia dizendo que não era mau. Mas outra vez, quando um inimigo
foi pego, ele mandou: — ‘Guardem este’. Sei o que foi. Levaram aquele
homem, entre as árvores duma capoeirinha, o pobre ficou lá, nhento,
amarrado na estaca. O Hermógenes não tinha pressa nenhuma, estava
sentado, recostado. A gente podia caçar a alegria pior nos olhos dele”.598
Não é difícil enxergar a semelhança. Outros dois regionalistas que
influenciaram João Antônio, Osório Alves de Castro e Paulo Dantas (este,
inclusive, como amigo freqüente), por exemplo, também guardam as mesmas
semelhanças. Veja-se outro trecho de “Paulinho Perna Torta”, aquele em que a
zona de São Paulo é destruída por uma violenta onda policial, que traz
embutida a um só tempo uma faceta moralizante e uma de disputa entre iguais:
“— Seja o que Deus quiser.
Não sou homem de fricotes ou balongolé e se tenho coração é para as
coisas do meu gasto. E só. Mas nunca vi nada tão feio.
Como loucos, tantãs de muita zonzeira, acabam com a zona. Vão
esvaziando. Inundam as casas, tocam fogo nos colchões, entorntam as janelas,
com guinchos arrebentam as portas. Estraçalham, estuporam, quebram.
Atacam as minas, arrancadas do sono e quase nuas. Batem e chitam como se
surrassem homens. Sapateiam nos corpos das mulheres.
(…)
Os cavalos pisam também. Empinam-se no ar e atropelam as mulheres.
Vão pisando.
As mulheres engolem depressa tubos de tóxicos e despejam álcool no
corpo. Os corpos pelados, sem pressa pelas ruas, vão às labaredas, ardendo
598
Rosa, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas, Nova Fronteira, RJ, 1987.
300

como bonecos de palha. O horror é uma misturação. Gente, cantoria, grito; é


esguicho de água, é tiro, correria desnorteada. Xingação, berreiro, choro alto e
arrastado, cheiro de carne queimada e fumaça.”599
Agora compare-se o trecho acima a este, de Osório Alves de Castro:
“Ao redor o fogo se alastrava. Mariona estava insensível: — Deus
castigará todos, pai.
Feia, horrível, enrolada nos trapos, cabelos desgrenhados, olhos
ensangüentados pelo pavor, sentia misturar no tumulto da tragédia a
aproximação de um sonho. O incêndio a envolvia. Resistia no delírio. As
seriemas cantavam ao longe, espantadas pelo fogo. Era um canto de homem
ajudando Mariona morrer sufocada pelas chamas. Um rolo de fumaça passou
sobre eles e a queimada cresceu para todos os lados.”600
Os procedimentos descritivos são bastante parecidos. As enumerações
dantescas se revezam com frases curtas e que, de certa forma, as resumem,
fazem a súmula de cada etapa da cena.
Mais um trecho de João Antônio:
“É um picardo. Esse Zião da Gameleira me encabula. Uns olhos
parados e pequenos de bicho sonolento, uma papada enorme de quem come
muito doce. E que calma… Nada afoba esse Zião, gordo e sossegado. Um
baiano que parece saber das novidades antes delas acontecerem. Sou
malandro dos malandros, mas vi poucos caras como Zião da Gameleira. Que
já vem de volta, enquanto a gente está indo. Boto o maior respeito nesse
bicho macumbeiro”.601
Em comparação a outro, também de Osório Alves de Castro:

599
Antônio, João. Leão-de-chácara, Record, RJ, 1975, p. 88.
600
Castro, Osório Alves de. Porto Calendário, Francisco Alves, RJ, 1961, p. 160.
601
Antônio, João. Leão-de-chácara, Record, RJ, 1975, p. 97.
301

“Cabo Selado acreditava, tinha fé, apalpava sempre o seu patuá.


Levou muitos dias escondido cavando com a ponta do trinchete o coro, o
púlpito, e até o altar de Santa Maria da Vitória, para encontrar um dos bagos
de chumbo ou bala encravados na madeira durante os tiroteios das eleições
no tempo do Imperador. Diziam que dava sorte. A do clavinote que disparou
no corpo do finado Maciel, sabia. ‘Feliz neste mundo quem encontrasse as
balas dele, e um a que traspassou o coração cheio de amor do velho
Maciel”.602
As semelhanças estilísticas falam por si mesmas. O mesmo acontece
quando se analisa um trecho de Paulo Dantas:
“— Muitas coisas do secreto do pensamento dele o Conselheiro me
contou, daí porque agora eu lhe conto com tanta convicção. Sobre esta
mulher, o Conselheiro me confessou ter sido ela o prêmio maior que
encontrou na vida. Coração dos outros, alheia morada é — terra onde
ninguém pisa nem anda”.603
Por tais exemplos, e lendo mais continuamente os textos desses
autores da virada dos anos 50 para os 60, não é difícil entender o leque de
motivos, estilísticos, ideológicos, e de sensibilidade, que João Antônio tinha
para escrever de forma tão parecida à dos regionalistas, embora sobre
universo tão diferente, para não dizer oposto.
Em primeiro lugar, os escritores regionalistas parecem ter por
característica um grande cuidado com a nomeação dos lugares onde
situariam suas cenas. Os lugares têm nomes sonoros, ora misteriosos, ora
pitorescos, ora poéticos. Assim também era a cidade de João Antônio.

602
Castro, Osório Alves de. Porto Calendário, Francisco Alves, RJ, 1961, p. 186.
603
Dantas, Paulo. Capitão Jagunço, Global, SP, 1982, p. 110. a primeira edição deste livro é de 1959.
302

Em segundo lugar, ambos esses cenários — no caso dos regionalistas,


agreste, no de João Antônio, marginal —, exigiam virilidade de seus
personagens. Honra, fama de bravura, feitos de armas, etc. A literatura
regionalista tardia pode muito bem ter representado, para João Antônio, uma
outra modalidade de sua “literatura de homem”. Grande Sertão:Veredas que
não me deixe mentir, afinal, uma leitura possível do impacto da descoberta
do verdadeiro sexo de Diadorim diz respeito justamente ao susto de se ver
uma mulher perfeitamente adaptada àquele mundo tão masculino. E os
homens que se degladiam nessas zonas perigosas da sociedade são, por isso
mesmo, personagens excepcionais, fora do normal. Tanto os regionalistas
tardios quanto João Antônio parecem emprestar a seus personagens,
igualmente rebaixados na hierarquia da sociedade, uma certa imponência,
uma gravidade. Seus atos, muitas vezes, adquirem inclusive um certo caráter
ritual, e não por acaso a evocação religiosa aparece, por exemplo, em João
Antônio e em Osório Alves de Castro. Há uma sensibilidade parecida entre
todos eles, e a semelhança de conteúdo entre os fragmentos aqui comparados
também atesta isso. Os próprios nomes dos personagens o refletem, pois são
tão excepcionais quanto os donos: Zé Bebelo, Joca Ramiro, João Ganhoá,
Titão Passos, Riobaldo, Diadorim, em Guimarães Rosa; Zé Bico, Neco
Gomes, Mariona, Clara Dendê, em Osório Alves de Castro; Capitão Jagunço
e Joaquim Tranca-pés, de Paulo Dantas; Bacanaço, Joãozinho da Babilônia,
Mariazinha Tiro-a-esmo, Zião da Gameleira, Diabo Loiro, Laércio Arrudão,
em João Antônio.
Além disso, todos cultivavam uma escolha preciosa das palavras, pois
ambos se propunham realmente a criar uma linguagem literária particular —
“bagos de chumbo”, “ponta do trinchete” —; convivendo com um repertório
não convencional, seja por ter raízes no português arcaico do sertão, seja por
303

ser o jargão dos criminosos na cidade grande. E esta escolha do vocabulário


vem regida, em grande, em muito grande dose mesmo, por um critério que
para alguns há de parecer subjetivíssimo, mas que absolutamente não o é,
após um contato prolongado com a obra de João Antônio: o da sonoridade
das palavras e do fraseado. Para os regionalistas, e certamente para João
Antônio, a música do texto era um critério indispensável, e assim continuaria
até o fim de sua vida. Ouvido para isso ele tinha, treinado nas rodas de choro
da infância e nos discos de Noel.
Guimarães, por toda a sua forca poética, era o melhor de todos esses
escritores e entrou para a história, embalado pelas bençãos da crítica em
geral e da crítica universitária em particular. Osório Alves de Castro e Paulo
Dantas, bem como Jorge Medauar e Caio Porfírio Carneiro, não tiveram
tanta sorte. Seus livros desapareceram das estantes porque tentavam
prolongar um tipo de literatura que não poderia ser estendido após a
culminância de Grande Sertão: Veredas, e que o acirramento da urbanização
nos anos 70 tornaria cada vez mais distante do meio literário hegemônico
das grandes capitais, no celebrado eixo Rio-São Paulo, senão como
valorização do que de melhor já fora produzido por esta “linhagem literária”
Não havia espaço para continuadores. O preço a pagar foi o esquecimento da
crítica e do público. Guimarães, sem o saber, sem o pretender, transformou
todos os seus “pares” regionalistas em autores secundários, exatamente pela
força de seu talento. A sorte de João Antônio foi que ele aplicou os recursos
estilísticos que tomou emprestado dos regionalistas em outro ambiente, em
outro universo, o urbano, o que deu a sua literatura uma sobrevida.
Este forte aumento no teor de elaboração da linguagem, aliado a uma
libertação da fabulação ficcional, que se descola da experiência
autobiográfica, embora não deixe de ser enriquecida por ela, são os
304

elementos que assinalam o início da segunda fase no processo de formação


de João Antônio como escritor. E ele então sonhava alto, buscando a alma
do homem urbano enquanto fundava o que se poderia chamar de um
movimento de um homem só: o “regionalismo urbano”. A seu modo, único e
insubstituível.
305

Cap 4

Literatura na Realidade
306

São Paulo X Rio de Janeiro

Após a conclusão de “Paulinho Perna Torta”, em 1964, e antes que a


novela fosse publicada, em 1965, na já citada antologia Os Dez
Mandamentos, da editora Civilização Brasileira, João Antônio entrou numa
fase de redefinição pessoal. O menino de origem proletária, agora com vinte
e sete anos, vencera quase todos os obstáculos sociais e educacionais —
para não falar dos simples acidentes do destino, como por exemplo o
incêndio da casa de seus pais e de sua principal novela —, e era agora um
escritor estreante mas premiado, jovem mas muito bem considerado, que
recebera imediatamente da crítica um lugar ao sol e na tradição literária
brasileira, como a voz nova da cidade de São Paulo. A boa repercussão nos
meios especializados rendera-lhe prêmios, amizades literárias com os novos
talentos da sua geração, e também contatos com alguns dos grandes
intelectuais do Brasil. Vivia, por tudo isso, um bom momento para outros
vôos, profissionais e pessoais. Um desejo era abandonar a publicidade e
profissionalizar-se como escritor. Outro era deixar São Paulo. E ele se pôs a
visitar outros estados do país. Tais objetivos, mais ou menos conscientes,
mais ou menos exeqüíveis, levaram-no, naquela virada entre 64 e 65, a sair
da rotina e viajar.
De início explorou a região Sul.604 Com que dinheiro?, difícil dizer.
Certamente não com os direitos autorais obtidos com Malagueta, Perus e
Bacanaço, pois no primeiro momento seu sucesso foi eminentemente de
crítica.605 É possível que, num nível mais concreto, essas viagens estivessem

604
Entrevista a José Edson Gomes, para a revista Leitura, n.94, maio-junho de 1965, Rio de Janeiro, p.45.
605
“Malagueta, Perus e Bacanaço, com todas as entrevistas a jornais, rádios e televisão, meu livro de
estréia não me deu nem 300.000 mil cruzeiros... Não posso, absolutamente, fazer nada com esse dinheiro.
Com um mês de trabalho publicitário, consigo ganhar mais do que com Malagueta, Perus e Bacanaço.”
307

vinculadas às palestras que desde tão cedo propôs-se a dar pelo país afora.
Pelo menos assim permite especular uma declaração da União Brasileira de
Escritores, resumo de suas atividades até o ano de 1972, na qual é
mencionada a realização das tais palestras, ainda que restringindo-as a São
Paulo capital e ao interior do estado.606 Mas é possível que tenha
simplesmente ido fazer turismo, conhecer o Brasil, como foi o caso de sua
ida a Apiaí, interior de São Paulo, onde esteve em fevereiro de 1965.607
Também não se encontra registro de com quem viajou pelo Sul, se é que
estava acompanhado, ou de onde ficou hospedado nos diferentes estados que
visitou, ou mesmo sobre quais cidades visitou em cada um deles. O que se
sabe com certeza é que, nesse período, esteve em Santa Catarina, no Rio
Grande do Sul e no Paraná.
Em fevereiro de 1965, voltando de Apiaí, João Antônio foi ao Rio de
Janeiro, onde passaria o Carnaval e visitaria os parentes por parte de mãe
que ainda lá residiam, em especial seu tio Otacílio.608 Novamente, nesse
caso, a intenção consciente de procurar uma nova cidade para residir é
controversa, ora afirmada ora negada pelo próprio João Antônio.609 Na
capital carioca, foi hospedado pelo amigo Mário Peixoto, jornalista e

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, em 19/07/64.


606
Documento em papel timbrado, datado de 12/05/72, assinado pelo então presidente da instituição, o
amigo Caio Porfírio Carneiro. Mas em carta a Marília de Andrade, então sua noiva, por exemplo, ele
menciona convite de Manoel Lobato, farmacêutico e escritor com quem se correspondia, que após uma
temporada em Vitória insta João Antônio a visitar a cidade onde voltara a residir, sua cidade natal, Belo
Horizonte (MG). É possível, portanto, que mesmo sem a intermediação institucional da UBE, as amizades e
as atividades literárias tenham pautado o roteiro dessas viagens.
607
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 18/02/65 foi escrita de Apiaí, interior de São Paulo, onde passeava
acompanhado de um amigo não identificado, embora ligado à UBE (possivelmente Herman José Reipert).
Diz ele: “Escrevo-lhe de Apiaí, a 350 kms de São Paulo e muito mais de 1.000 metros de altitude, num
clima magnífico, vendo grutas e furnas, coisas naturais e milenares, frutos tenros da terra (...)”. Nenhuma
atividade literária, portanto.
608
Entrevista a José Edson Gomes, para a revista Leitura, n.94, maio-junho de 1965, Rio de Janeiro, p.45:
“Então, resolvi ver o Carnaval carioca. E fiquei até hoje”.
609
Ao trecho citado na nota anterior, contraponha-se este de carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 14/04/65:
“Ilka, você ainda não entendeu a minha vinda para o Rio. Eu não desejo sair daqui para voltar a São Paulo.
Eu já saí com esta intenção.”
308

escritor, autor de Chuva de Vento no Querosene — certamente não por acaso


também a ser publicado pela Civilização Brasileira —, que no momento
trabalhava no Banco do Brasil. Mário era casado com Dária, e juntos
moravam num quarto e sala, no primeiro andar de um edifício na rua São
Salvador, no Flamengo. Ao hóspede João Antônio estava reservado o sofá
da sala.610
São Paulo não era mais um lugar onde João Antônio se sentisse bem.
Inúmeros fatores contribuíram para tanto. Entre eles, as reclamações
clássicas: contra o crescimento que transformava a cidade, ressaltando novos
bairros e relegando outros à degradação. Sobre isso, na época, ele diz: “São
Paulo, para mim, jamais foi a cidade dos bairros jardins, com suas calmas e
friezas e futilidades e luxos. Era meu o São Paulo do povo-povo. Sou filho
de motorista de caminhão com doméstica, o que é que eu poderia dar?”611,
ou “O misticismo da luz elétrica como existe em São Paulo não existe em
nenhum outro lugar. A poesia da luz elétrica é a marca da solidão que se
vive na cidade”612 —, e contra o ritmo de vida na cidade — “São Paulo é
uma cidade de pressas e sustos”.613
O que, a seu ver, piorava tudo, era o fato de que a modernização da
cidade não vinha acompanhada por uma modernização dos padrões de
comportamento: “Custa-me muito dizer que São Paulo é uma província.
Poderosa como arquitetura, geografia física, áreas urbanas, etc, no fundo
mantém uma odiosa mentalidade de cortiço”.614

610
Depoimento de Marília Andrade, colhido em 20/07/2003. O endereço completo de Mário Peixoto era:
Rua São Salvador, 30/ apto. 102, Flamengo. O livro de Mário Peixoto tinha publicação prevista para 1966.
611
Entrevista a José Edson Gomes, para a revista Leitura, n.94, maio-junho de 1965, Rio de Janeiro, p.45.
612
João Antônio - Literatura Comentada: volume organizado por João da Silva Ribeiro Neto, editora Abril,
SP, 1981, p. 5.
613
Entrevista a José Edson Gomes, para a revista Leitura, n.94, maio-junho de 1965, Rio de Janeiro, p.45.
614
Idem.
309

Mas João Antônio tinha também motivos bem pessoais para sair de
São Paulo. O mundo literário da cidade não lhe agradava, e nem os efeitos
do sucesso de seu livro em sua vida. O jovem de origem proletária, apesar
do “cartaz” junto à crítica, não se reconhecia na imagem que dele queriam
fazer, e não sentia pertencer ao mundo das letras tal como o via. De uma
hora para outra, julgou-se “Transformado em menininho gigante do talento,
quase obrigado a aceitar a minha mistificação, premiado e pobre, sem Boca
do Lixo, vivendo mal sem mar, liberdade, eu teria de fazer anúncios de
publicidade para viver, enquanto o dono da agência de propaganda diria a
seus clientes: ‘Olha, este aqui, meu redator, é um escritor premiado, etc.’; já
não mais fazendo a minha prosa e não podendo conviver com os meus
verdadeiros amigos, os malandros, ali eu me sentia como um homem
exilado”.615 Sua nova situação profissional parecia obrigá-lo a apagar sua
adolescência, juventude e, por que não dizê-lo, sua índole boêmias. A
identificação com São Paulo e suas coisas, tão marcante no primeiro livro, e
mais tarde em todos os seus textos autobiográficos, estava pela primeira vez
ameaçada. A cidade o estranhava, e ele a ela: “Estando dentro da cidade eu
já não enxergava São Paulo. Precisava ganhar visão do lado de fora, sei lá.
(...) Quiseram me transformar em entidade, ‘jovem ilustre escritor’ e outras
porcarias. Fui eleito diretor da União Brasileira de Escritores616 e já era
apontado para ser julgador de concursos de contos. O ‘jovem mestre’. Isso
tudo me incomoda e me toma um tempo que eu não tenho. Achavam que eu
devia viver a chamada ‘vida literária’”.617 Ele, do Rio, confessa à amiga Ilka
o quanto a repercussão do livro havia, ao contrário do que se poderia
esperar, contribuído para diminuir sua produção literária em São Paulo: “Eu
615
Idem.
616
Exerceu o cargo de diretor entre 1964 e 1965.
617
Entrevista a José Edson Gomes, para a revista Leitura, n.94, maio-junho de 1965, Rio de Janeiro, p.45.
310

estava vivendo bem aí? Não. Eu estava escrevendo bem aí? Ultimamente
não. Eu amava aí? Não”.618
Mas não só a entrada no mundo literário o “desencaixara” na vida;
havia motivos mais profundos, cicatrizes antigas, que agora iam ficando
insuportáveis, velhos constrangimentos, que uma fase nova na vida
precisaria abolir: “A cidade de São Paulo me deu e me tirou uma porção de
coisas essenciais. Amei muito ali, me dei muito ali. Muitas coisas, pessoas,
ruas, esquinas, avenidas, viadutos já me doíam na alma quando eu os via,
que me lembravam uma porção de dores. Eu fui muito jovem em São Paulo,
um dia. E isso me custou porradas. Dei-me demais e isso também me custou.
Hoje as coisas me doem lá”.619 Ou: “São Paulo, com tudo o que me deu —
prêmios, dores, frustrações e algum nome — fique para lá. Já começo a
sentir o quanto São Paulo é província, é formalidade. Como e quanto São
Paulo prende a liberdade de um artista, de uma pessoa. A liberdade até de
andar nas ruas, conversar nos botequins, de passear. Eu não quero voltar
àquilo, Ilka. (...) Eu não quero mais. Aquelas criaturas complicadas,
retorcidas, difíceis, que, apesar de tudo, eu tanto respeitei e até (de minha
forma) amei. Mas chega. Que eu não sou o gerador de tanta complicação e
enrolamento, de tanta solidão, incomunicação humana e aflição de espírito.
Eu quero viver um pouco livre. Diabo!”.620
Ele parecia, mais do que nunca, confiante em suas virtudes, em sua
capacidade de levar uma vida menos atormentada, menos cheias de
oscilações vertiginosas de humor, que o levavam da euforia à depressão em
questão de horas. Mais do que nunca, João Antônio tinha a esperança de
equilibrar-se, fazendo conviver homogeneamente profissão e prazer. Ao
618
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 31/03/65.
619
Entrevista a José Edson Gomes, para a revista Leitura, n.94, maio-junho de 1965, Rio de Janeiro, p.45.
620
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 31/03/65.
311

“vencer”, ao ultrapassar sua condição proletária, parecia ter chegado a um


novo estágio da vida, que exigia novos hábitos e novos cenários.
Por fim, outro motivo que tornava uma vida longe de São Paulo mais
fácil para ele era seu difícil relacionamento com a família. Embora João
Antônio jamais tenha virado as costas a seu passado, muito pelo contrário,
chegando mesmo a, de certa forma, cultuá-lo, inclusive em sua literatura
(caracterizada, sobretudo e com destaque, por um avassalador sentido de
nostalgia), a distância cultural entre ele e seus pais, entre ele e sua família
em geral, crescera dia-a-dia ao longo dos anos, e o lançamento do livro e a
inserção no “mundo das letras” evidenciava-a de forma incontornável. Diz
Marília, sua futura esposa: “Ele se dava bem com a família, mas não
agüentava ficar muito tempo junto. O desnível cultural fazia-o sentir-se de
fora”.621 E ele próprio parece admitir isso: “Vou-lhe confessar. Meio duro,
mas vou. Estive em São Paulo já. Sabe o que fiz? Estranhei o frio, e
descendo na rodoviária, fui direto para a casa de minha mãe. Esperando que
me chegasse a saudade de São Paulo. Durante dois dias ela não chegou.
Ainda bem./ Dois dias de São Paulo. E não vi ninguém, não procurei
ninguém, não telefonei a ninguém. Não senti nada, absolutamente nada, em
termos de saudade./ Ingratidão? Ingratidão pela cidade, pelas pessoas? Sei
lá. (...)/ Simplesmente não senti saudade de nada de São Paulo, em São
Paulo”.622 Ou ao escrever: “Em São Paulo se desnorteava em erradas e vivia
como um exilado no próprio local onde nasceu”.623
O processo de distanciamento entre ele e o universo proletário,
paradoxalmente, aconteceu e não aconteceu ao longo de sua vida. Na
621
Depoimento de Marília Andrade, colhido em 20/07/2003.
622
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 04/05/65.
623
Carta a Marília de Andrade, de 26/07/65(b). Duas cartas foram escritas nesse mesmo dia; nas remissões
seguintes, como aqui, elas estão diferenciadas pelas letras a ou b, de acordo com a ordem com que foram
organizadas pela destinatária.
312

prática, é claro, aconteceu. Intelectualmente, culturalmente e, até certo


ponto, no nível da sensibilidade, aconteceu. Mas sua literatura jamais
abandonou seu tema essencial, como se representasse um esforço de negação
do distanciamento, ou de compensação contra o não-pertencimento pleno a
nenhum outro universo. Pois se sua nova condição o afastava do universo
social e cultural do proletariado puro, nem por isso o enquadrava
inteiramente nos ambientes social e intelectualmente tidos como mais
elevados.
Ele tinha consciência desse fenômeno de “desgarramento”, de
individuação extrema, e de isolamento. Fenômenos esse, aliás, irreversível e
eternamente progressivo. Anos mais tarde, João Antônio pôde explicitar seu
afastamento do mundo proletário num de seus melhores textos
autobiográficos.624
De outro lado, sobre as novas rodas que freqüentava, ele afirma: “De
mais a mais, como não me irritar com uma gente que tem hora e dia certos
até para os porres? Sexta-feira, se bebe, confiando-se na semana inglesa.
Sexta-feira, dia de bêbado amador, do papagaio enfeitado, do bobo-alegre.
Quem bebe na quarta ou na segunda — irresponsável, alcoólatra, raridade. É
isso que minha companheiragem, hoje cheirosa e lustrosa, engravatada e
bem-comportada, pensa, diz, imputa. E cobra dos parceiros”.625
Nos idos de 64/65, ele acreditava, a solução para esses problemas era
mudar de cidade. E a escolhida foi mesmo o Rio de Janeiro. Sua rápida
passagem pela cidade, onde deveria apenas visitar parentes e pular o
Carnaval, iria se prolongar por três, quase quatro, intensos anos.

624
Antônio, João: Abraçado ao Meu Rancor, Cosac & Naify, SP, 2001, pp. 76-77.
625
Idem, p.77.
313

Ao se falar da escolha pela cidade do Rio de Janeiro, um primeiro


motivo é obrigatório: a beleza natural. Diz João Antônio, falando do Rio nos
anos 60, quando lá chegou: “Esta cidade tinha uma sensualidade, vibração,
colorido, beleza, charme, borogodó, carisma, que vão desaparecendo à
medida que a vão destruindo. Beleza tropical é no Nordeste. Beleza sem
adjetivo é no Rio”.626
Mas a opção pelo Rio não modifica apenas a paisagem a sua volta. No
dia-a-dia, sua rotina se descontrai, e ele próprio sente-se menos “retorcido”,
“complicado”. “Aqui me descompliquei um pouco. Tenho amigos melhores.
Não necessito paletó, gravata, sapatinhos polidos. (...) Não há
provincianismo. Há liberdade e libertação, a gente se autodetermina nessa
cidade. É estranho e é mágico. A gente se ameniza um pouco”.627
São palavras dele, para a amiga Ilka Brunhilde Laurito: “Perdi um
pouco da tristeza. Mudei um pouco. Esta cidade me libertou um pouco
daquela carranca a que você estava acostumada a ver, as poucas vezes em
que me viu. Ganhei displicências úteis. A eterna ausência do paletó, é a
fundamental delas [grifo dele]”.628
E a cultura carioca, além de mais livre do ponto de vista conceitual,
também quantitativamente parecia-lhe mais rica e diversificada: “Além da
praia, há a cidade que não se esgota mesmo. (...) É muita coisa que ver,
andejar, amar e reter. Você entende. Além da praia e da cidade, há os
espetáculos: teatro, cinema, mostras de pintura, escultura. Sei lá. Um isto e
um aquilo que você nem faz idéia. Coisas não acabam mais”.629

626
João Antônio - Literatura Comentada: volume organizado por João da Silva Ribeiro Neto, editora Abril,
SP, 1981, p. 5.
627
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 31/03/65.
628
Idem, de 04/05/65.
629
Idem, ibidem.
314

Dessa mencionada liberdade, dessa leveza, faz parte importante o


fascínio de João Antônio por uma atitude diferente que ele percebia no povo
carioca, mais iconoclasta, no melhor sentido do termo, em relação aos
artistas. Isso era algo que, de saída, o impediria de se tornar um “bom-moço
das letras”, como temia estar acontecendo em São Paulo. “Ninguém vira
entidade ou mito in Rio./ Ah, aquele cara escreveu um grande livro, pintou
um bom quadro, fez um filme importante? É? Bom, não?/ E ninguém
mascara o cara. Ele fica como está. (...) A gente toma chope com o Vinícius
de Moraes, com o Paschoal Carlos Magno, com o Ênio Silveira. (...) Não há
ídolos ou verdades que resistam à ironia carioca, ao seu espírito natural de
esculhambação. (...) Eu amo isso, Ilka”.630
Tal “filosofia de vida” era a que aplicava a si mesmo: “Estou sendo
entrevistado pelo Correio da Manhã e pela revista Leitura. Todo mundo
sabe disso. E daí? Ninguém me enche. Ninguém me adula. Ninguém me
chama de ‘jovem escritor’. Sou o João Antônio, um sujeito que escreve
contos e, às vezes, novelas. Editado pelo Ênio, etc. Só. Ninguém me amola./
Pois. Em São Paulo, me amolariam, me chateariam com uma porção de
considerações. Seria um jovem escritor e um moço intelectual./ Veja a
diferença: aqui eu sou o João Antônio, um cara que escreve. E só./ E pra que
mais, Ilka? Já não chega? Já não é bom?/ Em São Paulo se assustariam
comigo. Aqui lêem meus escritos e não me amolam, não me enchem. E se eu
me mascarar, mandam-me plantar batatinhas. Ouviu?”.631
Como se vê, se a ida para o Rio era uma maneira de romper com um
passado sofrido, com um meio social em que ele não cabia mais, ela era
também, paradoxalmente, uma saída para que não precisasse mudar
630
Idem, ibidem. Paschoal Carlos Magno era poeta e dramaturgo de ascendência italiana, nascido em 1906,
trinta e um anos antes de João Antônio, e portanto um veterano consagrado aos olhos do jovem escritor.
631
Idem, ibidem.
315

inteiramente seu jeito de ser. O novo cenário permitia-lhe a ascensão, mas


sem roubar sua espontaneidade. Talvez, pela primeira vez na vida, João
Antônio estivesse próximo a equilibrar suas emoções num meio termo que
lhe facilitasse a vida.
Seu medo de ser entronado no posto de “jovem intelectual bem-
comportado” era tanto que ele, ao chegar ao Rio, tratou de construir novas
ligações pessoais. Mesmo os críticos que tanto lhe ajudaram durante sua fase
inédita, e por quem demonstrava sincera admiração, talvez por
representarem esse risco de “enquadramento” ao establishment literário, e
por terem em parte fabricado, em seus textos e resenhas, as comparações
com os escritores paulistanos do passado, jogando sobre o jovem autor o
peso das filiações e tradições literárias, foram deixados de lado. “Tudo isso
que é bom [a vida no Rio de Janeiro], envolve muito. Não sobra muito
tempo, não. Até certos amigos fundamentais, como Ricardo Ramos e Paulo
Rónai, eu ainda não encontrei jeito de procurar. E, serei franco, nem
vontade. (Ilka, não sei o que se passa comigo, mas estou mudando) ”.632
Do ponto de vista comportamental, tudo lhe parecia mais fácil no Rio:
“O carioca é um povo de cidade grande, Ilka. Arejado, liberto de muitas
frustrações. Desencolhido. Por isso, as mulheres e os homens são amoráveis,
dão-se mais, não complicam. Gostam, gostam. Não gostam... Azar da
segunda pessoa. Mas a tal segunda pessoa também faz uso de uma solução
extraordinária e fala: deixa pra lá.”633 A música popular “autêntica” [leia-se,
no entender de João Antônio, o samba da velha guarda e o choro] e as
mulatas, duas de suas maiores paixões, eram oferecidas com fartura na
cidade, o que era um compreensível motivo de comemoração. “[O Rio] Tem

632
Idem, ibidem.
633
Idem, ibidem.
316

mar, tem o espírito do povo, tem a beleza da cidade, tem o melhor que o
Brasil possui em termos culturais. E tem samba e ginga cariocas. Tem
gafieiras autênticas, mulatas, quase todas inconseqüentes, tem a Lapa (que já
não é o que foi), tem o Zicartola, a Estudantina, o Amarelinho, o Régio, a
Elite — bares, casas de samba e chope da noite”.634
O Rio de Janeiro atuava como um lugar onde lhe parecia ser possível
crescer sem perder a autenticidade, ou até mesmo se reinventar sem ter que
prestar contas à ninguém. Ele está mudando tudo em sua vida, abrindo-se
para outro mundo, outras pessoas e até, em pouco tempo, para o amor (ele
que antes defendia uma muralha protetora contra os males e as distrações do
coração).635
A confidente Ilka chega a repreendê-lo por sua injustiça para com São
Paulo, gerando nele um mea-culpa: “Agradeço-lhe de coração o acerto de
ponteiros. Nesses meus arroubos anti-paulistas, inda acabarei me perdendo
gratuitamente. A verdade é que São Paulo me proporcionou muita coisa boa
e muita coisa autêntica. Outra coisa: São Paulo, a cidade, as coisas, as
pessoas e os animais, as praças, as ruas, os cheiros, os jeitões não estão
errados não. Errado sou eu com o meu temperamento de explosões bestas e
alegres. (...) Ando vivendo numa alforria de liberdade vital e preciso andar
com a cabeça no lugar para que não desande a dizer besteiradas por aí”.636
Mas é um mea-culpa pouco convincente. Em meio a esse movimento
interior, é claro, novos projetos literários brotavam. “Por outro lado, coisas.
De literatura. Tenho uma porção de encomendas. Contos, novelas, uma

634
Idem, de 31/03/65.
635
Quanto a sua abertura para o amor, João Antônio diz: “E até de amar eu sinto vontade. Aqui [no Rio de
Janeiro] me sinto lavado, é a verdade. O carioca me deu amor e calor humano para sentir as coisas e tentar
levar alguma coisa de útil e bom, inteligente e exportável”. Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 04/05/65.
Quanto a sua tese de fechar-se para o amor em nome da total independência, ver o capítulo 2 deste trabalho.
636
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 10/07/65.
317

variedade que uma variedade de pessoas me pedem. Isso, principalmente,


consome tempo. Você bem sabe [Ilka] que sou simplesmente incapaz de
prejudicar a qualidade pela quantidade.”637 “Eu tenho vontade de escrever
tudo. De fazer tudo. Ver teatro, escrever sobre teatro, ler teatro. Eu quero e
tenho vontade de produzir. Escrever o romance [Jordão], os romances.”638
Além das encomendas, há seu projeto pessoal, o mais ambicioso de
sua vida: “O romance. Acertou em cheio. Nem vou falar. A única solução
minha (e que aceito com alegria) para a frente é o romance.”, diz ele numa
carta em que recebe da amiga Ilka Brunhilde Laurito suas consideracões
sobre a novela “Paulinho Perna Torta” e sobre o desdobramento de seu
projeto literário. “Apenas o seguinte, Ilka: no romance, ou antes, num
romance, não cabe fazer o que pretendo. Eu vou partir para a saga. Eu lhe
conto como./ Preciso contar tudo o que vi, vivi, sofri, conheci em São Paulo.
Bem. Tenho, sem exagero e de pronto, vinte personagens consumadas.
Homens, mulheres, crianças, velhos, botequins, curriolas, ambientes opostos
e contraditórios, um mundo. Todos vivendo, amando, sofrendo, vencendo e
sendo vencidos em São Paulo, cidade e arredores, subúrbios próximos e
distantes, bairros jardins e muquinfos. Então, a própria vivência, interpretada
e meditada, me trouxe a solução estética e técnica. A saga./ Título?
“Lamentação do Morro” ou “Lamento do Morro”. Vários romances. O
primeiro? A primeira lamentação do morro se chamará Jordão. Falta o quê
para começar? Pouco. Minha vinda para o Rio de Janeiro está, de certa
forma, me dando uma visão um tanto diferente do mundo ou mundos que vi
em São Paulo. Um sentir mais amadurecido e muitíssimo mais real, menos

637
Idem, de 04/05/65.
638
Idem, ibidem.
318

lírico, menos paternal. Um paternalismo que apenas comecei a perder em


‘Paulinho Perna Torta’”. Você apanhou bem isso”.639
No mês seguinte, a expectativa em relação a sua produção literária por
vir estava ainda maior, ganhando cores mais radicais: “Preciso parar um
pouco de viver. Pelo menos para fazer Jordão e uns contos que me andam
atravessados na garganta. (...)/ Escrever, para mim, agora, é uma espécie de
desafio do auto-respeito. Viver deve ficar para lá. (...) Há um momento em
que o escritor deve abandonar as coisas da literatura, voltando as costas para
qualquer tipo de livros e partindo para a vida. Viver. Pegar a terra do chão e
sentir como é que é. Eu, entretanto, estou no lado inverso. Devo virar as
costas para a vida e agora escrever. Preciso botar para fora. É o parto. (...)
Ilka, também para a literatura mudei. Espero que consiga meter no papel os
resultados de progressos humanos que consegui fazer. E sei que não será
fácil. Nada bom é fácil”.640

Primeira redação de jornal, primeiro amor

Chegado ao Rio, logo João Antônio conseguiu seu primeiro emprego.


Foi no Jornal do Brasil, a oportunidade surgindo muito possivelmente por
intermédio do seu amigo, jornalista e escritor Esdras Passaes, que lá
trabalhava. Sobre esse trabalho, João Antônio diz, falando de si mesmo na
terceira pessoa: “Ele veio ao Rio para o Carnaval carioca. Deu uma sortinha,
catou um emprego que a bem dizer, não obstante seu nome literário, caiu foi

639
Idem, de 01/07/65.
640
Idem, de 11/08/65.
319

do céu”.641 Tendo chegado em fevereiro no Rio, em março já estava


empregado. E entusiasmado: “Ilka, a aventura profissional que estou
vivendo no JB nunca poderia ser realizada em jornal algum aí de São Paulo.
O nível aqui é outro. As exigências, maiores. A responsabilidade
acrescentada do fato de que eu sou ‘um escritor’. Matéria assinada, portanto.
E matéria sobre o Rio de Janeiro. Outra coisa: o “Caderno B” do Jornal do
Brasil, onde trabalho, é tido por todos aqui como a melhor coisa da imprensa
carioca. Nele colaboram José Carlos Oliveira, Ely Azeredo, Ziraldo, Fausto
Wolff, Rubem Braga... (...)/ Entretanto, apesar dos meus tropeções e
lerdezas e lentidões, foi bem visto e bem recebido o meu trabalho até
agora”.642
E a repercussão de seu bom desempenho no jornal, mesmo somada a
sua boa reputação como escritor, não o incomodava como acontecera em
São Paulo. Ele fala até com orgulho do destaque que vinha tendo. É o que
fica evidente nestre trecho: “Exemplo: comecei aqui como repórter-especial,
matéria assinada e outros tratamentos do “Caderno B”, do Jornal do Brasil.
Não me mostrei muito não. Leram o sair das minhas matérias. Gostaram. Fui
citado nas cúpulas. Nas reuniões de cúpula. Passei a ser o João Antônio aqui,
escritor muito antes de jornalista. Uma frase minha, sobre o pessoal que
frequenta a ópera no Rio, foi para uma coluna de O Jornal, coluna das frases
que ficaram. Se aqui ao Rio vierem Mao, Chaplin ou Neruda, serei eu o
homem para entrevistá-los”.643
E, numa carta ao amigo Caio Porfírio Carneiro, ele se vangloria do
acesso que o cargo de repórter-especial lhe dava às mulheres, agora falando
de um nível mais mundano de deslumbramento: “Ando, como você deve
641
Carta a Marília de Andrade, de 26/07/65 (b),
642
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 31/03/65.
643
Idem, de 04/05/65.
320

saber por aí, ocupadíssimo com as starlets que compõem a beleza feminina
do Festival Internacional do Filme. Na qualidade de repórter-especial do
“Caderno B” do Jornal do Brasil, não posso deixar minhas irmãs
desamparadas. Vivo no Copacabana Palace, na areia da praia e nos arredores
do Cine Rian, Copacabana, Posto 5 e meio, pesquisando formas e pescando
novas. É de lascar, meu irmão. Falando claro: ando tonto diante de tanta
gatinha em flor. Taí, bom título pra livro — À Sombra das Gatinhas em
Flor. E o chato do Proust que vá lamber sabão!”.644
Em suma, por um breve período naquele primeiro semestre de 1965,
João Antônio encontrou satisfação profissional em algo que não era
propriamente a literatura. E algum motivo de orgulho, que ele chega mesmo
a ostentar, como se finalmente sua condição social tivesse deixado de
obrigá-lo à humildade proletária de suas primeiras cartas para escritores e
críticos literários. A agência Petinatti era uma lembrança ruim, graças à
literatura e, agora, ao jornalismo cultural. Malagueta, Perus e Bacanaço
promovera na escala social o filho do português (nesta época seu pai vivia de
fretes como caminhoneiro), alçando-o à condição de repórter diferenciado, e
promovera-o de forma tão rápida e insofismável que, mais tarde, o escritor
não pôde se conformar que a ascensão social exclusivamente via literatura, e
ainda que somada àquela permitida pelo jornalismo, tivesse novos limites
logo adiante, agora intransponíveis e ditados por leis de oferta e demanda na
indústria cultural brasileira. Mas a frustração viria um pouco mais tarde, já
no início dos anos 70. Em inícios de 65, houve momentos de alegria e
encheu-lhe o peito o sentimento de estar sendo, enfim, recompensado.
Tão bom era o emprego no JB que, além do prestígio, o trabalho lhe
parecia manso. Diz ele, novamente na terceira pessoa: “João Antônio vivia
644
Carta a Caio Porfírio Carneiro, de 20/07/65.
321

bem economicamente. Um folgado sem horários e com um chefe camarada.


Redator categoria A do Jornal do Brasil, repórter-especial do “Caderno B” e
outros tratamentos, bicos de pato e cocorécos”.645
No próximo item deste capítulo, sua colaboração com o Jornal do
Brasil, que vai de março de 65 a junho de 66, será objeto de análise mais
detida. Agora, importa é mencionar que foi nesse ponto de sua vida, e como
enviado especial do “Caderno B”, que João Antônio conheceu aquela que
seria sua única esposa legalmente reconhecida, e a mãe de seu único filho:
Marília Mendonça de Andrade, futura Marília de Andrade Ferreira.
O encontro se deu na noite de 26 de maio de 1965. Data tão precisa é
presumível a partir da nota, escrita por João Antônio e publicada no Jornal
do Brasil do dia 27, em que se noticia a festa na qual os dois se viram pela
primeira vez. Celebrava-se, naquela noite, a despedida do espetáculo Rosa
de Ouro, estreado naquele mesmo ano no Teatro Jovem.646 O show havia
sido um sucesso, e marcaria época, reunindo nomes da música popular que
viriam a se tornar consagrados, como Clementina de Jesus, Paulinho da
Viola, Nélson Sargento, entre outros. E o cenário era digno da ocasião: o iate
Debret, oferecido por um dos produtores do espetáculo, e um cruzeiro pelas
praias de Botafogo, Urca e Flamengo, até a entrada da barra. A trilha sonora,
claro, sambas de primeira qualidade, jongos e lundus. Natural que um
repórter-especial do “Caderno B” fosse convidado, ainda mais que suas
ligações com os movimentos teatral e musical carioca viviam marcada
florescência. Assim como era natural que outros jornais, de um jeito ou de
outro, para lá mandassem repórteres e fotógrafos na cobertura do evento. E
foi enquanto estreava na profissão de jornalista, como “foca” do jornal
645
Carta a Marília de Andrade, de 26/07/65 (b).
646
“Rosa de Ouro despediu-se no mar”, in “Caderno B”, Jornal do Brasil, RJ, 27/05/65. O espetáculo Rosa
de Ouro foi concebido e dirigido por Hermínio Belo de Carvalho e Cléber Santos.
322

Tribuna da Imprensa, acompanhada de um fotógrafo, que Marília teve a


oportunidade de participar de uma festa tão badalada.647 Sua missão era
entrevistar os músicos e voltar à redação do jornal ainda naquela noite, o que
lhe permitiria entregar a matéria ao editor do caderno em que trabalhava a
tempo de sair no dia seguinte.
Marília era de uma família mineira, tradicional nos costumes e
financeiramente ascendente. Seu avô paterno era um rico fazendeiro em
Muriaé (MG), dono de uma fazenda chamada O Vermelho. Sua avó, famosa
na família pela beleza, e mãe de três filhos, morrera muito jovem, de
tuberculose. O avô havia então contraído novas núpcias com uma mulher do
Rio de Janeiro, de sobrenome Ludolf, família que ganharia muito dinheiro
quando da construção do bairro do Leblon, onde era grande proprietária, e
que mesmo antes disso já era dona de considerável patrimônio.648 O pai de
Marília, Daniel dos Santos Andrade, nascido na virada do século, morto em
1999, não foi criado pelo pai fazendeiro, e sim pela avó materna, mãe de sua
falecida mãe, em São João del Rey, e cuja situação financeira estava longe
de ser tão próspera quanto à do outro lado da família. Por isso, apesar da
fortuna do avô paterno, pode-se dizer que o ramo a que Marília pertencia era
apenas ascendente do ponto de vista financeiro. Daniel dos Santos Andrade,
seu pai, formou-se em economia e chegou à condição de gerente de bancos,
trabalhando pelo interior dos estados do Sudeste. Tal situação profissional
era bastante prestigiada na época, sendo os então gerentes de banco pessoas
reconhecidas sobretudo em pequenas sociedades do interior, nas quais
chegavam a ocupar posições de destaque na vida comunitária, como por
exemplo o cargo de “presidente do Rotary Club”, que Daniel de fato ocupou.

647
Depoimento de Marília de Andrade, colhido em 20/07/2003. O prénome do fotógrafo era Jair.
648
Idem. Nas palavras de Marília, a noiva de seu avô “trouxe de dote quase metade do Leblon”.
323

Já casado, com Maria Mendonça, nascida entre 1917 e 1918, ele e sua
família viajavam pela estrada de ferro Mogiana, mudando-se de cidade para
cidade, a cada vez que uma nova agência bancária era aberta e necessitava
de alguém que planejasse e implementasse sua dinâmica de funcionamento.
Assim a família chegou a Campina Verde (MG), onde nasceu Marília, em 26
de março de 1945, uma de nove filhos. Seu pai era então gerente do Banco
Hipotecário Agrícola do estado. Dali foram para Franca, e de lá para Jaú,
então a serviço do Banco Sudameris.
Educada em colégios religiosos, Marília, na juventude, era uma moça
de saúde frágil, muito magra (beirando os vinte anos, pesava apenas 38 kg) e
com sérios problemas respiratórios. Seu temperamento, porém, era forte, e
seu apetite de vida, grande. Prova disso é a trajetória que percorreu nos anos
que antecederam seu primeiro contato com João Antônio. Ela deixara Jaú
pela primeira vez aos 17 anos, em 1962, “gentilmente deportada” pelos pais
devido a um indesejado namoro com um moço austríaco, e judeu, da cidade.
Foi abrigada então por uma irmã que morava em João Pessoa, na Paraíba,
casada com um grande fazendeiro do estado. No liceu em que foi
matriculada, Marília tomou parte nas iniciativas de alfabetização rural no
Nordeste (fazendo uso do método Paulo Freire de alfabetização e
conscientização política simultâneas), promovidas pelas Ligas Camponesas,
organização identificada como subversiva e de propósito revolucionário pelo
status quo político da época.649 Nos meses seguintes ao golpe de 64, as
atividades das Ligas começaram a ser reprimidas por toda a região. Diante
da possibilidade de ser presa e enviada ao arquipélago de Fernando de
Noronha, para onde iam todos os envolvidos, Marília confessou à irmã e ao
649
De fato, Francisco Julião, chefe das Ligas Camponesas, anunciava que “a vontade do povo prevalecerá,
com Congresso ou sem Congresso”. Gaspari, Elio: A Ditadura Envergonhada, Cia. das Letras, SP, 2002,
p.76.
324

cunhado suas atividades clandestinas e retornou ao Sudeste, agora à capital


do estado de São Paulo, onde residiu por alguns meses com outra de suas
irmãs. Em seguida radicou-se no Rio, de modo a terminar os estudos e cursar
a faculdade. Morou então na casa da irmã Gema, e foi sustentada à distância
pelas mesadas do pai.650 Gema, por sua vez, cursava Letras Clássicas e era
afiliada à União Nacional dos Estudantes, instituição que vivia no período
seus dias de mais intensa atuação no cenário político nacional. Marília, por
sua vez, matriculou-se na Faculdade Nacional de Filosofia, no Centro, visto
não existir ainda faculdades especificamente voltadas para a profissão
jornalística, já na época sua meta profissional. Daí para o estágio na Tribuna
da Imprensa foi um pulo, e para a festa no iate Debret, uma coincidência
verrossímil.
Naquela noite, enquanto colhia dados sobre o evento, entrevistava os
convidados e os artistas do Rosa de Ouro, Marília, a jovem politicamente tão
ousada, pela primeira vez exagerou na bebida. Serviram-lhe, em suas
palavras, “aqueles coquetéis com guarda-chuvas dentro”.651 João Antônio,
desde adolescente um boêmio de carteirinha, também não se fez de rogado.
Afinal, a bebida era de graça. E o cenário, mais do que romântico. Ao final
da noite, ambos, mais o fotógrafo que fora acompanhando-a, entraram na
Kombi da Tribuna e dirigiram-se à redação. Lá, por instrução de João
Antônio, Marília redigiu um esboço de sua matéria, enquanto ele próprio
encarregou-se de fazer o copy-desk e dar forma ao texto final. O plano era
botar tudo nas mãos do editor do caderno e continuarem a noite em algum
“fecha-nunca” (numa expressão típica do escritor). Mas a bebida pegara a
ambos desprevenidos; e eles saíram, literalmente, rolando as escadas que

650
Quanto à mesada, ver a carta a ela endereçada por João Antônio, em 26/07/65 (a).
651
Depoimento de Marília de Andrade, colhido em 20/07/2003.
325

levavam à portaria do edifício. Diante disso, cancelaram a esticada e João


Antônio decidiu levá-la à casa de sua irmã.652
Segundo Marília, após essa primeira noite João Antônio começou a
visitá-la na faculdade, insistindo em namorá-la. Encontrava-a na hora da
saída e acompanhava-a até a Tribuna. Segundo ele, ao contrário, o assédio
partira dela: “Nós nos conhecemos quase por acaso. Você deu de dar em
cima de mim daquela maneira que não vou recapitular. Dezessete
telefonemas. Acabou, num deles, me encontrando. Ainda uma vez, me
chamou. Depois fez o que fez e fizemos o que foi feito”. 653
Porém pouco importa de quem partiu a iniciativa e quem se apaixonou
primeiro; o fato que resiste é a intensidade dramática que esse amor ganharia
nos meses seguintes, até o casamento em 11 de dezembro daquele mesmo
ano de 1965.

Problemas no amor e no jornalismo

“Há muito, desde junho, que estou para lhe contar um caso extremo de
minha vida, Ilka. Estava, como se diz na sinuca, escondendo o leite. No meu
caso, não estava escondendo uma jogada futura, nem me esquivando de um
assunto grave. Estava era experimentando a intensidade e a permanência dos
sentimentos./ Quatro meses depois do surgimento, lhe falo, com algum
sentido mais claro sobre o que está se passando entre mim e Marília./ Este
nome aí, Marília, significa talvez a maior loucura de minha vida feita até
então. Uma loucura equilibrada a meu modo, e que me deixa à vontade para

652
Idem.
653
Carta a Marília de Andrade, de 29/07/65.
326

não ter que dar satisfações a ninguém. (...)/ Houve o amor, Ilka. Inesperado e
aguardado, não planificado e livre, rebelde e intenso, sem horários ou
alianças, imperturbável na sua forma anárquica, espontânea, natural.
Cresceu, tomou conta de Marília e de mim. Vivermos um longe do outro
vem se tornando impossível (o que é viver, afinal?). Uma coisa doída./ O
amor arrebentou, Ilka. Numa menina de vinte anos, disposta a muitas coisas,
com ou sem aliança. Tenho vivido de tudo com essa menina. Desde a beleza
dolorida e alegria funda até mágoa, ciúme, saudade. De qualquer forma,
Ilka, uma coisa da realidade se fez presente, de pronto, em minha vida. Eu
não sou mais um”.654
Em carta endereçada à própria Marília, vê-se que o desejo de ter perto
de si a mulher por quem estava apaixonado já deixara o nível do mero
discurso amoroso e estava mesmo sendo posto em prática: “Sim. O
apartamento será pequeno, como você diz. Será no Flamengo, eu sinto que
será./ Não quero lhe passar pormenores. Para quê?/ Já falei até com o
proprietário. Esta semana fecho o negócio que apenas está na dependência
do meu ordenado aqui no Jornal do Brasil que sairá ali pelo último dia deste
mês”.655 “Agora você está aí no Nordeste [para onde ela voltara, agora, que
se saiba, a passeio656] e em São Paulo eu resolvo umas coisas relativas,

654
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/10/65.
655
Carta a Marília de Andrade, de 26/07/65 (b).
656
Idem, ibidem. Diz ele: “É um homem de pé quebrado que espera a volta da mulher amada que foi ao
Nordeste ver Brasil”. Mas, há, entretanto, várias demonstrações de que a viagem ao Nordeste tenha
ocorrido num momento de sofrimento; talvez pela rejeição de sua família ao “caso” consumado com o
escritor? Ou por culpa? As linhas de João Antônio, nesse aspecto, não são conclusivas: “Sinto um pouco de
pena de você. Além de tudo o que me confessa: ‘Não me conformo de ser mulher’. Repita isso
mentalmente a todo o instante. Às vezes tortura. Você aprenderá a ser mulher com o tempo e com o gosto.
Você se sente chocada diante de uma realidade nova, nunca provada. Natural. Você vem de uma criação
imprópria, sobre a qual nem preciso dizer nada. A sociedade em que vivemos, Marília, simplesmente anula
a mulher como ser autônomo. Uma menina de quatro anos já tem dentro de si, marcado firmemente, um
sentimento de pudor ao nu. Para não falar de outras crueldades medievais. (...) Você não tem preparo algum
para a vida sexual. Simplesmente porque não lhe ensinaram. Mas com o tempo você descobrirá que o sexo
é uma realidade bela e sadia”. Em carta a Marília de Andrade, de 26/07/65 (a).
327

especialmente, de forma direta ou indireta, ao apartamento que alugarei no


Rio. Provavelmente daqui a uns vinte dias, ou menos, estaremos juntos,
provando o paraíso e o inferno que é a vida passional.”657
Mas como se deu esse processo tão rápido entre o primeiro contato e a
decisão de morarem juntos? Tudo parece, à primeira vista, um tanto
repentino. As evidências indicam que, de fato, os dois namorados desejavam
experimentar uma vida em comum. O que não significa que fosse este desejo
mútuo a única origem do que viria a se tornar um casamento de véu, grinalda
e papel passado. O seguinte trecho de uma carta de João Antônio dá uma
pista das pressões exteriores que podem ter se levantado na ocasião: “Você
estava no Rio e no Rio uma mulher é um ser já, mais ou menos, autônomo.
Ora, a virgindade atrapalha uma mulher no Rio. Você mesma, através de um
mecanismo consciente ou inconsciente, buscou e perseguiu a sua liberação
de uma porção de bobagens. Eu fui apenas um veículo”.658
É de se perguntar se a liberalização dos costumes — que tornou os
anos 60 uma fase célebre da nossa história social recente —, da qual João
Antônio e Marília se beneficiaram no Rio de Janeiro, já havia chegado a Jaú,
ou mesmo a Presidente Altino... A súbita retirada de Marília da “cena do
crime”, primeiro com uma viagem ao Nordeste, depois com uma temporada
longa em Jaú, já nos preparativos para o casamento, dá a entender que entre
Ipanema e o interior de São Paulo existia mais que uma distância meramente
geográfica. Em resumo: a família de Marília exigiu o casamento, a
formalização da união com todas as etiquetas e figurinos a que,
supostamente, tinha direito.

657
Carta a Marília de Andrade, de 29/07/65. O apartamento foi alugado no mesmo prédio em que morava
Mário Peixoto, no Flamengo, o de número 808.
658
Idem, ibidem.
328

A partir daí, a paixão consumada entre ele e a jovem donzela de uma


família mineira tradicional, de reputação e posição numa cidade do interior
de São Paulo, deu origem a três níveis de dificuldade na vida do jovem
escritor. No primeiro nível, e apesar do desejo de morar junto com a
namorada, a exigência dos pais de Marília causou verdadeiro horror a João
Antônio, que mais de uma vez afirmou estarem as formalidades de praxe
corrompendo a pureza dos sentimentos entre eles. Novamente, ao deparar-se
com a iminência de virar um “cidadão respeitável”, João Antônio entrou em
crise consigo mesmo, como fizera ao abandonar seu posto de menino-
prodígio das letras em São Paulo. No segundo nível, a formalização da união
exigia dele e de sua família gastos; de seu lado, na montagem do
apartamento do casal, do lado deles, em roupas e na viagem até Jaú, onde
celebrar-se-ia a cerimônia. E exigir gastos da família era mais do que exigir
sacrifício financeiro, o que em si já não era pouco, era necessitar também da
aprovação do pai e da mãe. Mas havia o terceiro nível, talvez o mais
irremediável de todos: a já mencionada ciclotimia emocional de João
Antônio, que, até há pouco adormecida, foi despertada e potencializada pelas
pressões familiares e financeiras que se acumularam nos meses seguintes.
Na primeira carta em que algum problema de Marília com a família é
mencionado, as coisas já estão em péssimos termos. Ele escreve: “Por favor,
Marília, vamos dar uma forma menos radical no nosso caso. Olhe, é um
homem com vinte e oito anos que lhe fala. Você não pode, não deve e não
vai romper com os seus por causa disso que sente por mim. Por favor. Pense.
Considere. Eles são seus parentes, que ajudam o que podem você a viver,
você deixando-os ficará só tendo a mim. (...)/ Compreenda que eu quero
viver com você e nunca na condição de homem casado. Você mesma
conduziu as coisas para esta solução. Nós dois não acreditamos no contrato
329

de casamento. Mas não quero ver você apartada completamente dos seus
parentes. Eles também lhe querem bem, Marília. Apenas a querem de
maneira diferente, porque são frutos de outra mentalidade, anterior à nossa e
que serve a uma falsa tabela de valores morais, cívicos e humanos. (...)/
Você pode voltar ao Rio de Janeiro. Viver comigo. Mas não abandonar
inteiramente o convívio com Ester, com sua irmã, com sua tia no Leblon,
com seus pais. Seu pai não lhe manda um cheque todos os meses? Então
Marília, essa também é sua realidade”.659
Ainda tentando contemporizar, João Antônio chega a propor que ela
esconda dos pais sua relação com ele. Ou que façam uma cerimônia simples,
no Rio, e não em Jaú, conforme exigência da família dela. Mas nem com
toda sabedoria e generosidade ele deixa de expressar a força de seus juízos.
Ao pai, de quem diz ter gostado e enquanto pede a ela calma e esforço pelo
não-rompimento com a família, chama de “carrancudo e moralista”. Diz
ainda: “Não pise em sua família, eles querem bem a você, embora
aparentemente sejam antiquados, retrógrados, amantes irrestritos da ordem
social e do sagrado casamento etc...”.660
Há uma certa sabedoria e generosidade no que diz a ela, tentando
expor melhor, aos olhos da namorada, os motivos de seus pais. E deveria
haver também um certo medo de, após vê-la romper com a família, sentir-se
demasiadamente preso àquela relação. Afinal, era ele o mais experiente nas
questões amorosas. E é ele quem diz: “Mas eu quero lhe explicar o seguinte:
se amanhã ou depois eu lhe faltar, por quaisquer motivos, como será,
Marília? (...)/ Faça o que seu coração mandar e pedir. Eu não quero mandar
em você. Nunca. Mas veja que não se prejudique por causa do amor. O amor

659
Carta a Marília de Andrade, de 26/07/65 (a).
660
Idem, ibidem.
330

(a realidade é uma só) é efêmero e é falível. Ele nasce, vive e morre. Como
todo o resto no mundo. E não há nada mais triste do que o amor quando
acaba”.661
Nessa mesma linha de raciocínio, ele se colocava em relação a ela na
condição de “abridor de caminhos”, mostrando-se aberto à possibilidade
dela um dia não mais desejá-lo: “Primeiro, a sua libertação de Jaú, de sua
família, do provincianismo gasto e incompreensão geral daí, num meio
social inteiramente ultrapassado no tempo e no espaço. Bestinha e metido a
importante, alto burguês, aristocrático etc. (...)/ Segundo, a sua libertação de
mim mesmo. Para viver a sua vida, que você há de construir de acordo com
as suas forças, gostos e interesses”.662
Mas o tom de suas cartas vai se modificando ao longo das semanas;
ou melhor, se deteriorando. Primeiro em relação à família dela: “Sou franco
e digo o que sinto. Sem peias na língua. Gostei muito de seu pai e não gostei
de sua mãe. Sua mãe é protocolar, metida a aristocrata e matriarca. Não
gosto disso. Dia mais, dia menos, é ela capaz de aparecer aqui no Rio, para
fiscalizar as condições do apartamento em que nós iremos viver. E vai
encontrar um milhão de defeitos. Nesses comentários, a senhora sua mãe vai
encontrar um interlocutor firme, que sou eu. E que não demorarei muito em
abrir a porta do apartamento e lhe dizer calmamente: ‘Ponha-se daqui para
fora. E vá reclamar com o Papa.’ E fim”.663 “Sua mãe se assusta à toa. Desde
que não lhe digam coisas cristãs, bem comportadas, protocolares e formais.
Desde que se finja, para ela o fingidor vira ‘pessoa decente’. É uma
prisioneira do bom comportamento. Meus pêsames!”664

661
Idem, ibidem.
662
Idem, ibidem.
663
Idem, de 13/09/65.
664
Idem, de 23/09/65.
331

Em outra oportunidade, com Marília já “alocada” em Jaú, ao lado dos


pais, para cuidar da cerimônia de casamento, ele escreve: “Segue a certidão
de nascimento. Assim, sua mãe sossega o espírito. E seu pai também. Fico
mais amarrado. [grifo dele] (...)/ Não, dificilmente irei a Jaú antes do
casamento./ Não quero adiantar uma nova experiência de minha vida que ou
me proporcionará rir de uma multidão inteira ou quebrará toda a minha
vida”.665
Porém, por maior que fosse sua revolta contra a pressão dos pais da
namorada, que se refletia, sobretudo, na atitude geral em relação ao
casamento que se aproximava, bem como nas coisas que escrevia à noiva, e
que transpiravam para as famílias de ambos os lados, João Antônio cede nos
pontos e momentos chaves — além, é claro, da capitulação fundamental que
fora aceitar o casamento nos termos exigidos. Embora tenha dito que não
iria, ele foi sim a Jaú antes do casamento, quem sabe para a troca das
alianças de noivado. Foi e se comportou: “Seu pai se engana comigo. Eu
representei em Jaú. Apenas um ator em Jaú. Eu não sou aquilo e você sabe
muito bem”.666
“A aliança no seu dedo é um símbolo e é mais do que isto. É a
realidade. Agora, você é uma mulher que tem um homem que se preocupa
por você. As suas amigas já sabem que você é uma mulher que tem um
homem e ele é seu protetor. Se soubessem que sou seu amante, ficariam
inteiramente boquiabertas, invejosas, mas diriam:
— São dois indecentes!
Entretanto, como entrou uma merda de aliança na história, sua mãe, e
as amigas de sua mãe, falarão que sou um moço decente./ Como se isso

665
Idem, de 20/09/65.
666
Idem, de 23/09/65.
332

estivesse me interessando.../ Para certos homens, a vida é para ser vivida.


Para pessoas bem comportadas, a vida é para ser obedecida”.667
Mas não apenas em Jaú ele estava cercado pela rede familiar de
Marília. Era a partir do Leblon, da casa da tia da noiva, que ele conseguia,
ou preferia (tendo em vista o custo das ligações de longa distância?), se
comunicar com Marília: “Venho chegando do Leblon, são meia-noite e meia
e me vejo diante do papel para mais uma carta inútil, após uma noite inútil
em que aturei a fala de sua tia, os gritos dos netos de sua tia, as esperas de
dois interurbanos para Jaú, a fala com seu pai e a fala com você”.668
Marília também era vítima disso tudo, ele sabia, admitindo que não
merecia ser culpada pelo que estava acontecendo: “Compreendo agora, uma
porção de coisas de sua vida aí em Jaú. Tenha um pouquinho mais da muita
paciência que você já tem tido. Com a cidade, com os mexericos, com as
fiscalizações e com sua família inteiramente ultrapassada. Confie num futuro
mais liberto, em que você poderá se comandar por você mesma, sem peias
ou facismos cristãos”.669
Os convites da lista do noivo atrasam, os pedidos para que ele sonde o
mercado de sapatos e bolsas femininos no Rio o irritam, a convivência com
os familiares do Leblon também — “Uma merda. Sua tia é uma chata. Gema
é uma criatura aproveitável. Seus sobrinhos são mal criados e andam
precisando muito de levar pancada para deixarem de ser bestas com os mais
velhos e desconhecidos”.670 Como se vê, a história de João e Marília é
curiosa e paradoxal. Eles casaram obrigados e se amando ao mesmo tempo.

667
Idem, ibidem.
668
Idem, de 19/11/65.
669
Idem, de 29/11/65.
670
Idem, ibidem.
333

O segundo nível de problemas que o casamento criou para João


Antônio, como dissemos, dizia respeito ao dinheiro e a sua própria família.
O escritor, apesar do emprego no Jornal do Brasil, que lhe dava algum
prestígio e uma certa projeção no meio cultural, e apesar de ser solteiro,
vivia sem nenhuma folga, ainda abrigado na sala do apartamento de Mário
Peixoto. “Eu não ganho tanto dinheiro assim como talvez possa aparentar.
Vou precisar fazer outras coisas e inclusive para pagar as dívidas que
fatalmente farei”671, ele avisa à namorada.
Ele de fato sabia o que o esperava. De saída, precisou alugar o
apartamento em que moraria os primeiros anos de casado, e mobiliá-lo. A
cada passo, uma despesa acima de suas posses. “Estou ajeitando
apartamento, levantando dinheiros que não tenho, metendo-me em
complicações e dívidas. (...) João Antônio arruma o que tem e o que não
tem, dá quinhentos mil cruzeiros de depósito de aluguel de um apartamento
na Rua São Salvador, 30, ap.808. Mete-se numa dívida de mais de um
milhão com móveis.”672 “Tenho de levantar mais dinheiro, caso contrário,
com esse negócio de alugar apartamento, minha situação ficará negra no
Rio.”673
Uma das formas que encontra de obter dinheiros extras é voltar a falar
com os sócios do único negócio que tentara abrir antes de sair de São Paulo
da primeira vez, uma agência de publicidade: “Escrevo-lhe no papel desta
que, um dia, em São Paulo foi a minha agência de publicidade, dividida com
mais dois outros sócios. Um, excelente amigo, um dos poucos homens que
conheci, além de seu talento de pintor é ótimo profissional de desenho
publicitário. Outro, um infeliz dominado pela família rica, da qual jamais
671
Idem, de 26/07/65 (a).
672
Idem, de 26/07/65 (b).
673
Idem, de 30/07/65.
334

passou da condição de mero apêndice. (...) chego finalmente à última


solução diante da sociedade que mantive durante dez meses de 1964. E a
custo arranquei minha derradeira vitória suada: um cheque de CR$
85.000,00, que me era devido desde os idos de janeiro./ Por aí você poderá
sentir o bem que lhe quero e a luta que desenvolvo em torno a todas as
fontes de minha vida, para que você chegue ao Rio de Janeiro e encontre um
apartamento em ordem para nele ficar se quiser. Ou não ficar — depende de
você”.674
Mas às dificuldades financeiras misturavam-se as dificuldades de
obter o consentimento da própria família, criando um imbróglio pessoal
complicado para o escritor. Naquela época, os Ferreira viviam novamente no
distrito de Osasco onde fizeram base, mas com extrema dificuldade: “(...)
minha presença em Presidente Altino tinha um objetivo antes de quaisquer
outras coisas: noticiar meu possível casamento em Jaú. Meu pai, onírico,
otimista, acreditando (apesar dos anos) numa porção de bobagens sem maior
sentido — constituição de família etc. (...)/ Minha mãe expressou-se mais
dentro da realidade. E essa, Marília, é sempre de doer na pele e na alma. Não
há dúvida de que esse casamento agora é o maior dos problemas que levo
para o seio de minha família nestes últimos dez anos. A situação, em casa,
embora ninguém esteja passando fome, todos estejam firmes (exceto minha
avó Nair, que anda doente, e seriamente) e otimistas, é das mais apertadas.
Será motivo de um grande sacrifício para todos as decorrências do meu
casamento. Não, não que as dificuldades decorram de presentes que vão me
dar, grandes gastos etc. Eles, mesmo que quisessem, não me poderiam dar
presente algum. O simples fato de comprarem roupas para irem a Jaú, isto já
é um grande problema para todos em casa. (...) Meu pai falou em vender o
674
Idem, de 31/07/65.
335

seu caminhão para fazer uma presença para o meu casamento. A esta altura
nós dois quase brigamos. Mamãe me confessou claramente as duras
dificuldades que todos atravessam lá”.675
A mãe de João Antônio havia conhecido Marília por ocasião de uma
ida da jovem a São Paulo, na qual o escritor fê-la entregar um pacote para a
futura sogra, sem entretanto identificá-la como futura nora. Após a notícia
do possível casamento, a mãe do escritor expõe suas impressões sobre a
jovem Marília e sobre o projeto do casamento em si: “Mamãe gostou do
jeito seu, mas acha o seguinte:/ 1) Nosso casamento é por demais apressado./
2) Ela e meu pai não podem admitir que seus pais gastem todo o dinheiro
sozinhos. Querem dividir, meio a meio, as despesas./ 3) Achou você muito
fraca e nutrida inconvenientemente, além de lhe parecer que você, em três
meses [prazo até o casamento] não mudará muito. Ademais, acha
simplesmente que eu devo procurar, além de um segundo, um terceiro
emprego, pois parece-lhe que não vai dar: você é uma criatura doente e
sempre haverá fortes despesas com farmácia, médico etc./ 4) Se nós
casássemos aqui mesmo no Rio de Janeiro, em cerimônia simples, sem
nove-horas, seria muitíssimo melhor. Para nós dois. (Veja a que ponto vai a
lucidez e a objetividade de mamãe) ”.676
Como se vê, a dificuldades financeiras da família dificultam a
obtenção de uma aprovação consensual do casamento, sendo a mãe a
principal porta-voz das forças de resistência. Em uma carta, João Antônio
cita a mãe: “Meu filho, não tem nada que eu não gostasse na Marilda
(mamãe troca o seu nome de Marília para Marilda [que típico!]) mas acho
que você está tomando uma decisão muito rápida. Pode fazer o pedido ao pai

675
Idem, de 13/09/65.
676
Idem, ibidem.
336

dela, mas pense um pouco mais. (...) Eu melhor que ninguém sei as
dificuldades que acabam vindo, logo com os encantos cor de rosa. Não
misture a pureza com o amor”.677
E João Antônio é franco com os pais, sem esconder as verdadeiras
circunstâncias por trás do casamento: “Falei, quando estive a última vez em
São Paulo, declaradamente a meu pai e a minha mãe, que nem eu e nem
você queríamos casar. Que por nossa vontade já estaríamos vivendo juntos e
fim. As famílias que fossem lamber sabão. Um sabão medieval,
ultrapassado, fedorento e cheio de mofo de séculos. Meu pai abaixou os
olhos e minha mãe ficou olhando a toalha de plástico que cobria a mesa da
sala de jantar”.678
Logo, infelizmente, as preocupações práticas da mãe começaram a
ganhar um sentido urgente e impiedoso. A situação econômica do país, e a
dele, pareciam piorar também, agravando as preocupações do noivo
relutante: “(...) o custo de vida vai aumentar e o João Antônio, este infeliz
que lhe escreve, não poderá aguentar o tranco aumentista”.679 Ele diz que sua
capacidade financeira já está exaurida: “O apartamento vai como você o
deixou. Nem mais coisas, nem menos coisas. Resolvi não comprar mais
nada: o meu orçamento já está suficientemente tenso com o que tenho de
pagar: aluguel, prestações destes móveis e da máquina de escrever. Preciso
viver na realidade e não posso me enfiar com novos compromissos, que
acabariam me comendo por uma perna. É. Quando arrumar outro emprego,
com entradas fixas de mais dinheiro, verei o negócio da compra da geladeira
e da estante de livros”.680

677
Idem, de 15/09/65.
678
Idem, de 27/09/65.
679
Idem, de 15/09/65.
680
Idem, de 21/09/65.
337

Quanto mais apertada sua situação, mais ressentida sua atitude para os
pais dela e os seus próprios: “Cheguei de viagem e já comecei a verificar as
coisas. Estou me transformando em máquina de fazer dinheiro. Ou melhor:
dinheirinho (que o que tenho arranjado nos últimos meses não merece
classificação mais digna). O entusiasmo de meus pais e dos seus diante do
nosso casamento é um misto grotesco de ingenuidade, otimismo tôlo e
vaidade aos montes. São casamenteiros por convicção e estão cegos
completamente”.681
Entre a aprovação das famílias e o aumento insuportável das despesas,
a situação realmente se complicou. Um panorama, de próprio punho: “Mário
Peixoto prometeu-me arranjar uns quarenta mil cruzeiros para que eu
complete o total do pagamento do aluguel deste apartamento. Afinal, vou-
lhe passar o raio-x da situação presente do João Antônio: estamos no dia 9
de novembro e ele ainda não pagou o mês de outubro; pagando o
apartamento, além de ficar inteiramente sem dinheiro, fica também devendo
uns quarenta ou cinquenta mil cruzeiros. Que, por coincidência, também não
tenho. Hoje já dei um pulo na revista Reunião e tive a notícia de que tudo
está parado. (...) Se eu não conseguir vender a Erika portátil [sua máquina de
escrever nova, comprada para escrever “Paulinho Perna Torta”] até o dia 20
de novembro estarei estrepadinho. E para comer até lá. Não sei não. Alguém
ou alguns terão de me emprestar dinheiro. O que significa dizer que em
começando o mês de dezembro, eu já começo durinho. Durinho”.682
A ânsia por dinheiro, as necessidades prementes que o projeto
conjugal lhe colocava, fizeram com que João Antônio revelasse sua extrema

681
Idem, de 09/11/65.
682
Idem, ibidem. A revista Reunião vinculava-se à editora Civilização Brasileira, e também era dirigida por
Ênio Silveira. Mas João Antônio nunca receberia por esse trabalho. A revista fechou exatamente nessa
época.
338

preocupação com seu sustento, a qual para muitos manifestava-se em suas


tendências “pão-duristas”: “O maior problema da minha vida, Marília, já foi
amoroso um dia, hoje não é mais. O meu maior problema é econômico. E é
o meu problema fundamental. Todo o resto é simples acessório. (...)/ Este
mês estou com um rombo de 150 mil Cr$ a 200 mil Cr$. Ora, eu sou um
homem que não precisa de amor, preciso de dinheiro. (...)/ Minha vida teve
várias fases. A do amor, a da criação, a da profissão. Hoje eu atingi a fase de
mim mesmo, isto é, a preocupação com o fundamental. E o fundamental,
Marília, como eu o entendo, não é prêmio literário, não é mulher amada, não
é lugar especial dentro de uma equipe especial de profissionais. O
fundamental é a conta bancária. E só”.683
“Não falarei dos outros ângulos do problema, porque eles não me
estão interessando: amor, solidão, futuro etc. Porque: amor já passou na
minha idade mental e o amor não resolve nada economicamente.”684
Entre mil dívidas, João Antônio não tem dinheiro sequer para comer
mais do que uma vez por dia,685 que dirá para comprar o terno do casamento.
Seu desespero é concebido na incompatibilidade entre sua renda e seus
projetos, entre sua revolta e as convenções sociais, enfim, entre sua vida
atual e a promessa de uma nova inserção na sociedade, agora como homem
casado e dono de responsabilidades. Aprovação familiar e dinheiro se
misturam num só problema, pois aquela era necessária, e consumar a união
no modelo das famílias exigia um dinheiro que nem ele nem ela tinham.
Ele diz: “E se as duas famílias pobres e metidas a besta querem
ostentar uma situação pequeno burguesa que não têm, através de casamento

683
Idem, de 13/11/65.
684
Idem, de 19/11/65.
685
Idem, de 21/11/65.
339

paramentado, na igreja, nos trajes e nas fotografias, azar dessas duas


famílias”.686 Mas, na prática, a pressão das famílias venceu suas resistências.
Chega-se, então, ao terceiro nível dos problemas enfrentados pelo
escritor em relação ao casamento que lhe estava sendo imposto: suas
instabilidades pessoais. Ao longo dos meses que separaram a consumação do
amor com Marília e o casamento, João Antônio foi atacado por todas as
oscilações repentinas de humor possíveis e imagináveis, como quando ainda
em São Paulo, ainda “de menor”, ainda não um repórter-especial de jornal
importante. Insurgia-se contra as pressões, tivessem elas responsáveis
diretos ou não, muitas vezes com violência, agredindo a quem estava do
lado, inclusive à noiva, para depois cair em depressão e se acusar
amargamente.
É notável o contraste entre seus bons e maus momentos. Naqueles, as
cartas mostram-no carinhoso para com Marília, chamando-a de
“Gelsomina”, em referência à personagem de Federico Fellini687, ícone da
pureza, e preocupado com o bem-estar dela, infeliz com sua ausência,
fazendo-lhe declarações de amor a sua maneira. Como esta: “Assim
assustado diante da precariedade dos homens sobre a terra, eu pergunto
insistentemente onde anda você, Marília? O que tem comido, bebido, feito,
encontrado? Se ainda sente dores? Se já me esqueceu? Se eu sou substituível
na sua vida? E principalmente gostaria de saber qual o papel verdadeiro que
represento na sua vida além do encantamento, dos beijos, das duas noites de
amor naquele hotel da Praça José de Alencar? Como eu gostaria de tê-la aqui
para não dormir sozinho e para não ruminar certas dúvidas de homem

686
Idem, ibidem.
687
Gelsomina é a atriz mambembe, entre a pureza absoluta e a inteligência limítrofe, do filme La Strada, de
1954.
340

sozinho!”.688 Ele vai ainda mais longe, dizendo: “Você me faz falta o tempo
todo. Durante a noite a sua falta aumenta. De manhã é ruim amanhecer só na
cama. Para dizer tudo: até o banho sem você é ruim”.689
Ao longo dos meses em que ficaram separados em 1965, muito
amorosamente, algumas vezes ele explicita sua preocupação com a saúde da
namorada. Além disso, comentando a difícil condição da mulher na
sociedade, e de Marília na vida, ele parece prometer que com ele seria
diferente: “Quero ajudar você. E quero que você me ajude a ajudá-la — é
inteligente e sobretudo, a seu favor, tem a vantagem de uma índole muito
boa. Eu sou seu amigo, não se esqueça. Mesmo que você se encante de outro
homem aí no Nordeste ou no Rio ou onde for, eu sou seu amigo. Não se
esqueça disso. Não vou abandonar você como se fosse uma camisa já usada
e rota. Eu lhe quero bem, não se esqueça. Quero-lhe como mulher, como
fêmea e como amiga. Eu lhe quero bem como as pessoas a quem quero bem.
Isto é, como aquelas criaturas cujas coisas, acontecimentos, dores, alegrias,
esperanças, anseios, lutas, mexem com as minhas entranhas. E me dói que
minha mãe sofra, que meu pai, meu irmão, minha avó-madrinha. Porque eu
os amo e os quero bem. Sabe? É assim com você também. Como se você
fosse carne minha e se tocam em você, em mim também me tocam. É assim
mesmo e não é um fingimento ou um galanteio ou um agrado que eu lhe
esteja querendo fazer através de uma carta. Eu não minto para você. Porque
respeito suas coisas e quero você, como você é”.690
Ele que, antes de encontrá-la, dizia-se “pan-sexual”691, agora faz juras
de fidelidade: “E isto tudo, Gelsomina, é para que você não pense que ando

688
Carta a Marília de Andrade, de 16/07/65.
689
Idem, de 26/07/65.
690
Idem, ibidem.
691
Idem, ibidem.
341

vagabundeando à toa por aqui, em São Paulo [onde fora visitar a família]./
Aqui ainda teria, se quisesse, minhas mulheres. Porque aqui em São Paulo
eu fui muito jovem um dia e já tinha alguma fama, afinal ganhei meia dúzia
de prêmios literários aqui e até um jornal (Última Hora) chegou a dar o meu
retrato em primeira página. (...) Mas lhe escrevo para lhe confessar que não
procurei nenhuma das duas ou três mulheres que foram minhas amantes em
São Paulo e que, não tenho dúvidas em lhe afirmar, bem que aceitariam a
minha volta. E seria intenso renovar o ato de dormir uma nova noite com
qualquer uma delas. No entanto, vou dormir só./ Estou me guardando para
você”.692
E pede-lhe que volte do Nordeste: “Hoje a minha saudade lhe manda
um beijo. E que você me apareça logo aqui, o mais rápido possível que já
estou cheio de solidão. Nem que seja para ficar só uns dias”.693
E novamente, enquanto tenta impedi-la de romper com os pais, e ao
admitir suas carências, seu tom é de extremo carinho e devoção: “Eu não
estou querendo ‘tirar o corpo fora’. Seria um absurdo, já que a quero aqui,
perto de mim, que você me ajuda a viver e a lutar”.694
Ele, sem rodeios, admite estar totalmente apaixonado:
“Espiritualmente estou vivendo de uma sensação que há muito não sentia.
Há anos não sentia. É algo tão inexplicável que não adianta lhe escrever nem
apenas uma linha. É algo imponderável, fatal, totalizante. Creio que apenas
sinto a tal impressão sensorial de tempos em tempos e que, no fundo, é uma
marca de meu amadurecimento. Inútil lhe explicar. Posso lhe garantir que a
maioria dos homens chama a isto de estado de graça”.695

692
Idem, de 31/07/65.
693
Idem, de 27/09/65.
694
Idem, de 27/07/65.
695
Idem, de 20/09/65.
342

Mas, considerando-se o quadro psicológico de João Antônio já


esboçado até aqui, e imaginando-o submetido às pressões que se
acumulavam sobre ele, sociais, comportamentais, familiares e financeiras, e
a forma com que reagia à iminência de integrar o chamado “rol dos homens
casados”, pode-se imaginar que esse sentimento amoroso, embora puro, não
fosse estável e sofresse os efeitos da insurreição interior de que o escritor era
volta e meia acometido. A regra geral do amor, com sua alternância entre
sentimento de posse e de entrega, entre regozijo de dominação, alegre
submissão e revolta libertadora, manifestava-se em João Antônio — como
quase tudo, aliás — de forma exacerbada. Nessa fase, carinho e
agressividade alternam-se em quase todas as cartas endereçadas a Marília,
até que o conteúdo das cartas fica realmente duro e dilacerado. E, como se
verá, esse mal-estar estende-se gradativamente a todas as áreas de sua vida.
De início, retaliando a demora dela em escrever-lhe, ameaça a
namorada com seu passado de homem livre, “pan-sexual”: “E faz hoje uma
semana que você partiu. Eu tenho para você, uma notícia nada boa. Após
uma semana de sua partida, ainda não recebi uma só linha sua. Acontece...
Bem. ‘Acontece que tudo nesta vida acontece’, como diz o samba do
Cartola, com trinta anos de janela. Olhe aí, se você arranja outro motivo de
silêncio, qual seja, a distância, o correio, ou sei lá, não sei não. Bem, você
corre o risco de uma substituição./ Portanto, Marília, Gelsomina, duas
criaturas numa só, no caso de uma substituição, não fico obrigado a suportar
lamúrias. Sendo um monógamo circunstancial, de acordo com a simples
obediência a um impulso naturalíssimo e normalíssimo de minha natureza,
343

posso me tornar, ou retornar a um estado de poligamia. E você sabe muito


bem que costumo levar as coisas até suas últimas conseqüências”.696
É verdade, ele reconhece o fato de que ela também poderia traí-lo:
“Igual risco, estou correndo, dia a dia aí no Nordeste. E nem sei se você me
volta”.697 Mas no fundo não sente ser o risco igual, imaginando-se, ou talvez
de fato sendo, muito mais experiente que a namorada.
Afora as interferências familiares, num território exclusivo dos dois
namorados, noivos à força, fica evidente que os trunfos de cada um eram, do
lado de João Antônio, a experiência de quem já se aventurara, adolescente,
no meio em que se havia criado, e oito anos mais velho, para não falar do
emprego reluzente, ainda que pouco sonante, de repórter-especial; e, da parte
de Marília, a pureza e as delícias da juventude, que desarmavam o auto-
entitulado “homem do mundo”, e a força das atitudes que a jovem era capaz
de ter, sua coragem.
Para além do enfrentamento amoroso mais típico, João Antônio é não
raro francamente pessimista em relação a seu futuro juntos. Algumas vezes,
deprecia-se aos olhos dela: “Eu podia e devia esquecer você. É errado me
unir a você. Errado para mim e para você. Nós vamos passar dificuldades
juntos. Eu não ganho tanto dinheiro assim como possa talvez aparentar. (...)
Nunca poderei iludir você. Sou um temperamental, ranzinza, e até mesmo
cínico, às vêzes. Tenho a mania de arrostar certas coisas sacrossantas ou
tidas como. Sexualmente sou exigente, não admito nenhuma restrição”.698
“Marília, não adianta nada eu lhe falar claramente, rasgadamente,
abrindo-lhe o monte de defeitos que tenho e as minhas impossibilidades de
modificação de meu comportamento. Não adianta nada. Você não muda de
696
Idem, de 17/07/65.
697
Idem, ibidem.
698
Idem, de 26/07/65.
344

sentimentos em relação a mim. E eu, embora saiba que estou e estamos


fazendo uma besteira de quatrocentos cavalos [casando-se], tenho um
sentimento líquido: é doloroso estar neste apartamento sem você. (...) Eu lhe
quero bem e lhe digo, carta após carta, que você deveria repensar e arranjar
marido endinheirado. Seria melhor para você. Para mim. Para ambos. (...) Se
lhe digo que você deveria arranjar outro tipo de companheiro, naturalmente,
lhe indico uma solução diferente e mais cômoda para a sua vida. Mas se
você quer viver mal, o azar é de nós dois mesmos. Paciência. Você quer se
sacrificar, você quer viver com alguém de quem gosta. Você não quer se
prostituir. Você quer servir aos seus sonhos. Eu respeito isso tudo, Marília.
E, e o que mais? Meus pêsames!”699
Outras vezes, ainda depreciando-se, mas pela via contrária, dizia ser
ingênuo demais, uma vítima da sedução feminina, e chegou mesmo a
maldizer a noite em que a encontrou: “Afinal, eu não passo mesmo de um
sem-vergonha muito grande, que não aprende a viver nunca. Um
sentimentalão sem tamanho, um caso de otário sem remissão. Fique
tranqüila, menina. Este aqui, o João Antônio, só pode fazer mal a uma
pessoa no mundo. É a ele mesmo. (...)/ Deu azar indo a um iate chamado
Debret. Foi ver Rosa de Ouro no mar e caiu do burro. Serelepou você aí,
Marília-Gelsomina, na vida deste. Tempo de azar. Onda grossa. Quinze
telefonemas me procurando. (...)/ Ele sabe que está errado, que tudo está
errado, que está topando com uma pedra, e vai se estrepar todo.”700
Vale pensar na seguinte hipótese: para ele, que se dizia um homem
experiente, que vagloriava-se de conhecer e dominar o amor das putas da
Boca-do-Lixo, julgar-se “fisgado” por uma jovem donzela oito anos mais

699
Idem, de 01/10/65.
700
Idem, de 26/07/65.
345

jovem e de família tradicional era um humilhação pessoal considerável.


Talvez isso estivesse latente nos pedidos da mãe para que ele reconsiderasse
sua decisão de casar. Caso isso seja verdade, tal recriminação haveria de
latejar doloridamente em sua cabeça a cada dívida que contraía em função
do casamento.
Muitas vezes ele prevê o rompimento da relação partindo dela, o que
não deixa de ser uma forma de continuar depreciando-se, para em seguida,
como síntese de todas as suas reflexões sobre a condição amorosa, tratar o
fim do amor como algo que independe das intensões e das características de
duas pessoas: “Você, pela minha mão e pela sua mão, conhecerá a
intensidade do amor e seus êxtases. Através dele, se libertará de todo o medo
de viver, de toda angústia, de quaisquer pequenas dores. Há de se acordar
cantando em muitas manhãs porque foi amada e amou durante a noite. O
amor é descarga e especialmente é escape. Uma vez descarregadas as
criaturas tornam-se leves-leves. E calmas. Bem. Você gozará bastante o
amor que eu tiver para lhe dar, Gelsomina. Um dia, você se encantará de um
homem mais completo e mais conveniente do que eu. Eu serei um capítulo
passado. Assim é na vida. E desde já estou preparado. Assim é./ Você, lendo
isto que lhe escrevo, há de dizer com exclamações:/ — Não, não, nada disso!
Isso nunca acontecerá!/ E eu lhe respondo que nada, absolutamente nada é
eterno em termos humanos. e muito menos no amor. (...) Estejamos
preparados, Marília. E tenhamos, desde agora, a suficiente dignidade para
nos respeitarmos e quando o fim chegar, que chegue claro, sem subterfúgios
ou conversas moles, sem ciúme e sem queixa./ E enquanto o fim não chegar,
vivamos! Que já perdemos muito tempo com sua viagem ao Nordeste e com
346

minha viagem ao fundo das coisas./ Tchau! A cama é de solteiro e vou


dormir só”.701
Coroando funestamente todos essas hesitações, pessimismos e mau-
augúrios, a faceta mais difícil do ainda jovem João Antônio era, como ele
mesmo dizia, um certo cinismo. A revolta contra as pressões das
circunstâncias transformava-se em agressividade, que se antes já atingira aos
pais de Marília, e depois aos seus pais, agora voltava-se contra a própria
noiva Já com os preparativos para a união em andamento, ele lhe passa frias
instruções, e com tal dureza que há de se imaginar o efeito em Marília do
que o noivo era capaz de lhe dizer. Ele não apenas exigia que ela aprendesse
a gastar melhor o dinheiro, que aprendesse a escolher melhor os utensílios de
casa, mas também que lhe enviasse de Jaú mercadorias que pudesse vender
no Rio, e, por fim, que se responsabilizasse por operações mais arriscadas,
que envolviam, por intermédio do pai, sem dúvida, a obtenção de créditos e
a abertura de financiamentos a longo prazo: “Mas o lado prático das coisas é
o seguinte, e que você, estando todo esse tempo aí em Jaú, deve começar a
providenciar imediatamente:
1) Aprender a comprar coisas, que você não sabe comprar nada.
Comprou um tapete que é uma imunda porcaria, toalhas que são umas belas
inutilidades e uma colcha de cama que já está se desfiando toda. Como
compradora, seu fracasso até então é um dos mais legítimos de que já tenho
notícia. A deduzir pelo que você comprou para este apartamento, estou
falido desde já.
2) A situação econômica brasileira está prestes a começar a piorar
vertiginosamente. (...) Portanto, dona Marília, trate da saúde o mais que você

701
Idem, de 29/07/65.
347

puder e de descansar também. Quando você chegar vai precisar trabalhar


imediatamente. Caso contrário, nós dois ficaremos falando sozinhos. (...)
3) Aprenda a cozinhar, lavar, tratar de uma casa etc. Você não entende
nada disso e não terei dinheiro para a empregada. Estando sozinho, eu
mesmo me viro. Veja lá, o que é que você vai me aprontar.
4) Arrume a maior quantidade de cabelo que você puder aí em Jaú e
redondezas. Preciso de muito cabelo para o José. Procure entre os pobres,
que têm filhas menores cheias de tranças. Preciso de cabelo. Compre ou
arrume a maior quantidade possível.
5) Duas outras coisas que você pode providenciar aí: um jeito de
financiamento do apartamento próprio e de um automóvel. Lembro-me de
que seu pai me falou num plano para automóvel que se faz aí em Jaú.
Procure entrar num deles e tire o carro em seu nome, sei lá. Aprenda a dirigir
um auto e tire a carta, que isto é muitíssimo importante e você terá aí em
Jaú, uma maneira útil de aproveitamento de tempo.
Não sei não, Marília. Você não me conhece bem, não. Só me conhece
enternecido etc. Em todo caso, acho muito bom você providenciar as coisas
aí acima e não me aparecer no Rio sem elas./ Caso contrário, não viveremos
juntos nem uma semana”.
E ele ainda termina com o amantíssimo PS: “Veja móveis antigos aí
em Jaú e redondezas. Móveis e não penduricalhos inúteis”.702

702
Idem, de 15/09/65. Aparentemente, ele pede que ela arranje em Jaú, muitas vezes por intermédio da
família, artigos que pudesse vender no Rio. Só isso explica o pedido de cabelo aqui mencionado. Novos
exemplos disso aparecerão a seguir. Em outra carta a Marília, de 20/09/65, ele volta ao tema da
racionalização das compras: “O tapete que você comprou e a colcha desfiam. A vassoura de pêlos continua
a deslocar o cabo, o filtro também encrencou e vaza água, necessário que eu vá reclamar. Tudo errado.
Você, além de péssima compradora é também azarada. Dá um azar dos capetas. Não se amofine, todavia,
por causa disso. Napoleão, Machado de Assis e Dostoiévski eram epiléticos. E nem por isso deixaram de
ser geniais”. Ele, numa terceira carta a Marília, de 23/09/65, pede-lhe inclusive que explore a sabedoria e o
impulso consumista da própria mãe: “(Mas já que ela [a futura sogra] é uma compradora por vocação, não
se esqueça de que o apartamento do João Antônio está pelado como o seu ocupante quando nasceu. Precisa
de mesa, cadeira, geladeira, estante, cortinas, tapetes e o resto todo)”.
348

Em outra carta, o tom é semelhante: “Mas isso já é outra história e


você é tão infantil que talvez me responda qualquer coisa mais ou menos
assim: ‘Mas um canalha também ama’. Influência do cinema, da literatura e
de outras inspirações importadas./ Voltando aos assuntos práticos:
1) envie os convites (...)
2) Vá despachando coisas de Jaú. Se o número ou quantidade de
coisas for muito grande como será depois?
3) Reestude com seu pai essa cooperativa onde se compram carros.
Veja a marca e as condições de pagamento e entrada etc. Talvez eu me meta
numa coisa assim para arranjar dinheiro com a venda do carro. Verifique.
4) Não se esqueça que uísque é dinheiro em caixa, desde que seja
escocês autêntico. Havendo algum dando sopa por aí, vá mandando já. É
muito fácil colocá-lo em qualquer cidade civilizada do mundo, até no Rio de
Janeiro.
5) Veja se consegue reaver as jóias suas emprestadas (ou dadas?) à
sua mãe. Jóia não é dinheiro em caixa, mas ajuda. (...)”.703
Essa alternância de humores e disposições em relação ao casamento,
acontecimento central de sua vida no ano de 65, prejudicou seriamente seus
sentimentos em relação à noiva. Às vésreas da data marcada para as uniões
religiosa e civil, seu estado de espírito era o pior possível. “Não haverá
dúvida nenhuma de que estou vivendo uma das temporadas mais aziagas de
minha vida, esta do pré-casamento ou algo que o valha. A minha péssima
situação profissional unida à completa falta de perspectiva, num estado geral
de depressão, gera um estado de espírito onde só vejo o negativo do
negativo. E o negativo do positivo”.704

703
Idem, de 13/09/65.
704
Idem, de 09/11/65.
349

Ele se diz arrependido de sequer haver pensado em se casar: “Eu estou


arrependido de haver pedido você em casamento. E se não volto atrás é
apenas por uma questão de... de pena. (...) Quando lhe disse uma vez, num
bar aqui do Rio, que eu não sou homem que devesse ter mulher fixa, não
menti, nem fiz uma frase. Assim eu sou.”705
E clama para que ela veja as coisas como ele: “Você tomou o bonde
mais errado que poderia ter tomado entrando em minha vida. Eu,
pessoalmente, duvido que chegue até o meio da linha. Veja bem se deseja
continuar. É tão fácil agora evitar complicações futuras. Pense e repense. Se
você tivesse a minha experiência, já teria saltado do bonde errado”.706
A pressão financeira, em parte, servia para explicar a mudança do
amante dedicado para o noivo relutante e inconveniente: “Nosso casamento
está fadado ao fracasso redondo, mesmo por que eu constato que não ganho
dinheiro nem para mim sozinho. (...)/ Se a minha vida está ruim agora, com
a sua vinda piorará muito. Portanto, se eu pudesse voltar atrás, voltaria.
Tranqüilamente. Para me ver livre de problemas econômicos. (...) Eu me
arrependo de tudo o que fiz com você. Definitivamente não é mais minha
hora de amor. É minha hora de dinheiro. O amor, a profissão, a literatura são
coisas findas. As circunstâncias me ensinaram a encarar tudo isso sem
vibração: apenas o dinheiro me faz vibrar. Não conheço o valor das coisas,
apenas o preço me basta. (...) Se você se casa ou se une por amor a mim, eu
o faço por pena de duas famílias idiotas e sentimentalóides, burguesas e
ultrapassadas, sonhadoras e bem mesquinhas dentro da limitação com que
olham tudo. Eu sou sovina e dinheirista, franca e abertamente. O resto não
me diz respeito, o dinheiro sim. Portanto, mulher fixa ou filhos, desde que

705
Idem, de 13/11/65.
706
Idem, ibidem.
350

não me dêem dinheiro claro e evidente, só comparecem à minha vida para


atrapalhar. Essa, a única realidade. (...)/ E eu quero dinheiro, muito dinheiro
para me libertar de tudo, inclusive do meu casamento, para cair no mundo e
na vida como um vagabundo”.707
“E quero uma economia privilegiada, daqui há uns cinco anos, sabe
para quê? PARA MANDAR TUDO À MERDA. Inclusive este casamento,
que não terá filhos (nem sonhe com isso), a minha profissão, a literatura, a
arte, tudo. E cair no mundo sem nenhum destino e nenhuma intenção. Viver
como um vagabundo. E viver só para mim. Nem você e nem ninguém. Se
possível nem as lembranças. (Não havendo filhos não haverá
lembranças)”.708
O tema “filhos” volta em outra carta, com ele sendo igualmente
enfático: “Compre uma provisão de anti-concepcionais aí em Jaú e informe-
se CLA-RA-MEN-TE com o médico [sobre] suas condições para a
maternidade. EU NÃO QUERO FILHOS!”.709
Ele, ao mesmo tempo em que toma providências para viabilizar o
casamento, ameaça desfazê-las em seguida: “Estou tratando de passar para
outra pessoa interessada este apartamento e os móveis todos. Talvez eu saia
do Rio de Janeiro”.710
Mas, se evitar o casamento era difícil, devido ao envolvimento das
famílias, ele procura então outra saída radical, desesperada, que expõe à
noiva, cristalinamente, num momento exponencial do que chamava de seu
“cinismo”: “Estive pensando e uma solução me vem através de nossa
separação logo após o casamento. Anular dentro de dez dias. Inventando
707
Idem, ibidem.
708
Idem, de 19/11/65.
709
Idem, de 21/11/65.
710
Idem, de 19/11/65. Em carta de 21/11/65, ele repete a ameaça de desfazer-se do apartamento alugado e
parcialmente mobiliado.
351

uma coisa qualquer. Você vai para a casa de sua tia ou para onde bem
entender. Eu passo imediatamente os móveis e vou morar numa pensão.
Depois se cuida imediatamente da anulação em Cartório aqui do Rio”.711
Claro que, como costumava lhe acontecer, todas essas frases ácidas
compunham um outro lado da moeda, que se alternava com um lado
positivo. Na manhã seguinte a uma carta de fúria anti-matrimonial, ele diz:
“Você aí acima, Marília, vê o retrato de metade de um homem. Prestes a ser
engolido pela pressão econômica. Não lhe exagerei em nenhum dos números
e quantias. (...)/ Mas seria uma estupidez agredir você com isso. Você não
tem nada com isso. Você não encomendou essa situação, ela é minha. É uma
burrice acabar com as coisas entre nós. O meu lado sentimental — que ainda
existe, apesar de tudo — me diz claramente que você serve como
companheira. (...) Eu maltrato você e depois fico magoado comigo mesmo.
Não adianta nada. Acabo me estraçalhando nessa luta entre o homem cínico
e o sentimental que moram dentro de mim. Nem sei qual dos dois vencerá.
Ambos são fortes e terríveis. Enquanto um dos dois não se declara vencedor,
eu vou sendo isto, Marília: uma briga danada comigo mesmo. Nessa briga,
sempre resta uma porrada para você”.712
Logicamente que, às vésperas do casamento, a alternância de humores
do noivo pôs o compromisso à beira do rompimento. Marília, em novembro
daquele ano, responde-lhe duramente, com frases do tipo “Joguei toda a
minha vida no lixo”, ou “Depois dessa carta não sei mais se suportaria viver
a seu lado”. E até ameaçando se matar.713 E ele acusa o golpe: “Se é assim
como você me escreve, se a náusea chegou e já está nesse pé, agora é que
nosso casamento não vai significar nada mesmo. Nem o contrato oficial,
711
Idem, ibidem.
712
Idem, de 20/11/65.
713
Idem, de 24/11/65.
352

nem a ligação humana que nos prendia. Se tudo é morto, muito


provavelmente pouco demorará a apodrecer. Como acontece com as coisas
mortas”.714
Talvez, se tais coisas fossem ditas por um amante ao longo de um
processo de desgaste do amor, desdobradas ao longo do tempo em fases
distintas, em que a felicidade vai pouco a pouco se rendendo ao cotidiano,
elas não chamariam tanto a atenção. Mas o fato de as declarações de amor,
as demonstrações de carinho, as preocupações com a saúde de Marília, o
relato dos esforços em nome do bem-estar do casal pós-cerimônia e lua-de-
mel, estarem embaralhados a sentimentos os mais contraditórios, de raiva,
revolta, humilhação e de pessimismo, mostra o quanto o relativo sucesso
literário e a relativa ascensão social não havia mudado a essência do
temperamento instável do jovem escritor. Se de um lado dizia-se apaixonado
como nunca, de outro sentia estar perdendo o controle sobre sua vida, e
debatia-se contra isso. Ainda que uma pessoa apaixonada esteja mesmo
sujeita a variações súbitas de sentimento, da realização física e espiritual
mais plena à crise de auto-estima mais profunda, por menos justificadas na
prática que sejam umas e outra, em João Antônio espanta, no mínimo, a
distância entre esses pólos. Um caso maníaco-depressivo, como
diagnosticou o amigo e farmacêutico Manoel Lobato?
E num estalo a insatisfação com a mudança estrutural que aconteceria
em sua vida, e de certa forma contra sua vontade, transbordava para os
demais os planos da vida do escritor, respingando, por exemplo, também nos
pais: “Você, meu pai, minha mãe, meu irmão. Talvez eu não tenha
conseguido amá-los. Caso contrário, não os teria deixado nunca, nem pelo
Rio de Janeiro e nem por cidade e por coisa nenhuma deste mundo. Se
714
Idem, ibidem.
353

houver minha independência econômica, eu cairei no mundo. E sozinho.


Bem sozinho. Não se iluda”.715
E, somada à crise financeira pessoal e nacional, essa insatisfação
atingia em cheio a profissão de jornalista, que do entusiasmo orgulhoso
passaria à descrença completa em poucos meses. Já em julho de 65, sua
relação com aquela primeira experiência jornalística estava cindida: “E o
emprego no Jornal do Brasil, embora não seja nenhuma conquista em
termos de jornalismo, não é coisa que se encontre a qualquer hora e a todo
dia. De certa forma, estou preso ao Rio de Janeiro”.716 Ou até mais do que
isso: “Eu detesto o jornalismo que faço para o ‘Caderno B’ do Jornal do
Brasil. Gostaria de poder escrever outras coisas, noutra linguagem, para
outros leitores. Mas não posso: porque minha realidade também é o salário
mensal do Jornal do Brasil. Você entendeu? Então, me cumpre
contemporizar certas coisas. Custa-me, mas eu contemporizo”.717
Ele de fato não consegue se entusiasmar, e as tarefas diárias do
emprego, por mais glamourosas, lhe parecem um fardo: “E que maiores
considerações poderia lhe fazer? Sairia tudo negativo, embora eu esteja
passando a viver a partir de hoje, no Rio de Janeiro, como se vivesse em
Cannes, em Punta del Este ou em Berlim ou em Mar del Plata. Com este
Festival Internacional do Filme, que se iniciou hoje em Copacabana, Cine
Rian, é um tal de mexer com coisas internacionais e pessoas de nomeada,
que não se acaba mais. E para mim, queira ou não, na qualidade de repórter-
especial do Jornal do Brasil, tenho de me virar nos corredores do
Copacabana Palace Hotel. A partir de amanhã, o Paulo Afonso Grisolli [o

715
Idem, de 13/11/65.
716
Idem, de 17/07/65.
717
Idem, de 27/07/65.
354

editor do ‘Caderno B’] espera matéria todos os dias até as onze da matina.
É”.718
E, à medida que o casamento vai se confirmando e aproximando, o
salário insuficiente também pesa, obrigando-o a acumular serviços:
“Profissionalmente continuo no Jornal do Brasil e [em] trabalhos avulsos
para a Civilização Brasileira. Ainda não consegui intensificar os contatos
para a obtenção de um segundo ou terceiro emprego, pois, o atual Festival
Internacional do Filme, me leva o tempo quase todo. E ainda tenho os
avulsos compromissados com a Civilização Brasileira. É fogo”.719
Mas estava ficando difícil disfarçar para si mesmo o quanto o glamour
do “Caderno B” já o havia saturado: “O trabalho intenso, aquele em que não
acredito e que detesto, aquele aliterário e até mesmo o pára-literário, o
jornalístico, o editorial, me serve como uma ferramenta nojenta com que
tapeio os meus dias e a minha realidade mais imediata./ É uma espécie de
veneno tão imoral ou amoral como a cocaína, o ópio ou a maconha. Há
pouca diferença. Enquanto o infeliz está tomado do que fazer, estando a
lutar, sem dúvida alguma, se esquece das outras solicitações essenciais do
homem. Aquelas necessidades mais intensas e profundas, porque afinal,
quem vai dormir bem cansado e com coisas metidas na cabeça para o dia
seguinte, não tem vontade de sonhar, nem de mulher na cama, nem de
cafuné e nem do resto. Também não é dormir. É morrer./ A pior desgraça,
Marília, é quando um homem tem imaginação demais ou lucidez demais.
Eu, otário impenitente, ora fico num caso, ora noutro. Só não consigo ser um
ser normal. Também eu não me esforço. Como não acredito no trabalho em
série, posso fazer trabalho em série muito sossegadamente. Ele não me dói,

718
Idem, de 15/09/65.
719
Idem, de 20/09/65.
355

porque não acredito nele. O pior é ficar nessa porcaria de vida como um ser
pensante, isto é, como um homem que faz algo além de comer, beber,
trabalhar e dormir sozinho”.720
“Calorão no Rio, e é bom: diminui a fome da gente. Engana-se o
estômago apenas uma vez por dia. O Jornal do Brasil continua o mesmo
ramerrão da mesma droga. Mas os donos do Jornal do Brasil devem estar a
multiplicar seus lucros: sorte deles. Azar dos empregados.”721
A partir de uma certa hora, desaparece qualquer interesse pelo
trabalho no JB, e prevalece a já citada sensação de estar numa “péssima
situação profissional”. Mesmo os frilas que descolava em outras
publicações, além de tomarem seu tempo, muitas vezes sequer lhe
pagavam.722
E foi assim, pressionado pela extrema falta de dinheiro, literalmente
passando fome, acossado pela família da namorada, pelo amor que sentia por
ela, pela solidão quando Marília lhe faltava, que João Antônio atravessou o
ano de 1965, seu primeiro como escritor reconhecido, jornalista profissional,
e residindo na cidade que escolhera. O deslumbramento com a vida nova
durou pouco, e logo a realidade tratou de provocar novamente sua oscilação
emocional. Só um quadro geral de deterioração pessoal explica a dura
constatação que faz numa das cartas da época:
“Eu venho me matando aos poucos e matando todas as pessoas que
me amam. Isso é há muito tempo, desde quando não sei”.723

720
Idem, de 27/09/65.
721
Idem, de 10/11/65.
722
Idem, de 21/11/65.
723
Idem, de 24/11/65.
356

Jornalismo e projeto literário: a experiência no Jornal do Brasil

Este capítulo, não obstante ter sido até aqui eminentemente


biográfico, tem como objetivo central — visto que nisso reside sua
articulação com os dois primeiros capítulos do trabalho e com a tese mesmo
aqui proposta — demonstrar o impacto estilístico que a experiência de João
Antônio no jornalismo teve em sua formação como escritor. De todos os
ingredientes que compuseram o estilo de João Antônio, o jornalismo foi o
último a entrar na panela, e, uma vez ele homogeneamente integrado aos
demais, pode-se considerar que o período de formação de João Antônio
como escritor estava terminado. Como aqui procurarão mostrar os
documentos reunidos, as versões dos textos contrapostas e as análises
sugeridas, este impacto é triplo: afeta sua temática, pois a gama de assuntos
cobertos por seu universo literário aumenta consideravelmente; implica um
reequilíbrio entre suas experimentações ficcionais e os textos que fazia para
viver, antes restritos à publicidade mas agora dignificados por um ideal
estético e ideológico de lítero-jornalismo; provoca uma “explosão dos
gêneros”, que torna maleável a natureza dos textos do escritor, agora de fato
apenas “textos”, diluindofronteiras entre as categorias ficção, não ficção e
textos jornalísticos.
Lá atrás, o estilo do aprendiz, e mesmo o do jovem escritor, montou
um universo particular de referências composto por duas vertentes: a secura
máscula de Graciliano Ramos e dos escritores da assim chamada “literatura
de homem”, como Hemingway, Gorki e Dostoiésvski, pelos seus soldados,
criminosos, boxeadores e toureiros, homens ora rudes, ora atormentados, ora
cruéis, mas sempre densos emocionalmente; e, de outro lado, vindos dos
357

modernistas, o interesse pelas cidades grandes, pela variedade e força da


cultura popular e pelo enriquecimento simbólico do cotidiano. Mário de
Andrade, Antônio de Alcântara Machado e Carlos Drummond são
referências recorrentes no conjunto da documentação. Naquele primeiro
momento, a partir dessas “afinidades eletivas”, João Antônio procurava
combinar dureza e lirismo com uma espécie de tristeza engolida, ao mesmo
tempo orgulhosa, tocante e viril. Tudo isso numa linguagem correta
gramatical e sintaticamente, sem coloquialismo excessivo, mas também
despojada de grandiloqüências e parnasianismos; econômica e, por isso
mesmo, contundente.
Ao momento seguinte de João Antônio como escritor deram forma:
um, a aventura lingüística do regionalismo áureo, a que se lançaram
Guimarães Rosa, figura de maior destaque entre todos, e os escritores,
amigos ou não de João Antônio, reunidos em torno da coleção Terra Forte,
da editora Francisco Alves, dirigida por Paulo Dantas, de que são exemplo o
próprio Dantas, Caio Porfírio Carneiro e Osório Alves de Castro, entre
outros; dois, o “regionalismo urbano” de uma Carolina Maria de Jesus, em
seu famoso livro Quarto de Despejo, variante da mesma corrente
regionalista — afinal, para além da oposição campo x cidade, ambos
valorizavam o discurso, a dicção e a visão que os humildes têm do mundo e
das pessoas.
Tais leituras e convivências apresentaram-lhe um novo horizonte,
mais livre, menos bem-comportado estilisticamente, e que lhe permitia
incorporar a sua literatura um material que conhecia muito bem: a fala das
ruas.
Só então viria o jornalismo, que aos poucos se confunde com a
literatura de maneira inseparável. É interessante ver como o escritor, ao
358

longo dos anos, ao invés de tentar uma convivência pacífica entre suas duas
profissões (escritor/jornalista), reservando a cada uma seu espaço e
respeitando suas particularidades, busca obstinadamente fundir sua atividade
literária à de jornalista no próprio nível do texto. Razões para tanto não lhe
faltavam. Era, em parte, uma estratégia para impedir que o trabalho
jornalístico, imprescindível para seu desesperado sustento, roubasse-lhe o
tempo necessário para escrever literatura. Era, também, uma maneira de
profissionalizar a atividade literária, remunerando-a não com base em
magros e incertos pagamentos de direitos autorais (pelos quais lutaria
também), mas a partir de um salário mensal, que permitisse ao escritor viver
de maneira estável com sua atividade “lítero-jornalística”. Além disso, tal
fusão combinava bem com sua tendência a transformar suas experiências
pessoais – ou seus testemunhos, pois também são experiências pessoais,
afinal – em literatura de forma bastante direta e imediata. Para não dizer que
se beneficiava em larga dose de sua total naturalidade em descer aos níveis
mais baixos da sociedade brasileira. Por fim, este era de fato um caminho
promissor para seu projeto estilístico, cuja meta, como foi visto no capítulo
2, era a composição de um gênero híbrido entre o regionalismo e a literatura
urbana. O jornalismo, tal como ele o idealizava e o praticava, permitia-lhe
um contato diário tanto com a força poética da linguagem inculta quanto
com o dia-a-dia na cidade. As regras de composição do texto jornalístico, os
gêneros nele trabalhados, a princípio tão diferentes dos de seus textos
literários, logo se amalgamam ao estilo anterior de João Antônio.
Ele não foi o único escritor da geração a trazer elementos jornalísticos
para sua literatura. Afinal, como antes mencionado, o jornalismo e a
publicidade eram os territórios que se abriam a novos “profissionais do
texto”, os quais, devido às circunstâncias políticas do momento (anos 60 e
359

70), não mais se identificavam com a ligação tradicional entre vocação


literária e funcionalismo público.
O jornalismo, apesar do dirigismo criativo até certo ponto inevitável, e
das exigências profissionais elementares (ter um chefe, horários, cumprir
prazos, elaborar métodos de trabalho etc), possibilitava, nas brechas, um
espaço para a exposição de idéias, para uma benfazeja política cultural, no
nível macro, e, no nível micro, para aproximações de alcance meramente
pessoal com figuras de destaque no cenário das letras e das artes. 724 Já a
publicidade era vista como uma área em que, apesar das habilidades de
escrita serem importantes, elas estavam ainda muito mais submetidas a
exigências mercadológicas do que no jornalismo, e as “pautas” publicitárias
eram muito mais distantes do homem, de seus atos e das realidades política e
cotidiana; ou seja, exatamente dos pontos de contato entre jornalismo e
literatura. A publicidade pagava mais, porém desafiava a consciência ética
da geração. Para João Antônio, que abandonara a linguagem econômica dos
contos iniciais em favor de uma prosa mais livre, à base da reelaboração
literária da linguagem oral, e que, em outro plano, procurava a todo custo
transformar sua atividade artística em sua fonte de renda, render-se à
publicidade seria pecado mortal.
Já se viu o que ele achava de seu trabalho na agência Petinatti. Para
evidenciar o quanto o ponto de honra ético era comum à boa parte da
geração, veja-se agora este depoimento enfático que colheu de Ignácio
Loyola Brandão: “O bicho de sete cabeças que engole talentos: a
724
Cruzando-se os artistas que foram tema de matérias assinadas por João Antônio com sua lista de
relações no meio – parcialmente levantada junto a tantas fontes, mas com destaque para o depoimento de
Marília Andrade, colhido em 20/07/2003 –, vê-se que era comum ele escrever sobre seus amigos ou fazer
amizade com pessoas sobre quem escrevera. Paulo Dantas é um exemplo (“Nas águas do açude e do Rio”,
in JB, RJ, 22/08/65), João do Valle (Poesia de João nasce do canto”, in JB, RJ, 22/08/65), Esdras do
Nascimento (“Um escritor, seu ofício e seu sucesso”, in JB, RJ, 05/05/65), Ignácio Loyola Brandão (“Um
filme e um livro contra a engrenagem”, in JB, RJ, 14/12/65) etc. Há muitos outros.
360

publicidade. A todo momento, se a pessoa é um redator de capacidade e


talento, o monstro ameaça cair sobre sua cabeça. Devora mansinho e com
jeitinho. Na base dos salários altíssimos. Uma agência de publicidade paga
cinco, seis, dez vezes mais que um jornal. Sujeito bom, de talento, pega fácil
de milhão e meio para cima. (...) A publicidade compra os disponíveis, os
apertados, os cansados de se bater contra os moinhos de vento”.725
Como se não bastasse essa descrição apocalíptica, João Antônio
arremata: “Naturalmente, o que Loyola quer dizer é que redator de
publicidade é aquele homem que ganha muito para escrever bem e
brilhantemente sobre as vantagens do sabonete produzido por A. E,
especialmente, que o sabonete A é bem melhor que o sabonete produzido
por B. Quando na realidade o redator sabe que tanto A quanto B são
sabonetes que não valem absolutamente nada”.
Embora representasse uma opção de maior segurança profissional do
que a pura dedicação à arte, muitas vezes, para não dizer quase sempre, o
jornalismo por si só propiciava receitas insuficientes para a estabilidade
financeira dos escritores. Simplesmente porque não pagava bem. As agruras
pecuniárias por que vimos passar João Antônio às vésperas de seu
casamento, na condição de repórter-especial do JB, nos anos áureos do JB,
comprovam isso. Ou seja, os escritores precisavam combinar os rendimentos
obtidos no jornalismo com os dos “frilas” editoriais e, pior, publicitários,
que executavam “torcendo o nariz”. Mesmo assim, trocar as redações pelas
agências significava uma opção de vida, não uma simples troca de emprego.
Reforçando em outro nível essa vinculação entre literatura e
jornalismo, vinham do exterior os ares do New Journalism, movimento
surgido nos Estados Unidos e que, grosso modo, propunha um texto híbrido,
725
“A revolta que vem do silêncio”, in JB, RJ, 15/12/65.
361

com estruturas narrativas e pontos de vista tradicionalmente da ficção usados


em matérias de jornais e revistas.726
A realidade jornalística caminhava em direção à literatura, renovando-
se, expandindo seus limites formais. E a literatura ia em direção à realidade,
de um lado à procura de uma dramaticidade enfatizada pelo caráter factual,
de outro em busca da realização das funções sociais que os escritores da
época (os artistas em geral) acreditavam ter, da eficácia engajada do espírito
coletivista do momento, tornadas possíveis graças à expansão do universo de
leitores atingido pelos grandes jornais.
A combinação jornalismo e literatura, repita-se, portanto, é uma marca
da geração. O livro de Ignácio de Loyola Brandão, Zero, talvez seja o
exemplo máximo produzido na época, com suas manchetes, com sua
maneira de fazer a trama avançar reproduzindo matérias de jornal, enfim,
com os experimentalismos formais que justamente diluíam as fronteiras
entre as duas áreas.727 Mas em um número da revista Extra, organizado pelo
próprio João Antônio, cujo mote era a reunião de contos dos chamados
escritores “malditos”, o ideal de uma literatura decalcada da realidade
aparece de forma bastante nítida como algo comum a todo o grupo
selecionado: “Eles não se emendam: sempre falando no miserê geral, no
desemprego e no emprego da força; no feijão, na carne dos amantes, futebol,
homossexualismo, cadeia; sempre falando no coração, fígado e intestinos da
realidade brasileira”.728 E, claro, inserido em texto específico do organizador

726
Wolfe, Tom (org.). The New Journalism, Picador, London, 1973.
727
Brandão, Ignácio Loyola de. Zero, São Paulo, Clube do Livro, 1986.
728
Antônio, João (org.). Extra: Realidade Brasileira – Coleção Livro-Reportagem, no 4, São Paulo, 1977.
Deste número faziam parte ainda: Tânia Faillace, Chico Buarque, Antônio Torres, Marcos Rey, Wander
Piroli, Plínio Marcos, Márcio Souza e Aguinaldo Silva.
362

do número: “Literatura? Mas minha querida senhora, a literatura não existe.


O que há é a vida, de que a política e a arte participam”.729
Curiosamente, no Brasil, embora a estrada aberta pelo New
Journalism tenha sido percorrida, e embora ela fosse, tanto quanto nos EUA,
uma via de mão dupla, comunicando jornalismo e literatura, o trânsito por
aqui parece ter tido maior fluxo na direção do jornalismo para a literatura.
Houve momentos de exceção, como ficará demonstrado na análise da revista
Realidade, ao longo deste capítulo, mas, na maioria das vezes, os grandes
grupos jornalísticos absorveram bem mais lentamente os aportes literários
nos textos de seus profissionais, do que os livros destes últimos aos recursos
provenientes do jornalismo. E, diante da conjuntura política nacional, tais
novidades foram ficando cada vez menos recomendáveis.
Esse fluxo maior no sentido jornalismo-literatura vale também para
João Antônio. Mas é curioso que, nele, a produção jornalística logo absorveu
elementos do estilo literário, espelhando também nessa direção o processo
dos new journalists americanos. Em João Antônio, os universos jornalístico
e literário parecem fundir-se ao longo dos anos, e as linhas divisórias
desaparecem por completo, o que se verifica inclusive no caráter multi-uso
de seus textos, que passam a ser livremente encaixados nas categorias ficção,
não-ficção literária e texto jornalístico.730 João Antônio fez dessa fusão sua
profissão de fé, chegando mesmo, como se verá, a invocar para si a invenção
de um novo gênero literário, o “conto-reportagem”.

729
João Antônio credita esta citação a Balzac,
730
Sobre isso ver Lacerda, Rodrigo. “De princesinha a cadela desdentada”, in Ô, Copacabana!, Cosac &
Naify, SP, 2001, p. 6. “O livro insere-se no gênero do conto-reportagem, uma das especialidades do
escritor, que lhe permitia a ponte entre a observação realista e o estilo literário. (...) Poder-se-ia dizer que Ô,
Copacabana! Margeia também a crônica, desde que não se tenha em mente a postura contemplativa e
nostálgica em geral predominante nesse território.”.
363

A seguir, três acervos da primeira fase de sua carreira jornalística


serão analisados: Jornal do Brasil, Cláudia e Realidade. O período por eles
coberto vai de 1965 a 1969, aproximadamente. Durante esses anos, seu
encantamento com o jornalismo como via de profissionalização do escritor
brasileiro nasce, cresce, e morre. Mas o jornalismo como elemento
detonador de sua criatividade, como feira livre de temas e personagens
utilizáveis em sua ficção, e como reforço factual à dramaticidade e ao
lirismo de sua literatura, nunca mais perderia espaço em sua obra. Na
segunda metade dos anos 70, fase áurea do escritor do ponto de vista da
projeção no meio literário e até mesmo comercialmente falando, ele publica
cinco livros, e todos eles, de um jeito ou de outro, marcados pela fusão entre
jornalismo e literatura.731

O Jornal do Brasil

Dos acervos a serem discutidos aqui, o do Jornal do Brasil é o mais


difícil de ser trabalhado. Em parte, a dificuldade é prática: é o maior de
todos, sendo composto por nada menos que 63 matérias assinadas, sobre os
mais diferentes assuntos e nos mais diferentes gêneros jornalísticos: perfis,
matérias, críticas de espetáculos, entrevistas. É difícil enxergar, diante de
tantas variantes, as permanências. Além disso, por ter o JB sido sua primeira
experiência, neste acervo seus textos estão ainda distantes da fusão com a
literatura. Por conseqüência, avança-se tateando, num terreno ainda incerto.
Por fim, se no JB for identificado o texto puramente jornalístico de João

731
Leão-de-chácara (1975); Malhação do Judas Carioca (1975); Casa de Loucos (1976); Ô, Copacabana!
(1977); Calvário e Porres do Pingente Afonso Henriques de Lima Barreto (1978).
364

Antônio, vê-se que na verdade esse nunca foi bom. A redação parece
descuidada, com repetições freqüentes de informações, de palavras, um
método subjetivo de apuração, opiniões pessoais se evidenciando a cada
parágrafo.732 Portanto, no plano estilístico, no âmbito estritamente do texto, a
análise do acervo do JB não permite que se vá muito longe no rastreamento
da combinação entre o jornalismo e a literatura.
Não obstante, em que pese a ausência de interesse do ponto de vista
estilístico, este acervo traz muitas informações importantes, e de abordagens
sintomáticas a determinados assuntos, que não só moldam o projeto literário
de João Antônio, como também reaparecerão nas etapas subseqüentes de seu
envolvimento com o jornalismo. Por tudo isso, tais informações justificam
alguns comentários. No Jornal do Brasil, a plataforma ideológica da fusão
que viria foi esquematizada.
Logo em seguida à mudança para o Rio de Janeiro, como vimos nas
suas cartas para Ilka e para a noiva, João Antônio fica deslumbrado com a
liberdade de comportamento que encontra na cidade. Era o momento áureo
da liberação sexual, a cena artística vivia um momento bastante rico e
variado; o Rio era ainda a capital cultural do país. A rebeldia sem causa dos
anos 50, que se contentava em ajeitar o topete no espelho, sair com o carro
do pai cantando pneu, pegar a namorada e ir ao baile havia perdido seus
adeptos, e a triste realidade política dos anos 70 ainda não tinha chegado.
Havia uma nova rebeldia no ar, mais ambiciosa, com causa e disposta
realmente a mudar o mundo. Na família, no trabalho, no plano político e,
como não poderia deixar de ser, nas artes. Os conflitos de geração
produziam novos equilíbrios, e confrontos. Inclusive no Distrito Federal.

129
Ver, por exemplo, no que se refere às deficiências de estilo, as matérias dos dias 06/06/65, 17/06/65, s/d
agosto de 65 e 22/08/65.
365

Um trabalhista acabara de ser derrubado do governo. O Rio que João


Antônio encontrou se dividia em dois: no plano político, como o resto do
país, começava uma caminhada para a direita; no plano social e de
comportamento, era a maior zona livre que o jovem escritor já conhecera em
toda a sua vida. Uma boêmia intelectualizada de classe média e classe média
alta ganhava espaço. Os experimentalismos estéticos não tardaram a
aparecer: peças de Shakespeare eram modernizadas, traduções do grego
incorporavam um registro mais coloquial, sambistas tradicionais
apresentavam-se, e competiam, com novas estrelas da bossa-nova, formas
mais cristalizadas de arte, a ópera, por exemplo, eram vistas como
ultrapassadas, certos preceitos éticos da geração misturavam-se de maneira
difusa a requisitos ideológicos essenciais. A atitude geral dos meios
artísticos era ou de contestação ou de “desbunde”.
Ganha-se mais, ao se analisar os textos de João Antônio no Jornal do
Brasil, não tanto preocupando-se com questões estilísticas, mas entendendo-
se o repertório de temas e a forma com que eles se articulavam, compondo o
leque de debates atuando sobre a juventude artística da época.
Há vários temas a abordar. Para que o quadro se monte de forma
minimamente concatenada, é necessário abrir mão primeiro de uma análise
em ordem cronológica dos textos. Em segundo lugar, de um esquematismo
temático do tipo: literatura, teatro, cinema, música etc. Estes blocos
temáticos, embora existam e sirvam, num primeiro momento, de alicerces
para análise, não nos permitiriam ver de forma compreensiva as concepções
de arte e da função do artista tais como João Antônio as entendia. As bases
estético-ideológicas do escritor estão disseminadas ao longo das 63 matérias.
Afinal, aqueles não eram textos de estética, muito menos políticos, eram
matérias que, por mais assinadas que fossem, implicavam foco em assuntos
366

que, do ponto de vista desse trabalho, muitas vezes não têm qualquer
interesse. São os comentários e as edições de João Antônio que nos
interessam, como expressões diretas ou indiretas de suas próprias opiniões.
Para quem lê o acervo de sua colaboração no JB, um primeiro
elemento a ser destacado é a recorrente ênfase na função, ou nas funções
sociais da arte. Como já foi dito, João Antônio endossava a idéia de que a
arte deveria refletir, o mais diretamente possível, a realidade que cerca o
artista e a sociedade em que ele vive. E, sendo essa sociedade injusta,
caberia a arte a missão de fazer esta denúncia.
Seguindo esse raciocínio, por exemplo, João Antônio valoriza a
produção contida num festival de cinema amador: “(...) os jovens cineastas
revelam uma grande preocupação pelo social. Assim, a maioria dos filmes
retrata as gentes pobres do Rio de Janeiro, sempre abarcando elementos de
ruas, calçadas e natureza e retratando seus homens, mulheres e crianças,
como expressões vivas do povo-povo carioca.”733 Ou, em um elogiosíssimo
perfil sobre o escritor Hélio Pólvora, então lançando o livro Estranhos e
Assustados, João Antônio põe a seguinte fala na boca de seu escritor:
“Literatura é um compromisso com a vida e com a arte, implica em conhecer
bem o nossos semelhante. (...) Somente com os olhos postos na nossa
realidade, na nossa gente, nos nossos costumes e nas ânsias que nos marcam,
o escritor brasileiro poderá respeitar o compromisso e, através da cultura do
povo, chegar à plena realização estética”.734

733
“Um cinema novo vem das ruas”, in JB, RJ, 18/08/65.
734
“Um contista maior”, ”, in JB, RJ, 08/05/66. Não será a única vez que tomarei as palavras dos
entrevistados como sendo as do próprio João Antônio. Tal procedimento deve ser entendido não como
“forçação” metodológica, mas como parte da hipótese exposta neste capítulo. Segundo ela, na condição de
repórter-especial, João Antônio tinha amplas margens de negociação em relação às suas pautas.
Considerando-se que, em 63 matérias, entre perfis, resenhas, críticas e outras formas de texto jornalístico, o
escritor jamais falou mal de algum espetáculo, não é ir muito longe dizer que ele escolhia os temas de suas
matérias. Nem é preciso invocar uma análise mais minuciosa do discurso, para ressaltar a completa adesão
367

Essa atitude crítica torna corriqueira, em seus textos, a idéia do bom


artista como um indivíduo “zangado”, como se, por meio de suas denúncias
sociais, o artista tivesse poderes de corrigir e repreender a sociedade por seus
desequilíbrios e injustiças.735 É o que ele expressa em uma pequena série de
três reportagens chamada “Os jovens zangados de São Paulo”.736 E, citando
Ignácio Loyola Brandão, um dos “zangados”: “A função do escritor, a meu
ver, é viver e retratar com algum sentido crítico”.737
Essa idéia do artista com o dedo apontado na cara da sociedade
aparece e reaparece mil vezes e em mil contextos ao longo de sua
participação no Jornal do Brasil. Quando escreve sobre o espetáculo de
teatro Sabiá-66, montado no Teatro do Rio: “De resto, o Sabiá-66 é
inteiramente zangado [grifo meu] e a anti-hipocrisia diante do social, do
ético, do moral e até do estético é a permanente mais louvável como grito e
como saúde artística”.738
De novo na já citada série de reportagens sobre os “jovens zangados
de São Paulo”, diz João Antônio: “(...) pela primeira vez, e declaradamente
em termos de arte, São Paulo investe contra si mesmo, num movimento
desmistificador, zangado [grifo meu] e disposto à revisão e furiosa
derrubada de ídolos, a principiar pelos ingredientes dos slogans da própria
cidade ‘que mais cresce no mundo’, ‘maior parque industrial da América
Latina’ etc.”.739

no tom, por exemplo, desta citação de Hélio Pólvora.


735
O equivalente aos beatniks, na Inglaterra, auto-denominavam-se “angry young men”. Tenha ou não
recebido essa influência, a expressão “zangado” certamente é uma gíria de época, que se tornou uma
categoria importante na visão de João Antônio da conjuntura das artes no Brasil.
736
Publicada em 14/12/65, 15/12/65 e 16/12/65.
737
“A ronda anônima, depois do sol”, JB, RJ, 16/12/65.
738
“Por quem canta o Sabiá-66”, in JB, RJ, 24/05/66.
739
“Um filme e um livro contra a engrenagem”, JB, RJ, 14/12/65.
368

Esta “zanga”, em geral, é entendida como consciência da coletividade


encarnada no artista. Mas é também algo que diz respeito à postura ética
individual do artista diante do mundo. É o que diferencia o verdadeiro artista
daquele que adota uma atitude servil em relação ao mercado.
É essa mesma atitude denunciativa, confrontadora, essa “zanga”, que,
numa das matérias mais “forçadas” de todo o acervo do JB, faz João
Antônio enxergar as maiores virtudes numa farsa encenada na época,
evidentemente despretensiosa, que contava a história de uma cidadezinha do
interior onde o pároco e as prostitutas entram em guerra declarada. Escreve
ele: “(...) se por um lado o cenário é do mais pálido e sonolento
provincianismo, por outro – e é o que interessa – surge um problema de
natureza fundamentalmente universal: a moral e a liberdade em guerra,
tendo no meio delas a política a contornar situações, a ajeitar acordos e a
colher seus interesses”.740
Esse papel de “zangado” funcionava em vários planos: político,
econômico, dos costumes, estéticos etc. No que se refere aos costumes,
especificamente, chega a ser pitoresca a obrigatoriedade da vinculação entre
a vida de artista e um comportamento não convencional. Durante o festival
internacional de cinema, ocorrido em 65, por exemplo, João Antônio
estranha demais a “irreverência tranqüila” e o “incompreensível bom
comportamento” dos artistas e convidados do festival.741
No perfil que fez de João Antônio, o crítico e romancista José Castello
sugere que o temperamento do escritor combinava perfeitamente com a
postura “zangada”: “Em poucos minutos, entendi que João Antônio era um
homem para quem as palavras, mesmo as suas, eram sempre movediças,

740
“Singela é a graça da guerra”, JB, RJ, 25/04/65.
741
“O festival e a irreverência tranqüila”, JB, RJ, 20/09/65.
369

valendo mais pela serventia que pelo significado, devendo ser vistas,
primeiro, como instrumentos de luta. Na boca de João, a palavra
transbordava para estrangular seus interlocutores (...) João desandou a falar,
emendando histórias irrelevantes a comentários furiosos, casos antigos a
vaticínios pessimistas a respeito do futuro brasileiro”.742
Artistas como ele, dotados de visão crítica da realidade, de capacidade
de auto-análise, de liberdade interior suficiente para romper com os padrões
de bom-comportamento, deveriam unir-se com o intuito de potencializar o
impacto de sua crítica, e, ao mesmo tempo, de alargar o seu raio de alcance.
Daí o grande entusiasmo de João Antônio em todas as iniciativas que
possibilitassem a integração de diferentes formas de arte e dos indivíduos
nelas atuantes. Por isso merece elogios a iniciativa da editora Brasiliense de
montar uma coleção de autores latino-americanos, “uma ponte de
aproximação cultural”, então tornada possível porque “Nos últimos anos de
vida da América Latina, principalmente nos últimos cinco, uma atribulada
atualidade política e social, conseqüente de um subdesenvolvimento crônico,
criou uma situação objetiva, ‘uma consciência continental que não mais se
desentende de nosso comum destino americano’”.743
Nessa mesma linha, ele destacara, meses antes, o intercâmbio cultural
Brasil-Venezuela, iniciado com a vinda de um maestro e uma pianista às
festividades do IV Centenário do Rio de Janeiro.744
Foi esse ideal de união também que o levou a endossar, em matéria
sobre o grupo Teatro Universitário Carioca (TUCA), sua plataforma de
atuação: “[o TUCA] propõe simultaneamente se constituir em ponto de
encontro e união, tribuna de debates, movimento cultural identificado com o
742
Castello, José. O inventário das sombras, Record, RJ, 1999.
743
“As outras vozes da América”, in JB, RJ, 08/06/66.
744
“Venezuelanos no IV Centenário”, in JB, RJ, 03/09/65.
370

tempo e o espaço em que vivemos e tentativa de fornecer aos universitários a


formação de cultura artística ausente nos cursos oficiais”. E que o levou a
endossar também a visão de uma das organizadoras do grupo sobre a função
do teatro na conjuntura da época. Diz ela: “Para nós o teatro significa a mais
coletiva das expressões literárias, aquela em que não se diz algo de um autor
para um leitor, e sim de um grupo – autor, diretores, atores –, para outro
grupo, a platéia. A mais genuína então para épocas coletivas, em que o gesto
individual perde contexto e o homem, pressionado pela evolução dos
tempos, se vê forçado a modelar uma nova face histórica”.745
Um festival de artes na vila de Arcozelo, no estado do Rio, parece
ecoar a perfeição este ideal: “[a vila] Tentará ser não somente um recanto de
repouso para artistas de todas as artes, escritores, jornalistas, professores e
público em geral. Será estabelecido por estas bandas um endereço para
festivais de natureza artística, um local ideal para congressos, uns e outros,
longe da conspiração dos grandes centros urbanos”.746
Há também uma matéria sobre o chamado Círculo, um grupo que se
dedicava à “integração de artistas de várias artes, envolvendo música,
arquitetura, literatura, teatro. A correspondência das artes, enfim,
estabelecendo aquela inevitável familiaridade entre uma sonata, um poema,
um quadro”.747
Há, portanto, um ideal coletivista de atuação artística. Outra função
social importante da arte é, por conseqüência, não apenas refletir
criticamente as injustiças sociais, mas democratizar-se de forma a que, pelo
menos nesse ângulo, a sociedade se nivele. Numa entrevista com o tradutor
Mário da Gama Koury, João Antônio faz questão de destacar, ao falar da
745
“Vozes primeiras do TUCA Rio”, in JB, RJ, 07/04/66.
746
“Julho festivo em Arcozelo”, in JB, RJ, 22/06/66.
747
“Convite apelo e poesia no Círculo”, in JB, RJ, 13/04/65.
371

montagem de uma tragédia grega: “Operários e gente do povo,


aparentemente rude e desprovida de sensibilidade para o teatro clássico,
sentiram da maneira mais natural possível, aceitando todos os problemas da
peça como modernos, atuais, como coisa de hoje, enfim. Prova disso é que
saíram do espetáculo comentando e apoiando Electra e zangados com seus
inimigos”.748
Por tudo que se lê nessas 63 matérias do JB, a arte tinha mesmo o
poder de categorizar os indivíduos, constituindo-se como um instrumento de
classificação social, pois a ela as pessoas reagiam e tal reação em si
identificava-as ideologicamente. O artista atento é capaz de ler essas
nuanças. Lógico que seria impossível acreditar nisso sem, de vez em
quando, cair em alguns estereótipos e preconceitos. É o que vemos
acontecer, por exemplo, na matéria de estréia do escritor, sobre uma récita
da ópera Fosca, de Carlos Gomes, no Teatro Municipal. Naquela noite, João
Antônio faz uma radiografia sociológica na platéia, identificando “Velhos
freqüentadores (...) os que mais lêem os programas e os que mais discutem
nos intervalos, como são também os que mais aplaudem, os que se
apaixonam durante o espetáculo e cujo ardor vai até o aplauso em pé (...)”, e
também “os grupos de estrangeiros, sós ou acompanhados, que parecem
mais movidos pela curiosidade de conhecer o teatro como instalação (...) são
educados e tímidos”, para terminar com verdadeiros alvos de sua acidez, “os
que ocupam as frisas e camarotes e as poltronas principais formam uma
maioria bem vestida, falante, elegante. (...) Formal e impertigada, mantém
uma espécie de finesse no olhar e nos comentários, faz escapar observações
sobre o guarda-roupa do soprano e o fino gosto de tal penteado”.749

748
“O homem que aprendeu grego sozinho”, in JB, RJ, s/d.
749
“A Fosca se vê ou se mostra”, JB, RJ, 23/04/65.
372

É o tal olhar “zangado” que lhe inspira tamanho desprezo pelos tipos
mais enfatiotados no teatro e pela forma operística em si, tida por ele como
passadista, uma modalidade de arte ultrapassada e cujo poder expressivo era
por demais formalizado, característica que ele também identifica na platéia.
Era também para ir contra artes desse tipo que a união dos artistas
“zangados” tornava-se vital, bem como a difusão das novas formas de arte.
Nisso parece querer chegar Ignácio Loyola Brandão, e por tabela João
Antônio, numa das matérias do JB. Diz o entrevistado: “O interior tem sido
descuidado, porque essa turma que anda escrevendo é esnobe demais e não
tem a humildade de carregar os livros debaixo do braço e vendê-los de
cidade em cidade, de porta em porta, de faculdade em faculdade”.750 E as
viagens foram, de fato, uma marca da carreira de vários escritores da
geração. Elas permitiam que se levasse o interesse pela nova literatura às
várias regiões do país, participando-se de debates com o público em geral,
mas em especial com estudantes universitários, difundindo a produção da
nova geração de escritores etc; tudo isso fazia parte. Outros militantes
contumazes da geração no esforço de difusão da literatura brasileira foram
Antônio Torres, Sérgio Santanna e Wander Pirolli. Todos eles prontificaram-
se a correr o Brasil divulgando seus livros e a literatura em geral, numa onda
que, com o espírito idealista inicial, durou da segunda metade dos anos 60
até quase os anos 80. Lembra Antônio Torres, dizendo ser incrível que, de
um debate sobre literatura, organizado por ele e João Antônio, “(...) ia sair
um trio de estradeiros e não sei bem o porquê da escolha. João Antônio,
Ignácio de Loyola Brandão e eu passamos a ser convidados para palestras
em praticamente todo o país. Dependendo da agenda de cada um,
viajávamos os três, às vezes dois, e daí a pouco, enquanto um estava no
750
“Um filme e um livro contra a engrenagem”, in JB, RJ, 14/12/65.
373

Maranhão, os outros dois se dividiam entre Manaus e Ijuí, lá no extremo Sul.


Juntos mapeamos o interior de São Paulo: Bauru, Assis, Marília, Campinas,
Americana. João Antônio e eu fomos um dia a Juiz de Fora, com o reforço
de Wander Piroli. A moda pegou e muitos outros passaram a ser chamados.
De repente havia escritor em tudo quanto era canto”.751
Por fim, essa forma de democratização não se daria somente de um
determinado circuito artístico para fora, mas também internamente, por meio
de iniciativas de fomento a jovens talentos. Um esforço de reprodutibilidade
deste próprio meio. É com isso em mente que João Antônio tanto elogia
iniciativas como a do movimento Menestrel752 e dos espetáculos Safra ’65753
e Semente754, que promoviam novos talentos na música.
Em todo esse ideário relativo ao papel da arte, e às obrigações dos
artistas para que ela de fato pudesse ser efetiva, transparece um certo espírito
de devoção, de entrega, pelo qual o escritor, ou o artista em geral, torna-se o
abnegado porta-voz de um ideal ético, estético e de novas e mais sábias
formas de sociabilidade.
No mínimo, o verdadeiro escritor é um heróico sobrevivente, nas
palavras de Hélio Pólvora, cujo entrevistador ecoaria sem pestanejar: “O
escritor brasileiro vive o drama do país subdesenvolvido, onde tudo está por
fazer e é difícil, inclusive, arranjar tempo para pensar. Trabalhando oito, dez
ou doze horas diárias, em geral sentado ante uma máquina de escrever, ele
consegue sobrenadar a inflação, pagar o aluguel, almoçar e jantar
decentemente. Mas aí nem sempre lhe sobra tempo para estabelecer convívio
social, observar a vida, ler os livros que nele deflagrariam idéias-força;
751
Torres, Antônio. “Nosso destino viajava de ônibus”, in Muito mais, ano VII, no 28, SP, dez 99/ jan 2000.
752
“Um violão e um gênio de mãos dadas”, in JB, RJ, 04/05/65, e “Glória a Turíbio em Paris”, in JB, RJ,
06/06/65
753
“As jovens sementes da safra ‘65”, in JB, RJ, 17/06/65.
754
“A semente da Rosa”, in JB, RJ, 31/08/65.
374

escrever suas próprias coisas sem a marca da encomenda. A literatura que


produz é fruto da estafa, traz a marca do superesforço descontínuo”.755
Mais ainda: o escritor, o artista em geral, deveria ser uma espécie de
cidadão sem fronteiras, circulando livremente pelas mais várias camadas
sociais e, por conseqüência, transitando com igual liberdade pelas diversas
formas de arte. A arte poderia promover a integração social que a
distribuição desigual de riqueza dificultava. Nasce dessa concepção, por
exemplo, o entusiasmo com que João Antônio saúda o show do violonista
Turíbio Santos, por formação ligado à música erudita, com Aracy de
Almeida, uma grande dama do samba carioca.756
Não por acaso, também, há uma ênfase disseminada na valorização do
artista que dominou seu métier por meio de um processo não formal de
aprendizado, que o levou a romper laços anteriores e dedicar-se somente à
arte. Essa não formalização do desenvolvimento da sensibilidade, e ou da
intelectualidade, enfim, da vocação, segundo João Antônio faz parecer, teria
dois efeitos positivos: de um lado geraria para cada artista um repertório
mais variado e menos regrado; de outro, criaria uma índole mais sociável,
sem hierarquias ou distanciamentos, do artista em relação aos diversos
grupos sociais e a seus colegas. Muitas vezes esta filosofia se manifesta em
um elogio ao auto-didatismo. O auto-didatismo pressupõe, em geral, a
superação de obstáculos concretos ao aprendizado formal, na maioria das
vezes obstáculos financeiros e/ou sociais, e o indivíduo, ao superá-los e
dominar seu métier, automaticamente já passa por um processo de
deslocamento na hierarquia social. Eis um dos elogios ao auto-didatismo
feitos pelo escritor em suas matérias do JB: “O homem que aprendeu grego

755
“Estranhos e assustados no purgatório”, in JB, RJ, 08/05/66.
756
“Um violão e um gênio de mãos dadas”, in JB, RJ, 04/05/65.
375

sozinho”, louva a manchete do perfil sobre o tradutor Mário da Gama


Koury757, mas há novas ocorrências, como numa matéria sobre um pintor
favelado758, que “aprendeu sem se ensinar”, ou sobre o compositor João do
Vale759, sobre a pintora Cidinha Pereira, “um exemplo típico, na pintura, de
artista ‘sem nenhuma ligação com escolas ou professores’ e que ‘aprendeu
fazendo’”760, e quando fala de um espetáculo como Safra ‘65, somente de
jovens intérpretes, João Antônio se esbalda; todos têm o perfil que ele
imaginava mais nobre. Sobretudo a cantora Tânia Maria, cuja biografia
guarda traços parecidos com a dele: “Criada em Volta Redonda, é filha de
um operário especializado da Usina, técnico da fabricação de aço e, nas
horas de folga, instrumentista amador de cordas. Tocava banjo nos tempos
dos chorinhos e viu ‘que a menina pegava bem’ no aprendizado musical.”761
Ao falar de um repertório mais variado e sem hierarquias muito
precisas, é inevitável chamar atenção para o tipo de erudição caótica que o
jovem escritor ia construindo para si mesmo. Nela, referências as mais
eruditas combinavam-se diretamente com outras genuinamente populares.
Matérias sobre livros e documentos históricos combinam-se a matérias sobre
sambistas, críticos intelectualizados de cinema somam-se a pintores
favelados de arte naif, matérias sobre o concurso Garota de Ipanema
alternam-se com outras sobre a Paixão de Bach, passando pela feira de
temas portugueses, pela palestra do papa da logosofia, pelo perfil de cantoras
e atrizes, pelas movimentações do teatro amador etc, tudo isso ia compondo
um universo de referências multifacetado do qual o jovem escritor, recém-
chegado de Presidente Altino, tirou vários proveitos. Afinal, ele também era
757
In, JB, RJ, s/d.
758
“Sossego dá pintura também”, in JB, RJ, 09/12/65.
759
“Poesia de João nasce do canto”, in JB, RJ, agosto de ’65.
760
“Pureza de Cidinha reabriu a Goeldi”, in JB, RJ, 02/03/66.
761
“As jovens sementes da safra 65”, in JB, RJ, 17/06/65.
376

um autodidata. E, intelectualmente, sentia necessidade de fazer conviver o


universo popular, o seu de origem, com o erudito, o plano de sua afirmação
como “intelectual”, escritor e jornalista diferenciado.
É muito sintomática essa frase que diz “sem escolas ou professores”.
Parece evidente que, para João Antônio, a vocação desenvolvida
isoladamente, num processo “puro” do indivíduo com ele mesmo, permitia
uma arte livre de influências dogmáticas e formais.
E é curioso notar que, apesar de em vários momentos João Antônio
ecoar posições estéticas ou ideológicas em geral identificadas com a
esquerda, ele mantinha uma considerável independência em ambos os
planos, e valorizava isso também em seus entrevistados. João Antônio
defendia uma arte ideológica e politicamente independente.
É o que destaca, por exemplo, no espetáculo Reação: “É
simplesmente um musical de um grupo – 3D Trio – que faz música popular
sem a preocupação de pertencer a esta ou aquela divisão política [grifo
meu], em que se encontram os atuais shows. (...)/ Reação é um libelo contra
aqueles que querem impingir idéias pessoais, ou de poucos, aos outros e é
contra qualquer tentativa de fazer política em arte, sendo que nós cantaremos
o amor, a flor, o morro ou a fome, mas com consciência da nossa liberdade
diante de tais elementos e sem aplicação de quaisquer objetivos políticos.
(...) Achando que ambas as tendências são bitoladas no atual show
musicado, e que tanto os pertencentes à esquerda-festiva-lítero-perfumada-
intelectual com seus cabeludos de Copacabana, como os chamados meninos
de Ipanema apenas-de-praia, estão se perdendo nos exageros de uma briga
sem proveito para a música popular brasileira (...).”762

762
“De Opinião a Reação todos cantam o povo”, JB, RJ, 23/05/65. A expressão esquerda-festiva-lítero-
perfumada-intelectual não é do diretor do espetáculo, mas do próprio João Antônio e de seu uso corrente,
377

Essa mesma independência João Antônio enaltece no crítico de


cinema Maurício Rittner: “Rittner permanece numa posição de grande
coragem e dignidade diante do chamado Cinema Novo, achando que embora
os nomes de Nélson Pereira dos Santos, Khouri, Roberto Santos, Rui Guerra,
Saraceni (entre os principais, claro) hajam elevado o cinema nacional a um
nível estilístico, evoluindo como tema e inteligência ‘com admiráveis
explosões de talento’, depois se transformou em rótulo, dando origens até a:/
[diz Rittner] – O Cinema Novo tem-se transformado numa molecagem, em
que se confundem atrevimento e coragem com uma zanga sem sentido
contra tudo e contra todos e, ainda que isto reflita, de certa forma, o
inconformismo de nossos cineastas moços, o que é um bom sinal, o fato é
que já se está fazendo um cinema zangado e preconcebido, partindo para
uma espécie de comodismo e essa coisa detestável que é estar na moda.
Falar mal de tudo e de todos é uma posição muito cômoda e desonesta”.763
Curioso, aqui, é a uso pejorativo que Rittner faz do termo “zangado”,
tão caro ao escritor. Como se vê, estava na moda falar mal de tudo e de
todos. Mesmo assim, a força moral do jovem crítico de cinema, vindo a
público desmistificar uma geração cultuada de cineastas, evidentemente
agrada ao jornalista João Antônio.
Mas havia valores positivos a serem defendidos, havia, afinal, alguma
hierarquia em sua concepção estética, ou pelo menos em seu coração, e que
aparece no conjunto das matérias do JB. Um deles é um ideal nacionalista,
que a todo momento invoca a maior ou menor “autenticidade” das formas de
arte, analisada a partir do caráter “verdadeiramente brasileiro”, seja de um
samba, seja de um espetáculo de mímica, de um espetáculo sobre o carnaval

conforme depoimento de Marília de Andrade, colhido em 20/07/2003.


763
“Rittner e o cinema passado a limpo”, JB, RJ, 11/07/65.
378

carioca, da literatura de Hélio Pólvora ou do festival de cultura em Arcozelo.


Num comentário sobre o show de Aracy de Almeida cantando Noel Rosa,
por exemplo, João Antônio não hesita em classificar o repertório como “a
nossa música mais verdadeira”, ou os músicos especialmente convidados
como “outros valores da música popular autêntica”.764 Em outra matéria
bastante curiosa, sobre o show Primeiro tempo 5 x 0, dirigido pela dupla de
produtores Luiz Carlos Miele e Ronaldo Bôscoli, e que fazia uma defesa
explícita da Bossa Nova, contra aqueles que a acusavam de ser uma “filha de
pais desconhecidos” na música popular brasileira, de influência estrangeira e
sem raízes autenticamente nacionais, João Antônio em nenhum momento
endossa explicitamente a “autenticidade” do novo gênero musical. Ao
contrário, embora elogiando a execução, condena as caricaturas musicais
feitas em cena de Miltinho e Isaurinha Garcia, por ferir “uma das intenções
do espetáculo quando, no início, Taiguara [o cantor] diz que, antes de tudo, é
necessário muito amor, respeito alheio e, principalmente, muito bem para
dar”.765
Mas ele é bem mais franco na matéria extremamente elogiosa sobre o
escritor Hélio Pólvora: “Fiel à terra, achando que a literatura brasileira será
mais nacional à medida em que se afastar dos modismos importados, Hélio
Pólvora reafirma a sua vocação brasileira de escritor, e capta no próprio
meio do sul da Bahia os recursos de linguagem para recriar no plano da
ficção os seus compromissos com a terra e com a própria prosa artística”. E
reproduz declarações do próprio Hélio, que vão na mesma direção: “Num
país como o nosso, que ainda não esgotou a geografia literária, ela [a
literatura] deverá revestir-se de aspectos marcadamente locais, sob pena de

764
“Canto e memória do samba”, in JB, RJ, 12/11/65.
765
“A bossa e os gols”, in JB, RJ, 07/06/66.
379

estiolar-se em manifestações falsamente universais; descobrindo o nosso


povo, denunciando situações dolorosas, a literatura contribuirá à formação
de um quadro cultural próprio, que nos definirá como portadores de cultura
própria.”766
E esse tema reaparece quando João Antônio dá voz a Ignácio Loyola
Brandão: “É ainda o autor de Depois do sol quem situa a natureza dos
escritores de outra linha, no dizer de Loyola, esnobes: – Escrevem em São
Paulo, mas poderiam escrever em Nova Iorque, Paris, Londres, Istambul.
Entende? Eles ainda não se entrosaram no grande movimento da literatura
urbana paulistana, que é a coisa mais importante, e que até as outras artes,
como o cinema, já sentiram. E essa coisa importante não é regional, pois a
temática aqui contida é universal”.767
Ambos os projetos, o de Hélio Pólvora e o de Ignácio Loyola, têm
procedimentos de composição comuns aos que vimos João Antônio almejar
em suas cartas a Ilka Brunhilde Laurito.
Em negativo, vemos esta mesma valorização de uma estética
nacionalista em uma matéria sobre a montagem teatral da história da noviça
rebelde, aqui intitulada Música, divina música. Numa primeira matéria, ele
fizera um perfil distante mas positivo da atriz escolhida para o papel de
Maria von Trapp, a protagonista da história, elencando suas experiências
profissionais, as academias de artes dramáticas por onde havia passado, e
relatando a maneira como conseguiria o papel após testes massacrantes. Mas
a segunda matéria é, evidentemente, feita de má vontade. Ele passa todo o
tempo listando informações que mais parecem tiradas de um release
promocional (número de técnicos envolvidos na produção, quantos músicos,

766
“Estranhos e assustados no purgatório”, in JB, RJ, 08/05/66.
767
“A revolta que vem do silêncio”, in JB, RJ, 15/12/65.
380

quantos dias de ensaios, qual o comprimento do carpete usado no cenário e


quantos homens foram necessários para carregá-lo, como funciona o sistema
de interfones etc). E o fecho da matéria é de uma ironia evidente: “O mais
curioso decorreu do apito utilizado pelo capitão Von Trapp, que necessitou
da aprovação do Ministério da Marinha. O contra-regra, por sua vez,
selecionou durante cinco dias o apito que mais se identificasse ao original
utilizado na Broadway”.768
Outro valor positivo a ser defendido é a profissionalização da carreira
artística. Alguns cantores tocam no assunto. A então jovem atriz Fernanda
Montenegro, por sua vez, louva a regulamentação da profissão de ator,
mostrando que esse desejo de reconhecimento oficial era comum a mais de
um meio artístico. Em sua entrevista com Esdras do Nascimento,
sintomaticamente intitulada “Um escritor, seu ofício e seu sucesso”769, João
Antônio registra: “– Começa a existir a profissão de escritor. E existirá, de
fato, inclusive com suas decorrências de ordem econômica, com a
possibilidade de o autor viver única e exclusivamente da renda de seus
livros, no dia em que o escritor se apresentar ao editor pura e simplesmente,
oferecendo um negócio e não implorando um favor. (...)/ Esdras do
Nascimento representa, de certa maneira, uma mentalidade nova de encarar
o fenômeno literário no Brasil e para expressá-la, não escolhe palavras:/ – O
jovem autor brasileiro sofre inútil e solitariamente o seu drama de escritor
inédito. Por não encarar profissionalmente o seu ofício, vive amedrontado.
Tem pavor de conversar com o editor em termos de negócio, e não apenas de
literatura”.

768
“A fábula da divina música”, in JB, RJ, 14/10/65.
769
In JB, RJ, 05/05/65.
381

Também o colega Osman Lins vivia essa nova consciência de classe:


“Osman Lins (...) forma entre uma pequena faixa de autores nacionais que
demonstram um sentido claro de consciência profissional. Tanto no
momento de criar como na ocasião da reivindicar seus direitos autorais, o
que, entre nós, ainda é insolente e perigoso, além de péssima política
editorial e publicitária”.770
Hélio Pólvora também pensava no assunto: “O problema da
profissionalização do escritor, que vem sendo, dentro de uma área de
escritores atuais, uma preocupação e até motivo de debates e de um recente e
vasto inquérito que uma revista especializada publicará é, no entender de
Hélio Pólvora, não um problema isolado, e sim uma falha que faz parte do
todo da estrutura que envolve o Brasil”.771

São muitos os temas que aparecem na produção jornalística inicial de


João Antônio. Espera-se que o levantamento feito aqui, embora pretendesse
sobretudo elencá-los, tenha entretanto conseguido fornecer um breve painel
dos assuntos então discutidos num dos veículos de cultura mais influentes da
época. Muitos deles reaparecerão adiante, quando o texto jornalístico do
escritor se liberta do texto bem-comportado do Jornal do Brasil, do tom
sempre respeitoso que o Caderno B exigia.
Mas há, entre as 63 matérias daqueles primeiros dois anos de
jornalismo, uma especial. Nela, uma nova fórmula de jornalismo aparece, e
nela vemos alguns procedimentos de ordem literária. Entre as outras 62
matérias publicadas no JB, ela é um fato isolado, uma experimentação única,

770
“Os interesses criados”, in JB, RJ, 08/09/65.
771
“Estranhos e assustados no purgatório”, in JB, RJ, 08/05/66.
382

mas que guarda muitas semelhanças com a natureza das matérias que faria
mais tarde, no momento da fusão entre literatura e jornalismo.
Em primeiro lugar, o texto não tem “gancho”, isto é, não há notícia a
ser divulgada. Em segundo, não se trata da crítica de um espetáculo, do
perfil de um intelectual ou artista, da cobertura de um evento. É um episódio
de vida. A matéria, chamada “Uma lição de abismo”, com fotos de Brás
Bezerra, narra um quase acidente com um páraquedista.772
Ela tem uma abertura nitidamente diversa das usuais no JB: “Quando
se lança, queixo baixo contra o peito, os punhos se cruzam firmes quase
como se estivesse orando, as pernas juntas completam o encolhimento à
espera da queda. O contra-guerrilheiro Severino, Severino do Nascimento,
está prestes a cair”.
É um belo começo, de tom fortemente literário. Os punhos cruzados,
“como se estivesse orando”, uma imagem forte e a escolha do verbo menos
usual “orar” em vez de “rezar”, é sintoma de liberdade na redação.
Curioso que, na primeira matéria mais livre de João Antônio, o tema
escolhido tenha sido o exercício de um regimento de pára-quedistas da Força
Aérea Brasileira, no centro de manobras simuladas de capturas de
guerrilheiros, em Resende (RJ), e, mais especificamente, o episódio ocorrido
com um contra-guerrilheiro. Mais um traço da independência político-
ideológica da arte?
Assim como a abertura e a imagem da reza, há várias outras
formulações de índole eminentemente literária. Há, por exemplo, efeitos de
estilo, como quando, com frases curtas, sincopadas, ele parece transformar
cada nova informação em uma revelação impactante sobre seu
“personagem”: “O último homem da ala direita. Além do nome, ou antes,
772
“Uma lição de abismo”, in JB, RJ, 27/10/65.
383

um número. 1.309.” Ou imagens explicitamente literárias, às vezes no mau


sentido da palavra: “No momento em que acionou o pára-quedas de
emergência e ganhou o vôo solitário, (...) o alívio, a terra lá embaixo era
azul”, ou “embora balance em redor da cauda da nave e não haja
amortecedor para seu flutuar desesperado [grifo meu]”, ou ainda “pássaro
sem asas”.
Há, também momento de suspense criados ora por meio de repetições,
de frases que ecoam umas nas outras, ora por meio de parágrafos nos quais
as informações são dadas antes de se dizer sobre o que ou quem se está
falando, e ainda num estilo dissimuladamente, mas propositalmente,
enigmático. No primeiro caso, o das repetições, logo se destacam duas
seqüências. A primeira começa com a frase “A vida se lança no ar e o pára-
quedas não se abre”, que abre o terceiro parágrafo e termina com a abertura
do parágrafo seguinte: “A vida balança no ar em seis minutos de desespero.”
A segunda seqüência, logo adiante: “A vida de Severino depende de
Severino. E apenas.”, que fecha o quinto parágrafo, e a frase: “Sua vida só
depende dele”, que fecha o seguinte.
No segundo caso, o daqueles parágrafos que constróem o suspense
sendo propositalmente obscuros até a revelação final, podemos citar:
“Durante todo o trâmite dramático, também suportando 25 quilos às costas,
o pára-quedas, um outro tipo de homem operava irmanado um trabalho
diferente, a lhe exigir igualmente calma e como todos ali participantes,
nervos acima da emoção. E era muito necessário que, como os outros,
fundamentalmente, não atrapalhasse. O fotógrafo”.
Ou ainda: “A mão esquerda à cabeça não é para o fotógrafo,
tampouco gesto de mão que evite a fuga desvairada do capacete. É que
Severino do Nascimento, o 1.309, ainda não desmaiou, embora balance em
384

redor da cauda da nave e não haja amortecedor para seu flutuar desesperado,
pássaro sem asas, preso ao cordão. O 1.309 está lúcido e a mão esquerda à
cabeça é o sinal convencionado”.
O uso do jargão específico do universo retratado e seus personagens
ainda é tímido, verificando-se uma ou duas ocorrências, o que para João
Antônio, como se verá, é bem pouco. Mas, como vimos nas cartas e nos
textos de ficção, João Antônio rompe com a sintaxe cartesiana do jornalismo
clássico e adiciona aqui os seus “breques” tão característicos. São partículas
de frases, cujo contexto e cuja emenda com as que vêm antes torna
inteligíveis. Um parágrafo, por exemplo, se abre com “A certeza líquida.”,
outro com “Uma dúvida.” Uma outra frase é somente “E apenas.”, outra “E
lúcido”.
Essa matéria está longe do brilho das que viria a publicar na revista
Realidade. Porém, comparada ao formato conservador de suas outras
matérias no JB, ainda que os temas fossem palpitantes instantâneos da cena
artística carioca, isto é, nacional, e a “zanga” pulsasse nas entrelinhas, esta
pequena matéria sobre os pára-quedistas contra-guerrilheiros tem muito mais
a ver com o projeto literário que o escritor iria desenvolver dali em diante.
São combinações como essa, feita à base de recursos como esses, que
lhe permitiram cristalizar um jeito muito próprio de escrever, no qual as
fronteiras entre ficção e não-ficção se perdem quase completamente. Para o
bem e para o mal. O crítico José Castello foi o primeiro a enxergar o que
chamou de a explosão de gêneros na obra de João Antônio.773 Algum outro
menos generoso poderia chamar da diluição dos gêneros. Mas, antes de se
tomar uma posição, vale a pena se acompanhar a segunda etapa na gestação
desse projeto: a revista Cláudia.
773
Em palestra proferida na Unesp de Assis, nunca publicada em livro.
385

Revista Cláudia

Em abril de 1967, mais exatamente no dia 4, às 3:40 h da madrugada,


nasceu Daniel Pedro de Andrade Ferreira, filho de João Antônio e Marília.
Diante das dificuldades financeiras que sofriam enquanto ele
trabalhava no JB, talvez tenha sido esta nova condição de pai que o fez
aceitar, nesse mesmo ano, o convite do jornalista Celso Kinjô para escrever
uma coluna regular para o jornal Última Hora, de São Paulo. E, logo em
seguida, João Antônio acumulou a coluna do UH com outro emprego, o de
jornalista da revista Cláudia, também em São Paulo.
Assim mudou-se ele de volta, trazendo a família para sua cidade natal.
Segundo sua esposa, ele teria voltado por questões de trabalho, mas também
por sentir-se atraído pelo movimento jornalístico paulistano. Eles
permaneceriam na capital paulista algo em torno de dois anos, tendo tido,
nesse período, duas residências: a primeira na rua Vitória, na Boca do Lixo,
e a segunda na Lapa, de onde mudaram-se de volta para o Rio, em 1969.774
Na revista Cláudia, cuja redação funcionava na rua João Adolfo 102,
João Antônio dá alguns passos rumo a sua combinação muito particular de
literatura com jornalismo, embora ainda não tenha sido lá que atingiu o
ponto de fusão. Mas, segundo Marília, ele tinha na revista uma posição de
destaque, como repórter diferenciado e com regalias na escolha de suas
pautas, o que lhe permitiu alguns avanços.
Olhando o conjunto, algo interessante que ganha forma mais nítida é
uma certa divisão das matérias por gêneros. Talvez essas categorias já
estivessem esboçadas em seus trabalhos no JB, mas em Cláudia esses
gêneros tornam-se bem mais evidentes. Como essa análise irá demonstrar,
774
Depoimento de Marília Andrade, colhido em 20/07/2003.
386

nessa primeira revista os gêneros presentes são: o retrato, as matérias


“quebra-tabu”, e as de variedades.
Sua primeira matéria saiu em agosto de 1967. É um retrato do poeta e
pioneiro modernista Menotti del Picchia.775 Nela o conceito do artista como
um cidadão circular, que não respeita as fronteiras sociais, de que já se falou,
aparece com clareza. Nenhum retrato de João Antônio foge a isso. Assim
como ele, por meio da literatura, pôde deixar o universo estritamente
proletário e participar simultaneamente de outros universos sociais, aos
demais artistas as mesmas exigências eram impostas. Diz o escritor, listando
as atividades outras de Menotti: “deputado estadual algumas vezes e federal
outras tantas, jornalista e fundador de jornais e revistas, industrial do cinema
na aurora heróica do falado entre nós, fabricante fracassado de relógios sem
ponteiros e sem rubis nos idos dos anos 20, fazendeiro de pálidos sucessos a
vida inteira e a vida toda, principalmente, poeta”. Em outra passagem ele
diz: “advogado e fazendeiro”, para depois elencar as amizades de Menotti na
alta roda paulista, como Chiquinho Matarazzo, Gianino Carta e Fábio Prado.
Colocando na devida perspectiva a relação entre modismos da época e
o legado das gerações anteriores – “a onda modernosa atual de se procurar
na arte popular fontes para uma nova poesia, já não era novidade alguma em
1917” –, e desfilando uma erudição específica quanto à bibliografia sobre o
autor, que combinava escritores, pintores e críticos – ele cita, entre outros,
Mário de Andrade, Villa-Lobos, Osvald de Andrade, Graça Aranha, Tarsila
do Amaral, Alberto Rovai e Antonio Candido – ele fazia um balanço da
contribuição do poeta para o modernismo especificamente e para a literatura
brasileira em geral.

775
“Como é que o caboclo Juca Mulato viveu 50 anos e ainda está forte”, in Cláudia, Ano VII, n. 71, ago.
67.
387

A abertura foge um pouco dos padrões estritamente jornalísticos, na


medida em que prolonga um efeito de suspense quanto à identidade do
retratado (que não é esclarecida no título, e a matéria não tem olho). Ela
introduz o retratado a partir das opiniões sobre ele de outros nomes das letras
brasileiras, entre os quais Mário de Andrade, Paulo Rónai, Cassiano
Ricardo, Gilberto Freire e Álvaro Lins. Apenas na 36a linha o nome Menotti
del Picchia aparece. Até então, a única pista era o nome de seu mais famoso
livro, o Juca Mulato.
E há, aqui e ali, certos fraseados distintamente não jornalísticos, como
por exemplo: “Vítor Brecheret (...) cuja feia figura (...) lhe acorda uma
memória comovida e encharcada de simpatia.”. O verbo, “acordar”, com
este sentido, é um tanto precioso, assim como o adjetivo “encharcada”.
Não obstante estas pequenas liberdades em relação à receita
jornalística, e o fato de este retrato ser bem mais compreensivo do que a
maioria dos escritos para o Jornal do Brasil, muitos mais restritos a algum
lançamento ou a algum fato concreto, o tom geral da matéria é ainda
predominantemente jornalístico, alternando parágrafos informativos com
falas do retratado, que em geral corroboram o que já foi dito.

O segundo texto publicado na revista Cláudia, intitulado “A cegonha


morreu de parto”, inaugura o gênero das matérias contestadoras, feitas sobre
e para a quebra de tabus, quase sempre na área de comportamento.776 Afinal,
esta era uma das funções sociais do artista. A matéria versa sobre dois livros,
É natural e Sempre foi assim, lançados um ano antes, pela médica Sabá
Gervásio, com ilustrações do artista Flávio Império. Comenta assim a nova

776
“A cegonha morreu de parto”, in Cláudia, Ano VII, n.74, nov. 67.
388

abordagem que o livro propõe ao assunto da concepção junto às crianças e as


reações pró e contra que os livros despertaram desde seu lançamento.
A abertura da matéria é inteiramente literária, embora aparentemente
constitua trecho de um dos livros que fazem o “gancho”. João Antônio
reproduz um diálogo entre uma criança e um adulto, no qual a verdade sobre
o nascimento dos bebês é naturalmente revelada. Só após o primeiro
“chapéu”, isto é, da primeira interrupção no texto, marcada por uma frase em
destaque, ele instaura o registro jornalístico.
Há, porém, dois elementos que distinguem essa matéria do ponto de
vista formal; algumas frases longas além das convenções jornalísticas,
comprimento este que exige uma sintaxe menos direta e óbvia, e uma
marcada tendência à enumeração, à composição de seqüências de palavras.
Das frases longas, e de sintaxe menos direta, pode-se dar o seguinte
exemplo: “Falando do funcionamento do corpo e do homem e da mulher, em
forma de história e dispostos a enfrentar e derrubar os preconceitos, pois na
luta de sua aceitação ‘a criança não é o problema, e sim o adulto’, os
livrinhos vinham nas pegadas da experiência dos contos infantis da autora”.
Aqui, como se vê, a estrutura sintática vai além da ordem direta tipicamente
jornalística e informativa. São pequenos passos como este que o foram
levando ao ponto exato de sua fusão.
No que se refere às chamadas enumerações, temos muitos exemplos,
como quando cita os países cujas publicações na área foram analisadas
durante o processo de composição dos livros em pauta – “(...) mandou vir
publicações de educação sexual infantil da Alemanha, França, Itália, Suécia,
Estados Unidos, Inglaterra, Holanda e outras europas” – ou ao falar dos
problemas de produção dos livros – “Apareceram problemas quanto à
natureza da capa, do formato, da composição dos textos, das ilustrações e do
389

aspecto gráfico geral” –, ou simplesmente ao comentar as reações dos pais


aos livros – “Nem todos tiveram o respeito e a hombridade de responder
humildemente à criança ‘não sei’, ao invés de bater, gritar, agredir, xingar ou
advertir”. Aqui ainda de forma tênue, essa mania de listar palavras já se faz
presente. Seja enumerando substantivos próprios, comuns, verbos, gírias etc,
esse traço enumerativo e enfático torna-se característico da composição do
escritor. Seguindo a lógica do bom malandro, talvez um eventual pagamento
por lauda de texto também contribuísse para isso...

A terceira matéria de Cláudia se encaixa no gênero variedades. Fala


de Iemanjá, das várias formas de culto à deusa do mar.777
Nela, apesar do tom jornalístico geral, há pelo menos dois elementos
que distinguem o tratamento por ele dado à língua. Um é a já mencionada
tendência à enumeração. A matéria já começa listando os nomes dados a
Iemanjá pela cultura popular: “Dona de muitos nomes, Janaína, Dona
Janaína, Princesa do Mar, Sereia do Mar, Oloxum, Dona Maria, Rainha do
Mar, Sereia Mucuña, Inaê, Princesa do Aioká ou Dandalunda (...)”. Para em
seguida enumerar os pretendentes da deusa: “Muitos pintores, compositores,
poetas, homens inteligentes, pescadores, doqueiros, boêmios já quiseram se
casar com Janaína (...)”, e seus apaixonados: “Iemanjá tem muitos
apaixonados. Entre os seus maiores – Dorival Caymmi, Jorge Amado,
Odorico Tavares, Caribé, Edu Lobo, Vinícius de Moraes, Édison Carneiro,
Luís da Câmara Cascudo e o poeta de Pasárgada”.
Há um certo fascínio pelas palavras quando postas numa seqüência,
qualquer que seja a lógica por trás dessa seqüência. Como se houvesse, para
além do caráter informativo, normalmente menos dado a essas
777
“Todos querem se casar com Iemanjá”, in Cláudia, Ano VII, n.75, dez. 67.
390

prodigalidades, mais enxuto e direto, um efeito literário, que dá no leitor um


banho de sonoridades. Este recurso possui, ainda, uma índole nitidamente
circular, pois sinônimos extraídos das mais diversas fontes, entre cultas e
populares, estão colocados lado a lado. Uma democracia léxica.
Nota-se ainda nesta matéria o “ouvido” apurado do escritor para o
jargão popular em torno da entidade. Ele cita: “filhos de fé”, no sentido de
pais, mães e filhos de santo, “guias”, intermediários entre os deuses da
umbanda e os pais de santo, as “encomendas”, os ex-votos. Eis uma
estratégia literária nitidamente usada no jornalismo, que ele já fazia em
“Malagueta, Perus e Bacanaço” e “Paulinho Perna Torta”.

A próxima matéria veio em fevereiro de 1968, sendo ela também do


gênero variedades. Trata-se de uma “Pequena história marota do
Carnaval”.778 A primeira coisa que chama atenção é o fato dela não ter
propriamente uma notícia a dar. Ela se aproveita das proximidades do
Carnaval para levantar a história dessa festa até que se tornasse a mais
famosa do Brasil, “Passando em revista os gregos, os egípcios, os romanos,
os teutos, os espanhóis, os portugueses, os papas e altas autoridades e
recorrendo principalmente ao povo-povo da cidade do Rio de Janeiro”. É,
portanto, uma matéria de oportunidade, de interesse geral, mas sem um fato
jornalístico específico a noticiar.
O pequeno trecho de abertura acima reproduzido, o chamado “olho”,
porém, aponta para a segunda característica geral da matéria, e que tanto
caracteriza a produção jornalística madura de João Antônio: a busca por um
modelo cultural que integre os valores eruditos aos populares. E chama
atenção também para o lugar de onde João Antônio procurava fazer essa
778
“Pequena história marota do Carnaval”, in Cláudia, ano VIII, n.77, fev. 68.
391

aproximação. Ele é o intelectual que tem acesso a várias fontes eruditas, e


sabe nomes e títulos e é capaz de remontar a tradições culturais que nada
têm a ver com a cultura popular brasileira, mas é do ponto de vista do não-
especialista, do não-acadêmico, que ele fala, procurando diluir-se no “povo-
povo”, para não adquirir um tom professoral. E ele tem estratégias de
redação para fazê-lo. Um dos trechos da matéria no qual a erudição surge
explicitada em citações de obras famosas, é aquele no qual ele discorre sobre
a etimologia da palavra Carnaval. Para introduzir um dado trecho, no qual
ele se apropriará da bibliografia citada por Câmara Cascudo (Adolfo Coelho,
Frei Domingos Vieira, Littré), citando de passagem latim e italiano, é
preparada uma frase que procura “quebrar” qualquer distância entre ele e o
leitor: “Outro assunto que tem esquentado orelhas de estudiosos é a palavra
carnaval”. Logo em seguida, ao final de toda as citações, ele arremata:
“Como se vê, isso da explicação da palavra Carnaval é assunto para sábios”.
Há muitos elementos estilísticos que diferenciam esta matéria das que
fazia para o JB e aproxima-as de seus escritos jornalístico-literários
posteriores. Há, no texto, uma forma menos direta de comunicar, com frases
ora mais longas e virguladas, ora de sintaxe fragmentada, como se vê em:
“Segundo a crônica bisbilhoteira de alguns autores, o próprio Napoleão era
homem de cair na gandaia. E integralmente. Mascarou-se mais de uma vez e
claramente demonstrava apreciar não especificamente os alegres prazeres
carnavalescos, mas os imprevistos e surpresas que se escondiam por detrás
das alegres mascaradas”. Há também longuíssimas citações. E há palavras e
expressões pouco usuais em textos jornalísticos, como “atilados” ou “Davam
ao abandono os cuidados” e, claro, as enumerações. Os exemplos são
inúmeros: “E de seu palácio era fácil e provavelmente agradável assistir aos
desfiles de carros alegóricos, às corridas de cavalos, às batalhas de confete, à
392

famosa corrida dos corcundas, ao lançamento de ovos” ou “Havaianas,


gregas, melindrosas, romanas, tirolesas, gitanas. As fantasias ganham o
Carnaval” ou ainda ao listar inúmeros nomes de blocos “Mamãe Lá Vou eu,
Flor do Abacate, Mimosas Cravinas, Cananga do Japão, Recreio das Flores,
Paladinos da Cidade Nova, Gualemadas, Só Pra Moer, União da Floresta,
Reino das Magnólias, Papoulas do Oriente, Caprichos da Estopa, Arrepiados
e outros” ou ainda “Davam ao abandono os cuidados, as mesuras, os bons
modos, as hierarquias, as obediências, e podiam comer, beber, xingar,
desacatar, ridicularizar”. Como se vê, as enumerações proliferam, tanto de
substantivos comuns quanto próprios e mesmo de verbos. Há um evidente
encanto com o efeito que a sonoridade das palavras listadas parece criar;
talvez a mais nítida cicatriz de uma vocação musical reprimida.

A última matéria publicada em Cláudia fala de um seminário sobre


prostituição, ocorrido em Ribeirão Preto. Como se vê, enquadra-se por sua
vez na categoria “quebra-tabu”. Nesta, há algumas novidades formais. O
“olho” da matéria, por exemplo, não é composto por um texto redigido de
forma a captar o interesse do leitor pelo assunto; trata-se, isto sim, de uma
lista de estatísticas ou frases cortantes, que torna esse primeiro contato mais
seco e mais impactante: “90% das prostitutas são alcoólatras / 77,2%
provêm da zona rural / 65,5% são analfabetas / Mais de 60 % não tem
capacidade nem para ser empregada doméstica / A penicilina está perdendo
a guerra contra a sífilis, que continua aumentando em todo o mundo”.
Logo em seguida, vê-se um texto em itálico, que dá o contexto do
seminário e resume suas conclusões sobre o quadro da prostituição na
sociedade brasileira. É a primeira abertura da matéria. Vem um chapéu,
criando intervalo. Então vem a segunda abertura, já não italicizada,
393

nitidamente fora dos padrões jornalísticos tradicionais: “Afinal, ia se dar


início a algo inédito na história brasileira. O visitante, desconfiado, penetrou
num salão com capacidade para 500 pessoas. Viu o retrato do patrono,
Dante, no alto da parede e, no auditório, uma assistência praticamente só de
mulheres – aproximadamente nove em cada grupo de dez participantes. Na
platéia, os jovens de menos de 25 anos dominavam. E esperavam. Sobrava
muita gente de pé. Mas ele continuava desconfiado e, por via das dúvidas,
conferiu – eram oito horas da noite, mês de agosto, dia 7. Não, não havia
nenhum equívoco. Era o dia e a hora em que começava, na cidade de
Ribeirão Preto, o 1o Seminário Regional Estadual de Estudos Sobre a
Prostituição.” Com aberturas como essa, João Antônio procura criar um
suspense até que, apenas na última frase, esclarece a situação e dá o tom
jornalístico. Mas este suspense específico, criado de forma tão esquemática,
chega a ser engraçado.
A matéria, daí em diante, perde sua relevância na questão que importa
a essa pesquisa, limitando-se a fazer uma descrição excessivamente
minuciosa e tediosa de uma noite de palestras, resumindo-as em seqüência,
com estatísticas e resumos de certos aspectos do problema na base de
tópicos enumerados. Claro que, deixe-se registrado, de maneira nitidamente
partidária de uma compreensão social do tema, não condenatória ou
simplesmente moralista. Uma observação de João Antônio, ainda que
levemente irônica, é eloqüente do partido do qual a matéria está impregnada:
“(...) imprimia coragem e franqueza diante da ‘situação’ da prostituição
(durante todo o Seminário se evitou terminantemente a expressão
‘problema’)”. A se destacar, apenas, a constante das enumerações e,
sobretudo, o largo uso do “jargão”, ou se se preferir, do “dialeto” ligado à
prostituição. João Antônio cita com fartura expressões como, entre outras,
394

livre-atiradoras, trottoir, inferninhos, casas bonitas, nome de guerra, azeite


(que significa “bolinha”, ele explica !?!).

A Realidade

A redação de Cláudia funcionava no mesmo prédio da redação de


outra revista da editora Abril, a Realidade, na av. Otaviano Alves de Lima
800. Esta, fundada em 1966, sob a direção do experiente jornalista Paulo
Patarra, com uma proposta bastante moderna e ousada para a época, reunia
uma elite de jornalistas, donos de um texto diferenciado, que iam sendo
impressos, encadernados e distribuídos com identidade gráfica muito mais
moderna que a média das demais revistas, e vitaminados com uma pauta
bem mais contundente que a da média das revistas, sobretudo no âmbito do
comportamento. A Realidade, em seus primeiros anos, era um
acontecimento no mercado. Na época, os grandes grupos Abril e Globo
estavam se formando, e a Realidade era uma espécie de jóia da coroa da
Abril. Entre seu elenco de profissionais estavam nomes que impunham
respeito em seu tempo: Jorge Andrade, Walter Firmo, Narciso Kalili, José
Hamilton Ribeiro, Cláudia Andujar, José Carlos Marão, Paulo Henrique
Amorim, Luigi Mamprin, com destaque para Mylton Severiano da Silva, que
viria a se tornar o melhor amigo de João Antônio e seu biógrafo.779
Como já foi dito, a vinda da família para São Paulo decorrera do
convite para que João Antônio trabalhasse no jornal Última Hora mas,

779
Na data da redação deste capítulo, 11 de maio de 2004, esta biografia ainda estava em processo de
composição.
395

também, de seu interesse pelo “movimento jornalístico” de São Paulo. 780 A


Realidade era, sem dúvida, a expressão do que esse “movimento” poderia ter
de mais moderno e avançado. E ele sabia disso.
Não foi difícil aproximar-se do grupo de jornalistas da revista. Mylton
Severiano, o Myltainho, inclusive, era vizinho de João Antônio e Marília na
Boca do Lixo. Já em 1967, uma primeira matéria assinada por ele aparece
nas páginas de Realidade, embora, a julgar pelas datas de publicação das
matérias seguintes, foi a partir de meados de 68 que João Antônio viu-se
oficialmente incorporado à equipe, vindo a publicar regularmente até março
de 69.
Foi quando se deu o acirramento das discordâncias entre Paulo Patarra
e os donos os grupo Abril sobre a compatibilidade entre o projeto editorial e
empresarial da Realidade e as exigências da lógica de mercado. Processo
este que culminou com a saída de Patarra, divisora de águas na história da
revista. Isso porque peças-chave do corpo de jornalistas, solidárias ao colega
diretor de redação, e principal defensor do projeto jornalístico alternativo
junto aos sócios da empresa, pedem demissão de seus empregos. João
Antônio está entre elas. Sua maior e mais fértil experiência profissional é
interrompida precocemente, não apenas pela perda do emprego, mas pelo
próprio fim do projeto editorial da revista em sua origem. Realidade
continuou a circular até 1974, mas desde 69 tinha outro sabor.
Ao se demitir, João Antônio vai trabalhar numa publicação
patrocinada pelo grupo Pão de Açúcar, a revista Bondinho, distribuída
gratuitamente, e de lá passa rapidamente pela editora Três, então sendo
montada pelo mesmo grupo que fazia a Bondinho. Em seguida, porém, a
convite do grupo Bloch, do Rio, João Antônio decide novamente deixar São
780
Depoimento de Marília Andrade, colhido em 20/07/2003.
396

Paulo para ir trabalhar na revista Manchete e, mais tarde, na Fatos e Fotos.


Data dessa segunda ida para o Rio o aluguel da pequena cobertura onde o
escritor moraria até a sua morte, com vista para a praça Serzedelo Correia,
no coração de Copacabana. A volta para São Paulo, sua cidade natal, dura
não mais que quatro anos. E a passagem pela Realidade, como jornalista
efetivado na equipe, apenas alguns meses.
Porém, por breves que tenham sido, esses meses marcaram-no
decisivamente, dando-lhe a chance de atingir o ponto máximo de sua
almejada fusão entre jornalismo e literatura.
De um ponto de vista mais prosaico e imediato, a revista deu-lhe
também uma projeção profissional ainda maior do que a que tivera como
repórter-especial do JB. É o que se deduz, por exemplo, do relato feito pelo
escritor Wander Pirolli, sobre a organização hierárquica do trabalho em uma
das matérias coordenadas por João Antônio para a revista: “João Antônio
fora encarregado pela revista Realidade, da editora Abril, para comandar
uma grande matéria sobre o clássico Cruzeiro e Atlético, então um
fenômeno nacional. A revista Realidade, mensal, e que costumava entrar
fundo em todos os assuntos, queria fazer uma reportagem histórica sobre o
acontecimento. (...) João Antônio e Alberico [Souza Cruz, mais tarde diretor
de jornalismo da Globo] explicaram como seria a jogada. E quem iria
participar dela. Roberto Drummond faria uma retranca sobre a interpretação
econômica do futebol. Fábio Lucas, escritor e crítico, ficaria encarregado de
sua sociologia. Os vestiários dos dois times estariam a cargo da competência
de Tião Martins”. Wander Pirolli e seu amigo Bley teriam ainda a missão de
“fazer as retrancas sobre as torcidas do Atlético e do Cruzeiro. “Não sei por
397

que cargas d’água, me coube a parte do Atlético, sua charanga, sua gente,
desde o mais pobre e desdentado até um sizudo político de alto coturno.”781
Como se vê, enviado por Realidade para cobrir o evento, João
Antônio mobilizou a seu serviço boa parte da elite intelectual de Belo
Horizonte, e mais, pagando bem:
“– E vai ter pagamento?
– Na boca do caixa. Assistimos o jogo, entregamos a nossa parte, e
pronto.
Como o Bley não perguntasse qual seria nosso cachê, falei da
importância.
– Você está brincando.
– É a pura verdade.
– Mas eles vão pagar isso tudo por uma lauda e meia?
E pagaram. Por uma lauda e meia, receberíamos muito mais do que
dando duro durante o mês inteiro no Sol”.782
Era natural que, sendo a revista um posto avançado da elite
jornalística nacional, a projeção de João Antônio como jornalista
aumentasse. O sucesso chegava, e sem que concessões fossem exigidas de
volta. O artista encontrara o seu lugar no mundo real, no mundo produtivo.
O autor de um ensaio sobre a história da revista define-a da seguinte forma:
“A revista Realidade representaria um exemplo destacado do momento
inicial de implantação e consolidação de uma indústria cultural no país. (...)
apesar de fazer parte de um projeto editorial marcado pelas ligações e
contratos internacionais da Editora Abril, a execução da revista esteve a
cargo de um grupo de jornalistas sensível às necessidades da época,

781
Crônica de Wander Pirolli, escrita em 1992. Arquivo do autor.
782
Idem.
398

refletindo a inquietação cultural daquele momento. (...) Sem dúvida não se


tratava de um veículo da contra-cultura, que era representada por
publicações como O Pasquim, Movimento, Opinião. Realidade estava
perfeitamente inserida no establishment, mas soube aproveitar-se do espaço
(mercado) que era atraente, veiculando os temas polêmicos da época (que
eram tabus e hoje não são mais). Levantou esses temas polêmicos (aborto,
pílula [anticoncepcional], drogas, juventude, rebeldia etc) na área do
comportamento. E nisto ela foi importante, como porta-voz do espírito do
tempo. Mas não falava de política brasileira. (...) Donde uma composição
possível entre a direção da revista e seus interesses empresariais e uma
redação de melhor qualidade, extraída do contexto pré-64, poder explicar a
posição singular e excepcional de Realidade na história da imprensa
brasileira”.
Por fim, ele caracteriza o período em que João Antônio participou da
revista como “sua grande fase”, que chega ao fim a partir de 68 com o
endurecimento do regime militar e, conseqüentemente, da censura, bem
como devido ao desenvolvimento acelerado da indústria cultural, que
“precisa de velocidade, essa é uma característica sua, e Realidade era uma
revista mensal”.783
Marília, então sua esposa, é categórica ao relembrar a época: “A
Realidade foi a única fase da vida dele que eu o vi feliz”.784
Não era para menos. Estava praticando um tipo de jornalismo que
encaixava como uma luva em seu processo de maturação estilística,
trabalhava com alguns dos melhores profissionais do país, tinha uma
projeção pessoal e institucional inédita no meio jornalístico e literário,
783
Moreira, Roberto S.C. “A revista Realidade e o processo cultural brasileiro dos anos 60”, in Estudos de
Sociologia da Cultura, www.sol.unb.br/roberto/texto2.htm, 2000.
784
Depoimento de Marília Andrade, colhido em 20/07/2003.
399

trabalhando numa revista que era ao mesmo tempo de esquerda e financiada


por um grande grupo editorial, o melhor dos dois mundos, ganhando melhor
do que nunca e, de quebra, morando perto do amigo Mylton Severiano da
Silva, na sua querida Boca do Lixo, onde desde a adolescência sentia-se em
casa. Com a família devidamente instalada, o filho pequeno, João Antônio
ainda encontrava tempo para freqüentar os taxi-dancings da região; com
Marília, quando a avó de Presidente Altino se encarregava do neto, ou, mais
freqüentemente, sem Marília.

Data do período em Realidade não apenas o ponto de fusão


“joãoantoniano” entre literatura e jornalismo, mas também a consolidação
do leque de gêneros com os quais o escritor trabalhava para a imprensa e
que, depois, viria a compor grande parte de sua obra publicada em livro.
Com base nos eixos programáticos levantados no período JB, esse leque de
gêneros se esboçou durante a passagem pela revista Cláudia, conforme
demonstrado, e ganhou forma definitiva em Realidade.
Divide-se nos seguintes tipos de matéria:
Variedades: temas desligados das artes e da vida cultural estrito senso.
No JB, produziu talvez apenas um espécime, a citada matéria sobre o quase
acidente de pára-quedas. Em Cláudia, a matéria sobre o Carnaval e a sobre
Iemanjá.
Comportamento: temas que, embora também desligados do mundo
das artes, diferem das variedades porque tratam de temas “tabu”. Têm uma
evidente e proposital índole contestadora, manifestação lítero-jornalística da
“vocação para o conflito” do temperamento do escritor. No conjunto do JB
não há qualquer uma digna deste nome, o tom geral é elogiativo e de adesão.
400

Paisagens: matérias sobre lugares e seus personagens. No JB,


antecipando a consolidação do gênero, João Antônio estréia com uma
paisagem atípica para ele, a do Teatro Municipal do rio de Janeiro na estréia
da ópera Fosca, e faz ainda uma sobre o Embu das Artes, município
alternativo da grande São Paulo. Mas o gênero ainda não estava consolidado.
Em Cláudia, não o pratica nenhuma vez. Mas em Realidade, volta a ele com
matérias sobre o porto de Santos, sobre gafieiras, sobre os salões de sinuca,
sobre um estádio de futebol e um hipódromo. Com alguma freqüência, está
presente aqui a idéia de resgate de uma “cultura brasileira autêntica”, valor
estético-ideológico explicitado nos tempos de JB.
Retratos: perfis, com maior incidência de artistas e intelectuais, mas
que também compreende perfis de anônimos, a quem o escritor procura
conferir humanidade (nestes casos, costuma combinar elementos do gênero
paisagem). Os preceitos estético-ideológicos manifestos em suas matérias do
JB aqui desempenham um papel central na seleção das pessoas a serem
retratadas: a valorização da cultura popular como “a autêntica cultura
nacional”, por exemplo, explica a idolatria a cantores e músicos da velha
guarda; a idéia do artista como um “cidadão sem fronteiras”, de sua parte,
manifesta-se no elogio de figuras capazes de circular pelos diversos níveis
da pirâmide social e cultural, na erudição livre e sem área de especialização,
sem método, na combinação entre cultura popular e erudita, e na valorização
do auto-didatismo; a arte como missão, politicamente independente mas
socialmente comprometida etc.
Claro que esses gêneros podem se combinar, e uma única matéria
eventualmente trazer elementos de mais de um deles. É o caso, talvez, da
matéria sobre a récita da Fosca, na qual o gênero predominante da paisagem
recebe a gota de veneno do gênero de comportamento. Ou de uma matéria
401

da Realidade sobre os alcagüetes da polícia junto ao baixo clero da


criminalidade, que é predominantemente do gênero retrato, mas que, por
lidar com um retratado anônimo, não artista conhecido ou intelectual,
também traz elementos do gênero paisagem.
Esse leque de gêneros é a chave para compreendermos o mecanismo
de organização interna da produção de João Antônio na imprensa e, a partir
de 1975, de toda a sua produção em livro. Para compreendermos as
fronteiras muito particulares de um território que foi, gradativamente, sendo
despojado das fronteiras aceitas pela maioria. Sim, pois a verdadeira fusão,
como já foi dito, é entre ficção e jornalismo; conto e crônica, conto e
reportagem.
Leão-de-chácara785, o primeiro livro depois de Malagueta, Perus e
Bacanaço, lançado em 1975, portanto doze anos após a estréia, é o último
volume onde a ficção predomina. Mesmo assim, quase metade do livro,
ocupada pela novela “Paulinho Perna-Torta”, fora portanto escrita em 1964,
antes da entrada do jornalismo na vida, e no estilo, do escritor. Mas em
seguida ele publica Malhação do Judas Carioca786, que sem nenhum tipo de
aviso ao leitor “de ficção pura”, do leitor de Malagueta, Perus e Bacanaço,
por exemplo, reúne textos tipicamente de imprensa, alguns deles extraídos
da própria Realidade, outros d’ O Pasquim787. Mais tarde, na biografia
autorizada do escritor, fica dito que Malhação “reúne, num só livro, alguns

785
Antônio, João. Leão-de-chácara, Record, RJ, 1975.
786
Antônio, João. Malhação do Judas Carioca, Record, RJ, 1975.
787
João Antônio foi convidado a escrever n’ O Pasquim pelo cartunista Jaguar, que leu um retrato do
jogador de futebol Almir, escrito por João Antônio e publicado no suplemento literário do jornal Minas
Gerais. Mais tarde, o texto seria republicado no próprio O Pasquim (Ano VI, n. 267, 1974), provavelmente
com poucas modificações, e no livro Casa de Loucos (Record, RJ, 1976), provavelmente com muitas
modificações. Sua colaboração no tablóide começou em 1974 e foi até 1976. A atuação de João Antônio na
imprensa alternativa como um todo foi intensa e notável, tendo ele escrito também para Movimento,
Opinião, Cultura Contemporânea, Protótipo, entre outros; mereceria um capítulo à parte. Destaca-se, no
caso d’ O Pasquim, o texto “Aviso aos nanicos” (Ano VII, n.318, 1975), do qual gaba-se, entre outros
motivos, por nele haver cunhado a expressão “imprensa nanica”.
402

de seus melhores textos publicados em jornais e revistas”.788 Mas essa


admissão ocorre a posteriori, seis anos depois. E ainda vale notar que há
uma certa ambigüidade na terminologia “textos”, estes não são
explicitamente denominados reportagens, ou matérias, embora também não
sejam chamados de contos.
E em seguida é lançado Casa de Loucos789, que também reúne textos
jornalísticos tratados e embalados como sendo de prosa literária, um deles
vindo de Realidade; e depois Calvário e Porres do Pingente Afonso
Henriques de Lima Barreto790, que, com técnicas evidentemente extraídas da
prática jornalística, entrelaça o depoimento de um contemporâneo de Lima
Barreto a trechos de seus romances e de sua fortuna crítica; e ainda Ô,
Copacabana!791, um texto longo sobre o bairro onde morava, com seus
cenários e tipos; e por fim (não precisamos ir mais longe, por enquanto)
Dedo-duro792, onde o próprio conto-título brota diretamente de um texto
jornalístico publicado na Realidade.
Das matérias em Realidade, apenas duas, entre oito, não foram
localizadas em nenhum dos livros subseqüentes do autor. Das seis restantes,
quatro são republicadas em livros praticamente sem qualquer mudança, ou
com mudanças mínimas, mantendo até mesmo os chapéus característicos do
texto jornalístico, e duas passam por modificações, numa delas modificações
que implicam em opções de voz narrativa diferente e a outra simplesmente é
encurtada, tem seus parágrafos reorganizados e combinados a outras
reportagens sobre o mesmo tema.

788
Neto, João da Silva Ribeiro. João Antônio – Literatura Comentada, Abril, SP, 1981.
789
Antônio, João. Casa de Loucos, Record, RJ, 1976.
790
Antônio, João. Calvário e Porres do Pingente Afonso Henriques de Lima Barreto, Record, RJ, 1977.
791
Antônio, João. Ô, Copacabana!, Record, RJ, 1978.
792
Antônio, João. Dedo-duro, Record, RJ, 1982.
403

As publicadas identicamente, ou quase, são: “Este homem não brinca


em serviço”, “Um dia no cais”, “A morte”, “É uma revolução”.793
Um exemplo, da matéria sobre o cais de Santos, na revista:
“De longe em longe, uma locomotiva a óleo diesel apita, modorrenta,
e vem furando para as luzes na zona do cais.
– Êpa!
– Um menino branco se esforça, sobe do selim para o cano, mete os
peitos contra o guidão, se enverga, equilibra a sacola na bicicleta e corta de
fininho o cais. Vai que vai embora. Está quase sozinho com as luzes no
comprimento de paralelepípedos, gozando nas curvas. O menino mais o seu
calção e a sua japona, seu cabelo cortado rente, sua campainha, trim-trim nas
esquinas que atravessa.”
E no livro:
“De longe em longe, uma locomotiva a óleo diesel apita, modorrenta,
e vem furando para as luzes na zona do cais.
– Êpa!
– Um menino branco se esforça, sobe do selim para o cano, mete os
peitos contra o guidão, que se enverga [grifo meu], equilibra a sacola na
bicicleta e corta de fininho o cais. Vai que vai embora. Está quase sozinho
com as luzes no comprimento de paralelepípedos, gozando nas curvas. O
menino mais o seu calção e a sua japona, seu cabelo cortado rente, sua
campainha, trim-trim nas esquinas que atravessa.”
Há uma única diferença, como se vê. Há também, chapéus que foram
refeitos, como por exemplo “Noitão. O trabalho continua duro”, substituído
por “Noitão, a hora é de expandir”. Mas, admita-se, nada que altere o caráter

793
In Realidade, Ano I, n.19, Abril, SP, 1967; Ano II, n.30, Abril, SP, 1968; Ano II, n.30, Abril, SP, 1968;
Ano II, n.32, Abril, SP, 1968, respectivamente.
404

de um texto. “Um dia no cais”, inclusive, sempre foi apontada por João
Antônio como o texto que inaugura um novo gênero na literatura nacional, o
“conto-reportagem”. É também, um texto tipicamente da categoria
paisagem.
Nas outras três, o nível de semelhança é o mesmo, seria perda de
tempo esmiúça-lo aqui. Já os dois textos publicados em Realidade e depois,
com modificações, em livros, merecem análise mais detida. Sobretudo para
mostrar o quanto essas modificações são também relativas e, desta forma,
sustentar a tese de que, após a passagem pelas redações de Realidade, João
Antônio desfaz as fronteiras tradicionais entre literatura e jornalismo,
criando o seu próprio leque de gêneros. E, se ainda preciso for, como
atenuante à existência destas modificações, pode-se invocar o fato de serem
as duas com maior intervalo de tempo entre as publicações na imprensa e no
âmbito do mercado editorial de livros.
Uma delas, “Ela é o samba”794, foi publicada na Realidade em outubro
de 1968 e depois apareceu no livro Dama do Encantado795, de 1996, ano da
morte do escritor. A outra, “Quem é o dedo-duro?”796 saiu na Realidade em
julho de 68 e em livro quase homônimo, somente no ano de 1982. As quatro
matérias publicadas de forma idêntica foram veiculadas em livros que
saíram até 1976, ou seja, no calor do momento, e portanto menos
retrabalhadas, esforço que ao longo de tanto tempo mais diz respeito a um
processo natural de todo escritor que à negação de sua subversão pessoal dos
gêneros literários.
“Ela é o samba” faz um perfil de Aracy de Almeida, a intérprete mais
identificada com um grande ídolo de João Antônio: Noel Rosa. Embora
794
In Realidade, Ano II, n.31, Abril, SP, 1968.
795
Antônio, João. Dama do Encantado, Nova Alexandria, SP, 1996.
796
In Realidade, Ano II, n.28, Abril, SP,1968.
405

apresente modificações entre um tipo de veiculação e outra, a essência deste


retrato literário é constante, e mais, dos 57 parágrafos que compõem o texto
em sua versão em livro, 43 são extraídos da matéria de Realidade, e mais
dois de uma das duas matérias do Jornal do Brasil em que ela é
mencionada.797 É curioso ver como, para os livros que irão compor sua obra
literária, João Antônio partia muitas vezes de reportagens e ia refundindo-as.
Afora a ordem dos parágrafos, que está completamente alterada, há
alguns que vêm simplesmente idênticos. Outros, mais ou menos
modificados. Alguns exemplos das modificações.
Na revista:
“No terreno do diz-que-não-diz tem sido mais atacada do que ataca.
Os seus shows, de scripts livres, em boates e teatros, acabam levantando
críticas azedas, pois Aracy, em matéria de franqueza, não fala a meia
verdade. Depois desabafa, jamais em tom de resposta ou desforra, mas
apenas usando, na integridade, o seu direito de falar. A sambista reclama:”.
E no livro:
“Enquanto cantou e gravou, sua vida virou terreno do diz-que-não-diz
em que era mais atacada do que atacava. As suas apresentações de scripts
livres, em boates e teatros, acabavam levantando críticas azedas, pois Aracy,
em matéria de franqueza, não falava a meia verdade. Depois desabafava,
jamais em tom de resposta ou desforra, mas usando inteiramente o seu
direito de falar”.
Como se vê, afora alguns cortes e rearrumações sutis, a única
diferença notável é a mudança do tempo verbal. Ele simplesmente bota tudo
no passado, pois sua entrevista com Aracy fora feita quase vinte anos antes.

797
“Um violão e um gênio de mãos dadas”, in JB, RJ, 04/05/65.
406

Vejamos o outro caso de matéria da Realidade que foi publicado em


livro com modificações, a intitulada “Quem é o Dedo-duro?”. Veiculada em
julho de 1968, ela ressurge em forma de conto quatorze anos depois. Mas,
uma primeira coisa a se notar, ao contrário tanto do usual nas matérias do JB
como nas de Cláudia, é o quanto o texto dessa reportagem se aproxima da
literatura mais radical do escritor, por exemplo de um “Paulinho Perna-
Torta”798, caso eloqüente de ficção pré-jornalismo, de 1963-4, e marco de
seu regionalismo-urbano. Eis um trecho de “Paulinho”:
“Mataram o trouxa a soco inglês. O cara, filho de família, na zona
fazia papel de lorde, teimando em fazer presenças e aprontando marotagens.
Largava aqui, numa noite, um tufo de dinheiro, esbagaçando cervejas,
conhaques, traficâncias da roda das mulheres que lhe tomavam até o último,
ou entre as curriolas da sinuca do Burruga e aqui mesmo na boca do
Arrudão, entre partidas de carteado”.
E um da reportagem “Quem é o dedo-Duro”:
“Era uma curriola de homens fortes, calejados em assaltos. Peteleco
fazia o seu papel com medo. No fundo, ele estava a perigo. O cigarro de
maconha, o baseado, começou a circular na roda, passando de mão em mão.
Os homens sugavam, aspiravam fortemente a erva, repetindo, nervosos, o
movimento de sucção da fumaça, querendo que ela corresse pelas veias.
Veio a vez de Zé Peteleco. Ele deu bola ao fuminho, fingiu tragar
profundamente. E começou, dissimuladamente, a arrotar vantagens:”.
Há não apenas um universo, mas um tom geral, um léxico, um ritmo,
que são inegavelmente comuns à novela e à matéria.

798
Antônio, João (entre outros). “Paulinho Perna Torta”, in Os Dez Mandamentos, Record, RJ, 1965. Este
foi o ano em que a novela apareceu publicada, mas sua redação, claro, o antecede. Os manuscritos de
“Paulinho Perna Torta” existem e há muitas referências, como viu-se no capítulo 2, sobre o processo de
redação da novela.
407

Nos momentos das falas dos personagens, a proximidade é ainda


maior. Eis alguns trechos de “Paulinho Perna Torta”: “– Vai um brilho,
moço? (...) – Você dá no couro? (...) Pede, meu. Ela dá a grana. Mulher
gamada dá tudo. Parte pra qualquer negócio. (...) Se você fizer isso com
outra, te corto. Te apago. (...) Um valente ponta firme”.
E alguns da reportagem sobre o dedo-duro: “Olá, meus compadres!
Estamos a bordo. Como é que é? Trouxeram o bagulho? (...) Vem cá, meu
considerado. Fique sabendo que malandragem nunca deu camisa a ninguém,
não. (...) O negócio é com o Tição mesmo. Ele está ‘gordo’ e ainda não
queimou nem metade da grana afanada”.
Anos depois, ao publicar esta matéria em livro, João Antônio
refundiu-a, fazendo duas mudanças gerais e uma infinidade de outras
meramente estilísticas. Porém, mesmo as mudanças estruturais, embora
curiosas, levada em conta a distância usual entre um texto de ficção e outro
jornalístico, não parecem invalidar o argumento da fusão entre jornalismo e
ficção. Uma delas foi transformar o discurso indireto em direto, ou seja, o
jornalista deixou de descrever um tipo, o dedo-duro, e seu ambiente, e esse
próprio tipo passou a descrever a si mesmo e a seu mundo. Além disso, em
vários momentos na matéria, sem critério firme, João Antônio incluía, entre
parênteses, um sinônimo que esclarecesse ao leitor o significado de
determinada gíria ou palavra desconhecida.
Um exemplo da mudança na voz narrativa. Na reportagem:
“Zé Peteleco nunca foi homem forte. Nem corajoso. Não era bom
jogador, não havia aprendido a roubar, nem sabia, pelo próprio esforço, onde
arranjar maconha, bolinhas ou cocaína. Não era um taco no bilhar, não era
um linha-de-frente no jogo do carteado, não conseguia fazer dos
entorpecentes meio de vida.”
408

E no conto:
“Olhem aí, se eu disser que sou homem forte ou essas coisas, estarei
mentindo. E em historiada de mulher, aqui miúdo, a sensação me vem,
várias vezes, de ser pouco homem diante de certos mulherões que vejo
passar.
Nem sou bom jogador, não aprendi furto e nem soube, pelo esforço
certeiro – e meu – descolar uma maconha, uma bolinha, um brilho de
cocaína. Não me dei bem no trato com as coloridas na sinuca, não fui um
linha-de-frente no jogo do carteado, nem bom escrevedor de jogo do bicho,
pego mal nas corridas de cavalo, não consegui fazer meio de vida nos
entorpecentes.”
Quanto aos parênteses explicativos das gírias, são mudanças ainda
mais sutis. Na publicação em livro, quando o texto é apresentado como um
conto “puro”, ora a explicação da gíria é, entre vírgulas, agregada ao texto,
ora é eliminada. Em ambos os casos, desfaz-se o caráter explicativo
puramente jornalístico. Exemplo na reportagem:
“Era fracote, mas estava no ambiente. Com o tempo, arranjou uma
moleza, um mingau, uma otária (mulher da vida, fácil de dar dinheiro a seu
homem, fácil de dobrar) ”.
E no conto:
“Isso. Fracote, pequeno, mas no ambiente. E com o tempo, até o mais
morto, arranja uma moleza, um mingau, uma otária fácil de dobrar”.
Como se vê, mudanças que, teoricamente, poderiam resultar em algo
crucial, que diferenciaria de maneira radical os dois textos, na verdade nada
mais são que ajustes destinados a afiar e enfatizar o tom marginal, o
linguajar da malandragem, e a intensificar a verossimilhança e a adesão
entre leitor e personagem.
409

Na matéria sobre a vida dos dedo-duros, a abertura também é


ficcional, embora narrada em terceira pessoa e, no arcabouço estilístico
geral, temos as mesmas características: o ouvido para o jargão específico das
ruas e de seus tipos, a enumeração, as orações fragmentadas, algumas
palavras de função conectiva suprimidas, compondo uma sintaxe também
“inculta”, fora das normas.
Nos trechos em que essas diferenças não estão em primeiro plano, a
proximidade é quase total.
Um exemplo, na reportagem:
“Às cinco da manhã, o resto da cidade parece dormir e até os dancings
e os últimos restaurantes e botequins baixaram as portas para descanso. O
salão de bilhares vai seguindo na madrugada, agüentando o seu ritmo como
um olho aceso na noite, muito movimento nas mesas, quase todas tomadas.
Pelos cantos e no balcão, tipos conversam, bebericam, fazem apostas neste
ou naquele taco. É uma variedade de peças (tipos), desde os parceirinhos,
jogadores de sinuca, curiosos, desocupados, gente da noite, até homens de
outras áreas de malandragem, como chorros (batedores de carteira) e algum
marginal da pesada. Esses, de hábito, não jogam nem apostam, ficam ali
batendo papo, malbaratando o tempo, tomando um e outro trago.”
E no conto:
“Às cinco da matina, o resto da cidade parece dormir e até os
dancings e os últimos restaurantes e botequins baixaram as portas para
descanso. O salão de sinuca vai seguindo na madrugada, agüentando o seu
ritmo ladrão como um olho aceso na noite, vivo movimento pelas mesas,
quase tomadas por inteiro. Pelos bancos laterais, nos cantos e no balcão,
sujeitos conversam, bebericam, fazem apostas neste ou naquele taco. É uma
variedade de peças; dos parceirinhos, jogadores, patrões e cavalos, curiosos,
410

remandioleiros, velhos estrepados e sós, desocupados, famintos, gente da


noite, fumetas, aos pintas de outros campos, chorros, lanceiros e roupeiros,
tudo gente que bate carteira, pisa macio e se alivia de qualquer maneira.
Baixa também algum malandreco da pesada. Aí é comigo. Essas aves, de
comum, nem jogam nem apostam, ficam ali papeando, mariolando o tempo,
tomando um e outro para molhar as palavras.”
Não parece que um é reportagem e o outro texto de ficção, parece que
o mesmo conto foi retrabalhado, como qualquer obra de ficção costuma ser.

A explosão dos gêneros

Ficou claro o quanto as matérias da Realidade tinham, na cabeça do


escritor, o estatuto de textos literários, tão altos e tão nobres quanto contos
“puro-sangue”.
Se ficção e memorialismo já nasceram fundidos na obra do escritor799,
agora a realidade, apreendida muitas vezes a partir de procedimentos
jornalísticos, e tendo o texto um viés jornalístico, junta-se aos dois. Foi mais
um passo no que João Antônio, ao falar da atitude correta de um escritor,
chamou de “Corpo-a-corpo com a vida”. Mais do que nunca, o processo de
composição livre de vínculos diretos com a vida real estava afastado. Diz
ele, nesse texto, profissão de fé, que encerra o livro Malhação do Judas
Carioca: “Não será absolutamente necessário, para compreender – uma
palavra superada; leia-se, por favor, enfrentar – o marginalismo individual
dos que se debatem no futebol ou na polícia, alguém que assuma o mesmo
gangsterismo, um semelhante (mas com visão crítica) individualismo? Um
799
Como veremos no capítulo 3, a ser escrito até o final deste ano.
411

gansterismo, um individualismo, um individualismo ao menos experimental.


Que, ao escrever, dê a mesma porrada, como repórter, escritor, etc., que o
bandido, o jogador, o traficante, o bicheiro e, especialmente, e isso tudo –
herói – dão para sobreviver. Assim, uma literatura de murro e porrada. Um
corpo-a-corpo com a vida”.
E diz mais: “Literatura de dentro para fora. Isso é pouco. Realismo
crítico. É pouco. Romance-reportagem-depoimento. Ainda pouco. Pode ser
tudo isso, trançado, misturado, dosado, conluiado, argamassado uma coisa
da outra. E será bom. Perto da mosca. A mosca – é quase certo – está no
corpo-a-corpo com a vida”.
Ricardo Ramos, em sua apresentação ao livro Zicartola e que tudo
mais vá para o inferno!800, também parece ter dificuldade para qualificar a
natureza dos textos que compõem o livro: “Temos aqui o nosso grande
contista popular. Dando uma de cronista, o que é ótimo. Porque alia à ficção
suas idéias, opiniões, a posição pessoal do escritor. Um João Antônio livre e
solto, em plenitude. Admirável”.
“Livre e solto” das classificações tradicionais para seus textos, ele
parece querer dizer, unindo a sua ficção a atitude opiniática do tipo de
jornalismo e de crônica que João Antônio praticava.
Uma coisa não mudou em toda a carreira dele como escritor. Seu
processo criativo sempre partiu de um contato com algum “personagem
real”, alguém de carne e osso, cujo perfil se adequasse a sua linha de
trabalho, isto é, ao recorte social que pretendia iluminar, o das classes
baixas, com suas mil e uma ramificações (prostitutas, leões-de-chácara,
dedo-duros, sinuqueiros, traficantes, ladrões, garçons, pivetes, guardadores

800
Antônio, João. Zicartola e que tudo mais vá para o inferno!, Scipione, SP, 1991; apresentação de
Ricardo Ramos, p.3.
412

de automóveis, “merdunchos” em geral, como ele os apelidara). Esse hábito


do testemunho direto, num primeiro momento, veio pela origem proletária,
pela condição social e convívio obrigatório com esses personagens. Depois,
quando o jovem escritor torna-se um jornalista conhecido e morador de um
bairro de classe média, permaneceu o hábito do testemunho direto, agora
tornado possível graças à opção individual e à profissão de jornalista. Esse
trabalho de campo é, entre escritores, uma preferência sujeita a
idiossincrasias pessoais, inclusive de temperamento; no universo jornalístico
é uma virtude obrigatória. Isso não era problema para João Antônio.
É ele quem diz, por exemplo, do conto “Leão-de-chácara”: “Agora,
para fazer ‘Leão-de-chácara’, eu analisei muito, conversei muito,
principalmente com um garçom que já é morto (...) Era o Garotinho. (...) a
profissão, que é servir a todos, dá ao sujeito uma sabedoria muito grande, ele
aprende, ele procura saber onde tá pisando, com quem tá lidando. Então, a
humildade do garçom, do bom garçom, aprendi através da conversa, (...)
Então foi conversando com ele, observando outros leões-de-chácara, vendo
aquela figura aparentemente pitoresca, engraçada, que não tem nada disso, é
um pingente urbano (...) a figura do leão começou a sair da aparência pra
mim, começou a se aproximar da realidade, da essência./ Tenho amigos
Leões-de-chácara, encontro-os na praia, na porta da boate. (...) Então foi
assim, vivenciando, sentindo os caras, conversando muito com eles”.
Não que João Antônio fizesse pesquisa, no mau sentido, para
alimentar sua ficção, ele tinha inclusive horror a essa palavra. Embora
tivesse cacoetes de pesquisador, sua abordagem era outra.801 A palavra

801
Entre esses cacoetes, vale mencionar sua mania de fazer listas de palavras em papéis de cigarro, dos
quais tirava o laminado. Como a que aparece na reportagem sobre o dedo-duro: “Chacal, alcagüeta,
cagüete, cachorrinho, delator, informante, reservado, federal, engessador, falador, boca mole, boca de litro,
dedo duro, são a mesma coisa”. E em Ô, Copacabana: “picardo (aquele quem tem picardia, o bom, o
413

pesquisa de fato coloca uma distância entre o olhar e o objeto maior que a
mantida por ele. Ele não se imaginava como um mero pesquisador, pois
convivia com esses “personagens reais”. E essa mesma necessidade
testemunhal, para ele, permanecia constante, fosse no jornalismo, na ficção e
num texto de caráter memorialístico. E o resultado, freqüentemente,
encaixava-se em todos esses domínios ao mesmo tempo, tornando difícil
classificar a natureza de seus “textos”.
Um bom exemplo disso é o livro Ô, Copacabana!. Ele é ao mesmo
tempo uma colcha de retalhos, compostas por partes inéditas e coisas que ele
já publicara antes, na imprensa e em forma de livro, e uma fonte de textos
usados por João Antônio em ocasiões futuras, na imprensa e, recortadas, em
seus livros subseqüentes.
Mas é curioso observar que tanto os retalhos que dão forma ao livro,
quanto os subprodutos que ele rendeu, são usados por João Antônio como se
tivessem naturezas múltiplas – crônica, texto de intervenção, memorialismo,
reportagem ou ficção –, que, como numa reação química, reagiriam ao
contexto em que fossem veiculadas. Mas, no que se refere ao aspecto
estilístico, pouco variam. Assim, o próprio livro Ô, Copacabana! é um livro
indefinível. O que ele é? Depende, do momento e do ponto de vista.
Algumas das fontes de Ô, Copacabana:
1) matérias d’ O Pasquim, uma delas, tomada ao acaso, intitulada “O
festival do osso”, e outra “Tome vergonha na cara: Mexa-se”, que se
encaixam, por exemplo, na sub-categoria comportamento.802

quente, o sabido, o malandreco, o moita). / Estar ruço (estar mal de vida, estar em situação nebulosa, feia,
difícil, enrolada e quase fatídica). / ratatuia (patuléia, igrejinha, canalha, patota, curriola, grupo fechado,
súcia, cambada, turma, bando, gangue, a boa gente)”.
802
In O Pasquim, Ano VII, n.350, 1975; Ano VII, n. 328, 1975, respectivamente.
414

Ambas, n’ O Pasquim, eram textos de intervenção, em resposta a fatos


correntes, um comentário ridicularizando um festival de desfile de moda
para cachorro e uma campanha governamental que procurava incentivar a
prática de exercícios físicos entre os brasileiros.
No primeiro caso, vale a pena reparar como um texto de intervenção,
um comentário jornalístico porém opinativo, de acordo com os critérios da
imprensa alternativa da época, é entretanto capaz de adquirir um caráter
amplo o suficiente para fazer uma crônica da vida na cidade e, até, de seu
tempo:
“Ah, como antigamente, o Rio civiliza-se!
Já temos um emissário submarino, telefone automático para as
principais partes do mundo, entramos na era supersônica do Concorde (vôos
a 18 mil metros de altura e velocidade duas vezes maior que o som) e, povo
disciplinado, a rede de cadernetas de poupança vai muito bem.
É verdade que o café aumentou de preço, os cigarros subiram na razão
de 40% numa porrada só, o preço do pão e da luz pulou e do gás também
(...) E o carioca, neste Rio que civiliza-se, já está inaugurando o pagamento
de dois novos impostos: o lixo da rua e, como a cidade está sendo
maravilhosamente iluminada a ponto de nossas noites até parecerem dias,
pagaremos também a taxa de iluminação das ruas. (...) Mas o Rio civiliza-se.
E, como a cidade não é mais aquela dos festivais de música, cinema, teatro,
artes plásticas, encontros literários e culturais e, tampouco, está cumprindo a
sua vocação de capital do lazer e do turismo (...)”
Veja-se, agora, a segunda matéria, sobre a campanha “Mexa-se!”:
“A campanha promocional foi clara, limpidez acima de dúvidas. No
entanto, uma recapitulação ainda cabe – tem sua utilidade e oportunidade
para os distraídos, desatenciosos e turrões. E, principalmente, os
415

recalcitrantes, essas criaturas incômodas que só sobrevivem para apoquentar


a boa ordem vigente. (...) / Ouça com os dois ouvidos, seu pedaço de
bucéfalo: MEXA-SE! Saia de dentro de casa, egoísta, e olhe ao seu redor e
MEXA-SE! (...) O Brasil está entre os grandes exportadores de soja do
mundo. E você, seu relapso comodista: em que contribuiu para isso?
MEXA-SE! Se a sua cidade é recordista nacional dos buracos, se é roída
pelas frentes e lados, ruas, praças, becos, vielas e avenidas, agüentando todas
as enfiadas das CELURBs, LIGHTs, CEDAGs, CETEBs, METRÔs (ah, seu
canalha, como é longo o capítulo da ficção carioca!) e SURSANs e se o Rio
é a mais esburacada das vítimas da indústria dos buracos, a culpa é sua, seu
comodista! MEXA-SE!”.
O trecho acima, quando encaixado no livro Ô, Copacabana!, mais ou
menos vinte páginas depois do início, entre tantos assuntos, deixa de ser um
texto de intervenção e se torna uma crônica azeda do cotidiano da cidade e
da vida das pessoas. Aproximadamente três anos depois de sua primeira
aparição, também, o contexto é outro.

2) Dois “textos” incluídos em Malhação do Judas Carioca, mas,


segundo a já mencionada definição deste livro, anteriormente “publicados na
imprensa”: “Mariazinha Tiro a Esmo” e “Galeria Alaska”.
Mariazinha enquadra-se na categoria retrato, de anônimos, e como
costuma acontecer neste sub-gênero, a paisagem joga um papel importante
no texto. Assim como ela podemos citar “Dedo-duro”, “Leão-de-chácara”,
“Joãozinho da Babilônia”, “Dois Raimundos, um Lourival”, “Merdunchos”
etc.
Mariazinha Tiro a Esmo é mais um desses personagens de rua,
“olheira da indústria de pedintes”, a quem ele deve ter encontrado pelas ruas
416

de Copacabana, com quem deve ter conversado e “entrevistado”, colhendo


material e arranjando inspiração. O texto não varia muito da publicação em
Malhação, três anos antes, para a versão de Ô, Copacabana!.
Também não varia muito o texto sobre a Galeria Alaska, alguns
cortes, outros acréscimos.
Em ambos os casos, o interessante é ver como textos provenientes de
sua colaboração com a imprensa são perfeitamente utilizáveis como crônica
e, mais tarde, como uma peça de ficção, um conto. “Mariazinha Tiro a
Esmo” aparece, por exemplo, no livro Os Melhores Contos de João Antônio,
organizado por Antônio Hohlfeldt.803

3) Uma terceira matéria originalmente publicada n’ O Pasquim,


“Iemanjá a Perigo”, enquadrada na categoria variedades, também serviu de
fonte a Ô, Copacabana!. Com ligeiras modificações, a imensa colagem que
é este livro foi ganhando corpo. Vejamos este caso, na matéria:
“Mais uma vez, reportando a festa da orla marítima, a grande
imprensa jogou o joguinho larápio da omissão e do ufanismo utópico. E as
legendas correram, otimistas, debaixo das fotos, provavelmente redigidas
por mãos distantes da realidade das águas do 1o do ano: ‘Passos difíceis não
impediram homenagem à Rainha do Mar’ ou, fazendo uma fantasia: ‘Muitos
delimitaram as áreas para as preces com as garrafas’. Falaram também em
grandes contingentes de garis com suas pás e suas caçambas, em bares que
haviam até descido as portas por falta de bebidas e em alegria fenomenal.”
E no livro:

803
Hohlfeldt, Antônio (org.). “Mariazinha tiro a Esmo”, in Os Melhores Contos de João Antônio, Global,
SP, 1986.
417

“Acresce que há coisas debaixo da remandiola. E no bairro, como na


nossa cidade, só cantamos as glórias. Do fiasco, ninguém fala. Assim, mais
uma vez reportando a festa da orla marítima, as notícias saíram uma
gracinha engambelando. Êta joguinho larápio da omissão e do ufanismo! E
as legendas correram, otimistas, debaixo das fotos, provavelmente redigidas
por mãos distantes da crueza, do vexame e da rata das águas do Primeiro do
Ano: ‘Passos difíceis não impediram homenagem à Rainha do Mar’ ou,
fazendo uma fantasia: ‘Muitos delimitaram as áreas para as preces com as
garrafas’. Falaram também em grandes contingentes de garis com suas pás e
suas caçambas, em bares que haviam até descido as portas por falta de
bebidas e empolgados pela alegria geral. Fenomenal.”
Como se vê, há pequenos acréscimos, pequenas variantes, mas a
sintonia geral do texto é a mesma, um comentário ácido sobre determinada
passagem do ano nas areias e na orla de Copacabana. Acontece que um foi
publicado como crônica, num jornal alternativo, e Ô, Copacabana! é um
livro de intenção bem mais literária. Mas, nos novos “textos” de João
Antônio, essa variação de “ambiente” poucos efeitos estilísticos provoca, se
algum. Para se reforçar essa tese, vejamos um trecho da matéria publicada
em Cláudia também sobre Iemanjá, assim expondo esse registro textual
polivalente a um terceiro ambiente, o de uma revista feminina em que ele
possuía relativa liberdade para escrever como bem quisesse:
“Assim, a festa das praias urbanas parece estar atualmente de mãos
dadas com os hippies. O fato de atirar flores aos orixás ganhou duplo
sentido: aderência ao sincretismo religioso e sua aceitação plena, pelo menos
como espetáculo pitoresco, e elevação do poder da flor com exaltação da
pureza, do amor e da beleza.
418

Durante algum tempo era bem para essa faixa de nossa população
urbana freqüentar determinadas casas de samba no Rio de Janeiro. Depois,
era muito chique esticar até alguma gafieira típica. O surgimento mais
incisivo da nova música popular brasileira, que também virou moda, apagou
aquelas idas e vindas noturnas àqueles redutos populares. A presença maciça
dessa faixa de população às areias no último dia do ano para a consagração
de Iemanjá e outros orixás parece se ligar sutilmente ao movimento dos
hippies.
É bem atirar flores e ainda fica mais harmonioso quando se pode unir
essa atitude à ocasião de uma festa folclórica”.
Novamente, o tom de crônica ácida se mantém. Não varia conforme o
veículo. Para o autor, não havia diferença. Apenas um certo estatuto externo
ao texto varia, reagindo à química convencionada pela recepção,
transferindo-o do patamar jornalístico para o literário quando da publicação
em livro.

Mas agora convém falar não das fontes, mas dos subprodutos desse
livro símbolo do processo de fusão entre jornalismo e literatura que é Ô,
Copacabana!.
E o caso mais interessante é o de um trecho publicado, a que se saiba,
originalmente no livro, e depois reaparecido despojado de qualquer intenção
literária evidente na coluna assinada pelo escritor durante a Copa do Mundo
de 1990804, e, seis anos depois, em seu livro Dama do Encantado805,
novamente revestindo-se de caráter literário.
Vejamos como o trecho aparece no primeiro livro, de 1978:
804
O nome da coluna era “Histórias de Torcedor”, e ela foi publicada n’ O Estado de São Paulo, entre
17/06/90 e 10/07/90.
805
Antônio, João. Dama do Encantado, Nova Alexandria, São Paulo, 1996.
419

“Uma da manhã. Ou mais. No comecinho da Ladeira dos Tabajaras,


para quem vem do morro e pega a rua Siqueira Campos, um crioulo na
madrugada carregando ao ombro uma bandeira enrolada do Flamengo ia que
ia quieto, cabeça pendida, canseira nas pernas, mariolando.
O meu Mengo havia batido o Fluminense. À tarde e à noite, estes
lados da cidade estiveram em festa, movimento e tropel. À uma da manhã, o
crioulo de cabeça arriada e bandeira ao ombro, ia bem cansado. Mas feito
um guerreiro.
A iluminação fraca da rua o pegava mal e mal, tudo deserto e ele ia
muito sozinho lá com seu sonho. O queixo no peito. De repente, deve ter
suspirado fundo antes, e rasgou. Ele largou para ninguém um grito arrastado,
vindo de dentro e que demorou, meio tristeza e desespero. Rindo, forrando,
doendo, para ninguém:
– Mengo!”.
Este mesmo trecho, doze anos depois, aparece numa coluna esportiva:
“Uma da manhã. Ou mais. No comecinho da Rua Silveira Martins, no
Catete, para quem vem do Aterro do Flamengo, um crioulo na madrugada
carregando ao ombro uma bandeira enrolada do Flamengo ia que ia quieto,
cabeça pendida, canseira nas pernas, seguia. O seu Mengo havia batido o
Fluminense e, a tarde e a noite, aqueles lados da cidade estiveram em festa e
movimento. A uma da manhã, o crioulo de cabeça pendida e bandeira ao
ombro, ia bem cansado. Mas feito guerreiro.
A iluminação fraca da rua o pegava mal e mal, tudo deserto e ele ia
muito sozinho lá com seu sonho. O queixo no peito. De repente, deve ter
suspirado fundo antes e rasgou. Ele largou para ninguém um grito arrastado,
vindo de dentro e que demorou, meio tristeza e desespero. Rindo, forrando,
doendo:
420

– Mengo!”.
De uma versão para a outra, como se pode verificar, embora a cena
tenha sido deslocada de Copacabana para o bairro do Flamengo, e os
ambientes a que o texto foi exposto em cada uma das suas veiculações sejam
muito diversos, não há uma alteração de registro, de estilo equivalente. São
mudanças leves (supressão de vírgulas, pequenos acréscimos descritivos
etc), apenas. E um enxugamento, o texto está mais sintético e rápido, mas,
não é descabido imaginar, sobretudo por uma questão de espaço na sua
coluna de jornal, e não por transformações estilísticas.
Em sua terceira aparição, o texto está idêntico à primeira versão
publicada em Ô, Copacabana!, mas longe de significar um tratamento
estilístico específico para a versão literária, diferenciando-a da versão
jornalística. Não é necessário aqui reproduzi-lo, apenas deixar registrada a
polivalência, pois se não há propriamente diferenças formais entre os dois
livros, há entretanto diferenças grandes na índole de ambos. Ô, Copacabana!
é um texto longo e único, que funde crônica, jornalismo e ficção, lastreado
sobretudo na categoria paisagem, a qual compreende, como sempre, os tipos
anônimos a ela pertencentes, como é o caso de Mariazinha Tiro a Esmo. Já
Dama do Encantado, seu último livro publicado em vida, é um livro
composto de textos não-inéditos, curtos, e em sua maioria calcados em
retratos (Nélson Rodrigues, Garrincha, Mário Quintana, Joubert de Andrade,
Dalton Trevisan, João do Rio, Lima Barreto, Aracy de Almeida). É
eloqüente dessa condição múltipla dos “textos”, que um deles apareça em
dois livros tão diferentes.
421

Outro caso de cruzamento interessante acontece em “Lapa acordada


para morrer”, conto-paisagem que teve uma versão anterior publicada em O
Pasquim.806
Os textos são bastante diferentes, sendo o “conto”, publicado em
livro, bem maior que a “matéria”, publicada na imprensa alternativa. Mas há
trechos de uma reutilizados no outro. E, acima das diferenças entre essas
categorias externas à obra de João Antônio, paira o gênero comum, de tipo
paisagem. E o tom é o mesmo. Vejamos dois trechos em que não há
reutilização de material, onde somente o “tom” comum é um dado a ser
comprovado.
Na matéria:
“Já o Bar e Café Indígena, que até 1965 era um dos pontos mais
movimentados e, conforme o gerente, chegou a vender de vinte a trinta mil
cafés por dia, nos últimos tempos se manteve com um comportamento
irreconhecível. O desrespeito desceu a lances deprimentes”.
No conto:
“Foi no bojo dos cabarés da Lapa, de seus cafés-concerto,
restaurantes, leiterias, que se viveram as melhores noitadas do bairro; o Siri,
da rua da Lapa, tão cantado por Mário de Andrade, na sua fase carioca (...)”.
Como se vê, o tom de um texto e de outro é idêntico. Agora veja-se
uma passagem de fato retrabalhada.
Na matéria:
“A Lapa, como os seus saudosos e suas viúvas, não tem salvação:
– Quem vai à Lapa deixa a alma em casa.

806
Hohlfeldt, Antônio (org.). “A Lapa Acordada Para Morrer”, in Os Melhores Contos de João Antônio,
Global, SP, 1986; e “Última Memória da Lapa”, in O Pasquim, Ano VI, n.271, 1974).
422

Mais do que uma frase, era um código nas noites do passado do bairro
que tinha em seu corpo, além dos malandros conhecidos e que acabaram
virando lenda – Nélson Naval, Meia-Noite, Camisa Preta, Miguelzinho da
Lapa e uma figura maldita, Madame Satã – um rosário de cabarés, cafés-
concerto, restaurantes, leiterias e bares”.
E no conto:
“– Quem vai à Lapa, deixa a alma em casa.
Balela. Esse antigo código da noite tentou ainda se sustentar na boca
dos cronistas e guias anônimos, arremedando o apogeu valente e malandro
de uma Lapa que não existe mais e, quando muito, imita a si mesma, olhos
compridos no passado”.
Novamente o tom do texto e a alma nostálgica do escritor são
idênticos.
Os exemplos se multiplicam: poderíamos citar muitos, entre os quais
o texto “Zicartola, recordações de uma casa de samba”, publicado n’ O
Pasquim, em 75807, e num livro da década de 90, Zicartola e que tudo mais
vá para o inferno! 808; ou os textos “Carlinhos, Marquinhos e a indústria do
pânico”809 e “Carlinhos, o inconveniente”810, publicados n’ O Pasquim e em
livro contemporâneo do tablóide. Os casos de “multi-ação” dos textos
“joãoantonianos” – que começam a acontecer a partir da fusão entre
literatura e jornalismo – citados por essa pesquisa são, com certeza, uma
gota d’água num oceano de refacções, republicações, auto-rechupinhações.
A dificuldade do próprio João Antônio em classificar seus textos
transparece, por exemplo, na forma como, nos anos 70, organiza seus livros

807
In O Pasquim, Ano VIII, n.332, 1975.
808
Antônio, João. Zicartola e que tudo mais vá para o inferno!, Scipione, SP, 1991.
809
In O Pasquim, Ano VII, n.322, 1975.
810
Antônio, João. Malhação do Judas Carioca, Record, RJ, 1975.
423

e dá nomes a cada uma das seções que os compõem. Em Leão-de-chácara,


último suspiro da “ficção pura” – nunca é demais frisar: entenda-se aqui a
expressão “ficção pura” como desvinculada do olhar jornalístico, embora
inteiramente emaranhada no memorialismo e na autobiografia – há duas
categorias: Três contos do Rio (que engloba os contos “Leão-de-chácara”,
“Três cunhadas – Natal 1960” e “Joãozinho da Babilônia”) e Um Conto da
Boca do Lixo (que traz a novela “Paulinho Perna Torta”). Essa divisão,
como é evidente, inaugura a presença do Rio de Janeiro na obra do escritor
em livro, já que Malagueta, Perus e Bacanaço tinha seu universo restrito a
São Paulo. Mas não fala realmente da natureza dos textos, o viés ficcional
clássico ainda era um fator preponderante, dispensando novas categorias.
Mas já em Malhação do Judas Carioca, lançado no mesmo ano, o
sumário é dividido em sete partes: Problema (que traz “Mariazinha Tiro a
Esmo”, antes desse retrato/conto aparecer fundido a Ô, Copacabana!;
“Galeria Alaska”, paisagem/conto que teve o mesmo destino, e “Pingentes”,
retrato de anônimos/paisagem que reapareceu refundido em Dama do
Encantado); Polícia (que traz “Carlinhos, o inconveniente”, d’ O Pasquim);
Conto-reportagem (com “Cais”, que vem da Realidade); Especial (com “A
Lapa acordada para morrer”, também d’ O Pasquim); Gente (com um retrato
de Paulo Gracindo, de origem desconhecida); Costumes (que reúne
“Pequena história matreira da fila carioca”, “Sinuca” e “Malhação do Judas
carioca”) e Futebol (com “É uma revolução”, da Realidade). E o livro ainda
é fechado pelo manifesto “Corpo-a-corpo com a vida”, diferenciado de todo
o restante não pelo nome de uma nova subdivisão, mas por haver sido
diagramado do início ao fim em itálico. Já se vê, por aí, que há um esforço,
mais provavelmente inconsciente, de conter um processo de
424

embaralhamento das fronteiras, ainda que esse esforço já não lançasse mão
das categorias clássicas de ficção, não-ficção literária e jornalismo.
Em Casa de Loucos, de 76, há uma tentativa semelhante. Há nove
categorias, todas com apenas um ou dois textos, tamanho era o esforço de
particularizar. São elas: Protesto (com “Olá, professor, há quanto tempo!”,
um retrato de Darcy Ribeiro; Comportamento (com “55 anos de casados”,
típica reportagem-literária, onde terá sido publicada antes?); Música Popular
(com um retrato de Nélson Cavaquinho e um de Noel Rosa); Costumes (com
os textos “Merdunchos”, um retrato de anônimos, e “As virgens blindadas
do footing”, caracterização maldosa de uma sociedade interiorana); Futebol
(com “Raul, meu amor”, trecho da matéria de Realidade, e “Uma banana
para os valentes”, texto de variedades que reaproveita trechos de pelo menos
um anterior, retratando o jogador de futebol Almir); Gente (com retrato de
Sérgio Milliet); Habitação (com um texto sobre o conjunto habitacional
Cidade de Deus, típica paisagem/retrato de anônimos); Vida (“A morte”, de
Realidade); e Drama (o texto-título, que conta da temporada que o escritor
passou no sanatório da Muda, no Rio de Janeiro, nos anos 70, episódio que
foi ao mesmo tempo um laboratório literário, uma reportagem-de-campo e
uma internação real811).
Mas esse esforço de categorização, no entender dessa pesquisa, não
era um esforço consciente de interromper a fusão entre as naturezas de seus
textos e suas linguagens. Era antes um último suspiro da idéia de separação,
uma contra-corrente logo desaparecida. Basta dizer que desaparece nos
811
Marília, então esposa de João Antônio, conta que se assustou quando ouviu-o pedindo a ela que o
levasse ao sanatório e inventasse mil atos e sintomas que justificassem sua internação. Dostoievski, talvez,
que também havia escrito sobre o tema e era um dos leitores de cabeceira do escritor na sua “primeira
dentição” literária, o tenha inspirado. Mas certamente também Lima Barreto, outro escritor que flertava
com a fronteira entre sanidade e loucura. Susto maior, porém, veio depois. Ela, recusando-se a mentir para
o médico, simplesmente relatou o comportamento boêmio e o temperamento explosivo do escritor, e só isso
já bastou. O médico recomendou a internação na hora!
425

livros subseqüentes, não se manifestando, por exemplo, em Dedo-duro,


Abraçado ao meu rancor e Guardador.812 Sintoma eloqüente de que também
a crítica abandonou, em relação à obra de joão Antônio, a expectativa de
separação entre uma coisa e outra, é que na já citada antologia de seus
“contos”, organizada por Antônio Hohlfeldt, vêem-se, caracterizados como
“contos”, textos que nasceram para jornais e que não são ficção.
Entre 1969, ano em que deixou as redações da revista Realidade, e
1975, ano em que a fusão entre literatura e jornalismo se concretiza pela
primeira vez em forma de livro, muitas coisas haviam acontecido na vida do
escritor. Como foi dito, após Realidade e mais algumas experiências bem
menos estimulantes de trabalho em São Paulo, João Antônio volta com a
família para o Rio de Janeiro. Vem já contratado pelo grupo Bloch, para
trabalhar na revista Manchete e, logo depois, na Fatos e Fotos. Instalam-se
na cobertura da praça Serzedelo Correia, seu mirante para a rotina de
Copacabana e sua fauna “merduncha”.
Nesse meio tempo, seu casamento com Marília termina. Os motivos
foram vários: a vida desregrada do escritor, que chegava a desaparecer por
alguns dias, aventurando-se em boêmias líquidas e noutras mais sólidas.
Marília decide então ir morar na França, com o filho Daniel ainda pequeno.
Isso foi por volta de 1973. Coincidindo mais ou menos com a separação, e
talvez por estar desobrigado de sustentar mulher e filho, João Antônio toma
uma decisão radical: nunca mais ter um vínculo empregatício estável.
Já é difícil ter uma visão geral do leque de veículos para os quais o
escritor colaborava nesses primeiros anos da década de 70, pois os “frilas”
iam se multiplicando à medida que ele ia se tornando um escritor conhecido.

812
Antônio, João. Dedo-duro, Record, RJ, 1982; Abraçado ao meu rancor, Guanabara, RJ, 1986;
Guardador, Record, RJ, 1992.
426

Nunca é demais lembrar que, em 1975, João Antônio lançou dois livros de
sucesso – Leão-de-chácara chegou a ter sua edição esgotada em
pouquíssimo tempo – e relançou, com pompa e circunstância Malagueta,
Perus e Bacanaço. No ano seguinte, Casa de Loucos chega a ter duas
reimpressões no ano de seu lançamento. Tudo isso ao mesmo tempo em que
ele colaborava em órgãos da imprensa alternativa e não.
Mas, após a decisão de não ter mais vínculos empregatícios, fica
praticamente impossível mapear, com um mínimo de abrangência, sua
colaboração em jornais e revistas – o que significa, como se viu, mapear boa
parte da produção que depois reaparecerá em seus livros “de literatura”.
Fazer este mapa completo possibilitaria, contudo, poder cruzar –
talvez infinitamente – textos que saem daqui e reaparecem ali, que são
refeitos e reescritos até que ganhem uma natureza polimorfa e um caráter
múltiplo. Rastreando, assim, o destino de cada fragmento espalhado pela
explosão dos gêneros.
Espera-se ter conseguido uma amostra suficiente de exemplos e
comprovações das teses proposta neste capítulo: 1) fusão entre jornalismo e
literatura; 2) manutenção de um viés regionalista urbano em seu estilo; 3)
surgimento de gêneros internos em sua obra, que não obedecem
necessariamente a formulações clássicas e que espelham um determinado
ideário estético-ideológico.
O poder de persuasão dessas premissas será, também, o da tese
principal deste trabalho: a de que o processo de formação de João Antônio
como escritor – que compreende as duas “dentições literárias” mencionadas
no capítulo 1, a inflexão rumo ao regionalismo da segunda geração
modernista agora aplicado ao ambiente urbano, como visto nos capítulos 2 e
3, e a fusão de nascença entre ficção e memorialismo – ainda não estava
427

terminado antes de o jornalismo homogeneizar-se a esta argamassa anterior,


embora seus dois textos mais célebres – “Malagueta, Perus e Bacanaço” e
“Paulinho Perna Torta” – tenham sido escritos antes dele jamais exercer
qualquer função jornalística.
É curioso que, como provam as tiragens de seus livros, data deste
momento pós entrada do jornalismo a fase de maior sucesso comercial do
escritor. Mais curioso ainda é entender por que, já no início dos anos 80,
João Antônio percebe não soprarem a seu favor “os ventos literários”. E
chega a ser impressionante que, em 1996, quando de sua morte, ele tivesse
se tornado um escritor completamente fora de circulação: quase todos os
seus livros estavam esgotados (não se levando em conta pequenas edições
para-didáticas, que se limitavam a compilar “textos” já publicados); a crítica
o havia posto de lado; uma nova geração de leitores sequer o conhecia.
Se a verdadeira intenção deste trabalho é identificar os elementos
essenciais de seu projeto literário, o que procurou fazer ao longo de seus
quatro capítulos, ele entretanto não pode fugir à obrigação de, no mínimo,
esboçar algumas hipóteses para explicar o porquê desta decadência tão
radical. A conclusão a seguir, portanto, não terá um caráter de fechamento
dos assuntos tratados até aqui, de resumo e organização das idéias. Terá, isto
sim, uma índole mais ensaística, menos preocupada em corroborar suas
suposições por meio de citações de documentos ou análises específicas deste
ou daquele texto, deste ou daquele livro. E lançará um olhar mais solto no
tempo, capaz de viajar do início dos anos 80 até a morte do escritor.
428

Para Nunca Mais

1995, apenas um ano e alguns meses antes da morte de João


Antônio. No Jornal da Tarde, foi elogiosamente resenhada uma noveleta
de título curioso O Mistério do Leão Rampante.813 Sua publicação marcava
a estréia de um jovem escritor, de apenas 26 anos. Que ficou contente com
os elogios, claro, embora estranhasse os comentários suscitados pela
bendita crítica. Coisas do tipo: “Que resenha… E do João Antônio!”. Na
verdade, o que o jovem escritor estranhava, o que ele não entendia, era a
ênfase.
“João Antônio?”
Com medo de passar recibo de sua ignorância, o feliz alvo dos
elogios preferiu esconder a dúvida e desenvolver uma hipótese sua — a de
que João Antônio seria uma figura conhecida na imprensa paulistana, nada
mais. Esta resposta o satisfez. Mas, logo depois, a resenha tornou a
aparecer, ampliada, na capa do caderno cultural de A Tribuna da Imprensa,
no Rio de Janeiro.814 E também lá, em sua cidade natal, o autor estreante
ouviu tratamento semelhante dado ao resenhista misterioso, como se fosse
personalidade digna de reconhecimento por qualquer escritor, ainda que
estreante e muito jovem.

813
“Um Sedutor na Arte de Narrar”, in Jornal da Tarde, 24/06/95.
814
“Popular e Sofisticado a um só Tempo”, in Tribuna da Imprensa, 29 e 30/07/95.
429

Caiu por terra, claro, a hipótese esboçada: a reputação latente do tal


João Antônio não se restringia ao meio jornalístico paulistano. Rendido, e
mordido de curiosidade, o aprendiz de escritor decidiu admitir sua
ignorância. Soube então que João Antônio era jornalista, sim, mas era,
sobretudo, escritor. Um expoente da Geração 70.
E isso chamou sua atenção. Afinal, um homem que conhecera o
sucesso literário (autor de livros premiados, jornalista de veículos que
marcaram época, nos quais era remunerado para fazer aquilo que mais
amava, colaborador atuante da glamourosa imprensa alternativa durante a
ditadura, personalidade cultural etc), estar agora fazendo resenhas
justamente para dois jornais que poderiam ser considerados como os
terceiros de suas respectivas cidades – a Tribuna, no Rio, perdendo para O
Globo e o Jornal do Brasil, e o Jornal da Tarde, da capital paulista,
perdendo para O Estado e a Folha de São Paulo? E resenhas sobre livros
como a sua noveleta? Sobre autores como ele? E outra coisa lhe chamou a
atenção. Sintomaticamente, todos que o conheciam como escritor
lembravam-se de apenas um livro: Malagueta, Perus e Bacanaço. Teria
outros? O que teria acontecido com eles? Por que ninguém os lia mais, e
nem deles se lembrava? Por que o nome de João Antônio estava tão fora
do repertório das gerações seguintes, do repertório, por exemplo, da
geração a que ele próprio, autor estreante, pertencia? Como nunca ouvira
falar desse homem? Por que essa mistura de reputação e ostracismo?
Nessa época, o escritor novato telefonou ao escritor veterano.
Sentia-se obrigado a agradecer o apoio ao seu livro de estréia; encabulado,
como sempre, por estar falando com alguém “famoso”; e ainda
secretamente culpado, por não ter jamais lido uma única linha escrita por
aquela misteriosa celebridade, que tantos elogios públicos lhe fizera. Entre
430

maio de 1995 e outubro de 1996, os dois tiveram poucos contatos


telefônicos. O jovem escritor, humildemente, convidou João Antônio a um,
talvez dois dos lançamentos de livros promovidos pela editora em que
trabalhava. Mas o escritor veterano, sempre simpático e agradecendo
muito a lembrança, nunca apareceu em nenhum deles. Em 1996, o jovem
escritor lançou um segundo livro, cujo estilo, sempre por telefone, João
Antônio elogiou, mas fazendo uma ressalva quanto à estrutura, que tinha
“problemas”, os quais prometeu apontar numa resenha, que nunca chegou
a ser publicada, mas cujo esboço deixou pronto em seu acervo. Este
esboço praticamente comprova, pela vagueza absoluta de seus
comentários, que João Antônio jamais chegou a ler o livro.
Em carta a um conhecido comum, numa breve referência a esse
contato mínimo, João Antônio resume a impressão que um causou no
outro: “Não o conheço [ao escritor estreante] em pessoa, ele é
desnecessariamente tímido comigo. A gente é assim quando bastante moço
e, tenho para mim, é sinal de caráter e de índole íntegra”.815
Foi quando o jovem escritor leu “Malagueta, Perus e Bacanaço” pela
primeira vez.
Foi quando João Antônio morreu antes que eles se encontrassem.
Estava recolocada, agora em outro plano, a velha pergunta: “Quem
era João Antônio?”.

A identidade do escritor estreante, quero crer, eu conhecia, e


conheço, melhor que ninguém. Afinal, ele era eu.
815
Carta de João Antônio a Heitor Ferraz, de 13/04/96.
431

Já o porquê da fama empoeirada de João Antônio era mais difícil de


eu explicar. Embora fosse evidentemente empoeirada. Como foi dito na
apresentação deste trabalho, desde o início dos anos 80, lá se iam treze
para quatorze anos, o escritor auto-avaliava-se como “um autor para quem
os ventos da moda literária não ventavam lá muito a favor, e que chegava a
receber alguns tratamentos reticentes, não direi caricaturais, mas
esvaziantes, como: Rabelais da Boca do Lixo, Astro da Literatura
Amassada, Clássico Velhaco, e outros. Afinal, vivemos num país em que a
estrela passa a carne de vaca com uma rapidez meteórica”.816
Quatro anos depois das resenhas que publicou sobre meu livro de
estréia, em 1999, quando esta pesquisa teve início, a obra literária “de
direito” de João Antônio estava praticamente fora de circulação. Quase
todos os seus livros, esgotados. Suas melhores editoras, falidas ou
esquecidas de sua importância. Disponíveis nas livrarias havia seu último
livro, Dama do Encantado, e uma única antologia relevante, porque
organizada com critério e acompanhada de um estudo crítico.817 Afora
esses dois volumes, havia a obra “de fato”. Dois de seus livros haviam sido
estripados, com as editoras separando dos respectivos volumes de origem
as novelas “Malagueta, Perus e Bacanaço” e “Paulinho Perna Torta”, e
descartando todos os outros contos. Pior: não havia sequer uma nota
mencionando o fato. O leitor desavisado, por exemplo ao ler o livrinho de
oitenta e poucas páginas, chamado Malagueta, Perus e Bacanaço, não
saberia que com o mesmo título havia um outro livro com oito contos a
mais. Além dessas duas “separatas”, pululava pelas prateleiras, publicada

816
Antônio, João, “Meus Respeitos” in D’Incao, Maria Ângela e Scarabotolo, Eloísa (orgs.), Dentro do
Texto, Dentro da Vida – Ensaios sobre Antonio Candido, Instituto Moreira Salles, Cia. Das Letras, SP, s/d.
817
Dama do Encantado, Nova Alexandria, SP, 1996; e Hohnfeldt, Antônio (org.). Os Melhores Contos de
João Antônio, Globo, SP, 1986.
432

por editoras as mais díspares, uma triste série de antologias mal costuradas,
com fins para-didáticos, que requentavam textos publicados anteriormente
em outros lugares.
Em outubro de 1996, como todos os que acompanharam o noticiário, fiquei
chocado com as circunstâncias da morte do escritor: abandonado em sua
cobertura decadente no mais decadente dos bairros da Zona Sul carioca
(sendo o Rio talvez a capital mais decadente do país), apodrecendo durante
semanas até que as moscas denunciassem a “presença do cadáver”. Os
detalhes triste e mórbidos, a meu ver, pareciam de fato comprovar que um
“vento ruim” batera forte sobre João Antônio nos últimos anos, mas que os
prejuízos causados pelo vendaval não se limitaram a sua reputação como
escritor. Também o homem João Antônio encontrava-se na situação de
alguém “esquecido”, ou, no mínimo, isolado, cuja permanência neste mundo
não repercutia imediatamente na vida de ninguém.
Amarguei a frustração de não tê-lo conhecido pessoalmente.
Essa tese, em forma de biografia intelectual, dando igual destaque
aos fatos biográficos e a questões internas da obra de João Antônio,
explica-se, portanto: como uma retribuição, ainda que póstuma, aos dois
tipos de incentivos que ele me deu (o literário, manifesto nas duas resenhas
sobre meu livro, e o moral, expresso no bom juízo que fez de mim,
cabotinamente citado acima); como um desejo de alertar para o quanto se
enganam todos da minha e de outras gerações que imaginam conhecer a
obra de João Antônio apenas a partir de Malagueta, Perus e Bacanaço; e,
ainda, talvez mais que tudo, como um desejo, ambivalente e encoberto sob
o pretexto acadêmico, de entender um homem que caminha
voluntariamente em direção ao total isolamento.
433

Todos temos medo da solidão. Os que dizem gostar de ficar


sozinhos, os que realmente gostam, mas não ficam, e os que realmente
ficam, gostando ou não.
João Antônio era dos que realmente ficam sozinhos. Irene, a mãe, e
Nair, a avó, antes de todas, e mais Ivete, a prostituta e primeira amante
regular, “Fujie”, a namorada do melhor amigo, que inspirou um de seus
mais belos contos, certamente Ilka Brunhilde Laurito, a colega de pena,
mais velha, confidente e melhor amiga, paixão platônica, ou praticamente,
Marília, a única esposa de papel passado e a mãe do filho, e ainda as
namoradas posteriores, Tereza, que até hoje, ainda aos 60 anos, faz
qualquer um entender a paixão de João Antônio pelas mulatas, encarnação
da elegância popular que o escritor tanto prezava, e Solange, com quem foi
para a Alemanha e morou por um tempo na sua pequena cobertura de
Copacabana —; todas essas foram mulheres que marcaram a vida do
escritor, e com elas, desde sempre, teve relações conflituosas. Ele impôs
limites estritos a tais vínculos, propondo-se a ficar, tanto quanto possível,
livre de compromissos estáveis e das obrigações de toda sorte que
pudessem trazer, sobretudo financeiras. Sua dedicação à literatura
precisava ser preservada. Para tanto, ele sabotou as relações mais
profundas que teve. O ímpeto de se libertar da necessidade econômica, o
sofrimento diuturno de não poder ser apenas escritor, que o moveu desde
sempre, bem como os dramáticos tempos do começo do casamento,
quando a já conhecida e profunda falta de dinheiro somara-se à
responsabilidade de ser “arrimo de família”, tinham deixado cicatrizes.
434

Nas cartas para Ilka, na espécie de plataforma ideológica que se


depreende das matérias no Jornal do Brasil, e em muitos de seus textos,
fica explícito o ideal de uma entrega absoluta à vocação literária, em seu
nome sacrificando tudo o mais.
Em relação a sua família de origem, como vimos, tanto Marília, a
ex-esposa, quanto ele próprio, no seu texto “Abraçado ao Meu Rancor”,
reconhecem que se criara uma distância.
A própria mãe parece empurrá-lo ao isolamento da condição de
“intelectual da família”. Certa vez, no Morro da Geada, em 1986, em plena
fase cinza, dez anos antes de sua morte, e portanto antes das coisas ficarem
pretas de vez, João Antônio, aos 49 anos, chegou em casa tarde da noite:
“Mamãe fica tímida, depois do beijo. Não querendo contrariar, só
pergunta, jeitosa, como estou e se volto. E se é para ficar. Não vou
responder, no começo. Eu vou engolir café. Puxar um cigarro, andar para a
janela. Como se ouvisse os grilos.
Faço a tenção de me explicar, que cheguei tarde da noite. Mas ela é
minha mãe:
– A sua arte não permite dois amores”.818
O irmão, Virgínio, misto de amigo e sócio nas casas e terrenos
deixados pelo pai em Presidente Altino, que aqui e ali serviram de base
financeira para pequenos empreendimentos dos dois (um bar, uma oficina
mecânica, compra e venda de terrenos e imóveis bastante modestos, coisas
do gênero), acompanhava-o sim, porém só de longe, desde a mudança para
o Rio de Janeiro, mais ocupado com sua própria família e nutrindo pelo
irmão escritor uma mistura de admiração e sentimento de diferença, com
todos os subprodutos emocionais que essa mistura pode gerar: inveja,
818
Antônio, João. Dama do Encantado, Nova Alexandria, SP, 1996..
435

recalques, cobiça, dependência etc. Também este irmão o ajudou a se


colocar na posição de isolamento que ele, por sua vez, cavou para si
mesmo.
O desnível cultural, a imensa distância entre as respectivas bagagens
biográficas, passaram a atrapalhar o contato entre ele e seus mais
próximos. Não deixa de ser irônico, para um homem que tanto valorizava a
simplicidade e a facilidade no trato com as pessoas mais humildes, o fato
de, na sua família, ele sentir em si mesmo exatamente o contrário disso
tudo.
Talvez as prostitutas e os leões-de-chácara e os traficantes e os
guardadores de carro e os trombadinhas, e os surfistas ferroviários e tantos
outros merdunchos conciliassem a pureza da alma popular com a dose
indispensável de malícia para que João Antônio pudesse tratá-los de igual
para igual. Enquanto, de um lado, os pais eram também pessoas simples,
mas excessivamente ingênuas e moralistas, de outro, na classe média e daí
para cima na pirâmide social, ele não era capaz de sentir simplicidade e
espontaneidade alguma. Talvez, na faixa social em cujo retrato se
especializou, João Antônio estivesse, ao mesmo tempo, sendo o intelectual
e o homem exposto ao risco e toureando a vida. Na família não havia
desafio algum. Os membros da família eram os perfeitos “humilhados e
ofendidos”, os malandros/marginais não; de alguma forma, davam um
troco.
Em relação a sua segunda família, na qual era pai e não filho, a ex-
mulher Marília acredita que João Antônio não pôde conciliar seu universo
real com seu universo ficional. A família, e sua posição nela, não cabia na
vida de um escritor que – acreditando ser o assim chamado “corpo-a-corpo
com a vida” algo crucial para a autenticidade da literatura, e tendo
436

escolhido um recorte específico da sociedade para retratar em seus textos,


o universo da sub-cultura urbana – se considerava obrigado a viver nas
franjas da sociedade, em meio àqueles que as habitavam. “A mulher de um
escritor como ele não podia ser branca, de boa família, universitária; tinha
que ser mulata, de preferência prostituta.”819
Aqueles anos casado foram ainda, de certa forma, a maior
humilhação que ele jamais vivera. Eis como João Antônio devia se ver: o
menino-malandro, ovelha-negra da família, que recebeu desde cedo as
lições da Boca do Lixo, diretamente de seus amigos e amigas gigolôs e
prostitutas, logo de saída com uma visão desencantada do sexo, e, por que
não?, do amor, que publicou um livro e descolou uma outra “boca”, na
Cidade Maravilhosa, de repórter-especial, enfim, um malandro bem-
sucedido, mas que, de uma hora para outra, comportara-se como o mais
completo e perfeito “otário”. Pegou amor, fez mal a moça donzela de
família, de menor, foi obrigado a casar, mas jurando que filho “Jamais!”, e
logo depois foi pai. O script do “coió” perfeito. Ah, e tudo isso dizendo-se
pan-sexual!
Para combater, dentro dele mesmo, tanta “ingenuidade”, só partindo
para o extremo oposto...
O vazio das “comoções”, a impermeabilidade a vínculos afetivos
mais profundos, deveriam ser substituídos pela embriaguez da criação
literária. E esta, a partir de uma certa hora, pela embriaguez pura e simples.
Um imenso número de amigos regulares ou mesmo antigos conhecidos de
João Antônio, do Rio ou de São Paulo, a partir de uma certa fase – fim dos
anos 80 e anos 90 até sua morte –, contam que ao saírem com ele à noite

819
Depoimento de Marília de Andrade, colhido em setembro de 2000.
437

terminavam obrigados a levá-lo em casa, totalmente bêbado. Há relatos


dramáticos de humilhações públicas.
E o próprio João Antônio diz, referindo-se, ambigüamente, tanto à
profissão de escritor como à de jornalista, e sua relação com a bebida:
“Esta profissão não presta. Com o tempo, você vai empurrando a coisa
com a barriga, meio pesadão. Sem qualquer alegria, garra ou crença,
cutucado pela necessidade da sobrevivência. (...) A bebida, alguma
esbórnia, outros empurrões que se tenta dar nessa consciência, só fazem
afundar mais o poço”.820
Tanto sacrifício em nome da literatura, no entanto, ainda não bastou.
Sua fama foi arrastada pelo “vento ruim”. João Antônio, por exemplo, não
tem, entre as gerações subseqüentes de escritores, nenhum, nem um único,
que se possa apontar como herdeiro de sua linhagem, de seu estilo.
Ninguém mais escreve como João Antônio. E já não escreviam antes de
ele morrer.

“Vilela chegou perto do corpo caído. Na testa negra havia um


orifício avermelhado; a parte de trás da cabeça tinha desaparecido: em seu
lugar havia um buraco onde se viam restos de miolos, lascas de ossos
misturados com cabelos, coágulos de sangue escuro cheio de moscas.
Sangue empapava a camisa, no peito e nas costas.”821
O escritor Rubem Fonseca, autor do trecho acima, estreou no mesmo
ano de João Antônio, 1963. Não é raro encontrarmos quem o classifique

820
Antônio, João. Abraçado ao Meu Rancor, Cosac & Naify, SP, 2001.
821
Fonseca, Rubem. A coleira do cão, Edições GDR, RJ, 1965.
438

também como um autor eminentemente dedicado ao submundo. De fato,


desde então, ele se especializou, sobretudo em seus romances, no gênero
policial, o que o aproxima, em linhas gerais, desse universo. No entanto,
vê-se logo que o caminho de Rubem Fonseca não é o mesmo de João
Antônio, e que a atitude do escritor para com os personagens deste
“submundo” é também completamente diferente.
O submundo de João Antônio é, sobretudo, um recorte social,
define-se como um grupo à margem. Os seus retratos de personalidades da
cultura brasileira, uma variação interessante em seu repertório, perdem
feio, em força dramática e densidade psicológica, para seus personagens de
maior elaboração ficcional e estilística. Os protagonistas predominantes da
obra de João Antônio são mesmo os anti-heróis, jogadores, rufiões,
merdunchos e prostitutas. Sua principal novidade, desde o primeiro livro, é
a valorização da “humanidade” em tais personagens. Por certos momentos,
de tão “humanos” chegam a ser idealizados e romantizados. Empresta-se a
eles um lirismo que transcende sua vida corrompida e os dignifica.
Na obra de Rubem Fonseca, de saída, já não se tem um recorte
social tão nítido. Não há, programaticamente, como em João Antônio, a
opção de “dar voz” a uma classe específica, ou mesmo a uma categoria,
como a dos “marginalizados”, fossem de que classe fossem. Seus
protagonistas não são necessariamente malandros ou expoentes da cultura
que transcendem as fronteiras de classe. No mais típico Rubem Fonseca, o
submundo se esconde dentro de cada um, e explode em violência. É,
portanto, uma violência disseminada. Não há, em princípio, muito espaço
para a idealização ou estilização dos códigos. Em seus livros, uma força
oculta borbulha no interior da sociedade. E a desmistificação que a
violência sofre a partir da concretude das descrições acaba por se
439

transformar num novo estilo de idealização, agora não excessivamente


humana, como o lirismo de João Antônio, mas anti-humana, como se as
mortes que se sucedem não provocassem nos personagens culpa, dor,
sofrimento, problemas morais, existenciais, nada. Não há lirismo, a
violência é crua, uma instância superior que interfere na vida dos homens
mas que está acima dos desprezíveis, porque humanos, sentimentos que
causa. Vem apresentada sem rebuscamentos, como no trecho acima. Não
há qualquer valorização dos agentes que porventura escolhe para exercê-la,
nem apiedamento das vítimas que faz, por isso ninguém sai dignificado
dos livros de Rubem Fonseca.
Também estilisticamente os dois escritores são diferentes. João
Antônio, sem abandonar nunca o ambiente da cidade, parte da prosa
urbana “clássica” – racional, de observação e comentário, na qual a força
daquilo que se vê prepondera, de linguagem ordenada e contida, mais
“seca e enxuta”, como se costuma dizer –, para experimentações usando as
técnicas regionalistas – em que o elemento visual perde espaço, e cede a
predominância à música do texto, aos arranjos sonoros, à riqueza da
pesquisa vocabular e à maior irregularidade nas combinações sintáticas –,
inebriado pela música das palavras, e depois incorpora a isso seus
hibridismos jornalísticos.
A sonoridade das palavras, em João Antônio, têm um valor
expressivo em si, independente, que não é tão explorado em Rubem
Fonseca. Por isso João Antônio insiste em enumerar dezenas de sinônimos
numa frase, siderado pelos ecos de cada um. Um exemplo singelo, mas que
diz tudo, desta forma de enxergar as palavras. Quando perguntado sobre o
porquê do título Patuléia para uma de suas antologias pára-didáticas, João
Antônio respondeu: “Patuléia é o nome mais sonoro e saboroso que
440

encontrei como sinônimo de patota, curriola, ratatuia. Mais alegre e


carregando picardia e música. Há mais juventude nele do que em ratatuia,
por exemplo, de que gosto muito”.822
Rubem Fonseca também nasce na prosa urbana, mas é muito mais
fiel a ela . E com o tempo a radicaliza, ocultando a profundidade
psicológica dos personagens sob uma descrição ainda mais crua de seus
atos e do mundo a sua volta. O realismo visual de sua literatura é tão forte,
desde a origem, que já nos primeiros livros alguns dos contos vêm sob a
forma de roteiros, textos dramáticos prontos para serem filmados. O passar
dos anos apenas reforçou a ligação entre sua literatura e o cinema,
enquanto que a única experiência de transportar a literatura de João
Antônio para as telas – o filme O Jogo da Vida, de Maurice Capovilla,
versão de “Malagueta, Perus e Bacanaço” – é simplesmente desastrosa.
O futuro, parece, afinou-se melhor ao projeto literário de Rubem
Fonseca. A disseminação da violência na sociedade brasileira, a
banalização dos horrores em nossas cidades, grandes, médias e até nas
pequenas, o potencial dramático da violência quando vista e descrita, curta
e grossa, sem maiores elaborações expressivas, tudo isso contribuiu. O
realismo visual, historicamente, provou-se mais duradouro que a
preocupação de João Antônio com a essência por trás da sonoridade das
palavras. O regionalismo, a linhagem escolhida por João Antônio para
expressar, numa fusão com a prosa urbana tradicional, a linguagem da sub-
cultura urbana, vinha se esgotando até chegar ao último estágio em
Guimarães Rosa, antes mesmo de João Antônio publicar seu livro de
estréia, e a fusão por ele pretendida, ao longo dos anos, não conseguiu se
firmar diante da ditadura do realismo visual, sem a força do apogeu
822
Antônio, João. Patuléia, Ática, SP, 1996.
441

regionalista como retaguarda indireta, e diante da crueza da realidade em


nossas cidades, da separação radical e irrecuperável entre boemia e
marginalidade.
Não por acaso, a literatura de João Antônio, que já nasce marcada
pela nostalgia da infância, pela tristeza leve do passado, das memórias,
sejam elas boas ou más, depois ganha um sentimento nostálgico
generalizado. O escritor lamenta a perda da ambiência rural que, no Morro
da Geada, convivia com o entorno industrial – de certa forma, a opção
pelos merdunchos (sejam eles sinuqueiros, gigolôs, prostitutas,
guardadores de carro, surfistas ferroviários etc etc), é uma tentativa de
preservação de códigos de grupo, por incrível que possa parecer, de um
certo espírito comunitário, já descartado pelas pontas-de-lança do processo
de individualização, as camadas mais “altas” da sociedade, por
conseqüência natural do fato delas estarem mais à frente do processo de
modernização. E João Antônio lamenta também o fim do tipo de marginal
passível de humanização, com seus códigos, inclusive éticos, e do
submundo passível de romantização; lamenta as mudanças ocorridas nas
paisagens urbanas, lamenta o apagamento gradativo da “autêntica” cultura
brasileira, lamenta a perda de seu idealismo profissional, seja em relação
ao jornalismo ou à literatura. A “muralha” para proteger sua vocação
literária, construída começa a se fechar. A solidão, afinal, começa a doer.
“Na verdade, o que chora o vagamundo da pole inchada e absurda?”
– pergunta, referindo-se a João Antônio, o crítico e amigo Alfredo Bosi, e
ele mesmo responde – “Chora um tempo em que era fácil misturar
espontaneamente arte, boêmia e vida popular. Chora aquela onda de
gratuidade lúdica onde os pobres ainda podiam mergulhar dando-se ao
442

luxo divino de não ter pressa. O dom infinitamente caro de brincar no


tempo sem hora do jogo e da música.”823
O próprio João Antônio, por exemplo ao falar da Lapa de
antigamente, parece descrever um mundo outro, quase mítico, em seu
mundanismo saudavelmente pervertido, algo como uma idade de ouro da
decadência: “Famosa pela sua boêmia, vida livre, rosário de cabarés,
clubes de jogo, blitzen policiais, império, reinado e república da
malandragem carioca, paraíso dos sabidos e calvário dos otários,
mostruário de mulheres famosas, centro da vida política do país em certa
faixa da idade republicana, moradia de um poeta bem-comportado
(Manuel Bandeira, ao lado do Beco das Carmelitas) e de um pintor famoso
(Portinari, do atelier da Rua Teotônio Regadas), palco dos tempos heróicos
de vários figurões do presente e de homens de valor em diversos setores
(...)”824
Anos depois dele haver escrito essas palavras, numa reportagem
intitulada “Mudou o mundo...”, personalidades brasileiras procuraram
mapear as principais mudanças pelas quais a sociedade havia passado no
intervalo que ia da década de 70 ao ano 2000.825 Entre elas estava Ignácio
de Loyola Brandão, um dos principais companheiros literários de João
Antônio na fase áurea de sua carreira. Alguns consensos foram
alinhavados:

823
Bosi, Alfredo. “Um boêmio entre duas cidades”, in Antônio, João. Abraçado ao Meu Rancor, Cosac &
Naify, SP, 2001.
824
Antônio, João. “A Lapa Acordada Para Morrer”, in Os Melhores Contos de João Antônio, Global, SP,
1986.
825
“Mudou o mundo...”, in Vogue, no 260, SP, 2000. Além de Ignácio Loyola, os demais participantes da
matéria eram: Joyce Pascowitch, colunista social; José Zaragoza, publicitário; David Zingg, jornalista;
Érika Palomino, jornalista de moda e costumes; José Hugo Celidônio, dono de restaurantes; Wesley Duke
Lee, artista plástico; Andréa Carta, editor da revista; Washington Olivetto, publicitário; Carlos Heitor
Cony, escritor e jornalista; Flávio Marinho, autor e diretor teatral; Millôr Fernandes, escritor e desenhista.
A matéria foi escrita quatro anos depois da morte de João Antônio.
443

“Neste período, o Brasil atingiu a democracia, tecnocratas e


economistas assumiram o poder e passamos a viver o regime dos números
e índices, combate à inflação, manutenção da estabilidade. As teorias
neoliberais ocuparam o centro das discussões, interferiram em nosso
cotidiano e a globalização é um fato. (...) O Brasil conseguiu a
estabilização financeira, porém o custo social é grande: desemprego,
falências, salários congelados, jovens se formando e sem perspectivas de
trabalho. A marginalidade é crescente, a impunidade favorece a corrupção
e o crescente desdém pela Justiça”.
“Neste início do ano 2000, algumas características marcam a
sociedade: o individualismo exacerbado, a descrença absoluta nos poderes
constituídos, a desconfiança nas instituições e o medo da violência. A
sociedade, hoje, tem outra configuração. Nos 70 e 80, impelido pelas
mutações econômicas, o dinheiro começou a mudar de mãos. (...) O poder
do dinheiro fala mais alto. Essa foi a mudança radical.”
“Uma das tônicas de nossos dias, dogma mesmo, é ser celebridade,
não importa como, nem por quanto tempo. Essa ânsia gerou o fim da
privacidade.”
“Mudou a forma de consumir, ampliaram-se os templos de
consumo.”
“O individualismo e o medo empurraram as pessoas para dentro de
casa”
“O culto do corpo atingiu o paroxismo, multiplicaram-se as
academias e as lojas de artigos e equipamentos esportivos.”
A obra de João Antônio documenta essas transformações, em vários
níveis, mas seu vetor emocional vai sempre na direcão oposta. Fiel à
observação de “seu” recorte social, ao final da vida, ele descreve o que vê
444

em uma de suas últimas cartas, e o que se tem é um subproduto de todas


essas transformações: “Quando em quando, este miserê Rio-São Paulo-
Belo Horizonte-Salvador, esta televisão que vai transformando os
ignorantes em idiotas, como diz o meu amigo Cassiano Nunes, me enfada.
(…) É o Brasil das periferias esquálidas. São os sem-terra que chegam e
ficam. Um Brasil sem praia, mas de tanga”.826
Ou quando perguntado como ia a vida dos marginalizados, em 1992:
“Piorando. A marginalização hoje atinge até trabalhadores com carteira
assinada. Saio às ruas e vejo que o Rio se transformou num grande mafuá,
com muita gente morando em barraquinhas. Eles não são marginais, foram
marginalizados, Não tiveram opção nenhuma. É o caos”.827
Mas os “dias de sushi e vinho branco”, cardápio obrigatório dos
yuppies de Wall Street, e dos que os imitavam desfilando nas avenidas Rio
Branco e Paulista, não tinham nada a ver com a obra de João Antônio.
Esvaíra-se a aliança entre a militância e a intelectualidade de esquerda,
provenientes da classe média, e o chamado “povo”, esmagada primeiro
pelos militares, e depois pelas transformações da conjuntura histórico-
ideológica, entre elas o colapso do modelo socialista de inspiração
soviética. E João Antônio, embora nunca tivesse publicamente se
declarado socialista, embora parecesse mesmo desconfiar de todos os
“ismos” ideológicos, era a encarnação desta aliança; natural que a roda dos
tempos o esmagasse junto. O escritor Moacyr Scliar, quando da morte do
colega, sintetizou bem: “Ninguém soube como ele combinar a gíria, o
linguajar do malandro com um texto rigorosamente literário. (...) Depois
do sucesso inicial [de Malagueta, Perus e Bacanaço, nos anos 60], o livro

826
Carta a Mylton Severiano da Silva, de 10/10/96. A carta foi escrita às vésperas de sua morte.
827
“Copacabana é um termômetro”, entrevista a Cláudio Uchoa, in O Globo, RJ, 1992.
445

foi redescoberto [em 1975], a meu ver em função do próprio clima da


repressão: lê-lo era uma forma de protesto”.828
Uma resenha sobre Leão-de-chácara, dos anos 70, reforça a ligação
entre os processos da história nacional e a literatura do escritor: “E um
milagre [sua literatura] que dignifica o volumétrico ‘milagre econômico’.
É uma oposição à rudeza mecânica do Produto Bruto Nacional em
crescimento que a cada porcentagem de aumento material acrescenta
páginas que crescem entre as torres das comunicações, das eclusas das
hidrelétricas e se espalham por entre o arame farpado das cercas da
censura prévia, esse anticoncepcional da inteligência e esse Diu colocado à
força na faculdade de pensar da cavidade craniana brasileira./ Ao PNB ele
traz um vivificante PSA, um Produto da Sensibilidade e da Autenticidade
tangido das nossas editoras por uma geada de comodismo e de
irresponsabilidade. São taxas de crescimento do PSA nacional difíceis de
aquilatar as que este livro bárbaro e garnizé nos traz. Pela sua hombridade,
pela sua força, pelo seu talento é uma tomada, bunueliana quase, em prol
dos olvidados, os esquecidos formigueiros de gente miúda. Ele já tem seu
lugar seguro na nossa gratidão e no processo social constitui um corpo de
delito e uma peça incriminatória cuja exemplaridade não pode deixar de
falar – eloqüentemente – por todos os que temporariamente não podem ou
não sabem falar”.829
Por isso os anos 70 foram os anos áureos da carreira do escritor. O
menino pobre que virou escritor e tirou da oralidade popular a força de sua
literatura; ele era o homem certo para gerar, num processo de reprodução
natural, espécimes sociais que a maioria dos outros escritores, provenientes

828
“João Antônio: retrato de um escritor brasileiro”, de Moacyr Scliar, in Folha de São Paulo, SP, 02/11/96
829
“João Antônio”, resenha de Leo Gilson Ribeiro, in Jornal da Tarde, SP, 23/8/1975.
446

da classe média, precisavam “clonar”. Enquanto ele ascendia socialmente,


o mainstream cultural-ideológico da época voltava-se justamente para os
que estavam embaixo, e em algum ponto do trajeto o jovem que “subia”
foi acolhido pelos que “desciam”. E eram estes homens de baixo os
espécimes sociais que, além de em seus livros, estavam em todos os
cartazes ideológicos da época. Por isso a partir dos anos 80, quando a
maioria dos profissionais do texto de sua geração foram se “enquadrando”,
sendo “cooptados” pelo “sistema”, quando a mobilização política
progressista foi, juntamente com a ditadura conservadora, se
desarticulando, João Antônio foi ficando para trás e sua literatura foi sendo
esquecida. Sua literatura tinha a “vocação para o conflito”, afinal. Não se
adaptava a tempos de anista, a tempos de banho-maria ideológico. A
infinita capacidade de se indignar e de deblaterar, que tanto pregara a
democracia, não se coadunava com tempos de democracia tal qual ela
realmente é, quase sempre lenta, muitas vezes burra. Sua literatura, antes
nostálgica, torna-se ressentida, antes engajada, torna-se amarga.
“Ser marginal em tempos de capitalismo avançado é problemático”
– dizia Alfredo Bosi – “(...) Acho preferível considerar a obra de João
Antônio sob o ângulo da estética do grotesco, que aparece em tempos de
crises e convulsões sociais. É comum nessa estética a articulação do
processo criador, sua estrutura propriamente dita, com o efeito da
recepção. O autor do grotesco procura, consciente ou inconscientemente,
atingir o público, mobilizando-o; o que resulta muitas vezes numa
literatura de edificação e moralismo. Pois, ao incitar a um novo olhar, o
impacto provoca uma postura diante do apresentado, sempre radical, de
aceitação ou de repúdio, raramente de reflexão, porque essa narrativa é por
447

si só empática e esbofeteante”.830 Atuando de tal forma sobre o leitor, a


obra de João Antônio viveu seu momento áureo nos anos 70, quando o
panorama ideológico era propício. Mas dez, quinze anos depois, essa
índole militante não podia ser mais ultrapassada, mesmo com as terríveis
crises econômica e social. O Brasil vivia o seu “fim da história”, com o
centro conservador usufruindo sua vitória, material e ideológica, e o
capitalismo tornando-se a única opção no mundo pós-comunista. A classe
média brasileira, fosse subservientemente seduzida pelos valores da classe
alta, como o escritor acreditava que era, fosse preocupada com suas
crescentes dificuldades financeiras, virara as costas ao “povo”, seu antigo
aliado.
Diante da deterioração social que, ao final da vida, os olhos de João
Antônio enxergavam por todos os lados, nem ele conseguia mais dignificar
os merdunchos. A globalização transformara os camelôs em “empregados
dos contrabandistas”. A degradação moral finalmente atingira os espíritos
espontâneos. Foi então que, marcado pelos rótulos literários que havia
cultivado, sem nunca ter reconhecido humanidade fora do recorte social
em que se especializara, arcaico num mundo “desideologizado”, João
Antônio tornou-se um prisioneiro de sua própria arte esvaziada.

“Sabe quando você vê, em algum lugar público, uma mãe batendo
no filho? E você sabe que não deve interferir, sabe que não adianta, sabe
que vai apenas se desgastar, mas fica tão revoltado com o que está vendo
que vai lá e se mete mesmo sabendo de tudo isso? Pois é. A minha geração
830
“Estética do rancor”, matéria assinada por Sonia Salomão Khéde, in Jornal do Brasil, RJ, 03/08/86.
448

foi assim com a literatura. A gente sabia que devia estar escrevendo outras
coisas, mas não conseguíamos fazer diferente.”
Essa era a imagem e o juízo que o escritor Ivan Ângelo tinha da
Geração 70, da qual foi um dos expoentes, quando foi entrevistado por esta
pesquisa.831
A seu modo confrontado com a situação descrita por Ivan Ângelo,
João Antônio tenta proteger os “filhos” maltratados pela sorte,
envolvendo-os em lirismo, muitas vezes num lirismo nostálgico, outras
numa revolta opiniática e estéril. Mas ele, já em 1963/64, pressentia que
sua obra, para ser realmente grande, precisaria transcender os limites
estreitos, por mais ricos em potencial dramático, que tinham as vidas dos
merdunchos. “Vou-lhe fazer uma confissão, Ilka. Cá entre nós, fique claro.
Eu não sou o escritor dos malandros. Já estou cansado desse slogan que
certos jornais, revistas e repórteres andaram pespegando por aí. (...) Meu
futuro literário, a meu ver e sentir de agora, é continuar a linha iniciada
pelos contos mais universais e de análise de certas essências do homem,
como ‘Busca’ e ‘Afinação da arte de chutar tampinhas’. Lembra-se?
Aquela me parece agora ser a minha verdadeira rota. Um corte vertical na
alma dos personagens, botando-os para fora sem prosas moles, porém, não
exagerando nunca o tamanho de seus vazios interiores.”832 E dizia mais:
“Quero ver se parto já para o universal, seja ele em ambiente malandro ou
não. Todo e qualquer sinal de pitoresco ou regional deverá ser evitado,
todas as facilidades em me deter em exteriores e superfícies, extraindo daí
efeitos estéticos, plásticos, psicológicos, são perigosos (assim penso eu) na

831
Depoimento colhido em junho de 2000.
832
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/06/64.
449

nova fase de minha literatura”.833 O romance Jordão daria este salto, o


projeto literário mais ambicioso que jamais concebeu. Só que ele nunca o
terminou. E o regionalismo urbano o engolfou. Sua literatura também tinha
amantes que exigiam exclusividade. Ela possui, no conjunto, um certo
maniqueísmo, segundo o qual só o drama dos menos-favorecidos era
dramático. E esse não era o melhor caminho para o “universal”.
Décadas depois desta fracassada redefinição literária, os próprios
“merdunchos” não eram mais os mesmos, figuras densas de vida e de uma
sabedoria encantadoramente simples. E, claro, havia uma contradição
básica em seu projeto: ele condena a existência de marginalizados, mas só
neles enxerga a dignidade da experiência humana. Se a justiça social
porventura chegasse ao Brasil, e virássemos todos classe média, que seria
da literatura sem eles, então?
João Antônio viu-se um homem traído pelos dois mundos que tinha,
o seu de origem, do qual seu auto-didatismo, entre outros elementos de sua
personalidade, e seu novo status o distanciavam; e o mundo literário, que o
tirou da vida proletária mas não lhe deu a tão sonhada chance de viver
exclusivamente de sua literatura, e, a partir de um certo momento, cassou o
trânsito fácil e prestigiado de seus textos, e ainda lhe roubou a força
literária. Despontar para a fama como escritor durante os anos 60 e 70,
época de intensa modernização não apenas dos valores na sociedade, mas
também da indústria cultural, campo específico de sua atuação, deu-lhe a
impressão de que a sociedade iria permitir a “muralha positiva”, ou seja, a
obtenção de uma vida ganha exclusivamente como escritor, a dedicação
completa a sua arte, àquele amor que, como sua mãe mesmo disse, não
admitia concorrentes. Daí sua defesa tão contundente da profissionalização
833
Idem.
450

do escritor, sua guerra santa em nome do pagamento dos direitos do autor


no Brasil, cujo respeito, estranho que seja, não era a norma no mercado
editorial da época (até hoje, mais raramente). Daí as brigas que teve com
quase todos os seus editores. Daí, em parte, o gradual desaparecimento de
seus livros das prateleiras das livrarias. Daí suas desilusões com a
televisão, ele que sonhava em ver os escritores ocupando lugar de destaque
na tele-dramaturgia e na programação como um todo. Daí suas desilusões
com o jornalismo, que, após um espasmo renovador, retrocedeu e
abandonou as experimentações e a convivência com a literatura. Nunca
João Antônio se libertou da necessidade de ganhar dinheiro para
sobreviver. Ele se livrou das obrigações familiares, dos vínculos
sentimentais, obstáculos para sua vida integralmente literária, mas nenhum
sacrifício foi suficiente.
Quando lançou o primeiro livro, em 1963, ele reclamou que todo o
dinheiro das vendas, apesar da boa recepção, não dava para nada. Em
1996, mais de trinta anos depois, a situação era a mesma: “O mínimo que
posso dizer, Myltainho, é que a distribuição e a comercialização dos livros
no Brasil é grotesca e raquítica”.834 Nas décadas seguintes, a indústria
cultural o traiu, deixando os escritores de fora de seus principais postos.
Para ele, ascender à classe média significou perder a pureza de
antigamente. Mas, sem o prêmio prometido, tornava-se uma traição inútil.
Foi, deste ponto de vista, não uma promoção, mas uma degradação: “Pior
é, no país, o sujeito que, escritor, se mete a também jornalista. Aí, perderá
potencial maior – o tempo, a vergonha, o talento e o estilo. Além, claro, de
correr outros riscos sérios da dor inútil. Bate-lhe o envelhecimento
precoce, a velhice íntima, baixa-lhe a impotência, medo, mais as
834
Carta a Mylton Severiano da Silva, de 10/10/96.
451

deformações e vícios pequenos da classe média. Por que esse tipo de


infeliz será sempre um animal bufo da classe média. (...) Mas da classe
média você não vai escapar, seu. A armadilha é inteiriça, arapuca blindada,
depois que você caiu. Tem anos e anos de aperfeiçoamento, sofisticação,
tecnologia, ah o cartão de crédito, o cheque especial, o financiamento do
telefone, da casa própria e do resto da merdalhada que for moda e, meu,
sem ela você não vive. Não respira, é ninguém. Ou melhor, é nada: você já
virou coisa no sistema. E não pessoa. Dane-se!”.835

Ainda tem mais. As contradições ideológicas de seu projeto literário,


o fato de ele se alimentar do que combatia, ou seja, da existência de
marginalizados, eram secundadas, ou manifestas, por certos desvios
estilísticos, por certas excrecências formais que nascem da sua própria
sensibilidade peculiar, e dos pontos fracos de suas experimentações
lingüísticas.
Leão-de-chácara, na mesma resenha já citada, por mais elogiosa que
ela seja, revela esses limites: “Não se espere dela [da literatura de João
Antônio] um tratado de elucubrações sociológicas ou intelectuais nem um
desfiar de arranjos estéticos maravilhosamente ajustados e harmoniosos no
seu teorema artístico-intelectual”, ou “Ele prova que a literatura se faz
também mas não somente com os requintes intelectuais, a grandeza e os
labirintos deslumbrantes de novelistas complexos como Tolstói, Svevo,
Musil, Proust, Virginia Woolf, Joyce. A literatura popular no sentido
menos conspurcado do termo não é para gourmets de paladar cosmopolita.
835
Antônio, João. Abraçado ao Meu Rancor, Cosac & Naify, SP, 2001.
452

É de veio grosso mesmo, de bitola estreita, diamante bruto garimpado com


as próprias unhas, cheias de cortes, de ferimentos de garra, facão e
teimosia de durar”.836
Então o projeto pode até ter sido adequado a um dado momento
histórico, e tinha qualidades, mas tinha também limitações de concepção. E
de execução. O uso exaustivo de dados recolhidos através da pesquisa de
linguagem na oralidade fortemente estetizada vai saindo de moda, sua
literatura vai pelo mesmo caminho. Sua sintaxe parece tosca.
Outro resenhista, em 1982, acusa: “Seu último livro, Dedo-Duro,
revela um João Antônio diante de uma bifurcação provavelmente decisiva
para o seu futuro como escritor. Ele enveredará por uma literatura do tipo
bandeira ideológica da ‘ditadura do proletariado’ ou verá mais lucidamente
outras opções para a solução das distorções sociais violentas que o Brasil
apresenta? Porque, tudo indica, este seu livro recém-publicado denota, sem
dúvida, um afrouxamento da maravilhosa auto-análise que impedia seus
textos de se confundirem com robôs da militância política. Mais ainda: este
livro revela que João Antônio se encontra em um momento de interrogação
de si mesmo e, sobretudo – defeito mais grave – preso num cipoal de
palavras que quase sufoca o relato Em vários pontos do volume ele confessa
o que o leitor já decifrou desde as primeiras páginas: seu fascínio, hoje
asfixiante, pelas palavras, pela sua cor, sabor, cheiro, música, ritmo,
sensualidade, valor expressivo novo, poder encantatório, quase mágico e
sacral. (...) Ora, esse deslumbramento pelas palavras tem, evidentemente, no
mínimo, dois lados. Por um deles o autor cria palavras ou cata as que o povo
forjou, como ensinava Mário de Andrade, para exprimir outras realidades
que não são as de Portugal; por outro lado, João Antônio sucumbe ao êxtase
836
“João Antônio”, resenha de Leo Gilson Ribeiro, in Jornal da Tarde, SP, 23/8/1975.
453

indiscriminado perante as palavras e se torna um autor em grande parte


incompreensível para quem não dispuzer de um glossário volumoso (...)
[João Antônio] neste momento de pausa indefinida, acumula de modo
excessivo centenas de palavras que, se têm a expressividade que deseja,
paralelamente, tornam o mundo que elas querem descrever hermético,
barroco, no sentido pejorativo do termo, palavroso demais, obtendo não a
comunhão do leitor com os propósitos evidentemente nobres e idealistas do
autor, mas sim a incompreensão e, no pior dos casos, o seu enfado e
desinteresse pela obra”.837
Quanto a sua opção por focalizar determinada faixa social, não se
atendo aos dramas das demais, o resenhista aponta que: “Mas, ao contrário,
por exemplo, de um autor que lhe está próximo, Rubem Fonseca, João
Antônio é incapaz, neste livro, de vencer um maniqueísmo binário (senão
primário) e apontar um policial decente ou um malandro monstruoso de
crueldade. (...) Este [a violência policial] e outros temas profundos, atinentes
à democracia e ao binômio justiça e liberdade, são abordados por João
Antônio. Até, em alguns momentos, breves, com extrema precisão, força de
convicção e autenticidade artística. Noutros, enredado pelo canto de sereia
das palavras em demasia, que o cegam para o valor de uma escrita enxuta
como a do escritor que justamente ele preza, Graciliano Ramos”.838
Não é difícil imaginar o próprio João Antônio dizendo: “Lambendo e
brincando, uma a uma as palavras, atento, embalado, amante – do jeito, do
sestro, do desenho, sonoridade, sensualidade, doçura, porrada, murro,
cipoada e suor particular de cada uma das palavras”.839

837
“João Antônio, fascinado pelas palavras. É um perigo?”, resenha de Leo Gilson Ribeiro, in Jornal da
Tarde, SP, 13/11/82.
838
Idem.
839
“Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralho”, in Dedo-Duro, Record, RJ, 1982.
454

Há, de fato, uma perda considerável de densidade psicológica entre os


personagens que reúne nos contos de Malagueta, Perus e Bacanaço e sua
literatura a partir de meados dos anos 70, mas sobretudo dos anos 80 em
diante. A acusação de hermetismo talvez soe mal colocada, mas o excesso de
palavras é evidente, há um efeito reiterativo intencional, mas que por vezes
soa enciclopédico, artificial, palavroso. Enfim, um efeito vazio, talvez a
disfarçar as contradições ideológicas por trás do texto. Por um tempo, a
experimentação, a fusão entre língua falada e carpintaria estilística, de tão
bem-feitas, ou recriam ou até mesmo reforçam a densidade psicológica dos
protagonistas, como acontece em “Paulinho Perna-Torta”, e também no
conto “Leão-de-chácara”. Para muitos críticos, esse é o momento áureo do
escritor. Mas, já no início dos anos 80, sua mão parece pesar, e os volteios
formais começam a sufocar as maiores virtudes de sua narrativa.
Ele, pessoalmente, torna-se um narrador sufocante. Como conta um
antigo “foca” seu nas redações cariocas, o jornalista José Castello: “Na boca
de João, a palavra transbordava para estrangular seus interlocutores, que,
como eu ali, eram sempre obrigados a se debater naquele emaranhado de
frases, sentenças que se costuravam sabe-se lá através de que mistérios,
frases enroladas em outras frases, um novelo de palavras. João desandou a
falar, emendando histórias irrelevantes a comentários furiosos, casos antigos
a vaticínios pessimistas a respeito do futuro brasileiro (...)”.840
A índole militante, ultrapassada pela realidade, também é evocada
pelo crítico: “Ele viveu num mundo de dicotomias, repartido entre o bem,
em geral do lado dos marginais, esquecidos e excluídos, e o mal, que estava
sempre com os ricaços, poderosos e bem-sucedidos, e embora não visse o
mundo de modo simplista, pois aceitava e até se entusiasmava com as
840
Castello, José, in O Inventário das Sombras, Record, RJ, 1999.
455

contradições que todos carregamos, jamais admitiria a possibilidade de um


mundo unificado e igual como o de hoje. (...) E se falava sem parar,
derramando seu verbo como sangue, é porque se sentia sufocado, asfixiado
mesmo por um mundo que se organizava cada vez mais no sentido contrário
dos seus sonhos, e que o deixava para trás, tão para trás que teve que morrer
(...)”.841
Deixando para trás os “embelecos”, como dizia, propondo uma
literatura “de murro e de porrada”, sem sutilezas, deixando pesar a mão ao
exprimir seu amor pelas palavras, talvez a única dimensão na qual podiam
conviver, dentro dele, o erudito e o popular, e em nome do exagero, que
chegou a aproximá-lo do grotesco, perdendo o apuro psicológico de suas
maiores criações, João Antônio caiu na segunda armadilha da solidão. Após
a solidão pessoal, a literária.

“João Antônio tinham um alter ego para uso íntimo, o Truman


Capote que escreveu A sangue-frio, e repetia tanto essa referência que
parecia mais querer se livrar dela, esvaziá-la de qualquer sentido, do que
perpetuá-la. De qualquer forma, ela denota esse gosto pela escrita
fronteiriça, que fica a meio caminho entre a invenção e a realidade, à borda
dos gêneros instituídos, e que era sempre um pouco suja, apressada,
exibindo um desleixo proposital que ele jamais permitiu que se petrificasse
em estilo.”842

841
Idem.
842
Idem.
456

O jornalismo, que o escritor, em sua obra, amalgamou


definitivamente à literatura, também mudou ao redor de João Antônio. O
jornalismo literário perdeu voz na grande imprensa, para não dizer que
desapareceu quase completamente, restrito a mínimos espaços. (Por
estranho que possa parecer, talvez sua melhor contribuição seja hoje
desempenhada por um certo tipo de literatura, obsessivamente direto e
realista.) Esse amálgama, que se tornara necessário – pois foi a única
forma que ele encontrou de viver tendo como fonte primordial de renda
“sua literatura”, ou seja, tirando seu sustento das poucas oportunidades que
lhe abria a indústria cultural –, e que num determinado momento estético-
ideológico foi desejável – pois dava função social direta à arte – a partir de
uma certa época foi sendo praticado de maneira mais e mais solitária. O
jornalismo em geral preferiu desvincular-se do apuro literário, e procurar
qualidades outras, como a extrema agilidade, a preocupação mais em
transmitir as sensações diretas provocadas por um fato, por exemplo com
as coberturas ao vivo, do que em oferecer reflexões emotivas sobre o
mesmo fato, ou personalidade, ou paisagem, como João Antônio
especializou-se em fazer. As redações idealistas, como a do Jornal do
Brasil, mas sobretudo a de Realidade etc, foram sendo desfeitas, primeiro
pela repressão e, depois, porque os idealistas foram deixando de existir.
E os vícios estilísticos citados, de uma forma ou de outra, podem
muito bem estar ligados à fusão entre literatura e jornalismo. Afinal, a
repetição de palavras era, em grande parte, também justificada por uma
reiteração explicativa do significado de alguma gíria. Como se a pesquisa
de linguagem, antes voltada ao aperfeiçoamento da caracterização de um
personagem, agora devesse explicações ao leitor. Se em literatura o
hermetismo pode até não ser defeito – em alguns casos chega a ser
457

considerado mérito –, no jornalismo não há tanta margem de manobra. E a


pressa – característica do tempo jornalístico – é inimiga da perfeição.
Como vimos, muitas vezes textos aos quais ele confere valor literário, são
resultado de uma colagem de pedaços de reportagens-literárias anteriores,
feita provavelmente às carreiras para se desencumbir de uma encomenda
ou faturar um dinheiro extra, rápido e fácil. Um texto sobre a Lapa poderia
render uma matéria sobre o Rio antigo, outra sobre a degradação do
cenário urbano e um retrato de Noel Rosa, apenas na base do recorta e
cola. E todos eles com status de “conto”, ou seja, passíveis de incorporação
à sua obra em livro. Só que em livro o efeito é outro. Há uma permanência
que revela as costuras eventualmente imperfeitas. Isso para não falar dos
possíveis constrangimentos mentais que, ao escrever um texto ele pudesse
se impor, ao pensar que sem uma certa contenção jamais poderia
aproveitar aquele texto em algum jornal ou revista. O que limitaria a
invenção artística de saída.
Mas, de todos os problemas possivelmente acarretados pelo
jornalismo a sua literatura, o maior de todos é a gradual subordinação da
fabulação ficcional ao testeunho do observador. Seria injustiça falar de um
novo olhar exclusivamente jornalístico, mas é evidente que o laboratório
pessoal do escritor, flanando pelas ruas e colhendo pela observação e pelos
encontros casuais com os tipos que lhe interessavam, nele inibe a invenção
mais livre, típica e definidora do ficionista. Aqui faz sentido o comentário
de um amigo e colega escritor, Caio Porfírio Carneiro: “Daí porque ele
fazia literatura (…) voltada ao jornalismo, ele não fazia ficção pura. Ele
458

fazia o narrativo junto com o descritivo, agora, com muito poder narrativo,
porque ele tinha um ‘como dizer’ único”.843
Após uma primeira fase, em que sua ficção está plasmada com o
real, mas onde o real é de uma visceralidade completa, porque
autobiográfico, ele passara por uma segunda fase em que a fabulação se
libertou, tomou conta da sua produção e deu origem a seus melhores
contos; mas, a partir da entrada do jornalismo em sua alquimia criativa, ele
volta a subordinar sua fabulação ao real, porém um real mais frio, que, por
mais vivido que seja, o foi como observador, não é mais de uma
autenticidade e de uma identidade completas. João Antônio vai se
tornando, com o passar dos anos, testemunha da existência “merduncha”,
mas ele próprio já não pode mais ser considerado um deles.
O primeiro sintoma deste processo é o fim da trama. A partir de uma
certa hora, os personagens retratados por João Antônio muitas vezes
deixam de estar envolvidos em uma história, como em “Malagueta, Perus e
Bacanaço” e “Paulinho Perna Torta”. Claro que esse é o caso dos retratos
literários em si, estáticos e descritivos quase que por definição, mas é
também o caso de vários dos personagens colhidos nas ruas. Sem trama,
muitas vezes, os personagens viram tipos, tratados na maior parte do
tempo de forma puramente expositiva, ainda que muito elaborada do ponto
de vista estilístico. Novamente vale a pena ouvir as palavras do amigo e
colega escritor: “‘João’, eu dizia, ‘você é muito mais ficcionista do que
escritor’, e ele perguntava, ‘O que você quer dizer com isso?’, e eu
explicava, ‘É porque teus personagens não têm alma. Você só não é
maniqueísta porque tem muito talento. Mas quem é aquele cara daquela
boate, cadê a alma daquele cara, cadê o mundo interior dele?’. Eu dizia pra
843
Depoimento de Caio Porfírio Carneiro, colhido em maio de 2000.
459

ele. ‘Isso é caricatura’”.844 O que se cria, portanto é uma empatia entre


leitor e autor bastante diferente da que se monta no texto ficional,
geralmente fortalecida por uma trama, na qual o protagonista não é apenas
descrito numa fotografia mais ou menos estática, mas evolui visivelmente
à medida que os acontecimentos se sucedem. Aqui eles já entram como
terminarão, são descritos em imagem ao mesmo tempo exemplar e
singular.
Sem o fio narrativo principal delimitado, seu estilo, em muitos
momentos, tornou-se pesado, volteando em falso, sem rumo, imitando a si
próprio, e sua obra resvalou na irregularidade, quase sempre melhorando
quando reencontrada com a veia autobiográfica, como é o caso de textos
dos anos 80, como “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralho” e
“Abraçado ao Meu Rancor”.845
Mas não só a relação leitor x livro saiu prejudicada. O fato de seus
personagens brotarem agora das ruas, quase aleatoriamente — numa
atitude menos do escritor “de mergulho” para dentro de suas criaturas,
criadas a partir de sua própria experiência, e mais na de jornalista capaz de
observação descentralizada, registrando literariamente os tipos com que
esbarrava, as situações que meros passeios por Copacabana o faziam
testemunhar —, somado ao gradual desligamento mental-social entre João
Antônio e seu mundo de origem, o da mentalidade proletária, afastaram-no
de seus próprios personagens. Há textos, escritos a partir do fim dos anos
70 e começo do 80, nos quais nitidamente se percebe uma diluição. Não se
cria maior vínculo entre leitor e personagem exatamente porque se desfez
o elo visceral entre autor e personagem.

844
Idem.
845
Respectivamente, in Dedo-duro, Record, RJ, 1982 e in Abraçado ao Meu Rancor, Guanabara, RJ, 1986.
460

Para culminar, aquilo que no Cap. 4 foi chamado de a “explosão dos


gêneros” – o apagamento das fronteiras entre ficção, reportagem, crônica
literária – pode, dependendo do ponto de vista, ser chamado de “diluição
dos gêneros”. Afinal, essa indefinição de gênero faz com que ele produza
textos de natureza totalmente pessoal, quase idiossincráticos em sua
constituição, e isso muitas vezes provoca nos leitores um certo sentimento
de rejeição. A elaboração formal carregada parece tomar a frente de tudo,
como se disfarçasse a falta de rumo e coerência interna de alguns de seus
textos.

Seu último livro, Dama do Encantado, é uma tentativa de resolver


alguns desses dilemas, desatando vários dos nós que impediam sua obra de
atingir uma excelência indiscutível. Mas chegou tarde.
João Antônio morreu só.
461

Bibliografia Selecionada:

Obras de João Antônio:

Malagueta, Perus e Bacanaço: editora Civilização Brasileira, RJ,


1963. A partir da 7ª edição, editora Record, RJ, 1980. 8 a edição pela Cosac
Naify, SP, 2004.
Vários autores: Os Dez Mandamentos, Civilização Brasileira, RJ,
1965.
Leão-de-Chácara: editora Civilização Brasileira, Rio, 1975. 6ª edição
pela editora Record, RJ, 1980 e 7ª pela editora Estação Liberdade, SP, 1989.
8a edição pela Cosac Naify, SP, 2002.
Malhação do Judas Carioca: editora Civilização Brasileira, RJ, 1975.
3ª edição pela Record, RJ, 1980.
Casa de Loucos: editora Civilização Brasileira, RJ, 1976.
Calvário e Porres do Pingente Afonso Henriques de Lima Barreto:
editora Civilização Brasileira, RJ, 1977.
Lambões da Caçarola: LPM Editores, Porto Alegre, 1977.
Ô, Copacabana: editora Civilização Brasileira, RJ, 1978. 2a edição
pela Cosac Naify, SP, 2001.
Noel Rosa: Literatura Comentada: Nova Cultural, SP, 1981.
Dedo-Duro: editora Record, RJ, 1982. 2a edição pela Cosac Naify, SP,
2003.
Meninão do Caixote: editora Record, RJ, 1983.
Paulinho Perna-Torta: editora Mercado Aberto, Porto Alegre, s/d.
10 Contos Escolhidos: Horizonte Editora, INL, DF, 1983.
462

Abraçado ao Meu Rancor: editora Guanabara, RJ, 1986. 2a edição


pela Cosac Naify, SP, 2001.
Os Melhores Contos: Global Editora, SP, 1986.
Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o Inferno: editora Scipione, SP,
1991.
Um Herói Sem Paradeiro: Atual Editora, SP, 1993.
Guardador: editora Civilização Brasileira, RJ, 1994.
Patuléia: editora Ática, SP, 1996.
Sete Vezes Rua: editora Scipione,SP, 1996.
Dama do Encantado: editora Nova Alexandria, SP, 1996.

Foram catalogados ainda alguns textos literários do escritor que


permanecem inéditos em livro, ou inéditos inteiramente. São eles:

1 – Choros - Para Pintagol e Cuíca (poema longo)


2 – Pentecostes Rubro (conto)
3 – Ao Barulho do Natal (conto)
4 – Viva o Bicho (conto-reportagem)
5 – Os Contos da Prostituta Loira – Morcego Seco (conto)
6 – Em Janeiro Sonhamos (crônica)
7 – Olhar Baço da Literatura Engambelada (crônica)
8 – Antônio, O Bom Maria (perfil)
9 – Viva a Sereia (conto)
10 – Comprados e Vendidos (novela)
11 – Contos Inéditos (textos reunidos no acervo do escritor em Assis)
12 – Morro (conto)
13 – Morrer de Fome (crônica)
463

14 – Largo do Café: das Sete às Sete (conto)


15 – O Pícaro e o Malandro em Berlim (crônica)
16 – No País dos Enjeitados (crônicas)
17 – Meu Poeta Evaristo (crônica)
18 – Berlim, Banda Ocidental (conto)
19 – Restos de um Inverno em Berlim (crônica)
20 – Escapada (crônica)
21 – Índios (conto)
22 – Primeira Água Forte do Morro (conto)
23 – Balada de Amsterdam (conto)
24 – Durante a Repressão (crônica)
25 – Burro, Paulistano Não É (crônica)
26 – Cor de Cinza (antiga versão de Abraçado ao Meu Rancor)
27 – Biu (conto)

Obs: No acervo do escritor, que se encontra na Unesp de Assis, há


ainda muitos textos inéditos a serem catalogados.

Contos em Antologias Estrangeiras:

(Frio) Frio: Revista de Cultura Brasileira, Madri, Espanha, 1964.


(Busca) Busca: Jorge Álvares Editor, Buenos Aires, Argentina, 1965.
(Meninão do Caixote) Der Grosse Kleine mit der Kleinen Kiste: Horst
Erdmann Verlag, Herrenalb, Alemanha, 1967.
(Paulinho Perna-Torta) Aniz Posadas Staktu Jeho: Revista Svetorá
Literatura, Praga, Tchecoslováquia, 1967.
464

(Meninão do Caixote) El Muchacho del Cajón: Monte Ávila Editores,


Venezuela, 1969.
(Joãozinho da Babilônia) Janek ze Wzgórza Babilónia: Cracóvia,
Polônia, 1997.
(Afinação da Arte de Chutar Tampinhas) Doskonalenie Ssssztuki
Kopania Kapsli: Cracóvia, Polônia, 1977.
(Meninão do Caixote) Le Garçon à la Caisse: Derivés, Montreal,
Canadá, s/d.
(Malagueta, Perus e Bacanaço) Paprika, Perus e Hezoun: ed. Odeon,
Praga, Tchecoslováquia, 1981.
(Afinação da Arte de Chutar Tampinhas) Afinación del Arte de Patear
Tapitas: Brasil Cultura, Buenos Aires, Argentina, 1982.
(Casa de Loucos) Irrenhaus: Verlag Keysenheuer & Witsch, Colônia,
Alemanha, 1982.
Eguns: Colóquio/Letras, nº76, Lisboa, Portugal, 1983.
(Joãozinho da Babilônia) Babylon Johnny: The Literary Review. New
Jersey, USA, 1984.
(Afinação da Arte de Chutar Tampinhas) Versfijning van de Kunst
van het Dopjes Trappen: Maatsaf, nº3, Amsterdam, Holanda, 1985.
(Milagre Chué) Milagro Arapiento: Revista Casa de Las américas,
nº159, Havana, Cuba, 1986.
(Joãozinho da Babilônia) Joãozinho da Babilônia: Verlag Volk und
Welt Berlin, Alemanha, 1988.
(Eguns) Eguns: R. Piper GmbH & Co., Munique, Alemanha, 1988.
(Afinação da Arte de Chutar Tampinhas) Perfeccionamento del Arte
de Chutar Chapitas: Editorial Arte y Literatura, Havana, Cuba, 1991.
465

(Virgens Blindadas do Footing) Die eisernem Jungfrauen des Footing:


Edition Diá, Berlim, Alemanha, 1991.

Entrevistas e Textos Avulsos:

entrevista publicada em Patuléia, SP, Ática, 1996.


entrevista publicada em Malagueta, Perus e Bacanaço, SP, Ática,
1996.
Escrever, Origem, Manutenção e Ideologia, série de entrevistas
coletadas por Giovanni Ricciardi, Libreria Universitaria de Bari,
1988.
“Meus Respeitos”, homenagem a Antonio Candido, 1995.

Sobre João Antônio:

Bedate, Pilar Gomes – “João Antônio y la Picaresca Paulista”, in


Cuadernos Hispanoamericanos, nº181, jan.1965.
Barbosa, João Alexandre – “Malagueta, Perus e Bacanaço”, in Jornal
do Comércio, Recife, 17/11/63.
Barbosa, João Alexandre – “A Prosa de Uma Consciência”, prefácio
ao livro Dama do Encantado, editora Nova Alexandria, SP, 1996.
Barbosa, Rolmes – “A Semana e os Livros”, in O Estado de São
Paulo, SP, 29/6/63.
Bosi, Alfredo – “Moderno e Modernista na Literatura Brasileira”, in
Céu, Inferno, editora Ática, SP, 1988.
466

Candido, Antonio - Prefácio ao livro Dedo-Duro, editora Record,


1982.
Candido, Antonio – “A Nova Narrativa”, in Educação da Noite,
editora Ática, s/d.
Cunha, Fausto - Situações da Ficção Brasileira, Editora Paz e Terra,
RJ, 1970.
Drigan, Jesus Antônio – “Sobre João Antônio”, in Os Pobres na
Literatura Brasileira, org, Roberto Schwarcz, editora Brasiliense, 1983.
Hollanda, Heloísa Buarque et allii - Anos 70: Literatura, Edição
Europa-Funarte, RJ, 1979.
Hohlfeldt, Antônio – “O Atual Conto Brasileiro”, in Caderno de
Sábado do Correio do Povo, Porto Alegre, 6/12/1975.
Milliet, Sérgio – “Alguns Malandros”, in O Estado de São Paulo, SP,
23/7/63.
Martins, Wilson - Prefácio ao livro Casa de Loucos, editora Rocco, 4ª
edição, RJ, 1994.
Nunes, Cassiano – “Releitura de João Antônio”, in 10 Contos
Escolhidos, Horizonte Editora-INL, DF, 1983.
Nunes, Cassiano – “Nota Sobre JA”, in Breves Estudos de Literatura
Brasileira, editora Saraiva, SP, 1969.
Pedroso, Bráulio – “São Paulo Tem Seu Romancista”, in O Estado de
São Paulo, SP, 13/8/64.
Lombardo, Edison Luiz – O Malandro nos Textos de João Antônio,
tese defendida em Araraquara, inédita em livro.
Lombardo, Edison Luiz – “A Desmistificação do Malandro em
Contos de João Antônio”, in Revista Itinerários, publicação da Faculdade de
Ciências e Letras da Unesp de Araraquara, SP, 1991, p.213.
467

Neto, João da Silva Ribeiro – João Antônio: Literatura Comentada,


SP, Abril, 1980.
Castello, José – “A Arte de Ser João”, in Inventário de Sombras, RJ,
Record, 1999.
Vários autores – “Três Anos Sem João Antônio”, número do tablóide
Muito Mais especialmente dedicado a João Antônio. Entre os autores estão:
Álvaro Caldas, Antônio Torres, Caio Porfírio Carneiro, Ignácio de Loyola
Brandão, Léo Gilson Ribeiro, Manoel Lobato, Mylton Severiano da Silva,
Roberto Drummond, Wander Piroli, Valdomiro Santana.
Polinésio, Júlia Marchetti – “O Conto Sócio-Documental: João
Antônio”, in O Conto e as Classes Populares, SP, Annablume, 1994.
Bruno, Haroldo – “João Antônio e Sua Estética da Porrada”, in Novos
Estudos de Literatura Brasileira, RJ, José Olympio, s/d.
Nascimento, Esdras – três artigos sem título, publicados na coluna
Livros, do jornal A Tribuna da Imprensa, RJ, 24/3/1963.
Netto, Xerxes Gusmão – entrevista com João Antônio, A Gazeta,
Vitória, 1964.
Brasil, Assis – “Romancista de Véspera”, in Jornal do Brasil, RJ, 26/6/63.
Cunha, Fausto – “Um Estreante”, in Correio da Manhã, RJ, 12/10/63.
Caldas, Imanoel – “João Antônio: Contista da Malandragem
Paulistana”, in Jornal de Alagoas, 29/11/64.
Coelho, Nelly Novaes – Resenha do livro Malagueta, Perus e
Bacanaço, in Minas Gerais, 5/10/68.
Nader, Waldyr – “João Antônio Lançará Quatro Livros em 1975”, in
Folha de São Paulo, 27/12/74.
Ribeiro, Léo Gilson – “João Antônio”, in Jornal da Tarde, SP,
23/8/75.
468

Sant’Anna, Affonso Romano de – “Um Sambão”, in Revista Veja, SP,


15/10/75.
Fabiano, Ruy – Entrevista com João Antônio, publicada no Diário de
Notícias, RJ, 14 /02/76.
Steen, Edla Van – Entrevista com João Antônio, in Escreviver, Porto
Alegre, LP&M, 1981.
Léo Gílson Ribeiro – “João Antônio, Fascinado Pelas Palavras. É um
Perigo?”, in Jornal da Tarde, SP, 13/11/82.
Filho, Domício Proença – “João Antônio: A Narrativa Articulada”, in
O Estado de São Paulo, 07/07/85.
Lafetá, João Luiz – “João Antônio e Sua Estética do Rancor”, in
Folha de São Paulo, 05/10/86.
Anais do Congresso Brasil: País do Passado?, organização de Lígia
Chiappini e Berthold Zilly, Berlim, 23-25 de junho de 1998. Textos de:
Flávio Aguiar, Lígia Chiappini, Berthold Zilly, David Schidlowsky, Carlos
Azevedo, Fernando Bonassi. (inédito)
Lacerda, Rodrigo: "A Mais Cega Sinceridade", in Folha de São Paulo,
14/6/97. (Jornal de Resenhas)
Lacerda, Rodrigo: Resenha Sobre No19 da Revista Remate de Males,
dedicado a João Antônio, in Ficções, Setteletras, RJ, 2000.
Lacerda, Rodrigo: “De princesinha a cadela desdentada”, in Ô,
Copacabana!, 2a edição, Cosac Naify, SP, 2001.
Lacerda, Rodrigo: orelha e encarte para a 7a edição de Malagueta,
Perus e Bacanaço, Cosac Naify, SP, 2004
Revista Remate de Males, no 19, Unicamp, Campinas, 1999,
organização: Antonio Arnoni Prado, Maria Eugenia Boaventura, Orna
Messer Levin. Textos de:Caio Porfírio Carneiro, Ilka Brunhilde Laurito,
469

Lourenço Diaféria, Fernando Paixão, Ellen Spielman, Antonio Candido,


Fábio Lucas, Flávio Aguiar, Vilma Arêas, Wania Majadas, Antonio Arnoni
Prado.

Bibliografia Geral:

Vários autores: Antologia do Novo Conto Brasileiro, (2 vols., org.


Esdras do Nascimento), Júpiter, RJ, 1964.
Dantas, Paulo: Capitão Jagunço, Global, SP, 1982.
Franco, Renato: Itinerário Político do Romance Pós-64: A Festa,
Unesp, 1998.
Hollanda, Heloísa Buarque de: Impressões de Viagem – CPC,
Vanguarda e Desbunde: 1960/70, Rocco, 3a edição, RJ, 1992.
Carneiro, Caio Porfírio: Trapiá, Cátedra-INL-MEC, RJ e Brasília, 3a
edição, 1980.
Carneiro, Caio Porfírio: O Sal da Terra, Ática, SP, s/d. Com prefácio
de João Antônio.
Castro, Osório Alves de: Porto Calendário, Francisco Alves, SP,
1961.
Rosa, João Guimarães - Grande Sertão: Veredas, editora Nova
Aguilar, RJ, 1994.
Braga, Antonio M.C.: Profissão Escritor – Escritores, Trajetória
Social, Indústria Cultural, Campo e Ação Literária no Brasil dos Anos 70,
tese defendida no departamento de Sociologia da FFLCH, 2000. (inédita).
Menezes, Raimundo de: Dicionário Literário Brasileiro, LTC, RJ, 2a
edição, 1978.
470

Jesus, Maria Carolina de: Quarto de Despejo, Francisco Alves, SP,


1960.

Bibliografia teórica:

Bakhtin, Mikhail:L A Cultura Popular na Idade Média e no


Renascimento, Hucitec, SP, 4a edição, 1999.
Williams, Raymond: O Campo e a Cidade, Cia. Das Letras, SP, 2000.
Lukács, Georg: Ensaios Sobre Literatura, Civilização Brasileira, RJ,
1965.
Gotlib, Nádia Battella: Teoria do Conto, Ática, SP, 2001.
Cortázar, Julio: Valise de Cronópio, Perspectiva, SP, 2a edição, 2000.
Sartre, Jean-Paul: Que é a Literatura?, Ática, SP, 3a edição, 1999.
Schwarz, Roberto: Que Horas São?, Cia. Das Letras, SP, 1997.
Goldmann, Lucien: A Sociologia do Romance, Paz e Terra, SP, 3a
edição, 1990.
Frye, Northrop: O Caminho Crítico, Perspectiva, SP, 1973.
Vários Autores: A Personagem de Ficção, Perspectiva, SP, 10a
edição, 2000.
Candido, Antonio: Literatura e Sociedade, TR.A. Queiroz Editor, SP,
8a edição, 2000.
Arrigucci, Davi: O Cacto e as Ruínas, 34, SP, 2a edição, 2000.
Forster, E. M.: Aspects of The Novel, Harvest, NY, s/d.
Lukács, Georg: A Teoria do Romance, 34, SP, 2000.
Leite, Ligia Chiiappini Moraes: O Foco Narrativo, Ática, SP, 10a
edição, 2001.
471

Candido, Antonio: A Educação Pela Pedra e Outros Ensaios, Ática,


SP, 2a edição, 1989.
Vários Autores: Poesia Jovem – Anos 70, Abril, SP, 1982.

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