Você está na página 1de 240

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

LAURA CASTRO DE ARAUJO

A ação da escrita e a escrita em ação:


experiências de performance em literatura

Salvador
2015

1
LAURA CASTRO DE ARAUJO

A ação da escrita e a escrita em ação:


experiências de performance em literatura

Tese apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Artes Cênicas, da
Universidade Federal da Bahia, como
requisito parcial para obtenção do título de
Doutor em Artes Cênicas.

Linha de pesquisa: Dramaturgia, História e


Recepção.

Orientadora: Cássia Dolores Lopes

Salvador
2015

2
Escola de Teatro - UFBA

Araujo, Laura Castro de.


A ação da escrita e a escrita em ação: experiências de performance em
literatura / . Laura Castro de Araujo - 2015.
237f. il.

Orientadora: Profª. Drª. Cássia Dolores Lopes.


Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro,
2015.

1. Criação (Literária, artística, etc.). 2. Criação – Teatro. 3. Teatro


(Literatura). 4. Representação teatral. I. Universidade Federal da
Bahia. Escola de Teatro. II. Título.

CDD 792

3
Para minha mãe.

4
Agradecimentos

“porque cantar parece com não morrer”


Ednardo

Tenho lembranças bem físicas de quando fiz a prova de ingresso no Programa de Pós-
graduação em Artes Cênicas. Meu filho tinha seis meses e eu ainda tinha leite nos seios. Eu era
professora substituta da UFBA, tinha acabado de voltar da minha licença maternidade e toda
aquela partilha de atenção era uma dura negociação de tempo. Minha mãe foi quem ficou
cuidando do meu filho enquanto eu estava lá, horas seguidas, nem me lembrava mais o que era
ficar longe de casa tanto tempo assim; e, por ela ter ficado com meu filho por mim, pude
realizar aquele exaustivo processo de seleção com mais segurança e tranquilidade. Isso se
repetiu muitas vezes ao longo desses quatros anos. Para ela, por isso, eu dedico este trabalho, eu
agradeço a vida e sua dedicação incansável ao afeto.
Agradeço, em seguida, a meu pai, que quase nos deixou este ano, e nunca me
desencorajou em continuar e, pra mim, foi sempre uma referência de força e amor, assim como
é Wilton, meu irmão, que esteve sempre ao meu lado.
Um agradecimento especial a minha orientadora, Cássia Lopes, pelas suas provocações
certeiras e, principalmente, pela leitura criteriosa desta tese. Cássia começou a tatear as minhas
palavras no mesmo tempo em que eu aprendi ouvi-la com sua voz oracular. Lições poéticas que
levarei pra vida toda. Aprendi muito nas nossas sessões de orientação e serei eternamente grata
por sua generosidade comigo.
Às minhas amigas e parceiras criativas, cujo diálogo foi decisivo para os caminhos que
aqui percorri, Caca Fonseca, Candice Didonet. Michelli Mattiuzzi, Ana Rizek, Ana Pato, Clara
Domingas, Laura Pacheco, Clara Pignaton e, também, os meninos Flávio Oliveira, Luis Parras,
Tiagos Ribeiros, Alex Oliveira, Luiz Ricardo Dantas, meu cumpadre Pedro, meus parceiros de
samba, meu Bloco de Hoje a Oito, o Gia Bahia e os amigos todos que fiz nesse caminho tão
fértil e florido por Salvador. Foi muito mais gostoso fazer este doutorado com vocês.
Meus avaliadores, por terem aceitado o convite de serem os primeiros leitores deste
trabalho. André Luis Gomes, o professor que mudou meus caminhos desde a graduação,
obrigada por nossa amizade e esse cuidado que tem comigo. Luciene Azevedo, pela
disponibilade aos diálogos e suas sempre instigantes colocações. Milena Britto, por acreditar no
meu trabalho e me dado toda a força que me deu. E Sônia Rangel, grande mestre, com quem
aprendi a olhar a pesquisa como processo criativo. A todos os professores, ao PPGAC e à
FAPESB, instuição em que fui bolsista por um longo período e me deu certa tranquilidade para
desenrolar esta pesquisa.
E, por último e mais importante ainda, meu filho Benjamin, que me ajuda a viver, com
quem tenho uma experiência de amor maior. Fio, pedra e faca. Ao mesmo tempo. Benjamin,

5
meu filho, que você entenda um dia todas as minhas ausências, as minhas panes, os meus
êxtases. Que você me entenda melhor ou que não entenda nada, o importante não é entender. Só
não se esqueça de que meu amor por você fica cravado também nestas letras. Fica com elas
quando eu não estiver; pois elas sou eu.
A escrita, minha cura, meu desatino. A força divina do poder da criação. Eu vivo pra
cantar e canto pra viver. A todos que eu amo e não digo, a todos que me protegem e eu não
vejo, você vieram até aqui comigo. Obrigada.

6
E meu delírio é a experiência com coisas reais.
Belchior

7
Resumo

ARAUJO, Laura Castro. A ação da escrita e a escrita em ação: experiências de


performance em literatura. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em Artes
Cênicas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.

Esta pesquisa volta-se para pensar a criação literária a partir da noção de performance. O
trabalho debruça-se sobre experiências artísticas que se deslocam dos espaços habituais da
literatura, como a do livro-objeto, a do blog, entre outros experimentos, realizados por esta
autora, em um trânsito entre teoria e criação. Assim, tomando o ato de escrever como ação de
performance, este estudo crítico interpela, sobretudo, as noções de narração e experiência, obra
e acontecimento, gesto e materialidade. Para tanto, desenha uma genealogia de processos
criativos, sobretudo a partir da década de 1960, principalmente nos Babilaques de Waly
Salomão, obra nomeada por ele como uma “performance poético-visual”. A leitura desse autor
se faz sob o signo do tabaréu – sujeito em movimento, à mercê do devir –, e de uma poética
igualmente errante, na qual o que vale é a experimentação, enquanto experiência de criação
transformadora.

Palavras-chave: Criação literária. Experiência. Performance.Waly Salomão.

8
Abstract

ARAUJO, Laura Castro. The act of writting and the writting in action: performance
experiences in literature. Thesis (Doctorate) – Post Graduation Program in Performing Arts,
Federal University of Bahia, Salvador, 2015.
 
This research is focused on thinking the literary creation from the notion of performance. The
work is about artistic experiments that move away from the usual spaces of literature - as book-
objects, a blog, among other experiments made by this author -, and moves between theory and
creation. Therefore, having the act of writting as an act of performing, this critical study
questions, primarily, the notion of narrative and experience, artwork and event**, gesture and
materiality. With this purpose in mind, a genealogy of creative processes is followed, mainly
from the 60´s, especially with Babilaques, by Waly Salomão, artwork defined by him as a
"visual-poetic performance". The reading of this author´s artworks is made under the figure of
tabaréu (how it is called, in Bahia, a person who comes from the rural area) – person in
movement, at the mercy of change –, and under an equally wandering poetry, in which the
experiment as a transforming creation is what it is important. 

Keywords: literary creation, experience, performance, Waly Salomão.

9
Resumé
ARAUJO, Laura Castro. L´acte d´écriture et l´écriture en action : expériences de
performance en littérature. Thèse de doctorat – Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015

La presente recherche s´attache à penser la création littéraire à partir de la notion de


performance. L´étude se penche sur des expériences artistiques déplacées des espaces habituels
de la littérature à l´exemple du livre objet et du blog, parmi d´autres expériences réalisées par l
´auteure où se joue un passage entre théorie et création. Ainsi, en appréhendant l´acte d´écriiture
en tant qu´action de performance, cette étude critique interpelle plus particulièrement les notions
de narration et expérience, oeuvre et évènement, geste et matérialité. Il s´agit dans cet objectif
de dessiner une généalogie des processus créatifs, en portant une attention spéciale aux
productions réalisées à partir des années 1960, et particulièrement aux Babilaques de Waly
Salomão, une oeuvre qu´il dénomma « performance poético-visuelle ». La lecture réalisée par
cet auteur se donne à voir sous le signe du péquenaud (tabaréu) – un sujet en mouvement, à la
merci du devenir – et d´une poétique egalement en errance, où prime l´expérimentation, en tant
qu´expérience de création transformatrice.

Mots-clefs : Création littéraire, expérience, performance, Wally Salomão.

10
Sumário

 ABRE CAMINHO p.13


 O FIO p.19
BLOCO 1
Pequeno caleidoscópio de dispositivos de pesquisa
1.2. Daquilo que corta, a vida na voz
1.2 Em torno do gesto

 A PEDRA p.66
BLOCO 2
A ação da escrita e a escrita em ação
2.1.
Um trajeto, muitos caminhos
Desvios do cotidiano
Diário
2.2.
perguntar-pesquisar-performar
Grifos
2.3.
Na trilha das pedras
se fosso fosse
2.4.
Caderno de Bordo
Ação da escrita e a escrita em ação
2.5
A pedra revisitada
Pulsações do instante-já
Germinações do percurso

11
 A FACA p.125
BLOCO 3
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----
3.1. Vanguardas, vaias e vivas
3.1.1. Das aberturas iniciais
3.1.2. O monumento à vaia
3.1.3 O corpo do gesto
3.1.4 A incorporação da obra de arte

3.2. O tabaréu em trânsito


3.2.1. Potência nômade
3.2.2. Ser precário, em cada gesto
3.2.1. Na inconstância de ser ou-tros

3.3. –B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - - -----


3.3.1. Amálgamas da presença
3.3.1.1. Performance poético-visual
3.3.1.2. Explosões em teste
3.3.1.3. Alguns cristais clivados

3.4. O Tabaréu Remixado

 ATALHOS, CURVAS E OUTRAS DIREÇÕES p.202

 REFERÊNCIAS p.208

 APÊNDICES p.223
1. Do estudo das explosões: uma escrita flamenca, um flamenco escrito
2. http://oarmarinho.blogspot.com.br/tese

12
ABRE CAMINHO

I
Este trabalho foi dividido em blocos. Esse termo, que pode ser usado para coisas
de carnadura concreta, até rígida, mas, ao mesmo tempo, pode ser puro movimento se o
bloco está posto na rua, em pleno carnaval, desgovernado, caótico e livre. Blocos de
bairro cujo nome não se sabe, posto que são ordinários, precários. Um bloco entre os
blocos. Um bloco de texto, um bifão, como se fala no teatro. Mas um bifão fragmentado
como os filhos da máquina, cortado, recortado, estilhaçado.
Sou uma escritora de blocos, sou uma escritora de bloquinhos. Foi esse
chamamento que sempre trouxe para meus releases, perfis, falas públicas, autorretratos.
Na confusão dos caderninhos, impulsiva na escrita dos afetos, na ansiedade do penso,
logo registro, numa maldição de diário de moça. Criei-me sem me precisar numa

13
definição, nem prosa, nem poesia, bloquinhos. O bloquinho não precisava ser um
formato específico. Mas era um jeito. Um jeito de escrever, de escolher as letras, de
encadeá-la no papel ou onde quer que fosse, que não se tivesse compromisso com nada
que enrijecesse a experiência nem a forma.
De certa maneira, a mim, faz muito sentido que esse seja o operador de divisão
desse percurso – blocos. Até porque nesta tese experiemento uma escrita acadêmica que
também se experimenta. Sem dúvida que essa abertura é fruto também de um Programa
de Pós-graduação (PPGAC-UFBA) em que foi possível entender a pesquisa enquanto
um processo criativo. Por isso, não me furtei a metaforizar cada bloco na imagem de
diferentes materiais: o fio, a pedra e a faca.
O primero bloco – O FIO – se orientou pela noção de samplear dispositivos.
Essa virou a chave para construir materialmente toda a tese1. Já estava no percurso de
sua escrita quando, depois de reunir leituras, ouvir pareceres e pesar opiniões, sentimos,
eu e minha orientadora, a necessidade de mais um capítulo em que eu falasse do meu
trabalho e reunisse uma série de elementos da minha experiência artística. As
publicações, blogs, oficinas e tudo mais que apontasse para a criação em literatura. Eles,
de fato, se configuraram como um campo de observação neste primeiro momento e
indicarão caminhos, pelos quais, inclusive, você, leitor, estará caminhando comigo.
Nesta primeira parte realizo discussões em torno da questão da experiência e da
narração, em torno de tópicos como a primeira pessoa, a voz narrativa, o gesto literário
e a escrita produzida na Internet.
Reforço que, ao contrário do que se espera, portanto, esse primeiro bloco foi o
útimo a ser escrito. Como a ordem embaralhada da “linha do tempo” das redes sociais,
em que a última postagem é a primeira que fica disponível para leitura. Em parte, já
ciente do conteúdo das páginas que o sucedem, ele tem o objetivo de reunir e lançar –
dentro de suas bordas – questões-chave que norteiam a pesquisa.
Essa reunião, no entanto, não segue a via de um inventário, em que eu possa
classificar e listar processos, para pensar sobre eles. O que aconteceu aqui, porque era o
que a pesquisa pedia, levando em conta a maneira como ela foi gestada, de forma
contingente e processual, foi olhar através de um caleidoscópio, objeto que corta e
embaralha imagens através de espelhos.
A partir da transcrição de uma entrevista 2 minha concedida a Sandro Ornelas e
Arthur Caria no último ano de doutorado, 2014, optei por fazer dessa voz, daquilo que
1
Alerto o leitor que lê a versão digital desta tese que sua versão impressa possui uma materialidade
própria que não foi possível transferir a esta versão. O volume impresso encontra-se na biblioteca da
Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia.

14
reúno nesta fala pública, uma operação de sampler, combinada a outros elementos,
como algumas xerox3 de escritos meus e textos de outros autores.
O sampler é aqui entendido da seguinte forma. Como uma espécie de máquina
de edição de som, os samplers permitem gravar, manipular e combinar ruídos e trechos
de músicas. Pode ser colocado numa categoria maior, a de remix, termo que define esse
tipo de procedimento, que, no âmbito da música eletrônica, surge por volta dos anos
1960 e 1970 (PATO, 2012, p. 190).
A cultura do remix pode ser reconhecida em várias esferas da vida, sobretudo a
partir dos anos 2000. Da música ao design, da arte à moda, à comida e aplicativos
digitais, temos terrenos governados por remixes, fusões, colagens e outras misturas.
Mesmo o blog é possível encarar como uma prática de remix, no sentido de combinar
conteúdos de mais de uma fonte, de diferentes caminhos e hipertextos, em uma
experiência integrada (MANOVICH, 2007).
O sampler, mais especificamente, que seria uma das técnicas do remix, teria,
portanto, mais a ver com recortes de fragmentos, operações de seleção, colagem de
amostras, numa montagem que reordena e reprocessa, sobretudo a partir da inserção de
ruídos.
A própria operação de samplear, já é, por si só, um dispositivo que embaralha
autoria, quebra a linearidade, põe em questão relações entre cópia e original. Essa já
seria uma questão que suscitaria outras, por exemplo, em torno da noção de copywrite e
do que se tem chamado de escrita não criativa4.

2
Considerando a entrevista como gênero discursivo, evento comunicativo e intersubjetivo, mas,
sobretudo, como uma narrativa, que se inscreve dentro de um espaço de exposição. Assumindo ainda “a
edição de uma entrevista como estratégica ficcional”, meu gesto aqui foi de transcrever essas falas, esses
“takes”, propondo uma edição da edição, numa espécie de entrevista interferida (LIMA, 2011, p. 41).

3
Para pensar em trabalhos artísticos que utilizam a xerox, ver os trabalhos de Paulo Bruscky em torno da
“xeroxarte” e a Arte Correio. Em 1980, o artista ministrou o I Curso de Pesquisa de Arte em Xerox-
Xeroxarte, na Universidade de Pernambuco e é, portanto, uma espécie de pioneiro, nesse sentido. Essas
iniciativas colocavam em questão o significado e o valor da obra única, com o bordão “a arte é a cópia a
arte é a cópia” (BRUSCKY, 2010, p.20).

15
Dentro do interesse deste trabalho, meu desejo foca-se em chamar a atenção para
os dispositivos incutidos no gesto de recortar e recombinar. De alguma forma, é pensar
a partir desse gesto, essa operação de corte e costura do sampler, reunindo diferentes
materialidades e dicções.
Além disso, criou-se aqui uma narrativa que engendra um itinerário, um
percurso criativo. É partir dele, tomando nota dessas palavras-chave-dispositivos, que
vamos caminhando ao longo desta tese. Se os processos de subjetivação engendram
aqui uma experiência literária tal, eles resultam do cruzamento, “corpo a corpo” entre os
seres viventes com os dispositivos (AGAMBEN, 2009, p. 41). A intenção aqui foi
torná-los mais visíveis para entender as bifurcações que mais à frente se colocam.
Foi um desafio escolher como reunir e apresentar os resultados desta pesquisa no
volume desta tese. Perguntei muitas vezes a mim de que forma escrever sobre a escrita
da escrita. Parecia um texto construído como uma Matrioshka, aquelas bonecas russas
feitas de camadas, em que uma boneca se encontra dentro da outra. Às vezes parecia
não ter fim. Outras, parecia um grande volume de emaranhados de fios, no qual
trabalhei, arduamente, para desembolar e tecer algum sentido, para comunicar-me com
meu leitor de maneira efetiva.
O modo de feitura experimentado no primeiro bloco, portanto, guiou toda a
lógica de sentido que empreendi na tese. Nos fragmentos, nos remixes, nas
incorporações de escritos, grifos e outros elementos. Parece-me justo, por isso, começar
por ele e terminar no TABARÉU REMIXADO, um texto que leva esse sampleamento a
caminhos mais radicais, já no terceiro e último bloco.

A PEDRA, o segundo bloco, é uma espécie de work in progress desta tese.


Um espaço onde a performance é a grande interrogação. Talvez por isso que seja o texto
desviante de uma escrita acadêmica mais normativa. Na trilha dessas pedras topei com a

4
Sobre a escrita não-criativa, mais especificamente, indico a leitura de Uncreative writting: Managing
Language in the Digital Age, de Kenneth Goldsmith. Sobre uma operação de remix na literatura, ver
trabalhos do escritor Leonardo Villa-Forte, sobretudo seu projeto intulado Paginário, construído a partir
de folhas de xerox de livros de outros autores e sobretudo o MixLit, em que se autodenomia o “DJ da
literatura”. Para saber mais: http://mixlit.wordpress.com/.

16
realidade da escrita, com uma concretude e uma escala que nunca tinha frequentado. A
escala de um chão, de uma ladeira. Todas as fissuras que cabem num chão a céu aberto,
num pátio interno de apartamento, às mais antigas pedras da cidade histórica. É por aí
que me interrogarei por que chamar de performance o que faço, assuntar sentidos
possíveis para essa escrita. Até chegar ao ponto de eu mesma ter criado cascas, sentidos
meus para as noções de performance que aqui ensaio.
Além disso, nessa segunda parte, estabeleço uma discussão em torno da
materialidade das palavras, o significado, o significante, principalmente quando me
encontro com o trabalho da artista Candice Didonet. A partir dele, fui buscar, na teoria
da poesia concreta e também nas metáforas de João Cabral de Melo Neto, sentidos para
reconhecer os elementos e as topografias dessa escrita, o que me levou para novos
lugares de crítica.
Aqui, novamente reaparece, uma tríade: Lygia Clark, Clarice Lispector e Ana
Maria Maiolino. Já presente no primeiro bloco, com seus trabalhos relacionados ao fio,
voltam aqui para religar a arte à vida, para falar de pulsações. Essas artistas foram, sem
dúvida, dentro desse caminho, aquelas que mais me provocaram a pensar no tema desta
tese. Por isso, não me furtei em incluí-las nesses primeiros blocos, mesmo sem lhes
colocar em uma linhagem, em um contexto de criação. Filio-me a elas de alguma forma.
Lispector, desde que li Água Viva, no primeiro ano de universidade, no quarto, trancada,
uma experiência que me fez nascer o desejo de escrever literatura; Clark, que me
acompanhou todos esses anos de doutoramento e me ensinou que o ato é que engendra a
poética, e Maiolino, minha derradeira descoberta, cuja obra me trouxe a perceber a
potência do gesto de criação, tão adubado de vida.
Depois delas é que chego na FACA, o terceiro e último bloco, com o qual eu
claramente fiz recortes e desenhei linhagens. Estas são encadeadas no item que intitulei
de “vanguardas, vaias e vivas”, em que trabalho com desvios de percurso dentro da
cultura dominante, tanto para o campo literário, como é a Semana de Arte de 22, os
manifestos futuristas, como a contracultura de uma afetividade normativa, como foi o
caso do Tropicalismo e suas performances televisionadas. Retomo, ainda, os desviantes
da forma, os concretos, sobretudo Augusto de Campos, que deu corpo ao livro, fez o
livro vaiar os estudantes que assistiram a “É proibido proibir”, apresentação ao vivo de
Caetano Veloso.

17
Lygia Clark volta novamente nesse percurso, no hall de experiências dos
neoconcretos, junto a Ferreira Gullar e Hélio Oiticica, dando corpo ao gesto poético que
me leva para outros rumos, mais próximos aos de Waly Salomão. A poesia agora é a
própria vida. A narrativa germina da experiência do real. E quando falo real, leitor, é
reconhecendo que vivemos muitos mundos ao mesmo tempo, como acreditam os índios
(SCHUTZMAN, 1999).
A antropofagia é um elo entre todas essas experiências. Ela é um modo
desviante de subjetividade, que, a partir de leituras da crítica Suely Rolnik, encontro
como influência desses diferentes extratos de geração e sua potência nômade.
(ROLNIK, 2005). Ao mesmo tempo em que se ligam por um pensamento em estado
selvagem, isto é, em seu livre exercício, mas operado, sobretudo, por um devir de
alteração, um corpo metamórfico. Pela obra de Eduardo Viveiros de Castro, continuo a
antropofagia que desembocará no trabalho de Waly Salomão (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002).
Por isso, o bloco vai tomando novas feições, nos rostos, quando encontro a
“walyngua” (PIRES, 2007, p. 116). Waly é meu outro, meus ou-tros, é com quem
agarro o sol com a mão, enfio o dedo na natureza still alive da literatura. Waly Salomão
e seus babilaques são meu grande encontro dentro desse percurso, no sentido de que
foi, a partir dele, que abri os caminhos para esta linhagem que segue nas próximas
páginas. Com o trabalho do poeta baiano, pude ver, sentir e contar, com segurança, aos
meus leitores, que esta é uma experiência de performance em literatura. O que outrora
aparecia no meu trabalho artístico como uma intuição.
Já estamos no caminho leitor. Agora é seguir.

18
19
20
“Limpo num pano de prato
as mãos sujas
do sangue
das canções.”

Maria Bethania em “Drama”, canção de Caetano Veloso.

21
22
Pequeno caleidoscópio de dispositivos de pesquisa

23
1.1. Daquilo que corta, a vida na voz

Quando ainda graduanda em Letras, nunca compreendi o problema que era para
nós, estudantes, escrever em primeira pessoa. E por que era um alerta sempre não
confundir o autor do texto com o narrador. Enquanto no âmbito da canção popular,
minha grande paixão, que engendrou em mim processos de subjetivação intensos e
decisivos, sobretudo quando estudante na Universidade de Brasília, naquele vazio
monumental da utopia da modernidade, ali mesmo, nunca entendi porque os poetas –
incluindo os cantores – podiam muito mais falar por si, assumir uma primeira pessoa, ao
menos, enquanto os prosadores suscitaram sempre essa querela. Ouvir Caetano dizer
“minha voz, minha vida, meu segredo e minha revelação”, por exemplo, não interessava
saber se ele estaria falando dele ou de outro, se aquilo era biográfico ou não (VELOSO,
1998).
Assim, dentro do meu trajeto criativo, sempre vivi a voz e a literatura como
vivia as canções e, certamente, isso influenciou no meu modo de produzir literatura. Por
que as canções, me pergunto hoje? Talvez pela estreita relação entre a canção popular e
a literatura brasileira5. Esse gosto pelas canções, sem dúvida, já apontava para uma
poética desprendida do livro, enquanto objeto, que fazia vibrar um corpo, quando a voz
empenhada repetia seus versos.
Embora seja menos concreta e visível, comecei esse percurso pela voz, que na
literatura “é a expansão de um corpo” e, portanto, possui uma corporeidade
(ZUMTHOR, 2011, p.16). A importância de começar por ela é, sobretudo, porque
sempre a associei a uma noção de primeira pessoa. Não é raro até hoje me pegar
pensando na busca de uma voz própria, sem falar nas lutas em torno da ordem do
discurso, por uma “voz literária”, a democratização de perspectivas na literatura,
presente durante boa parte do meu histórico acadêmico.
Por isso, “quando eu soltar minha voz, por favor, entenda”, são os versos que
canta Gonzaguinha, na música “Sangrando”. Quando eu cantar, ele diz, “quando eu
abrir minha garganta” – corpo a corpo com o mundo – “tudo que você ouvir, esteja
certa, estarei vivendo” (GONZAGA JR., 1980).

5
Ver “A Gaia Ciência: Literatura e Música Popular no Brasil”, em Wisnik, 2004.

24
Essa estreita aproximação daquilo que se vive com aquilo que se diz e que se
compõe certamente fomentou meu interesse por estudar e fazer literatura durante muito
tempo. Certamente que, por isso, sempre me interessei por autores que deixavam
expostos o seu “gesto literário”6 e suas motivações de escrita, isto é, aquilo que aqui
chamo de escrita em ação e vou, mais à frente, interpelar, principalmente, a partir da
leitura de Água Viva, de Clarice Lispector.
Durante muito tempo fui capturada, enquanto leitora, por esse jeito de narrar,
feito fosse a narração uma fratura exposta, como se eu fosse um voyeur que
acompanhasse o escritor no momento de sua ação da escrita. Como se o narrador fosse
uma espécie de ator que olha para a câmera e mostra que está simulando, quebrando
uma espécie de acordo7, mas fazendo com que aquela imagem pareça mais convincente,
pois “mostra abertamente sua prória ficção” (AGAMBEN, 1996). 8
Em Cabidela, meu primeiro trabalho em literatura, tornado público, encontro
bem esse modo de narrar. Luíza Breu, a protagonista, está o tempo todo sendo
perseguida pela voz que lhe dá existência. Em uma das cenas dessa narrativa, numa
grave tempestade, a narradora encontra-se com a personagem recortando cicatrizes no
próprio corpo. Ao seu redor, bacias de água com textos boiando. Breu a interroga por
que ela não lhe deu enredo melhor. Diferente, ao menos. A narradora fica muda. Não
consegue verbalizar um só signo nem mesmo se mover. Como se “tivesse em minha
frente um fantasma que me roubava a voz” (CASTRO, 2011).
Breu repete refrões em ladainha. Quando sai de cena, é a narradora quem assume
seu lugar, repetindo os mesmos gestos. Percorre as feridas – que estão agora em seu
corpo – “solfejando as mesma notas da partitura de Breu”. Quando a narradora toma
consciência desse gesto de repetição, acende a luz e depara-se com suas letras, “em
pedaços de papel encharcados, inundando todo o chão do quarto”. A narradora, então,
conclui que Luíza Breu havia derramado “bacias de mentira” antes de partir, obrigando-
a a permancer presa ao que ela havia criado. A partir disso, ela conclui – diante da
“enchente que se transformou aquele novo canto” – que foi assim que fugiu, novamente,
para a terceira pessoa.

6
Para um olhar crítico que se debruça sobre essa questão, ver Graciano, 2008.
7
Para desdobrar a reflexão sobre essa espécie de acordo, indico pensar pela noção de “pacto de
autobiográfico”, em Leujene, 2008.
8
Não foi à toa que o pré-projeto desta tese, submetido ao Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas
(PPGAC), chamava-se “Narradores em cena” e pretendia pensar na figura do narrador enquanto ator, que
encenava seu próprio texto. O caminho pela via da performance, no entanto, me levou a outros lugares.

25
Pois bem. Essa tensão dos focos narrativos, entre primeira e terceira pessoa,
assim como a voz, se configuram um primeiro conjunto de dispositivos desta pesquisa.
Dispositivos no sentido daquilo que Giogio Agamben propõe, autor central para essas e
outras reflexões que faço, sobretudo, neste primeiro capítulo. Fazendo uma leitura do
termo a partir de Michel Foucault – que inscreve a terminologia principalmente para
pensar as malhas do poder inscritas em discursos, instituições e tantos outros processos
de subjetivação – o novo contexto de entendimento do termo dispositivo, que propõe
agora o filósofo italiano, é mais expandido. Ele diz: “qualquer coisa que tenha
capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar, assegurar”,
tanto os gestos, condutas, opiniões quanto os discursos e seres viventes, em geral, pode
ser tomada enquanto um dispositivo. Por isso, seria possível e necessário tomar também
a caneta, a escritura e a literatura enquanto dispositivos (AGAMBEN, 2009, p. 41).
É muito importante salientar – para entender um pouco dos caminhos que
escolhi tomar neste trabalho acadêmico – que a minha principal formação, enquanto
graduanda9, foi entender a voz num terreno de jogos e malhas políticas 10, sobretudo em
relação ao narrador e sua autoridade, sendo esse um dispositivo. Por isso, mesmo como
escritora, expus sempre um incômodo com a terceira pessoa, o que, depois, deu lugar a
um constragimento em falar de mim e um movimento de trancar-me na gaveta, sem que
mostrasse a ninguém o que escrevia, inclusive por julgar que a literatura que fazia nada
tinha um cunho político e isso a fazia menor. Talvez por essa própria impossibilidade de
falar, no âmbito de uma autocensura, passei a escrever o gesto.
Mas, como olhar para esses dispositivos? Como analisá-los? Como falar da
primeira pessoa em primeira pessoa? Não posso negar a dificuldade de escrever sobre
dispositivos que estão inscritos na minha própria prática literária, enquanto motivadores
desta pesquisa. Por isso, a opção em construir um capítulo-caleidoscópio. Para não cair
em afirmações certeiras e estanques, sobretudo sobre meu trabalho, a ideia é muito mais
abrir um campo de possibilidade de relações entre esses diferentes elementos. E, além
disso, como eles constroem sentidos, engendram narrativas, indicam modos de
produção.
O meu olhar para os dispositivos, portanto, sugerem diferentes combinações a
partir de fragmentos da minha escrita criativa somadas à reflexão do tema da tese, aqui
nomeado de experiências de performance em literatura. Para construir esse
9
Me vêm os famosos versões da canção “Minha alma (a paz que eu não quero)”, de Marcelo Yuka, “paz
sem voz/não é paz/é medo” (O RAPPA, 2001).
10
Certamente que isso se deve a minha aproximação, no período, do Grupo de Estudos em Literatura
Brasileira Contemporânea, coordenado pela professora Regina Dalcastagnè, de quem fui aluna no
Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília.

26
caleidoscópio, não poderia fazê-lo de outra maneira que não assumindo o movimento
como disparador do olhar, assim como fazemos usualmente com esse objeto óptico. É
preciso girá-lo para fazer novas combinações.
Logo, a intenção seria muito menos olhar-se no espelho para ver um rosto, mas
colocar-se na encruzilhada de pequenos espelhos inclinados que, juntos, fragmentam e
combinam a realidade de outras formas. Se me ponho na frente de um espelho, portanto,
com o olho nesse objeto que refrata a realidade, produzo uma imagem cortada de mim
mesma, agora tornada muitas.
Ver um rosto, por sinal, não é aqui nem desejo nem objetivo, pelo contrário.
Assumo o que Michel Foucault sinaliza na introdução de sua Arqueologia do Saber,
quando narra aquilo que toma forma, ali no livro, lentamente, num discurso precário e
incerto se fazendo no tempo da escrita. O teórico francês diz que não conseguiu evitar
perigos, quando se refere a seus trabalhos anteriores. Ele olha para trás. Então, o que
fazer se não considerar a precariedade dos escritos, encarar de antemão uma confusão
possível? Arqueologia do Saber é, antes de tudo, posto dessa maneira, em sua abertura:
"a cada instante, ele se distancia, estabelece suas medidas (...), tateia em direção a seus
limites, se choca com o que não dizer " (FOUCAULT, 2008, p. 19). Nesse bojo, ele
ainda declina a noção de identidade. Não é isso nem aquilo. Por isso, fala em perder o
rosto: “vários, como eu sem dúvida, escrevem para não ter um rosto. Não me pergunte
quem sou e não me diga para permanecer o mesmo” (Idem, p. 20). 11
Esse desejo de mudar, esse constante movimento, essa escrita em trânsito,
retomo agora pela voz de Silviano Santiago, para pensar nas peças-chave desse
caleidoscópio. Em "Epílogo em 1ª pessoa - Eu & as galinhas d'Angola", a partir de um
percurso entre algumas histórias de Guimarães Rosa12 e sua experiência de vida, o
crítico gira em torno do desejo de mudar. Tanto a mudança quanto a travessia, segundo
o autor, podem ajudar a personificar como seu "corpo deambulatório se coagula no
texto que estou lendo", e que ele mesmo escreveu, diga-se de passagem. Recorrendo a
essas histórias e metáforas, Silviano sinaliza a mesma ausência de identidade de que fala
Foucault. Recusando um nome próprio estável, pergunta-se, em público, no texto dessa
palestra apresentada em uma universidade: "qual é a minha primeira pessoa que, para se
exprimir neste preciso momento, devo invocar e convocar?". O crítico pergunta, como

11
Seu prazer de escrever está justamente quando prepara "o labirinto onde me aventurar, deslocar meu
propósito, abrir-lhe subterrâneos, enterrá-lo longe dele mesmo, encontrar-lhe desvios que resumem e
deformam seu percurso, onde me perder e aparecer, finalmente, diante de olhos que não terei mais que
encontrar" (FOUCAULT, 2008, p. 20).
12
Mais especificamente sobre Grande Sertão: Veredas e os personagens Zé Zim e Aleixo.

27
que respondendo: "não foi para perder o rosto e ser multidão que leio e escrevo?"
(SANTIAGO, 2004, p. 244).
Santiago, que, assim como Foucault, quando recusa o rosto único, aponta um
caminho próximo ao do caleidoscópio, onde mil e uma imagens são possíveis, onde me
confundo e me acho.

Take 9

Sandro Ornelas, o entrevistador - No prefácio da bolsinha, no Cabidela, você fala de um


enredo, uma escritora anônima perseguindo uma personagem. Em fio condutor também
tem o enredo no marca-página. Além desse espaço, você não sinaliza pro leitor nada
mais. Como você explicaria para o leitor do que tratam seus livros?

É engraçado, porque eu acho que eu tenho uma fama de deixar os leitores um pouco na
mão. Eu não quero explicar muito, né? Eu acho que eu confundo mais do que explico,
às vezes. Mas acho que é porque tem um pouco dessa coisa - "leitor, vire-se" - e nesse
vire-se, faça você mesmo. Junte essas peças a seu modo. Acho que eu tenho uma
resistência a explicar, de esmiuçar, talvez porque, ingenuamente, tenha uma vontade de
deixar aberta um pouco essa experiência, essa intervenção do leitor. Porque tem essa
potência a leitura mesmo, não é? De que cada um vai juntando as peças, vai religando.
Mas eu acho que o Cabidela, você falou antes dessa impressão dessa metanarrativa, essa
literatura que fala dela mesma. Eu acho que essa é a minha obsessão. É o que eu
pesquiso. É a minha pesquisa. É o momento que tô escrevendo. O que eu acho que aí é a
minha veia de Clarice Lispector, essa coisa da Água Viva, do instante-já. Da escrita
pulsando ali, no meu corpo, quando ela me atravessa, quando ela me acontece. Eu acho
que é esse o lugar da literatura que me pega. E aí eu acho que, na verdade, os meus
enredos sempre atravessam, sempre passam por aí. Essa coisa do leitor assistir alguém
escrevendo aquilo. Eu acho que esse instante da criação. Alguém escrevendo o presente.
Eu acho que se eu pudesse dizer o lugar desses enredos, embora tenham nomes,
narrativas que atravessam, personagens, paisagens, espaços, seria isso que atravessaria
tudo.

28
(CARIA; ORNELLAS, 2014) 13

síndrome da gaveta

Escolhi a caneta para começar. Já não era mais tempo de grafite, lápis de
olho, giz de cera, borrão. Era tempo do definitivo. O que permaneceria sem
meu corpo, sem meu punho. A voz, à caneta. Tive medo dessa eternidade.
Esses anos todos tive medo de sair do armário e dizer: sou eu a escritora, a
atriz que encena textos em tempo real, a narradora de caderninhos,
marinheira só em blocos de carnaval. Mas por que explicar? Quem estaria
ouvindo? Redatores insones numa madrugada googlística de trabalho? É
assim: pergunto, pergunto, nunca termino. Ele disse: é ininterrupto.

Ininterrupta, parei, abrupta (CASTRO, 2011).


O trecho acima toca num ponto importante para essa discussão. Em linhas
gerais, a gaveta está relacionada a um medo da exposição pública. Interessante notar
como a grafia à caneta, diferente da possibilidade de apagamento do lápis, é responsável
por construir uma sensação de definitivo. Como se isso fosse uma qualidade daquilo que
é impresso, de uma tinta que grava irrevogavelmente o papel. E, nesse contexto, isso
que permanece aparentemente não depende mais do punho, do corpo, desaparecido, do
sujeito da ação. A síndrome da gaveta parece que tateia essa ausência.
Mas, por que explicar? Por que narrar sempre esse gesto? A rota de perguntas
que aparece aqui é ininterrupta. O blog, sobretudo, onde esse texto foi escrito primeiro,
sugere esse jogo que parece nunca terminar. Pode-se publicar num blog sem limites,
digamos assim, grosso modo. Basta apertar o botão de “publicar”. Não há limites de
postagem nesse aplicativo. Editar, nesse caso, parece estar no movimento de paragem,
feito um gesto abrupto, como sugere o texto.
Quando a síndrome da gaveta bate, confesso que sou tomada pelo medo do
narcisismo. A minha geração morre de medo disso. Da essência, de um autocentramento
absoluto, embora estejamos completamente capturados pelos dispositivos das redes
sociais, da visibilidade a qualquer custo.

13
Essa entrevista foi realizada por Sandro Ornellas e Arthur Caria no programa Interventuras e está
disponivel, na íntegra, no endereço eletrônico www.interventuras.blogspot.com.

29
E, embora tenha entendido a voz literária enquanto um dispositivo político 14, tive
medo de, num primeiro momento, mostrar meus escritos para quem quer que fosse, pois
ali estava fraturada, era ali uma fruta aberta. Como bem anuncia a metáfora de
Cabidela15, título desse blog – “reunião de fígado, pescoço, pernas e outras miudezas” –
estava ali despedaçada, exposta. Tinha comigo, certamente isso não pude continuar
acreditando a partir de então, quando descobri as artimanhas da ficção, mas tinha o
subtexto de Gonzaguinha comigo, palavra por palavra, estaria ali, vivendo. E confesso
que durante algum tempo acreditei ter um rosto único, que depois fui minando,
esquartejando, a partir de muitas táticas. Entre elas, a oscilação permanente e um
tensionamento do foco narrativo, como no exemplo anterior, dos embaralhamentos de
papéis entre narradora e protagonista. Não era raro encontrar confusões de tempos
verbais e “pessoas gramaticais”, como no trecho abaixo:

Tinha sido naquele velho abril a primeira medida drástica que desencadeou
todo o resto. Voltara à Brasília e deixara lá os cachos. Raspou o passado da
cabeça, depois de o ter encontrado todo ele escrito na parede do quarto que
não mais me pertencia. Confundo os verbos. Confundo as vozes. Ela sou eu.
E eu sou ela.

Sei que depois de se ver inscrita, tão exposta, e ao mesmo tempo tão
resumida na parede de um quarto desabitado, depois disso, de voltar ao ponto
de partida para dar um ponto final, Luíza começou a arrancar as folhas do
caderninho e fazer barquinhos de papel.

No novo começo, quis reescrever as páginas que faltavam, mas estou

condenada aos papéis avulsos (CASTRO, 2011).

A oscilação entre uma tentativa de capturar o tempo, pela escrita, e um


movimento de perder aquilo que foi escrito é recorrente em Cabidela. Os papéis
avulsos, então, se tornam o único caminho, na contramão de uma linearidade que,
mesmo assim, aqui parece uma exigência recorrente 16. Ao contrário disso, faltam
14
Entendo a voz literária enquanto dispositivo político no sentido de que determina, controla, seleciona,
assim como toda a produção do discurso, estando circunscrita num sistema de dominação. Como coloca
Michel Foucault, em A ordem do discurso, “sabe-se bem que não se tem direito de dizer tudo, que não
se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer
coisa” (FOUCAULT, 2006, p.10).
15
Endereço eletrônico: www.cabidela.blogspot.com.
16
É possível perceber isso sobretudo pelas aparições de Edith, que a acusa de não ser uma romancista de
verdade: “Voltei. Abri a gaveta que havia se tornado um armário. Decidi transcrever tudo, à caneta. Mas
aqueles papéis avulsos não tinham rota. Davam voltas, isso sim. No umbigo, disse um supereu. Não

30
páginas, há lacunas impossíveis de serem reescritas. E novamente o “ela” confunde-se
com o “eu’.
No trecho acima, além disso, há uma paisagem recorrente: um sujeito “escrito”
na parede do quarto. Não é raro, neste trabalho, a referência a esses lugares fechados –
gaveta, armário, quarto, panelas – espaços que remetem à extrema intimidade, e se
contrapõem muito ao momento em que meu trabalho ganha as ruas.
Isso é uma pista para um próximo dispositivo, a materialidade. Entendamos,
antes, contudo, as questões de visibilidade que ficamos à mercê com o uso dessas
tecnologias, como o blog. Falo especificamente de um sujeito em exposição. Alguém
capaz de ser acessado, disponível pra ser lido. Como se houvesse um espaço na rede
mundial de computadores, demarcado a partir de um perfil. Um perfil em que a
pergunta quem eu sou? guia o preenchimento de formulários, responsáveis por gerar um
“nome do usuário” e uma senha pessoal de acesso.

Um tempo próprio funciona na rede. O tempo do facebook, por exemplo, é


muito mais acelerado que de um blog17. Neste, por exemplo, o tempo de publicação de
uma postagem varia numa média de dois dias de atualização. No caso do facebook, a
movência da linha do tempo é muito maior. Não é raro encontrar pessoas que alimentam
seus perfis com novas postagens três vezes ao dia, por exemplo. Isso sem nem
senhor. Suprimi essa parte do texto para não levar outra bronca de Edith e ouvir pela milésima vez que eu
não era uma romancista de verdade” (CASTRO, 2011).
17
Parei e perguntei-me se deveria puxar uma nota para explicar o que é um blog. Também pensei, não sei
exatamente que horas, se a discussão do blog não estaria antiga num tempo de outros dispositivos de
compartilhamento na rede, como o facebook, por exemplo. E que alguns dos meus futuros leitores
poderiam não saber o que é um blog. Tomo emprestado essa definição de Cecília Gianetti, que chegou
pelo texto de Luciene Azevedo: “Os blogs são páginas pessoais nas quais os autores podem expor desde
experimentações literárias até os mais banais comentários sobre o seu cotidiano. À maneira de um diário
íntimo, o blog é construído cronologicamente através da possibilidade diária de atualização e pode
funcionar tanto como um espaço disciplinador para o exercício literário como um canal de ‘evasão de
privacidade’” (GIANETTI APUD AZEVEDO, 2007a, p. 44).

31
mencionar o uso de dispositivos como mensagens instantâneas entre os “usuários” dessa
rede, fato que tornou o e-mail cada vez mais ultrapassado e burocrático.
O armazenamento do facebook também é distinto. É raro, por exemplo, ter um
acesso fácil a uma postagem que foi feita há um, dois anos. Parece que os textos
desaparecem mais rapidamente. Lembro bem quando o facebook aumentou o tamanho
das fotos, sua escala na barra de rolagem, deixando o texto num lugar mais secundário.
Este, ao contrário delas, não fica arquivado de uma forma específica, como em um
álbum virtual. No blog, diferente disso, há quase sempre um dispositivo de
arquivamento em que o leitor pode deslizar pelo tempo. Geralmente os textos ficam
registrados pela data da postagem ou num agrupamento de meses, ano ou assuntos, as
famosas tags.
O blog é algo vivo. Pode ser uma arena de ação. Deles se desdobram, por
exemplo, comentários, datas, “boxes”, caixas de diálogo que fragmentam a página da
web. Os blogs têm temas, título e tags. O twitter, por exemplo, já não funciona dessa
forma. Segue uma lógica mais parecida com a do facebook. No entanto, talvez seja o
dispositivo mais usado pelos escritores contemporâneos.
Fabricio Carpinejar, por exemplo, publicou um livro intulado
www.twitter.com/carpinejar, justamente o endereço de sua página pessoal abrigada
nesse aplicativo. A Bretand Brasil editou essa publicação e sua estratégia de mercado
foi estampar na contra-capa as seguintes frases: “o primeiro livro feito no twitter no
mundo, respeitando o espaço de 140 caracteres. (...) São frases diárias, espontâneas e
passionais de um dos principais autores contemporâneos” (CARPINEJAR, 2009).
Além de parecer uma cínica estratégia de venda do mercado editorial, me
estranhou o fato de a publicação não ter nenhum tipo de edição do escritor. Como se
fosse impresso todo o micro-blog, sem nenhum tipo de tratamento, num espelhamento
raso do trajeto de uma narrativa para um meio diferente na qual ela foi primeiro gestada.
Não há uma reflexão apurada desse trânsito de mídias, nem um tratamento interessante
disso no livro que se apresenta para o leitor.
Por isso, me perguntei: por que deveria ler isso no livro e não no twitter? Por que
transformar em livro essa narrativa já consumada na web? O que se quer ainda com o
livro que o twitter não traz? Será que o livro faz-se necessário somente para atestar o
valor dessa construção literária?
A leitura do livro de Carpinejar não adensou essas questões. Tanto a
materialidade da obra impressa quanto a do twitter não estavam problematizadas, como
se o texto fosse o que importasse, o elementro central, essencial e soberano. O autor

32
parece desconsiderar a materialidade da obra, quando é óbvio que ela é determinante e
age como se o texto pudesse existir sem ela. Talvez pudéssemos relacionar essa postura
de Carpinejar com o que Roger Chartier chama de “desmaterialização”, que, segundo o
teórico, estaria ligada ainda à noção de copyright, criando para a obra uma “categoria
abstrata de valor e validade transcendentes” (CHARTIER, 1998, p.71). Parece que a
noção de valor18 aqui não acompanha as mudanças de paradigma trazidas pelas novas
mídias. Como se a obra fosse algo etéreo e sempre independente de qual suporte ela
esteja inscrita. Aqui o livro e o twitter são mesmo meros suportes.
O ordenamento do texto de Carpinejar, por exemplo, é imposto pela mídia
twitter, embora o poeta sugira, na apresentação do livro, que há desordem, falta de
numeração, de trama, enredo e justificativa. No entanto, todos os “tweets” são
acompanhados de data e horário, se enviados pela web ou por um meio móvel, o que
acaba engendrando uma linha narrativa, com a qual o poeta não se compromete, apenas
aceita e imprime assim. 19
Os tweets de Carpinejar variam em torno de um “comentário da experiência
cotidiana” (AZEVEDO, 2007a, p.44). “O twitter é um torpedo que a gente manda a si
mesmo. E vai respondendo”, escreve nas últimas páginas (CARPINEJAR, 2009, p. 82).
Com seus 140 caracteres, “suficientes para sangrar”, www.twitter.com/carpinejar
parece um livro de citações da intimidade do autor, beira o fetiche. (Idem, p.8) Afinal de
contas, esse tipo de dispositivo funciona como quer o poeta: um torpedo que enviamos
para nós mesmos, só que todo mundo pode ler.
A questão é que escrevemos muito mais do que em outros tempos. Nunca se
escreveu tanto. Narramos muito mais, arrisco dizer. Em redes como o facebook, narra-
se seja com um texto, uma foto ou um vídeo que, inclusive, nem precisam ser de quem
publica, mas pertecem a uma enorme rede de compartilhamento. A citação nunca esteve
tão presente entre nós. A citação “vulgar”, nada bibliográfica.

18
Para uma reflexão mais demorada sobre a questão do valor no âmbito da literatura contemporânea, ver
“Valores? Para quem?”, AZEVEDO, 2005. No texto, há uma problematização da emergência de novos
valores, a partir de uma geração que, segundo a autora, já nasce dentro da lógica da indústria cultural. O
trabalho analisa o romance de Clarah Averbuck, Máquina de Pinball, uma espécie de marco já na
fortuna crítica da literatura contemporânea. Diferente do trabalho de Carpinejar, por exemplo, esse
trabalho passa por uma edição, forja-se um personagem, Camila, troca-se o título do site, de onde se
desdobrou o livro. Uma operação, a meu ver, completamente diferente e mais interessante que a do poeta
em questão.
19
Segundo Fabio Malini, “o impacto das redes sociais na produção, consumo, distribuição e trocas de
trabalhos literários ainda não foi mensurado a contento”. Nesse ensaio, por exemplo, o crítico analisa a
questão através de gráficos gerados por um software que possibilita mensurar interações recebidas por um
post, somando curtidas, comentários e compartilhamentos. Um caminho de leitura novo e instigante
(MALINI, 2014, p. 205).

33
Penso que a experiência cotidiana está o tempo todo mediada. Uma obsessão
pelo registro então se faz entre nós. Não é raro, por exemplo, assistir a um show em que
grande parte da plateia está de posse de câmeras, fotografando e gravando durante o
espetáculo, o tempo todo. Quando presencio cenas como essa, fico sempre pensando
que a experiência do espectador daquele show foi completamente enquadrada,
capturada pelo quadrado da tela. Aqui o real é estilhaçado pelas lentes de um celular,
quase sempre, e a experiência é marcada pelo gesto de filmar, radicalmente diferente,
por exemplo, se o espectador estivesse dançando.
Outro exemplo é quando componho um verso ou uma micronarrativa, num dia
qualquer, no meio do cotidiano, e tenho o impulso de postar. A contradança da
síndrome da gaveta. Essa obsessão, nesse caso, me faz indagar: mas será que a
experiência não está sendo sobreposta pela narração? Em outras palavras, seria dizer
que eu experiencio algo já pensando em como isso pode ser narrado, em público. Será
que a narração esmaga a experiência? Ou a própria experiência, nesse caso, já é
narração?
Opto pela segunda opção. A noção de escrita aliada a de experiência que estou
tateando aqui vai nessa direção: a narração não é algo posterior à experiência, mas
ambas acontecem no mesmo impulso. Por isso, seria um problema separar as duas
ações. Inclusive porque, dentro desse entendimento, a narração seria um mero registro,
tópico que me acompanhou muito neste trajeto de tese e que discutirei mais detidamente
no próximo capítulo.
Portanto, a narração não é uma forma de traduzir uma experiência, mas de
experimentá-la. A própria narração já é uma experiência. Por isso, a escrita seria uma
forma de viver, independente de seu registro. Em outras palavras, seria pensar que a
experiência configura-se como um devir e não se reduz à esfera da representação. Ela é
muito mais um vir a ser, do que uma mimesis, que vai representar o que estou dizendo.
Assim, não se separa a vida do que se escreve, pois a escrita faz parte desse vir a ser.
Se considero a escrita no âmbito do devir, portanto, ela está livre de
pressupostos, de antecipações e é caracterizada pela contingência, pelo encontro, pela
potência criadora e involuntária do porvir. Essa concepção de escrita, portanto, se opõe
a uma ideia de essência, pois não lida com aquilo que é permanente e imutável, com
verdades fixas e universais. Ao contrário, a escrita que se faz na experiência do fluxo do
cotidiano modifica o sujeito, que, a partir disso, engendra uma constante metamorfose.
Que tipo de experiência, afinal de contas, dispara a narração? Num breve e
primeiro entendimento sobre essa noção de experiência, podemos confrontar três pontos

34
de vista. Walter Benjamin, o mais recorrente na apreciação desse termo, associa a
narração ao deslocamento e à migração do homem, na máxima de que quem viaja tem
muito que contar. As grandes guerras na Europa, no entanto, traumatizaram o corpo dos
combatentes, emudecendo-os, o que acarretou, segundo esse autor, num
empobrecimento da experiência comunicável (BENJAMIN, 1994, p.198).
Já Beatriz Sarlo defende que, com a narração, a experiência assume uma
temporalidade da lembrança e não exatamente de seu acontecimento, questionando,
assim, o valor de verdade do testemunho. Discute, assim, o reconhecimento de uma
fidelidade dada ao acontecido no registro de uma experiência. A crítica argentina
discorda veementemente de Benjamin, principalmente, quando afirma que as ditaduras
latinoamericanas, que estariam para as Grandes Guerras citadas pelo teórico alemão,
não emudeceram nem se tornaram um obstáculo para “construir e escutar a narração da
experiência vivida” (SARLO, 2007, p. 47).
Tanto para Sarlo quanto para Benjamin, “não há testemunho sem experiência
nem há experiência sem narração”. Por isso, o argumento benjaminiano de que o
esgotamento da experiência suscita o do relato. A experiência, assim, sob esse ponto de
vista, só existe se transmitida, no corpo a corpo. Em outras palavras, a experiência é
justamente aquilo “que pode ser posto em relato”. No entanto, e essa é a crítica de Sarlo,
não há uma correspondência entre o que se relata e o que se vive e vice-versa. O
discurso da memória, por isso, não deveria constituir a verdade do sujeito (Idem, p.24-
26-44).
Estranhou-me muito, durante a pesquisa, pensar que a experiência está
condicionada à narração. No entanto, essa breve apreciação já nos indica quão
imbricadas elas estão. E que, além disso, pode ser uma armadilha separar uma da outra,
correndo o risco de incorrer em um pensamento que segue um modelo da representação
que, sem dúvida, é incompatível com a noção de performance que indico aqui e
debulharei mais à frente.
Por hora, fico atraída em pensar como o ato de narrar está associado à noção de
deslocamento do narrador, a partir de suas andanças e movimentos migratórios.
Inclusive porque toda esta tese é atravessada pela questão do trânsito, do caminhar, da
ideia de percurso de pesquisa. Vou tentar compreender isso pela via da “subjetividade
nômade”, que vou desenvolver mais à frente, a partir dos trabalhos críticos de Suely
Rolnik.
Agora quem ouço é Viveiros de Castro, quando fala do mundo indígena, e
também alia a questão da narração a uma noção de percurso e do encontro, como

35
impulsionador da criação narrativa. Aqui, no bojo dessas discussões sobre grandes
guerras e sistemas totalitários, o antropólogo vai mencionar o quase acontecimento da
morte como uma motivação para uma narrativa. Ele conta o seguinte caso. Quando
alguém vai à mata, sozinho, e tem um mau encontro, por exemplo, um animal que reage
de uma maneira inesperada ou um encontro com uma pessoa que já morreu; isso, em
geral, produz pânico nas pessoas. Quando ela volta da floresta, acontece até de essa
pessoa morrer, em razão do trauma. O que ocorre, em geral, no entanto, é que essa
pessoa chega e conta essa história, sai da solidão da floresta e socializa o acontecimento
com seus pares da aldeia. É uma história contável, diz o antropólogo (VIVEIROS DE
CASTRO, 2009a).
Parecido com o que coloca Benjamin, em relação ao migrante, aqui temos
também o trânsito, o deslocamento como decisivo para a experiência da narração. Mas
há uma peculiaridade aqui: o que ele chama de “quasidade”. “Se a morte é impossível
de ser experimentada enquanto tal”, afinal de contas, não é possível narrar a morte que
aconteceu, já que a narração pressupõe estarmos vivos, “a morte só pode ser
experimentada por nós, na qualidade de 1ª pessoa”, “em sua quasidade, quando ela
quase aconteceu”. O modo de existência da morte no nosso mundo, por isso, é o da
narrativa. Alguém que quase morreu, portanto, não é o mesmo e é desse quase acontecer
que se tece a narrativa. (Idem, ibidem)
Recordo-me de um conto de Sérgio Sant’anna que caminha por entre essas
questões que aqui levanto. “O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro” é
atravessado por uma narração em que o narrador é o autor. Numa “AUTO-ANÁLISE”,
como ele diz, Sérgio Sant’anna pontua “este autor, como vocês devem estar observando,
também escreve como se ensaiasse (ou rascunhasse) o ato de escrever” (SANT’ANNA,
1997, p. 306).
Retomando a possibilidade de a narração sobrepor-se à experiência, Sant’anna
fala sobre a obsessão de escrever a vida. Assim como cineastas que se viciam em olhar
para as coisas enquadrando tudo numa câmera imaginária, ele “escreve sobre ele
escrevendo”. E confessa: “De certa forma parei de viver espontaneamente. Porque
encaro as minhas vivências de uma forma utilitária, ou seja: material para escrever. Às
vezes, até seleciono aquilo que vou viver em função do que desejo escrever” (Idem,
ibidem).
Voltando ao blog, a partir disso tudo, como responder à pergunta do perfil –
quem sou eu – já imposta pelo suporte, no cadastramento do usuário na rede, se o blog,

36
ele mesmo, expõe um sujeito em uma realidade estilhaçada? 20 Como talhamos essas
muitas personas na foto e nas descrições que optamos na hora de nos pôr em perfil? E,
nesse contexto de criação online, que impõe meios físicos e temporais específicos,
especialmente o que chamam de “em tempo real”, como relacionar-se, enfim, com um
dispostivo desses? Diferentes forças atuam em muitos usos que fazemos da Internet,
plataforma que abriga, a um só tempo, o currículo profissional, relações de afeto,
correspondências, fontes de pesquisa, entre tantos outros.
O espaço da web, portanto, afeta o corpo de maneira específica. Ele não é
neutro, suscita algo, funciona como dispositivo. Além de acometer profundamente o
fazer poético, as novas tecnologias alteram sobre o que e como pensamos (RISERIO,
1998, p.11). Motivam experiências específicas, implicam deslocamentos. É possível
estar à deriva, navegar na web.
Por isso, me estranha ser tratado com indiferença o ambiente tecnológico, como
me pareceu no livro e no microblog espelhados de Fabrício Carpinejar. Dessa forma, me
pergunto como pensar o modo de produção digital no que concerne aos sujeitos, isto é,
como um dispositivo que interfere e constrói hábitos e procedimentos (BELLEI, 2010).
Em “Experiência e Escritura”, Denilson Lopes me aponta um caminho. Perder o
rosto pode ser uma opção pela desaparição ao invés da visibilidade. Esta, nesse caso, é
pensada a partir de teorias que clamam pela visibilidade de determinados grupos
identitários. A representação de identidade vai de encontro à experiência do vir a ser
que mencionei anteriormente. Essa forma de pensar, calcada na identidade, geralmente
aponta perfis, hábitos, horizontes de expectativas, como se soubesse quem é esse
“outro”.
Assim, o crítico me provoca profundamente quando inverte a pergunta,
colocando luz na questão da desaparição, ao invés da visibilidade: como desaparecer
quando todos querem ser visíveis a qualquer custo? Como ser invisível não no sentido
de esconder-se, fugir da realidade “mas simplesmente uma forma de enfrentar o poder
corrosivo do simulacro; o excesso de imagens, de signos, cada vez mais desprovidos de
sentido.”? 21
20
O escritor Sérgio Sant’anna, no trecho anteriormente mencionado, toca num ponto que traz de volta a
discussão de Silviano Santiago. Ele relaciona o modo de escrever fragmentário à realidade estilhaçada,
que se faz especialmente pra “um cara que se desenraizou como eu”. Nessa passagem, o próprio Silviano
é mencionado: “O Silviano Santiago diz que eu não deixo viver meus personagens” (SANT’ANNA,
1997, p. 307).
21
Transcrevo sua fala no Colóquio “Delicate Art”, ocorrido em novembro de 2011, na Princeton, nos
Estados Unidos e que guiou isso que tomei pra mim como um desafio ético: "se a invisibilidade
comumente teve um sentido negativo num primeiro momento de políticas de identidade, talvez agora ela
possa nos indicar algo diferente. (...) ser invisível numa sociedade consumista pode ser uma maneira de
fazer uma diferença pela pausa e sutileza numa sociedade em que tudo e todos devem ser visíveis a

37
Isso tudo toca num ponto-chave, já levantado por Silviano Santiago: o da
primeira pessoa. Como lidar com o que Denilson Lopes fala sobre “sentir um mal-estar
em escrever em primeira pessoa” e todos os receios em ser demasiadamente narcisista,
de ser piegas, de ser sentimental (LOPES, 2002, p.191).
Será isso decorrente de uma espécie de patrulhamento da afetividade? Encontro
nesses receios um eco de um tempo de patrulhamento ideológico 22 em que se cobrava
do escritor brasileiro um posicionamento, na arena da narrativa, sobretudo em relação às
lutas de classe. Certamente que aí o narrador entra em questão e a primeira pessoa
torna-se uma armadilha, nessa estranha e paradoxal característica da literatura nacional,
uma “literatura anfíbia”, como bem aponta Silviano Santiago, que não toca as margens,
num país de analfabetos, mas que se sente na obrigação de falar delas (SANTIAGO,
2008).
Como bem coloca Luciene Azevedo, falamos aqui da culpa que assume o
escritor “a fim de superar a distância em relação ao seu diferente social” (AZEVEDO,
2007b, p. 83). Azevedo identifica em A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, um
marco problematizador em relação à questão da representação do Outro no panorama
literário, que transita entre o compromisso e a alienação. 23 A estratégia de visibilizar o
pobre, por exemplo, na literatura – como no caso de Macabéa – pode ser problemático
no sentido de reforçar a dicotomia o eu e o Outro, tomando-os como sujeitos estáveis,
fixos e singulares.
Esse risco de falar por outros e cair em uma “autoridade etnográfica”, sobretudo
se pensarmos no contexto da arte contemporânea, pode ainda ser revertido numa
armadilha contrária. Se pensarmos, como propõe Hal Foster, em O Artista como
Etnógrafo, é possível que o artista incorpore e mantenha “a centralidade do sujeito por

qualquer custo, incluindo diversos grupos minoritários, mesmo a transgressão e a diferença são apenas
estratégias de marketing. por certo, invisibilidade não significa esconder, fugir da realidade, mas
simplesmente uma forma de enfrentar o poder corrosivo do simulacro; o excesso de imagens, de signos,
cada vez mais desprovidos de sentido. desaparecer a cada dia o melhor possível talvez seja um desafio
ético quando todos querem ser visíveis, presentes, intensos, cada vez mais e a todo momento, para
provarmos que existimos, para conquistarmos algo, alguém, um lugar” (LOPES, 2011).
22
Ver Hollanda, Pereira, 1980.
23
Diz Luciene: “É sintomático que, considerando a tradição interessada de nossa literatura, seja
justamente em uma obra de Clarice Lispector que todos esses impasses venham à tona de forma quase
cínica. Sintomático ainda pelo fato de Clarice Lispector ter merecido atenção da crítica pela resistência
que impõe essa tradição (basta reler o artigo de Antônio Cândido que saudava sua aparição). Chega a ser
irônico o fato de que, depois de ter pairado sobre ela o rótulo de escritora alienada de estilo
“mulherzinha”, A hora da estrela possa ser encarado como marco problematizador da representação da
voz do Outro no panorama literário brasileiro, colocando-se no olho do furacão dessa mesma tradição
interessada (AZEVEDO, 2007b, p. 82).

38
meio do outro” (FOSTER, 2014, p. 167). O que nas técnicas etnográficas seria se
utilizar de uma terceira pessoa próxima à primeira. Em literatura, o problema estaria no
discurso indireto livre (SARLO, 2007, p. 60).
Opto por pensar na expansão da noção de anfíbio, proposta por Santiago. A
partir dela, já podemos considerar mais de uma possibilidade de ciclo de vida, uma
mobilidade da experiência e uma conexão menos com a ideia de origem e mais com a
de movimento. As considerações desse autor interessam-me, sobretudo, por trazer as
noções de experiência como um atravessamento, um trânsito24. O trajeto que faz o
anfíbio, da água para a terra, já poderia apontar um caminho No entanto, você pode
estar se perguntando, leitor, quando falo em atravessamento, o que quero dizer com
isso? Proponho pensarmos pelos termos descritos por Gilles Deleuze em relação ao
perceptus e afectos.
O perceptus seria um “conjunto de percepções e sensações que se tornam
independentes de quem o sente”. Interessante pensarmos por essa via, pois poderemos, a
partir disso, falar da ausência do escritor naquilo que produz, tópico que já apareceu e
continuará aparecendo (DELEUZE, 2001). Então, poderíamos pensar que a experiência
literária atravessa esse sujeito encarnado, mas se desdobra, se refrata e continua
atravessando outros. Se o rosto é um porta-voz, como quer esse autor, e “uma gramática
comum nunca é separável de uma educação do rosto”, talvez pudéssemos pensar que
essa experiência que vem no bojo da literatura, da linguagem, está mesmo submetida ao
dispositivo do rosto. E se os rostos escolhem seus sujeitos, alguns leitores também
sejam atraídos e capturados por essa “máquina abstrata de rostidade” (DELEUZE,
GUATTARI, 1996, p. 38-45).
Mas, voltando ao escritor de literatura enquanto criador, parece que os perceptos
que o atravessam – e seguem em movimento, potencializando, indo além dele – cravam
nele afectus, pela passagem, pela ação do perceptus. Para Deleuze, não existe perceptus
sem afectos. E o afecto é o devir, o vir a ser. Para mim, o afecto é um vão de
possibilidades. O buraco negro, para usar o termo de Deleuze, do não saber, o
desconhecido.
Por isso, leitor, quando falo em atravessamento, falo em experiência, que cria
sensações e percepções e vão além de mim, constrói rostificações e desrostificações em

24
Na leitura de Denilson Lopes é possível estender essa noção enquanto uma “estratégia intelectual”.
Lopes se refere especificamente ao trânsito de Silviano Santiago entre crítico cultural e escritor (LOPES,
2012, p. 27).

39
outros, em mim mesma, ao mesmo tempo. E essa experiência me coloca numa condição
de vir a ser outras.
Assim, como coloca Sabrina Sedlmayer, em Quanto a mim, eu, retomando
Roland Barthes, trata-se mais da noção de um eu aberto e disforme, uma difração do eu,
em outros: “o eu não é só o mim. Muitas vezes é substituído pelo ele” (SEDLMAYER,
2004, p. 23). A crítica literária – que discorre mais detidamente a partir do trabalho de
Fernando Pessoa e Jorge Luís Borges – vai caminhar por essas poéticas que
desestabilizam o eu fixo e como as estratégias de duplicidade ou multiplicação abalam a
subjetividade estável.
O próprio Roland Barthes, de quem Sabrina Sedlmayer captura o título de seu
trabalho, quer abolir com imagem dual – o eu e o outro – do espelho. Por isso, reverte a
posição da pergunta. Ao invés de pensar na imagem produzida pelo espelho, se
pergunta: “como ressoam os raios do espelho sobre mim?”. (BARTHES: 2003, p.169).
O sujeito, assim, não corresponde à imagem do espelho, ele está no movimento de
difração, que pressupõe um atravessamento. Como uma luz branca que atravessa uma
gota d’água e se refrata em diferentes cores. Assim também surge essa outra noção de
subjetividade em espiral, sem ancoramentos na identidade, em que se perde de vista
começo e fim, dentro e fora, um eu e um outro.
Retomando a noção de anfíbio, outro caminho possível seria pensarmos numa
experiência literária com uma qualidade réptil, mais especificamente camaleônica.
Proponho isso pela leitura que faço do perspectivismo ameríndico de Eduardo Viveiros
de Castro, que, pela abertura de outro regime de pensamento, pela via da cosmologia
dos índios amazônicos, me apresenta uma outra noção de alteridade.
Muito coligada a uma ideia de antropofagia que permeia nossa literatura desde
sempre, mas tem seu ponto alto em Oswald de Andrade, retomarei mais à frente, a
alteridade no mundo ameríndio, que é anterior à identidade e está sob a égide da
transformação. Em outras palavras, seria pensar que “todo existente se define
exaustivamente como variante de um outro, de que toda forma é resultado de uma
metamorfose” (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p.159).
Talvez, por essa razão, Hal Foster, trazendo o artista para o âmbito da etnografia,
se pergunte como confrontar as estruturas binárias da alteridade. Isso faria com que
saíssemos um pouco da noção do “outro como contraponto do eu”, o que Foster chama
de um “outro-fora” (FOSTER, 2014, p. 166).
Por isso, estamos falando de algo que está além da identidade, já que ela se
funda numa noção fixa daqueles que são idênticos e diferentes, sendo que essas relações

40
não podem ser cambiadas. Na lição do perspectivismo ameríndio, pela via da
antropofagia, no entanto, tornar-se outros é assumir seus corpos, “encorporá-los”, já que
“o conceito de corpo ameríndio é um conceito não biológico, mas metamórfico”
(LIBRANDI-ROCHA, 2012, p.190). 25
O corpo é peça chave para entender essa noção de antropofagia, pois percebe o
mundo ao apropriar-se dele. Por esse motivo, o pensamento ameríndio difere-se do
ocidental: para o primeiro, o conhecer é ter a capacidade de ocupar um corpo outro,
refleto de afecções; para o segundo, o conhecimento é um ato de metamorfosear o
espírito (SZTUTMAN, 1999, p. 97).
Proponho pensarmos juntos que a experiência literária, seu devir, pode ser
entendida como a de alterar-se a si a partir de um jogo de espelhos. O outro aqui, não
importa se real ou ficcional, como Luíza Breu, personagem do Cabidela. Como no
desejo de mudar, na recusa em dizer quem é, que já vimos em Silviano Santiago, em
Michel Foucault, em Denilson Lopes, a experiência aqui é desdobrar-se em outros. E “o
mundo da ficção” também não seria “marcado pela metamorfose”? (Idem, ibidem).
Por isso, a autoria não se configura como uma categoria fixa, ancorada na minha
figura biológica, biográfica, por exemplo. E sim, uma autoria camaleônica. No âmbito
de uma tese de doutorado, ainda sobre a mesma questão, esse projeto assume o desejo
de "potencializar outras vivências" e não isolá-las, a partir dessa prática de
compartilhamento de minhas experiências em primeira pessoa, conjugadas a outras
vozes, num desejo de difração (LOPES, 2002, p. 188). A teoria, nesse contexto, surge
como um caminho em que acredito ser possível levantar perguntas, problematizar
questões, mas também chegar em alguns lugares. É uma pequena bússola. Certamente é
porque acredito em sua potência que estou aqui.
Não seria o caso, portanto, de parar de dizer ou de escrever menos, “diante da
compulsão do último século de falar de si, a aventura da invisibilidade, do silêncio”,
mas assumir um tempo de “viajar pelo desconhecido”, como provoca Denilson Lopes,
mesmo no paradigma de uma visibilidade extrema (LOPES, 2002, p.191). Escrever,
assim, assumindo um pensamento selvagem, “como algo que, se passa pela cabeça, não
nasce nem fica lá”, mas, ao contrário, move-se, da cabeça aos pés (VIVEIROS DE
CASTRO, 2012, p.157).

25
Sobre a recusa de pensarmos o corpo do ponto de vista biológico, para pensar numa performance de
gênero e uma perspectiva de um sujeito instável e variante, ver Buttler, 1994.

41
No acaso da movência do corpo, friso que o entendimento de minhas
experiências de literatura não vêm mesmo de um campo já codificado em termos
teóricos, na esfera do conhecido, mas é percorrer, mover-me pelo que não está dado. Ou
talvez, seguindo a imagem que propõe Giogio Agamben sobre o contemporâneo, a
questão aqui seja tatear no escuro o presente. Sem que a ausência de luz prive a visão,
mas implique uma ação, uma atividade, e o escuro desse tempo esteja em constante
interpelação (AGAMBEN, 2009, p. 64).
Quem sabe, por isso, seja tão difícil dar definições sobre as experiências que
venho realizando. E o desconhecido, no caso específico da mirada sob o meu próprio
trabalho, se põe na contingência da experiência, do constante vir a ser, do desejo de
mudar. Tomá-la como ponto de partida é mesmo um caminho rumo ao desconhecido,
pois não é possível ter controle da experiência e sempre se estará sob o risco de perder-
se. A própria experiência é o que efetiva a transformação, o que faz com que o sujeito
não seja mais o mesmo. Ela, ao mesmo tempo, revela e oculta, cria espaços de luz e de
sombras (LOPES, 2002, p.187). Do mesmo modo, a experiência da escrita, entendida
aqui, transcorre nesse tempo de alterar-se, de um sujeito incessantemente recriado.
Por isso, a opção por um caleidoscópio e seu campo aberto de possibilidades.
Giorgio Agamben, em seu texto “Il volto”, reflete sobre o rosto e sua exposição
enquanto lugar da verdade e, por conseguinte, de uma “simulação, de uma
impropriedade irredutível”, que constitui um campo de batalha da vida social planetária.
Ao mesmo tempo, para além de um lugar pela luta da aparência, parece mais
interessante, como quer o filósofo, que tomemos o rosto não como simulacro, mas
assumindo os “múltiplos semblantes que o constituem”, sem que nenhum seja mais
verdadeiro que os outros (AGAMBEN, 1996).
Seria imaturo afirmar que o caleidoscópio é um caminho para desdispositivar o
rosto, a escrita, a primeira pessoa. No entanto, assumo isso como tentativa, no sentido
de que, se toda exposição é um lugar político, como propõe Agamben, o caleidoscópio
me ajuda a criar novos semblantes para mim, novos olhares sobre a minha experiência,
sem que fique capturada, a priori, por um semblante inteiro que me pertença
essencialmente, que me identifique. Assim, posso criar mundos, ser outras que já fui,
que serei. Posso habitar, enfim, um campo aberto de possibilidade, que parece ser mais
coerente com o território da performance que estou tateando aqui.
Alerto, no entanto, que perder o rosto não é desencarnar, não ter corpo. Esse
nunca foi um caminho. Questionar o lugar de enunciação, as distinções entre sujeito e
objeto, corpo e mente, mas principalmente o sujeito abstrato, a escrita impessoal e as

42
certezas absolutas sempre estiveram nos primeiros impulsos desta pesquisa. Meu desejo,
desde o início, foi trazer o corpo para as discussões em literatura, inclusive na
especificação do lugar de onde se fala, isto é, pensando que a linguagem é parte da
experiência corporal.
Isso me leva a assumir-me enquanto sujeito aqui encarnado, com um “corpo
experiencial”, nas palavras de Denise Najmanovich, o que implica uma experiência
“que de nossa corporalidade não é fixa, nem imutável. Ao contrário, sentimos de
maneira ‘clara e distinta’ que estamos em permanente transformação: trata-se de estar
vivo” (NAJMANOVICH, 2001, p. 24).
O que traz o Cabidela, no entanto, é um corpo estilhaçado, reunido em suas
miudezas. Entra em cena um novo dispositivo, o corte, a edição. Um dispositivo
ficcional. O que ele tem a ver com o sujeito, o rosto, a primeira pessoa?
Gosto de pensar pela via do poema de João Cabral de Melo Neto, “uma faca só
lâmina”. Aproximar, assim, a experiência em literatura com a metáfora da faca
cabralina, nessa imagem em que estejam implicados, tanto o objeto do corte quanto o
sujeito dessa ação, sugere, para mim, uma espécie de síntese da noção de gesto que
venho discutindo, além do que chamo de ação da escrita e de escrita em ação (MELO
NETO: 1979, 131-145).
Essa faca que, ao cortar algo, também corta quem lhe maneja, uma vez que não
possui cabo e é toda laminada, pra mim é a metáfora da experiência de escrita literária,
vista aqui como performance. Essa ação que modifica o sujeito, que o faz sangrar, ao
mesmo tempo em que engendra um texto-sangria, ou coágulo, para usar as palavras de
Silviano Santiago (SANTIAGO, 2008, p. 244).
A faca-só-lâmina é os afectos e perceptos propostos por Deleuze. Quando
termino um texto, sou essa morta sendo autopsiada, como em um dos primeiros textos
de Cabidela, transcrito abaixo.
(...) Retiram amostras de sangue repetidas vezes, mas eles não encontram o
paradeiro dos laços invisíveis que envolvem a carne viva. O meu vermelho
canalha gargalha com o desespero dos bisturis estúpidos, mas o ajustado
soluça com a denúncia imbecil dos sintomas. O diagnóstico é uma multa de
policial corrupto dizendo que eu não posso ultrapassar a placa vermelha para
ficar perto dos multicoloridos. Minhas palavras passam, então, carregando

meus restos (CASTRO, 2011).


Ao mesmo tempo, sempre que releio um texto meu, me sinto viva ali, como se
eu tivesse feito alguma manobra e permanecesse ali de algum modo. Como se eu
também tivesse deixado marcas no texto como ele em mim. Fico pensando se reler não

43
é um cacoete de diários e blocos de notas. Que funcionam, afinal, como uma tentativa
de guardar o tempo, com um desejo de retornar sempre ao passado. Interessante
perceber que, na narativa acima, quem passa é a palavra. O corpo autopsiado fica ali, no
texto. Vermelho sangue, água, fluxo, os perceptos da releitura em voz alta me fazem
lembrar da fruição que tenho da música, o solfejo.
O texto acima foi escrito por volta de 2005, somando quase dez anos de
distância desse que engendro agora. Tem ali, percebo, um eco da estudante de gradução
em Letras, da leitura de A Ordem do Discurso, de Michel Foucault, do questionamento
da autoridade de fala da medicina (na figura da autópsia), do Estado (na do policial), do
androcentrismo (na imagem do corpo feminino violado). Mas muitas outras imagens
voltaram a aparecer no meu universo literário a partir daí como os laços, fios, recortes,
cicatrizes, bisturis.
No entanto, no presente dessa reflexão, na perspectiva de um caleidoscópio de
dispositivos, prefiro uma imagem de um corpo-prisma que de um corpo-cabidela,
morto, na mesa do necrotério, ou cozido no caldo de estilhaços. Se essa imagem do
Cabidela, assim, não é mais suficiente para dar conta do entendimento que proponho
aqui, recorro ao O Armarinho, blog que criei no tempo de curso desse doutorado e que
tem outra atualidade ao pensamento do agora.
Seria mais um punhado de páginas que escreveria se começasse a falar desse
novo trabalho, que já possui alguns desdobramentos impressos e experimentos
performáticos. Uma breve entrada no site, no entanto, já faria o leitor perceber que ali
há muito mais caleidoscópio do que qualquer outro trabalho meu. 26
Opto, pelo tempo, em trazer somente uma imagem que, relendo, me lembrou
bastante a cena de Luíza Breu que abre este capítulo. No marcador 27 “trampolim” , a
narradora se refere a uma personagem que lhe escapa, sempre fugindo da casa para
voltar ao mar, e colocar-se numa espécie de prancha-trampolim, de onde se atira
sucessivas vezes. Ela testa limites, tem hematomas, tem um temperamento seco e tem
uma amargura parecida com a de Breu. Ao invés de falar como a personagem do
Cabidela, ela não quer ouvir e grita, uiva, mas não diz uma só palavra.

26
www.oarmarinho.blogspot.com
27
O marcador é uma espécie de tag, de palavra-chave. No blog, o escritor pode optar por dar um ou mais
marcadores a um só texto. Depois, fica disponível para os leitores um link específico que agrupa todos os
textos com o marcador escolhido. Faço uso largamente disso n’OArmarinho, como uma pesquisa de
ordenamento.

44
Num pequeno fragmento, a narradora conta um episódio de quando ouviu um
grande estrondo, vindo da cozinha. Numa questão de segundos, muito rápida, ela
encontrou um caminho de açúcar por onde a personagem havia passado antes de pular a
janela da casa. Ela, então, corre atrás da personagem e a encontra agarrada ao
trampolim. É quando a outra a olha fundo e diz “você não vai conseguir me prender aí
dentro de você” (CASTRO, web).
A cena do trampolim retorna ao foco narrativo que escapa, move-se. E de uma
voz narrativa que se refrata, arrebatando a narradora, atravessando-a, num estrondo. O
corpo-prisma, portanto, nesse caso, é atravessado por um espectro de cores, que está de
passagem, mas modifica o sujeito. Um corpo vivo, em movimento, que escapa, pelo
devir.
O trampolim parece apontar um lugar de incerteza, de um corpo cambiante. Uma
fala proferida em cima de um trampolim talvez não seja possível em outro lugar. Assim,
a voz narrativa assumiria as feições dessa posição suspensa, na expectativa de um pulo,
de uma mudança proeminente de estado.28 Assim, o trampolim parece ser algo que está
na iminência. Ele dá um movimento ao corpo que pede que essa palavra dance também,
que seja gesto. Ela, assim, se irmana ao vento. A palavra ventilada, atravessada pelo
instante.
O afecto é, dessa forma, movente, embora numa experiência como o blog, por
exemplo, é muito comum que se leia aquilo como uma vontade de fixação de uma
verdade. O devir, contudo, me transborda, me execede a um rosto único. Não temos
mesmo um rosto, nem um corpo único. O rosto é sempre provisório. Estou aqui
imputada numa máquina, num dispositivo, que produz um rosto. E isso afeta, corta,
marca e deixa margem para pensarmos nos usos e materiais desses agenciamentos.
Continuemos.

28
Inevitável não me recordar da “posição delicada no espaço” ocupada pelo personagem de Sérgio
Sant’anna em “Um discurso sobre o método”, que, sentando na marquise de um alto edifício, no centro do
Rio de Janeiro, é acometido por um “espetáculo polifônico”, orquestrado pelo próprio narrador que o tece
no texto (SANT’ANNA, 1997, p. 394).

45
Take 5

É diferente, eu acho, de um texto que vai pra uma editora, fazem uma capa, aí me mandam
pra eu aprovar.
Sandro Ornellas, o entrevistador - É engraçado que, quando eu tava lendo o Borratório,
de Cabidela, eu tive a nítida impressão de que você tinha pensado os dois juntos, porque ali,
em particular, a metáfora da escrita como linha, como costura, em alguns momentos tá
metaforizada por um linha desenhada na página, em outros momentos é na própria
amarração do caderno, que tem uma linha vermelha. Eu pensei que isso tinha sido pensado
em conjunto. Eu até pensei em perguntar: se costurar se aproxima de escrever pra você e
vice-versa.
Laura - Hoje eu me vejo como uma escritora, mas eu me vejo também como uma editora.
Isso tem sido cada vez mais claro pra mim. Além de escrever, eu me edito. Eu edito os
meus livros. Sempre tem essa metáfora da edição. No Cabidela, tinha uma personagem, que
se chamava Edith, no segundo veio o Ed. Então, como editar os meus textos começou a ser
uma questão. Na verdade, eu comecei a entender, a me descobrir como escritora, quando eu
fiz um blog e comecei a organizar as coisas que eu escrevia. Porque eu sou uma escritora de
bloquinhos mesmo. De escrever diário, de escrever agenda, caderninho. A minha veia
literária veio muito desse tipo de escrita. Penso, logo registro, essa coisa que me atravessa e
tal. Então, eu acho que essa coisa da costura é justamente a edição. É a maneira como eu me
edito. Não sei se você sabe como eu editei o Cabidela. Eu tinha esse blog, o Cabidela, eu
ganhei um projeto da FUNARTE pra transformar num romance. Eu achava que ali tinha
uma narrativa já estabelecida que eu podia ir pro romance, que na minha cabeça tinha essa
estrutura, uma costura, um adensamento, uma linearidade, uma construção narrativa mais
assentada. Então, eu imprimi o blog todo, comprei um caderno de desenho e comecei a
recortar o blog inteiro. Aí fiz um volume, que foi o que virou o Breu, e depois sobraram

46
várias coisas pequenininhas. Eu falei... isso são escritos de bloquinho. O bloquinho que
migrou pro blog. Então, eu peguei várias folhas dessas que já estavam recortadas, algumas
que tinham picotes, daí costurei com a linha vermelha, que era a que eu tinha em casa, mas
que fez todo o sentido depois, enfim, e daí chamei de Borratório. Que era essa metáfora do
laboratório, mas um laboratório do borrão, da rasura, do rascunho, que era um pouco a
metáfora do blog pra mim. Hoje já é diferente. Na época em que eu escrevia muito em blog
não tinha facebook, as redes sociais e essa mobilidade da escrita. Essa coisa de escrever no
celular a qualquer tempo, a qualquer hora e publicar. Mas, ao mesmo tempo, o blog pra
mim era muito esse rascunho, esse diário virtual, essa possibilidade de publicar.

47
1.2. Em torno do gesto

As minhas reflexões em torno do blog se fizeram mais intensas justamente


quando tive que transpô-lo para uma publicação impressa. Me perguntava sempre como
levar para a fisicalidade dos papéis a pulsação que sentia na experiência do blog, a
autonomia que tinha o leitor de escolher o que queria ler, sem a imposição de uma
ordem, uma primeira página.
A partir daí, portanto, caminhei para uma pesquisa em torno de livros-objetos. O
livro-objeto, enquanto uma categoria de objeto de arte, geralmente apresenta formas e
funções diferentes daquelas do livro tradicional, como outras propostas para a sequência
das páginas. Explorando outras relações que não apenas a leitura do texto, pode-se
pensar que sua esfera de ação vai além disso. Como investe, muitas vezes, em outra
escala de mobilidade, dimensão e expansão, muitas vezes demanda não apenas as mãos,
mas todo corpo do leitor, “como algo vivo” (PANEK, 2010, p.17).
Pode ser chamado também de “livro de artista”, como se ele fosse um espaço de
exposição, o lugar de realização da obra. Nesse caso, geralmente não é reproduzido em
série, muitas vezes possui apenas um exemplar ou alguns numerados, vendidos a preços
exorbitantes, geralmente um grande objeto de feitiche.

48
Pra mim, o livro-objeto abriu a possibilidade de propor outras condições ao
livro, que aparentemente sua forma tradicional não me permitiam. Justamente essas que
a mim me pareciam “castrar” a pulsação do blog. Mas onde estaria a pulsação do blog?
Talvez esteja na incerteza. A qualquer momento pode acabar a energia, o
blogspot pode sair do ar, levando todo o arquivo de texto com ele, a conexão da Internet
pode cair, o texto pode atingir 1 ou 1.000 leitores em um dia. Habitar o contexto do
blog, criar nele, é viver sob uma espécie de incerteza. O livro é diferente. Tem uma
segurança maior nele, parece. Uma materialidade que dá uma espécie de estabilidade,
em certa medida. Assim como escrever em um caderno dá a sensação de que algo ficou
ali, guardado.
No entanto, o cursor piscando aqui no computador, à espera do texto, talvez
tome os ares de iminência de um trampolim. E ponha a escrita mais nessa condição de
risco. Talvez a vida não seja mais do que isso, “do que o ato da gente ficar no ar antes
de mergulhar”, como dizem os versos de “Trampolim”, canção de Maria Bethânia e
Caetano Veloso (BETHÂNIA, 1972).
Se o trampolim, nesse sentido, é a incerteza, me parece que publicar é a decisão.
Seja imprimindo no papel, seja apertando o botão de “publicar” do blog. Como bem
diria Antonio Cícero em seu poema “Guardar”, “melhor se guarda o voo de um pássaro”
do que “um pássaro sem voos”. Escrever, publicar, declarar seria um gesto de guardar
muito mais no que se expõe do que naquilo que se resguarda, esconde. Por isso, não
seria o caso de gavetas, armários, gaiolas. O poema guarda o que se quer guardar no
gesto de recolher as palavras ao mesmo tempo que as oferece29 (CÍCERO, 2006, p.11).
Se opto por ser mais específica, contudo, arriscaria dizer que a pulsação do blog
está na barra de rolagem. Esse recurso de mover o texto, pra cima e pra baixo, é o
dispositivo que dá ao leitor uma autonomia de leitura. Com ela se dança, com ela é
possível ignorar a primeira postagem e seguir errante blog afora. Uma experiência que
pode pedir “visão panorâmica, simultânea, focada ou apenas o movimento de um
chapadão de palavras rolando tela abaixo” (CASTRO, 2011).
A barra de rolagem, pelo empenho do gesto do leitor, faz o texto movente. Gosto
principalmente da aproximação com a liquidez, que certamente casa-se com essa noção
do texto como fluxo. É como se houvesse uma vida, portanto, no jorro desse texto, no

29
Leitura de Silviano Santiago na orelha do livro Guardar, de Antonio Cícero: “o gesto que recolhe as
palavrras é o mesmo que a oferece. Tudo se passa a dois e, por isso, a figura da recirpocidade domina o
universo amoroso da poesia” (CÍCERO, 2006).

49
movimento dessa barra de rolagem, tal qual sangue correndo nas veias. O blog aqui
sangra, se esvai. O que escorre pelas veias do texto, faz dele também vivo, quando
disparado o movimento da leitura, quando acionada a barra de rolagem pelo corpo que
clica no mouse ou rola a ponta dos dedos em
um tablet.
Dessa forma, a metáfora do Cabidela,
um prato típico de uma galinha esquartejada,
cozida no próprio sangue, é correspondente.
Assim como o bló contido na palavra blog
resguarda qualquer coisa desse fluxo, de um
regurgitar, algo que saiu da boca do estômago,
às vezes sem mesmo ter sido processado. A própria mídia, parece, dá movimento a essa
Cabidela, faz dela viva, a despeito da imagem da escritora morta, sendo autopsiada na
mesa de um necrotério.

Nesse sentido, na hora da edição me vieram tais questões: como ter um livro
vivo? Como criar condições, em sua própria materialidade, pra que a narrativa faça
parte desse acesso livre, despedaçado, ao livro?
O embaralhamento é um bom exemplo. Consciente de que a própria ferramenta
do blog embaralhava o tempo, uma vez que na medida em que o ia alimentando, o
último texto que escrevia, era agora o primeiro que ficaria disponível para o leitor, segui
essa operação como norteadora para a constituição dessa nova materialidade, no caso o
livro-objeto, que intitulei Cabidela: bloco-de-máscaras.
O livro-objeto era composto por um romance, um bloco de notas, duas máscaras
e cartas de baralho. Envolvidos por um elástico, não havia indicação de por onde
começar. No romance "Breu", nesse sentido, espelhei as capas e reordenei os textos de

50
modo que o leitor pudesse acessá-lo de qualquer um dos lados. Assim, não havia início
nem fim, havia dois começos e um final deságuava no outro. Dois clips dentro desse
volume guardavam ainda um baralho de cartas30 – para a sugestão de um jogo – e um
papel dobrado intitulado “última carta”.
O mover da máscara, por exemplo, nessa dinâmica de leitura, era também um
convite ao empenho do corpo na publicação, ao movimento. As máscaras, que
surgiram a partir dos recortes, deslocavam o texto do trajeto panorâmico, do excesso do
blog a uma forma mínima, do recorte, do fragmento. O leitor, com sua autonomia,
talvez passe a ser também um coautor.
Assim, como quer Umberto Eco, o dispositivo hipertextual permite inventar
novos textos, o que acaba por desestabilizar as divisões habituais entre autor e leitor
(ECO, 1998). O fluxo do texto na tela e a possibilidade que isso dá ao leitor de
embaralhar, de entrecruzar, entre outras ações, é, sem dúvida, como expõe Roger
Chartier, “uma revolução nas estruturas do suporte material do escrito assim como nas
maneiras de ler” (ROGER, 1998, p.13). Talvez por isso que o modo de produção digital
implica pensarmos na questão da materialidade.

30
Um dos capítulos do romance leva o título de “Carteado” e narra as peripécias de Luíza Breu, a
protagonista, a partir de um encontro com uma cartomante.

51
No meu segundo livro, Fio Condutor, o
livro era composto de uma espécie de
capa-zíper – que poderia ser toda
desfeita – e envolvia uma novela com
três partes: caligrafio, reedição e
decupagem.
O “caligrafio” era composto de um papel pardo, com uma gramatura encorpada,
onde um texto impresso era caligrafado. Gosto de pensar na caligrafia como uma
materialidade em que é cravado o rastro de um corpo. Como se, nas palavras de Omar
Salomão31, ela “mantivesse o texto quente”, pulsando ainda, portanto, na força que a
mão empreendeu ali (SALOMÃO, O.). Que é justamente o que quer essa parte da
novela, no desejo de “parágrafo único”, “frases longas que não pedem alinhavo”,
“digitando feito louca tudo que viesse à cabeça sem responsabilidade, sem narrativa. Só
vivendo” (CASTRO, 2013). A pulsação que rejeita o corte – embora ele seja inevitável
31
Omar Salomão é um escritor que, sem dúvida, me debruçaria mais, caso tivesse um tempo mais largo.
Encontro em sua obra, sobretudo no livro Impreciso, muitas conexões com aquilo que aqui chamei de
“experiências de performance em literatura”. Por isso, o aponto como um futuro desdobramento, dentro
dos meus interesses críticos. Além disso, é inegável a influência da performance poético-visual de Waly
Salomão, de quem Omar é filho.

52
– sem ponto final, o parágrafo que quer ser fio, correndo solto. Uma escrita contigente
que aparece a partir da centelha da vida, do agora, ser sendo na escrita se escrevendo.
Por isso, é tão importante, nesse sentido, entender a literatura como algo vivo na
experiência. Compreender, assim, um manuscrito, além de documento, de monumento,
como quer Louis Hay, também um acontecimento, que, “por um traço da mão, faz
surgir o movimento de um pensamento” (HAY, 2007, p.106).
A leitura da “reedição” – um texto impresso em serigrafia num tecido – pede um
desenrolar, do pedaço de pano que envolve as demais partes e vem preso por um
alfinete. Palavras nem sempre nítidas, texto que pode ser mais imagem que significado.

Debruço-me mais detidamente na “Decupagem”. Essa parte do livro, um


pequeno bloquinho de folhas de papel-jornal encadernadas com cola, chega às mãos do
leitor totalmente selada. Há cola nos dois lados, não sendo possível abrir a pequena
publicação. Assim, o leitor precisará cortar para ler. Ele vai, assim, empreender o gesto
de violar memórias da protagonista assim como Ed, o personagem da novela, o fez com
Marielena.

Esse pôr-se em risco me foi narrado com desconforto por muitos leitores.
Alguns sentiram angústia, outros lamentaram o rasgar do texto, muitos nem sequer
abriram, possivelmente não querendo profanar o livro desse jeito. Preferiram, mesmo
sem ler, tê-lo inteiro.

53
54
Como no “Borratório” de Cabidela, que era um bloquinho e convidava o leitor a
escrever, se riscar ali, “Decupagem” foi numa direção mais drástica de participação do
outro que lê, na materialidade da narrativa. Não é difícil perceber que há um convite ao
gesto aqui na proposta dessas publicações.
No entanto, como pensar em torno do gesto na experiência do escritor?
Certamente que há muitas possibilidades de resposta a essa pergunta. Neste capítulo
especificamente, no entanto, já que estou falando de dispositivo, flagro meu gesto
literário justamente nessas operações de edição32.
Se câmeras cortam rostos, com seus close-ups, estilhaçam a realidade a partir de
seus enquadramentos, o que fazem as janelas de computadores e suas barras de
rolagem? A edição que faço é entendida aqui justamente como corte, que, por sua vez,
deixa marcas na materialidade, no corpo do texto.
Entendo gesto33, pelo que propõe Giorgio Agamben, como “a exibição de uma
medialidade, o tornar visível um meio com tal” (AGAMBEN, 2008, p.13). No buraco
32
O campo da edição também é vasto e poderia ser abordado por muitas direções. Aqui entraria,
possivelmente, uma discussão em torno do mercado editorial e a asenção do autor como seu próprio
editor, naquilo chamam de selfpublishing. O escritor ganha outro tipo de autonomia ao mesmo tempo em
que ganha outras funções, como se autoproduzir e promover seu trabalho. Certamente poderia cruzar esse
caminho também com a questão da performance e como muitos escritores contemporâneos da cena
independente usam da via do corpo e da rostidade para enfrentar esse novo paradgima. Pares
contemporâneos à minha experiência e ao meu campo de troca, poderia citar, por exemplo, o trabalho de
Berimba Jesus e as Edições Maloqueristas; Daniel Minchoni e o selo do Burro; Thiago Barbalho e as
edições vira-lata; Gabriel Pardal e o site Ornitorrinco. Meu caminho pela edição, no entanto, foi mais pela
via da materialidade – e que no que isso tem de corpo e performance – e foi por aí que trilhei o caminho
desta tese. Para uma leitura sobre novas configurações do autor na era digital ver Costa, 2014.
33
Neste capítulo interessa pensar como a noção de gesto está intimamente ligada à materialidade que
assumem as narrativas – o livro-objeto, o blog e outras possibilidades – e como isso se reverte numa
matéria viva, que pulsa o corpo do escritor, que é também seu próprio editor. Por isso, peço paciência à
leitora para, mais à frente, esmiuçar essa noção de gesto, que será feito, mais especificamente, em torno
da questão do autor como gesto e da obra de Lygia Clark.

55
desse caleidoscópio, interessa-me agora menos o que se vê, mais como ele se
movimenta. Se o gesto exibe o meio, interessa pensar como os gestos se encarnam
nessas materialidades. Além do corpo, claro, que também estaria submetido a esses
dispositivos que, por seus diferentes meios, do computador ao lápis, da máquina de
escrever a um telefone celular, são responsáveis por uma especificidade da experiência
de escrita.
O corpo move-se diferente de acordo com cada meio. Compor numa máquina de
escrever, num quarto fechado será, sempre, diferente de escrever de próprio punho num
caderno de notas, ou digitar uma postagem num blog ou fazer versos improvisados em
plena praça pública.
O que difere, sem dúvida, é uma questão de diferentes tempos e espaços, mas
principalmente como cada materialidade captura o gesto literário nela empenhado, que,
por sua vez, demanda um corpo de acordo com cada material e situação. Um corpo
sentado na cadeira da sala de estar não é o mesmo que um corpo grafitando, em letras
garrafais, um poema em um muro de uma grande cidade. No entanto, ambos os gestos
podem ser experiências em literatura.
Por isso, nas experiências que aqui reúno, opto por pensar como as

materialidades encarnam essas experiências literárias. Não tomando o aspecto


material apenas como suporte para uma narrativa e, sim, que a narrativa é também a sua
materialidade. Seria, portanto, tomar o livro, a voz, o quadro enquanto matéria, corpo,
sem distinções bem delineadas que diferencie a obra do objeto e do sujeito que a
produziu. Se pensarmos, por exemplo, que o livro, sobretudo nas artes visuais e seus
empréstimos da arquitetura, já é pensado em termos de espaço, onde se criam
arquiteturas34, por que não pensá-lo, também, enquanto corpo que performa?
Amplio essa discussão, por hora, no eco de uma pergunta que João Cezar de Castro
Rocha faz no ensaio “Literatura ou Narrativa? – Representações (materiais) da
narrativa”. Coloco-me à parte de pensar em chamamentos mais adequados ao nosso
tempo, uma “concepção renovada de literatura”, como quer o ensaista, – se literatura,
poesia ou narrativa – e suas distinções, discussões que, nesse momento, para esta tese,
não me parecem produtivas. Recorto mais especificamente o problema que traz o crítico
carioca da associação automática da literatura à tecnologia da imprensa.

34
Entre muitas possibilidades, para pensar no livro como espaço, como arquitetura, sugiro ver os
seguintes trabalhos: Edith Derdyk, Deslize (2010). Waltércio Caldas, Figura (1998) e Momento de
Fronteira (1999); Tunga, Barroco de Lírios (1997) e Ana Maria Maiolino, Ponto a Ponto (1976) e
Trajetória (1976).

56
O crítico, então, se pergunta: “como compreender uma experiência literária cujo
veículo principal de transmissão seja o corpo e não a página impressa?” (ROCHA,
2003, p.51). O crítico, assim, aponta como a constituição da definição de literatura, no
Ocidente, se dá a partir da cultura escrita, sobretudo aquela que se abriga no suporte do
livro. Alerta, no entanto, que, na Idade Média, por exemplo, antes de termos um leitor,
solitário, na experiência moderna da leitura silenciosa, ao invés disso, na tradição dos
trovadores, destaca-se a recepção coletiva de um grupo de ouvinte, em torno de um
narrador oral.
Além das trovas medievais, podemos pensar essa questão também a partir do
teatro grego na Antiguidade Clássica. Segundo Braunstein e Pépin (1999), no volume O
lugar de corpo na cultura ocidental, para os gregos, o dizer é indissociável do fazer. O
texto literário, assim, era destinado à produção oral e comunitária. Como aponta Roger
Chartier, “o sentido do texto dependia inteiramente de sua eficiência ritual”, o texto
necessariamente teria que ser atravessado por um corpo. Além disso, nesse paradigma
de uma “poesia fundamentalmente associada à performance”, a figura do autor e a ideia
de autoria também aqui não são nítidas, tendo em vista a crença de que muitos poetas e
oradores eram insuflados por musas e deuses, como o texto das odes, por exemplo, que,
segundo Chartier, “não podia ser posto por escrito nem repetido”, posto que era “um
momento de arrebatamento, era mistério, evento” (CHARTIER, 2002, p. 20-30). Isso
sem falar no espaço de improvisação como um elemento constitutivo para a composição
poética.
Essas questões sempre retornaram no meu trajeto de perguntas durante esta
pesquisa, sobretudo pelo fato de ter me deslocado de área e ter ido realizar este
doutorado em um Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas. A lição que é possível
tirar daqui reaparecerá em teóricos mais contemporâneos, como J.L. Austin, em How to
do things with words35 e na noção de acontecimento e escritura de Jacques Derrida,
leituras que retomarei mais à frente. Por hora, me interessa notar como a literatura na
Antiguidade Clássica estava intensamente ligada à oralidade e que, com isso, teríamos
já imbricamentos entre literatura e performance36. No entanto, me parece que o
surgimento da imprensa e a disseminação da prática de leitura, mas também a separação
clássica entre corpo e mente, a negação da escrita e da leitura como experiência

35
Refiro-me, especificamente, na pesquisa de Austin sobre os atos de fala e os enunciados performativos
e constatativos, “quando dizer é fazer”. Ver Austin, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1990.
36
Aqui ainda não é nítido o que estou chamando de performance. Irei me debruçar longamente sobre o
termo no próximo capítulo. Nessa frase, no entanto, refiro-me à performance enquanto ação, tentando
tirar a literatura de uma concepção estática, sem o empenho do corpo no que diz respeito a sua criação.

57
corpórea, configuram-se como dispositivos que afastaram o entendimento da literatura
enquanto prática performática, enquanto acontecimento (GREINER, 2005, p. 17).
Retornando às questões trazidas por Castro Rocha, os tipos impressos tendem a
excluir o corpo? Pauso para responder, formulando uma nova questão. Como não ser
capturado pela ideia de que no texto não há carne, não há rastro de um corpo?
Quando se fala, no texto, na era das novas mídias digitais, percebo certa
tendência a achar que é tudo muito diferente de outras formas de escrita. Ou então
acontece uma espécie de nostalgia em relação ao passado. Roger Chartier, por exemplo,
em A Aventura do Livro: do Leitor ao Navegador, discorre sobre o uso da pena,
segundo ele, diretamente ligada aos “gestos corporais” daquele que escreve. No entanto,
sobre o que ele chama de “texto eletrônico”, diz que, tanto no computador quanto na
máquina de escrever, se “instaura um afastamento entre o autor e seu texto”, num
sentido físico e corporal (CHARTIER, 1998, p.16).
Discordo veementemente de posturas como essa. Não acredito que o corpo
esteja afastado de uma ou outra mídia, e sim imputado de formas diferentes. Tanto o
gesto de digitar, os autorretratos (as famosas “selfies”), as possibilidades de gravação de
áudio, de webcâmeras e registros em tempo real, entre tantas outras possibilidades, me
levam a pensar em como o corpo do escritor “se imprime”, de alguma maneira, a partir
dessas tecnologias. O facebook, por exemplo, uma espécie de livro das caras, para mim,
é como uma máquina que engendra rostos, perfis, máscaras.
Em 2011, antes de lançar o Cabidela:bloco-de-máscaras, Laura Pacheco,
performer e artista de dança, moradora de Salvador, na época, levou um trecho 37 dessa
narrativa para a performance-instalação Desplante38. Trago essa transposição porque
me ajuda a pensar tanto na pergunta de Castro Rocha quanto na discordância com
Chartier.
Pacheco fazia uso do texto sem vocalizá-lo, mas digitando-o, sendo que o
mesmo era filmado e projetado em tempo real, e o público era capaz de acompanhar seu

37
O trecho em questão: “Deixei de lado os pretéritos e escolhi voltar ao presente para falar do passado,
para coreografar a grande roda. Cato algumas tachinhas de ferro e perfuro o bloco na tentativa de grafar
um trajeto. Escurece e não posso mais ler minhas anotações. No entanto, a única luz, a da tela, ilumina
meu rosto tal qual um holofote e não abro mão deste prazer por nenhuma letra ou item sequer que me
guie. Vou assim, tateando as teclas e formando palavras no breu, só guiada pela cena que eu mesma
indico aqui, no instante-já e neste feixe de luz que me põe no palco. Recorro ao monólogo para lembrar-
lhes como cheguei aqui. Preciso do ato, da narração em ato para organizar essa montanha de post-its que
agora estão escuros na mesa.
Começo pelo retorno, mas levanto um pouco para deitar-me e relembrar a partida. É domingo e nada é tão
veloz assim num domingo” (CASTRO, 2011).
38
Apresentada, pela primeira vez, no Museu de Arte Moderna da Bahia, em janeiro de 2001 , a
performance-instalação propunha traduções contemporâneas do flamenco, pesquisa coordenada por Laura
Pacheco em coautoria com Isaura Tupiniquim, Tiago Ribeiro, Caca Fonseca e Pedro Brito.

58
action writting – tanto a ação de digitar quanto a escrita em movimento. O trecho, dessa
forma, era atualizado pela presença viva da performer e de seu movimento. Ao mesmo
tempo, minha impressão era de que o próprio tom da escrita do texto já tinha uma
espécie de “escrita em ação” e que parecia haver uma conexão estreita com o que estava
sendo posto em cena no tocante daquela escrita-flamenca39 de Laura Pacheco.
Pensamos, eu e Laura, na possibilidade de uma escrita flamenca, no teclado de um

computador, quando escrita deságua em golpes, performa explosões. E vice-versa: num

flamenco que se faz escrito, opera explosões no teclado.


Simultaneamente, ao seu bailado de mãos, acompanhamos a escrita da

balaiora se fazendo em tempo real , formando palavras, encadeadas pelo ritmo dos
sons de teclas. Era mais ação do que qualquer narrativa que ali se engendrasse . Ela se

fazia enviesada e era ilegível a qualquer hora, se a explosão do flamenco invadisse a


tela, espacializada numa escala triplamente maior que a de costume e cometesse

palavras-movimento como d3ssloco, ddesplante, louf ye, in \


leifco. Rastros de movimento que se entranham nas palavras e as dissuadem de um
significado, de um vocábulo nítido, como se prescindisse de sentido. Um corpo em
movimento que consegue fissurar uma possível separação entre os tipos de um
computador, chamando a atenção para a própria palavra, que pode ser atravessada e
marcada, em sua materialidade, pelo gesto e pelo mover-se de quem a escreveu.

39
A partir de um novo encontro, em Madrid, em torno do Desplante, Laura e eu escrevemos, juntas, o
texto, ainda inédito, intitulado “Estudo das explosões: uma escrita flamenca, um flamenco escrito”. Inclui
nos apêndices porque meu encontro com Laura Pacheco foi, sem dúvida, decisivo para pensar o que aqui
chamo de ação da escrita e escrita em ação. Nesse texto fica mais claro aquilo que chamei de “escrita-
flamenca”.

59
De tanto pensar no corte, o meu segundo livro foi guiado por uma narrativa
atravessada por essa metáfora. Uma novela que se desenrola a partir da história da
protagonista-narradora, Marielena, que recorre a Ed, um editor de imagens, para editar
suas memórias.
Hoje entendo o Fio Condutor como um livro sobre o amor. Há nele uma
motivação da experiência vivencial que se dá a partir do contato com os “fios do
mundo”, por onde vamos “tecendo territórios, nos tecendo” (ROLNIK, 1996a, p. 284).

60
Minha pesquisa40, assim, em torno desse mote, caminhou nas noções de emaranhamento
e fragmentação, sendo que a metáfora do fio emergiu, a um só tempo, com outros
significados: ligações e separações, rupturas e emendas, cortes e suturas.

A partir disso, fui criando objetos, dando materialidade a essa narrativa, como
bordar suturas em panos, por exemplo. Nesse trabalho, ainda, o texto se desdobrou em
invenções e engenhocas de leitura feitas de objetos de medir, serpentinas, linhas,
alfinetes, peças de dominó, fios de orelhão, extensões e máquinas de editar.
Para além do livro, eles assumiram um formato de instalação 41, intitulada “Ilha
de Ed”, onde o leitor podia adentrar, pela via dessas materialidades, o universo narrativo
do enredo e seus personagens, tanto pela manipulação quanto pela dramaturgia desses
objetos. Certamente aqui ficou claro que a minha pesquisa artística girava em torno das
possibilidades materiais da palalvra42.
O fio tornou-se metáfora potente da própria experiência em literatura. Se a
edição é um corte, a escrita se dá em um gesto de costura. Uma máquina de fiar. Na
40
Um pouco do resgistro dessa experiência criativa está no blog
www.fragmentosdeumfiocondutor.blogspot.com.
41
A instalação foi concebida a partir da minha relação com um grupo de artistas, Caca Fonseca, que
trabalhou comigo na edição do Cabidela, juntamente com Clara Pignaton, Flávio Oliveira, Pedro Britto e
Tiago Ribeiro, que transitam em diversas áreas, do grafite à intervenção urbana. Sem dúvida que
mereceria um ensaio à parte contar como essa criação se deu a partir desse processo colaborativo. No
entanto, penso que cruzar processos criativos e criação colaborativa, nesse momento, levantaria questões
que não interessam especificamente a essa pesquisa. Fica como um possível desdobramento.
42
Sobre as possibilidades materialidades da palavra, destaco o trabalho concebido por Bia Lessa, no
Museu da Língua Portuguesa, em 2006, quando transpôs todo o romance de João Guimarães Rosa,
Grande Sertão: Veredas, para uma instalação que se fazia por diversos percursos e materiais.

61
imagem dos fios, emergem sujeito e mundo, em relação, como se “o dispostivo, antes
de tudo” fosse “uma máquina que produz subjetivações” (AGAMBEN, 2009, p. 46).
Penso essa questão, primeiro a partir do trabalho “Por um fio”, de Anna Maria
Maiolino, datado de 1976, que a artista intitula, entre outros, na categoria de
fotopoemação. Na imagem, a artista segura, pela boca, um fio, que se espraia para
outras bocas: a de sua mãe e a de sua filha.

Com o fio, a artista talvez dê visibilidade ao invisível campo de forças e afetos


contidos ali no parentesco de mãe, filha e mãe-avó. Num devir aranha, que tece

relações, constrói-se, na fotografia, a imagem da germin ação, quando a vida vinga e o


tempo modifica rostos, torna-se aí visível em sua passagem.
Maiolino faz uso, em toda sua obra, de fios e ovos como materialidades que
encarnam uma “vida afora”. Em In-out (Antropofagia), um filme em super-oito, a
artista filma sua boca movendo-se a partir de diferentes materiais. Fios entram e saem
da boca, um ovo aparece parte dentro, parte fora. Esses fios que entram e saem, para
mim, remontam o movimento da vida em germinação, como se Maiolino dedicasse seu
trabalho a uma espécie de reinvenção da existência, exposta em muitos desses trabalhos.
Há também um recorrente uso do gesto de cortar, rasgar e de suturar. Para Paulo
Venâncio Filho, essa coexistência entre o romper e o religar, separar e reunir, põe
Maiolino “dividida entre a delicadeza da matéria e a agressividade do gesto”, revelando
índices de uma “identidade oscilante, dividida, migratória, inquieta” (VENÂNCIO
FILHO, 2006, p.19).

62
O In-out (Antropofagia) é um trabalho de 1973, mesmo ano da Baba
Antropofágica, de Lygia Clark, artista cujas proposições foram indispensáveis para a
elaboração desta tese e que irá, volta e meia, reaparecer neste caminho. Nessa proposta
de ação clarkiana, carretéis de máquina de costura são colocados na boca. Parte das
pessoas vão puxando essas linhas molhadas de saliva e envolvendo um dos membros de
um grupo, como na imagem abaixo. Elas fazem isso até esvaziar o carretel. Em seguida,
começam a esgarçar a trama que cobre agora o corpo de quem está deitado até que a
trama-teia se desfaz completamente. O grupo, então, se reúne para compartilhar a
experiência verbalmente.

Suely Rolnik, talvez a maior estudiosa de Clark, no Brasil, produz um relato a


partir de sua participação em uma experiência da Baba Antropofágica, numa
preparação para a retrospectiva da artista na 22ª Bienal de São Paulo. A crítica ressalta
seu estado de inquietação, do seu pavor incial e do desconhecimento “do que pode vir a
se passar”, na constituição desse ser emaranhado, a partir do fluxo da baba; conta que

63
“diluiu-se”, naquilo que se desfaz e se refaz: “plasmou-se um novo corpo, um novo
rosto, um novo eu” (ROLNIK, 1998, p.1).
Assim, “um feixe desconhecido de sensações foi germinado”, numa forma nova,
anteriormente não conhecida. O plasmar-se aqui, portanto, é deixar-se descosturar e
costurar, “pelo fervilhar do trabalho das forças/fluxos” (Idem, p. 3/6). Se já falamos de
pensamento selvagem no item anterior, não é possível que não deixemos de falar sobre
a antropofagia, ainda mais com tantas referências a ela. Inclusive porque a antropofagia
está intimamente ligada à questão da alteridade.
Segundo Rolnik, Lygia nos propõe um “modo antropofágico de subjetivação”,
isto é, o humano, lançado no devir, renasce outro a partir dessa devoração. Ele se
modifica, se altera. A crítica encontra tanto no trabalho de Lygia Clark quanto de Anna
Maria Maiolino, a presença de uma noção de antropofagia. Esta, entendida como uma
forma de produção de subjetividade, caracterizada pela inexistência de uma
identificação absoluta e estável e, principalmente, com grande flexibilidade de
experimentação e improvisação na criação de novos territórios. Dessa forma, num
plano ético, a opção pela antropofagia oferece uma liberdade de “criar sentidos para as
mutações da sensibilidade provocadas pela presença viva do outro, mutações invisíveis,
mas não menos reais”. O entendimento de alteridade, importante saber, nesse ponto de
vista, não pode ser destituído da realidade corporal e interessa muito pensar como “o
pulsar do outro consegue tensionar o mapa de representações vigentes” (ROLNIK,
2006, p. 3-4).
Penso agora num devir-aranha, que tece uma teia com esses fios líquidos que se
solidificam a partir de um contato com o ar. Opto por pensar em como esse modo de
subjetivação é encarnado em uma materialidade específica, na fisicalidade das
narrativas e o que ela propõe para o leitor enquanto experiência. Se a escrita é fiar-se,
estamos sempre sujeitos a rasgos. Basta estar vivo.

64
No Fio Condutor, a metáfora do corte e da edição tomam corpo no livro-objeto.
Como já foi dito, para lê-lo, é necessário empreender várias ações de cortes, aberturas e
fechamentos. A leitura, assim, convoca, necessariamente, um gesto de ação
empreendido na materialidade do livro. A primeira delas é a de abrir um zíper-capa que
o envolve, sendo que a investida do gesto, até o fim, pode levar a uma total abertura
dessa capa, provocando um desaparecimento dela enquando tal.

Nela, há o que chamei de epígrafe-fio, um trecho do conto “Amor”, de Clarice


Lispector: “a rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido”
(LISPECTOR, 1974, p. 24). Vejamos como, depois de passarmos por Maiolino e Clark,
temos outro aspecto do fio engendrado nesse texto que Lispector publica na mesma
época dos trabalhos das outras artistas. Pensemos, portanto, na “reverberação nas
subjetividades que respiram o mesmo ar do tempo que tais produções vão abrindo
possíveis na existência individual e coletiva” (ROLNIK, 2006, p. 4, grifo meu).
O conto, em questão, inicia-se com uma imagem de fio. A protagonista deposita
no colo um volume: um novo saco de tricô, que ela mesmo tecera, ali deformado pelas
compras que acabara de fazer. Aí, então, o bonde entra em movimento. A partir desse
mover-se, vamos acompanhando os pensamentos de Ana, a protagonista: os filhos, o
apartamento novo, pequenos momentos do cotidiano, a água enchendo o tanque, o canto
inoportuno das empregadas, a relação com as plantas, suas sessões de costura.
Diferente do desejo de mudar, Ana prefere “a raiz firme das coisas” (Idem, p.
22). Até que o inesperado acontece. O bonde dá uma arrancada súbita e o saco de tricô
cai no chão. Ana grita, pálida, imóvel. Os ovos, dentro do volume, se quebram. As
gemas pingam entre os fios. O embrulho é jogado fora e o bonde retorna ao movimento.
A rede, antes íntima quando no momento da costura, é agora áspera e sem sentido. Estar

65
no bonde era estar partida, como aqueles ovos. Faz-se em Ana, então, um mal-estar, em
que tudo agora é periclitante.
No conto, a própria vida é periclitante, sobretudo quando o contigente se faz,
quando o inesperado acontece. Ser abatido pelo mundo dá essa sensação de partir-se,
embora as costuras, o fogão novo continuem lá, o marido e as crianças vão voltar a casa,
“afastando-a do perigo de viver” (Idem, p. 31).
Aquilo que está partido, no conto “Amor”, de Clarice Lispector, parece ser
proveniente da experiência de contato com o mundo. É ser atravessado por ele e, por
isso, partir-se. Expandindo as bordas de “seu destino de mulher” de classe média,
fechada no cotidiano doméstico, na casa – que é o prolongamento de seu corpo e não o
contrário – a personagem evita, toma cuidado com as “horas instáveis”.
Quando o bonde subitamente dá uma arrancada e quebra os ovos, Ana depara-se
com o não saber o que fazer, com o estranhamento do mundo, que se torna um mal-
estar. Isso porque a linearidade e a previsibilidade da rotina lhe escaparam. Houve um
corte, uma interrupção abrupta disso.
Por isso, estar no bonde era um fio partido. De repente, sua vida é um grande
incômodo, e o mundo se mostra perecível. Ana tem medo dessa deriva, mesmo
sentindo-a como uma potência de liberdade quando olha para as pessoas fora do bonde,
nas ruas: “por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam
para onde ir” (LISPECTOR, 1974, p. 25).
A personagem, então, a partir do incômodo provocado pelo movimento, se
agarra ao banco do bonde, com medo de cair. Fixa-se, então, para evitar explosões. “Ela
apaziguara tão bem a vida, cuidando tanto para que ela não explodisse”, que de repente,
quando isso acontece, passa a ser um espanto (Idem, p. 25).
O medo de perder-se, de fato, acontece, quando a personagem se dá conta de que
passara de seu ponto de descida do bonde. Susto, desorientação. Ana faz deambulações
no Jardim Botânico e, quando volta pra casa, é agora a vez de estranhar aquela vida:
“por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente
louco de viver” (Idem, p.28). Mas, logo a personagem religa seus fios, tece novamente a
rede segura que a sustenta. “Felizes em não discordar”, seguem a rotina prevista. Ana,
no entanto, assume um rosto estranho depois da experiência. Apaziguado agora pela
mão do marido que a afasta, novamente, “do perigo de viver” (Idem, p. 31).
Encontro nesse conto a qualidade que Rolnik atribui a Baba Antropofágica,
enquanto “uma experiência de desestabilização” da subjetividade. A personagem
principal encarna essa “suposta estabilidade de uma imagem de si e do mundo”, “sem

66
que nada saia do lugar e tudo se conserve e se reproduza” (ROLNIK, 2006, p.1). Como
descreve a crítica, em seu relato de experiência com a baba, de estranhar a si própria:
“algo em mim deixara de fazer sentido” (Idem, p.3).
Vimos aqui materialidades diferentes de um mesmo fio. Na sugestão de “Laços
de Família”, temos uma espécie de nó, que, embora possa ser facilmente dissolvido, tem
certa permanência, estabilidade, liga uma ponta à outra. Carrega consigo, portanto, uma
metáfora de união, uma imagem segura para uma família que, já nessa época, se vê
ameaçada pelo perigo de se desfazer.
O fio condutor contrapõe-se ao laço e traz mais a ideia de movimento. Algo que
talvez esteja próximo da noção de devir, que se desenrola com a vida. Assim, se o vir a
ser se inscreve no âmbito do desconhecido, ele se caracteriza, muito mais, pelo
inesperado. Como uma linha que se desprega do carretel, assim também seria a noção
dessa escrita que aqui tateio.
Há ainda a imagem do emaranhado da baba antropofágica, quando esse fio
ganha um volume espesso. Sem nenhuma linearidade, somos capazes de nos perder no
nó. Isso porque o emaranhado impede, de certa forma, a possibilidade de restituir o fio
ao que era antes. A quantidade de nós, de enroscamentos, faz como o que sujeito refaça-
se, me parece. Ainda que ele tenha que cortar o fio para livrar-se do casulo que se
formou em torno dele, uma coisa é certa: não é possível voltar atrás. Talvez essa
imagem diga mais das experiências de performance com as quais estou trabalhando.
Em todas as imagens, no entanto, é possível perceber o empenho de um gesto no
fio. Ele me interessa mais. Antes do texto, do rosto do autor, meu enfoque será
justamente do gesto de escrita, isso que chamo de a ação da escrita e a escrita em ação.
Perceber como isso se dá na materialidade de diferentes experiências em literatura é o
desafio que assumem as páginas seguintes. Sigamos.

67
68
O POETA (por trás de uma rua minada de seu rosto andar perdido nela)
- Só quisera trazer pra meu canto o que pode ser carregado como papel pelo vento

(...)

CHICO MIRANDA (na Rua do Ouvidor)


- O poeta é promíscuo dos bichos, dos vegetais, das pedras. Sua gramática se apoia em
contaminações sintáticas. Ele está contaminado de pássaros, de árvores, de rãs

69
Manoel de Barros, em "A Máquina de Chilrear e seu uso doméstico",
na Gramática Expositiva do Chão

70
A ação da escrita e a escrita em ação

71
O caráter destrutivo não vê nada de duradouro. Mas, por isso
mesmo, vê caminhos por toda a parte. Mesmo onde os demais
esbarram em muros ou montanhas, ele vê um caminho. Mas
porque vê caminhos por toda a parte, também tem que abrir
caminhos por toda a parte. Nem sempre com força brutal, às
vezes, com força refinada. Como vê caminhos por toda a parte,
ele próprio se encontra sempre numa encruzilhada. Nenhum
momento pode saber o que trará o próximo. Transforma o
existente em ruínas, não pelas ruínas em si, mas pelo caminho
que passa através delas.

Walter Benjamin em “O Caráter Destrutivo”

72
2.1.

Um trajeto, muitos caminhos

Tanto o entendimento do termo performance, quanto uma clara e objetiva definição


sobre as práticas artísticas que se abrigam sob a alcunha de Arte da Performance são
nebulosos, porque não possuem uma clara acepção. Surgem num contexto de ciência no
último terço do século XX, quando cai por terra a “vontade de verdade”, com as
contribuições de Nietzsche até os pós-estruturalistas (NIETZSCHE, 1998).
Ao mesmo tempo, as vanguardas, sobretudo o futurismo e o dadaísmo,
contribuíram para criar um ambiente propício às primeiras experiências e estudos sobre
a performance, quando explodem os limites e as convenções da arte estabelecida,
surgindo novas propostas desde a arte conceitual, passando pelo minimalismo até o
happening. Os Estudos de Performance fazem empréstimos e alargam suas pesquisas
por uma grande variedade de disciplinas, das ciências sociais à psicanálise, bebendo na
etnologia, nas ciências da comunicação, entre outras, ultrapassando, inclusive, o
domínio das artes (SCHECHENER, 2003; FERAL, 2009).
Assim, a possível busca de um conceito cristalino do gênero inicialmente já nos
coloca essa problemática: há muitas origens apontadas para performance, mas as
múltiplas experiências que ganharam essa alcunha não convergem para um tronco

73
comum, com características consonantes, estáveis e sedimentadas. Referência para os
estudos na área, por exemplo, A Arte da Performance, de Jorge Glusberg, é aberta
justamente com uma citação de Jocken Gerz pontuando que performance é aquilo que
não foi nomeado, que carece de uma tradição, que não tem lugar nas instituições
(GLUSBERG, 2005).
Embora progressivamente tenham surgido manuais cujo tema principal fosse a
performance, RoseLee Goldberg, no volumoso A Arte da Performance: do futurismo
ao presente, ressalta a antiga dificuldade de situá-la na História da Arte. Mais do que
isso, chama a atenção para o fato de ela ser um lugar de impasse, um esgotamento de
velhas categorias, um caminho para novas direções (GOLDBERG, 2012, p. 8).
Goldberg, por exemplo, é muitas vezes apontada como uma teórica
eminentemente ligada às práticas cênicas, no seu esforço de engendrar uma gênese à
performance. Ao invés disso, publicações como OUT OF ACTIONS, performance
and the object 1949-1979, caminham por direções em torno do action panting e outros
movimentos mais ligados às artes visuais – alguns deles percorrerei a seguir – como o
grande foco para traçar uma genealogia do gênero (SCHIMMEL, 1998).
Esses dois caminhos teóricos, no entanto, são associados a movimentos
artísticos. Outros acessos possíveis, contudo, propõem-se pensar na performance sob a
perspectiva do ritual. Assim, trabalhos como o de Thomas McEvilley, em Stages of
energy: performance and ground zero?, tateiam derivações do termo a partir de
experimentações ligadas às práticas medicinais e experimentais como a dos xamãs e
iogues (McEVILLEY, 1998).
Nessas linhagens historigráficas, há fatores comuns como o corpo como tema e
matéria, a investigação dos limites entre arte e não arte, a desconstrução da
representação, entre outras, podendo variar de acordo com a ênfase de cada teórico.
Passearei por alguns deles, na medida em que os trabalhos me apontam essas
características.
O que friso inicialmente aqui é narrar como percorri esse aspecto movediço do
termo, sua mobilidade e, ao mesmo tempo, como uma definição rígida nega a própria
possibilidade da performance, inviabiliza a liberdade de combinações de disciplinas e
materiais, sua pluralidade. Definir performance, assim, seria um falso problema, na
medida em que ela trata, justamente, de “desnortear classificações”, de “resistir a
definições” (FABIÃO, 2009).
Por isso, ao invés de trabalhar com a ideia de conceito, que, a meu ver, tem
bordas mais delineadas e orientações mais fixas, me proponho a trabalhar com a noção

74
de performance. Esta palavra, portanto, entendida menos como definição, com a qual se
fixa algo, mais como um entendimento, um discernimento a partir de experiências
coletadas e lidas em conjunto, nesta tese.
Talvez pela dificuldade do conceito de conseguir “apreender o escoamento do
tempo, a duração propriamente dita” (LAUPOUJADE, 2010, p.11); talvez pensar e
conceituar a performance sejam atos precários, por serem um modo de se mover
permanentemente por entre obras cuja própria natureza indicam um “movimento
permanente” (FABIÃO, 2009, p. 66).
Compartilho, assim, o que propõe Eleonora Fabião, quando coloca que
performances são elogios ao precário, porque “desestabilizam hábitos”, “inventam
novos corpos”, se inscrevem num campo de possibilidades, de encontros, de devires,
pela via da indefinição, da instabilidade. Assumir o precário como qualidade da noção
de performance seria, portanto, propor muito mais um lugar inventivo, de recriação, do
que daquilo que se deteriora (Idem, ibidem).
Desisto, portanto, de qualquer desejo de possuir um conceito de performance,
pois o conceito teria mais a ver com eliminar contradições, sistematizar o real, na
contramão da fluidez do tempo e da mutabilidade da experiência do real, que aqui me
interessa mais.
Se a performance abre espaço para experimentações, testes, compromete-se
muito mais com o processo do que com o acabado, o produto final. Assim, a
experimentação expõe a arte processual e, portanto, não fixa no tempo uma conclusão, a
menos que provisória.
Logo, se estamos lidando com processo, com tempo, sob a perspectiva de sua
parcialidade, interessa pensar a contemporaneidade sob a égide do movimento, um
atravessamento pela transitoriedade, buscar seu fluxo. Assim, é reconhecer que haverá
sempre essa crise em relevo nessa relação informe entre diferentes tempos não
coincidentes, mas abarcados por uma alcunha comum, nas experiências chamadas
performance. Como se ela nascesse e permanecesse nisso, numa distensão, numa aporia.
É mais dúvida, é mais pergunta do que o contrário.
Se aqui duvido de um discurso que queira tratar da performance a partir de um
conceito dado e fixo, fundando assim uma prática de enquadramento ou de torção, no
meu ponto de vista, é mais interessante assumir o lugar de invenção antes de cair na
armadilha de uma cronologia, de uma história dada e estabelecida da arte da
performance. Se cada performer cria sua própria definição, tomo isso como referência

75
para uma estratégia e para uma poética dessa escrita, que parte necessariamente da
noção de experiência.
No entanto, reunir e passear por esses experimentos que se apresentam nas
próximas páginas me exigirá retornar a experiências de vanguardas anteriores,
fraturando o tempo em muitos pedaços, soldando essas propostas por um interesse
comum de pesquisa. Nessa ambivalência, pratico aquilo que Giorgio Agamben chama
de contemporaneidade e a relação com o próprio tempo: o contemporâneo adere ao
tempo, assim como também dele toma distância (AGAMBEN, 2009, p. 59).
De modo geral, isso quer dizer que o passado não se estagna na origem, se a
pensarmos numa perspectiva móvel. O presente, a contemporaneidade, sob esse ponto
de vista, é uma relação peculiar com o próprio tempo. Nos termos do filósofo, do artista,
o poeta solda com seu sangue (sua obra-corpo) o dorso quebrado do tempo, o dorso
fraturado pelo presente quebrado. Em outras palavras, a atualidade do presente,
invariavelmente, se somos contemporâneos ao nosso tempo, nos coloca num tempo
fraturado. O próprio poeta ou o artista, pensemos assim, compõe nessa fratura.
Giorgio Agamben diz justamente que o passado é refeito quando entra em
relação com o presente. Por isso, rabisquei aqui uma linhagem, antes de uma genealogia
estrita, por afinidades e diálogos entre modos de pensar, pelos encontros que realizei
neste percurso de doutoramento. No entanto, ressalto veementemente que não há
pretensão de tomar esse percurso como único, absoluto e linear e, sim, propor um
caminho para pensarmos a literatura pela via da performance. Muitos trajetos seriam
aqui possíveis. Criei um.

76
Salvador, 19 de novembro de 2014

Termino o primeiro item com alguma incerteza, se consegui me fazer


clara. Se ficou legível aos que irão ler estas páginas, que foi inevitável o
confronto com o problema do tempo quando fui estudar performance. Será
que tinha um rastro ali do quanto resisti em compor linhagens de maneira
cronológica, por conta de um desejo muito grande de falar do presente?
Claro, entendi depois que poderia fazer isso pela via do corte. Estar na
fratura, de ser contemporânea àqueles artistas e de que estava tecendo um
bocado de tempo na malha crítico-criativa da tese.
Paro um pouco e decido fazer esses desvios no corpo da tese.
Lembro da conversa com Michelli Mattiuzzi que vem me visitar justamente
depois que escrevo esse item. Falava muito melhor ontem, mas não tenho
mais memória suficiente para lembrar exatamente daquilo que dizia com
tanta veemência, no tempo da conversa fluida que rolava na cozinha, no

77
meio do cotidiano, xícaras, pipocas, cigarros, discutindo o campo de
performance, de crítica, da academia, dos afetos.
Pago o preço de não ter ido ao quarto pegar o gravador pra ter tudo
aqui comigo agora. Lembro de Sônia Rangel me dizendo na qualificação
que eu ficasse calma, que aquilo que se assentasse em mim, retornaria num
novo tempo da escrita. Me acalmei e fiz uma meia dúzia de apontamentos
no caderno.
Antes de dormir, pensei que talvez pudesse incluir na tese um
fragmento de jornal há muito tempo salvo no computador. Tinha ali um
punhado de artistas com quem convivia na cidade de Salvador, com quem
dialogava, partilhava afetos e construía sentidos precários para a arte.
Conto a Michelli que estou criando um livro novo. Depois me
corrijo. Não, não é um livro ainda, é um espaço virtual, chamado BARRA
DE ROLAGEM, onde devo incluir trechos de diálogos, trocas de saberes
com esses pares contemporâneos, parceiros de fratura. Por que não acaba,
né, isso da pesquisa da tese, continua?! Concordamos que sim.
Falamos longamente sobre a crítica da performance. Falamos do
estranhamento de uma crítica que não se imputa no texto. Desconfiamos do
corpo do pesquisador que se reserva impessoal, imparcial. Ela me conta da
dificuldade de aceitarem a escrita de sua dissertação em 1ª pessoa.
Respondo que talvez esse tenha sido o legado mais importante do meu
doutoramento no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas, na
Universidade Federal da Bahia. Sinto alívio de ter escolhido esse desvio na
rota da minha formação, ter ido visitar outra maneira de fazer pesquisa.
Mas a conversa era muito mais fluida. Será que não conseguirei
narrar aquilo que se fazia ali, no mesmo tempo da experiência, da troca de
afetos? Como não fazer desse relato um texto pálido, sem subversão? Não
ficar narrando o passado. Escrevo, contudo, para lembrar, para assentar o
encontro. Mas Michelli me narra corpos instáveis, que não se ajustam.

78
Performance é a própria subversão do conceito, me diz ela, que não
entende como um trabalho de crítica em performance pode ser cartesiano.
Meu texto é minha carne, eu quero um texto que seja corpo. Me pergunta
algo sobre isso - eu, como alguém das palavras - como não engendrar uma
escrita que não seja corpo?
Me lembro que uso esse verbo, sublinho ele na fala – engendrar –
como algo que está próximo de uma gestação, um texto que seja carne da
sua carne, digo assim. Falo da narração enquanto experiência, da vida, ela
mesma, como matéria de poesia, de narrativa. Lembro do livro de carne de
Artur Bario, da carne da perna do curupira, contada por Mario de Andrade.
E tecemos um vasto emaranhado de pensamentos que têm como
tônica o incabado. Perco o fio da meada, muitas vezes, mas tecemos uma
malha grossa de afetos. Sobre como nossa experiência coletiva e criativa
dentro do bairro do Santo Antônio Além do Carmo é decisiva para
entendermos que estamos falando de vibração. De um corpo acessado e
transformado pela troca de afetos, como é essa que acontece dia adentro, na
cozinha, com muito chá e pouca luz.
Releio o que sobrou das anotações do caderno, mas nenhuma me
indica um próximo parágrafo. Talvez devesse seguir assim, sem um texto
bem delineado, talvez devesse parar de ficar escrevendo em primeira
pessoa do plural, nós, eu + Michelli.
Ou, quem sabe, seja só sinalizar a necessidade de falar do encontro,
que esses encontros do presente me ajudam a tecer um novo passado para o
futuro que será lido aqui. Que aprendi mais sobre performance com a Musa
Mattiuzzi na rua, dentro de casa, do que propriamente nas linhagens. Ou
que, talvez, esteja tudo tão junto, que não precise usar termos hierárquicos
como “aprendi mais”, “aprendi menos”.
Quero falar mais dos afetos, mas preciso partir, Michelli também.
Ela me conta que a Escola de Belas Artes a convocou para saber de
pichações com seu nome, no prédio recém-pintado da universidade,

79
patrimônio público. Ela me conta, então, que um grupo de graduandos
pixou a escola e assinou com o nome dela. Dizeres como “seja marginal,
seja musa”. Rimos da teia complexa que emerge do acontecido, e ela me
conta, virei uma situacionista. Me reporto, na hora, do dia em que soube
que o nome dela era Michele Regina e que ela tinha inventado um novo
nome para si.
Agora, a lembrança que me chega é da gente falando de
embranquecimento, muito mais do que a cor da pele, que já pode não
interessar. Falamos várias vezes do Google Maps e falo longamente dessa
recusa por uma visão que seja assim, sobrevoada. Uma visão que se
constrói a partir de um lugar de cima, do alto, mas que não escuta
entrelinhas, que não auscuta micropolíticas. É disso que falamos toda a
noite, micropolítica.
Michelli menciona um sociedade fordista, de consumo, em série, e
me lembro do texto de Eleonora Fabião falando que a performance é como
uma arte do desmanche. Penso nos carros da Ford, penso no desmanche
dos carros da Ford. Me parece que estamos falando disso, de um
desmanche também de uma subjetividade fixa, de um corpo estável, de um
cotidiano sem desvios.
Lembro de uma palavra-imagem produzida por Candice Didonet. A
palavra nome escrita com carretéis de linha. Isso imediatamente me
convida a voltar para o percurso, outrora iniciado, para continuar a falar de
encontros.

80
81
Cava fossos para definir seu próprio caminho.

Michel Foucault em Arqueologia do Saber.

82
2.2.
perguntar – pesquisar – performar

Nesse contexto, numa compreensão de performance que passa por diversas


variáveis, mas com um desejo de trazê-la para um entendimento da literatura
contemporânea, mais especificamente de suas condições de produção, formulei a
primeira pergunta-norteadora desta tese: como pôr em prática a noção de performance
à criação literária?
Atravessada por essa questão central, continuei perguntando. Como considerar o
tempo de uma experiência literária em algo que já foi escrito, realizado, performado no
papel? Como escrever sobre a performance, uma prática efêmera, sem tomar o texto
como sepultamento, tantas vezes acusado de ser contrário e incompatível com essa
prática do tempo real, do agora, radicalmente diferente, por exemplo, do teatro e da
dança e das experiências artísticas, ao vivo, em geral? Como tornar o ato de escrever
uma ação de performance? Escrever no momento em que se performa? Uma escrita que
acontece em tempo real diante dos olhos do observador/espectador?
A partir dessas questões, se na literatura, a presença e o gesto de compor do
autor pareciam aparentemente extintas de seu “produto final”, comecei a focar minha
atenção na ação da escrita. Aqui surgiu, portanto, um interesse-chave que orientou esse

83
percurso. Imbuída de perguntas, no segundo semestre de 2011, realizei o principal
experimento que compõe esta tese, intitulado se fosso fosse.
Quando o campo de observação
da pesquisa se tornou justamente o
processo criativo, essa performance
nasceu do desejo de experienciar e
observar meu corpo, quando em ação de
escrita, perceber a escrita em
movimento, fazendo-se em tempo real.
Isso se deu a partir do encontro com
a artista de dança e performer Candice
Didonet, quando tomei contato com seu
trabalho e sua pesquisa. Juntas, começamos a explorar o chão do subsolo de um prédio,
no bairro 2 de Julho, no centro de Salvador, na Rua da Faísca. O endereço era a
residência de Candice, na época, e chamamos esse nosso espaço comum de fosso: uma
área externa de chão de cimento vermelho-terra. Lá, comecei a escrever e ocupar com
giz branco essa zona comum.43
Foi desse exercício de tratar com a especificidade da escrita no chão, na escala
das palavras e, principalmente, na efemeridade dessa escrita, que comecei a perceber,
nesse experimento, que criávamos uma poética do esquecimento. Inicialmente, nas
dezenas de vezes que frequentei esse chão, escrevendo nele todo, eu sempre o
abandonava no sentido de que nunca mais tinha acesso àquilo que havia escrito, o que
me levava, de certa forma, a perder os escritos que haviam nascido naquele fluxo de
escrita; exceto as raras vezes em que fizemos registros. Era uma prática, portanto, que
me fazia muito mais perder do que “salvar” textos, na contramão da experiência do
blog.
Radicalmente diferente da maneira como costumeiramente se fazia a minha
criação literária, que se articulava quase numa obsessão pelo registro em cadernos e
bloquinhos, no melhor estilo – penso, logo registro – mas também de ter o computador
quase sempre como extensão de uma memória, isto é, dos escritos salvos e organizados
em blogs ou em arquivos de word, a experiência do giz sobre o chão me imputava a

43
Como requisito parcial da nota da disciplina “Processos de Encenação”, ministrada pela professora
Sônia Rangel, ainda neste semestre, expandi esse exercício para uma ação performática, casada com a
colega Líria Morays, no pátio da escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Uma
experiência de colocar pensamento em ação, de pesquisar performando, quando caiu por terra a distinção
entre pesquisa artística e acadêmica. Uma experiência decisiva para os rumos que tomaram este trabalho.

84
literatura como lugar do efêmero. O giz, de traço tão fugaz, tão passível de borrão e
apagamento, se escrevia na dureza, no engessado e na concretude do chão. Nossa ação,
nossa performance cotidiana naquele espaço, era transitória e nossos escritos, nossa
poesia, eram apagados, no chão, a cada chuva de primavera.
Comecei a pensar como, de certa forma, o questionamento que sempre retornava
naquela época, de que a presença e a ação do autor estavam ausentes do texto literário
no seu formato final, isto é, impresso,
localizava-se dentro de um paradigma da
literatura eminentemente registrada e
disseminada através da impressa, do livro.
Em outras palavras, comecei a conectar-me
com experiências literárias em que não
pressupõem a linguagem escrita: pensando
especificamente na literatura oral,
poderíamos citar, por exemplo, a maneira de compor dos repentistas ou dos rappers; ou
a escrita da pichação – cara a tantos poetas contemporâneos, como Paulo Leminiski e
Nicolas Behr – que está sempre sob o risco do desaparecimento, quase fadado a uma
futura tinta que cobrirá na parede sua inscrição. Enfim, voltei-me a experiências que
não passem especificamente pelo registro da imprensa, como podemos pensar, por
exemplo, a prática nomeada se fosso fosse.
Desse modo, chamei inicialmente de poética do esquecimento justamente porque
era um exercício que se focava na ação da escrita, sem necessariamente dar atenção ao
significado do que era produzido enquanto texto poético, porque esse era quase sempre
esquecido, perdido; atentava-se para o gesto, o movimento dessa ação, o corpo possuído
por ela; era isso que ficava na memória.
Além disso, quando Schechner propõe que “qualquer comportamento, evento,
ação, ou coisa pode ser estudado como se fosse performance e analisado em termos de
ação, comportamento, exibição”, no próprio título da performance, tanto a partícula “se”
quanto o tempo verbal no subjuntivo exprimem condição, incerteza, dúvida,
características próprias de um experimento, desse movimento de pesquisa, já descrito,
que se pautou por perguntas, não respostas. Cabe, tão somente, não afirmar a criação
literária como performance, mas lançar a possibilidade de pensar quando a criação
literária torna-se performance (SCHECHENER, 2003, p. 39; grifo meu).
O que se deu a partir desses exercícios foi justamente criar um programa e
preparar-se para realizá-lo, tendo em vista que a ação performativa é metodicamente

85
calculada, se aproximando do improviso, na medida em que não pode ser ensaiada
(FABIÃO, 2008).
Assim, coloquei-me na condição de “experimentar o experimental”, nos termos
de Hélio Oiticica; vivendo a performance enquanto uma experiência que é
necessariamente transformadora. Propor-se ao experimental aqui foi colocar-se a um
número aberto de possibilidades, no sentido de não predeterminar uma experiência e,
sim, focar-se a atenção em como ela própria se constitui. Assumindo os riscos, perigos,
provas, a “aprendizagem por tentativa” que envolve essa noção de experiência, isto é, a
ação em si mesma. O se fosso fosse tornou-se um rito de passagem no trajeto desta tese.
Foi um exercício que levantou as principais questões materializadas neste bloco, em que
a performance surge como eixo central (Idem, p. 237).

86
2.3.
Na trilha das pedras

O encontro com Candice Didonet nesse experimento foi uma aprendizagem,


primeiramente, no que tange à materialidade das palavras. Nas nossas interlocuções, nos
nossos experimentos no fosso, saio de uma prática de escrita que apresenta certa
liquidez, no sentido do trânsito de uma escrita que se faz no teclado e é transposta para
uma tela, e acontece, portanto, com outra solidez. Tendo me criado numa tradição de
blocos de notas, do grafite do lápis correndo, barulhento, pela página, essa nova maneira
de compor me colocava em escalas muito maiores, em que o corpo estava muito mais
visível que o movimento, habitualmente mais contido e abreviado do digitar, quando o
resíduo do giz permanecia no corpo como rastro de ação.

Didonet, nesse período, tinha acabado de concluir seu trabalho do Estudo da


Materialidade das Palavras44, desenvolvido no Centro Cultural São Paulo – CCSP, no
programa de Novos Coreógrafos - Novas Criações: Site Specific (NC-NC:SS) e
desenvolvia sua pesquisa de mestrado na Escola de Dança da Universidade Federal da
Bahia.45

44
Além do Centro Cultural São Paulo, esse trabalho foi experimentado e exposto em outros espaços como
no Projeto Danças Performativas, no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, em 2012 e no VI Seminário de
Pesquisa em Artes da Faculdade de Artes do Paraná, em 2011.
45
Candice Didonet defendeu sua dissertação de mestrado intitulada "Escritas do corpo: palavras ações"
em 2012, sob a orientação da professora Jussara Setenta, na Escola de Dança da Universidade Federal da
Bahia.

87
A pesquisa da artista e a sua ação desdobrada dela estrearam em 20 de novembro
de 2010 e consistia em caminhos sugeridos para leituras e visualizações da ação
coreográfica. O estudo consistia na escrita de palavras com materiais coletados (como
galhos, sementes, prato quebrado, jornais residuais e cadeiras) em percursos de
deslocamento entre lugares externos e internos da Praça das Bibliotecas do CCSP, com
duração de cerca de 20 minutos e com livre circulação do público. Sua intenção foi
materializar palavras-sínteses com materiais e objetos encontrados em percursos de
caminhada nos arredores do local de acontecimento da pesquisa, sendo que as palavras
não eram pensadas previamente e havia o desejo também de salientar incompletudes na
leitura das palavras escolhidas.
Nesse percurso, quem primeiro esteve presente nas elucubrações para refletir
sobre o trabalho de Didonet foi João Cabral de Melo Neto e suas lições da pedra. O
primeiro poema que me veio, do contato com a pesquisa da artista, foi sua “Psicologia
da Composição”. Neste poema ele diz: “é mineral o papel / onde escrever/ o verso”, são
minerais as coisas “quando se está em estado de palavra”, portanto, “é mineral a palavra
escrita”, “a fria natureza da palavra escrita” (MELO NETO, 1979, p.187).
Quando o poeta evoca o mineral como tudo que está em estado de palavra, da
palavra escrita, penso, sobretudo nessa materialidade da escrita que guia a artista de
dança em sua pesquisa, mas que tange também ao papel, à tela, ao chão e, também, à
carne dessas palavras, essas coisas feitas de palavras. Dá uma ideia de permanência, de
uma experiência tátil, embora estejamos falando de uma escrita efêmera, além das
noções de superfície, de concretude, de relevo e de textura.
Antevejo aqui, também, a autoria, pensando agora na sua fisicalidade, mais
especificamente no corpo do escritor. Seu gesto, agora desaparecido do poema (“saio do

88
poema/ como quem lava as mãos”), permanece na concha que guarda ainda “o corpo do
gesto extinto” (Idem, p.181).

Noto uma espécie de presença do ausente e a ausência do presente, que são


próprias, inclusive, da relação que se instaura a partir da imprensa, do texto que toma o
livro, depois de impresso, em que o corpo do escritor já se encontra desaparecido. Ao
mesmo tempo, a própria palavra remete à coisa “na medida em que assinala igualmente
sua ausência” (GAGNENBIN, 2006, p. 44).

No caso do trabalho de Candice Didonet, a partir de um estudo de movimento,


ela compõe as palavras combinando objetos e os expandindo em grafias no espaço. Para
além das palavras que compõem um texto, a artista ensina, nisso que começo a chamar
de lições da pedra, sobre grafias que estão em “circunstâncias de ação”. Assim, dá foco
ao reconhecimento das palavras enquanto ações do corpo. As questões que impulsionam
seu trabalho envolvem perceber a escrita a partir de suas espacialidades; como se
organiza a percepção do corpo em relação a modos de escrita e pensar a dança nesse
“campo ampliado com a escrita” (DIDONET, 2012, p.16).
Compreendo que a escrita coreográfica de Didonet expõe um gesto e deixa o
rastro de um corpo. Além disso, conecta-se com o espaço de maneira a deixá-lo também
fazer dessa escrita efêmera, como elemento de composição, assim como Candice usa
seu corpo para escrever, para ser palavra. Nessa ação, acredito que a artista fissure a

89
rigidez da materialidade, desse entendimento endurecido que temos da pedra,
justamente através de sua proposta coreográfica, de dançar com as palavras, dar
presença a elas, amalgamar palavra e coisa, numa poética que se dá a partir dessa
simbiose.
No registro de uma de suas experimentações, por exemplo, a palavra TEMPO,
escrita com pequenas e delicadas flores vermelhas, é fragilmente desfeita pelo vento,
justamente pela exposição ao tempo que faz efêmera essa escria. As palavras tornam-se
encarnadas, ganham corpo, mas, no entanto, estão invariavelmente condenadas ao
rápido desaparecimento pela ação do tempo, o que evidencia o próprio movimento da
escrita.

Nesse exemplo especificamente, entendo quando a artista identifica, em um dos


corpus de seu trabalho, as grafias em circunstância de ação. Talvez porque a própria
palavra TEMPO esteja relacionada à percepção da ação. No caso da foto, a ação do
tempo é responsável por desfazer a palavra, o que permite que as flores retornem a um
movimento desorganizado e não alfabético. O procedimento de arranjar as flores em
palavra, feita outrora, só foi possível pelo movimento da artista e sua performance,
responsáveis por legibilizar o texto (DIDONET, 2012, p. 26).
No deslocamento para essas espacialidades não habituais da escrita, portanto,
Didonet acredita que é possível deslocar da palavra seu significado fixo. Penso que
assim opera sua poética, da conjugação do corpo que experiencia um dado espaço e
produz uma escrita específica. Em outras palavras, seria dizer que as ações do corpo na
escrita, nessa performance da artista, estão atreladas aos modos de vivência dos
espaços-tempo. A compreensão da escrita, portanto, dá-se como experiência do corpo e,
por conseguinte, de diferentes espacialidades.
O gesto também aqui tem outra escala e outra ordem de visibilidade. Mesmo
compondo com cadeiras, com grandes letras, é da ordem do mínimo, trabalha com o
acaso de materiais recolhidos num caminho, sendo eles corriqueiros, banais e

90
cotidianos. Os sentidos que produz são precários, em oposição ao excesso, ao
monumental 46 (LOPES, 2007, p.44).
Em outros casos desse mesmo trabalho, vejamos, por exemplo, quando Didonet
escreve a partir de uma nova disposição da cadeira das bibliotecas do CCSP, a palavra
SENTE. Tanto a artista, quanto o público que ali circulasse, poderiam “sentar” nas
palavras, que, ainda, denotariam outros significados, como o convite para se sentar, de
aproximação. A leitura, nesse caso, poderia ser quase sensorial, a partir mesmo do
contato físico com a palavra, passível de toque. Por isso, a palavra SENTE era também
da ordem do sentir.

Imprescindíveis para o que se configurou no experimento se fosso fosse, trabalho


a ela dedicado, das lições que aprendi com essa poética instaurada por Candice, na qual
palavra se conjuga com os objetos, interessa-me, sobretudo, levantar questões sobre a
noção de meio, da superfície, da fisicalidade que nos apresentam diferentes meios de
produção da escrita. Em outras palavras, é pensar como a criação literária está
relacionada também ao espaço onde se realiza cada escrita. Espacialidade essa que pode
ser a da página (desde aquela concreta, do papel à da virtualidade da tela), do chão, da
parede para os grafiteiros ou, mesmo, de um corpo.
Instiga-me, ainda, pensar nas especificidades das condições de criação e
recepção nesses diferentes meios, uma vez que o trabalho da artista se propõe

46
Encontro essas qualidades também em seu trabalho nuvem particular, de 2008, uma investigação
coreográfica que parte de uma estrutura de elásticos presa com sacos plásticos cheios de ar, transparentes
e flutuantes, com os quais a artista realiza movimentos. Para ver um registro da performance, há um vídeo
disponível no seguinte endereço eletrônico: http://vimeo.com/42287703.

91
justamente a evidenciar um modo diferente de organização da escrita. Será que o passar
da página não é radicalmente diferente da experiência da barra de rolagem, do toque na
tela do Ipad, da leitura na escala dessas palavras-sínteses de Didonet? Escrever numa
máquina de escrever, escrever no touch do celular, pressionar o teclado de um notebook,
compor palavras a partir de objetos também não altera radicalmente o modo de
produção-criação-recepção?
Essas questões tocam não apenas nos deslocamentos de espaço onde se realiza a
escrita, mas também na sua percepção e vivência corporal. Numa primeira instância,
reconheço nessas perguntas mais uma lição da pedra, agora acionada pela poesia
concreta.
Curioso notar que minha primeira referência para ler esse trabalho tenha sido
João Cabral e se prolongue nas teorias dos poetas paulistas Augusto de Campos, Décio
Pignatari e Haroldo de Campos. A poesia concreta encontra no poeta pernambucano
uma contribuição decisiva no que tange a sua “linguagem direta, economia e arquitetura
funcional do verso”, quando constrói poemas como “a lances de vidro e cimento”
(CAMPOS, 1975, p.34).
Meu interesse de trazer os concretos para essa trilha das pedras foi por conta,
especificamente, neste momento, do reconhecimento do espaço gráfico como agente
estrutural, como propõe o manifesto “Plano Piloto para poesia concreta”. Acredito haver
aí contribuições importantes para o interesse desta tese em falar da materialidade das
palavras. Do manifesto para a análise que vem sendo desenrolada ao longo deste item,
me parece suficiente, por hora47, me ater às noções de “palavra-coisa” e do espaço
enquanto agente estrutural.
Pensando, assim, no espaço enquanto elemento de composição, expando aqui
essa noção para a especificidade da escrita no chão, que atende a outras grafias e supera
uma condição apenas de suporte A superfície do fosso, mais especificamente do
cimento, onde preferencialmente experimentei esta escrita, integra-se à poesia, fazendo
parte dela, ao mesmo tempo em que a modifica e reverte-se também em palavras, isto é,
aquilo que os poetas concretos chamam de tensão palavras-coisas no espaço-tempo,
considerando a própria palavra como objeto e não como signo (Idem, p. 50).
Com o trabalho de Didonet, encontrei materializado esse entendimento de
palavra-coisa, numa espécie de transcriação daquilo que Augusto de Campos, na teoria
da poesia concreta, chamou de palavras-cabide,48 que tinha na montagem da palavra um
acionamento de uma simultaneidade de sentidos. Encontro na palavra SENTE, por
47
No bloco 3 retornarei à discussão em torno da teoria da poesia concreta, pela leitura de “VIVA VAIA”.

92
exemplo, acima descrita, essa possibilidade de múltiplos sentidos, que, nesse caso, é
acionado não apenas por uma disposição gráfica de palavras-cabides, mas também na
participação direita do objeto na construção de significados, tencionando palavra
enquanto coisa. O material com que se escreve a palavra, ao mesmo tempo, compõe sua
carnadura, adiciona mais uma camada de significado à poética ali construída. É óbvio,
por exemplo, que se Candice escrevesse a mesma palavra com ouriços, teríamos outras
leituras. Ter escrito com cadeiras, portanto, que em seu significado mais aparente são
objetos com a função de sentar, dá à palavra-cabide mais uma peça para a matéria de
poesia.
A palavra, nesse caso, é coisa, mais significante do que significado e assume
uma dada realidade que rejeita apenas um dado significado, seu valor enquanto signo.
Quando Candice Didonet escreve com objetos, sobrepondo materialidades e camadas de
significação, fissura a relação binária do signo, vai além daquilo que o objeto
representa, seu sentido figurativo. E ainda chama a atenção para o gesto de compô-las,
manipulando-as como objeto sólido, transpondo os limites que impõem a leitura dessas
palavras apenas pelo que designam.

se fosso fosse
Gostaria de retornar à Cabral antes de seguir. Sua metáfora de palavra, do papel
como mineral se expande em suas lições de A Educação pela Pedra. A “carnadura
concreta” da pedra, sua “cartilha muda”, entranhada na alma, compacta, na sua
“resistência fria”, parece muito similar também ao modo de fazer poemas desse
engenheiro do verso, que aproxima a composição de um poema à construção de uma
casa.
Mas, além disso, gostaria de sinalizar o envolvimento do poeta com as artes
gráficas e seu interesse pelo livro. João Cabral, na década de 1940, adquiriu uma
tipografia artesanal, na época em que morava na Espanha e, com ela, imprimiu alguns
de seus livros e editou outros, de amigos. 49 A mim, me parece, que seu manejo da
prensa está intimamente ligado ao seu relacionamento com a materialidade de seus

48
Para exemplificar o termo, Augusto de Campos dá o exemplo de al (gema negra) cova, resultando em
diversas palavras como alcova, algema, gema negra, negra cova. O trecho em questão compõe “O jogral e
a prostituta”, de Décio Pignatari.
49
Muitos dos livros publicados por Cabral trazem uma indicação de “edição do autor”, que indica
justamente esses livros experimentais impressos pelo próprio autor. O poeta participou ainda de um grupo
importante para artes gráficas no Brasil, denominado O Gráfico Amador, liderado por Aloísio Magalhães.
Para saber mais, ver Lima, 1997.

93
livros. O aspecto gráfico de sua obra, a maneira como se subdividem seus livros,
espacializam suas letras, é sua própria poesia.
Frequentar a pedra, nesse sentido, passou a ser frequentar esse chão do fosso.
Esse outro espaço, que, diferente do blog, do papel do bloco de notas, me coloca novas
condições de produção, me faz tatear uma materialidade específica, outro modo de
imprimir as letras. Foi nesse movimento que construí essa performance, na busca de um
princípio da pedra - tanto no que diz respeito ao chão quanto ao giz, considerado um
tipo de rocha porosa.

Além disso, se retomarmos a lição dos concretistas do espaço gráfico como


agente estrutural, portanto ativo e participador na criação poética, tem-se um espaço que
é, antes de tudo, físico. Seja ele o papel, a tela, o chão. Os espaços, por isso, não são
neutros, impõem especificidades.
O experimento em questão teve como mote, então, essa possibilidade de uma
escrita em ação somada à especificidade da superfície do concreto, quando escrito, onde
se abandona a solidão do texto prévio, uma vez que a criação dava-se no momento da
performance e a autora, nessa conjuntura, na contramão, põe-se presente, atuante,
publicamente deixando-se entrever sua ação, onde ali, no texto, no chão, performa no
momento em que escreve.
Depois do período de exercícios com Candice Didonet, comecei a desenvolvê-lo
em vários pontos da cidade de Salvador, saindo da área comum de um prédio para
ganhar as ruas. A ida para o espaço urbano, nesse momento em que papel é agora chão,
rua, questiona, inevitavelmente, a maneira como a escrita pode apreender o espaço e a
vida urbana, que se instala em cada local onde a performance acontece. Geralmente
escolhia um lugar de passagem e, a partir dele, criava sem texto prévio, num exercício
de me pôr à escuta daquilo que por ali passava, no sentido de experienciar aquele

94
espaço, como se fosse uma poética transeunte atravessando o corpo, que nasce do
inesperado.
Nesse caso, assim como no trabalho que realiza Candice Didonet, penso na
possibilidade de uma escrita topográfica50 no sentindo de que não se escreve no espaço
ou descreve o espaço, mas, sobretudo, escreve com o espaço. No movimento da
andança, um tempo perceptivo mais lento, mais atento, percebo aquilo que não é
habitual. Como uma cor que aparece de uma goteira que esburaca o chão de uma escada
que liga o Pavilhão de Aulas do Canela à Faculdade de Direito, por exemplo, de onde
um de meus poemas surge:

cada gota que cai faz-se o verde


martela como memória, borra feito esQUEcimento
fura o peito da gente feito faz o tempo quando já passou...

Em torno da gota nasce a escrita, margeando o espaço, dando visibilidade ao


furo, à intervenção que a gota mesma opera no chão e que não só dispara mas integra o
poema. Conforme já levanto anteriormente, a escrita aqui nasce sem a aura do livro, na
contramão da tradição canônica que inscreve a literatura necessariamente na página, na
imprensa, abandonando, muitas vezes, suas manifestações orais, as insurgências escritas
que se apagam na tinta descascada dos muros. Isso tensiona, de certa forma, esses
limites, propondo um deslocamento da literatura para um espaço vivo de passagem, que
é o mesmo do passante e do tempo que leva junto, com sua efemeridade, essa escrita.
Aqui também identifico o deslocamento de um ritmo linear para um ritmo
espaço-temporal, rompimento reafirmado e proposto também pela poesia concreta,

50
Termo proposto a partir de um empréstimo do que faço de Jay David Bolter quando propõe a escrita em
hipertexto como uma escrita topográfica, na obra Writting space: the computer, hypertext and History of
writting, apud BELLEI, Sérgio Luiz Prado, no texto “Hipertexto e Literatura”.

95
como frisa Décio Pignatari, que convoca o espaço como uma “nova realidade rítimica”
(CAMPOS, 1975, p. 41) e prevê uma leitura caracterizada pela simultaneidade. Sem
dúvida, a experiência da escrita manuscrita nesse espaço possibilita uma exploração
direta da escala das palavras, de sua dimensão gráfico-visual, que é, sem dúvida, um dos
motes do movimento da poesia concreta.
Diferente se relacionar com o espaço ao modo de um mapa, me sentia
percorrendo esse espaço por dentro e a criação poética se fazia no mesmo tempo do meu
movimento pelo espaço. As próprias letras, por isso, capturavam essa travessia. Na
subida e na decida incessante, por exemplo, dessa parte da universidade, onde me pus a
estar num tempo expandido, surge outro poema. Assim como a ação convida o passante
a ler enquanto desce ou sobe uma escada. Uma leitura que depende do descer ou do
subir, alterada na medida em que o corpo se move dentro desse espaço. A escrita que
atravessa o degrau e chega no passo, leva contigo.

96
O movimento da escrita também se imprime nela própria. Assim, volto a pensar
na noção de rastro, na tentativa de imprimir-se na escrita, de contornar o inevitável
desaparecimento do corpo em ação. Como o corpo ausente se insinua no rastro do giz,
propaga a presença do gesto? Faço uma tentativa, escrevendo ao redor do meu próprio
corpo, como se o decalcasse: das lições pedra sob pedra, o corpo se imprime ao redor
feito ilha:

Diferente dos objetos usados por Candice, o giz é responsável por uma sensação
de vulnerabilidade do tão sutil apagamento, e a criação de resíduo – do pó do giz –
acontece à medida que se escreve. Assim, qualquer contato com líquidos causa borrões.
Além disso, o risco do giz com o solo, nitidamente, dá a ver imperfeições, nesgas,
fissuras, como se o relevo se inscrevesse também na escrita, o que geralmente acontece
quando do chão irregular. Procurei incorporá-las, quando me deparei com essas frestas,
como é o caso da escrita a seguir:

97
Depois de subir repetidas vezes a Ladeira do Carmo, no Centro Histórico,
comecei a perceber como o corpo se comporta na ladeira, no que impõe ao passo o chão
de pedras irregulares, e cheguei nessa escrita, que escorria pelo paralelepípedo dessa
rua: o corpo na ladeira se reparte em pedrinhas. Da experiência do andar surge o
poema e acontece uma fresta que re-parte a palavra, compondo e sendo incorporada à
escrita que é também repartida na pedra, que também parte, escorrendo ladeira afora.
A experiência dessa performance casa-se bastante com o entendimento de
errância. Segundo Paola Berenstein, as errâncias indicam um tipo de experiência que é
da ordem do não planejado, do desvio. Nesse sentido, propõe “usos conflituosos e
dissensuais que contrariam ou profanam os usos para o qual foram planejados”. Assim,
errar pela cidade já é criar um espaço outro (JACQUES, 2012, p. 23).
Ora, me parece essa descrição justamente as incursões pelo livro, propor novos
usos, assim como a escrita nos blogs, nos caderninhos, no chão, vazando da página
linear do livro, procurando novos caminhos para a literatura. E, ao mesmo tempo, me
parece aqui um dos caminhos da performance, no seu trato com o desvio, no seu
desmanche de normas de uso e de maneiras de fazer arte. 51
Nesse sentido, cada espaço específico se cola naquilo que é escrito no momento
da ação, não apenas na sua fisicalidade, mas, por vezes, o que representa
simbolicamente/historicamente dentro de cada cidade multiplica a vivência naquele
tempo-espaço. Tudo isso que traz consigo e perpetua-se no movimento da escrita.
Isso talvez tenha sido mais bem observado num dia em que realizei o se fosso
fosse na área do Centro Histórico da cidade de Salvador, mais especificamente na área
51
Dentro dessa ideia de errância, talvez seja interessante ver a experiência de Décio Pignatari, no livro
Errâncias, uma espécie de “colagem autobiográfica de pedaços de biografias alheias” de poetas como
Cabral, Volpi, entre outros, em que o poeta concreto convoca um “biobalanço”, através de “palvras e
frases pensuradas” entre errâncias por fotos, depoimentos, estudos (PIGNATARI, 2000).

98
do Pelourinho. Zona altamente especulativa, tendo sofrido com a entrada do Estado para
torná-la uma área de exploração do turismo, evacuando da área a população de baixa
renda, eminentemente negra, da cidade. Essa parte da cidade está prenhe de áreas
opacas, escondidas, apagadas, num jogo entre o visível e o não visível, variando muito a
experiência de estar dentro dela. Por isso, um morador do centro, um morador de Itapuã
e um turista, podem vivê-la de maneira radicalmente diferente.
Na ocasião desse se fosso fosse, era abril de 2012 e eu caminhava, escrevendo,
entre as ladeiras do Centro Histórico de Salvador, na Bahia, no trajeto que fazia da Casa
de Jorge Amado até a Ladeira do Carmo. Foi quando escutei de um guia que levava um
grupo de turistas no Pelourinho dizendo que Pelourinho não tinha nada a ver com
escravos.
Que diabos aquele moço estava falando, pensei. As pedras por onde
caminhávamos, quem havia construído tudo aquilo, pensei e não disse. A que ilha de
sentido estavam presos aqueles forasteiros caminhando por um imóvel cartão-postal?
Pisei num punhado de cacos e, acionada pelo barulho do vidro, olhei o chão e vi ali um
mar de ilhas, de rotas que cabiam dentro dos muitos usos que tinha o Pelourinho. Quem
mais deixava marcas naquele chão? Aqueles estrangeiros ou a escravidão? Criei, então,
uma intervenção de giz que depois se transformou em poema, ambos reproduzidos
abaixo, criados naquele mesmo dia, um seguido do outro.

À PROPÓSITO DAS ILHAS

são ilhas
cercadas de um mar de cacos
os pousos de ar-condicionado
de onde se vê o centro histórico
que nem cartão-postal

99
- arquipélago?-
pegadas da caravana de forasteiros
que sobem a ladeira sob o som de um guia - vesguia - que grita

PELOURINHO NÃO TEM NADA A VER COM ESCRAVOS


eu olho e só

vejo
piso
navego num mar de cacos.

cravo os pés
no esquecimento
desse chão

um rastro de grito
ilha ilha ilha ilha ilha

No estilhaço, estava ali um rastro de grito. Gritos esses que não se podiam mais
ouvir, nítidos, para quem percorre o Centro Histórico de Salvador de maneira distraída,
sem colocar-se em suas encruzilhadas, desvios. A gentrificação, processo de alteração
da dinâmica local, maquiada no título de “revitalização”, “requalificação”, “renovação”,
havia engendrado um uso comercial – especialmente na exploração do entretenimento e
do turismo – para as moradias agora tornadas bares, museus, joalherias, lojas de
souvenir.
Talvez por isso fosse mais fácil não perceber o óbvio nas marcas ali da
escravidão? Talvez. A gentrificação do Pelourinho provocou justamente uma
dificuldade da permanência de antigos moradores, removendo muitos dali para áreas
longuíquas do centro da cidade. O Poder Público tratou de pintar bem as fachadas,
equipar os prédios com ar condicionado, para esquecermos o calor dos porões, mas
aquela grande área ainda abriga casarões-fantasmas, áreas proibidas e desconhecidas de
grande parte da população.
Talvez por morar e frequentar essa parte da cidade, desde que cheguei em
Salvador, em 2009, minha escrita tenha deambulado assim. Talvez. Dessa escrita em
trânsito, ouvir a cidade me faz grafar no chão. Depois, expando para o caderno, meio
que acompanha bem essa mobilidade. A escrita reinventa a cidade. E a cidade é um
campo aberto e sensorial da experiência da escrita; auspiciosa para a escrita errante
dessa experiência de performance.

100
101
2.4.
A ação da escrita e a escrita em ação
Em maio de 2012, no Festival Scraxte Undergroud Brasil, em Madrid, apresentei
se fosso fosse, na sessão de performances que abria o evento. Foi a primeira vez que a
ação era reconhecida como performance e estava programada para ser vista, já que antes
sempre cruzava com o “público” pelo acaso de quem por ali estivesse passando. Isso me
colocava uma questão: a de pensar se não seria necessário um mínimo de preparação e
organização do tempo em que estivesse em cena.
Algumas reflexões surgiram desse momento que antecedia a apresentação, a
partir de alguns experimentos e experiências realizadas em Lisboa.52 Por exemplo,
como antes de entrar em cena, poderia já estar em ação. De posse de um caderninho,
então, minha estratégia é escrever durante, pelo menos, 30 minutos sem parar, sem reler,
com certa velocidade, sem julgamentos. É como se fosse uma atriz que aquece o corpo e
a voz ou um músico que afina seu instrumento. Não importa o que se escreve, mas a
colocação do corpo em ação de escrita para provocar um fluxo.
A observação da ação era o mais importante e não necessariamente o seu
produto final, isto é, o significado do texto. Por isso, a afinação acontecia num
movimento de não pausar: deixar a mão correr solta, deixar o agora preencher o vazio
da página. Abaixo um trecho, transcrito, dessa afinação:
52
Sobretudo a partir de um diálogo com a pesquisadora Margarida Augustinho, investigadora em escrita e
movimento do Centro em Movimento (mais informações em www.c-e-m.org), de Lisboa, na ocasião de
um dos encontros do projeto “Pedras d’Água”, que se propõe a percorrer a pé, coletivamente, caminhos
por bairros do centro da capital portuguesa.

102
A quem interessa essa escrita. Percebem esta ação? O ato em si? Não é
conteúdo, não é narrativa, é gesto. Não posso borrar. Apagar. A escrita já
borrão. O chão esquece. Num sopro. Entendes, sopro? Completar a frase é
como percorrer a geometria do espaço. Não a corto. Só sigo o fluxo. Deves
borrar, se quiser, leitor. Apagas com teu passo. Veja: teu passo apaga o
passado todo o tempo. É assim que o presente se faz. Não é muito que te
digo. Este é só um convite para olhar a ação (Madrid, junho de 2012).

Daqui em diante, começo a pensar nessa experiência literária à luz da noção de


acontecimento, que se aproxima ao entendimento de experiência. Segundo Jacques
Derrida, acontecimento é o que vem, o que chega (DERRIDA, 2012, p. 233).
Reconheço isso naquilo que acontece como jorro, quando submeto meu corpo a uma
ação de escrita que não necessariamente passe por um pensamento racional, no que
tange a uma unidade de sentido, de estilo, uma ordenação pelo saber, pelo
conhecimento, numa obra bem acabada, amarrada, que geralmente não está sujeita ao
risco e à experimentação (FERAL, 2009).
Nessa direção, surgem tensões entre algo que é programado, digamos assim, ao
mesmo tempo em que não é. Por isso, Derrida propõe uma reflexão sobre a
possibilidade e a impossibilidade de dizer o acontecimento. Para o filósofo, dizer um
acontecimento, para além de dizer o que é, se dá quando um dizer faz dizendo, “um
dizer que faz, que opera” (DERRIDA, 2012, p. 236).
Essa questão tem um eco dos estudos que empreendeu John Langshaw Austin
em Quando dizer é fazer, acerca dos atos de fala, quando sinaliza que os enunciados
podem ser constatativos ou performativos. Estes últimos são aqueles que fazem ao
mesmo tempo em que são produzidos, isto é, um fazer com as palavras quando ditas em
contextos específicos (AUSTIN, 1990).53
Assim, sinalizo que meu caminho foi de reconhecer como a performance está
circunscrita no domínio da ação, do fazer: “a performatividade é marcada pelo princípio
de ação (ela é processo mais que objeto pronto)” (FERAL, 2009, p. 67).
Penso que a poética produzida dentro da ação do se fosso fosse é uma espécie de
crítica criativa do processo de escrita, por conta da própria pesquisa que o motiva, a
partir da pergunta-norteadora de pensar a criação literária. Por isso, neste primeiro
momento, arrisco uma tentativa de captura do instante mesmo da ação da escrita. Não
que o “produto textual” da poesia desdobrada das ações deva se referir a um tema

53
Esse modo de proferir performativo, segundo Austin, “não é descrever o ato que estaria praticando ao
dizer o que disse” – “muito menos qualquer coisa que eu já tenha feito ou venha fazer” – “nem declarar o
que estou praticando: é fazê-lo” (AUSTIN, 1990, p. 24). É importante sinalizar que, em Margens da
Filosofia, Jacques Derrida, embora reconhecendo o valor de Austin, fez uma crítica a essa problemática
do performativo sobretudo porque Austin “fez rebentar o conceito de comunicação como conceito
puramente semiótico”, sendo, por isso, o performativo, uma comunicação que não se limita a “transportar
um conteúdo semântico” (DERRIDA, 1991, p. 363).

103
específico. Ou se remeter à ação propriamente dita, interpretando-a ou qualquer coisa
que o valha, mas sim, no sentido de que o texto produzido intenta atravessar-se pela
ação do presente, pelo contexto de fala, pelo corpo colocado de tal forma que o gesto de
criar contamina de maneira específica essa produção literária.
Essa escrita se faz no agora, com o presente da ação, que, por sua vez, entranha-
se ali, embora não seja mais acontecimento, quando do texto terminado. Há, no que se
produziu, uma escrita que se faz no acontecimento, ainda que também, por conta das
especificidades dessa escrita de giz, a coloque numa instância do rastro, que sempre
caminha para um apagamento, um desaparecimento. Como diz Jean-Luc Nancy “um
rastro sucede uma passagem”, deixando nele uma marca, no sentido de ser proveniente
dela (NANCY, 2012, p. 257). 54
Nessa noção de Nancy, de que cada escritura abre um rastro, é impossível não
trazer as questões trazidas por Roland Barthes sobre a morte do autor. Ele reacende o
foco no leitor que, a partir dessa lógica de pensamento, dá vida ao acontecimento
inexoravelmente passado da escrita de alguém ali desaparecido.
O filósofo francês, nessa tão famosa proposição, anuncia a impossibilidade de
saber quem fala no texto, alegando a escrita ser um espaço neutro, onde se perde de
vista a pessoa que a produziu, “a começar precisamente por seu corpo” (BARTHES,
1984, p. 49). Considero relevante essa reflexão para o experimento, no que diz respeito
ao deslocamento do sujeito biográfico, à noção de uma origem, à tirania do autor na
cultura ocidental que, por tanto tempo, concentrou-se na autoria para explicar a obra
literária.
Assim, nessa prática de escrita, não é um eu apenas quem fala, mas a própria
linguagem, o espaço urbano, as especificidades do chão, em diálogo, em fricção. No
entanto, não acredito na neutralidade do corpo nessa experiência. Não que o corpo aqui
seja a origem para desvelar o sentido da obra – já que nasce de um entroncamento de
diálogos que, no mínimo, envolvem corpo e ambiente – mas “imagens-pensamentos que
se processam de modos específicos no corpo do artista”, que se organizam no momento
da criação que é o mesmo instante que vai a público55 (GREINER, 2005, p. 109).
A operação de linguagem de que fala Barthes, essa mesma que, segundo ele,
“performa”, está acima e para além do corpo. Parece-me que ainda se inscreve numa
divisão clássica entre o mental e o material, entre o corpo e a mente. Uma negação, pois,
54
Por isso, supõe uma antecipação, a escolha de uma direção, mas é sempre precária: “o destino de um
esvanecimento aí inscrito com a tensão de uma aparição e de um passo à frente” (NANCY, 2012, p. 257).
55
Christine Greiner esclarece que a imagem não é somente visual, mas também sonora e até muscular,
sendo uma modalidade somatossensitiva (GREINER, 2005, p.72). Os estudos de Greiner são bastante
influenciados pelas contribuições da neurociência, como a obra de Antonio Damásio.

104
de que o escritor tem um corpo, e não somente um corpo enquanto discurso, de um
sujeito inscrito num contexto sociopolítico-cultural, mas de um indivíduo que possui
subjetividades, especificidades de um “estar no mundo” – mesmo vago, impreciso,
indeterminado, como descreve Christine Greiner – que tangem ao corpo e se reverberam
no ato criativo (Idem, p.115).
Por isso, a criação aqui não está no fora, no mundo, ou dentro, no sujeito, mas
justamente no entre, na mediação, no relacional, que superam a dicotomia dentro e fora,
conforme discutiremos a seguir. O corpo do escritor, por isso, não é signo, da origem da
significação, mas integrante do ato criador e pode atravessar, integrar, friccionar uma
obra literária. Nesta, é possível identificar o rastro de uma ação de escrita, quando a
tomamos como acontecimento.
Para compreender esse processo de criação, a referência aos poetas concretos, no
entanto, não parece suficiente. É necessário, para entender a noção de performance,
pensar na noção de ação, no contexto dessa experiência. Motivado principalmente pelas
referências que havia naquele ponto de pesquisa, o experimento se fosso fosse foi
influenciado por encontros – sobretudo com o legado de Jackson Pollock, abrigadas sob
a categoria chamada action panting, a partir dos anos 1960.
Parecia auspicioso propor um empréstimo: trabalhar numa ideia de action
writting: escrita em ação. Primeiro, porque a literatura, assim como a pintura, à
primeira vista, produziam “produtos finais” em que o corpo do artista estava
desaparecido e que, por isso, telas e livros, aparentemente, apresentavam poucas
conexões com a recepção que tradicionalmente caracteriza as artes da cena, como dança
e teatro ou até mesmo a música.
A figura de Jackson Pollock, no
entanto, redimensiona o corpo do artista
na obra, no campo das artes visuais. A
partir de fotografias tiradas por Hans
Namuth do pintor americano em pé, em
cima ou dentro mesmo de telas
estendidas sob o chão, como na imagem
a seguir, o fotógrafo flagra o pintor no
ato de criação. Com isso, ao contrário
das imagens tradicionalmente veiculadas
de pintores que geralmente estavam
sentados, de posse de suas ferramentas,

105
como pincéis e palhetas, mas quase nunca criando, acontece, no contexto das artes, no
final da década de 1950, um deslocamento de um foco na obra para reconhecer o corpo
que a materializa.
Logo, a gestualidade do corpo de Pollock, exibida em sua action panting,
constituiu-se como uma das principais fontes de inspiração para artistas que queriam
ativar o corpo em suas obras de arte, principalmente a geração que se agrupou sob a
alcunha de body art. Esta redimensiona o corpo não mais como instrumento, mas como
objeto artístico (GLUSBERG, 2005, p. 43).
Isso porque, nos registros – tanto fotográficos quanto fílmicos – é possível
perceber não apenas a presença, mas a ação de Pollock. Esta não se minimiza nas mãos,
mas se faz em todo o corpo que atravessa telas enormes, postas não mais em cavaletes,
mas no chão, onde o artista pinta como se dançasse, como bem caracteriza Allan
Kaprow56 (KAPROW, 1993, p. 3).
Assim como aquilo que Pollock desencadeia nesse período, a intenção aqui foi
dar relevo ao corpo, quando no ato da escrita, mais especificamente na criação literária.
Quando pensamos que o pintor tinha na tela uma “arena de ação”, na forma como seu
corpo percorria toda a extensão da superfície branca, já temos uma modificação no
modo de produção habitual quando o quadro sai do cavalete na vertical e move-se para
a horizontalidade do chão (FOSTER et al., 2004, p. 374). Há um deslocamento da
própria percepção do olhar do artista sobre a obra, no ato da criação, uma vez que
transita por ela.
Além disso, o artista representa um dos marcos do reconhecimento e da ascensão
de uma forma de expressão artística que dá relevo ao ato (de criar) ao invés do objeto
fixo, como a tela, no nosso caso, o texto, dando ênfase à ação e não à representação
(JONES, 1998, p. 84). Começa-se a considerar, a partir disso, o ato da criação enquanto
acontecimento, muitas vezes sobreposto àquilo que era produzido, estando o valor,
justamente, na ação efêmera e não apenas no produto final.
Outros artistas, influenciados pela repercussão das imagens de Pollock pintando,
saíram dos ateliês, tornando seu ato de pintar um ato público, dando outras direções ao
action panting, como fez Yves Klain, de quem falaremos a seguir. No entanto, a
“performatividade pollackiana” foi tomada pelo discurso da crítica e história da arte
enquanto um modelo de um certo tipo de performatividade 57, que se introniza no sujeito

56
Allan Kaprow, considerado um dos artistas mais importantes da arte da performance, escreve o texto
“The Legacy of Pollock”, em 1958, na ocasião da morte do pintor americano sobre sua importância
dizendo como sua geração foi parte dele.
57
Para uma apreciação do entendimento da “performatividade pollackiana”, ver Jones (1998).

106
individual. Isso se conecta com as reflexões de Roland Barthes sobre a centralização da
figura do autor, sendo ele a origem da obra, na qual, ali, se expressa, inspirado. Não
compartilho desse entendimento de performatividade, mas me interessa esse corpo de
Pollock, nas suas especificidades da ação de pintar, cujo rastro identifico em suas obras.
Penso na ação de criar muito mais com uma noção de jogo entre o controle e o
automatismo, a preparação e o acaso. Acredito que o experimento se fosso fosse flerta
com uma estética do fluxo, tanto por se estabelecer num lugar de passagem do espaço
público quanto pelo fluxo da escrita que se dá ali, no agora, que dialoga muito com a
ação de pintar de Pollock e a proposta de escrita automática dos surrealistas.
Quando André Breton, por exemplo, no Manifesto do Surrealismo, convoca a
imaginação pela ativação do inconsciente, do que ele chama de “automatismo
psíquico”, a fim de exprimir, pela escrita, o “funcionamento real do pensamento”, está
buscando captar o fluxo, a ação da escrita, sem censuras, filtragens, transformando as
obras em “receptáculos surdos” de ecos, “modestos aparelhos registradores” (BRETON,
1997, p. 191/193). 58
É possível reconhecer esse fluxo, esse jorro da ação da escrita, tanto em
experiências performativas do criador em cena, ao vivo, como também no seu produto
final. Digamos que seria esse “o corpo do gesto extinto”, retomando uma imagem
anterior de João Cabral de Melo Neto. Digo isso, por exemplo, porque não basta
somente pintar um quadro ao vivo para
enfatizar o corpo em ação como Pollock
que pinta com o corpo todo, em gestos
largos, por toda a extensão da tela. Ao
mesmo tempo, quando se vê um quadro
do artista, como o Number 12,
reproduzido aqui, é possível perceber,
na técnica de gotejamento, o
movimento da pincelada, o ato que o
engendrou. Essas pinturas, portanto,
dão a ver uma ação de pintar que
demanda um corpo tal que se entranha e
se deixa ler na obra.

58
É necessário que não se confunda, no entanto, o movimento dos surrealistas que não reforça a figura de
um sujeito individual, de um gênio criador, como no caso de Pollock. Os surrealistas se esforçavam, de
forma sistemática, para a destruição do eu, na dualidade entre sujeito e objeto, levando a criação poética
também para uma condição de criação coletiva (SEDLMAYER, 2004, p. 54).

107
No caso desse experimento literário, aqui descrito, o corpo debruçado sobre o
chão que desafia na sua topografia. No caso do festival de Madrid, por exemplo, o
cimento era quase todo irregular. Nessa conjugação, a escrita move-se junto com o
corpo, que se integra a ela, entranhando o rastro de sua ação, a ação da escrita.
Assim, na ocasião do festival, faço várias intervenções poéticas na rua onde me
abrigo durante a apresentação, tal qual um aquecimento e, ao final, sento, contorno o
corpo e, a partir dele, abro a escrita com a qual escorro e movimento junto, como corpo-
compasso, pouco geométrico, impreciso e irregular, em diálogo com o chão. As
palavras escritas em muitas direções, confundem as próprias dicotomias de dentro e
fora. As linhas curvas confundem qualquer tentativa de leitura linear. Abaixo, o texto
produzido na ação de escrita principal e um registro fotográfico dela:
das lições pedra sob pedra é assim. um diálogo de chão e a escrita que se abre
dessa ilha de autoria em solidão. da pedra sob pedra o relevo da voz
ampulheta que escapa toda vez que se curva o passo na correnteza disso que
o rio leva. isso. o it. o instante desse agora e por que não abrir este corpo-
compasso se vai tudo se acabar na quarta-feira. se escorre feito mar essa
escrita calçada.

108
Quase toda a Calle San Bruno, uma pequena travessa, no bairro La Latina, em
Madrid, ficou escrita. Na ocasião do festival, logo no início, um garçom do bar da
esquina da rua avisou que todos os dias lavavam a rua quando terminava o expediente.
Respondi que não tinha problema, que aquele era um trabalho efêmero mesmo. No final
da performance, quando todos já estavam passeando pelos escritos, o garçom me
procurou novamente avisando que naquele dia não iam lavar a rua, porque estava tudo
muito bonito. A beleza, nesse caso, como para esse senhor, tem seu valor naquilo que
perdura. Seu gesto gentil pode ter sido uma tentativa de eternizá-la, embora aquela
escrita esteja inexoravelmente fadada ao desaparecimento.
Segundo Sigmund Freud, em seu texto “Sobre a transitoriedade”, o valor da
transitoriedade é o da escassez do tempo, rompendo com a noção de que o belo está
necessariamente aliado à de eternidade (FREUD, 1975, p. 318). Penso como a lógica do
museu é uma luta justamente contrária de preservação da obra de arte, contra as ações e
a destruição que pode operar o tempo. No bojo desse contexto artístico disparado pela
Arte da Performance, há justamente uma negação ao museu tradicional, em um
deslocamento da arte para a vida e para o gesto cotidiano, que, além disso, repensa a
obra de arte num paradigma de estabilidade e imortalidade. Penso que talvez reconhecer
a literatura nesse território do efêmero é abrigar experiências literárias que nascem fora
do suporte do livro, dos padrões estéticos que guiam grande parte da crítica literária.
Por isso, entendo que pode haver uma leitura do trabalho de Pollock, diferente
da perspectiva da arte como expressão individual do sujeito. O seu trabalho é aqui relido
muito mais enquanto um trabalho de deslocamento dos lugares habituais da pintura, do
rompimento da tela enquanto espaço representativo e de um dado contexto de recepção
que o colocou num lugar de “mostrar-se fazendo”, redimensionou o corpo no ato
criativo.
A partir de seu processo criativo, encontro este princípio que Richard
Schechner59 usa para definir o que é performance: “mostrar-se fazendo é performar:
apontar, sublinhar e demonstrar a ação” (SCHECHNER: 2003, p. 26). Foi dentro desse
entendimento que me coloquei à mostra de um público: retirar-se da “ilha de solidão”
do fazer literário em quatro paredes para se debruçar sobre o chão foi dar amplitude e
visibilidade à ação que atravessa o corpo quando empenhado da criação literária, ao
mesmo tempo em que desloca a literatura do espaço canonizado e legitimado do livro.

59
Richard Schechner é um dos professores e fundadores do programa de Performance Studies da Tisch
School of the Arts da Universidade de Nova Iorque, um dos núcleos pioneiros do tema e também diretor
do grupo de teatro experimental The Performance Group.

109
A criação, nesse caso, ascendeu ao status de performance, assim como o gesto
que outrora era cotidiano agora coloca-se diante dos olhos do observador de maneira
deslocada, como, também, o registro de Pollock em ação dá visibilidade ao seu gesto
corriqueiro de pintar, antes privado.
Pensar nesse lugar do ato criativo, complexo de ser acessado, sobretudo pela
crítica, me pediu um corpo em performance. Experiência que indicou a constante
desaparição dessa “escrita-corpo”, quando a repetição é sempre da ordem da diferença,
haja vista que a ação é sempre atualizada pelo agora (PHELAN, 1997).
Assim, a criação literária configura-se aqui, primeiramente, como escrita em
ação. A poética que se desdobrou a partir disso também se dá em tempo presente, não
produzindo uma obra acabada, impressa, indo muito além desses registros, aqui
organizados, para disparar uma reflexão a seu respeito. Nas obras literárias consideradas
a seguir, no entanto, impressas, lidas a qualquer hora e a qualquer tempo. Mas são lidas
como experimento que revela um rastro dessa ação da escrita, de um acontecimento.

110
111
2.5.
A pedra revisitada
Retomo agora a tríade de artistas que mencionei no primeiro bloco, com as quais
crio uma espécie de filiação e tornam-se base para pensar em outras imagens da pedra,
salientando agora a aproximação entre arte e vida, especialmente a potência do gesto.
São elas: Anna Maria Maiolino, Lygia Clark e Clarice Lispector.
Para pensar na ação da escrita, inicialmente, tomei a obra de Lygia Clark como
outra referência dessas lições da pedra. No seu vasto trajeto criativo, a artista plástica
brasileira nos ensina a “tomar consciência do gesto”, ou seja, “é no instante mesmo em
que faz o ato que o espectador percebe imediatamente o sentido de sua própria ação”
(CLARK, 1965). 60
O texto-base para pensar na proposta da artista intitula-se “Nós somos os
propositores”, escrito por Clark, em 1968. A artista diz que cabe o sopro ao espectador e
nos convoca a trazer o pensamento para o ato, o acontecimento: “chamamos você para
que o pensamento viva através de sua ação” (CLARK, 1968). Isso sinaliza certamente
uma das características mais importantes no deslocamento do concreto para o
neoconcreto: a convocação do espectador, no sentido de que as obras pediam um
investimento, uma incorporação.
Em seu trabalho Caminhando, por exemplo, de 1964, o espectador deve criar
uma fita de Moebius. A ação consiste em recortar a faixa de papel de maneira contínua,
caminhando por ela como sugere o título. Lygia chama a atenção para o ato que
engendra a poesia, isto é, nesse, como em outros trabalhos, a proposição da artista lança
a obra como ato e o ato como obra.
Importante sinalizar que Clark integra uma geração que se intitulou
neoconcretos, cujas propostas destrincharei melhor no bloco seguinte. Embora não

60
A maioria dos textos de Lygia Clark utilizados foram aqui lidos através dos arquivos disponibilizados
em seu site <http://www.lygiaclark.org.br/arquivoPT.asp>. Assim, na referência, destaco o ano em que
foram escritos, ao invés do ano de sua publicação, informação que não disponho.

112
sejam tidos como artistas da performance, operam numa fresta certamente forjada desde
as vanguardas até os happenings, a body art, e outras experiências que se abrigaram na
alcunha de “arte da performance”, esse termo “guarda-chuva”, como descreve
Schechner.61
Tendo, sem dúvida, se valido das aberturas que fizeram os poetas concretos, esse
grupo, no entanto, majoritariamente carioca, rompe com os paulistas sob a justificativa
de negar uma “perigosa exacerbação racionalista” como estampa o Manifesto
Neoconcreto62 (GULLAR, 1959, p.1). Recusando uma excessiva objetividade, o “olho-
máquina” que convocava os concretistas, levantam a possibilidade de incorporar a
subjetividade na experiência geométrica, ponto comum dos dois grupos que têm, por
exemplo, no construtivismo russo63 e no neoplasticismo64 uma forte referência, mas,
nesse caso, crendo que o vocabulário geométrico “pode assumir a expressão de
realidades humanas complexas”, propondo, assim, um “olho-corpo” (Idem, p.2).
Esse movimento de ruptura é visível, sobretudo se fizermos uma reflexão sobre
as artes visuais, compreendendo apenas o espaço da tela. Nessas proposições
neoconcretas, o plano adquire um corpo, primeiro a partir da investida de relevos,
dobraduras até a desintegração do quadro, enquanto tela, passando para estruturas
espaciais ou ambientais, como os objetos dobráveis dos Bichos, de Lygia Clark, os
penetráveis de Hélio Oiticica, ou os poemas-objetos de Ferreira Gullar e Lygia Pape,
expandindo o campo visual para o material, o tátil, quando o corpo passa também a ser
integrante da obra.
A pintura torna-se, conforme analisa Gullar, “a pintura da pintura” que, com a
evaporação do objeto representado, transforma a superfície, que antes era objeto
material, no próprio objeto da pintura. Esse movimento, sem dúvida, levado ao limite
pela pintura abstrata geométrica, tem seu germe no Cubismo, que se configura como um
marco da crise da representação, do ataque ao mimetismo e ao figurativo. Aqui temos a
recusa à arte pictórica já presente, também, no expressionismo abstrato de Jackson
Pollock (GULLAR, 2003, p.15).
61
Justamente por negar nomeações e propor arranjos que não se encaixavam em uma tradição artística
anterior, “a performance tornou-se um catalisador na história da arte do século XX; sempre que
determinada escola parecia ter chegado a um impasse, os artistas recorriam à performance para destruir
categorias e apontar para novas direções” (GOLDBERG, 2012, p. 8).
62
Assinam o manifesto Amílcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape,
Reynaldo Jardim e Theon Spanúdis.
63
Movimento estético-político de vanguarda, que conclamava a incorporação do cotidiano, rejeitando a
noção de arte pura. A grosso modo, caracteriza-se como arte abstrata geométrica e tem Kazimir Malevich
como um de seus principais representantes.
64
Movimento artístico disparado por Piet Mondrian, que vai a fundo no rompimento do Cubismo com a
realidade, para forjar uma arte não figurativa que recruta a perfeição geométrica, a objetividade e o anti-
individualismo como formas de revelar a estrutura interna do real (ELGAR, 1973, p. 96).

113
O que destaco da proposta clarkiana é justamente a aproximação entre arte e
vida. Sua obra convoca o espectador a ser contaminado pelo objeto de arte, na vida que
se manifesta no/do contato com a obra. A subjetividade, assim, e a própria existência,
como aponta a leitura de Suely Rolnik, reinventa-se a partir do momento em que se
desmancham certos mundos e criam-se outros, como vimos na Baba Antropofágica e na
experiência de um corpo vibrátil65. A participação do espectador, por isso, não se limita
a sua percepção, mas é a própria realização da obra, ou seja, “é o ato de criar que se
torna obra, work in progress, como a vida”. Por isso, há aqui um enfático tensionamento
na separação entre o sujeito criador e a obra de arte (ROLNIK, 1999, p.13).
Assim, a obra de Lygia seria um marco para a libertação do objeto de arte de sua
“inércia formalista”, de sua “aura mitificadora”, criando para isso objetos vivos, nos
quais poderia se entrever “a processualidade incessante, a potencia vital a que a tudo
agita”. (Idem, p.2) Por isso, o uso dos materiais dos objetos criados pela artista são,
muitas vezes, extraídos do cotidiano, coisas da vida de todo dia, e resguardam qualquer
coisa de precário. Talvez o mais comum deles seja a pedra.
A pedra, no entanto, deve ter a potência daquilo que é vivo. Por isso, trago
novamente uma metáfora de João Cabral de Melo Neto para agora pensar na pedra
transmutando-se em um ovo. O poeta pernambucano, no poema “O ovo de galinha”,
que compõe o livro Serial, publicado na sequência da Educação pela Pedra, compara
os dois elementos. Ao olho, o ovo se mostra íntegro, matéria unitária e maciça: “sem
possuir um dentro e um fora, tal como as pedras, sem miolo”, ou ainda “é só miolo: o
dentro e o fora” (MELO NETO, 1979, p. 51).
Integralmente no contorno, isso é o que diz o ovo ao olho. No entanto, ressalta
Cabral, a mão descobre algo suspeitoso: o seu peso é vivo e não morto. É justamente
aqui que antevejo o olho-corpo, que recruta essa geração de artistas, na figura,
sobretudo do participador. Trabalhos artísticos que desdobram em forma de proposição,
de “dom provocador”, algo como o que “se sente ante um revólver e não se sente ante
uma bala”, nas palavras de Cabral sobre o ovo (Idem, p. 52).
A lição de Caminhando vai exatamente nessa direção. No caso da fita de
Moebius, dentro e fora se embaralham, ao passo que se declina a distância entre o
sujeito e o objeto artístico, como, muitas vezes, propõem esses artistas. Por isso,
convocam o olho-corpo, numa dinâmica de dentro pra fora, de fora pra dentro,

65
Segundo Rolnik, o corpo-vibrátil é “sensível aos efeitos da agitada movimentação dos fluxos
ambientais que nos atravessam”. No caso da experiência da obra de Lygia, emerge um “corpo-ovo, no
qual germinam estados intensivos desconhecidos provocados pelas novas composições que os fluxos,
passeando para cá e para lá, vão fazendo e desfazendo” (ROLNIK, 1996a, p.1).

114
tensionando essa própria dicotomia, em que encontro também lições da pedra: “de fora
pra dentro, cartilha muda”, “de dentro pra fora, e pré-didática” (MELO NETO, 1966, p.
21).
Configurando-se, assim, como um marco em sua obra, no documentário O
Mundo de Lygia Clark, de 1973, dirigido por Eduardo Clark, a artista afirma que,
através de Caminhando, ela perde a autoria e incorpora o ato como um conceito de
existência que se dissolve no coletivo. Sinaliza ainda que toma consciência “da crise
geral da expressão na literatura, nos gêneros que caem, no teatro”, escrevendo textos
dali em diante “negando o nome como identidade pessoal das pessoas” (CLARK,
Eduardo, 1973).
Encontro aqui a crise da subjetividade sinalizada na “morte do autor”,
inicialmente na própria ideia de expressão, num movimento de dentro pra fora. Clark
rejeita, assim, o artista como nome, como mito, fazendo eco com a negação da própria
categoria de autor, como se ele fosse uma existência anterior à sua obra. Em
consonância com o que Roland Barthes coloca, esse artista propositor, como o scriptor
moderno, “nasce ao mesmo tempo em que seu texto”, sendo o texto escrito no aqui e
agora da enunciação. Por isso, escrever não seria mais uma operação de registro, de
verificação, de pintura, mas justamente, na efemeridade do tempo presente do ato, um
performativo (BARTHES, 1984, p. 51).
Temos a libertação da obra de arte confinada na subjetividade do artista. Em
Clark, portanto, esse esfacelamento da autoria está ainda na noção de artista enquanto
propositor, quando desloca o sentido da obra para o sopro do espectador, não mais para
si.66 No caso da literatura, Barthes defende uma emancipação do leitor para a inversão
do autor como mito, reafirmando o “lado de fora” da obra, abrindo-a em múltiplas
leituras para além de um sentido único, um segredo que deve ser descoberto, no fundo,
do “lado de dentro” (Idem, ibidem).
A obra de Lygia, por isso, é auspiciosa para pensar nessa revisitação da pedra
cabralina. Uma referência da canção popular vem imediatamente dentro dessa
discussão, na homenagem que faz Caetano Veloso67 à artista, em “If you hold a stone”,
música do disco London, London, de 1971. O compositor anuncia, nos versos em
inglês, do disco composto no exílio londrino: se você segurar uma pedra, segure em

66
“Nós somos o molde, cabe a você soprar dentro dele o sentido da nossa existência. Nós somos os
propositores: nossa proposição é o diálogo. Sós, não existimos. Estamos à sua mercê. (...) Não lhe
propomos nem passado nem futuro mas o agora”, em “Nós somos os propositores” (CLARK, 1968).
67
Caetano teve seu contato mais estreito com a artista quando se submeteu às sessões de terapia da sua
“Estruturação do Self”, método experimental proposto por Clark, principalmente a partir do trabalho com
objetos relacionais.

115
suas mãos; se você sentir o peso, nunca estará atrasado para entender. 68 A mão, aqui,
vale pelo corpo todo, é a conexão do olho-corpo.
Para tornar isso mais claro, atentemos, por exemplo, para a obra Pedra e Ar
(1966), da fase da Nostalgia do Corpo. O próprio receptor deve encher um saco e fechá-
lo com a ajuda de um elástico, pousando uma pedra em um dos ângulos externos. Com a
pressão das mãos faz subir e descer a pedra, mantendo um equilíbrio, a partir da tensão
dos elementos, para que esse sistema se integre: ar, mão e pedra devem ser um único
corpo vivo. Como em movimentos de sístole e diástole – inspiração e expiração –
próprios da pulsação vital. Aqui sujeito e objeto estão indissociáveis e, além disso, a
obra é apenas no momento da ação.
Aqui temos um soletrar da pedra, um sopro no
molde, na medida em que o pulsar nesse movimento de
mãos vibra o corpo inteiro, fundindo sujeito e objeto num
ser ativo e integrado. Nesse caso, o objeto abandona sua
exterioridade inerte ao passo que o sujeito se livra do
isolamento. Assim, o objeto relacional não se reduz à
visibilidade, convocando um olho-corpo. Aqui, me parece
que a pedra revistada toma as feições do ovo, vivo, nas
mãos, quando é possível sentir que o dentro é fora, e o fora é dentro.
Lygia Clark considera esse objeto relacional seu primeiro trabalho sobre o
corpo. Indo além do olho – muito comumente tido como “janela da alma” – justapõe o
corpo, que está engajado numa ação. Não é um olho-máquina, no sentido racional,
cerebral, como recrutam os concretos, mas uma experiência que convoca a ativação do
corpo vivo.
Por isso, se pensarmos na criação literária, a própria noção de ação da escrita
acontece nessa dupla articulação: o espaço, para além de um mero suporte, também
escreve junto com o corpo; apresenta fissuras, especificidades, fisicalidades, as quais
também compõem o texto.
Quase dez anos antes, em 1958, a
obra Ovo Linear, assim como a fita de
Moebius, já jogava com os limites entre fora
e dentro, tracejando, em volta desse espaço
modular um círculo semiaberto, que deveria

68
Tradução minha. Trecho original da canção, em inglês: if you hold a Stone/ hold in your hand / if you
feel the weight / you never be late/ to understand (VELOSO, 1971).

116
ser completado pela percepção. Chamado por Lygia de linha-tempo, esse jogo se
completa pelo olhar do espectador, pressupõe a superfície como espaço vivo, quando “a
superfície deixa de existir em si mesma e vira um suporte abstrato”, como esclarece no
texto “Especulações sobre o espaço-tempo” (CLARK, 1983).
Já em os Bichos,69 o espectador necessariamente vira um participante na medida
em que eles se ofereciam ao olhar, mas exigiam uma ação. Gullar considera, nesse
alargamento, uma redescoberta do suporte material, em detrimento da virtualidade do
quadro. Mais ainda, o abandono da tela significava uma redescoberta do espaço: “não
mais como lugar onde as formas estão, mas o lugar onde as formas se produzem e
produzem o lugar” (GULLAR, 2003, p.147, grifo meu).
Para além do scriptor moderno da tese de Barthes, mas de passagem pelos
caminhos abertos por ele, a lição clarkiana é de uma estética relacional 70, em que a obra
se faz a partir do encontro e das trocas de um corpo-mundo. Isso responde à crise
anunciada por Lygia justamente incorporando uma subjetividade que não se pauta mais
por um sujeito unitário e solitário – um autor moderno – mas por uma produção de
subjetividade que está submetida a uma coletiva, inseparável do social e do ambiental
(BOURRIAUD, 2009).
Assim, a proposição aqui é que o pensamento viva pela ação do corpo. O
experimento se fosso fosse opera justamente nessa abertura dos neoconcretos para um
olho-corpo, para a estética relacional. Não apenas de observação da ação de escrita, mas
no reconhecimento do “tempo mesmo do ato como campo de experiência” (CLARK,
1966).

2.6. Pulsações do instante-já


A escrita esbarra sempre na impossibilidade de capturar o instante da ação, do
pensamento, pois quando lemos o que já foi escrito “o presente agora do ato” já passou
(CLARK, 1965). Assumo nesta tese a provocação de pensar como a noção de
performance pode ser depreendida não apenas em experimentos cênicos mas também
em experiências que não se encontram no âmbito do “ao vivo”, do tempo real, quando o
gesto da criação literária já se fez no texto concluído.

69
Placas de metais, interligadas por dobradiças, formando estruturas móveis e tridimensionais. Os bichos
escapavam de toda classificação conhecida e inspiraram essa denominação de Ferreira Gullar de não
objeto, denominação, no entanto, da qual discorda Lygia Clark.
70
Schechner esclarece que “a performance não está em nada, mas entre” e, por isso, tratar algo como se
fosse performance significa investigar como “essa coisa faz, como interage” e se relaciona
(SCHECHNER, 2003, p. 28).

117
Escolho Clarice Lispector para integrar essa nuvem de referências, pela
experiência que desenvolve especialmente em Água Viva e, particularmente, pelo que
chama de instante-já. O romance, chamado por muitos de “poema em prosa”, e pela
própria escritora de monólogo, em um dos títulos anteriores 71, à primeira vista já se
coloca como uma experiência escorregadia frente a essas categorias dos gêneros
literários. Lançado em 1973, foi um dos últimos livros editados, sendo sucedido apenas
por A Hora da Estrela (1977) e Um Sopro de Vida (1978).
Curioso notar também que um dos títulos anteriores dessa obra era Objeto
Gritante. A epígrafe72 que abre o romance é de Michel Seuphor – crítico e curador
francês que conviveu com inúmeros artistas de vanguarda, alguns já citados aqui como
Pollock e Mondrian –, parece dialogar justamente com o que falo anteriormente sobre a
questão da representação no rompimento com a pintura figurativa.
Além disso, no trecho, Seuphor fala de uma pintura que pudesse escapar da
linguagem do signo, da figura e, por isso, acessasse os “reinos incomunicáveis” do
espírito, como se aquilo que as mãos dessem ao traço fosse a própria existência, sem
fundar narrativas, sem lançar mitos. Algo impossível de captura pela palavra, pela
representação, somente possível e passível ao risco feito por esse corpo, que existe e é
vivo.
O que a narradora-personagem de Água Viva, cujo nome desconhecemos,
chama de it, nesse sentido, é um dos motes dessa obra. A narradora anuncia: “história
não te prometo aqui. Mas tem it”. Pronome pessoal em inglês, o termo acumula, de
certa forma, as posições de sujeito e objeto: de algum modo “despersonalizado”,
corresponde a coisas, objetos, animais e, ao mesmo tempo, assume, muitas vezes, uma
posição de sujeito, de agente, mantendo-se com a mesma grafia no caso reto e no caso
oblíquo.
Assim, it não tem um significado exato e, por vezes, é quase vazio de sentido,
pouco tem de concreto. Encontro aqui um eco da crise da representação, da negação do
figurativo. Os signos não são mais as coisas, não as representam, e a narrativa aqui
sinaliza justamente essa impossibilidade (FOUCAULT, 2002).73

71
Um dos títulos anteriores do romance era “Atrás do Pensamento: Monólogo com a Vida”.
72
“tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura – o objeto – que, como a
música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em
evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna
existência” (LISPECTOR, 1998, p.12).
73
Encontro esse esgotamento também no narrador de Um Sopro de Vida: “Eu queria escrever um livro.
Mas onde estão as palavras? Esgotaram-se os significados. Como surdos e mudos comunicamo-nos com
as mãos. Eu queria que me dessem licença para eu escrever a sucata da palavra, ao som harpejado e
agreste.. E prescindir de ser discursivo” (LISPECTOR, 1978, p. 5).

118
Em todo o romance, a escritora-pintora mostra-se fazendo. Enquanto lemos é
como se pudéssemos assistir a uma escrita em ação, como se ela se fizesse no ato de
leitura, como se estivéssemos assistindo à personagem; embora se tenha a autonomia de,
em posse do livro, interromper a ação, pular a página, fechá-lo, simplesmente. Mas por
que falo em ação? Porque é uma escrita que se faz em fluxo, com seus milhares de
instantes em curso:
eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago, acendo e
apago, acendo e apago. Só que aquilo que capto em mim tem, quando está
sendo agora transposto em escrita, o desespero das palavras ocuparem mais
instantes que um relance de olhar. Mais que um instante, quero seu fluxo
(LISPECTOR, 1998, p.15).

Pode-se reconhecer o fluxo ainda pela pausa no constante trânsito de vais e vens
da personagem que volta e meia anuncia: “vou embora”, “voltei”, “vou dormir”,
“levantei-me” etc. Dessas pausas, se faz o fluxo que, mesmo no final do livro, não se
encerra: “O que te escrevo é um ‘isto’. Não vai parar: continua” (Idem, p. 87). É como
se pelo fluxo do deixar-se escrever ao “correr da mão”, quase no automático, 74 que a
personagem encontra um modo para “não haver defasagem entre o instante e eu” e, por
isso, fosse indissociável de seu texto, engendrando uma escrita-corpo, como tantas
vezes anuncia: “te escrevo com o corpo todo”, “encarno-me das frases que enovelam
para além das palavras” (Idem, p. 49/20).
Arrisco dizer, ainda, que ouço ecoar uma referência ao entendimento de palavra-
coisa que fazem os concretistas, como uma ironia ou uma releitura da teoria da poesia
concreta. Especialmente quando Lispector diz que palavra é objeto, como se refere à
escrita como coisa-palavra, mas, ao mesmo tempo, diz que essa coisa é mole, viva,
fluida, perecível, periclitante, ela problematiza a noção de objeto (Idem, p.12/60). Por
isso, é um objeto gritante:
o que sou neste instante? Sou uma máquina de escrever fazendo ecoar as
teclas secas na úmida e escura madrugada. Há muito já não sou gente.
Quiseram que eu fosse um objeto. Sou um objeto. Objeto sujo de sangue. Sou
objeto que cria outros objetos e a máquina cria a nós todos. Mas eu não
obedeço totalmente: se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita
(idem, p.79).

Um dos argumentos do manifesto neoconcreto vai justamente nessa direção


quando acusa os poetas concretos de colocarem a imitação da máquina como ideal
(GULLAR, 1959, p. 3). A narradora sinaliza sua capacidade de raciocínio, que estudou
matemática – como se referindo a uma racionalidade da composição, concreta,

74
“Agora te escreverei o que vier à minha mente com o menor policiamento possível. É que me sinto
atraída pelo desconhecido” (LISPECTOR, 1998, p.76).

119
calculada – mas que agora quer o plasma, “quero me alimentar diretamente da placenta”
(LISPECTOR, 1998, p. 9).
Se pudesse ser feita uma releitura da metáfora da pedra, nesse contexto, não
seria mais uma pedra cabralina – concreta, seca e compacta – mas um objeto que
assumisse a maleabilidade de uma obra mole75, talvez uma pedra apoiada num saco
plástico cheio de ar, como no experimento de Clark, anteriormente analisado, ou o ovo
nas mãos, apunhalado.
O ovo76, tão caro à obra clariceana, tem essas feições de plasma, ao mesmo
tempo em que se coloca no mesmo nível de uma placenta. Representaria aqui o
desconhecido – de nunca saber se a origem é o ovo ou a galinha – assim como é
anunciado cada instante que decorre dessa ação de escrita.
Nesse caso, o ovo seria a metáfora do instante, sempre na iminência, como essa
escrita, sempre prestes a acontecer. Escreve-se como se passasse um ovo quente
depressa, de uma mão para outra (LISPECTOR, 1998, p.76). E, uma vez nas mãos,
como no “Ovo de Galinha” de João Cabral, descobre-se que seu peso morno e túmido é
vivo e não morto (MELO NETO, 1979, p. 51).
A escrita é posta como o útero do mundo e dela se nasce. 77 Assim, porque a
escrita é vida, porque se vive no ato de escrever, essa narradora, mesmo anunciando o
destino de desaparecimento do instante, inexoravelmente passado, afirma que é no ato
mesmo de escrita que nasce, que vive, arriscadamente. Escrever aqui é sinônimo de
existir, de ser.78 Vive-se cada coisa, anotando-a.
Sem dúvida que novamente temos a questão do sujeito da escrita aqui, no
contexto anunciado da morte do autor. No entanto, tem-se um curioso paradoxo.
Embora esteja diante de um inevitável desaparecimento, o gesto que faz surgir a obra,
que a cria, assume uma anatomia.
Como na frase do conto “O Ovo e a Galinha”, “quando morri, tiraram de mim o
ovo com cuidado: ainda estava vivo”. Essa narrativa pulsa, há nervos e palavras
encarnadas (LISPECTOR, 2002, p. 207). Embora ainda esteja diante da crise da

75
Obra Mole, trabalho de Lygia Clark de 1964, feito de borracha.
76
O ovo é um ícone importante dentro da obra clariceana, sendo o conto, “O Ovo e a Galinha”, cabal para
seu entendimento. Nele, Clarice diz ser impossível ver um ovo e toma cuidado de não entendê-lo. O conto
integra os livros Legião Estrangeira (1964) e Felicidade Clandestina (1971).
77
“Entro lentamente na escrita como já entrei na pintura. É um mundo emaranhado de cipós, sílabas,
madressilvas, cores e palavras – limiar de entrada de ancestral caverna que é o útero do mundo e dele vou
nascer. E se muitas vezes pinto grutas é que elas são o meu mergulho na terra, escuras mas nimbadas de
claridade, e eu, sangue da natureza – grutas extravagantes e perigosas, talismã da Terra, onde se unem
estalactites, fósseis e pedras, e onde os bichos que são doidos pela sua própria natureza maléfica
procuram refúgio.” Mais à frente ela completa: “E tudo isso sou eu” (LISPECTOR, 1998, p.14-15).
78
“Vim te escrever. Quer dizer: ser” (Idem, p. 33).

120
expressão, essa resposta não é, de modo algum, uma tentativa de retorno ao autor
enquanto sujeito biográfico. O ovo é lido, aqui, como presença de um corpo que
atravessa e é atravessado por essa escrita.
O texto da morte do autor escrito por Roland Barthes data de 1968. Como já o
apreciamos, a linguagem está acima de tudo, como se não pressupusesse um corpo. A
conferência “O que é um autor?”, proferida por Michel Foucault, é do ano seguinte,
1969. Indo um pouco mais além, pensa como um nome de autor constitui uma instância
discursiva, um estatuto, uma função, que, por sua vez, manifestam um conjunto de
discursos numa dada cultura (BARTHES, 1984; FOUCAULT, 1992).
Esses dois textos, tão importantes para a crítica e teoria literárias, a partir de
então, embora tenham sido escritos num contexto artístico de grande efervescência e
experimentação dos limites do corpo no que tange à sua “realidade carnal”, revelam
uma absoluta indiferença pelo corpo de carne e osso (BANES, 1999; AGAMBEN,
2007, p. 51).
Aproprio-me do entendimento de autor como gesto, de Giorgio Agamben, que
redimensiona a questão:
O autor marca o ponto em que uma vida foi jogada na obra. Jogada, não
expressa; jogada, não realizada. Por isso, o autor nada pode fazer além de
continuar, na obra, não realizado e não dito. Ele é o ilegível que torna
possível a leitura, o vazio lendário de que procedem a escritura e o discurso.
O gesto do autor é atestado na obra a que também dá vida (AGAMBEN,
2007, p. 55).

Vejo no gesto, no movimento da grafia, a possibilidade de um corpo entranhar-


se numa obra. A nossa narradora diz “escrevo em signos que são mais um gesto do que
uma voz” (LISPECTOR, 1998, p. 22). Proponho que vejamos essa experiência como
um corpo que nasce junto com a ação de escrita. Voz, aqui, também entendida como
uma expansão da corporeidade e não necessariamente como uma expressão de um
sujeito individual (ZUMTHOR, 2007, p.16).
“Esta é a vida vista pela vida”, como diz mais de uma vez: “não sei captar o que
existe senão vivendo aqui cada coisa que surgir” (LISPECTOR, 1998, p.18, grifo meu).
Nesse aqui, são as mãos em uma máquina de escrever que a narradora clama para tocar
o nervo desse agora-já, “o nervo vivo e fremente do hoje” (Idem, p.18/65).
Tudo isso pode ser lido, ainda, pela questão do tempo, que se religa à noção de
acontecimento. A escritora-protagonista de Água Viva anuncia, já de início, que está
em busca de possuir os átomos do tempo, o presente: “estou tentando captar a quarta
dimensão do instante-já que de tão fugidio, não é mais porque agora se tornou um novo

121
instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero
apossar-me do é da coisa” (LISPECTOR, 1998, p. 9; grifo do autor).
O instante, nesse caso, não é feito por quem narra, mas também não se faz
sozinho, é relacional, se faz pelo ato: “fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma
desenvoltura de toureiro na arena” (Idem, ibidem). A escritora, portanto, nessa “arena
de ação”, como um action panting, tentando captar os átomos do tempo, sente
necessidade de fazê-lo pela palavra, sua “quarta dimensão”. Como se quisesse, ainda, ir
além do objeto, do tridimensional, que anuncia fazer uso de “sílabas cegas de sentido”,
querendo “um sentido quase que só corpóreo” (Idem, p.11). Como se, para captar o
presente, para imprimir a existência do corpo, devesse prescindir de significados, do
sentido.
Penso no “instante-já” justamente como o tempo em que decorre a ação da
escrita dessa personagem. Nesses milhares de instantes, a narradora de Lispector
denuncia-se numa escrita que se apresenta falando dela mesmo, isto é, do presente de
sua ação que é atualizado na leitura que fazemos dele: “mesmo que eu diga ‘vivi’ ou
‘viverei’ é presente porque eu os digo já” (Idem, p.17). E é no presente que reside o
encontro com o leitor: “este instante é. Você que me lê é” (Idem, p. 33).
Se pensarmos nesse texto como uma tentativa de apreender o “aqui e agora”
desse tempo ficcional, que é o tempo em que se faz a criação dessa escritora, podemos
concluir que a personagem habita o tempo da efemeridade da ação da escrita, que
decorre a cada instante-já, sempre fugidio. No entanto, no tempo real, a natureza dessa
escrita já concluída não é completamente efêmera, pois está impressa em livro.
O tema da escrita no romance, portanto, gera uma ambivalência, na medida em
que fala do ato criativo no momento em que o engendra, numa tentativa de capturar o
instante-já, fixando-o com palavras, a narrativa fala de um tempo vivo, embora o
presente se apague a cada frase (Idem, p.77/85). Em outras palavras, pode-se pensar que
há uma relação entre o instante-já (o tempo da ação, daquilo que é vivo e está em curso)
e o registro (a escrita que apreende o tempo, pela materialização da narrativa em livro)
que engendra dois tempos diferentes, em tensão, presente e passado.
O leitor é que atualiza o agora da ação, pelo instante-já de sua leitura. 79 A
escritora adverte: “lê então o meu invento de pura vibração sem significado senão o de
cada sílaba” (Idem, p.11). Sílaba não tem significado, mas tem som e vibra. Será que
aqui não temos uma convocação para além da representação, mas que convida a uma

79
Em Um Sopro de Vida, o narrador diz: “o instante-já é feito de fragmentos. Tudo se passa exatamente
na hora que está sendo escrito ou lido” (LISPECTOR, 1978, p.11).

122
experiência, uma estética relacional? Como se a leitura aqui também fosse numa certa
medida um disparador do acontecimento?
“Ao correr das palavras”, estamos, leitores, sempre a par do fazer, do work in
progress80 da narração: “quero não o que está feito, mas o que tortuosamente ainda se
faz” (Idem, p.12). A escrita, nesse caso, é acontecimento, que se faz através do
percurso dessa voz no tempo: “não gosto do que acabo de escrever – mas sou obrigada a
aceitar o trecho todo porque ele me aconteceu”. Como se estivesse à mercê do acaso, do
desconhecido – “não sei sequer o que vou te escrever na frase seguinte” – oscila entre o
improviso e o controle da escrita, pois ela está em curso: “estou esperando a próxima
frase. É questão de segundos” (Idem, p. 27/59/32).
O corpo se escreve, portanto, movido pelo aqui e agora. É na espacialização de
um tempo precário e instável que acontece essa performance da escrita. 81 O livro,
então, pode ser lido como uma materialidade que registra e cristaliza um tempo, no
entanto, constantemente borrado e refeito pelas infinitas possibilidades de leitura, feito
giz.

Germinações do percurso

80
Traduzido literalmente por obra em progresso, o termo, segundo Renato Cohen, “é o mecanismo
gestador de uma série de manifestações e expressões artísticas”, usado de maneiras distintas na cena
contemporânea. Voltaremos a esse termo com mais atenção quando falarmos do blog (COHEN, 2004, p.
2).
81
A teoria da poesia neoconcreta, proposta por Ferreira Gullar, sinaliza que “no tempo e não no espaço a
palavra desdobra a sua complexa natureza significativa. A página, na poesia neoconcreta, é a
espacialização do tempo verbal: é pausa, silêncio, tempo” (GULLAR, 1959, p. 3). Ainda sobre a duração,
diz Lygia Clark: “propomos o precário como novo conceito de existência contra toda cristalização
estética da duração” (CLARK, 1966).

123
Rio de Janeiro, 1981. Uma série de ovos está sobre uma calçada de pedras. Por
entre eles, caminha uma moça de pés descalços. A performance registrada integra o hall
de trabalhos de Anna Maria Maiolino sob o título EntreVidas, uma fotopoemação. É o
anúncio do trajeto que provisoriamente aqui se encerra.
O ato engendra a poética, como em Caminhando, como foi a observação e a

interpelação dessa ação de escrita, dessa poemação que se faz pelo corpo do gesto. O
ovo aqui também é um objeto vivo e, em sua materialidade, reside uma potência vital. A
obra, portanto, se encarna da vida que pulsa nas coisas. Assim como na obra de Clark,
“o corpo e os objetos despertam de sua inércia como coisas para existir como vivos,
num processo de criação permanente que se faz entre eles e os leva a tornar-se outros”
(ROLNIK, 2011, p. 48).
O caminho se faz o tempo todo sob a condição do risco, que deve envolver uma
performance que, enquanto tal, desafia justamente a forma estável, o corpo e os atos – e
também os chamamentos – estabelecidos enquanto norma. Um desvio. No curso do
movimento, pode ser que os ovos se quebrem abruptamente ou que sejam apunhalados 82
por vontade própria, dando a ver cascas, essas que formam nossa “subjetividade
geológica”, por camadas, instável e incessante (ROLNIK, 2006).
Nos extratos da fotopoemação temos um relance de movimento, por entre os
ovos, por entre vida. Impossível não retornar à imagem do fio partido e dos ovos que se
quebram no conto “Amor”, de Clarice Lispector, mencionado no Bloco 1. Temos aqui
uma subjetividade em suspensão, posta em risco, sujeita à transformação. Ela desafia
justamente o “terror ao despedaçamento”, a “obstrução do corpo vibrátil”, de uma
subjetividade habituada com o mundo estável (ROLNIK, 1999, p. 22).
O inacabamento da obra está em contraponto à própria noção de um sujeito que
não se modifica, não se afeta, que tem um rosto fixo. Por isso, tanto a obra de Clark
quanto a de Maiolino, e também a de Lispector, que produzem mais ou menos num
mesmo período cronológico, dizem dessa crise do “sujeito da razão consolidado no
iluminismo”, extrapolando as fronteiras da arte num desejo de religá-la à vida e sua
potência. Operam contra uma cultura dominante, portanto, que se separou da vida
(ROLNIK, 1999, p. 2).

82
É impossível não citar aqui o conto “O Ovo Apunhalado”, de Caio Fernando Abreu, que dá título a um
de seus livros de conto, publicado, pela primeira vez, em 1975. Embora não tenha conseguido estabelecer
nenhuma conexão mais estreita com o percursso que aqui engendrei, é importante sinalizar que Caio
Fernando, junto com Clarice Lispector, é um dos escritores que mais me mobilizou a escrever e, me
parece, que, de alguma forma, religa pontas entre a literatura e a vida.

124
Tomo essas lições, sobretudo, para o entendimento de obras que se realizam na
experiência, na temporalidade do gesto, quando a obra é acontecimento e a noção de

performance está justamente no ato de transformação. Em outras palavras, seria dizer


que, tanto a escrita quanto o sujeito que empreende sua ação está em um movimento
permanente de reinvenção, quando atravessados por um gesto literário.
Como na obra de Maiolino, o gesto tem a densidade do “entre”, ou seja, “do
momento entre a tênue presença em que a vida se dá ao enorme risco que tem de
desaparecer” (DOCTORS, 2006, p.152). Tensiona visibilidade e invisibilidade, põe em
jogo presença e ausência. Por isso, temos na obra da artista uma busca pela

germinação, que, nas palavras de Rolnik, seriam flora ções da realidade, ou seja,
reparar em tudo pela primeira vez. É assim que Maiolino religa arte e vida, opera entre o
caminho do gesto passado e da ação que se perpetua na materialidade da obra. Ela busca
conservar “na fixidez, inerente à forma em constituição, sua forma movente, sua
fluidez” (DOCTORS, web, p. 2).
Como na obra que fecha o percurso deste bloco, Arroz e Feijão83, a semente que
germina, assim como a escrita com o giz estão fadadas, inexoravelmente, à
transformação e, por isso, desafiam a forma fixa. Não permanece aprisionada nela
mesma, nem em que a cultiva, mas é lançada à potência de florescer. Não está mais na
semente, nem reside inteiramente fora dela: é o seu entre-lugar, habitando, assim, o
próprio movimento.

Instalação de Anna Maria Maiolino, realizada, pela primeira vez, em 1979, formada de uma grande
83

mesa de jantar, com pratos cheios de terra, onde germinam sementes de arroz e feijão.

125
Como a escrita, a obra pode ser entendida como inseparável do devir, em um
processo que extravasa o vivível e o vivido. Uma paisagem que só aparece em
movimento e está sempre inacabada, “em via de fazer-se” (DELEUZE, 1997, p.11).

126
127
128
“e agarro o sol com a mão.”

“Mel”, canção de Waly Salomão e Caetano Veloso

–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----

129
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----

–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - U-M-A

—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - - ----
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----

130
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----
–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
----

131
3.1. VANGUARDAS, VAIAS E VIVAS
O item que abre este capítulo foi produzido numa ordem embaralhada. Depois
de ter feito uma primeira acepção da leitura da obra de Waly Salomão, surgiu uma
necessidade de traçar e percorrer experiências cronologicamente anteriores, como se
fosse possível aqui traçar uma espécie de linhagem. Por isso, nessas vanguardas, vaias e
vivas, há uma série de artistas que agrupo naquilo que encontrei enquanto experiências
de performance em literatura. Percorro esse fio do tempo até chegar nos Babilaques, de
Waly Salomão.

Mais que uma cronologia, este item tem por objetivo muito mais uma noção de
genealogia, pois não pretende recuar no tempo para estabelecer uma continuidade.
Quero muito mais, aqui, demarcar desvios (FOUCAULT, 2000, p.15).

3.1.1. Das aberturas iniciais

O termo vanguarda, do francês avant guard, traz consigo uma acepção militar, a
saber, parte do exército que marcha em frente, responsável por um movimento, que, na
arte, pode também vir associado às palavras: ruptura, choque, ataque, violência. Hoje é
unânime associá-lo à noção de um grupo ou artista percussor, pioneiro, à frente.
Mas o que significaria dizer de um artista à frente de seu tempo? Essa noção não
guardaria o entendimento do curso da arte como um desenvolvimento linear, uma
concepção progressista e moderna em que os artistas, que se adiantaram no tempo,
estariam anos adiante e que aqueles que não, ficaram para trás? E teria menos valor
coincidir o presente?
Não seria também a noção de vanguarda imprecisa e arbitrária, já que a própria
definição sobre o que seria mais avançado desaguaria, inevitavelmente, numa polêmica,
num condicionamento histórico?84

84
Ferreira Gullar, no ensaio “Vanguarda e Subdesenvolvimento”, se pergunta ainda se o conceito de
vanguarda estética é válido, a um só tempo, na Europa, nos Estados Unidos, no Brasil. É certo que, em
tempos de globalização isso deveria ser posto de outra forma, mas fica essa outra dúvida também, assim
como a de que a noção de vanguarda não pode ser apenas entendida a partir da série de movimentos
artísticos emergentes nas primeiras décadas do século XX, pois, desde quando tornou-se possível
identificar a autoria de uma obra, segundo o crítico, não é raro reconhecer artistas que se adiantaram a seu
tempo (GULLAR,1984, p. 20/27).

132
Pergunto-me ainda se é possível ser contemporâneo às vanguardas em
diferentes tempos, ou seja, se é possível pensar nessas experiências fora do tempo em
que elas foram concebidas.
Em que tempo se localizariam agora? Que ligações fazem com o que acontece
posteriormente, como participa de outros tempos? Proponho que essa operação seja feita
numa noção de barragem, nesse momento de escrita-reflexão, levantando os pontos que
aqui interessam para tomá-las como ações de performance. Nesse sentido, seria não
considerá-las tão somente no curso do tempo histórico, apontando como rompem,
negam ou reinventam do ponto de vista do passado.
Dentro do que foi considerado arte de vanguarda, por exemplo, principalmente
as propostas artísticas florescidas nos anos 1970, seria refletir como elas gozam dos
caminhos abertos, desde as vanguardas da geração de 1920, tanto no nível nacional
quanto internacional. Prefiro pensar que o primeiro ponto em comum entre essas
diversas tendências é que elas pretendiam arruinar o que se costumava entender e
praticar como arte, sobretudo no que tange a um “desejo de distanciamento de qualquer
origem, de qualquer função específica da arte”, que estivesse livre dos valores e
avaliações da História da Arte. (FAVARETTO, 1992, p. 22)
Recorro, assim, aos manifestos e proposições de “novas poéticas”, novas
propostas para criação literária, menos na certeza de que foram levadas a cabo, mais na
maneira como explicitam um modo de pensar, enquanto operação artística. Como a
noção de um programa, por exemplo, nos termos de Hélio Oiticica, em que se oscila
entre uma posição estética, um desenvolvimento individual ao mesmo tempo em que se
completa num contexto histórico, inserindo-se em movimentos coletivos.
Portanto, seria reconhecer aquilo que ressoa na possibilidade de
experimentações que perpassam tanto artistas que se entenderam como modernistas ou
concretos quanto os dissidentes neoconcretos que compartilharam de inquietações e
impulsos poéticos comuns e os valores estéticos com os quais entram em discordância.
Interessante sublinhar ainda que, ao ler os manuais que sistematizam uma
história da arte da performance, é frequente a referência aos poetas e escritores
envolvidos nos movimentos de vanguarda, desde os dadaístas de Zurique, os surrealistas
parisienses até a Semana de Arte Moderna de 1922 e o que se chamou de
neoconcretismo no Brasil. No entanto, paradoxalmente, pouco se enfoca diretamente
nas relações entre literatura e performance. Fala-se muito mais de artes visuais ou do
próprio teatro, por exemplo.

133
A partir da escolha de artistas brasileiros fundamentais para as discussões
engendradas nesta tese, como Waly Salomão, construí, assim, meu corpus de pesquisa,
mais especificamente nos acontecimentos e artistas emergentes mais ou menos em torno
desse marco temporal, que, no Brasil, sinaliza as relações entre vanguarda e
contracultura, mais precisamente nos idos 1968.85
Certa de que muitos manuais sobre a arte da performance assumem o desafio de
traçar cronologias e agrupar múltiplas experiências e artistas na alcunha de
performance, mas que concentram especialmente no panorama internacional, este
trabalho, em contrapartida, tem o desejo de refletir sobre a performance agrupando
artistas brasileiros, olhados principalmente pelas lentes da literatura.
A história da arte da performance, portanto, ou melhor dizendo o percurso
dessas experiências na linha do tempo se confunde com a própria história das
vanguardas. As proposições aqui revisadas são importantes para pensar a performance
nos termos que esta tese propõe. São elas que convoco para começar esse cortejo de
experiências, focando-me na experiência brasileira, cujo marco inicial é a Semana de
Arte Moderna de 1922.
Embora muito se fale da famosa ausência do teatro na Semana de Arte Moderna,
esse evento-chave que muda os rumos da arte brasileira, a partir daquele período, o
crítico literário João Cesar de Castro Rocha (2013) pontua que os artistas dessa geração
levaram o teatro para o próprio cotidiano, para a própria vida. Ora, se se apontam o
futurismo, o dadaísmo e outros movimentos de vanguarda do início do século XX como
uma espécie de pré-história das performances, não seria arbitrário se tomássemos o
evento de três dias no Teatro Municipal de São Paulo como um marco possível de uma
tradição de performance no Brasil, sobretudo do ponto de vista da literatura. Isso porque
uma forte referência desses modernistas eram as noitadas futuristas, onde se reuniam
representantes de várias linguagens artísticas, pintores, poetas, músicos, entre outros
(GLUSBERG, 2005; GOLDBERG, 2012).
Marinetti, principal poeta italiano do futurismo, responsável pela maioria de seus
manifestos, organizou vários saraus futuristas, que, posteriormente, receberam a alcunha
de teatro de variedades e, além dessa abertura a muitas manifestações estéticas e pouca
distinção entre poetas, pintores e performadores, carregavam um intenso tom

85
Tanto Jorge Glusberg (2005) quanto Roselle Goldberg (2012), entre outros, pontuam que a performance
é reconhecida como meio de expressão artística independente, a partir da década de 1970. Isso porque, a
partir daí, é possível verificar uma série de artistas que se dedicam exclusivamente a essa forma de
atuação artística. Tomo esse marco temporal como referência para a delimitação deste trabalho que este
bloco se dedica a justificar e analisar.

134
provocativo, obrigavam o público a participar e desejavam desestabilizar a passividade
do observador. Por isso, um gosto pela vaia. Marinetti chegou a escrever sobre o prazer
de ser vaiado e, o aplauso, nesse sentido, significaria algo medíocre, “excessivamente
digerido” (GOLDBERG, 2012, p. 20).
O futurismo, nesse caso, é reconhecido como um movimento que deixa um
legado para experiências posteriores, desde o construtivismo russo até as performances
e instalações. Clama por transformações estéticas, mas também por mudanças de
valores e comportamentos.
Sendo o movimento europeu de vanguarda, do início do século XX, que talvez
tenha escrito a maior quantidade de manifestos, reconheço-os como seu grande
diferencial. Esse gênero textual, que, com o uso de vocativos e imperativos incitavam a
uma ação coletiva, era não apenas o principal porta-voz para justificar e explicar suas
escolhas estéticas, mas também só eram válidos se declamados em voz alta, nas
noitadas ou nas ruas da cidade. É muito importante entendermos o papel que assume o
manifesto, nesse caso. Não só veículo de disseminações de ideias e propostas, valia
mais sua circulação pelos meios de comunicação de massa como os jornais, panfletos
distribuídos, arremessados pelas ruas.
Os manifestos, antes lidos em voz baixa, de caráter privado, pediam uma
performance. Por isso, expunham a integração que pregava Marinetti de uma concepção
de arte que se ligasse à vida moderna, veloz, em movimento, válida para todos os
campos da experiência. Criticando o livro e o museu, que conservavam e comunicavam
um pensamento de maneira passadista, buscavam, na contramão, um fluxo, uma
circulação, um dinamismo para a literatura. E não só ela. Para os futuristas, todos
deveriam se colocar na alcunha de criadores, desde o espectador até o poeta, o pintor, os
artistas, em geral. E era justamente num ambiente coletivo, na ação, que o manifesto se
realizava plenamente.
É importante reconhecer a maneira como esse grupo italiano se propõe a integrar
vida e arte, fundir práxis e poética, sem a rigidez de um conceito. Embora muitos
aleguem que os futuristas atuaram mais nos manifestos do que pondo em prática aquilo
que neles anunciavam, alguns críticos, como Vanessa Bortulucce (2010), defendem, na
experiência futurista, uma ausência dessa cisão, sendo os manifestos, eles mesmos,

práticas. Por isso, Bortulucce entende o manifesto como texto-ação, a um só tempo


gesto e reflexão.

135
Assim, na maneira como circulavam, “beliscando os pés de um transeunte”,
dissolvidos numa poça de sujeira, performados, os manifestos tinham a marca da vida.
Eles produziam sentido, eram efetivados, quando rasgados, vaiados, quando
perturbavam quem os ouvia, quando pediam leitura rápida consonante ao ritmo das
grandes metrópoles industriais. Chegava, por isso, às mãos de novos públicos, aqueles
que o recebiam e liam enquanto caminhavam, pessoas não necessariamente
frequentadoras das grandes rodas literárias, mas consumidoras dos meios de
comunicação de massa (BORTULUCCE, 2010, p.71).
Sob a tônica da velocidade, a literatura se emprenhava de movimento, que pedia

uma ação direta, uma dinâmica, para envolver ativamente o público em seu projeto de
vanguarda. O foco, portanto, era muito mais no fazer do que seu produto final,
provocando, também, o status ontológico da arte, com o desejo de inaugurar uma
estética da impermanência (Idem, p.74).
Nesse ponto da reflexão, já podemos ouvir um eco brasileiro em Manuel
Bandeira e seus metapoemas que falavam e propunham um novo fazer para a poesia,
como “Desencanto”, das Cinzas das Horas (1917), “Poética”, da Libertinagem (1930),
entre outros, como o próprio “Os Sapos”, publicado em Carnaval (1919), e declamado
por Ronald de Carvalho na Semana de Arte Moderna, em meio a vaias e gritos. Aqui
temos também a proposta de uma “nova poética” que tenha justamente a marca suja da
vida, a nódoa de lama no brim do poeta sórdido que dobra a esquina de uma rua
qualquer.
Embora tendo rejeitado a alcunha de futuristas, como fez veementemente Mário
de Andrade e Menotti Del Picchia86, por exemplo, na conferência “Arte Moderna”, lida
durante a semana, é inegável relacionar um tipo de sensibilidade estética que permeava
uma ideia de modernidade que se dirigia para uma busca da poesia pulsante, novas
formas de fazer literatura, de pensar sua composição, assim como na vontade de ir em
outras direções da estética em voga no Brasil.
Além desse desejo de romper com as categorias artísticas já estabelecidas, na
tônica de um evento organizado com uma amplitude de performances artísticas no palco
do Teatro Municipal, que ia desde a declamação de poemas a conferências e
apresentações musicais, é muito importante que se observe como recrutavam o

86
Antes de “A Jaula de uma Escola”, Menotti Del Picchia, em sua conferência, defendia uma liberdade de
atuar no “nosso temperamento”, na diversidade “das nossas maneiras”, sendo a libertação o ponto de
convergência entre os autores. No entanto, afirma que aceitaram em determinado momento o termo
futurista como um “cartel de desafio” (DEL PICCHIA, 1997, p. 288).

136
cotidiano, a vida vivida, “como falamos”, “como somos”, na criação poética
(ANDRADE, 1996, p.11).
Os poetas paulistas modernistas, dentro do Teatro Municipal, onde, naquele
momento considerava-se o local da arte erudita, da tradição, são recebidos com vaias
ininterruptas, algo que marca simbolicamente o sucesso daquilo que se colocava como
inovador e iconoclasta. João Cesar de Castro Rocha (2012) pontua ainda que, para um
artista de vanguarda, a vaia é o verdadeiro aplauso. Em outras palavras, seria dizer que o
aplauso indica insucesso, ratifica um código, se a intenção é romper com o estabelecido,
o contrário da vaia.
Outro ponto importante de ser considerado é a plateia. Na leitura de José Miguel
Winisk, sobre a vaia na Semana de Arte Moderna, o próprio público se exibe e se
assiste, criando uma situação em que o espectador abandona sua condição de
passividade e silêncio (apud RESENDE, 2006, p. 44). Fora do livro, o autor também se
exibe em cena, diz em voz alta, lê publicamente aquilo que forjara no papel.
Certamente, novas condições do fazer literário, em que as aberturas que desaguariam
posteriormente no que foi tomado como performance, como o deslocamento de
categorias e a tensão arte e vida, já tinham aqui seu germe.
Basta dizer, por exemplo, que os poetas do construtivismo russo, cansados dos
previsíveis espectadores dos cafés, decidiram apresentar seu futurismo pela cidade,
andando nas ruas com roupas exóticas, rostos pintados, cartolas, casacos de veludos,
brincos e colheres nas casas de botão, introduzindo a performance, assim, onde vida e
arte não se dividiam, em todas as esferas da cultura (GOLBERG, 2012, p. 40).

3.1.2. O monumento à vaia


Nesse caminho que realizo aqui, paro para ouvir um discurso-manifesto de
Caetano Veloso, na ocasião do III Festival da Canção Popular, realizado no TUCA
(Teatro da PUC-SP), produzido pela Rede Globo, em 1968. Com fúria, o artista baiano
indagava se era essa a juventude que queria tomar o poder, no auge da repressão militar
no país, com o endurecimento da censura pelo Ato Institucional 5 (AI-5). Ao receber a
estrondosa vaia do público, em sua maioria jovens universitários, criticava a juventude
pelo ato que ali simbolizava “matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem”.
Vocês não estão entendendo nada, repete muitas vezes, expondo um impasse diante do
novo, do que não era habitual, da tradição da canção popular até então (VELOSO,
1968).

137
O acontecimento é simbólico, sobretudo naquilo que se fazia enquanto um
policiamento, um cerceamento da liberdade artística em prol de uma estética tradicional.
Lembro-me, por exemplo, junto a esse fato, da passeata contra a guitarra elétrica,
realizada no Brasil um ano antes, em 1967, com o slogan de “defender o que é nosso”,
em São Paulo, com a presença de músicos como Zé Keti, Geraldo Vandré, Jair
Rodrigues, entre outros. Por isso, Caetano compara aqueles jovens à polícia que
espancou os atores da peça Roda Viva, naquele mesmo ano; outro fato emblemático
para a cultura brasileira naquela época.
Além desse ato público, o fato representa uma tensão entre a tradição e uma
vanguarda estética emergente. A própria canção apresentada nesse festival anunciava
qualquer coisa que dá um eco aos impulsos futuristas que outrora visitamos. A letra
falava em derrubar prateleiras, estátuas, livros e, além da canção “É proibido proibir”,
havia uma performance de palco, que ia desde as vestimentas, os cabelos, as guitarras
até uma posição estético-política em relevo na execução pública da música feita por
Caetano Veloso e o trio dos Mutantes, composto por Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e
Rita Lee.
Naquele mesmo ano, Augusto de Campos escreveu um texto que integrou mais
tarde o volume Balanço da Bossa e outras Bossas, intitulado “É proibido proibir os
baianos”. Nele reflete o incômodo causado pelos tropicalistas justamente porque eles
encontraram uma linguagem própria dentro da música popular.
Por isso, explica o choque e a reação irada do público, mais precisamente
daquilo que a vaia carrega consigo, entra em desacordo, isto é, não confere com o
código de convenção do ouvinte, baseado na redundância e na previsibilidade. Assim, a
novidade e o imprevisto trazido por um artista de vanguarda não são compatíveis com
esse “conjunto de conhecimentos aporísticos”. A vaia, portanto, é lida por Augusto
como um atestado de velhice, embora seja, de certa forma, um indicativo de que ali se
fez algo nunca antes feito, na medida em que o novo para ser constituído precisa violar
um código de convenções (CAMPOS, 1974, p. 266).
Para além do fato musical, o crítico-poeta analisa o acontecido de forma a dar a
ver que aquela provocação é levada também para o comportamento físico e “até a roupa
tem uma linguagem”. Chamando de “happening”, um termo surgido nas primeiras
experiências que compuseram o que hoje entendemos como arte da performance, aponta
os ingredientes dessa performance tropicalista: roupas + dança agressiva + poema de
Fernando Pessoa + solos de uivos + melodia + letra. Essa prática, diz ele, resulta numa

138
poesia não linear, não discursiva, cheia de montagens vivas e humor, poesia câmera-na-
mão (Idem, p.165).
Aqui temos outro imbricamento de categorias artísticas, em que assisto à
poesia, ouço os versos cruzarem fronteiras e se manifestarem, tanto no pensamento
desse crítico-poeta quanto na poesia daquele artista baiano, esse cantor. Mesmo sendo
de uma geração anterior, Augusto diz ter os mesmos inimigos que Caetano, os
conservadores, stalinistas e nacionaloides, assim como tinha Oswald de Andrade. 87
A partir desse evento e dessa experiência de cruzamentos de diferentes
linguagens, do campo de batalha da
arte, esse território de poder, onde se
expõem tensões entre passado e
presente, no calor daquele momento,
alguns anos depois, Augusto de
Campos concebe o poema VIVA
VAIA. Assim, reverte o incômodo
da vaia, tomada de maneira geral de
forma pejorativa, e a conclama,
dizendo viva!
Impresso pela primeira vez na Revista Nave Louca, talvez esteja aqui o ponto de
liga da Tropicália com a experiência da poesia concreta. Augusto de Campos conta que
fez o poema em 1971, para Caetano, que, naquele período, já estava no exílio político.
Do embate acontecido no TUCA, em 1968, a vaia chama a atenção como símbolo de
confrontos de gerações e diferentes valores estéticos, tensões que, segundo ele, “nós
também tínhamos vivido” (CAMPOS, 2012). Por isso, então, a ideia de um monumento
dedicado à vaia.
Composto de apenas duas palavras com mais ou menos as mesmas letras VIVA
e VAIA, com letras ora vermelhas ora brancas, compõe-se com um design específico de
maneira que se confundem um pouco o viva e a vaia. A tipografia 88, nesse caso, é
fundamental para essa primeira confusão, já que, se olharmos mais atentamente as letras
do VIVA são preenchidas de cor, enquanto a VAIA é o negativo de um molde, se faz
pelo vazio de cor. As palavras, portanto, acabam dando
uma ideia de encaixe.
87
Oswald de Andrade merece aqui uma paragem demorada e surgirá a partir de outras referências que se
desaguarão desse bojo. Peço ao leitor licença para continuar sem me estender na sua contribuição, o que
farei adiante, em hora oportuna.
88
Os recursos tipográficos se colocam como “elementos substantivos da composição” (CAMPOS et al,
1958).

139
O tipo de letra criado para o A e o V são triângulos
que compõem uma geometria em que numa repetição é
possível perder de vista a palavra, tornando-se palavra-
coisa, visual, tanto ótica quanto verbal (RISÉRIO, 1998, p.110).

Além disso, as letras V e A criam um isomorfismo, já que sua peculiar tipografia


coloca as duas num certo espelhamento. Juntos, o fonema, que se repete, integra as
duas palavras. Ora vazado, ora preenchido.

Importante perceber, ainda, que as palavras são uma mesma espécie,


geometricamente, só que opostas. Por exemplo, o vaia, lido de cabeça pra baixo é um
viva. O viva, lido de cabeça pra baixo, é uma vaia.

Como no detalhe da imagem acima, criam, ainda, uma oposição, que pode ser
lida justamente pelo que geralmente caracteriza uma vaia (um ato pejorativo, de
rechaço) e um viva (um ato de louvor, de conclame). Assim, forma e conteúdo se
imbricam, indissociados, como bem prevê o projeto da poesia concreta. A oposição dos
triângulos pode ser lida ainda no que faz Augusto de Campos ao reverter a vaia dada a

140
Caetano Veloso,
fundando, assim, esse
monumento, essa ode,
abandonando um lugar de
pesar, reativo.
A repetição das
letras também pode ser
lida como um eco.
Repetições, inclusive, que
foram muito trabalhadas
em outros poemas de
Augusto de Campos,
como no poema LUXO LIXO.
Viva pode ser tomado em algumas acepções: de conclame, interjeição “viva”; de
vivacidade; de permanência.
Poderíamos encontrar também no poema um eco da canção Tropicália, de
Caetano.
Onde se ouve: Viva Maria iáiá.
Por que não lê: Viva vaia iáiá?

Caetano explica que a terminação significa mãe em iorubá, e um chamamento


que os negros escravos no Brasil usavam para com suas donas, patroas ou toda mulher
que lhes fosse superior (VELOSO, 1997, p. 189). No poema de Augusto encontramos
um pouco da defesa do poeta paulista ao movimento da Tropicália e a apropriação de
seu modo de compor a sua canção-tema.
Interessante notar ainda como esse poema metamorfoseia-se num objeto
plástico, ganhando relevos na publicação Poemobiles, em 1974, uma série de poemas-
objetos feitos em parceria com o artista visual Júlio Plaza. Os poemas aqui tomam
relevo, viram móbiles e as palavras se desdobram deles em três dimensões. O
movimento de abrir esse móbile específico engendra, a partir das dobraduras e relevos
criados dentro de um papel dobrado, uma espécie de boca, que se abre e se fecha. Quase
posso ouvir uma vaia saindo do papel. Nesse caso, inverte-se a ordem: poema em

141
primeiro plano é “vaia
viva”; dentro, depois
dessa “boca” se abrir,
lemos “viva vaia”. O
poema, assim, nessa
integração de design,
objeto plástico e palavras,
com a sua carnadura, em
seu corpo de papel, vaia
quem lhe põe em
movimento.
Mais à frente, em
2007, ele é ampliado, num tamanho, digamos, de monumento, na exposição “Poesia
concreta, o projeto verbivocovisual”, produzida pela Fundação Clóvis Salgado com o
Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Formando uma espécie de prisma, olha-se
através do poema, que aqui também possui aberturas.
Dentro dessa exposição já é possível encontrar pistas do que se nomeou
posteriormente “projeto verbivocovisual” dos poetas paulistas, que tomaram para si a
alcunha de “poetas concretos”, Augusto
e Haroldo de Campos e Décio
Pignatari.
Organizados, desde a década de
1950, em torno da defesa de uma poesia
concreta, assumiram a responsabilidade
de toda uma geração posterior que
devoraram suas traduções89de escritores
como James Joyce, Stephan Mallarmé,
Nicolai Maiakovski, Ezra Pound, e.e. cummings, além de retomarem edições e reflexões
acerca de muitos poetas nossos, pouco frequentados na época, como Sousândrade,
Gregório de Matos e, sobretudo, Oswald de Andrade.
No primeiro manifesto, de 1956, citavam esses autores e “as tentativas
experimentais futuristas dadaístas” como uma raiz disso que eles chamaram de um novo

procedimento poético (CAMPOS et al, 1958).


89
Importante sinalizar que os poetas concretos tomavam a tradução como criação e como crítica
(CAMPOS, H. 1970, p. 21).

142
Recusaram a palavra como um veículo indiferente e a convocaram como um

objeto dinâmico, a palavra em si mesma, viva. Situaram-se, assim, de frente para as


coisas, sem evadir-se da realidade. As palavras, nesse caso, devem ter propriedades de
um organismo completo, com tato, antena, circulação, coração.
Para tanto, a poesia concreta imporia um novo sentido de estrutura, “capaz de
sem desgaste ou regressão” ir ao cerne da experiência poetizável. Em outras palavras,
essa experiência poetizável é aquilo que dá vivacidade à ação poética.
Aqui, o design90 tem importância fundamental na recusa de um encadeamento
linear e sucessivo, tão rejeitado pelos concretos. O espaço gráfico, desde a tipografia, a

cor, a disposição das palavras na página, é reconhecido aqui como um agente


estruturador, uma realidade rítmica (Idem, ibidem).
Assim, com os movimentos (de aproximação e semelhança) entre os elementos
gráfico (visual) e fonético (voco) e o uso do “substantivo do espaço” como elementos de
composição, aliados a uma “síntese ideogrâmica do significado” (verbo) é possível
atingir a totalidade verbivocovisual. Poesia concreta, nesse sentido, é “tensão palavras
coisas no espaço-tempo” (Idem, ibidem).
Mas, o que acrescentaria trazer os poetas concretos para pensar performance e
literatura? Poderia responder por
muitos caminhos. Por exemplo, pelo
olhar atento e centrado ao ato de
compor, que, tendo João Cabral de
Melo Neto e outras tantas referências
no objetivismo, na matemática da
criação como em Max Bill, lança
atenção para o gesto criador do poeta,
sua responsabilidade na ação de
desempenho, de performance, na elaboração de suas criações. Basta pensar que o
segundo manifesto faz uma referência direta à construção de Brasília quando anuncia
“Plano Piloto da poesia concreta” e no entendimento dos experimentos concretos no
âmbito da linguagem geométrica.
Ou ainda, querendo costurá-los a outras referências de uma tradição desenhada
nos manuais da arte da performance, poderia apontar, por exemplo, os poetas russos,

Interessante sinalizar que o design gráfico tornou-se uma questão de arte, principalmente com a criação
90

da Bauhaus, escola alemã que pretendia diminuir o intervalo entre as artes e a evolução industrial
(GLUSBERG, 2005. 1970, p. 21).

143
empenhados em ações de agitação e propaganda, muitos integrantes da ROSTA,
Agência Telegráfica Russa. Envolvidos, a partir disso, com a criação de slogans e, por
conseguinte, o desenvolvimento de cartazes que eram colados desde as ruas até os
palcos de teatro, Maikoviski afirmava que as notícias telegrafadas eram transformadas
em cartazes e decretos em slogans, nascendo, espontaneamente, da própria vida
(MAIAKOVSKI apud GOLDBERG: 2012, p. 50). Desde os panfletos até o teatro de
rua agit-prop, esses jovens artistas russos traziam e deslocavam a performance de
espaços fechados, como o teatro, ou privados, como o livro, para a rua, para outro modo
de encontrar o público, bem ao modo dos futuristas italianos.
Prefiro pensar, inicialmente, como a poesia concreta no Brasil abre caminhos
decisivos para olhar outras experiências que mais intensamente se abrigam nessa
alcunha. No entanto, desse encontro aqui descrito, especialmente entre Caetano Veloso
e Augusto de Campos, há uma matéria interessante e suficiente para, por hora, pensar na
incidência da literatura como performance.
A reunião dos poetas paulistas, sua defesa pública e exercício crítico e prático de
sua proposta concreta vêm ao encontro de outro movimento, a Tropicália, na qual, nesse
caso específico, a poesia é performada em palcos de festivais e ampliada/transmitida
pelos aparelhos de TV, o mais empoderado meio de comunicação de massa da época.
Neles, não havia somente uma poesia cantada, mas uma poesia acontecida em
happening que, como descreveu Augusto, ia desde as roupas, a presença de palco até o
discurso verbal.
Poderíamos falar que um happening é uma modalidade da performance, que
usava a indeterminação e o acaso como elementos constitutivos de composição. Uso o
verbo no passado porque tem o primeiro uso da palavra no contexto do evento 18
Happenings e 6 partes organizado por Allan Kaprow, em Nova Iorque, no ano de 1959.
É dele a definição do termo como um evento que só pode ser apresentado uma única vez
(GOLDBERG, 2012, p.165).
O monumento VIVAVAIA surge de um acontecimento, um happening, um
encontro público da poesia de Caetano Veloso com um público específico, donde surge
inesperadamente uma vaia. Mas, além disso, guarda também esse encontro de gerações
quando, no cotidiano dessa aproximação, dessas conversas, muitas acontecidas no
apartamento de Caetano, em São Paulo, um QG de vários artistas de vanguarda, se dá
também o encontro entre teoria e prática, quando a erudição de Augusto e Haroldo de
Campos e Décio Pignatari encontraram o “produssumo” dos tropicalistas
(PIGNATARI, 2004). Augusto de Campos, especialmente, acreditava que o interessante

144
desse movimento para a poesia brasileira era de que ela tinha “migrado das páginas do
livro para as vozes da canção popular” (CAMPOS, 1974, p. 229). Eu arrisco mais,
defendo ainda que a poesia aí migra também para a performance.

3.1.3. O corpo do gesto


As contribuições e experiências de Augusto de Campos e seus parceiros
colaboraram para outros passos e direções de uma nova geração de artistas que se
firmaram principalmente na década de 1960. Inevitável, nesse ponto da travessia,
começar pensando como do poema visual dos poetas concretos surgiram os livros-
poema e as proposições daqueles que se chamaram, inicialmente, de neoconcretos.
O neoconcretismo, de certa maneira, já se colocava como uma espécie de
continuação ou passo adiante do grupo paulista por conta de trazer em sua alcunha o
prefixo “neo”. Filia-se, portanto, dentro de um mesmo contexto de vanguardas. Da
poesia concreta, sem dúvida, herdou especialmente a exploração da expressão espacial e
visual do poema, atentando para sua construção. Assim, focou-se na relação ótico-
fonético-semântica, sua natureza verbivocovisual e não numa preocupação expressiva,
lírica e existencial.
Embora a estética dos neoconcretos seja distinta do movimento anterior, ainda
que se afirmem como uma negação dele, Ferreira Gullar, poeta e crítico, redator do
Manifesto Neoconcreto, admite que o impulso dessa nova poética, sobretudo o
intercâmbio com os paulistas, orientou suas buscas e os impasses a que chegaram os
seus experimentos poéticos: “nossas descobertas e invenções haviam decorrido da arte
concreta” (GULLAR, 2007, p. 23/41).
No manifesto assinado também por Amilcar de Castro, Franz Weissmann, Lygia
Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim, Theon Spanúdis, em 1959, na ocasião da 1ª
Exposição de Arte Neoconcreta no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, fica
clara essa tentativa de distância dos concretistas de São Paulo, que eles ressaltam como
uma atitude de “tomada de posição” (GULLAR et al., 1959, p.1). A denúncia principal
era do perigo da “exacerbação racionalista”, naquilo que consideravam excessivamente
cerebral, quando, ao contrário, pediam espaço para a intuição. Por isso, renunciam a um
“olho-máquina” e convocam um “olho-corpo”.

145
O
corpo,
especialmente,
é um passo
importante
nessa
caminhada para
pensarmos na
performance.
Procuro
mostrar isso na
experiência de
alguns livros- poemas de
Gullar, como é o caso de fruta, osso e faina. Antes, importante flagrar o impasse que
ele chega nas experiências com o poema visual, que o motiva para a experiência com o
livro-poema.
Especialmente a partir do poema “verde erva”, o qual faz uso da repetição da
palavra verde, na forma de um quadrado, impressa 12 vezes. Dessa geometria, escapa
do quadrado a palavra erva. O poeta conta que um dia, numa conversa com um amigo
que gostou muito do poema, perguntou-lhe se tinha notado que a repetição da palavra
verde fazia eclodir dela a palavra erva. Surpreendentemente ouviu a resposta de que seu
leitor-amigo não tinha lido palavra por palavra, sua leitura certamente visual foi
espacial, isto é, notou-se que a palavra repetia-se, mas não se leu necessariamente cada
uma para depois deparar-se com aquela que escapava. Isso feriu, de certa forma, a
intenção que teve Gullar em sua composição, que se perguntou, então, como obrigar a
leitura de palavra por palavra. Segundo ele, foi esse problema que o levou a inventar o
livro-poema (GULLAR: 2007, p. 32).
Foi então que, nos livros-poema já citados, investiu-se no passar da página, em
que, cada palavra sozinha, num resto todo branco, convoca a intervenção, a participação
do leitor. Em alguns deles, como em osso e faina, o poeta, por exemplo, deixa um
espaço de recorte, para que o leitor mesmo descubra e leia o poema da forma como ele
é, pelo seu próprio gesto, através de cortes diagonais, verticais ou horizontais indicados
pelo poeta, que assume a diagramação de seus próprios livros.

146
A forma do livro é, então, indissociável do poema; sua leitura com o empenho
do corpo é condição necessária para que ele se constitua e se realize como expressão.
Em outras palavras, é pensar que o livro é o poema, o poema é o livro, que, nesse caso,

só acontece através de uma performance do leitor, sua intervenção, sua ação (Idem,
p. 37).
Essa estrutura espacial, manuseável, que convoca o leitor e seu olho-corpo, foi
inspiração para Lygia Clark criar o primeiro trabalho de sua série, Bichos. Além da
semelhança de formas, os dois trabalhos da fase neoconcreta desses artistas convocam o
leitor como participador. Há, aqui, uma convocação da experiência artística do artista
para o espectador, no intuito de tirá-lo de uma posição que possa incorrer somente de
modo contemplativo e passivo, recrutando, assim, uma experiência, em que, sobretudo,
o corpo esteja, ele todo, ativo.

147
Demorar-me-ia muito aqui traçando encruzilhadas entre os neoconcretos e suas
relações com a vanguarda, como a influência, por exemplo, de Mallarmé e seu projeto
do Livre, livro de páginas soltas, ou mais extensamente falar dos suprematismos russos,
da teoria do não objeto, a morte da pintura, tópicos que estarão inevitavelmente no
futuro dessas páginas, nas análises que seguirão. Faço algumas menções, no entanto,
para que não percamos o objetivo desta caminhada.
O interesse, neste percurso inicial, é sinalizar como a experiência neoconcreta
aqui pode ser vista pelas lentes da performance, especialmente os livros e poemas-
objetos de Ferreira Gullar e Lygia Pape, mas também a maneira como Lygia Clark vê o
gesto instaurando uma poética e outras propostas de incorporação da obra de arte como
os Penetráveis e Parangolés de Hélio Oiticica.
Partindo do impasse criado pela arte concreta que, na visão desses artistas,
separava a arte do público, no meu entendimento, vejo, aqui, uma virada quando se
convoca o espectador para, com o objeto, sentir, através de sua ação, a arte no corpo, na
realidade do gesto. Tem-se, aí, uma convocação ao devir da obra e não de sua
representação.
Isso certamente pode ser lido, por exemplo, pelo Cubismo e a maneira como
abandonam a servidão da pintura ao objeto representado, partindo os laços com o
figuratismo e a representação, tornando a realidade disforme. Além disso, podemos
recuperar essa explosão da moldura, quando progressivamente acontecia da
incorporação de elementos materiais tomados do mundo concreto, desde as colagens de
escritos de jornal de Georges Braque às provocações escritas dos quadros de Francis
Picabia até os ready-mades de Marcel Duchamp, que colocam a arte em zonas

148
intermediárias, inomináveis que, depois, vão tomando denominações e alcunhas como a
ideia de instalação, assemblages e a própria performance.
No caso das artes visuais, especialmente a
obra de Malevich e Mondrian, ultrapassam os
limites do quadro, quando vão além da sua
expressão virtual, para dar a ver o seu espaço
real. É o caso do famoso quadro todo branco de
Malevich, Branco sobre branco, quando a tela
mesma, vazia do objeto representado, torna-se o
objeto da pintura. Não seria arbitrário pensar que,
desde os concretos, o elemento da página em
branco é explorado e se torna mais intensamente trabalhado em livros como o
Formingueiro, de Gullar, que isola cada palavra numa folha.
Proponho que pensemos também que a ultra passagem dos limites do quadro
está para a ultrapassagem dos
limites da página. Desde as
investidas de Mallarmé, por
exemplo, no rompimento com a
construção linear, a exploração
dos espaços vazios em Un
Coup de Dés já sinalizam
outros usos da perspectiva na
pintura, por exemplo, como
desfocamento na pintura
impressionista.

149
Mais especialmente Le Livre atinge uma fragmentação mais aguda. Mesmo
sendo um projeto nunca finalizado, tem, em sua proposta, uma recusa à abstração.
Composto de fascículos soltos, constituído de folhas móveis, exige a ação do leitor para
se realizar, para que se deem as combinações entre as páginas. Em Vanguarda e
Subdesenvolvimento91, Gullar interpreta esse projeto estético, quando o poeta
franqueia sua obra à colaboração, como um sinal de abertura “para o mundo real, para
os outros” (GULLAR, 1999, p. 65).
O poeta pernambucano, que veio a conhecer essas experiências após suas
experiências neoconcretas, identifica semelhanças nas soluções experimentadas por ele
e seus pares, sobretudo com os “não objetos”, obras que, segundo sua teoria, fugiam de
denominações comuns dos objetos de obra, escapavam de suas denominações de uso e
estavam mais ligadas à experiência. Nesse caso, na trajetória de Gullar, seria ainda
importante passear, além do livro-poema, no que se chamou de livro espacial.
Como mostram as imagens abaixo, o livro espacial expande a lógica do livro-
poema, tornando-o único, mas ainda investindo na ação do leitor-espectador.

91
Importante salientar que, nesse livro, Gullar questiona a própria relevância da prática de vanguarda no
Brasil e demais, na época, chamados de países subdesenvolvidos, alegando problemáticas alheias a nossa
realidade. Pensamento que marca também seu abandono às experiências neoconcretas passando a atuar,
principalmente nos Centros Populares de Cultura – CPC, atuação essa, voltada para o agit-prop, a
conscientização política e o diálogo com as massas.

150
O poema enterrado, por exemplo, o maior deles, era uma sala cúbica, construída
no subsolo, onde o leitor tinha acesso através de uma escada e, uma vez dentro, movia
uma série de cubos sob os quais estava escondida a palavra. Assim, a ação do
espectador – desde sua descida à sala ao mover das peças – era quem ativava o poema,
que não residia apenas na palavra, mas no próprio gesto de fazer esse percurso.
Como nos Bichos de Clark, por exemplo, em que o movimento das mãos
investido nas placas de metais é que fazia ecoar o aparecimento de um bicho; como nos
Parangolés de Oiticica que existem, enquanto expressão, quando um corpo, dentro
dele, se veste e movimenta-se. Tudo isso aproxima a arte de fatos cotidianos, de um
dado de realidade. Assim, podemos afirmar uma ruptura com uma tradição anterior e
reconhecer também o livro nesse contexto. Há, portanto, um desaparecimento do objeto
da obra de arte intocável e distante. Nessa virada, o corpo agora está imputado nessa
participação. Mas é impossível pensar sobre o corpo sem tratar do contexto da

contracultura no Brasil, o que justamente me encaminha para o item seguinte.

3.1.4. A incorporação da obra de arte


Surge a voz de Hélio Oiticica na tela cheia do filme HO, de Ivan Cardoso, no
qual pouso os olhos e paro um pouco. Ele fala sobre a desintegração do quadro, da
pintura. Ali, no vídeo, uma série de convergências dos personagens dessa trajetória,

151
nossa, cá, das vanguardas, vaias e vivas, aparecem participando da instalação do artista,
intitulada Tropicália. Caetano Veloso, Lygia Clark, Ferreira Gullar e Waly Salomão
são alguns deles. Sorriem, fumam seus cigarros, conversam e se felicitam. Fico
pensando se essa cena já não é bastante significativa e nos diz muito das convergências
dessa espécie de tradição aqui forjada.
Foco, no entanto, numa das cenas de
abertura. Waly Salomão, num plano em
close aparece com o rosto todo tomado de
tinta vermelha, que, depois, descubro ser
urucum. Uma voz, já nossa conhecida
também, de Haroldo de Campos, surge com
seu cineteatro nô / psicografado por
Sousândrade com roteiro ideogrâmico de
Eisenstein, de seu Projeto Parafernália para Hélio Oiticica. No close do rosto, um close
na voz, com uma entonação muito peculiar, de ênfase:

“O ROSTO IMPLODE
CAMALEON CALEIDOSCÓPIO” (CARDOSO, 1979)

No vídeo, nenhuma identificação de que o sujeito que ali aparece é o poeta, cujo
rosto é conhecido de muitos. O rosto, nesse caso, toma uma outra significação. Sendo
essa a parte do corpo para identificar alguém, temos aqui um revés do rosto que
identifica, cristaliza uma imagem individual, fixa, nomeada. Ao contrário, o rosto aqui,
para além da aparência de uma verdade, é implodido, tornado um caleidoscópico
camaleônico. Assim, ele opera numa abertura, uma vez que abriga uma simultaneidade
de semblantes sem que nenhum seja verdadeiro (AGAMBEN, 1996).
O caleidoscópio, enquanto um objeto acionado em função de um movimento,
torna-se metáfora para esse corpo camaleônico, meio bicho, que assume outra cor. O
urucum, nesse caso, fruto de uma árvore nativa da América tropical, junta-se a outros
brasis, recolhidos por Hélio Oiticica em seu trabalho, em busca também de novos
semblantes da cultura nacional, onde se incluem a favela, o samba e outras referências
não canônicas.
Perdemos de vista que ali está o corpo do poeta e, com a continuidade do
movimento, temos mais ainda a desaparição da aparência do rosto. Como os espelhos
do caleidoscópio, que cortam o real, o rosto de Waly se revela ao mesmo tempo em que

152
se oculta. Assim, planos se desenvolvem no vídeo e assistimos à cena de Oiticica cobrir
o rosto do poeta com uma tela branca.
A tela, nesse caso, tão cara à discussão dos neoconcretos em torno da
desintegração da pintura, não é esticada, ao contrário, assume uma mobilidade. Ao invés
de representar um rosto, portanto, é responsável pela sua cobertura. Assim, assume uma
fisicalidade outra.
Especialmente nessa cena, entende-se o que Hélio fala, quase que
simultaneamente, pensando alto numa tentativa de explicar que, depois de ter
abandonado as telas, suas invenções tomavam o corpo não como suporte da obra, mas
uma total incorporação do corpo na obra e da obra no corpo, como ele mesmo sugere:
uma in – corporação.

Nessas experiências é mais nítido perceber o que tanto se fala sobre a arte da
performance e sua tentativa de dar visibilidade à vida cotidiana e ao corpo, sendo ela
motores e matérias para criação. Christopher Dunn sinaliza que o que se rejeita no
período de vanguarda no Brasil que vai de 1964 a 1974, analisado, por ele,
principalmente sob o ponto de vista da contracultura, não é precisamente uma forma
anterior de arte (um estilo), mas a arte como uma instituição dissociada da vida prática
(DUNN, 2008, p. 146).
É possível pensar ainda na performance como uma arte da fronteira, num
movimento contínuo de ruptura com aquilo que se considera “arte estabelecida”. Daí,
outra questão se coloca: o contraponto entre arte-ARTE e não-ARTE. A primeira,
segundo Allan Kaprow, seria justamente essa prática institucionalizada, que almeja um
lugar superior e, geralmente, se apresenta em ambientes já sagrados como livros,
exposições, filmes etc.; a não-ARTE provoca esse estabelecido na medida em que não é
aceita como arte, muitas vezes, justamente pela incorporação de objetos do cotidiano,

153
como um vaso sanitário posto numa galeria ou pela penetração de experiências artísticas
em outras caminhos e situações de exibição que não espaços tradicionais de teatros,
museus etc. (COHEN, 1989, p. 38).
No caso de Hélio Oiticica, por exemplo, ele próprio inventa suas categorias
como os bólides, os penetráveis, os parangolés. Categorias não estabelecidas, que não
repousam sob nenhuma alcunha anterior, nem mesmo a da arte da performance. Por
isso, é muito gritante em seu trabalho a própria questão da invenção: “se soubesse o que
seriam essas coisas, não seria mais invenção”, diz ele. Não estaria aqui a própria
problemática inicial que colocamos sobre dizer categoricamente o que é a performance,
ao invés de lidar com sua maleabilidade, suas concepções não fechadas e inventivas
nesse sentido da experimentação?
Nesse bojo, explicitamente encarnando o que o Manifesto Neoconcreto anuncia
em repor o problema da expressão, Oiticica afirma: “eu passo a me conhecer através do
que eu faço” e “eu não sei o que sou”. No entanto, a expressão aqui não converge para
a figura de um autor, mas de um propositor que convoca participantes para além da
passividade de um espectador, isto é, para também serem objeto e sujeito da obra. Isso
quer dizer que não está no artista-autor o significado da obra e, portanto, o espectador
também produz significados. Além disso, a recepção, nesse caso, é tomada como
experiência, viva e ativa, o que também impõe diferentes usos de uma mesma obra.
Lygia Clark sublinha: “somos os propositores: não lhe propomos nem passado
nem futuro, mas o agora” (CLARK, 1968). Será, então, que a vanguarda não é antes do
desejo de estar à frente do tempo, aquilo que acontece no agora, ilegível à percepção
cronológica do tempo, não importando se está antes ou depois do presente, porque
justamente escapa ao entendimento historicizado? Sendo, portanto, efêmero, fugidio,
contemporâneo no sentido de não coincidir com o tempo, de nem mesmo afirmar o que
se é, por conta de uma experiência inacabada, em teste? (AGAMBEN, 2009).
Nesse sentido, muitos trabalhos desses artistas eram orientados sem a noção

tradicional da obra, fechada e acabada e, sim, programas in progress, não


programados, como afirma Oiticica em HO. Como discorre Clark, no mesmo filme,
com uma entonação quase de recitação de um poema ou de um manifesto, “o artista

como propositor de práticas, proposições simples e gerais, não ainda


completadas”. “Atuações para serem vividas” (CLARK, Eduardo, 1973).
No contexto em que aqui caminhamos, seria interessante pensar, nesse sentido,
na noção de experimental, tão cara à performance, como já foi dito. No texto

154
“Experimentar o Experimental”, Hélio Oiticica diz que o “experimental” é uma palavra
apropriada não porque posteriormente será julgada no crivo de sucesso ou fracasso, mas
porque é uma atitude, um ato cujo resultado é desconhecido. Numa tomada de posição
em que envolve assumir o experimental, vide o experimento já citado, com o rosto de
Waly, Oiticica abre-se para um número aberto de possibilidades, em que, ao invés de
criar, é tarefa do artista mudar o valor das coisas (OITICICA, 1972, p. 5-6).
Hoje o termo já tão empregado de work in progress92, traduzido ao pé da letra
por obra em progresso, tem talvez um germe aqui e em trabalhos a partir da década de
1960 que, sobretudo nas artes visuais, abandonaram o plano uniforme do quadro e
migraram para colagens, caixas, instalações, performances e ambientes.
Desde os ready-mades de Marcel Duchamp, o interesse e a apropriação de
materiais industriais e produtos comerciais, já estava posta a questão da autoria, bem
como, de certa maneira, uma resposta à crise da representação sinalizada no Cubismo.
Afinal de contas, o gesto de retirada da vida, da existência cotidiana desses objetos para
instituições de arte, como museus e galerias, engendrava outro modo de composição,
em que o artista não era necessariamente um autor daquele objeto, mas desse gesto de
deslocamento, quando compunha com ele uma espacialidade, um ambiente.
No entanto, em trabalhos dos neoconcretos no Brasil, desde proposições como a
do Parangolé, mas, sobretudo nas grandes instalações cunhadas sob o termo de arte
ambiental, como a Tropicália, desaparece o objeto e emerge uma espécie de “arena de
ação”. Esta, no entanto, não previa a expressão de um sujeito autoral, o artista, ao
contrário, propunha a dissolução do foco nesse criador, convocando, portanto, o
espectador-participador (FOSTER et al., 2004, p. 125/378).
Certamente esse é o ponto que os distingue de experiências estrangeiras
chamadas de action painting e entendidas no curso da história, principalmente no
movimento americano, intitulado Expressionismo Abstrato. A action painting, ainda
assim, é interessante para pensarmos aqui, pois visibiliza o ato de criar e o processo
criativo como parte integrante da obra. A obra não está mais ali pronta, finalizada, para
exibição. O valor artístico reside antes na ação do artista, no seu processo de construção.
Tendo como precursor principal Jackson Pollock, passo agora pelo trabalho de
Yves Klein, marco também para o que se entendeu como action painting. Com suas
Antropometrias do período azul, entre 1958 e 1960, fez pinturas públicas nas quais
92
Renato Cohen utiliza o termo work in progress para estabelecer uma distinção entre processos
racionalistas que operam numa lógica cartesiana/mecanicista. Uma espécie de campo “irracionalista” que
contempla fluxos, processo de sensações e extravasamentos num “pensar/sentir” intuitivo (COHEN,
2004, p. 23).

155
pretendia rasgar o véu do atelier e expor todo seu processo criativo (GOLDBERG,
2012, p.183).
Essa série de pinturas, no entanto, era feita com corpos de modelos, que, ao
invés de se colocarem para exibição ao artista, em caráter privado, funcionavam como
pincéis vivos.

É marcante esse trabalho, sobretudo no acontecimento da composição ao vivo,


em tempo real e, depois, na emergência do corpo do artista incorporada à obra,
categoria mais tarde chamada de body art que, diferentemente de Yves Klein, que não
se “sujava” de tinta e, com seu fraque, quer-se muito mais maestro de suas obras, o
artista irá para o centro da obra, problematizar justamente seu corpo.
Destaco ainda, nessa passagem, a experiência do movimento Fluxus, que
mesclava happenings, música experimental, poesia e performance individuais de artistas
como Yoko Ono, Joseph Beuys, John Cage, George Brecht, entre outros. Aqui, já
expandindo experiências como as do action painting, conserva a presença física do
artista, tornando seu corpo como parte essencial de seus trabalhos, engendrando um
corpo-obra.
Há, portanto, nesse contexto internacional, inclusive disparado pelas feridas
físicas e emocionais da I e II Guerras Mundiais, um reconhecimento do corpo como
matéria artística, que, em primeira instância, colocou em foco o corpo ativo e
participante do artista. Depois, sobretudo, saliento nossa experiência nacional da arte
ambiental, quando há um passo à frente que abandona a concepção romântica do artista

156
como gênio individual para propor uma experiência coletiva, que desliza das mãos do
propositor, mero criador de um molde, em que cabe ao espectador soprar o sentido,
viver o significado (CLARK, 1968).
De certa forma, reconheço isso também no manifesto do Fluxus, por exemplo,
escrito por George Maciunas. Lá está posto - “a arte Fluxus não leva em consideração a
distinção entre arte e não arte” e complementa “nem a individualidade”, “nem a
ambição do artista”. É um momento, importante ser dito, que o objeto de arte é

recusado como mercadoria e pensa-se muito no processo, no conceito das obras, que se
abrigaram sob a alcunha de Arte Conceitual. O processo criativo, portanto, passa
também a ser peça importante para pensar a criação, os conceitos. A experiência da obra
de arte, assim, sem ser comprada ou vendida, deveria ser vivida simultaneamente pelo
artista e pelo público (GOLDBERG, 2012, p.183).
Os próprios corpos transfiguraram-se em material artístico. Numa performance
de Yoko Ono, por exemplo, Cut Piece, a performer se coloca em um palco onde a obra
só se realiza à medida que o espectador sobe para cortar sua roupa. Pedaço a pedaço,
vai-se revelando um corpo sem roupa, posto no risco do corte. Não há fala nem sons,
apenas o silêncio do corpo interferido, combinado ao gesto da plateia, que nunca é
igual. Nesse sentido, o corpo se expõe à significação, se expressa mudo e, ao mesmo
tempo, visualmente gritante.

Para ligar essas duas características – integração da vida à experiência artística e


a rejeição a uma arte estabelecida – escuto especificamente o que Hélio Oiticica propõe
como “antiarte ambiental”. Da crise da pintura e da desmaterialização do quadro
decorrem a criação de estruturas abertas em que se exercita uma “proposição vivencial”.
Nesse caso, não se pretende reproduzir gestos do dia a dia, mas colocar o participador
em vivências descondicionantes que proponham ações e comportamentos que

157
dialoguem com a vivência do indivíduo, como seu exercício imaginativo, uma
investigação do cotidiano (FAVARETTO, 1992, p. 122-126).
Pretendeu-se, assim, apropriar-se das coisas do mundo com as quais se deparava
o artista, desde terrenos baldios, ruas, campos, o mundo ambiente. Para Hélio Oiticica,
“o museu é o mundo, é a experiência cotidiana”. Segundo o artista, o parangolé é o que
compõe a característica mais completa desse conceito de ambientação (OITICICA,
1986, p.79).
Em poucas palavras, os parangolés são capas para serem vestidas e, de
preferência, o participador deve dançar ou correr com eles. Além de incorporar o
parangolé, ou seja, revesti-lo com o corpo, ele oferecia também o movimento necessário
para dar vida à obra. O parangolé só existe, enquanto tal, com empenho dessa ação do
espectador.
Paola Berenstein Jacques defende que a criação dessa obra está intrinsecamente
ligada à experiência do artista no Morro da Mangueira, onde viveu intensamente e foi
passista de escola de samba. Para ela, essa vivência torna-se chave de seu trabalho e é lá
onde sua vida e sua arte se mesclam para sempre. A experiência do parangolé, portanto,
está totalmente ligada à sua vivência no Morro da Mangueira e a obra, por sua vez, pede
uma performance, uma ação, uma vivência, por parte do espectador (JACQUES, 2003,
p. 28). Como anuncia Haroldo:

ONDE SE LÊ HAGOROMO,
LEIA-SE PARANGOLÉ
ONDE SE VÊ MONTE FUJI,
VEJA-SE MORRO DA MANGUEIRA (CARDOSO, 1979).

Na imagem camaleônica e caleidoscópica, anunciada por Haroldo de Campos,


vejo se transmutar o rosto de Oiticica para o de Waly Salomão, compartilhando
proposições e vivências afins que deságuam em estéticas que muito dialogam. No texto,
com o mesmo título do de Oiticica, Waly, em “Experimentar o experimental”, se
pergunta: “e agora?”, “o que é que eu sou?”. E aponta, como que não respondendo o
que é: “entre o meu ser e o ser alheio a linha de fronteira se perdeu” (SALOMÃO, web).
O poeta baiano ainda salienta outra questão discutida anteriormente expondo sua
“obsessiva ideia de fundar uma nova ordem frente às categorias exauridas da arte”. São
falas soltas, mas que dão liga para pensarmos juntos em modos de operar, bem como na
criação de uma poética comum a esses dois artistas.

158
Retomo o rosto de Waly Salomão no vídeo. Penso na distância de publicação
entre Me Segura qu’eu vou dar um troço, seu primeiro trabalho literário, publicado
em 1972 e seu Gigolô de Bibelô, de 1983, que agrega aquele também em sua
publicação. Período grande, se pensarmos num poeta tão volumoso como era, mas que
indica também uma pulverização de sua poesia em outros meios, como compositor e
performer. Waly criou, só para citar neste início alguns exemplos, trabalhos como
“CONHEÇO O RIO DE JANEIRO/ COMO A PALMA DA MINHA MÃO/ CUJOS
TRAÇOS DESCONHEÇO”, exposto abaixo, na fotografia de 1972, feita por Bina
Fonyat.

Aquilo que falamos da incorporação da obra de arte, se dá, aqui, nitidamente e,


mais uma vez, o corpo volta a aparecer. Embora seja uma fotografia, o poema, projeção
de uma luz que, se projetada num papel preto seria ilegível, ganha legibilidade por uma
mão, a qual é posta em referência direta no poema que dá título à foto. No entanto, a
mão não é apenas suporte, é um dado de realidade, dá materialidade ao poema,
atravessa o poema e se cola a ele. Faz da leitura completamente outra se fosse projetada
no papel. Acontece pela performance do corpo que ali se coloca.
Mas de quem é esse corpo? Sei que essa mão na fotografia é de Waly, no
entanto, me parece que surge, outra vez, nesse trajeto, o eu camaleônico do poeta.
Afinal de contas, dessa vez o rosto desaparece e apenas uma parte do corpo é mostrada.
E o próprio poema entra no jogo entre conhecido e desconhecido, ou seja, conhece-se,
ao mesmo tempo, que se desconhece a cidade do Rio de Janeiro e os traços da mão.

159
Essa coexistência entre o que se sabe e não se sabe tem consonância com a
posição de Waly Salomão em relação à própria resposta para a pergunta de quem eu
sou, que ele faz em “Experimentar o experimental”: um ser com fronteiras rompidas
entre ele e o outro. Esse tema e, sobretudo, a maneira como não se fixa um eu, num
nome, voltarão, como retomarei à frente, em outros trabalhos literários como “Self-
portrait” e “Na esfera da produção de si mesmo”. No primeiro, por exemplo,
encontramos trechos como: “criar coisas em que não me reconheça” (SALOMÃO,
2008, p. 38).
Perdemos de vista novamente o poeta, embora estejam ali suas digitais, não são
elas que respondem por ele. Esse sujeito se conhece e se desconhece também a partir da
invenção, como na fala de Hélio Oiticica que escutamos anteriormente.
De outra forma, em ALFA ALFAVELA VILLE temos o corpo à mostra, numa
série de artistas segurando esse nome-poema-objeto quase na mesma escala de corpos,
numa praia do Rio de Janeiro, no mesmo ano, como registra a fotografia abaixo de Ivan
Cardoso. Referência ao famoso filme de Jean-Luc Godard, de 1965, Waly desloca para
a favela a cidade futurista do filme, onde um computador aboliu os sentimentos.

Essa palavra aparece em Me Segura qu’eu vou dar um troço, de 1972, mesmo
ano em que a fotografia de Cardoso é publicada na revista Navilouca. 93 Numa parte
denominada “Um minuto de comercial”, o poeta anuncia a necessidade de rastear,
reconhecer o terreno em que está pisando e demarca que está lá de cima, que supomos
aqui ser o lugar da favela, como ele diz, “fico aqui de cima analisando o terreno lá
embaixo” (Idem, p. 93).

ALFA ALFAVELA VILLE ainda rendeu um filme em superoito, em 1971, do poeta, em parceria com
93

José Simão, gravado numa série de favelas cariocas.

160
Nesse texto é possível decantar a operação que Waly fez dentro do nome do
filme de Godard. Grafando, na publicação, ALPHA alfavela VILLE, ele coloca a favela
entre a cidade, imprensada no nome do filme, como se fosse essa a posição também das
favelas nos morros cariocas. No entanto, o desejo é outro, o de dominar a cidade, como
os computadores do filme fazem com a Paris do cineasta francês: “favelados nunca
perdem o sonho de descer invadir dominar a cidade” (Idem, ibidem). Por isso, não
temos aqui apenas uma favela e sim uma alfavela.
No caso da foto, a performance dos artistas, numa praia de Copacabana, na zona
sul, e não no morro, segurando as letras gigantes, sugerem ainda outras leituras. A foto
assemelha-se a um anúncio comercial, como é o caso de outros trabalhos do poeta como
ARIADNESCA. Comum hoje ao marketing de grandes empreendimentos imobiliários,
pessoas reunidos em torno de um imenso nome, parecendo um anúncio de lançamento
de um prédio, que, nesse caso, seria numa região bem valorizada da cidade, diferente
das favelas. O mar, de fundo, atesta esse ambiente paradisíaco, a que o poeta se refere
como “ghetto de limpeza da zona sul (ipanemária) do Rio” (Idem, ibidem).
Na foto, portanto, e mesmo no acontecimento que a origina, recoloca essa
poética no sentido de dar visibilidade a uma área da cidade margeada, negada. Waly se
refere à favela como uma gangrena instalada no coração das cidades. Como se fosse
justamente a ferida do capitalismo, do progresso, é onde ele escolhe “bater forte,
constantemente, no lugar onde dói” (Idem, ibidem).
A foto é organizada a partir de como as pessoas se dispõem em torno do nome e
a primeira questão que me chama a atenção é a variação de quantidade em cada registro.
Sendo três quadros na parte superior da foto, respectivamente os trechos ALFA
ALFAVELA VILLE, um deles é ampliado, embaixo da sequência de fotos, justamente
a reprodução da imagem de ALFAVELA.
ALFA é a foto composta de menos pessoas. As letras estão pra cima e as pessoas
seguram-na ostensiva e festivamente.

A ALFAVELA tem menos pessoas proporcionalmente ao número de letras.


Quase no centro, vemos na imagem pouco nítida de um rapaz (o quinto da esquerda pra
direita), que parece simular um revólver na mão, como se fosse tomar de assalto alguém
ou algum lugar.

161
Na VILLE, uma pequena multidão, em comparação com as outras, talvez uma
sugestão da superpopulação dessas comunidades periféricas.

Ainda em “Experimentar o experimental”, Waly cita outras imagens-fragmentos,


como “a fala da favela”, “o nódulo decisivo nunca deixou de ser ânimo de plasmar”
(SALOMÃO, web). Essa referência à favela, bem como sua experiência dentro dela, de
morador e vivenciador dessa realidade urbana, me parecem bastante consonantes com a
pesquisa e a vivência de Hélio Oiticica, assim como de outros dessa mesma geração.94
Proponho que pensemos na estética das favelas, tão decisiva, por exemplo, para
a estética que o artista carioca engendra, sobretudo em seus parangolés, para pensarmos
em outras práticas literárias, especialmente a proposta por Waly Salomão que pode ser,
contudo, estendida a toda uma geração de artistas que aqui emerge, especialmente os
que penetram no tecido urbano de forma a imbricar arte e vida, numa só experiência
estética.
Grande parte do Me segura foi escrito no Morro de São Carlos que, na época,
era um território urbano muito específico, onde, por exemplo, em plena ditadura militar,
a polícia não entrava e, por isso, entre outras coisas, impunha uma dinâmica de vida e
liberdade diferenciadas de outras partes do grande centro urbano. Ele chega a dedicar
em seu “Um minuto de comercial” “aos meus amigos moradores do morro de São
Carlos e do Estácio e essa reprise do Rio 40 graus aos do morro do Sossego – sem os
quais seria impossível a realização deste trabalho” (SALOMÃO, 2008, p. 95).

94
Para citar um, por exemplo, me vem o trabalho de Lygia Pape, O Ovo, em que o samba, mas também a
favela muito se misturam.

162
A favela, nesse caso, pode ser lida de outro ponto de vista da arquitetura.
Distinta, por exemplo, da noção de arquitetura modernista, na qual João Cabral de Melo
Neto, o arquiteto do verso, é a grande influência para os poetas concretos, por sua
economia, funcionalidade e exatidão. E mesmo a influência geométrica ainda presente
na proposição da experiência neoconcreta vivida e pensada por Ferreira Gullar.
Diferentemente, portanto, de tomar a literatura como o espaço de uma arquitetura
estável, durável, monumental, a favela, aqui, possibilita outra ordem de construção.
Trazendo uma estética do fragmento, do temporário, do não acabado dos
barracos construídos nos morros das favelas, essa arquitetura, tanto nos versos de Waly
quanto nos trabalhos de Hélio convocam o precário, o efêmero, o instável. Na obra do
poeta baiano, isso parece posto justamente na não linearidade, nos escritos que
deslocam as noções de começo, meio, fim, nas anotações, desenhos, pedaços de textos
que permanecem num “contínuo estado de incompletude”, como são os barracos das
favelas, como é o caso dos textos de Me Segura qu’eu vou dar um troço, também
redigidos no período de detenção na Carandiru, quando o poeta foi preso por porte de
maconha, em São Paulo. Essa estética emergente, sem dúvida, se casa com o trabalho de
Hélio Oiticica, da mesma maneira que parece conversar com outras experiências de arte
e performance que nascem dessa aproximação específica com a vida das comunidades e
as estruturações das moradias nas favelas cariocas (JACQUES, 2003, p. 24).
No auge das tensões que colocam a cidade socioeconomicamente central em
contraposição à favela, recusando-a como parte de si, Waly aponta justamente para
outro caminho, dispondo-se a viver a cidade na favela, naquilo que ela proporciona
enquanto uma experiência urbana específica. Além disso, já em “Experimentar o
experimental”, podemos notar anunciadas as transformações e revisões das categorias
artísticas, principalmente no imbricamento entre arte e vida, na pergunta de “quem eu
sou”, no desconhecimento do próprio sujeito, que perde de vista a certeza de quem é.
Isso tudo me dá condições de pensar o trabalho literário de Waly Salomão como
uma experiência de performance. Ademais, ele é o único, dentro dessa tradição que aqui
forjo e visito, que nomeia um trabalho de literatura com o nome de performance. Falo
dos Babilaques, nomeado por ele, com o nome de performance poética visual. Sendo
eles, por isso, o principal estudo de caso desta tese, ao qual dedicarei com mais detalhes
no item seguinte.

163
3.2. O TABARÉU EM TRÂNSITO
3.2.1. POTÊNCIA NÔMADE

164
A antropofagia é um dos mitos de fundação mais importantes que permeiam as
narrativas de formação do Brasil. Sem dúvida que o Movimento Antropofágico
proposto pelas vanguardas modernistas de São Paulo alcançou, no campo da arte, um
lugar de destaque no nosso imaginário cultural. Esse feito decorre, principalmente, dos
modernistas terem “extrapolado a literalidade do ato de devorar praticado pelos índios”,
assumindo, assim, a antropofagia como uma ética, uma política de resistência e criação
frente à cultura dominante (ROLNIK, 2005).
Interessa-me pontuar, neste início, uma espécie de reativação dessa tradição
antropofágica que contaminou os ares de movimentos que já visitamos no item anterior,
como a poesia concreta, o neoconcretismo e a tropicália. E que será, naturalmente,
fundamental para essa primeira leitura que faço da obra de Waly Salomão.
Naquela época – entre o final da década de 1960 e o início da de 1970 – Suely
Rolnik aponta a emergência de uma subjetividade flexível, como uma nova estratégia de
desejo, decisiva para um movimento de resistência macropolítica à ditadura militar no
período, combinada a um processo micropolítico de experimentação cultural e
existencial. Intensamente influenciada pela contracultura e, caracterizada por um
“movimento de desidentificação maciça com modelos dominantes da sociedade”, a
subjetividade flexível passa a ser entendida como um “movimento de êxodo dos modos
de vida vigentes no qual foram se traçando novas cartografias”. (Idem, ibidem)
Essa subjetividade processual estaria intimamente associada a uma potência
nômade dessa geração, que se faz clara, principalmente, pela necessidade de criar outros
modos de vida, frente a uma “inadequação dos mapas vigentes subjetivos”. Uma
postura, portanto, de assumir uma contínua mudança como condição para manter acesa
a potencialidade da vida, para não fixá-la e asfixiá-la numa norma. Com isso, é óbvio
que essa geração testou e tensionou os limites da tolerabilidade social, mudando as
coisas de seus “devidos” lugares, criando instabilidades. A potência nômade, portanto,
dentro do que propõe Rolnik, seria responsável por libertar a subjetividade dos
territórios em que ela já está habituada, dos repertórios incessantemente repetidos. Por
isso, seria possível, a partir dela, compor outros territórios (Idem, ibidem).
Consigo perceber, à primeira vista, essa potência nômade, esse modo
antropofágico de subjetivação, nesse trabalho de Waly Salomão. A maneira como o
poeta articula novos territórios existenciais a partir dos cadernos e dos demais objetos
com os quais cria e, principalmente, a maneira como se mostram outros, naquilo que
chama de “esfera de produção de si mesmo”; tudo isso me faz percorrer sua obra pela
noção de movimento – o trânsito – e de processualidade – que lerei mais a frente como

165
a necessidade de alteração e de inconstância, características que analiso, sobretudo, pela
via da antropofagia. (SALOMÃO, 2008, p.111-116)
Podemos pensar ainda na potência nômade associada ao modo como os
Babilaques escapam a categorias – tanto na literatura quanto nas artes visuais – sem
que se identifique, de maneira absoluta e estável, com um chamamento.
Resumidamente, para começarmos a pensar, podemos dizer que essa obra é basicamente
composta de cadernos abertos – quase sempre manuscritos – fotografados em diversos
espaços e ângulos. São organizados por datas e locais em que foram produzidos. Entre
os mais recorrentes, lugares como Nova Iorque, Rio de Janeiro e Salvador. Quem os vê
organizados, todos juntos, passeia com o poeta por diversas paisagens poéticas a partir
das quais são constituídos diferentes territórios existenciais.
O trânsito é o próprio território habitado pelo poeta e é dele que se constitui essa
poética, que percorre tantas cidades do mundo, mas, antes disso, cria as “suas”, a partir
de um exercício de criação livre e particular. Os babilaques, por isso, se colocam numa
encruzilhada, numa passagem, recusando-se a uma resposta única, permanecendo na
pergunta.
Podemos pensar em como os cadernos já acusam esse trânsito. Geralmente os
cadernos de apontamentos são usados em movimento ou, pelo menos, há essa
possibilidade perene neles, de serem escritos em ônibus, metrôs, praias, ruas etc. Eles
próprios têm mobilidade.
Interessante ainda perceber como o próprio percurso do autor assinala um
trânsito. Waly Salomão é filho de uma baiana e um sírio, nascido em Jequié, cidade do
interior baiano, localizada entre a Caatinga e a Zona da Mata, tendo vivido, no decorrer
de sua trajetória, em diversas cidades como Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e nos
Estados Unidos, em exílio, nos anos mais duros da ditadura militar, de 1974 a 1975, na
época do governo Médici.
É a partir de caminhos cruzados e zonas de deslocamento, portanto, que se
articulam a produção de um presente com a escrita de um espaço-tempo. Assim, o
babilaque parece estar sempre na iminência de entrar em movimento, como o sujeito
que cantarola “vou descendo por todas as ruas e vou tomar aquele velho navio” e
promete, como em tantas narrativas sertanejas, de tantos tabaréus, “talvez eu volte, um
dia eu volto”. 95
No título de um dos babilaques, CONSTRUTIVISTA TABARÉU, de 1977, surge
outra pista para a leitura deste trabalho. A palavra tabaréu aponta para um sentido de
95
Trecho da canção “Vapor Barato”, outra parceria com Jards Macalé (Idem).

166
movimento, de migração. Dita muitas vezes em sentido pejorativo, pode também ser
lida com humor, pela irreverente justaposição do termo “construtivista” ao nome.
Incorporada de um dicionário informal, não oficial, abriga muitas acepções, desde
estrangeiro até sertanejo, passando por jeca, entre outros, dependendo do lugar onde
circula a expressão no Brasil.
Mas como pode ser a leitura desses Babilaques? Podemos também ser um
leitor-tabaréu? Como será a experiência do leitor que não fala inglês, por exemplo, já
que há uma mistura muito grande dessa língua com o português? Por esse motivo, mas
também pela maneira como o poeta faz uso da língua, com neologismos e cortes de
palavras, parece mesmo que há neles a criação de uma “Walyngua”96, como bem traduz
Ericson Pires, “idioma de desafio permanente” (PIRES, 2007, p.114).
Assim como interrogarei, mais adiante, sobre a palavra não dicionarizada,
ausente de significado dado, óbvio, o leitor-tabaréu localiza-se dentro da pergunta, da
ausência de significado fixo, de sentido completo. Como um míope que força a vista
para ler a foto-caderno, sem necessariamente conseguir lê-la, por vezes, permanecendo
mais na imagem que no texto, esse leitor encontra percalços para uma leitura
automática. Parece que sempre paira uma pergunta: o que é isso? Pergunta essa que o
babilaque não responde, mas pode desafiá-lo a mobilizar-se, ativar-se para uma
invenção.
Não sendo uma produção poética organizada no formato tradicional do livro, os
Babilaques nos chegam através de fotografias que podem integrar tanto uma exposição
de galeria quanto um livro-catálogo. O formato de catálogo, por exemplo, enquanto
registro de uma experiência efêmera, nos imputa outra recepção, diferente, por exemplo,
se o texto do caderno fosse transcrito e editado num livro ou mesmo se tivéssemos o
caderno “original” em mãos. O babilaque, assim, na maneira como nos é apresentado,
tensiona os limites da literatura, das artes visuais, permanecendo nesse trânsito – é e não
é.
Como nos diz Josephine Ludmer, “muitas escrituras do presente atravessam a
fronteira da literatura (o parâmetro que definiu o que é literatura) e ficam dentro e fora,
como em posição diaspórica: fora, mas presas em seu interior”. Assim, embora muitas
vezes lançadas como literatura, essas literaturas pós-autônomas não podem ser lidas
pelos critérios e as categorias literárias, pondo em questão justamente o valor literário.
96
“Eu quero uma outra língua. Eu quero outra. Eu crio outra. Walyngua. Eu desfaço refaço. Queimo a
língua com carvão quente. Abro nela o meio. Eu meço desmeço. Arranco da língua sua fúria passiva (...)
Walyngua. Idioma de desafio permanente. Palavras torcidas no céu da boca. (...) A força forte do desafio
aos vocábulos. Eu invento reinvento. Mordo coração da língua. Misturo. Monto. Escrevo. Superfícies.
Cravo. Língua solta. Língua viva. Língua outra” (PIRES, 2007, p.114).

167
Dentro e fora, portanto, essas novas condições de produção e circulação da literatura
implicam outros modos de ler (LUDMER, 2007, p.1).
Na leitura que faço, me parece que o poeta está sob o signo do “e”. Em outras
palavras, seria dizer que não há como fecharmos se o babilaque é ou não é uma foto, é
ou não é poesia, é ou não é um caderno. O babilaque é isso e aquilo, o babilaque é um
babilaque, no seu amálgama97 de linguagens. Por isso, a obra também habita um
transitivo, quando escapa de significados prévios, desliza pela experiência, move-se a
partir de uma potência nômade, fugindo das configurações tradicionais que a
identificam como isso ou aquilo.

3.2.2. SER PRECÁRIO, EM CADA GESTO


No contexto da obra de Waly, leio o tabaréu como um sujeito que não se
localiza. Como se revelasse o estranhamento característico da prática artística
experimental, quando não se parte do que é dado; como se partisse daquilo que é
precário, na sua potência. Ele pode ser uma espécie de estrangeiro, percorrendo uma
grande cidade. Não me parece um turista, à primeira vista, no sentido de que não a
percorre por guias turísticos, imagens de cartões postais, identificando paisagens que já
possui em seu repertório do imaginário, em uma “pré-visão”.
Confortavelmente, o turista me parece colar o que vê àquilo que já traz consigo.
Ou, no máximo, se decepciona, pois já tinha uma expectativa prévia. Em épocas de
dispositivos como Google Earth, GPS e outras possibilidades de viajar pelo mundo sem
sair de casa, através de mapas, imagens de satélite e câmeras em tempo real, o viajante
contemporâneo corre o risco de atravessar o planeta como se estivesse no mesmo lugar,
sem afetar-se.
O tabaréu que encontro aqui, na contramão, tem OLHOS AFIADOS, OUVIDOS

AGUDOS e tem outro campo sensorial da experiência, que, sem prévios sentidos e
expectativas, é mais inventivo na produção de seus próprios significados. Na minha
leitura, ele é aquele que habita a zona de desconforto, não possui mapas, rotas, é
provável que ele se perca, construindo um caminho de errâncias. Como o errante,
vagueia sem destino. Não possui residência fixa, não tem norte. É feito de desvios,
derivas e deambulações. Atravessa a cidade em fluxo, povoada por diversas expressões
gráficas – letreiros, outdoors, placas, panfletos e faixas – legíveis e ilegíveis,
descascadas, mínimas ou em escalas exorbitantes. Ouve a cidade em sua babel de

Mote central do item 2.3. Discutirei a noção de amálgama mais adiante.


97

168
anúncios de ambulantes, sotaques misturados na capital, CDs piratas e sistemas de som
portáteis, postos lado a lado, no volume máximo.
De acordo com Priscila Arantes, o conceito de fluxo é uma possibilidade para
pensar a cidade como escrita e a escrita da cidade contemporânea 98, na medida em que
se contrapõe aos discursos estéticos que pregam a forma fixa e perene. Uma estética de
fluxo, portanto, seria algo que se dá em trânsito e em contínuo devir. Fluxo como
qualidade, como ato ou efeito de fluir. Pode ser entendido como o movimento de um
líquido, mas também como uma substância que facilita a fusão de outras substâncias.
Por outro lado – como característica primordial dos fluidos – pode ser entendido como
“aquilo que não tem forma fixa e durável” (ARANTES, 2010, p.76).
Para Eleonora Fabião o nexo do corpo em cena é justamente o fluxo, isto é, o
passageiro, o instantâneo, o imediato, uma espécie de rajada, revoada, jato, algo
“nascendo-morrendo” a um só tempo. Esse estado de fluidez provoca um estado
alterado de consciência, fora, portanto, dos padrões cotidianos de conduta (FABIÃO,
2010, p. 322). Diferente de uma noção de corpo rígido e acabado, Fabião nos convida a
pensar nesse “corpo cênico” em “densidades cambiantes”, sob uma “condição
metamórfica que define a participação do corpo no mundo” (Idem, ibidem).
É assim que a poética de Waly se faz no tocante do trânsito desse tabaréu,
compondo a partir da experiência do precário, como bem diz Ericson Pires, em
“WALYTROPIAS, gesto de um certo marinheiro árabe da Bahia”:

Morar no trânsito. Habitar o transitivo. Se colocar em caminho. Estar onde


não é. Ser em todo lugar. Qualquer lugar. Ser precário. Apropriar qualquer
suporte. Utilizar todos os meios. Nenhum meio. Plástico. Caderno. Folha.
Sombra. Mangueira. Carro. Garrafa. Lençol. Caroço. Revista. Caneta. Capa.
Lata de Goiabada. Acaso. Lance. Consciência. Mondrian barato. Ser precário
como única forma de viver. Viver o precário como tática de combate e
devoração. 74 – 75 – 76 – 77 – 78. Perceber no precário o transitivo que cria.
Experimentar o precário. Ser precário. Em cada gesto. Em cada composição.
Em cada ritmo. Em cada take. O precário consciente. O precário como luta.
O precário como resistência. Como forma de dobrar a existência. Como
canção de mundo novo. Como terra distante alcançada pelo gesto. Jequié.
NY. Itapoã. Beirute. Taprobana. Speranza. Nenhum Eldorado é mais dourado
que star em trânsito. Ser marinheiro do mar da lua. Construir um barco.
Morar nele. Morar no barco precário. Navegar. Transitar. Ser precário
(PIRES, 2007, p. 114).

98
Para pensar especificamente neste tópico, no âmbito da produção contemporânea, indico o trabalho de
Laura Guimarães, intitulado “microrroteiros da cidade”, uma série de pequenos roteiros impressos em
uma folha A4 e colados em diferentes locais das ruas de São Paulo. O trabalho se coloca justamente no
fluxo de leitura dos pedestres que circulam na cidade. Ver www.nopassodoroteiro.blogspot.com. Em
Salvador, o trabalho da poeta Karina Rabinovitz é também uma referência imprescindível. Destaco,
sobretudo, suas intervenções com estêncil em faixas de pedestre, que leva a leitura dos poemas para o
atravessamento físico do leitor. Ver www.karinaeabinovitz.blogspot.com.

169
Ser precário, como coloca Pires, pode ser lido como “apropriar qualquer
suporte”, “utilizar todos os meios” (Idem, ibidem). O território, nesse caso, ultrapassa a
noção de espaço físico. Os objetos também podem ser lidos como territórios precários
de uma experiência, no sentido de serem instáveis, impermanentes.
Interesso-me em pensar como há uma afinidade entre essa poética do precário e
o campo da performance. Novamente Eleonora Fabião:
Performers são poetas que investigam, criam e disseminam precários: a
precariedade de sentido (que deixa de ser estabelecido e fixado para ser
condicional, mutante, performantivo), a precariedade do capital (cuja
supremacia é desbancada e a pobreza exposta), a precariedade do corpo (que,
longe de ser percebida como deficiência, é atualizada como potência) e a
precariedade da arte (que se volta para o ato e para o corpo) (FABIÃO, 2011,
p. 65).

A performance é da ordem do precário sobretudo quando desestabiliza hábitos


de valoração, inventa novos corpos, cria possibilidades de encontros e devires. Pela via
da instabilidade, da indefinição, portanto, como bem coloca Fabião, performances são
elogios ao precário na medida em que suspendem o estabelecido (Idem, p. 66).
O precário consciente, como luta, como resistência, como forma de dobrar a
existência, retomando as palavras de Ericson Pires, é, portanto, ativar sua potência

criativa e não afirmar a sua deterioração. É operar, portanto, na lógica do desvio, da


apropriação e, por isso, alcançar uma “terra distante” pelo gesto, como agarrar o sol
com a mão (PIRES, 2007, p. 114).
Sem dúvida, Waly afirma, com seus babilaques, a potência do precário, como
meio de criação e modo de produção. Se reconhecermos uma espécie de espaço urbano
precário no bojo dessa poética, podemos ampliar ainda mais essa questão. Decanto da
seguinte forma o nome Babilaques = Babilônia + Badulaques. O badulaque, que
abrange penduricalhos diversos, postos no corpo ou numa banca improvisada e móvel
de um camelô, denotam certa precariedade. Assim como o grande centro urbano,
babilônico, descartável. O próprio caderno se coloca como objeto vulgar, do cotidiano,
banal.
Podemos pensar na lógica da gambiarra e da favela como imagens afins dessa
“babilônia badulaque”. Todas elas são permeadas pela noção de fragmento, no sentido
de apropria-se de restos, materiais soltos, encontrados pela cidade, para criar estruturas
provisórias, em permanente construção. Desviam, por exemplo, objetos de suas funções
habituais, para outros usos, como no caso de um remo, onde se acopla um caderno no
babilaque LOGBOOK, de 1975. Uma espécie de livro-remo, feito para atravessar.

170
Parece que o precário expõe um processo de criação feito a partir dos objetos
encontrados ali, no tempo-espaço da foto, escritas realizadas no percurso até aquele
“take”, as canetas que o poeta trouxe no bolso, recortes guardados dentro do caderno. O
gesto do poeta é ser precário como uma forma de viver, de criar, portanto, sempre
incompleta e mutável, que se encarna momentaneamente naquele arranjo ali posto.
Basta um pequeno movimento para que o babilaque se rearranje. O acaso, por isso, é
parte integrante, como um vento que passa e levanta a folha.

O precário, portanto, tem uma ordem de construção “em trânsito, intermediária,


em transformação contínua”, assim como o fragmento. Por isso, em oposição à ideia de
durabilidade, ele é incerto, contingente e “seu espaço é o do não-lugar, o lugar do meio,
o local deslocado, em suspensão, transitório, em construção” (JACQUES, 2003, p.
44/47). Características que fazem dessa poética revestida de uma potência do
fragmento, algo que se constrói continuamente, assim como a subjetividade e sua
potência nômade.

3.2.3. NA INCONSTÂNCIA DE SER OU-TROS


O precário também se revela como “prática de combate e de devoração” 99 (Idem,
ibidem). É impossível ler a palavra “devoração” e não pensar em antropofagia.
Reconhecidamente filiado ao método de compor “cubo-futurista” 100 de Oswald de
Andrade, com sua “sintaxe não-linear”, sua “mise-en-page”, consigo reconhecer em
Waly Salomão uma espécie de antropófago. Sua obra expõe o desejo permanente de
transmutar-se através da experiência, em não se estagnar em um eu fixo, como quem

99
Segundo Arnaldo Antunes, a escrita de Babilaques é voraz e parece querer engolir o mundo
(ANTUNES, 2007, p. 34).
100
“Tanto o projeto de Caetano e Gil, quanto o de Gramiro (de Matos) ou de Waly, situam-se teoricamente
mais próximos do arrojo cubo-futurista de Oswald de Andrade e, bem distantes estão das discussões
mario-andradianas em torno de uma possível gramatiquinha do falar brasileiro”. Além disso, segundo
Silviano Santiago, tanto as obras de Oswald e Mário, quanto desses “novos” autores, apresentam um
estranhamento da literatura que até então se praticava (SANTIAGO, 2000, p.137).

171
tem “fome de me tornar em tudo que não sou” 101, como sinaliza em NA ESFERA DA
PRODUÇÃO DE SI MESMO (SALOMÃO, 2008, p. 113).
Opto agora por outro caminho de leitura daquele que costumeiramente se faz a
partir do Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, tentando raptá-lo para uma
tradição modernista da geração de 1922, estabilizando-o num tempo. Escolho ler a
prática da antropofagia, retomada pelo poeta paulista, pela cosmologia tupinambá,
entendida aqui pelo trabalho do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro.
A partir de seu perspectivismo ameríndico, compreendo que para os índios não
havia diferenciação entre os homens e os animais. Todos eram humanos. No entanto, o
que os diferenciava – entre os coletivos humanos – eram os corpos. Este era o elemento
de alteridade, não no sentido fisiológico propriamente, mas no que tangia os “afetos,
afecções ou capacidades que sinalizam uma espécie de corpo” (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002, p. 240). A saber, o que comiam, onde viviam, como se movimentavam
e se comunicavam, por exemplo, na alimentação e na “decoração corporal” se
localizavam as mais significativas diferenciações.
A concepção naturalista da ciência ocidental postula que o humano descende dos
animais; o pensamento ameríndico atribui a todos os seres viventes a mesma condição,
isto é, são todos animais e humanos. Isso romperia com o argumento de que nós
descendemos dos animais. E o que isso implica nos termos da nossa estrutura do
pensamento ocidental? “Se o ocidente tem na alma a premissa de diferença entre um e
outro, o pensamento ameríndio inverte para o corpo essa premissa”, então, “os critérios
de distinção devem ser construídos tendo em vista a intensa variabilidade dos corpos”
(SZTUTMAN, 1999, p. 97).
Segundo Renato Sztutman “dizer que os índios pensam de uma maneira
perspectivista consiste na ideia de que a animalidade e humanidade são antes estados
jamais estanques e que podem ser cambiados”. O ponto de vista está no corpo; sujeito e
objeto são posições passíveis de trânsito. A forma manifesta do corpo de todos os seres
é variável, trocável e, até mesmo, descartável. O corpo deixa, portanto, de ser uma
ordem exterior para “tornar-se cúmplice dos processos sociais vivenciados”
(SZTUTMAN, 1999, p.108, grifo meu).
Assim, ao invés de pensar que o cerne do “Manifesto Antropofágico” tocava
uma questão cultural, com a qual, durante muito tempo, guiou a leitura de Oswald de
Andrade, tomando seu texto como uma crítica combativa à dependência cultural no

Como em Oswald de Andrade: “Só não me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do
101

antropófago” (ANDRADE, 1997, p. 353).

172
Brasil, pode-se ler a devoração aqui sob o ponto de vista do corpo. E que, portanto, a
prática da antropofagia faz do sujeito metamórfico e inconstante.
Assim, os corpos não são mera materialidade – mas um conjunto de
significações vividas – são modos de ser, conjunto de afetos, de intensidades, de desejos
(LADDAGA, 2005, p. 5). Sem dúvida que não posso deixar de reconhecer, nessa forma
de pensar, a contribuição de Maurice Merleau-Ponty 102 de que o sujeito não possui um
corpo, mas é o corpo. No caso dos índios, o corpo é a chave da diferenciação, da
alteridade.
A antropofagia na cosmologia ameríndia tem, assim, no devir-outro seu
fundamento: “o corpo próprio como diferenciador de um ‘eu’ não é jamais tido como
‘prisão da alma’, mas como objeto de devoração que devolve a alma ao mundo e que a
possibilita habitar novos corpos e apropriar-se de outros pontos de vista sobre o
universo” (SZTUTMAN, 1999, p. 102). Esse eu, portanto, não tem valor em si, mas está
incessantemente projetado na alteridade. As identidades, portanto, estão sujeitas a
metamorfose, não possuem fixação. Talvez aqui nem devamos falar em identidade, já
que não são fixas. Quem sabe a subjetividade instável proposta por Suely Rolnik, como
esse modo antropofágico de subjetivação.
O canibalismo, então, praticado pelos tupinambás, antes de ser um desejo de

absorção e vingança, era uma prática movida pelo desejo de alterar a si, pela ingestão
do corpo do outro (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 207). Essa possibilidade de
alteração está intimamente relacionada com a inconstância desses “selvagens”,
característica identificada por inúmeros missionários e viajantes do processo inicial de
colonização. Tomada como “traço definidor do caráter ameríndio”, essa instabilidade
fazia mais trabalhosa a missão jesuítica de sua catequização e domesticação (Idem,
p.186).
Uma imagem interessante para entender essa inconstância vem da literatura de
Antonio Vieira, num texto sobre esculturas de mármore e de murta. Sendo as primeiras
mais difíceis de moldar, por conta da dureza do material que as constitui, quando
talhadas, conversam e sustentam a mesma figura por um longo tempo; já as segundas,
feitas dessa planta arbustiva, a murta, são fáceis de moldar, mas não se conservam com
o tempo, posto que são vivas, crescem os galhos e desfazem o molde empreendido pelo

102
O corpo, a partir da fenomenologia da percepção, não é mais pensado como objeto. Não estou, por
isso, diante do meu corpo, estou em meu corpo, ou antes sou meu corpo, como ensina Merleau-Ponty
(MELEAU-PONTY, 1999, p. 208).

173
escultor. Para o padre-poeta, os índios eram como essa mata – indiferentes, ingratos e
inconstantes – “sempre pronta a se refechar sobre os espaços precariamente
conquistados pela cultura”, como aponta Eduardo Viveiros de Castro (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002, p.184).
A filosofia tupinambá operaria, então, a partir de uma incompletude, em que
valia muito mais o vir a ser e a relação, a exterioridade e a diferença, agenciadas pela
realidade do corpo.103 Sendo ele, inclusive, reconhecido na sua precariedade –
descartável e descontínuo. Devorar um outro, portanto, era assumir sua alteridade. E
diferenciava-se pela via do corpo e não por uma noção de essência.
Proponho pensar que Waly Salomão, sobretudo nos Babilaques, encarna um
pensamento em estado selvagem, em seu livre exercício, não domesticado, sujeito à
inconstância e à incompletude.104 Como propõe Oswald de Andrade e sua antropofagia,
“contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do
pensamento que é dinâmico” (ANDRADE, 1997, p. 355). Se é necessário conviver com
o precário, diz Waly, façamos com a “intermitência do pensamento”; nos acostumemos,
por isso, “com o final em aberto, com a suspensão do veredicto, com o espaço infinito”,
diz ele (SALOMÃO, 1980, p.141).
Assim, nessa experiência de trânsito, me parece que Waly não se funda a partir
do reconhecimento do “outro”, mas na prática constante de alteração e apropriação. E,
por isso, não opta pelo sentido fixo, pelo sujeito estável. Ele compõe, portanto, nessa
poética-tabaréu, menos com que o aproxima, com o que lhe é familiar, mais com o que
lhe estranha, lhe altera. Com a experiência viva, em transformação, como a murta,
crescendo e modificando-se. Sem colocar-se fixo entre um eu e o outro. Pelo contrário,

103
Segundo Viveiros de Castro, “a filosofia tupinambá afirmava uma incompletude ontológica essencial:
incompletude da sociabilidade e, em geral, da humanidade. Tratava-se, em suma, de uma ordem onde o
interior e a identidade estavam hierarquicamente subordinados à exterioridade e à diferença, onde o devir
e a relação prevaleciam sobre o ser e a substância” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 220).
104
Cunhado a partir da obra clássica do antropólogo Lévi-Strauss – O Pensamento Selvagem – de 1963,
Viveiros de Castro explica como o pensamento selvagem pode ser entendido, na relação com o
pensamento científico: “O pensamento selvagem não versa sobre mitos indígenas, mas sobre certas
disposições universais do pensamento humano: ameríndio, europeu, asiático ou qualquer outro. O
“pensamento selvagem” não é o pensamento dos “selvagens” ou dos “primitivos” (em oposição ao
“pensamento ocidental”), mas o pensamento em estado selvagem, isto é, o pensamento humano em seu
livre exercício, um exercício ainda não-domesticado em vista da obtenção de um rendimento. O
pensamento selvagem não se opõe ao pensamento científico como duas formas ou duas lógicas
mutuamente exclusivas. (...) Ambas as formas de pensamento se utilizam dos mesmos recursos
cognitivos; o que as distingue é, diz Lévi-Strauss, o nível do real ao qual eles se aplicam: o nível das
propriedades sensíveis (caso do pensamento selvagem), e o nível das propriedades abstratas (caso do
pensamento científico). Mas a tendência, diz o autor, é que o pensamento científico, à medida em que
avança, vá-se aproximando do pensamento selvagem, ao se mostrar capaz de incorporar as dimensões
sensíveis da experiência humana em uma abordagem unificada, onde física e semântica não estão mais
separadas por um abismo ontológico. Ou seja, o futuro da ciência não é se distanciar do pensamento
selvagem, mas convergir com ele” (VIVEIROS DE CASTRO, 2009b).

174
ele experimenta “ME inventar um outro”, ser ou-tros, com suas “máscaras moluscas” no
rosto (SALOMÃO, 2008, p. 111-116).
Por isso, essa abertura também para o leitor devorador, que crie suas relações,
mobilize seu corpo e beba desse fluxo. Como um Camaleon caleidoscópio, em que seja
possível girá-lo e assistir seu vir a ser, já que essa proposta poética é móvel. Esta mesma
que me deixa também dizer “viro balanço reviro na palma da mão o dado”, operação
que me faz encontrar muitos outros nomes105 dentro do nome “Waly Salomão”:
 WALY SAILORMOON, como assina seu primeiro livro, uma tradução
em inglês de seu sobrenome;
 WALY SAIL OR MOON, 106 em Me Segura qu’eu vou dar um troço;
 SAILOR OF ALL MOONS, 107 em “NA ESFERA DA PRODUÇÃO DE
SI MESMA”;
 YLAW SAID OÃMOLAS, em “ARIADNESCA”, seu nome completo
ao contrário;
 MARUJEIRO DA LUA, uma espécie de tradução de “sailormoon”.

Para além do nome de registro civil, o poeta transmuta-se em vários outros,


como o poeta, o guerreiro, o gigolô e o próprio tabaréu. Ou seja, os nomes não acusam
um modo de expressão específico, pelo contrário, refratam a experiência em caminhos e
possibilidades diversas. “Sempre tendente a ser outra coisa”, como cobra que muda de
pele, Waly coloca-se na narrativa sob o signo do “ou”, como que frisando uma
mutabilidade. Nessas duas vogais, OU, ele anuncia uma travessia do “rio a vau”. Essa
passagem desemboca justamente em seres ou-tros:

“por cima do cotidiano estéril

De horrível fixidez

Careta demais

Que máximo prazer, ser ou

tros constantemente” (SALOMÃO, 2008, p. 9)

Para além do ou, que, diga-se de passagem, já amplia o sujeito da condição de


ser só um, gosto de pensar pelo signo do e. Como Waly Salomão, em seu programa

105
Segundo Eduardo Viveiros de Castro, os índios, a partir da captura e da morte dos inimigos, mudavam
seus nomes, como um rito de passagem. Por isso, eram considerados melhores aqueles que acumulavam
nomes e renomes (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p. 228).
106
SAIL OR MOON – a tradução literal para o português seria marujo e lua.
107
SAILOR OF ALL MOONS – marujeiro de todas as luas.

175
poético, encarna uma “simultaneidade de semblantes” sem que nenhum assuma uma
verdade biográfica, o nome do autor é constantemente reinventado, inclusive, por vezes,
sendo desconstruído e minado dentro do próprio texto (AGAMBEN, 1996). Como pode
ser muitos ao mesmo tempo, provoca uma espécie de abertura, expansão, contra a
fixidez, o que graficamente, no poema acima, é possível perceber pelos espaços vazios.
Assim como aconteceu com o tabaréu, o gigolô tem também seu significado
movido, como se as palavras deslizassem entre zonas já dadas de significado, inclusive
nas suas acepções pejorativas. Uma espécie de devoração, no sentido oswaldiano, de
“transfigurar o tabu em totem” (ANDRADE, 1997, p. 358). Waly reverte, por exemplo,
a acepção pejorativa de tabaréu como ignorante, atrasado, da mesma forma que o faz
com o significado de gigolô, como um aliciador, um vagabundo. Nos termos que o
poeta propõe, o gigolô pode até ser um parasita criativo dele mesmo. Assim como o
bibelô que costumeiramente é visto como algo frágil, bonitinho, gracioso.
Mas o que seria o gigolô de bibelôs? Não tenho uma resposta imediata, ao ver
essas palavras juntas. Assim, como leitora, ganho a possibilidade de estranhar. Duas
palavras dicionarizadas, mas que, ao uni-las, sou levada a me perguntar – o que é isso?
Fico sem respostas, interrogando-me, como um tabaréu. Essa operação de mobilidade
com as palavras e seus significados, portanto, é fundamental dentro do programa
poético de Waly Salomão.
Em “AO LEITOR, SOBRE O LIVRO”, do Gigolô de Bibelôs, o poeta começa
justamente com o discurso: “Por hoje é só. OBRA parida com a mesma incessante
INCOMPLETUDE”. Na incompletude, cada leitor faz ou não suas conexões a seu
modo, que estão ali sugeridas. Nesse caso, o leitor deve, inclusive, fazer parte da
construção dessa rede de sentidos. É o participador de um jogo, em que deve mobilizar
o corpo e beber do fluxo que escorre do livro (SALOMÃO, 2008, p. 9).
A própria ideia de incompletude já tem seu germe em Me Segura qu’eu vou dar
um troço. Narrativa fragmentária, a mistura entre poesia e prosa é tanta que não seria
fácil categorizá-la num gênero literário específico. Na abertura do livro, reeditado na
edição de Gigolô de Bibelôs, o poeta fala sobre o seu “caráter irredutível”. Ali estaria
uma rocha, integral, inteira – imanente e finita, portanto – por onde escorre uma fonte
d’água. O leitor deveria arregaçar as mangas, botar as palmas das mãos em concha e
beber DIRETO sem intermediários “daquele manancial intacto” (Idem, p. 13).
Na noção desse livro-córrego, a metáfora expõe novamente uma obra em
movimento e em mutação. Cada um faz a concha ao seu modo, para bebê-lo. A
experiência é atribuída ao autor, mas o leitor é também convocado a partilhar dela, é

176
provocado a inventá-la. Ou seja, essa obra nunca vai estar acabada, assim como o
próprio sujeito da experiência é camaleônico. Em contraponto, portanto, à noção de um
sujeito essencial, acabado, ele opera num incessante vir a ser, assim como sua obra.
Desse estado de experiência, assistimos a um mover de máscaras, de eus, de
significados.

177
3.3. –B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S - - - - - - U-M-A—E-X-P-E-R-I-Ê-N-C-I-A- - -
-

Waly Salomão costumava escrever a palavra -B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S- nessa


grafia específica. Parece que consigo depreender dessa grafia sua dicção própria, sua
entonação peculiar, mote que irei discutir mais à frente, neste item. Gosto de pensar que

178
isso está materialmente encarnado na palavra, isto é, como a noção de experiência, é um
atravessamento do sujeito e algo que o modifica, o transforma. Que pode ser chamado
de devir, de um estado selvagem no seio da inconstância do sujeito, nada fixo, a bordo
de um barco, sempre na iminência do trânsito. Aí está pra mim a performance poético-
visual de Waly, chamamento que define o seu trabalho.
O movimento desse sujeito da inconstância, em suas diversas paisagens de
palavras e personagens de uma voz cambiante, mas com um projeto poético imanente,
no gesto de um sujeito que não tem só um nome. Marujeiro da Lua, Sailoormon, Waly,
entre outros. E, por isso, faz de sua poética um caleidoscópio.
A acepção de babilaques, por exemplo. É um terreno fértil para começarmos a
gestar este novo item. Em um texto sobre seu trabalho, o poeta diz que o nome
babilaque não é dicionarizado. E que lhe apraz justamente essa possibilidade infinita de
significado, sua polissemia. Isso diz muito se pensarmos que Babilaques passa ao largo
justamente das classificações e definições de gênero e toma pra si uma alcunha
própria.108
Sem o dicionário como suporte de explicação, perde-se de vista o significado
fixo. O leitor, assim, habita um vazio provocado pela inexistência do nome na coleção
organizada do léxico, identificado, decodificado. Abandona-se o lugar confortável do
sentido dado. O dado é aqui revirado, como na canção “Olho de Lince”, 109 de Waly
Salomão e Jards Macalé: “viro balanço reviro na palma da mão o dado/futuro presente
passado”. Por isso, o leitor também se coloca em uma postura de mobilidade em relação
ao signo, na condição de transeunte da língua. Opera na abertura de um sentido que
pode ser reinventado no ato da leitura.
Para além do dicionário, portanto, a palavra habita uma zona do desconhecido,
ao mesmo tempo em que a possibilidade da polissemia amplia o horizonte de sentidos.
Em outras palavras, seria dizer que a palavra não dicionarizada revela um
desconhecimento dentro da própria língua na mesma medida em que permite a invenção
dela, a muitos modos e acepções. Assim, com esse sentido inventivo da linguagem,

108
Como no caso dos bólides, parangolés e penetráveis, que discutimos no capítulo anterior, acerca da
obra de Hélio Oiticica, categorias criadas pelo próprio artista.
109
“Olho de Linche”, musicado por Jards Macalé: “quem fala que sou esquisito hermético/é porque não
dou sopa estou sempre elétrico/nada que se aproxima nada me é estranho/fulano sicrano beltrano/
seja pedra seja planta seja bicho seja humano/quando quero saber o que ocorre à minha volta/ligo a
tomada abro a janela escancaro a porta/experimento invento tudo nunca jamais me iludo/quero crer no
que vem por aí beco escuro/me iludo passado presente futuro/urro arre i urro/ viro balanço reviro na
palma da mão o dado/futuro presente passado/tudo sentir total é chave de ouro do meu jogo/é fósforo que
acende o fogo de minha mais alta razão/e na sequência de diferentes naipes/quem fala de mim tem
paixão” (MACALÉ, 2005/SALOMÃO, 2008, p. 11).

179
Waly sinaliza que seu babilaque nasce “liberto das categorias artísticas e literárias
fixas” (SALOMÃO, 2007, p. 21).
Retomando a noção da “precariedade de sentido”, do item anterior, podemos ler
essa fuga da fixação de um significado, como um movimento que foge ao campo da
representação e o aproxima do da performance. Digo isso no sentido de que a palavra
não dicionarizada se irmana muito mais com a “destruição da imagem de um
pensamento, que pressupõe a si própria” e, ao contrário disso, lança-se “no ato de
pensar do próprio pensamento” (DELEUZE, 2006, p.138). Por isso, o signo encontra
aqui sua potência criadora, a partir de um encontro involuntário, contingente. O sentido
deixa de ser fixo, torna-se mutante. E é precário porque está inscrito sob a ordem do
“fazer, refazer e desfazer conceitos a partir de um horizonte móvel” (FABIÃO, 2011, p.
84).
Outra noção que submerge é a de incompletude, na medida em que o poeta deixa
em aberto a acepção do nome. Leio esse “não acabamento” como um caráter processual
desses experimentos poéticos. Além disso, se refere a eles justamente como uma
experiência axial do “processo incessante” de suas “buscas poéticas”. É como se a
noção de teste perpassasse toda sua obra, que se guia justamente pelo experimentalismo.
Nesse caso, os Babilaques representam, segundo o próprio autor, em sua obra, em suas
buscas, uma espécie de fio condutor (Idem, p. 61).
A própria escolha das palavras revela uma experiência. Se considerarmos que
elas são responsáveis por dar sentido ao que somos e ao que nos acontece, Waly nomeia
sua experiência de Babilaques, portanto, a partir de uma palavra móvel que afirma o
saber instável, ou seja, um conhecimento de si e do mundo construído no seu caráter
experimental e processual da obra.110
Por isso, no caminho da pesquisa, surge a necessidade e o desejo de clarear mais
o que entendo por experiência. Palavra movediça, sem significado tácito, dado, é talvez
uma das chaves de acesso para os entendimentos que esta tese se propõe. Jorge Larrosa
sinaliza que essa palavra pode ser entendida em diversas línguas, por acepções afins:
 Em espanhol, o que nos passa;
 Em português, o que nos acontece;
 Em francês, o que nos chega [“ce que nous arrive”];
 Em italiano, o que nos sucede [“quello che nos succede”].
110
Sobre nomear a experiência, diz Jorge Larrosa: “quando fazemos coisas com as palavras, do que se
trata é de como damos sentido ao que somos e ao que nos acontece, de como correlacionamos as palavras
e as coisas, de como nomeamos o que vemos ou o que sentimos e de como vemos ou sentimos o que
nomeamos” (BONDÍA, 2002, p. 22).

180
Na decantação etimológica, a palavra experiência, oriunda do latim, experiri,
significaria provar, experimentar. Estaria relacionada, ainda, ao perigo – pelo radical
periri, que se encontra também em periculum – e a raíz per do nome está mais
relacionada à ideia de travessia, do que de prova. 111 O prefixo ex, por sua vez, é
encontrado em palavras como ex-terior, ex-ílio, ex-istência, que trazem a relação do
sujeito com o mundo. Sinônimos intimamente ligados à poética dum tabaréu, o que
sinaliza justamente o trânsito e a efemeridade dessa experiência, como vimos no item
anterior.
Iniciada no capítulo 1, impossível não voltar às questões trazidas por Walter
Benjamin em torno da experiência. Em seu texto clássico, “O narrador - considerações
sobre a obra de Nikolai Leskov”, o teórico alemão fala da extinção da narração, pela
impossibilidade de intercambiar experiências, de transmissão das histórias pelo corpo,
pelo “boca a boca”. É um texto que se localiza no pós-guerra e indica que os
combatentes voltavam mudos da guerra, portanto, pobres em “experiência
comunicável”. Por esse ponto de vista, que condiciona a narração à questão experiência,
o narrador seria aquele que “vai longe”, tem muito que contar e, por isso, atravessa
muitos lugares, encontra muitas pessoas, ouve muitas histórias. Mas também aquele que
se liga às suas histórias e tradições pela oralidade, sem sair de seu país.
Para o teórico alemão, a experiência está no tocante do tempo e do uso que
fazemos dele. A sua aceleração, sobretudo nos últimos 50 anos, pelo menos, nos leva
muito mais para a égide da reprodução do que da produção. A narração, portanto,
estaria em baixa, pelo declínio da experiência. 112 Isso se relaciona com o que Jorge
Larossa também sinaliza sobre a distinção entre experiência e informação, chamando a
atenção para a ênfase do nosso tempo, marcado pelo excesso produzido pela
informática. O jornal, então, seria responsável também pelo empobrecimento da
experiência, sendo a informação quase o revés dela (BENJAMIN, 1994).
No meu entendimento, sobretudo a partir da obra de Waly Salomão, a
experiência é uma forma de lidar com o tempo em que se potencializa o presente, o aqui
e agora. É colocar-se ex-posto, vulnerável e em risco, com abertura para um espaço
111
Em grego a raiz per marca a travessia, o percorrido, a passagem: “peirô, atravessar; pera, ir mais além;
peraô, passar através, perainô, ir até o fim; peras, limite” (Idem, p. 25).
112
Segundo Walter Benjamin, “o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação
sobre acontecimentos próximos. O saber, que vinha de longe - do longe espacial das terras estranhas, ou
do longe temporal contido na tradição -, dispunha de uma autoridade que era válida mesmo que não fosse
controlável pela experiência. Mas a informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada,
ela precisa ser compreensível "em si e para si". Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos.
Porém, enquanto esses relatos recorriam freqüentemente ao miraculoso, é indispensável que a informação
seja plausível. Nisso ela é incompatível com o espírito da narrativa. Se a arte da narrativa é hoje rara, a
difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio” (BENJAMIN, 1994, p. 201).

181
indeterminado. É uma aventura em relação ao processo criativo. Não se sabe qual será o
resultado, sempre inscrito numa zona indefinida. O sujeito da experiência, portanto, está
posto em um corpo a corpo, em relação com seu próprio tempo. Ele é território de
passagem, afetado por aquilo que lhe acontece. A partir dela, produz efeitos, inscreve
marcas, deixa vestígios (BONDÍA, 2002, p. 24).
Não se parte, portanto, de um saber livresco. Não é empírico, não toma como
base um método, que por si só revela um caminho seguro. A experiência não envolve
um domínio do mundo, mas ser abatido por ele, atravessado. Por isso, relaciona-se
muito mais com o curso da existência, de um sujeito sem essência, razão, fundamento,
mas que existe de uma forma singular, finita, imanente. Por isso, a experiência é
irrepetível e abre-se ao desconhecido na medida em que não se pode antecipar um
resultado (Idem, p. 28).
Quando falo de experiência em literatura, é na maneira como a criação

forma e transforma, como ela nos toca, como ela nos acontece. Algo inseparável do
corpo em que essa criação encarna, no corpo que a toma. É, portanto, a possibilidade de
tomar a criação literária como experiência, como acontecimento.
Portanto, quando digo “experimento”, não me refiro ao empirista, que faz de seu
experimento um meio para provar uma hipótese. Digo “experimento” no sentido da ex-
istência, sem finalidade prévia nem acabada, nem estabelecida, mas “cujo sentido vai
construindo e destruindo na vida mesmo” (Idem, ibidem). Algo que se entende muito
mais pelo processo do que pelo fim.
Assumir o experimentar, portanto, é não se preocupar em criar “estruturas
compreensíveis”, sem precisar dar conta de um resultado, um futuro em que as coisas se
resolvam, se completem. Vale, portanto, na experiência, aquilo que se produz no
presente na “interminável aventura da linguagem”, como compreende Waly
(OITICICA, 1972; SALOMÃO, 2008, p. 45).
Podemos notar isso em BABILAQUES DUM CONSTRUTIVISTA TABARÉU. A
primeira palavra que me chama a atenção, por ser um recorte que compõe com as outras
letras manuscritas, é TEST. As coisas em teste parecem pouco resolvidas no sentido de
uma conclusão. Por isso, o texto poético clama pela instigação, pelo gesto provocativo,
ao invés de uma espécie de engessamento, fixidez. As palavras de ordem anunciam -
INSTIGAÇÃO SIM OSSIFICAÇÃO NÃO - nos alertando, contundente:
“É DE MAIOR IMPORTÂNCIA QUE BABILAQUES E WALESTRA NÃO
SEJAM TRATADOS COMO

182
ASSUNTOS FECHADOS

COISAS CONCLUÍDAS”

CONSTRUTIVISTA TABARÉU - Rio de Janeiro, 1977

“POR QUE NÃO SER A ABERTURA DUM CAMPO DE


EXPERIMENTAÇÃO DA POESIA SE ESTRUTURANDO SE FORM???
FORMANDO EM FORMAÇÃO SE TORNANDO UM MUNDO
DESCONHECIDO NO PRECÁRIO NO FRESCOR-FRESHNESS EM
LIBERDADE?????????????”113

Tem-se, aí, uma espécie de manifesto, na forma de uma pergunta. “Por que não
ser” denota justamente a interrogação por outra maneira de compor, em que se tem
como eixo a experimentação. Nesse caso, há uma organização, sim, não é tudo
aleatório, mas quem a traça, ao invés de regras, é a própria abertura da liberdade
criativa. Nessa postura, o poeta sinaliza outro caminho, na contramão do que já é
familiar, codificado. Não ter em vista um resultado a ser alcançado, um modo de
experiência já predeterminado envolve uma postura de assumir o desconhecido dentro
do processo criativo. É pôr em prática um programa in progress, não programado.
Nessa espécie de manifesto-babilaque, Waly diz não à ossificação, que também
parece relacionar-se com a dureza e a rigidez das consagradas regras de criação poética,
mas também de algo sem carnadura, sem corpo. Parece um conclame ao movimento da

113
Todos os textos que citarei dos Babilaques colocarei num tipo de fonte versalete por uma
impossibilidade de importar todas as grafias das obras, como imagem. No entanto, uso dessa estratégia
para marcar suas específicas grafias e distingui-las dos demais textos aqui citados.

183
investigação, a abertura para pegar uma estrada sem direções e destinos pré-
determinados. É como assumir-se um transeunte numa errância engendrada por essa
poética-tabaréu. O próprio babilaque está prestes a entrar em movimento, como sugere
a foto anterior em que o caderno é posto na porta de um veículo.
Na página, o nome aparece duas vezes, sendo uma delas o verso da página,
numa dobra. Além disso, a palavra BABILAQUES DUM CONSTRUTIVISTA
TABARÉU é alternada de duas diferentes cores e grossuras de traço, o que parece abrir
para mais uma leitura. Seria o babilaque também um tabaréu?

O CONSTRUTIVISTA TABARÉU dobra também as possibilidades de sentido na


medida em que mistura a referência do formalismo e o rigor na criação artística –
CONSTRUTIVISTA – com um dado de origem, interiorano e capiau, que nos inspira outro
tipo de saber, de fazer – TABARÉU. Ao mesmo tempo, os BABILAQUES

CONSTRUTIVISTAS referenciam uma geração de artistas, sobretudo os russos, que muito


marca o período neoconcreto no Brasil, como vimos no capítulo anterior. Disso
podemos talvez entender essa fusão do elaborado com o precário, que me parece ser
condizente com esse programa poético. Construtivismo, nesse caso, relido e modificado
pelo sujeito, seu tempo e seus trajetos, como o próprio Waly sugere:
A poesia não tem lugar nobre pra acontecer. Não é só o mármore como os
parnasianos, os cultores do monte parnaso pensavam. A poesia não tem só
locais, ou materiais nobres, ela usa os mais diferentes materiais, não há
vulgaridade pra ela, você pode restaurar, é um trabalho intenso, é um trabalho
construtivista, não o construtivismo de 100 anos atrás, é um construtivismo
dos nossos tempos, de quem está com olhos novos para o novo, com ouvidos
abertos, e também com capacidade de ler diferentes tradições, não ficar
ensimesmado, isolado (NADER, 2007).

Na obra do poeta baiano, portanto, é possível perceber a experiência como um


ponto de passagem por onde percorrem esses elementos, que funcionam também como
combustão de sua explosão poética: o inacabado, o desconhecido, o móvel e o
experimental. Por isso, reconheço uma espécie de “programa poético”, que lida com
tentativas, riscos e se faz com a experiência (CÍCERO, 2007, p. 25).

184
185
3.4. AMÁLGAMAS DA PRESENÇA
3.4.1. PERFORMANCE POÉTICO-VISUAL
Waly Salomão opta por não reduzir o nome do trabalho às categorias de arte já
institucionalizadas e seus chamamentos. Assim, ele alerta para não designar os
Babilaques simplesmente como poemas visuais. Essa alcunha, segundo o próprio, seria
desatenta à somatória de linguagens e denotaria algo estático, sem mobilidade. O

186
movimento seria, portanto, provocado justamente pelas múltiplas linguagens que
integram a obra e não somente sua visualidade.
Compõe-se com diferentes formas de expressão: textos, objetos, luzes, planos,
texturas, imagens, cores, superfícies. São tantos elementos de linguagem num mesmo
babilaque, que o experimento não poderia ser considerado meramente pictórico. É, ao
invés disso, muito mais intersecção, somatória de linguagens, em diferentes montagens
e combinações.
Os cadernos mostram-se um meio facilitador dessa fusão da escrita com a
plasticidade, para além de seu valor de suporte. Inclusive potencializando essa
parecença em produzir desenhos e escrever textos. Eles estão tão misturados que parece
que se escreve como se desenhasse. Com a página do caderno e o lápis/caneta em punho
é mais fácil quebrar a linearidade do escrito, que o processador de texto e a máquina de
escrever, por exemplo. Se quisesse desenhar um círculo aqui, fazer uma rasura sujando
todo o papel, produzir borrão, entre outras infinitas possibilidades, teria que recorrer a
recursos tecnológicos, acionados fora do teclado. MAS FARIA DIFRERENÇA SE EU
COMEÇASSE A ESCREVER TODO O TEXTO EM CAIXA ALTA?

Em outras palavras, queria chamar a atenção de que a distinção entre escrita,


desenho e outras grafias, principalmente nessa experiência dos Babilaques, não é clara.
Há um desenho com as palavras, há palavras que são desenhos. Os cadernos
possibilitam, portanto, uma exploração gráfica mais próxima das artes plásticas. Então,
é como se fosse possível operá-los de maneira distinta do ordenamento e do tipo de
composição das tipografias e diagramações dos textos impressos. 114
Mas, além disso, como sinaliza Waly, os cadernos funcionam como uma espécie
de tabuleiro composto por uma série de outros elementos: lápis, embalagem, lata, remo,
balde, lençóis, folha de bananeira, entre outros. Mesmo em termos de poesia, temos
textos de variadas naturezas, sendo, a poética, fruto da maneira como eles se organizam
nessa fusão de materiais, amontoados feito penduricalhos. Diário, poema, ensaio,
anotações, palavras soltas, códigos, citações, neologismos, diferentes idiomas. A
palavra aqui é responsável por ativar nossa experiência, é agente que age com todo o
resto e, segundo o próprio poeta, quem hibridiza nosso campo sensorial (SALOMÃO,
2007, p. 21).

114
Além disso, nos cadernos há uma força daquilo que já discutimos sobre a possibilidade de exploração
do espaço gráfico como elemento de composição, que aqui situei nas experiências da poesia concreta no
Brasil.

187
A fotografia é responsável por ficcionalizar o arranjo provisório do livro-
tabuleiro: caderno exposto sobre uma superfície tal, acompanhado de outras miudezas. 115
É como se o enquadramento da foto fosse responsável por criar um espaço fictício tal
como a moldura pode ser reconhecida como “meio termo” entre ficção e realidade
(GULLAR, 2007, p. 92). Interessante pensar ainda que, se o rompimento da moldura
era também a busca do descolamento da representação, para os pintores de vanguarda, a
fotografia assume o status de procedimento artístico quando incorpora também seu
valor ficcional, para além dos retratos e do registro documental (BENJAMIN, 1994).
No caso do trabalho de Waly Salomão, a produção da foto, isto é, a montagem
dos cadernos e demais badulaques em diferentes cenários, é responsável pela construção
de uma “trama fotográfica”, em que é possível a construção de um universo ficcional
(KOSSOY, 2002). Isso também se pensarmos que a foto, depois de captada, ainda
permite diversas manipulações, cortes, seleções, sendo possível, portanto, alterá-la em
sua pós-produção.
Os Babilaques, no entanto, não são 20 cadernos nem 20 fotografias, mas esse
amálgama de materiais e procedimentos. Explodem, desse modo, as margens dos
cadernos, do texto. Com isso, inclui, soma outros elementos à poesia. A experiência
organiza-se, justamente, em torno da pluralidade de significados, que, inclusive, já está
posta na proposição do nome, como vimos anteriormente.
Assim, a poesia move-se da palavra para fundir-se em outros elementos, a saber,
objetos, cenário, fotografia, caderno e outras variações de composição que passam por
ideogramas, montagens, desenhos e colagens. Ela se amalgama ao elemento visual e
material. Os objetos, as texturas, as cores, tudo se transmuta, nos chega como poesia.
Mas não somente. Há ali uma poética na visualidade, mas antes de tudo uma
performance, no sentido de pressupor um corpo, de um sujeito que se entranha através
do seu gesto de compor com esses elementos, tornando-os, também, corpos. Por isso,
Waly nomeia o trabalho de performance poético-visual.
Para além de reconhecer a multiplicidade de linguagem, que eclode
principalmente na visualidade do trabalho, a noção de amálgama revela um corpo que
entranha presença na obra. Em AMALGÂMICAS, por exemplo, babilaque de 1976,
parece que tudo isso se põe nítido. Para pensar a partir dele, integro à leitura um poema
de Waly Salomão, intitulado “NOTA DE CABEÇA DE PÁGINA”, parte do livro
Gigolô de Bibelôs.

115
As fotografias dos Babilaques são quase todas creditadas a Marta Braga.

188
O poeta expõe sua busca em torno de uma composição enquanto PRESENÇA,
palavra que ele mesmo destaca em caixa alta. Algo que, através da composição, por

uma única vez, sugere ser o próprio momento/movimento da criação. Para isso, chama
por uma natureza nãomorta, que SURGE no seio da vida, na primeira única vez, que
imagino ser a insurgência, no aqui agora, da criação.
NOTA DE CABEÇA DE PÁGINA
Contrariando o ditado latino e a canção brasileira,
RECORDAR NÃO É VIVER.
Segundo nós dois, eu e a Gertrude Stein.
A composição enquanto PRESENÇA dalguma coisa
e essa alguma coisa
SURGE
dentro da composição através dela pela primeira única vez
Natureza-não-morta.
Não escrever sobre.
Não descrever. Ou reproduzir.
Escrever. Produzir.
Q a primeira única vez volte a se fazer PRESENÇA.
É o Q mais QUERO na vida.
Uma não-natureleza still alive

(SALOMÃO, 2008, p. 128)

O babilaque compõe-se dos seguintes elementos: um balde vermelho posto de


lado, exposto ao sol, sob um chão de pedras. Repousado nele um caderno e uma lata um
pouco enferrujada contendo um pedaço de fruta dentro.

AMALGÂMICAS - Itapoã, Salvador, 1976

189
A fruta talvez seja um dos elementos mais intrigantes. Talvez quem olhe à
primeira vista nem distinga o que é, sendo responsável por certa estranheza. Parece que
aqui encontramos a “não-natureleza still alive”, de que fala o poema acima. A natureza
morta, nesse caso, pode ser lida como uma espécie de referência a esse gênero da
pintura figurativa, vindo de uma tradição ocidental de dezenas de séculos que sugere
também certa imobilidade. Ao contrário dessa noção, a busca aqui é por uma natureza
viva. A fruta, ali, dentro da lata enferrujada, com marcas do tempo, parece conter a
PRESENÇA dessa composição amalgâmica. A fonte em caixa alta destaca justamente o

190
que vemos em relevo no trabalho, isto é, “PRESENÇA dalguma coisa”, como sugere o
poema.
No que Waly propõe em “AO LEITOR, SOBRE O LIVRO”, talvez encontremos
uma convocação não do olho fóssil, morto, mas como ele próprio sugere do olho míssil,
em movimento. A própria grafia das palavras sugere esse espraiar-se, sobretudo no
sentido dessa poesia-seiva.
O “s” da palavra seiva é escrito com prolongamentos pontiagudos que
antecedem a letra. As pontas das palavras se alongam dando movimento à escrita. A
repetição da palavra em inglês, de mesmo significado – sap – eclode na palavra em
português – seiva. Como se a escrita fosse caminhando, em fluxo, para o acontecimento
da palavra, pela ação do curso da seiva. Esta percorre um trajeto: começa em vermelho
até chegar à cor verde. O vermelho é justamente o que a seiva representa para a planta,
seu sangue. Sobe pelas veias das raízes até chegarem aos órgãos verdes, o caule e as
folhas. Nas letras verdes do texto, observa-se uma palavra escrita com uma espécie de
caneta hidrocor, o que possibilita ver a coexistência de dois traços, como se uma linha
passasse por dentro da palavra, feito seiva. O balde emborcado para o lado vem ao
encontro desse desejo de fluxo. Sua abertura condiz com o derramar dessa seiva.

Na imagem poética, a cena de UMA MENINA que METE UM AVIÃO NAS COXAS E

MONTADA GALOPA PELO PARQUE SAPSAPSAPSEIVA TUDO DE MAIOR QUE PODE SER

SAPSAPSAPSEIVA. Por entre essa cena, parece correr o fluxo de vida, que, numa
referência a uma brincadeira espontânea e fantástica da infância, assume uma força
poética ainda mais intensa, pela liberdade de TUDO DE MAIOR QUE SE PODE SER

(SALOMÃO, 2007, p. 86). É possível ler ainda como uma experiência de erotismo.
Nesse caso, a seiva seria uma espécie de ejaculação, de gozo.
Nos dois casos, a metáfora sinaliza uma natureza “still alive”, em que o poeta
sublinha sua operação de amalgamar à obra a presença do corpo, o pulso de vida que
escorre pela seiva, no aqui e agora da “primeira única vez”, o instante da criação.
Assim, ele funde presença a esses elementos babilaques, suas miudezas, que, por sua

191
vez, convocam o leitor a recebê-lo como um fluxo. O inacabado e a incompletude
surgem como próprios da existência da vida. E essa PRESENÇA também não é
completa, inteira. Mas está ali, encarnada na obra poética, como se viver fosse também
experimentar.

3.4.2. EXPLOSÕES EM TESTE


Segundo Hélio Oiticica não se descobre algo que não existe. E não é tarefa do
artista criar, mas mudar o valor das coisas. Ele diz: “todo mundo sabe que o sol é o sol”
(OITICICA, 1972). Ao mesmo tempo em que QUEM NUNCA TEVE PERTO DO SOL NÃO

PODE FALAR DO SOL, escreve Waly Salomão em STRIDE, seu babilaque de 1976
(SALOMÃO, 2007, p. 70).
Imediatamente vem a imagem em movimento de Waly, no documentário Pan-
cinema Permanente, cantando-declamando “Mel”, canção em parceria com Caetano
Veloso. Ele repete inúmeras vezes o trecho, reproduzindo o movimento no corpo: “E
agarro o sol com a mão. E agarro o sol com a mão. E agarro o sol com a mão. E agarro
o sol com a mão. E agarro o sol com a mão” (NADER, 2007).

Entender o amálgama da presença é pensar como o poema assume uma


“plasticidade de gesto”116, nos termos de Ericson Pires. Esse mesmo gesto que parece
traduzir toda a ação de performance engendrada na poética visual dos Babilaques, pelos

verbos, pela ação de montar, amontoar, amalgamar e alterar. O poeta entranha


PRESENÇA no ato de compor na medida em que se expõe para alguma, qualquer coisa
que SURGE em sua “primeira única vez”. E como é agarrar o sol com a mão? Pois é

116
“O sol. O sol brilha. O sol brilha no gesto. O sol gesta. Gesta o brilho. Em cada gesto o sol brilha. A
luz. A imagem. A forma. A força. Inaugurar um poema. Inaugurar um poema que é plasticidade do gesto”
(PIRES, 2007, p.113).

192
isso, ele opera em deslocamentos sensoriais, modificando, produzindo um sol a partir de
seu aqui agora. A criação literária se coloca, portanto, como experiência, como
acontecimento, por conseguinte, como performance. Performance esta que se justifica
principalmente pela presença do gesto e do corpo, vivos, na presença atuante:
E se a vida não for uma performance o que será então? Amar a vida. Brilhar
como brilha o sol que bebe o chá do poeta. Ter corpo. Ser corpo. Viver
corpo. Não abrir espaço para o medo do corpo. Nietzsche. Experimentar meu
corpo como corpos. Sobrepor os corpos. Misturar os corpos. Bagunçar os
corpos. Estar corpos em cada momento e lugar. Exercitar o corpo como
dobradiça. Porta sempre aberta. Entrar e sair. Tocar o tempo com o corpo. O
corpo vivo. Viver esse corpo. Todas suas intensidades. Amar os corpos.
Impor seu corpo com presença atuante. Ninhos de intensidade. Tocar os
corpos. Ser tocado pelos corpos. (...) A vida é ação de corpos no tempo. (...)
Fazer da vida acontecimento (PIRES, 2007, p.114-115).

É nítido que não se fala mais aqui de um sujeito cartesiano, que separa corpo e
mente, como duas substâncias independentes. O mundo também não é anterior à
experiência, ele e o sujeito se criam, instáveis, mutuamente.
Numa simples pesquisa num banco de dados da Internet, deparo-me com
registros fotográficos de Waly Salomão. Leio sua corporeidade como a de um sujeito
encarnado, que partilha de uma experiência multidimensional, isto é, a um só tempo
pessoal e vincular, sensível e mensurável, material e energético (NAJMANOVICH,
2001, p. 24). Nas imagens, o corpo quase sempre expansivo, movente, com as mãos à
mostra e um gesto largo, para fora, como bem mostram as imagens abaixo:

193
Arnaldo Antunes bem definiu os Babilaques como a tradução mais adequada da
leitura oral que Waly fazia de sua poesia. Os “gestos largos” e sua “atitude vigorosa”
acusam o que chama de “verbo colado no corpo” (ANTUNES, 2007, p. 35).

Em Pan-cinema permanente, numa entrevista dada em inglês para uma rede de


TV síria, Waly fala de sua dicção peculiar, 117 contando que escreve e fala de modo
estranho, mesmo em português (NADER, 2007). Tomo isso como significativo nessa
discussão sobre seu corpo amalgamado ao verbo, pois muitas vezes que o leio tenho a
sensação de escutar sua voz, a maneira como articula as palavras, na clareza das
divisões silábicas. Como a grafia de “–B-A-B-I-L-A-Q-U-E-S” ou “GAL-FA-TAL -”,
118
entranhadas, para mim, de sua entonação.

117
Transcrevo o trecho: “Eu sou um poeta que escreve estranhamente mesmo em português. Eu falo
estranho. É uma forma de evitar, de ser diferente num mundo tão homogeneizado. E eu acho que isso é a
alma da poesia” (NADER, 2007, tradução minha).
118
Essa era a grafia criada por Waly e estampada no disco GAL-FA-TAL, com capa concebida por
Luciano Figueiredo e Oscar Ramos, no disco lançado em 1971. Essa grafia aparece também em “-FA-
TAL-”, uma das partes que compõem o Me segura qu’eu vou dar um troço (SALOMÃO, 2008, p. 82-
86).

194
Em PERCUSSÕES DA PEDRA Q RONCA, por exemplo, o poeta inclui um
aviso prévio: “para ser lido alto. para ser lido bem alta voz para ser lido para dentro”.
Tudo isso para “ser um incêndio” – “LUZ FOGO CALOR” – para se “alastrar”
(SALOMÃO, 2008, p. 130-136). A voz como percussão na palavra, ativando seu som
pelo impacto, pegando fogo pelo ritmo, dissipada na frequência sonora. Isso de dizer
“ser lido alto”, frisa ainda que o seja feito com entusiasmo, vigor, com “afã”, palavra
dele. Nesse simples “aviso” percorremos diferentes zonas, de dentro e fora, da voz
atravessando um corpo, mas sempre no sentido de uma explosão. Qualquer coisa que
caminhe para aumentar o volume e liberar energia, operando em alta temperatura. É,

portanto, como se, só através da voz, fosse possível fazer acontecer o texto, detoná-lo.
Além disso, no texto, o poeta convoca o fluxo e se pergunta se aquele
experimento não está “saindo, rompendo” com o que é publicável. Por isso, decide se
afastar da “palha q corta o fluxo”, para que possa se espalhar, encontrar o percussivo da
pedra, o seu ronco, sua sonoridade. Para isso, se senta e localiza-se no tempo presente,
“onde nunca se diz coisa alguma recordada”, mas “onde se avista produz brilho” (Idem,
ibidem).
PERCUSSÕES DA PEDRA Q RONCA se divide em testes sonoros,
nomeados de relevos, de zero a cinco. Os relevos são construídos, sobretudo, na tônica
da repetição e do jogo sonoro com palavras. Neles, percebo mais visivelmente a
influência da escritora norte-americana Gertrude Stein, tantas vezes citada por Waly em
seus textos. Conhecida pelo caráter experimental de sua obra, principalmente o
rompimento com a linearidade, em sua escrita prevalece a repetição que, por sua vez,
privilegia o fluxo. Esse modo de compor desestabiliza o sentido convencional das
palavras, na medida em que a sua multiplicação as torna mais som, por exemplo, do que
significado.119
Como o próprio nome diz, o relevo põe o som e a espacialização da página como
texturas desses textos percussivos. A voz alta, portanto, é a mais indicada, por dar vazão
a todas as potencialidades inscritas neles. A vocalidade, nesse caso, convoca uma
corporeidade120 – peso, calor, volume real do corpo – da qual ela é expansão, não sendo
uma voz, então, no sentido abstrato (ZUMTHOR, 2007, p.16).

119
Gertrude Stein emancipa o potencial fonético em relação ao semântico, o som em relação ao sentido.
Com isso, provoca uma espécie de “automatização dos significantes, cujo jogo se torna o aspecto
dominante da prática estética”. A tipografia e a sonoridade, assim, chegam para o leitor, por vezes, ao
mesmo tempo em que o significado (LEHMANN, 2007, p. 104).
120
“O que entender aqui pela palavra ‘corpo’? (...) é ele que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos
textos que amo; ele que vibra em mim (...) O corpo é o peso sentido na experiência que faço dos textos”
(ZUMTHOR, 2007, p. 23).

195
No modo de articular as palavras, percebo uma recorrência do fonema B nas
palavras escolhidas por Waly: babilaque, tabaréu, bibelô, barato, caboclo, logbook,
biócio, bizu-besouro, entre outras. Considerando a letra como seu “tema timbre”, 121

encontro no fonema o impulso explosivo e incendiário para o qual o poeta nos convoca
em PERCUSSÕES DA PEDRA Q RONCA, mas também nos Babilaques.
Sendo o B uma oclusiva bilabial sonora, seu modo de articulação, quando na
pronúncia o ar é expirado, pela obstrução momentânea dos lábios, provoca uma
explosão na emissão de som, que acontece pela abertura da boca.

Noto essa explosão ainda no traço cromático dos Babilaques. A presença


insistente do vermelho – desde objetos até a cor das letras – me lembra como o
pigmento é justamente a cor de sangue, o que nos remete ao encarnado, sendo possível
relacioná-lo à cor do fogo e da lava.122 Sua vivacidade mostra-se altamente apropriada
para o corte, princípio dessa escrita que já agora tomo como carne, como corpo.

3.4.3. ALGUNS CRISTAIS CLIVADOS


Incitadas por um estímulo exterior, geralmente as explosões provocam um
aumento de energia cinética. No caso dos Babilaques, Luciano Figueiredo aponta que a
máquina fotográfica, flagra justamente um “jogo cinético visual” (FIGUEIREDO,
2007, p.12). Levada por essa expressão de movimento, tônica desse programa poético
que aqui aprecio, encontro uma série de experiências artísticas agrupadas sob o termo de
“arte cinética”.

121
Termo de Haroldo de Campos, na sua leitura a partir do estudo da complexidade musical das palavras
e dos fonemas repetidos, em Grande Sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, retomado aqui pelo
trabalho de Cássia Lopes, em Gilberto Gil: a poética e a política do corpo (LOPES, 2012).
122
Ver “O pensamento quente de Waly Salomão”, matéria de Leonardo Lichote, disponível em:
http://oglobo.globo.com/cultura/o-pensamento-quente-de-waly-salomao-9771366

196
Segundo Guy Brett, elas eram mais
uma “visão de mundo” que propriamente
um processo de produção de um tipo
específico de objeto (BRETT, 2005, p.17).
Sob a percepção de um dinamismo
constante, para além das formas estéticas
fixas, essa proposição de movimento,
mudança, intersecção de tempo e espaço se
refletia, sobretudo, numa transformação material da obra de arte. Lúcio Fontana é o
grande formulador desse movimento, com seu Manifesto Blanco.123 Trago-o para
começarmos a pensar no princípio do

corte, que, em seu trabalho se opera na


fisicalidade de suas telas, como na imagem
ao lado.
Os rasgos feitos no tecido de seus
quadros estão, para mim, nos cortes que
Waly Salomão opera em seus cadernos.
Não literalmente, mas materialmente
quando da caneta sobre o papel, quando do
gesto de entranhar uma ação anterior que
permanece no corpo da obra, como é o caso
do corte nas pinturas de Fontana. Como se fosse um delito compositivo, de um espaço
habitualmente aurático, estão ali os indícios que denunciam uma PRESENÇA, uma
experiência de profanação que se transcorreu no tempo e amalgamou-se ao espaço do
quadro.
O flagrante, no caso de Waly, para usar o termo de Luciano Figueiredo, do gesto
de composição, desde a escrita nos cadernos à montagem dos objetos, bem como sua
mobilidade por diferentes lugares, esse amálgama, portanto, é capturado pelo registro
fotográfico. A máquina opera justamente no enquadramento, seleção de um dado

123
“A formulação de Lúcio Fontana, em 1964, foi exemplar: a desgastada estética das formas fixas estava
ultrapassada pela percepção do mundo como ‘dinamismo constante’, no qual a ‘mudança é a condição
essencial da existência’. Fontana, em Manifesto Blanco, assinado por alguns de seus alunos em Buenos
Aires, profetiza uma arte que surgiria do materialismo (não de ideias) e que, em certo sentido, geraria a si
própria de acordo ‘com forças naturais livres de todos artifícios estéticos’. Para ele, era preciso tomar ‘a
própria energia da matéria, sua necessidade de existir e se desenvolver’. Esse modelo de interação de
energias foi levado adiante por Hélio Oiticica e Lygia Clark em suas experiências com obras que podiam
ser ativadas e elaboradas pelo espectador” (BRETT, 2005, p.17).

197
espaço, ângulo, num instante específico. Por que não pensar que ela também é
responsável pelo corte no caso dos Babilaques?
Curiosamente, a obra é acompanhada por um subtítulo: Babilaques - Alguns
cristais clivados. Pedra preciosa de geometria complexa, com grandes propriedades
energéticas para os esotéricos, o cristal aparece acompanhado do adjetivo clivado, que
significa cortado, amputado. O babilaque, assim, não seria como algo que existe por si
só, na natureza, mas como um corpo-pedra – para retornar à metáfora da rocha – mas
que sofreu uma interferência, uma alteração, que leio como uma operação de
performance.
Além de relacionar-se com a explosão, a presença do vermelho e do gesto
encarnado, a leitura que faço de corte em Waly Salomão vem principalmente do
babilaque intitulado ALTERAR - CALDERNARO, que eu gosto de chamar de “ctrl z”,
fazendo referência ao comando de “desfazer” do computador e dos softwares de texto.
Escrito todo ele em vermelho, com a mesma caneta vermelha que se corrige uma prova,
que corta aquilo que não está de acordo com as normas, respostas esperadas, é um dos
poucos monocromáticos dessa série de trabalhos, geralmente muito coloridos.

ALTERAR - CALDERNARO – Nova Iorque, 1975

198
Composto de uma única palavra repetida oito vezes, atravessada por linhas
vermelhas, de mesma tonalidade das palavras, tomam o caderno de ponta a ponta. O

poeta opera através desse corte de linhas para visualmente amalgamar palavra e
imagem imputadas na mesma ação de alterar. Com a progressão das linhas, além de
movimento, é possível perceber uma espécie de tempo, que segue, na leitura da obra,

199
em progressão. A palavra desnuda-se quando está toda coberta, alterada. No momento,
portanto, que é menos seu significante e mais significado, explode, em vermelho, no
papel.
Como se fosse um frame, em cada linha, em movimento, preenche-se a palavra
que é também imagem, até cobrir e consumar a alteração. Alterar aqui, além da palavra,
da linha que se faz, por cima do nome, remete ainda à própria composição da obra. No
registro fotográfico desse caderno, o poeta, através de seu traço, na ocupação da página,
na forma da caligrafia, no uso da cor, imprime seu gesto e entranha PRESENCA ao
corpo da obra.
É como se o poeta operasse com uma “faca só lâmina” nas mãos, cortando a
palavra ALTERAR, mas imprimindo seu corpo, partido ali, alterando o próprio signo. A
faca sem cabo empresta seu corte ao mesmo tempo em que corta o sujeito que a opera,
como se, indissociável do corpo, “se transformasse em parte de vossa anatomia”,
evocando a metáfora de João Cabral de Melo Neto (MELO NETO, 1979, p.132).
A imagem da faca me leva ainda ao vídeo da performer Marina Abramovic 124 do
seu trabalho denominado Rhythm 10, de 1973, em que a artista dispõe de uma folha de
papel, vinte facas de diferentes tamanhos e dois gravadores. Em público, ela pega a
primeira faca e dá facadas entre os dedos de uma das mãos, repetindo esse movimento o
mais rápido que conseguir. Quando ela se corta, ela troca de faca. Quando usa todas as
facas, ela rebobina o gravador e ouve o ritmo do movimento das facas, que leio aqui
como uma espécie de percussão. Depois disso, repete a ação. O sangue que escorre dos
dedos pigmenta o papel, onde se imprime o rastro do gesto de Abramovic.

124
Friso que o aparecimento de Marina Abramovic nesta tese é auspicioso, principalmente por pertencer a
um contexto artístico do final dos anos 1960 e início dos anos 1970 que dialoga bastante com as propostas
de J. Pollock e as intervenções do Fluxus, por exemplo. São os primeiros propositores reconhecidos como
performers do entendimento da arte da performance. Participam, ativamente, do rompimento com as
fronteiras na arte, aproveitando o deslocamento da criação/recepção tradicional da obra de arte,
empreendido por artistas como Marcel Duchamp.

200
Essa performance me chega como uma analogia, em algum aspecto, no princípio
do corte em Waly, colocando em discussão a presença do artista, seu corpo e seu gesto,
enquanto obra. Ao mesmo tempo, me traz discussões que atravessaram esse curso de
doutoramento sobre o declínio da unidade, da linearidade, por exemplo, mas, sobretudo,
da perspectiva de um “saber instável”, 125 em movimento nesta escrita, no trajeto deste
processo criativo-acadêmico. Na obra de Waly Salomão, sobretudo os Babilaques, no
seu desejo de incompletude, estando sempre para ser escrito, coloco-me, como leitora,
na possibilidade de ser produtor, diante de um “texto escri vível” (SANTOS, 1989, p.
32).
Assim, como as “literaturas pós-autônomas” nos colocam a necessidade de
novos modos de ler, opto por uma crítica literária que assume um tipo de “processo
criador” (LUDMER, 2007/ SANTOS, 1989, p. 32). Correndo o risco que reside dentro
desse espaço instituído da escrita acadêmica, encaminho-me para a última parte deste
trabalho.
Antes disso, no entanto, concluo o capítulo com uma leitura criativa do tabaréu,
sob uma perspectiva crítica, num exercício de abertura de possibilidades. Aproprio-me

125
“O saber instável é o que participa da atividade de significações, é aquele que se move, percorrendo
outros lugares e superfícies, aproximando paisagens díspares, acionando-as” (SANTOS, 1989, p. 27).

201
de várias frases, palavras e imagens de Waly Salomão e outros artistas, montando uma
espécie de remix, para construir e descontruir possíveis semblantes para a póetica-
tabaréu.

3.5. O TABARÉU REMIXADO 126


126
Todos os textos remixados, a partir de diferentes autorias, estão creditados na seção de referências
bibliográficas, com o título de “Créditos do Tabaréu Remixado”.

202
COMO FALAR EM WALY SALOMÃO, EM EXPERIÊNCIA, SEM LOCALIZAR DE ONDE FALO?
FALO DA BAHIA, DO CENTRO HISTÓRICO DA CIDADE, DO SANTO ANTÔNIO ALÉM DO
CARMO, COM AS EXPLOSÕES DOS FOGOS DE SANTA BÁRBARA ENTRANDO PELAS
JANELAS, VINDAS LÁ DA IGREJA DO ROSÁRIO DOS PRETOS.
ESCREVO NESTA FONTE VERSALETE, LETRA DE FORMA NÃO TEM TANTA NECESSIDADE
DE LETRA MAIÚSCULA. TEM POUCA HIERARQUIA DE TAMANHOS. CAETANO E BETHÂNIA
CANTAM JUNTOS “ADEUS MEU SANTO AMARO”. AS LETRAS DO TABARÉU, COMO OLHOS,
TORNAM-SE UMA PRESENÇA DENTRO DA CASA, ASSIM COMO AQUELAS OUTRAS VOZES
DA BAHIA. COMO SE ELAS ME ACOMPANHASSEM, COMO SE FOSSEM CORPOS NO MEU
AMALGAMADOS. COMO SE HOUVESSE UMA ESPÉCIE DE VIDA, MOVIMENTO, SEIVA,
SANGUE – NATUREZA VIVA – CORRENDO CÁ PELA ESCRITA.
ESCREVO DESSE JEITO PORQUE PENSO ASSIM EM LETRAS DE FORMA, NUM REPENTE DE
IMPROVISO, EM ARRANJOS DINÂMICOS, PARA DEPOIS PENDURAR BABILAQUES EM ITENS.

BABI – LÔNIA – BADU - LAQUE

ME FORM FORMANDO NESTE INSTANTE-JÁ ESPECÍFICO DO TEMPO-ESPAÇO DA VOZ. DA


MINHA BABILÔNIA SE EXPLODEM PENDURADOS, POSSÍVEIS TABARÉUS. ENTRANDO E
SAINDO DE TORRES DE BABEL. CENAS SOLTAS REMIXADAS EM MINI-TABULEIROS -
CINEMEX.

CINEMEX 1
O TABARÉU SE EMANCIPA DO PATRÃO. MONTA SEU TABULEIRO DE BADULAQUES NA
BABILÔNIA. PENDURICALHOS, PECHINCHAS. DE UMA TÁBUA FAZ UMA MESA COM UM
ENGRADADO DE CERVEJA. MONTA NUM CANTINHO DA CALÇADA QUE SOBROU.
BARROQUINHA, SALVADOR, CENTRO DA CIDADE. O TABARÉU E SUA GAMBIARRA.
PRODUTOS BARATOS – PENTES, ESPELHOS, ÓCULOS, BIJUTERIAS, LANTERNINHAS,
CANETAS BIC, PRESILHAS, DVDS PIRATAS - FAZEM UM COLORIDO PECULIAR NA TÁBUA
DESGASTADA. NA ARQUITETURA MÓVEL E PRECÁRIA, UMA LONA AZUL CELESTE COBRE
O TABARÉU NA VIELA EM MOVIMENTO. ELE ESTÁ ALI, MUITO PERTO DO ASFALTO, DA
LAMA QUE INUNDOU A CIDADE NA ÚLTIMA CHUVA. ANUNCIA ALTO – É 2 POR 5.

- MINHA GUIA, MINHA VIDA, É A SOLUÇÃO DE VERDADE, EU QUERO SER UM


AUTÔNOMO NA CIDADE. – CANTA O ARTISTA URBANO, QUE PASSA.

O TABARÉU RECOSTA NO BANQUINHO E LÊ UM CONSTRUTIVISTA QUALQUER. CHEGA A


COCHILAR E SONHA COM UM POEMA DE ARQUITETURA IDEAL.

CINEMEX 2
O TABARÉU SE DESPEDAÇA. ESCAPA. É AGORA OUTRO. SE DESFAZ QUE NEM RECORTES
DE PAPEL. PERSONAGENS SOLTOS EM BUSCA DUM AUTOR. BRASILLY. AGORA ELE É O
ARTISTA EXILADO. DÁ PASSOS LARGOS, STRIDE, ELE APRENDE INGLÊS PALAVRA-POR-
PALAVRA NO PASSO-A-PASSO PELA CIDADE ESCRITA. ESPREME OS OLHOS PARA
CONSEGUIR LER O GAFFITTI DO METRÔ. RABISCA COMO UM PIXADOR, NO CADERNO,
DURANTE TODA A VIAGEM DE VOLTA. ENCONTRA UM PACOTE DE RAISINS NO BOLSO.
COISA ESTRANHA UVA PASSA VIR NUM SAQUINHO LAMINADO, TÃO PSICODÉLICO. TUDO

203
BEM, PENSA O TABARÉU, CUSTA APENAS 1 DÓLAR. O SOL ESTÁ CRU, LÁ FORA. COLA O
PACOTE NO CADERNO.

APONTAMENTO 1
CANETA HIDROCOR VERDE NAS COSTAS DE UMA FOLHA SOLTA DE UM BLOCO DE HOTEL:

“QUANTAS VEZES EU ENTRO NUM RÁDIO-TÁXI E O CHOFER DESCONFIADO QUE NÃO


TENHO DINHEIRO PARA PAGAR A RODADA COMBINADA
AÍ EU PUXO UM ASSUNTO
SABE QUEM EU SOU
O AUTOR DAQUELA CANÇÃO”.

NÃO É UM POEMA, NÃO É UMA LETRA, NÃO É UM DIÁRIO, NÃO É UMA OBRA GRÁFICA —
AO MESMO TEMPO EM QUE PODERIA SER TUDO ISSO.

APONTAMENTO 2
ALFAVELAVILLE
ALFAVELAVIVE
EM CONJUNTOS HABITACIONAIS

MAR... E AS SEREIAS DESAPARECENDO POR FALTA DE ESTÍMULOS COMERCIAIS.

BABILÔNIA, CIDADE CONSTRUÍDA FEITO FOSSE UM BADULAQUE.


CIDADE DOS CAMELÔS, DOS GIGOLÔS, DOS BIBELÔS.
POÉTICAS DUM TABARÉU.

AMNÉSIA,
POÉTICA DA CIDADE ESQUECIDA.

- NA SENSIBILIDADE PELE DO ASFALTO – CANTA UM JOVEM POETA, QUE PASSA.

CINEMEX 3
DA POLTRONA DO ÔNIBUS, É UM LEITOR DE MUROS, NÃO DE LIVROS. O TABARÉU DO
SERTÃO BAIANO FASCINA-SE MUITO MAIS COM OS LETREIROS DE NEON DO QUE COM
JORNAIS NAS BANCAS. NÃO ENTENDE ALGUMAS PALAVRAS, MAS NÃO IMPORTA. É UM
MUNDO DE TIPOGRAFIAS, DE PINTORES URBANOS QUE SE ABRE. AVENIDA SETE DE
SETEMBRO, SALVADOR POLIFÔNICA, POLIVOX. CARRINHOS DE CAFÉ FAZEM MÚSICA.
REMIXES DA BABEL. CALÇADAS SUJAS DE SANTINHOS DE SANTO EXPEDITO. SANTOS
GRAALFICOS. DESORDENADO COMO A CIDADE, SE PERDE. ONDE ESTAVA AGORA MESMO?

CINEMEX 4
RAPIDAMENTE ELE SE TORNOU UM MORADOR DA BABILÔNIA E SE ORGULHA DISSO. JÁ
NÃO SE PERDE MAIS, TEM ALGUNS AMIGOS, VAI COMPRAR A CASA PRÓPRIA EM BREVE.
MAS QUANDO ABRE A BOCA, NO RECONHECIMENTO DA VOZ, ELE SERÁ QUASE SEMPRE
TABARÉU. É QUE NÃO PERDEU O SOTAQUE.

CINEMEX 5
EXPLODE DE NOVO. CAMALEON CALEIDOSCÓPIO. É AGORA MARUJEIRO DA LUA.
MARUJEIRO DE TODAS AS LUAS. RECORTA IMAGENS DE CARROS ANTIGOS. COLA NO

204
CADERNO COM FITA ADESIVA. AMONTOA UM MONTE DE CADERNOS, COMO SE FOSSEM
ALPES. FIGURAS ALPINAS, ELE NOMEIA.

CINEMEX 6
SÓ DEPOIS DE EXATOS 9 MESES EM NEW YORK. 9 MESES DEPOIS É QUE ELE FINALMENTE
VISITA O EMPIRE STATE BUILDING OBSERVATORY. SÓ ASSIM VÊ A CIDADE DE CIMA, DOS
MUITOS ANDARES DO ARRANHA-CÉU. GUARDA O INGRESSO PARA COLAR NO CADERNO.
QUASE COMO UM TURISTA, ELE ESCREVE DEPOIS, A VISTA É COMO NA FOTOGRAFIA.
LOGBOOK. LIVRO-REMO.

APONTAMENTO 3
ARMAR UM TABULEIRO DE PALAVRAS-SOUVENIRS.
APANHE E LEVE ALGUMAS PALAVRAS COMO SOUVENIRS.
FAÇA VOCÊ MESMO SEU MICROTABULEIRO ENQUANTO JOGO LINGUÍSTICO.

205
ATALHOS, CURVAS E OUTRAS DIREÇÕES

Se continuasse a caminhar pelo curso do tempo que passou, poderia apontar


ainda muitas experiências literárias e artísticas no Brasil, lendo-as pelas lentes da
performance, desde os anos de 1980, com a poesia multimídia até novos modos de
produzir literatura, como o contexto das mídias sociais, caminho que percorri pela via
do blog, quando fiz das minhas experiências literárias um campo de observação.
Na contracultura, por exemplo, e no contexto da ditatura militar, muito se
poderia falar ainda no que tange à experiência artística colada à experiência da vida
cotidiana, da experimentação do corpo. Como o processo criativo dos Mutantes, grupo
formado por Sérgio Dias, Rita Lee e Arnaldo Batista, na década de 1970, de longe
indissociado do comportamento, do modo de se vestir e pentear, das revoluções da vida
privada, quando não se sabe muito bem separar aquele que compõe, daquele que vive
uma viagem “flowerpower” de experimentações de ácidos, de transgressão de normas,
deslizando a arte para a vida.
A própria tropicália de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, entre outros, e
sua relação com a contracultura, poderia ter muitos desdobramentos na via da

206
performance e da poesia. Ela marca, sem dúvida, um descolamento da arte como
instituição separada da vida prática que se intensifica, como vimos, na experiência
neoconcreta. Assistimos principalmente a uma diluição de categorias artísticas e das
instituições que definem o que é da arte.
No movimento do balanço de um estandarte, engendrado pela dança e pelo
corpo de quem o segura, nos dizeres de Hélio Oiticica “seja marginal, seja herói”, vejo
ainda outro grupo que não coube mencionar anteriormente. Uma geração de poetas
residentes no Rio de Janeiro que levou o nome de geração mimeógrafo e fazia circular
seus livros produzidos artesanal e clandestinamente. Poetas como Ricardo Chacal,
Carlos Antonio de Brito, o Cacaso, entre muitos outros, faziam circular a poesia pela
noite carioca. Fazendo e vendendo livros, eles mesmos, tinham uma relação física com
o próprio trabalho de mão em mão, pelo boca a boca, no tête-à-tête. Cacaso anunciava,
em um de seus poemas, o íntimo relacionamento entre arte e vida, no poema “Corda
Bamba”
Poesia eu não te escrevo
Eu te vivo
E viva nós
(BRITO, 2002, p. 55)
Nessa mesma época, temos poetas em plena atividade, que, certamente,
dialogam e se valem das contribuições deixadas pelos artistas, pelos escritores pelos
quais aqui passeamos, chegando em lugares ainda mais radicais que a página como as
pichações em muros de Paulo Leminski e Nicolas Behr, por exemplo.
E mesmo hoje, não poderia deixar de mencionar coletivos como o Poesia
Maloqueirista, que, há dez anos, imprimem seus livretos e folhetos fotocopiados ou
impressos de modo independente, circulando pelo país em pensões e hotéis baratos.
Tendo muitos deles vendidos, em plena crise do mercado editorial, mais de mil
exemplares sem ISBN, no “mano a mano”.
Ao mesmo tempo, não nos bastaria pensar nessas experiências sem considerar a
retomada, por diferentes gerações, de um Oswald de Andrade e as imagens telégrafas e
cubistas de sua poética; ou sem que nos lembremos que Manuel Bandeira já clamava
por uma “nova poética”, essa que tem a marca suja da vida, a lama no brim do poeta
sórdido que dobra a esquina de uma rua qualquer.
E o que se poderia dizer para além dessas gerações? Quem, além disso, é
contemporâneo a esse imbricamento de linguagens, o deslocamento de categorias, a
incorporação da obra de arte? Como pensar em outros trabalhos que dialogam com a

207
noção de performance nesse momento em que transcorre o tempo de escrita desta tese?
A Internet e os meios de produção midiáticos de uma Clarah Averbuck? E agora? Quem
poderia responder pelo presente? Uma Sinhá, poeta que faz poemas de grafites nos
muros de São Paulo e faz de muros poemas no papel?
Da mesma forma, como dar conta da indeterminação daquilo que acontece pela
via do acaso, intuitivamente, sem necessariamente se ligar a uma escola, a um
movimento artístico, a uma origem comum? Como trazer para o contexto desta reflexão
o profeta-poeta Gentileza, por exemplo, e Artur Bispo do Rosário, que não se
enquadram em panoramas da literatura nem da performance, mas que aqui poderiam ser
agregados a uma leitura específica? Por que não juntar, numa mesma leitura, a poesia do
fio de Bispo com as poesias de “Primeiro corte”, de Anna Zêpa, escritora potiguar, que
tem, em todas as páginas de seu livro, um picote, permitindo que sua página seja cortada
ao meio?
E como não pensar na efervecência dos saraus em São Paulo como uma
experiência da poesia viva no corpo, de quem retira um caderno da mochila e lê – no
calor da plateia atenta e silenciosa – um poema que fez no trajeto até a Cooperifa ou ao
Sarau do Binho, ambos movimentos consolidados de mobilização literária nas periferias
paulistas? Como não mencionar a performance Nolombo, de Daniel Minchoni, onde o
poeta se senta, no Sarau do Burro, e, com um cordão e tijolos, começa a construir um
corpo-lombo, esse que depois será desconstruído a cada martelada da plateia que o faz
no mesmo instante em que se levanta para falar uma poesia?

208
Ainda assim, me perguntei muitas vezes como não enjaular as escolas em
delimitações rígidas, nos movimentos, nos–ismos. E, por isso, comecei a tentar traçar
linhas de fuga, de modo a juntar artistas de diferentes tempos para dialogar num mesmo
bloco de texto. Talvez seja esse o caso do bloco 2, quando apresento minha experiência
com o se fosso fosse, propondo o entendimento dela, principalmente, através de Jackson
Pollock, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto e Lygia Clark.
Quem sabe não tenha sido assim que eu comecei, embaralhando tudo, sem muito
pensar, recusando o tempo cronológico. Depois veio a necessidade de ligar os pontos e
desenhar este percurso, narrado ao longo desta tese. Por isso, traçar uma espécie de
genealogia no bloco 3, com o “vanguardas, vaias e vivas”, foi importante. Nestas
considerações finais, volto a embaralhar nomes, tempos, contextos. Talvez pudesse
continuar de novo, daqui, justamente porque voltei a fazer perguntas. No entanto,
sempre chega a hora de imprimir e (se) expor. Ficam aqui estas sementes para novos
trabalhos de crítica que, sem dúvida, virão desdobrados deste longo caminho. A ação da
escrita e a escrita em ação hão de germinar em mim um novo começo.

II

Quando já estava na fase de conclusão de escrita desta tese, abriu no Rio de


Janeiro uma exposição intitulada “Biblioteca de Grifos de Waly Salomão”. Infelizmente
não tive a oportunidade de visitá-la, quem sabe daria até outros rumos para um novo
bloco, mas, sem dúvida, que me pareceu familiar ao estudo aqui desenvolvido em torno

da obra do poeta. Explico. Familinhar, no sentido de que a escolha do grifo, de uma


exposição em que pudéssmos percorrer a escrita de grifos de Waly, seria tatear uma
ação de escrita. O grifo seria aquele que imprime o gesto no papel. Cria linhas,
geometrias, espaços outros dentro do livro.
O grifo é o gesto de ação da escrita; experiência de performance, do meu
performer, o outro que é vários, com quem me encontro e me modifico.

Saravá, Waly!

III

209
Eleonora Fabião indica um caminho quando diz que a “hibridização de gêneros”
talvez seja uma das principais características da performance. Por hibridização entende-
se uma “possibilidade de fusão ampla, geral e irrestrita de materiais e procedimentos”,
que, por sinal, não seria algo restrito à performance, mas ao que ela nomeia de
“produção artística contemporânea” (FABIÃO, 2009).
Fabião trabalha, então, em cima de uma noção de Erika Fischer-Lichte, que, em
The Transformative Power of Performance, propõe que desde o início dos anos 1960, a
arte ocidental experimentou uma performance turn. Fabião dá exemplos dessa virada no
âmbito de algumas áreas, cujas fronteiras tornaram-se mais fluidas.
Nas artes visuais, por exemplo, experiências como a action panting, a body art,
as instalações e as obras de site specific, segunda a autora, têm esse “caráter
performativo”.
Na música, ela cita a “música visual”, “teatro instrumental” e a “música cênica”,
certamente também havendo espaço para experimentações como as de John Cage, por
exemplo, autor de uma peça em que o músico fica de frente para um piano, sem tocar ou
tocando o silêncio por exatos quatro minutos e trinta e três segundos; um autor em que a
composição acompanhava desafios da aletoriedade e do acaso. Esse também,
certamente, tenha trilhado um caminho de performance na música.
No teatro, Fabião cita a “desconstrução da narrativa e da ficção”, o que talvez
possa vir ao encontro do que Hans Thies Lehmann propõe como um teatro pós-
dramático, que não possui mais o texto e a representação como “mola mestra”
(LEHMANN, 2007).
O que mais me interessou nos exemplos dados pela teórica, no entanto, foi a
ausência da literatura. E, por isso, ficou ecoando em mim: e a literatura? Que exemplos
daria da literatura que viveu essa “virada da performance”? Que tipo de experiências
poderiam expor esse caráter performático?
Segundo Fabião, o “performance turn” aponta uma tendência: um certo
desinteresse pela “noção de obra de arte enquanto resultado final do trabalho do artista”
e uma crescente “valorização do evento que inclui o espectador como elo constitutivo”
(FABIÃO, 2009).
Não tenho dúvida de que possamos responder essa pergunta, depois do que
percorremos aqui, falando de Waly Salomão e todos os outros escritores e artistas para
os quais olhei como experiências de performance em literatura. No entanto, tenho
vontade de terminar esta tese de maneira mais arriscada, apontando traços de uma
literatura que está sendo produzida no tempo fraturado desta escrita.

210
Não queria apontar um nome, mas um jeito. E esse seria, certamente, os
deslocamentos dos espaços habituais conferidos à literatura, como a experiência do
livro-objeto, a escrita dos blogs e até outras mais radicais como o desvio da pixação.
Mas não poderia continuar tudo outra vez, veja, essas são as considerações
finais. Por isso, reuni na próxima secção, os apêndices, todas as postagens que fiz sobre
a tese no blog que mantenho, desde 2012, intitulado oarmarinho. Por tudo que aqui já
foi dito, entendo o blog como um espaço principalmente de afeto, de relação, um bloco
de notas. Algo que se retoma, que fica ali sendo gestado, na rede, sempre germinando. E
sendo visto, e sendo não visto, até porque não se leem mais blogs como antigamente.
Oarmarinho teve mais de 7 mil visualizações até hoje, tem quase 500
postagens. A maioria delas são acompanhadas de um marcador, uma espécie de tag que
marca um assunto, um mote narrativo para cada postagem. 127 E um dos marcadores que
alimentei todo esse tempo de tese foi #tese. Isso talvez tenha sido uma estratégia, sem
planejar, de dar corpo a uma escrita de performance a essa pesquisa, que agrego agora
ao escopo desta tese.
No blog, fiz atalhos, arrisquei curvas e outras direções.
Lá sigo, sem final.

127
Um dos marcadores, inclusive, “o telefone tocou novamente”, virou livro, de título homônimo, editado
pelas Edições Maloqueiristas, coletivo independente de São Paulo, em 2014.

211
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó, SC:
Argos, 2009.
_______. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
_______. “Il volto”. Em: Mezzi Senza fine. Note Siella politica. Bollati Boringhievi:
Torino, 1996, p. 74-80. Traduçao de Murilo Duarte Costa Correia. Disponível
em:<http://www.oestrangeiro.net/politica/163-traducao-qo-rostoq-de-giorgio-agamben>
Acesso em: 4 set. 2013.
ANDRADE, Oswald de. “O manifesto antropófago”. In: TELES, Gilberto Mendonça.
Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais
manifestos vanguardistas. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1997.
_______. O rei da vela; Manifesto da poesia pau-brasil; Manifesto antropófago.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

212
ANTUNES, Arnaldo. “Interfaces da linguagem poética”. In: SALOMÃO, Waly.
Babilaques: alguns cristais clivados. Rio de Janeiro: Conta Capa Livraria/Produções
Culturais, 2007. p. 31-60.
ARANTES, Priscila. Cartografias líquidas: a cidade como escrita ou a escrita da cidade.
In: BAMBOZZI, Lucas, BASTOS, Marcus, MINELLI, Rodrigo. Mediações,
tecnologia e espaço público: panorama crítico da arte em mídias locativas. São Paulo:
Conrad Editora do Brasil, 2010.
AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
AVERBUCK, Clarah. Máquina de pinball. São Paulo: Conrad, 2002.
BANES, Sally. Greenwich Village 1963 – Avant-Garde, Performance e o Corpo
Efervescente. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
AZEVEDO, Luciene. Blogs: a escrita de si na rede dos textos. In: Matraga. Rio de
Janeiro: jul. a dez., 2007a.
_______. Representação e performance na literatura brasileira contemporânea. Revista
_______. Valores? Para quem? Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea,
Brasília, v. 26, p. 107-117, 2005.
BARROS, Manoel de. Gramática Expositiva do chão. São Paulo: Leya, 2010.
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: ______. Rumor da língua. Lisboa: Edições
70, 1984.
_______. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução de Leyla Perrone Moisés.
São Paulo: Estação Liberdade, 2003. 
BEIGUELMAN, Gisele. O livro depois do livro. São Paulo, Peirópolis, 2003.
BELLEI, Sérgio Luiz Prado. Hipertexto e Literatura. Em Revista Intermídias, 2006,
Ano 2, n. 5 e 6. Disponível em:
http://www.intermidias.com/txt/ed56/Literatura_Hipertexto%20e%20Literatura_Sergio
%20Bellei2.pdf Acesso em: 20 jun. 2012.
______________. Literatura e(m) hipertexto. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45, n. 2,
p. 56-61, abr./jun. 2010.
BENJAMIN, Walter. O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:
______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
São Paulo: Brasiliense, 1994.
________. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”. In: ______. Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1994.

213
BONDÍA, Jorge Larrosa. “Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista
Brasileira de Educação. 2002, n.19, p. 20-28.
BORTULUCCE, Vanessa. Manifesto futurista: texto-ação. Revista de Letras, São
Paulo, v.5, n.1, p. 63-76. 2010.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins, 2009.
BRAUNSTEIN, Florence. PÉPIN, Jean-François. O lugar de corpo na cultura
ocidental. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.
BRETON, André. Manifesto Surrealista. In: TELLES, Gilberto Mendonça. Vanguarda
europeia e modernismo brasileiro: apresentação dos principais poemas, manifestos,
prefácios e conferências vanguardistas de 1857 a 1972. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
BRETT, Guy. Brasil experimental: arte/vida, proposições e paradoxos. Rio de Janeiro:
Contra Capa Livraria, 2005.
BRITO, Antônio Carlos de. Lero-lero. São Paulo: Cosac &Naify, 2002.
BRUSCKY, Paulo. Arte e multimeios. Recife: Zoludesign, 2010.
BUTLER, Judith. "Gender as Performance: An Interview with Judith Butler. Radical
Philosophy, 67, Summer 1994. Disponível em: http://www.theory.org.uk/but-int1.htm.
Acesso em: 23 out. 2014.
CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem. Petrópolis/RJ: Vozes, 1970.
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo; PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia
concreta. São Paulo: Duas Cidades, 1975.
CAMPOS, Augusto et al. Plano piloto para poesia concreta. Noigrandes, São Paulo,
1958.
CAMPOS, Augusto. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1974.
CAMPOS, Augusto; VELOSO, Caetano. Entrevista ao Programa Metrópolis, exibida
em janeiro de 2012. Disponível em:<http://www.youtube.com/watch?
v=BTqdQYBR0To> Acesso em: 18 jun. 2013.
CARPINEJAR, Fabrício. www.twitter.com/carpinejar. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2009.
CASTRO, Laura. Cabidela. Disponível em: <www.cabidela.blogspot.com>.
_______. Cabidela: bloco-de-máscaras. Salvador: Edição Independente, 2011.
_______. Fio Condutor. Salvador: Edição Independente, 2013.
_______. oarmarinho. Disponível em: <www.oarmarinho.blogspot.com>.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador: conversações com
Jean Lebrun. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Editora UNESP,
1998.

214
_______. Do palco à página: publicar teatro e ler romances na época moderna (séculos
XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.
CLARK, Lygia. “Nós somos os propositores” [1968]. Disponível
em:<http://www.lygiaclark.org.br/arquivoPT.asp> Acesso em: 11 mar. 2012.
_______. “A propósito da magia do objeto” [1965] Disponível em: <
http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=20> Acesso em: 20 dez.
2011.
_______. “Nós recusamos...” [1966]. Disponível em: <
http://www.lygiaclark.org.br/arquivoPT.asp> Acesso em: 11 mar. 2012.
_______. “Especulações sobre o espaço-tempo” [1983]. Disponível em: <
http://www.lygiaclark.org.br/arquivoPT.asp> Acesso em: 11 mar. 2012.
CICERO, Antônio. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 2006.
_______. “Os Babilaques de Waly Salomão”. In: ______. Babilaques: alguns cristais
clivados. Rio de Janeiro: Conta Capa Livraria / Produções Culturais, 2007. 
COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1989.
_______. Work in progress na cena contemporânea: criação, encenação e recepção.
São Paulo: Perspectiva, 2004.
COSTA, Cristiane. As novas funções do autor na era digital. Revista Observatório
Itaú Cultural, São Paulo, Itaú Cultural n.17, ago./dez. 2014.
DEL PICCHIA, Menotti. Arte Moderna. In: TELLES, Gilberto Mendonça. Vanguarda
europeia e modernismo brasileiro. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze. Entrevista com G.Deleuze.
Editoração: Brasil, Ministério da Educação, TV Escola, 2001.
_________________. A literatura e a vida. In: ______. Crítica e clínica. São Paulo:
Editora 34, 1997. p. 11-16.
_________________. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Felix. Mil platôs - capitalismo c esquizofrenia, v. 3,
Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.
DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Campinas/SP: Papirus, 1991.
________________. Uma certa possibilidade impossível de dizer o acontecimento.
Revista Cerrados, Universidade de Brasília, n. 33, ano 21, p. 229-252. 2012.
DIDONET, Candice. Escritas do corpo: palavras ações. 2012. Dissertação – Escola
de Dança, Universidade Federal da Bahia. Salvador.
DOCTORS, Márcio. “A arte da imanência”. In: Anna Maria Maiolino. (catálogo) São
Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2006. p. 54-58.

215
_________________. As nervuras do devir: a diversidade e o devir como exercício
experimental da liberdade. Disponível em:
http://annamariamaiolino.com/pt/textos/as_nervuras_do_devir.pdf. Acesso em: 12 set.
2014.
DUNN, Christopher. Nós somos os propositores: vanguarda e contracultura no Brasil,
1964-1974. ArtCultura, Uberlândia, v.10, n.17. 2008.
ECO, Umberto. From Internet To Gutenberg. [1996] Disponível em:
< http://www.inf.ufsc.br/~jbosco/InternetPort.html>. Acesso em: 23 maio 2010.
ELGAR, Frank. Mondrian. São Paulo: Editorial Verbo, 1973.
FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea.
Sala Preta – Revista da Pós-graduação em Artes Cênicas ECA-USP, São Paulo, n.8,
2008.
__________. Definir performance é um falso problema. Jornal Diário do Nordeste,
Fortaleza, 7 set. 2009.
__________. Corpo cênico, estado cênico. Revista Contrapontos. Univali, Santa
Catarina, v.10, 2010.
__________. Performance e precariedade. In :DE OLIVEIRA JÚNIOR, A. W. (Org.).
A performance ensaiada: ensaios sobre performance contemporânea. 1.ed. Fortaleza:
Expressão Gráfica, 2011, p. 63-85.
FAVARETTO, Celso. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1992.
FÉRAL, Josette. Performance e performatividade: o que são os estudos performáticos.
In: MOSTAÇO, Edélcio.BAUMGÄRTEL, Stephan; COLAÇO, Vera (Orgs).Sobre
performatividade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2009.
FIGUEIREDO, Luciano. Babilaques: poesia e arte em Babilaques: alguns cristais
clivados. Rio de Janeiro: Conta Capa Livraria / Produções Culturais, 2007. 
FOSTER, Hal et al. Art since 1900: modernism, antimodernism, postmodernism.
London: Thames & Hudson, 2004.
FOSTER, Hal. O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. São Paulo:
Cosac Naify, 2014.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992.
_______. Microfísica do poder. 15a Ed. Graal - RJ, 2000.
_______. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
_______. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2006.
_______. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

216
FREUD, Sigmund. “Sobre a transitoriedade”. (1916). ______. Edição Standard
Brasileira das Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1975, v.
XIV, p. 345-348.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006.
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2005.
GOLDSMITH, Kenneth. Uncreative writting: Managing Language in the Digital Age.
Nova York: Columbia University Press, 2011.
GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance: do futurismo ao presente. Lisboa:
Orfeu Negro, 2012.
GRACIANO, Igor Ximenes. O gesto literário em três atos: a narrativa de Sérgio
Sant'Anna. 2008. 112 f. Dissertação (Mestrado em Literatura) - Departamento de Teoria
Literária e Literaturas, Universidade de Brasília, Brasília.
GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo:
Annablume, 2005.
GULLAR, Ferreira et al. Manifesto neoconcreto, encarte da 1ª exposição
neoconcreta. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1959. Disponível em:
<http://www.literal.com.br/ferreira-gullar/por-ele-mesmo/ensaios/manifesto-
neoconcreto/> Acesso em: 1 de ago. 2012.
GULLAR, Ferreira. Vanguarda e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1984.
_______. Etapas da arte contemporânea: do cubismo à arte neoconcreta.Rio de
Janeiro: Revan, 1999.
_______. Relâmpagos - dizer o ver. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
_______. Experiência neoconcreta: momento-limite da arte: Ferreira Gullar. São
Paulo: Cosac & Naify, 2007.
HAY, Louis. A literatura dos escritores: questões de crítica genética. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2007.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de; PEREIRA, Carlos Alberto M. Patrulhas
ideológicas: arte e engajamento em debate. São Paulo: Brasiliense, 1980.
JACQUES, Paola Berenstein. Estética da ginga: a arquitetura das favelas através da
obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
_______. Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA, 2012.
JONES, Amelia. Body art/performing the subject. Minneapolis: Minnesota Press,
1998.

217
KAPROW, Allan. The legacy of Jackson Pollock. Essays on the Blurring of Art and
Life. Berkeley, CA: University of California Press, 1993.
KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2002.
LADDAGA, Reinaldo. Uma rápida perspectiva sobre la incostancia del alma salvaje.
Las Ranas, n.1, jun. p.3-7, 2005.
LAUPOUJADE, David. Potências do tempo. São Paulo: N-1 Edições, 2010.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naif, 2007.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2008.
LIBRANDI-ROCHA, Marília. Escutar a escrita: por uma teoria literária ameríndia.
Eixo e Roda # 21, n.2, p. 179-202, jul.-dez. 2012.
LICHOTE, Leonardo. O pensamento quente de Waly Salomão. Jornal O Globo. Rio
de Janeiro, 1º set. 2013. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/o-
pensamento-quente-de-waly-salomao-9771366> Acesso em: 2 nov. 2013.
LIMA, Rachel Esteves. A entrevista como gesto (auto)biográfico. In: Eneida Maria de
Souza; Wander Melo Miranda. (Orgs.) Crítica e coleção. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2011.
LIMA, Guilherme Cunha. O gráfico amador: as origens da moderna tipografia
brasileira. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1997.
LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: Editora José Olympo, 1974.
_______. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1977.
_______. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1978.
_______. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
_______. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
________. Legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
LOPES, Cássia. Gilberto Gil: a poética e a política do corpo. São Paulo: Perspectiva,
2012.
LOPES, Denilson. “Experiência e escritura”. Em O homem que amava rapazes e
outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. 
_______. Delicate art: transparency and Opacity. Colóquio. Nova Iorque: Princeton
University, 2011.
_______. No coração do mundo: paisagens transculturais. Rio de Janeiro: Rocco,
2012.

218
_______. A delicadeza: estética, experiência e paisagens. Brasília: UnB – Finatec,
2007.
LUDMER, Josefina. Literaturas pós-autônomas. Revista de crítica literária y de
cultura. 2007, n. 17.
MALINI, Fábio. Literatura, twitter e facebook: a economia dos likes e dos rts dos
usuários-fãs de literatura brasileira nas redes sociais. Revista Observatório Itaú
Cultural, São Paulo, Itaú Cultural, n.17, ago./dez. 2014.
MANOVICH, Lev. What comes after remix?. [2007] Disponível em:
<http://manovich.net/content/04-projects/055-what-comes-after-remix/
54_article_2007.pdf> Acesso em: 16 dez. 2013.
McEVILLEY, Thomas. Stages of energy: performance art ground zero? Abramović,
Artist Body, [Charta, 1998].
MELO NETO, João Cabral de. Uma faca só lâmina. In_______. Antologia Poética. 5.
ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979, p.131-145.
_______. Psicologia da composição In: _______. Antologia Poética. 5. ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1979, p.176-193.
________. A educação pela pedra. Rio de Janeiro: Editora do autor, 1966.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
NAJMANOVICH, Denise. O sujeito encarnado – questões para pesquisa no/do
cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
NANCY, Jean-Luc. Deveria ser um romance. Revista Cerrados, Universidade de
Brasília, n. 33, ano 21, p. 253-262, 2012.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
OITICICA, Hélio. Experimentar o experimental. [1972] Disponível
em:<http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia/ho/index.cfm?
fuseaction=documentos&cod=362&tipo=2> Acesso em: 2 jun. 2013.
PATO, Ana. Literatura expandida: arquivo e citação na obra de Dominique Gonzalez-
Foerster. São Paulo: Edições Sesc SP/ Associação Cultural Vídeobrasil, 2012.
PANEK, Bernadette. O livro em primeira pessoa. In: Daniel Barbosa et al. 12 caras em
4 partes. Curitiba: Caderno Listrado, 2010.
PHELAN, Peggy. A ontologia da performance – representação sem produção. Revista
de Comunicação e Linguagem, Lisboa, n. 24. Edição Cosmos, 1997.
PIGNATARI, Décio. Contracomunicação. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.

219
_______. Errâncias. São Paulo: Editora SENAC, 2000.
PIRES, Ericson. “WALYTROPIAS. Seis tópos topos u-tópos por amor// gesto de um
certo marinheiro árabe da Bahia” In: Waly Salomão, Babilaques: alguns cristais
clivados. Rio de Janeiro: Conta Capa Livraria / Produções Culturais, 2007. 
RESENDE, Neide. A semana de arte moderna. São Paulo: Ática, 2006.
REZENDE, Renato; SANTOS, Roberto Correa dos. No contemporâneo – arte e
escrituras expandidas. Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2011.
RISÉRIO, Antonio. Ensaio sobre o texto poético em contexto digital. Salvador:
Fundação Casa de Jorge Amado; COPENE, 1998.
ROCHA, João Cezar Castro. Literatura ou narrativa?: representações (materiais) da
narrativa. In: OLINTO, Heidrun Krieger; SCHOLLHAMMER, Karl Erik (Org.).
Literatura e cultura. Rio de Janeiro: Ed. PUCRio; São Paulo: Loyola, 2003. (Coleção
Teologia e Ciências Humanas, 14). p. 42.
_______. Entrevista ao Boa Vontade, exibida em julho de 2012. Disponível
em:<http://www.youtube.com/watch?v=WRAQLK3oyHA> Acesso em: 3 abr. 2013.
ROLNIK, Suely. Amor: o impossível… e uma nova suavidade. In: ______.
Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996a. p.327-330.
_______. Lygia Clark e o híbrido arte/clínica. Percurso - Revista de
Psicanálise, Ano VIII, n. 16:43-48, 1º semestre de 1996b. Departamento de Psicanálise,
Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo.
_______. Por um estado de arte: a atualidade de Lygia Clark. In: Núcleo Histórico:
antropofagia e histórias de canibalismos, São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo,
1998; pp. 456-467.
_______. Molda-se uma alma contemporânea: o vazio-pleno de Lygia Clark. In: The
experimental exercise of freedom: Lygia Clark, Gego, Mathias Goeritz, Hélio Oiticica
and Mira Schendel. The Museum of Contemporary Art, Los Angeles, 1999.
_______. Antropofagia Zumbi (Conferência) Encontro Internacional de
Antropofagia – EIA. São Paulo: Sesc Pompéia, 2005.
_______. Arquivo para uma obra-acontecimento. São Paulo: Selo Sesc SP, 2011.
_______. Florações da Realidade. São Paulo, 2006. Disponível em:
http://www4.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Floracoes.pdf. Acesso em:
10 jul. 2014.
SALOMÃO, Omar. Portifólio Omar Salomão. Disponível em:
http://www.obomleao.com/wp-content/uploads/2009/10/Portfolio-Omar-Salomao.pdf.
Acesso em: 10 jun. 2013.

220
SALOMÃO, Waly. Babilaques. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/ Kabum
Produções Culturais, 2007.
_______. Gigolô de bibelôs. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. 
_______. Experimentar o experimental. Disponível
em:<http://natbayeh.blogspot.com.br/2009/12/experimentar-o-
experimental.html>Acesso em: 25 maio 2013.
_______. Entrevista em HOLLANDA, Heloisa Buarque de. PEREIRA, Carlos Alberto
M. Patrulhas ideológicas: arte e engajamento em debate. São Paulo: Brasiliense, 1980.
SANT’ANNA, Sérgio. Contos e novelas reunidos. São Paulo: Companhia das Letras,
1997.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência
cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
_______. Epílogo em 1ª pessoa – Eu & as Galinhas d’Angola. In: _______. O
cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2004.
_______. Literatura Anfíbia. In: _______.O cosmopolitismo do pobre: crítica literária
e crítica cultural. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
SANTOS, Roberto Correa dos. Para uma teoria da interpretação: semiologia,
literatura e interdisciplinaridade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
SCHECHNER, Richard. O que é performance? Revista O Percevejo, n. 2, Ano II,
2003.
SCHIMMEL, Paul (Org.). Out of actions: between performance and the object. 1949 –
1979. Los Angeles, Museum of Contemporary Art, 1998.
SEDLMAYER, Sabrina. Pessoa e Borges: Quanto a mim, eu. Lisboa:
Vendaval, 2004. 
SZTUTMAN, Renato. As metamorfoses do corpo: ensaio sobre um tema ameríndio à
luz de uma entrevista com Eduardo Viveiros de Castro. Sexta Feira, São Paulo, v. 4,
1999.
VENÂNCIO FILHO, Paulo. Habitar o espaço. Em In: Anna Maria Maiolino.
(catálogo) São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2006. p.13-50.
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
VILLA-FORTE, Leonardo. MixLit. Disponível em: <https://mixlit.wordpress.com/>.
Acesso em: 5 jan. 2014.

221
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem – e outros
ensaios. São Paulo: Cosac Naif, 2002.
_______. A morte como quase-acontecimento. In: _______ Café filosófico CPFL, out.
2009a. Disponível em: <http://www.cpflcultura.com.br/2009/10/16/integra-a-morte-
como-quase-acontecimento--eduardo-viveiros-de-castro/>. Acesso em: 15 out. 2013.
_______. Eduardo Viveiros de Castro. (Entrevista) [2009b] Disponível em: <
http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?
section=8&tipo=entrevista&edicao=46> Acesso em: fev. 2014.
_______.“Transformação’ na antropologia, transformação da ‘antropologia”. Revista
Mana, Rio de Janeiro v.18 n.1, 2012.
WISNIK, José Miguel. Gaia Ciência: Literatura e Música Popular no Brasil. In:
_______ Sem Receita – ensaios e canções, São Paulo, Publifolha, 2004
ZUMTHOR, Paul. Performance, percepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

DISCOGRAFIA
BETHÂNIA, Maria. “Trampolim”. In: Drama. 1972. Universal Music.
CALCANHOTO, Adriana. Fábrica de poema. 1996. ALLMUSIC.
_______. Público. 2000. BMG BRASIL.
GONZAGA JR. “Sangrando”. In: De volta ao começo. 1980. EMI-ODEON.
MACALÉ, Jards. Real grandeza. 2005. Biscoito Fino.
O RAPPA. Instinto coletivo. 2001. Waner Music.
SAMBAGIA. “Minha Guia”. In: Sambagia. Disponível em:
https://myspace.com/search/music?q=sambagia&ac=t.
PORCAS BORBOLETAS. “Pele do asfalto”. In: Um carinho com os dentes. 2006.
Tratore.
VELOSO, Caetano. London London. 1971. Universal.
_______. “Minha voz, minha vida”. In: Livro. 1998. Nonesuch Records.

FILMOGRAFIA
CARDOSO, Ivan. HO. Rio de Janeiro: 1979. Experimental, 13min.
CARIA, Arthur. ORNELAS, Sandro. {INTERVENTURAS}. 2014. Disponível em:
<http://interventuras.blogspot.com.br> Acesso em: 13 jun. 2014.
CLARK, Eduardo. O mundo de Lygia Clark. Brasil: Plug Filmes, 1973.
Documentário, 10 min.

222
NADER, Carlos. Pan-cinema permanente. São Paulo: Já filmes, 2007. Diretor: Carlos
Nader. Produção executiva: Flavio Botelho. Fotografia: Carlos Nader. Documentário,
83 min.
VELOSO, Caetano. É proibido proibir. Festival Internacional da Canção, 1964.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=45-t51BhLZg> Acesso em: 30
dez. 2012.

CRÉDITOS do Tabaréu Remixado


COMO FALAR EM WALY SALOMÃO, EM EXPERIÊNCIA, SEM LOCALIZAR DE ONDE FALO?
FALO DA BAHIA, DO CENTRO HISTÓRICO DA CIDADE, DO SANTO ANTÔNIO ALÉM DO
CARMO, COM AS EXPLOSÕES DOS FOGOS DE SANTA BÁRBARA ENTRANDO PELAS
JANELAS, VINDAS LÁ DA IGREJA DO ROSÁRIO DOS PRETOS.
ESCREVO NESTA FONTE VERSALETE, LETRA DE FORMA NÃO TEM TANTA NECESSIDADE
DE LETRA MAIÚSCULA. TEM POUCA HIERARQUIA DE TAMANHOS. CAETANO E BETHÂNIA
CANTAM JUNTOS “ADEUS MEU SANTO AMARO”. AS LETRAS DO TABARÉU, COMO OLHOS,
TORNA-SE UMA PRESENÇA DENTRO DA CASA, ASSIM COMO AQUELAS OUTRAS VOZES DA
BAHIA. COMO SE ELAS ME ACOMPANHASSEM, COMO SE FOSSEM CORPOS NO MEU
AMALGAMADOS. COMO SE HOUVESSE UMA ESPÉCIE DE VIDA, MOVIMENTO, SEIVA,
SANGUE – NATUREZA VIVA – CORRENDO CÁ PELA ESCRITA.
ESCREVO DESSE JEITO PORQUE PENSO ASSIM EM LETRAS DE FORMA, NUM REPENTE DE
IMPROVISO, EM ARRANJOS DINÂMICOS, PARA DEPOIS PENDURAR BABILAQUES EM ITENS.

BABI – LÔNIA – BADU - LAQUE

ME FORM FORMANDO (1) NESTE INSTANTE-JÁ ESPECÍFICO DO TEMPO-ESPAÇO DA VOZ.


DA MINHA BABILÔNIA SE EXPLODEM PENDURADOS, POSSÍVEIS TABARÉUS. ENTRANDO E
SAINDO DE TORRES DE BABEL. CENAS SOLTAS REMIXADAS EM MINI-TABULEIROS -
CINEMEX.

(1) Trecho do babilaque “Construtivista tabaréu”. (SALOMÃO, 2009)

CINEMEX 1
O TABARÉU SE EMANCIPA DO PATRÃO. MONTA SEU TABULEIRO DE BADULAQUES NA
BABILÔNIA. PENDURICALHOS, PECHINCHAS. DE UMA TÁBUA FAZ UMA MESA COM UM
ENGRADADO DE CERVEJA. MONTA NUM CANTINHO DA CALÇADA QUE SOBROU.
BARROQUINHA, SALVADOR, CENTRO DA CIDADE. O TABARÉU E SUA GAMBIARRA.
PRODUTOS BARATOS – PENTES, ESPELHOS, ÓCULOS, BIJUTERIAS, LANTERNINHAS,
CANETAS BIC, PRESILHAS, DVDS PIRATAS - FAZEM UM COLORIDO PECULIAR NA TÁBUA
DESGASTADA. NA ARQUITETURA MÓVEL E PRECÁRIA, UMA LONA AZUL CELESTE COBRE
O TABARÉU NA VIELA EM MOVIMENTO. ELE ESTÁ ALI, MUITO PERTO DO ASFALTO, DA
LAMA QUE INUNDOU A CIDADE NA ÚLTIMA CHUVA. ANUNCIA ALTO – É 2 POR 5.

- MINHA GUIA, MINHA VIDA, É A SOLUÇÃO DE VERDADE, EU QUERO SER UM AUTÔNOMO


NA CIDADE. (2) – CANTA O ARTISTA URBANO, QUE PASSA.

223
(2) Trecho do samba “Minha Guia”, composição do sambagia, trabalho do “Grupo de
Intervenção Ambiental – Gia”, coletivo de intervenção urbana de Salvador.

O TABARÉU RECOSTA NO BANQUINHO E LÊ UM CONSTRUTIVISTA QUALQUER. CHEGA A


COCHILAR E SONHA COM UM POEMA DE ARQUITETURA IDEAL. (3)

(3) Trecho da canção “Fábrica de Poema”, composição de Waly Salomão e Adriana


Calcanhoto, do álbum homônimo. (CALCANHOTO, 1996)

CINEMEX 2
O TABARÉU SE DESPEDAÇA. ESCAPA. É AGORA OUTRO. SE DESFAZ QUE NEM RECORTES
DE PAPEL. PERSONAGENS SOLTOS EM BUSCA DUM AUTOR. BRASILLY.(4) AGORA ELE É O
ARTISTA EXILADO. DÁ PASSOS LARGOS, STRIDE,(5) ELE APRENDE INGLÊS PALAVRA-POR-
PALAVRA NO PASSO-A-PASSO PELA CIDADE ESCRITA. ESPREME OS OLHOS PARA
CONSEGUIR LER O GAFFITTI DO METRO. TENTA COPIAR UMA TAG NO CADERNO,
DURANTE TODA A VIAGEM DE VOLTA. ENCONTRA UM PACOTE DE RAISINS NO BOLSO.
COISA ESTRANHA UVA PASSA VIR NUM SAQUINHO LAMINADO, TÃO PSICODÉLICO. TUDO
BEM, PENSA O TABARÉU, CUSTA APENAS 1 DÓLAR. SOL ESTÁ CRU (6), LÁ FORA. COLA O
PACOTE NO CADERNO.

(4) Do babilaque “Brasilly” (SALOMÃO, 2009).


(5) Do babilaque “Stride”, que, em inglês, significa passo largo (Idem).
(6) Do babilaque “Sol Cru” (Idem).

APONTAMENTO 1
CANETA HIDROCOR VERDE NAS COSTAS DE UMA FOLHA SOLTA DE UM BLOCO DE HOTEL:

“QUANTAS VEZES EU ENTRO NUM RÁDIO-TÁXI E O CHOFER DESCONFIADO QUE NÃO


TENHO DINHEIRO PARA PAGAR A RODADA COMBINADA
AÍ EU PUXO UM ASSUNTO
SABE QUEM EU SOU
O AUTOR DAQUELA CANÇÃO”.

NÃO É UM POEMA, NÃO É UMA LETRA, NÃO É UM DIÁRIO, NÃO É UMA OBRA GRÁFICA —
AO MESMO TEMPO EM QUE PODERIA SER TUDO ISSO (7).

(7) Trecho da matéria “O pensamento quente de Waly Salomão”, escrito a partir de um


fragmento de caderno (texto entre aspas) do poeta baiano (LICHOTE, 2013).

APONTAMENTO 2
ALFAVELAVILLE (8)
ALFAVELAVIVE
EM CONJUNTOS HABITACIONAIS

(8) Trabalho de intervenção poética de Waly Salomão, Alfavelaville, termo citado


em????? (SALOMÃO, 2008, p.93)

MAR... E AS SEREIAS DESAPARECENDO POR FALTA DE ESTÍMULOS COMERCIAIS (9)

224
(9) Do babilaque “MAR... e as sereias desaparecendo por falta de estímulos
comerciais”. (SALOMÃO, 2009)

BABILÔNIA, CIDADE CONSTRUÍDA FEITO FOSSE UM BADULAQUE.


CIDADE DOS CAMELÔS, DOS GIGOLÔS, DOS BIBELÔS.
POÉTICAS DUM TABARÉU.

AMNÉSIA,
POÉTICA DA CIDADE ESQUECIDA.

- NA SENSIBILIDADE PELE DO ASFALTO (10)– CANTA UM JOVEM POETA, QUE PASSA.

(10) Trecho da canção “Pele do Asfalto”, composição de Danislau Também e Moita


Mattos, do álbum da banda Porcas Borboletas (PORCAS BORBOLETAS, 2006).

CINEMEX 3
DA POLTRONA DO ÔNIBUS, É UM LEITOR DE MUROS, NÃO DE LIVROS. O TABARÉU DO SERTÃO BAIANO
FASCINA-SE MUITO MAIS COM OS LETREIROS DE NEON DO QUE COM JORNAIS NAS BANCAS. NÃO
ENTENDE ALGUMAS PALAVRAS, MAS NÃO IMPORTA. É UM MUNDO DE TIPOGRAFIAS, DE PINTORES
URBANOS QUE SE ABRE. AVENIDA SETE DE SETEMBRO, SALVADOR POLIFÔNICA, POLIVOX (11).
CARRINHOS DE CAFÉ FAZEM MÚSICA. REMIXES DA BABEL. CALÇADAS SUJAS DE SANTINHOS DE SANTO
EXPEDITO. SANTOS GRAALFICOS. (12) DESORDENADO COMO A CIDADE, SE PERDE. ONDE ESTAVA AGORA
MESMO?

(11) Palavra do poema-canção “Remix século XX”, de Waly Salomão e Adriana


Calcanhoto (CALCANHOTO, 2000).

(12) Do babilaque “Santo Graalfico” (SALOMÃO, 2009).

CINEMEX 4
RAPIDAMENTE ELE SE TORNOU UM MORADOR DA BABILÔNIA E SE ORGULHA DISSO. JÁ NÃO SE PERDE
MAIS, TEM ALGUNS AMIGOS, VAI COMPRAR A CASA PRÓPRIA EM BREVE. MAS QUANDO ABRE A BOCA,
NO RECONHECIMENTO DA VOZ, ELE SERÁ QUASE SEMPRE TABARÉU. É QUE NÃO PERDEU O SOTAQUE.

CINEMEX 5
EXPLODE DE NOVO. CAMALEON CALEIDOSCÓPIO. (13) É AGORA MARUJEIRO DA LUA. MARUJEIRO DE
TODAS AS LUAS. (14) RECORTA IMAGENS DE CARROS ANTIGOS. COLA NO CADERNO COM FITA ADESIVA.
AMONTOA UM MONTE DE CADERNOS, COMO SE FOSSEM ALPES. FIGURAS ALPINAS, (15) ELE NOMEIA.

(13) Expressão do roteiro ideogrâmico de Haroldo de Campos, narrado no filme HO,


de Ivan Cardoso (CARDOSO, 1979).

(14) Tradução de “Sailormoon”, sobrenome com qual assina seu primeiro livro,
presente em textos de vários livros como Me Segura qu’eu vou dar um troço, Na
esfera de produção de si mesmo, entre outros, e grafados em diversas variações

225
“Sailor of all moons”, “Marujeiro da Lua”. Todos os livros estão agrupados na
publicação Gigolô de Bibelôs (SALOMÃO, 2008).

(15) Do Babilaque “Figuras Alpinas” (SALOMÃO, 2009).

CINEMEX 6
SÓ DEPOIS DE EXATOS 9 MESES EM NEW YORK. 9 MESES DEPOIS É QUE ELE FINALMENTE
VISITA O EMPIRE STATE BUILDING OBSERVATORY. SÓ ASSIM VÊ A CIDADE DE CIMA, DOS
MUITOS ANDARES DO ARRANHA-CÉU. GUARDA O INGRESSO PARA COLAR NO CADERNO.
QUASE COMO UM TURISTA, ELE ESCREVE DEPOIS, A VISTA É COMO NA FOTOGRAFIA.
LOGBOOK. (16) LIVRO-REMO.

(16) Do Babilaque “Logbook” (SALOMÃO, 2009).

APONTAMENTO 3
ARMAR UM TABULEIRO DE PALAVRAS-SOUVENIRS.
APANHE E LEVE ALGUMAS PALAVRAS COMO SOUVENIRS.
FAÇA VOCÊ MESMO SEU MICROTABULEIRO ENQUANTO JOGO LINGUÍSTICO. (17)

(17) Trecho inicial do poema-canção “Remix século XX”, de Waly Salomão e


Adriana Calcanhoto (CALCANHOTO, 2000).

A palavra “Apontamento” é utilizada numa das partes de Me Segura qu’eu vou dar um troço
(“Apontamentos do Pav Dois”). “CINEMEX” é um termo muitas vezes repetido em “Self-portrait”, que
compõe a mesma obra, em que cenas são descritas ao modo de um cinema (SALOMÃO, 2008, p. 30-49).

226
APÊNDICES
1. Do estudo das explosões: uma escrita flamenca, um flamenco escrito

Laura Castro
128
Laura Pacheco

ela disse que eu devia continuar a escrever sem parar.


que nem fechar os olhos e dançar, descalço. ela disse pra eu
escrever assim, dançando. sentindo meu corpo vivo.
aquecendo-o, afinando-o, 
então eu descarrilhei os dedos e fui enchendo
caderninhos inteiros. ela me chamava para apenas estar.
estar na escrita. eu explicava que eu não conseguiria se não
fosse assim, dizendo, pulsando, estando viva na voz. se não
fosse dar vazão ao corpo - todo ele, intenso do jeito que é -
nunca valeria nenhuma paixão.
(CASTRO, web, 2012)

A bailaora de flamenco ensina que desplante é uma explosão depois de uma sequência
de movimentos. Na arena, é uma ação para ludibriar o touro. Em bom português, na fala
das gentes, pode ser um desaforo, outra explosão. Anoto explosão em letras garrafais

Bailaora flamenca, performer, jornalista e mestre em dança pelo Programa de Pós-graduação em


128

Dança da Universidade Federal da Bahia – PPDANÇA-UFBA. Brasil.

227
e, logo em seguida, arrisco uma epifania, pensando no fazer literário. Aquilo que só
compreendo quando escrevo, a ação da escrita se fazendo ali, no instante-já129, diante
dos olhos, enquanto uma Laura descreve, muito ciganamente, com a precisão do
metrômetro, dentro do tempo da experiência, o ritmo de seu passo.
Laura me ensina que é nas extremidades onde fica mais visível a explosão. Pés
e mãos. Que o flamenco tem uma dinâmica de contenção e explosão, num modo cíclico
e não linear. É justamente a explosão a responsável pela fragmentação do tempo no
flamenco. Na literatura, penso num ritmo em fluxo, de uma escrita que escorre onde se
antevê, por uma operação do sujeito dessa ação, o gesto de criação fraturado, exposto, à
mostra, em processo. Como se a escrita fosse acontecimento.
Juntas, num espaço-tempo específico, pensamos aqui no deslocamento do
sapateado flamenco no tablado para a digitação de “bloquinhos” em processadores de
texto; nessa possibilidade de empréstimos de, a princípio, entre duas Lauras, uma
dançarina, outra escritora. Fruto ainda da apresentação do espetáculo de dança
Desplante (una vez más) de Laura Pacheco, apresentado no Matadero Madrid, lá nos
primeiros dias de junho de 2012, com a colaboração dramatúrgica de Laura Castro. Cá,
pensamos na possibilidade de uma escrita flamenca, no teclado de um computador,
quando escrita deságua em golpes, performa explosões. E vice-versa: num flamenco
que se faz escrito, opera explosões no teclado.
Simultaneamente ao seu bailado de mãos, acompanhamos a escrita da
balaiora se fazendo em tempo real, formando palavras, encadeadas pelo ritmo dos
sons de teclas. É mais ação do que qualquer narrativa que ali se engendrasse. Esta se
fazia enviesada e era ilegível a qualquer hora, se a explosão invadisse a tela,
espacializada numa escala triplamente maior que a de costume, e cometesse palavras-
movimento como d3ssloco, ddesplante, louf ye, in \leifco.
Rastros de movimento que se entranham nas palavras e as dissuadem de um significado,
de um vocábulo nítido, como se prescindisse de sentido.
O tempo da ação escrita, irrecuperável, Laura e Laura decupam cá na memória
da experiência do Matadero, da passagem por Madrid, gravando tudo num mp3 a pilha.
Vozes (aí sim?) narrativas que se confudem: é escritora flamenca ou é
bailaora de bloquinhos?
As classificações, aqui, estão constantemente de passagem. No soy periodista, lo
fui, explode Laura, lo fui lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo
fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui,
lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo
fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui,
lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo fui, lo
fui, lo fui, lo fui, lo fui.
Desplantadas, fora de qualquer raiz de origem, assumimos passos
estrangeiros na madrugada de Madrid, prestes a cometer outra explosão, na nova
acepção que uma das Laura deu ao termo. Refratado ali um novo significado que outra
Laura percebe desde que pisa ali, no meio de uma crise econômica mundial. Inscrito no
território, nos caminhos de sobe e desce do bairro de Lavapiés, passos de imigrantes
desplantados. Algo que andasse dentro, mas andasse fora também.
Laura mostra o bailaor flamenco Vicente Escudero sob as lentes de Man Ray
que caiu nas suas mãos no Reina Sofia, por acaso. A bailadora ensina, muito clara:
129
Termo emprestado da escritora brasileira Clarice Lispector, do romance Água Viva.

228
- para a explosão, é preciso haver a pausa.

Laura diz de sobrancelhas ao alto:

- me ensinas a dar ponto, escritora.


- menos vírgulas, mais ponto.
- e, mesmo assim, ainda há o fluxo. tens esse fluxo quando corres a mão pela
digitação.
- somos duas lauras em escritas explosivas. pontuando..........
- somos várias, diz uma.
- posso terminar agora só com um ponto. como esse. ou três... (?)
- haveria semelhanças entre a estética da minha dança e a estética da sua escrita?
- ritmo? intenção? intensidade? som?
- uma POéTICA, diz a outra.
- de semelhanças e aproximações.
- duas "laura" entre aspas.
- somos 1 zilhão de papéis em cada conto. ou em cada ponto.
- quem conta um ponto, aumenta um papel.

Dissolvemos os papéis e decidimos que então partilhamos de uma só escrita. A flamenca.


- Sua escrita é flamencada. e meu flamenco é literário. Entre pausas e "remates", pontos e
"cierres", faço minha "chamada" na sua "escobilha" de letras.
- e papéis.
- escrita de ações precisas: conter. suspender. explodir. pausar. pontuar. virgular. por quê?
- sim. pontuação é precisão. E essa é a lição do metrômetro, completa sem responder.

- 1 zilhão de contensões para meio miligrama de explosões. e elas chegam. acontecem. e


morrem.
- nesse baile, tudo é cíclico? ou o tempo é linear?
Laura responde em letras garrafais:

Paixão,
- explosões, densas-de-cotidiana-percepção que dilatam o tempo em coceirinha de eco.

- se optamos pela arte efêmera, performativa, presente dilatado em eterno retorno, por que nossa obsessão
pelo registro?
- passo a bola pra vc. isso nunca entendi.
pausa - sem ponto ou interrogação

Postais | clico em publicar


Talvez um cacoete do bloquinho, respondo, “Laura”. Do penso logo registro. Da angústia do
efêmero. Um desconhecimento do tempo. Ou um reconhecimento dele. Sempre talvez. Mas talvez isso ou
aquilo. Ou querer apreender o tempo ou querer escrever a memória ou querer ser autor do mundo.
Bernardo Carvalho sopra pelo narrador do romance Teatro:

quando você percebe, já ultrapassou os limites que tinha


estabelecido, as regras mais fundamentais e está perdido
num lugar totalmente desconhecido, para além das
fronteiras, onde ainda estão para ser inventados o Norte e
o Sul, o Leste e o Oeste. E você avança antes de perceber,
de maneira que a certa altura não lhe resta outra opção
senão inventar o seu norte, com risco de ficar perdido
para sempre se não o fizer, eu disse a ela. Há um
momento no meio do nada em que você precisa tomar um
rumo, qualquer que seja, para sair daquele imobilismo,
daquela total ausência de sentidos e direções. Há um
momento em que você se vê obrigado a inventar um
sentido, uma direção. E foi o que eu fiz (CARVALHO,
1998, p. 32).

229
Nosso registro não é uma invenção (interrogação)
Não é disso que falamos aqui (pausa)
De criação
De muitas "lauras"?
um modo de se jogar com o tempo, de vibrar o corpo,

uma escrita flamenca, um flamenco escrito, olé , com uma dramaturgia


própria de um instante-já, aquela que se faz no agora do improviso, no fluxo da ação,
num ritmo cíclico e fragmentário, de um gesto impulsivo, arrebatado?
- sim.

Cena do teclado #1
lavapiés, madrid.
invierno de 2012

desplanto.
desloco in loco.

Cena do teclado #2
instante-já, madrid.
primavera de 2012

Hago mía las voces de


otros.

Así me desplanto en
esta babel. una vez
más, y más. y más
más más más más más
más más más más más
más más más más más
más más más más más
más más más más más
más más más más más
más más más más más
más más más más más
más más más más más
más más más más más
más más más más más más más más más más más más más más más más más más más más más más
más más más más más más más más más más más más más más más más más más más más más más
más más más más más más más más más más más más más más más más más más más más más más
más y MÁS.

* Colaboração dramatúrgica de Laura Castro para o espetáculo Desplante (una vez más), de
Laura Pacheco (no postal).

REFERÊNCIAS
CARVALHO, Bernardo. Teatro. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
CASTRO, Laura. www.oarmrinho.blogspot.com. Web, 2012.
LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

230
2. http://oarmarinho.blogspot.com.br/tese

tenho que escrever, mesmo que isso te soe uma necessidade de fabulação, disse a moça. tenho que
escrever nem que seja pra rasgar depois. viver o ato do escrevimento; lembrar. o problema da leitura é
esse, cada um tem a sua pausa para cada vírgula. viu, sim, estou confundindo tudo, misturando,
recebendo as palavras que me procuram. mesmo que isso te soe involuntário demais, espontâneo
demais, mesmo assim, eu procuro e sou procurada pelas palavras. eu me encontro com elas, que, ternas,
me abriam, sim, é isso mesmo, me dá esse alívio deixar o pensamento solto sem que precise pensar no
que isso soa a você, eu disse a moça. por isso vou continuar a narração desses afetos, essas fabulações
de afeto; retalhados assim, no próprio corpo, que me desfaço e me refaço.

Marcadores: tese
Nenhum comentário:

231
Marcadores: tese
Nenhum comentário:

                                                                                                       para juraci dórea


la mer

/substantivo feminino/

há mar

baía. bretagne. bretanha. bethânia.


nós te amamos - MUITO! - grita o moço em plena gravação.
subjetividade geológica. pedrinha miudinha é de aruanda ê. florações da realidade.
with SAILOR OF ALL MOONS e seu gesto de amarrar luas em mim. incessante inconstância.

veja, filha, me disse a beira, estar seca é estar pronta para ser maré cheia, outra vez. preamar.

pés de vento, mãe dágua.

little wings. hendrix uivando nos ouvidos. e oarmarinho ali, no meio do caminho. mundo mundo vasto
mundo. imensidão de mar. coisa mais maior de grande. dentro-fora. tão longe. dj shuffle tocando
aláláôôuôôuô in the middle of nowhere. e esse oarmarinho ali, aqui; em toda parte.

a minha pátria é onde o vento passa.


e nunca acordo e nunca durmo.

a viagem da viagem. deslocamento afetivo. proteu, fênix. percorrer essas distâncias, tatear ausências.
vazios. reativar memórias e u a li, com meus castelos de beira, querendo rodar o mundo no saveiro de
Chico.

o artista fala de outra coisa que é a mesma. que o tempo constrói a obra.

232
veja, filha, não é que ele destrua a obra, o vento, a degradação, a transmutação da matéria. tudo
isso, filha, tudo isso constrói.

dentro-fora, me pego pensando assim. se não é isso mesmo, que os opostos sobrevivem num só.
construir destruindo, destruir construindo.

morrer sucessivas vezes para viver, me canta o passarinho poeta, que imprime no barro sua palavra-
gesto. na trilha da vibração das pedras, da matéria viva, a metamorfose das coisas.

reparar em tudo pela primeira vez, como florações da realidade. para então germinar uma nova pele,
anoto depois, mas não antes de acariciar as crostas, as camadas.

ser a seca na iminência do fluxo. ser tão.

com a maré vai o perigo de toda vida.


preamar, o ponto mais alto da maré. que onda que onda que onda que dá.

e a cor ali, a moça não para de dizer, escrutinando meus ouvidos. entender o meu desejo, primeiro,
menino-trovão. o meu desejo. uma madeleine na concha da mão, bocado de tempo pra lembrar. uma
ancestralidade que me molha os olhos, que ficam pequenos como os daquela menina do cais, Rosa, filha
de Chico, que quer ser canoeira como o pai, que se criou no movimento dos barcos. por isso o adeus,
sempre o adeus. saudade nenhuma, aprende, menina, como estratégia de sobrevivência, o tempo todo
ser essa âncora doarmarinho, qualquer coisa que levante vôo toda vez que se fixa muito fundo, que fundo
é também a beira, é estar seca, ser cratera, cratera de tempo, ter essas crostas, essas pedras rodeando
toda a costa.

pradianti, buttlerfly.

veja o mar, filha, amar deve ser essa mutação, essa trilha de pedras. seja íntima dessas miudezas,
aproveite esse sol para se secar, para dourar. 

verão que virá


poéticas de maré cheia

a mar mãe dágua

Marcadores: navegante do acaso, tese
Nenhum comentário:

tudo agora
tem a tag
#tese

t-edio - t-zão-t-otrem

Marcadores: tese
Nenhum comentário:
http://www.youtube.com/watch?v=UZUsxY02ClU

coloco play.

partir.

"sou o único homem à bordo do meu barco."

ulisses e o amor.

hago de outras mi voz. laura pacheco.


voz como uma perspectiva que constitui o próprio sujeito.

233
Marcadores: tese
Nenhum comentário:

Morar no trânsito. Habitar o transitivo. Se colocar em caminho. Estar onde não é. Ser
em todo lugar. Qualquer lugar. Ser precário. Apropriar qualquer suporte. Utilizar todos
os meios. Nenhum meio. Plástico. Caderno. Folha. Sombra. Mangueira. Carro.
Garrafa. Lençol. Caroço. Revista. Caneta. Capa. Lata de Goiabada. Acaso. Lance.
Consciência. Mondrian barato. Ser precário como única forma de viver. Viver o
precário como tática de combate e devoração. 74 – 75 – 76 – 77 – 78. Perceber no
precário o transitivo que cria. Experimentar o precário. Ser precário. Em cada gesto.
Em cada composição. Em cada ritmo. Em cada take. O precário consciente. O
precário como luta. O precário como resistência. Como forma de dobrar a existência.
Como canção de mundo novo. Como terra distante alcançada pelo gesto. Jequié. NY.
Itapoã. Beirute. Taprobana. Speranza. Nenhum Eldorado é mais dourado que star em
trânsito. Ser marinheiro do mar da lua. Construir um barco. Morar nele. Morar no barco
precário. Navegar. Transitar. Ser precário. (PIRES, 2007, p.114).

Marcadores: tese
Nenhum comentário:

CAIXA ALTA, A VOZ DA REESCRITA.

Marcadores: tese
Nenhum comentário:

para além do puro protocolo.


já se passaram mais de cem páginas, um punhado de cabelos brancos e mais de mil leões. alô,
cachorros do meu brasil, nada de raiva. mordidas só de carinho. sem medo de dizer, cara pintada, vamo
lá, com poesia nos olhos. que o fogo tá na rua e o ano é pouco para nós. é vem ela aí outra vez. vamos
tomar banho de mar, meus queridos, vamos de sal. que o açúcar endoidece as gentes.

abraçar e agradecer

a moça da lata me coreografa uma vida. carne viva. essa que pulsa. tudo ficou muito pior quando tivemos
que desacreditar nos outros, esconder nossa voz dentro do armário, colocar o corpo todo dentro de uma
gaveta, de uma calcinha. não vamos fingir que nada está acontecendo, não vamos acreditar muito no que
nos acontece. créditos e débitos. o corpo mordido, levado um pedaço. nossa obsessão. sim, é óbvio,
meus amigos, claro claro está tudo fora do lugar, mas como acreditar no tempo sem futuro, no tempo do
agora, no tempo da paixão. - quem criou o tempo do sufoco? necessidade vontade desejo? o peito
acabrunhado?
ah, não, sem esse moedor, mundo, sem esse violão. vida leve nas folhas das gentes. ar vóres matas de
dentro de nós. ser tão mar

comecei, começou, de novo.

navegante do acaso. assim sem saber pra onde corre o verbo.


sem premeditar, sem expectativas, sem grandes planos de como caminhar no tempo. essa vida junto
dentro fora de casa. o corpo-mundo. nunca igual. permanentemente alterado, abatido pela experiência.

penduro palavras na parede.

1,2,3 testando

o alfabeto é um grande oráculo


jogo com ele.

234
Marcadores: navegante do acaso, tese
Nenhum comentário:

Eu te escuto, mundo, fala que eu te escuto. seríssima, sereníssima.


sorrio e digo vem, pode se sentar, se assentar no meu corpo. somos todos nós mundos.
ele reside em mim, eu resido nele. saber disso já é um alívio.
sair da eu-foria,
e botar-se atenta. eu sei, eu sei, que vocês estão ouvindo. eu sei que estou falando em público. esse
público do privado. privado do público. por que começamos a botar tudo nas caixas das palavras, na
caixas de diálogo, nas caixas de futuro?

futuro entendimento
futuro ausente de si

o bruxo diz
- o outro é um eu.

achar essa voz. achar essa voz. achar essa voz. achar essa voz. achar essa voz. achar essa voz. achar
essa voz. achar essa voz. achar essa voz. achar essa voz. achar essa voz. achar essa voz. achar essa
voz. achar essa voz. achar essa voz. achar essa voz. achar essa voz. achar essa voz. achar essa voz.
achar essa voz. achar essa voz. achar essa voz. achar essa voz. achar essa voz. achar essa voz. achar
essa voz. achar essa voz. achar essa voz. achar essa voz. achar essa voz. achar essa voz. achar essa
voz. achar essa voz. achar essa voz.

explosões

sermos aldeia de novo. vencermos os medos. ouvir mais o silêncio com o vento de areia nos ouvidos.
desertos de mar. deixar vir o fluxo.

entender o choro como líquido, que sai do corpo. como rio, que vem de dentro da gente. ser rio, ser
floresta. as serpentes, as cobras no corpo da gente. movimento contínuo. paz.  a cobra viva, a cura, a
pipoca.

Não
esconda 
mais os seus sentimentos, seus pensamentos, ou os dons 

ofereça-os ao resto do mundo.

Marcadores: tese, travessia
Nenhum comentário:
como se faz um escritor?, somnia sabe e a professora se pergunta, em voz alta, como se faz um escritor?
sento-me aqui para ouvir. fico pensando na criação mesma de retratos nossos distribuídos, panfletados,
cheios de vontade da conquista da rede de recados, dos rostinhos bonitinhos do facebook. voltamos ao
império da cara, caímos na armadilha do fotoshop. dilvulgo a ação, somnia, a ação da escrita, a
intervenção de corte, pra quem quiser, pra quem gostar de palavras materializadas em objeto. poesia
tátil. 

Marcadores: notas para somnia, tese


Nenhum comentário:
As canções, principalmente as canções.
Como pensar em outros tempos? Cruzar essas linhas? Volto a fazer perguntas para tentar chegar numa
hipótese. Faço novos diagramas. Fazer notas do processo. Pinçar sobras. Perder alguma coisa,
desapegar de alguns textos.

Focar-se.

235
Esquecer a rua, mas sempre voltar a ela.
Fazer pesquisa subindo ladeiras, torneando o corpo, viva, nesta escrita gerada parida no agora.

Tornar a casa
É retomar a força.

Essa história tem que acabar. Foi assim que ele me disse. Essa história tem que morrer. Mas morreu, ele
morreu, explico a narrativa a Caioá. Love, can you hear me now? Love, can you hear me? O que eu faço
com isso que sobrou? Onde eu coloco? Nas letras, nega, me responde ele, sopre, deixe o vento vendavar
pelo teu peito. Deixo. Lembro de xangô quando penso no calor morno de junho que fica prestes a chegar
e bater na porta. Uma fogueira nas mãos. Me banho nas águas do mar, enquanto ele lixa canoas. Estou
ali ao seu lado. Última imagem me vem feito presságio. Rosa pensa em Jorge, um outro, um duplo. Os
novatos se afastam para não pegar fuligem. Entendi, digo a eles. Entender como se criam as coisas,
como apertamos laços e nós por aí. Cometer, praticar o amor livre. Cantar vivendo a canção, dançar com
palavras. Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre
Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre
Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre
Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre Livre ir onde quiser. Percorrer as
bordas da rua, fazendo poesia de passos, na fugacidade deles. Dormir em paz. Ação. Divulg ação . pé
quente cabeça fria.

Tornar a casa
É retomar a força.

Marcadores: amor, tese
Nenhum comentário:
responder que é devagar voltar, assim que o tempo do texto dá um respiro longo, feito o dia na hora
do descanso. usar c cedilhas ao invés de s. procurar os mistérios do essecê. não me apegar a nada.
poder caminhar sem fios, sem eletricidade fixa. livrar-se. depois, cometer parágrafos suicidas para não
morrer, e ela diz não! duas páginas por dia, sem dramas. tudo seu é muita dor, vive, ela diz com sotaque
fluminense. faço buracos para entrar o ar. me beijam os olhos, observador. sempre voltas, nunca uma
origem. cataventa, gira no meu coração. sopro pra longe não. faço é brisa. 
dentro da casa dos caracóis. 

Marcadores: diz ela, há caracóis, tese


Nenhum comentário:

tiro o sutiã para me desapertar a escrita.


já estive nua há mais tempo?

Marcadores: tese
Nenhum comentário:

a tag feito alfinete.

voo bem livre


sem acentos

longe da frouxidão de tags


unindo pedaço por pedaço

(um corpo-teia. cheia de remendos, suturas, ao revés)

as ruas da cidade com novidade

como o som vibra o corpo


e não só a boca.
assim como no gozo
assim como no corpo-andante

236
(continua)

Marcadores: tese
Nenhum comentário:
entro na tela como quem sai de um mergulho e levanta pra respirar. e a paz da página em branco. da
história sempre interrompida. para sair das micronarrativas, sempre esse exercício. para não mergulha na
ficção como se fosse verdade, fosse sem corpo a vida.
aqui pulsando na escrita.
locar e deslocar, a cada explosão. o tempo da pausa, pois.

Marcadores: estudo das explosões, tese


Nenhum comentário:
nao era coisa de ter captura. nao era isso.
por favor, despluguem essa voz.

nao era coisa de ter captura. foi uma coisa inversa, de soltar. passei meses lixando canoas, suas
margens morenas. era uma paz de rio. uma cura de pó. 
uma coisa de bater uma agua doce. uma água doce no corpo da gente. com uma leve maré. isso do rio. 

banho de rio nao é banho de mar. 

______________ ----------------------------------------------------------------------------------------------

- nada é, vai dizer algum chato.

quão certo vc está disso, eu pergunto.

olhos de fique são.

uma vela vermelha pelos olhos livres.outra azul. tipo um pratinho de cosme.

-------------_________________________________________________________________________

outra nota
outra nota
outra nota

contar alguma coisa que esqueci de dizer.

que de dizer esqueci?

notar o enviesamento da cianinha. 


____________________________________________________________________________

rosa senta-se na beira de um rio. ou numa praia no fim da tarde de um vento ar marinho. abre e fecha as
mãos como conchas pelos ouvidos. nos lábios. nos olhos de meditação. abre, ativa caracóis. dentro e
fora. um moreno dourado de verão. lucidez desatinosa. vida mais real. presença. _______________
tudo que se come. ____________________________________________________________________

Marcadores: cenas de abrir, navegante do acaso, tese


Nenhum comentário:
o tempo reside aqui
nesse empilhamento de coisas

ser barra de rolagem

237
é coisa do passado
na matéria de presente

haveria de ser uma crise essa da simultaneidade do tempo? seria o cacoete de registro motivo de greve
na fábrica desenfreada do esquecimento lá fora, aqui dentro? pobre e breve e excessiva nossa juventude
latino-americana quando range os dentes. quando desconhece o sertão. quando perde o brilho nos olhos,
essa espontaneidade do improviso.

deixar o corpo alimentado até umas horas. e cantar.

deixa
deixa
deixa

desumbiga

e vai até o chão. e vai até chão. e vai até o chão


barra de rolagem dentroafora

o tempo é dentro das gentes.  

Marcadores: tese
Nenhum comentário:
o sertão era grande demais. era o mundo. a gente escorria numa imensidão onde só importava existir. por
isso comecei a pesquisar as pedras. era uma noção de real que eu precisava ter diante do acaso. mas
mesmo assim eu fazia disso ou isso se fazia pra mim - tanto faz - de jeito inesperado. isso mesmo. pedras
no caminho. mistérios. a pesquisa do desconhecido, feito uma poética. para nunca embrutecer, para
nunca enSImentar. o sertão foi um fogo que não tinha mar que chegasse.

parti, querendo ficar. como me doeu isso.

mas sempre havia de ter o carnaval. 

gentil me assoprara: esquece a tristeza.

e parti, e voltei e tornei a partir até que a vida fosse pra diante. até que o amor voltasse a arder, feito fogo,
fazendo sertão, folia em mim.
tinha aprendido a sutileza da canoa. tinha compreendido o tempo das cartas.
por isso voltei.
mas também não tinha justificativa muito exata. não era preciso. nunca fui. era coisa de não ter bordas.
sentido. era a narrativa, era eu, se procurando, se fazendo só.  

quando um surdo de terceira do samba na praça ecoou, rompi o silêncio dos perdidos. tirei os fones e
soltei a voz. foi lucidez desatino, expliquei a caioá pra depois pingar uma gota de Qboa nos olhos. para
que não pudesse ver mais nada de memória, nada de passado. nem morto nem vivo. era carnaval, era
fevereiro outra vez, dentro de mim. 

e trampolim era pra sambar em cima. viver de risco, ser grave. 


 
chegara da narradora, enxugando no pano de prato as mãos sujas das canções (sic). chegara da ilusão
do destino. só valia o acaso.  
bastava da maldição do fado.
desliguei o barco e fui pra rima, pro desafino de passos. 
mas ao invés da gelada solidão de inverno, uma multidão. 
uma multidão gentil a se esquentar de delicadeza, essa política. 

num atalho da poética do asfalto, num dia, voltei e sambei outra vez. 

Marcadores: 2 perdidos, amor, das ilhas, navegante do acaso, tese, trampolim


Nenhum comentário:

longas horas em frente à branca tela, birô de palavras. finalmente voltar à velha máquina e o romantismo
que ser exotérico nessas horas

238
ciganamente

o quê?
ah, o pato. 

não esquecer
performance do ovo
pulso do cursor

abre lente imaginária>

um objeto que grita.

-  era um grito de alerta.


- ele ouviu?
- não.

uma escrita que pulse dentro da gente. mesmo quando estiver fora, materializada através da linguagem.
assumir uma honestidade no que diz, não no que se pode ser. pensar na folha de ofício.

foi um recado assim: valeu, galera, tô forte.


um capítulo intitulado: rede de recados

o amor na explosão da dança. a afetividade como mote de uma poética. entender como LC E CL fazem
isso. a autoria como lugar provisório. afetividade e provisoriedade casadas em muitos tempos. a
brevidade. a nossa juventude latino-americana. quem escreveria um livro intitulado assim? quem hoje
escreveria mais um casa grande?  

Marcadores: rascunho, tese
Nenhum comentário:

o retorno do real, bicho. o retorno do real.


ver hal. 

Marcadores: tese
Nenhum comentário:

nota 1
notar que que os novosduros falam de experiência, de consciência do gesto. 

nota 2 
notar que o gesto da edição é perder de vista qualquer possibilidade de controle do sujeito na recepção
de um outro. há emancipação nesse caso?

nota 3
notar que o gesto da escrita pode ser proposto como um gesto da reescrita.

nota 4 
notar que isso tudo é para chegar à conclusão de que a experiência do gesto contém a experiência do
instante?

nota 5
considerações sobre hipertexto e parangolé, os coautores.

nota 6 
isso é um segundo capítulo?

nota 7 

239
- não.

nota 8
novos duros, obras moles. como pensar na desintegração da obra, neste sentido.

nota 9
A desintegração do quadro foi, na verdade, a desintegração da pintura, fala de Hélio. 

Marcadores: tese
Nenhum comentário:

cenoura /limao / linhaça

coco / abacaxi / hortela

melancia / aipo

uva / pera / melao / gengibre em po

akuarina

pilates 140-270

pedreira
140 - 160

restos de tese.

não consigo saraus. que é do ouvir. voz. escrita visual. do olhar? os sentidos estão tão separadinhos
assim? não. há a sinestesia, observa a orientadora. tento decupar o auto-registro. e me pergunto: como
seria um antirregistro? começam a aqui os diários de bordo em bloco de notas sem título. registrar?
desregistrar? como perder a memória? como esquecer o significado, manoel? eu estava sentada na mesa
com a bailaora e pousou um passarinho na mesa, trazendo um recado: gramática expositiva do chão. isso
pode ser uma tesE? digo, este tom? começar assim com narrativas atravessando o pensamento em ação
na escrita. é um modo de organização, digo alto. veja, isso não é um manifesto. é uma escrutinação. é
uma tese. 

240

Você também pode gostar