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JUVENICÍDIO, TERRITÓRIO

E POLÍTICAS PÚBLICAS
RASTROS DE SANGUE NA CIDADE DE PORTO ALEGRE

Giovane Antonio Scherer


(Organizador)

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Copyright © Editora CirKula LTDA, 2022.
1° edição - 2022

Revisão, Normatização e Edição: Mauro Meirelles


Diagramação e Projeto Gráfico: Mauro Meirelles
Capa: Luciana Hoppe
Impressão: Gráfica da UFRGS
Tiragem: 1000 exemplares pra distribuição on-line

O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Esta-
do do Rio Grande do Sul - FAPERGS / This study was financed in part by the Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul - FAPERGS.

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JUVENICÍDIO, TERRITÓRIO
E POLÍTICAS PÚBLICAS
RASTROS DE SANGUE NA CIDADE DE PORTO ALEGRE

Giovane Antonio Scherer


(Organizador)

2022

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Esse livro é dedicado para cada jovem assassinado pela
dinâmica do juvenicídio nas periferias brasileiras. A
presente produção, que reflete sobre o rastro de san-
gue deixado pela dinâmica dos homicídios, fala de
morte para que se possa desnaturalizar a barbárie e
lutar pela vida!

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CONSELHO EDITORIAL

César Alessandro Sagrillo Figueiredo


José Rogério Lopes
Jussara Reis Prá
Mauro Meirelles

CONSELHO CIENTÍFICO
Alejandro Frigerio (Argentina) - Doutor em Antropologia pela Universidade
da Califórnia, Pesquisador do CONICET e Professor da Universidade Católica
Argentina.
André Luiz da Silva (Brasil) - Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP e
professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Humano da
UNITAU.
Antonio David Cattani (Brasil) - Doutor pela Universidade de Paris I, Pós-
-Doutor pela Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales e Professor Titular
da UFRGS.
Arnaud Sales (Canadá) - Doutor d’État pela Universidade de Paris VII e Pro-
fessor Titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Montreal.
Daniel Gustavo Mocelin (Brasil) - Doutor em Sociologia e Professor Adjunto
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Dominique Maingueneau (França) - Doutor em Linguística e Professor na
Universidade de Paris IV Paris-Sorbonne.
Estela Maris Giordani (Brasil) - Doutora em Educação e pesquisadora da An-
tonio Meneghetti Faculdade (AMF).
Giovane Antonio Scherer (Brasil) - Doutor em Serviço Social pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul e professor no Instituto de Psico-
logia da Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul.
Hilario Wynarczyk (Argentina) - Doutor em Sociologia e Professor Titular da
Universidade Nacional de San Martín (UNSAM).
Jaqueline Moll (Brasil) - Doutora em Educação, Professora Titular da UFRGS,
do PPG em Educação em Ciências da UFRGS e do PPG em Educação da URI.

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José Rogério Lopes (Brasil) - Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Uni-
versidade Católica de São Paulo.
Ileizi Luciana Fiorelli Silva (Brasil) - Doutora em Sociologia pela FFLCH-
USP e professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Leandro Raizer (Brasil) - Doutor em Sociologia (UFRGS) e Professor da Fa-
culdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Luís Fernando Santos Corrêa da Silva (Brasil) - Doutor em Sociologia
(UFRGS) e Professor do PPG Interdisciplinar Ciências Humanas da
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS).
Lygia Costa (Brasil) - Pós-doutora pelo IPPUR/UFRJ e professora da Esco-
la Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio
Vargas (FGV).
Maria Regina Momesso (Brasil) - Doutora em Letras e Linguística e Professora
da Universidade do Estado de São Paulo (UNESP).
Marie Jane Soares Carvalho (Brasil) - Doutora em Educação, Pós-Doutora
pela UNED/Madrid e Professora Associada da UFRGS.
Maurílio Castro de Mattos (Brasil) - Doutor em Serviço Social pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e Professor Associado da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Mauro Meirelles (Brasil) - Doutor em Antropologia Social e Pesquisador do
Laboratório Virtual e Interativo de Ciências Sociais (UFRGS).
Stefania Capone (França) - Doutora em Etnologia pela Universidade de Paris
X- Nanterre e Professora da Universidade de Paris X-Nanterre.
Tatiana Reidel (Brasil) - Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universida-
de Católica do Rio Grande do Sul e Professora Associada do Departamento de
Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Thiago Ingrassia Pereira (Brasil) - Doutor em Educação, Professor do PPG em
Educação da UFFS e do PPG Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFFS.
Wrana Panizzi (Brasil) - Doutora em Urbanisme et Amenagement pela Uni-
versite de Paris XII, em Science Sociale pela Université Paris 1 e Professora
Titular da UFRGS.
Zilá Bernd (Brasil) - Doutora em Letras e Professora do Programa de Pós-
-Graduação em Memória Social e Bens Culturais da Universidade LaSalle
(Unilasalle).

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Sumário
13 Agradecimentos

15 Prefácio
[Do encontro com José Manuel Valenzuela Arce]
José Manuel Valenzuela Arce

23 Apresentação
Karla Aveline de Oliveira

29 Um convite à leitura
Ilana Paiva, Gabriel Miranda

33 Notas Introdutórias: O Juvenicídio para além das “sombras”


Giovane Antonio Scherer

53 Seguindo os Rastros de Sangue: as marcas do juvenicídio na


realidade brasileira e seus rebatimentos no Rio Grande do
Sul e na cidade de Porto Alegre
Giovane Antonio Scherer, Laís Silva Staats

79 A (difícil) consolidação da Proteção Social Juvenil:


políticas públicas de/para/com as juventudes
na realidade contemporânea
Maurício da Silva César, Maurício Perondi,
Monique Fernandes Silveira, Paula de Fátima Moura dos Santos

107 Produção dos territórios violentados: a tríade perversa


entre Gentrificação, Favelização e Juvenicídio nos
territórios com maiores índices de mortalidade juvenil na
cidade de Porto Alegre
Ana Patricia Barbosa, Nicole Kunze Rigon,
Laura Barcelos de Valls, Giovane Antonio Scherer

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137 A (des)protecão juvenil nos territórios com maiores
índices de mortalidade em Porto Alegre
Maurício Perondi, Oriana Holsbach Hadler,
Ivana Oliveira Giovanaz, Mariana Porto Ruwer de Azambuja

171 Traços de Vida e Morte: percorrendo os rastros juvenis


nas políticas públicas
Alex da Silva Vidal, Bruna Rossi Koerich,
Renata Maieron Turcato

205 “Não tem recursos pra juventude”: Precarização,


Fragmentação e Ausência de Políticas Públicas
Gisele Ribeiro Seimetz, Cristina BettioBragagnolo

235 Tráfico de drogas e precarização existencial das juventudes:


juvenicídio nas periferias do capital
Vanelise de Paula Aloraldo, Cíntia Florence Nunes

267 Criminalização da Pobreza e Juvenicídio: a violência do


Estado Penal em uma conjuntura de (des)proteção social
Giovane Antonio Scherer

301 Racismo Estrutural como pilar do Juvenícidio: as faces de


genocídio da juventude negra
Giovane Antonio Scherer, David Petar da Conceição Mantalof

331 Frente de Enfrentamento à Mortalidade Juvenil:


sociedade civil, políticas públicas e respostas coletivas
David Petar da Conceição Mantalof, Maria Fernanda Landim,
Joice Lopes da Silva, Maurício Perondi

349 Sobre os Autores e as Autoras

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Agradecimentos

A construção do presente livro se constitui como produto de um


resultado coletivo que contou com a participação de um grande número
de sujeitos e instituições que contribuíram para que essa pesquisa pudes-
se ocorrer. Agradecemos a Fundação de Amparo a Pesquisa no Rio Gran-
de do Sul – FAPERGS, pelo recurso aplicado na investigação por meio
do Edital ARD 2019. O presente recurso foi essencial para a construção
da investigação e a produção deste livro.
À equipe da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre/RS
que trabalha na produção dos dados do Sistema de Informação de Mor-
talidade – SIM, em especial Simone Lerner e Patrícia Conzatti Vieira.
Agradecemos aos profissionais Marta Nileni Alves Gomes, Eliane
Teresinha Mombach, Adriana Possas Mesenburg, Artur Prati Neto e Ivo-
nize Nascimento Albino da Fundação de Atendimento Socioeducativo
do Rio Grande do Sul (FASE-RS); Maria Fernanda Landim, David Pe-
tar da Conceição Mantalof e Mariana Ruwer Azambuja da Fundação
de Assistência Social e Cidadania de Porto Alegre (FASC); Joice Eliane
Lopes da Silva, da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre
(SMED); Cristiane Gobbato, da Secretaria Estadual de Educação (SE-
DUC-RS); Salete Basso de Lima Alminhana e Ana Cristina Medeiros de
Lima, do Conselho Tutelar de Porto Alegre.
Nossa profunda gratidão a todas as equipes: do Centro da Ju-
ventude – CJ do bairro Restinga em Porto Alegre/RS, em especial ao
Pablo Geovani dos Santos (Coordenador Centro Juventude Restinga)
e Patrícia Lane Reis (Diretora Técnica Amurt-Amurtel). A equipe do
Centro da Juventude – CJ da Lomba do Pinheiro em Porto Alegre/
RS, em especial para Everton Silveira (Diretor Pedagógico), Frei Lu-
ciano Elias Bruxel (Diretor Geral) e Paula de Fátima Moura dos San-
tos (Coordenadora Geral Centro da Juventude/Lomba do Pinheiro). À
equipe do Centro Cultural Marli Medeiros, instituição que desenvolve

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o Programa Nacional de Inclusão de Jovens – Projovem no território
da Região Norte de Porto Alegre, em especial André Luís dos Santos
Teixeira (Coordenador Técnico).
Agradecemos, também, a todos que contribuíram de forma di-
reta ou indireta com a investigação. Em especial aos autores dos capítu-
los que traduziram, por meio de sistematizações científicas, a luta pela
vida das juventudes. Por fim, em especial, queremos agradecer a todos
os participantes da pesquisa, que puderam contribuir com suas percep-
ções e histórias de vida para que a presente pesquisa pudesse ocorrer.
Agradecemos, sobretudo, aos jovens, familiares de jovens e trabalhado-
res das políticas públicas pelos relatos orais. Suas vozes foram e são fun-
damentais nessa construção. Em tempos de sufocamentos e mordaças,
tais vozes são gritos necessários para esperançar diante da barbárie!

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Prefácio
Do encontro com
José Manuel Valenzuela Arce

José Manuel Valenzuela Arce é mexicano, do norte do México, da


fronteira com os EUA. Dediquei boa parte de sua vida ao trabalho de or-
ganização de comunidades e de trabalhadores. Foi operário desde muito
pequeno, desde os seus 16 anos, em uma grande empresa de cervejaria,
da linha de produção, e depois se dedicou muito tempo ao trabalho de
organização de operários e de comunidades. Seu ingresso no mundo aca-
dêmico foi muito acidental, por acidente, pois como ele mesmo diz: De
fato, comecei a trabalhar e escrever meus primeiros dois livros antes de
entrar na Universidade.
Seu primeiro livro sobre jovens se chama A la brava ése!: cholos,
punks, chavos banda, o qual, foi escrito com quinto grau preparatório, e
depois, logo em seguida, como ele mesmo coloca, se entregou ao mito
acadêmico – a sua mitopráxis – uma vez que, havia sido tirado da fábrica
de onde trabalhava e fazia trabalho político. E, assim, a partir dos anos
de 1980, começou a trabalhar com movimentos juvenis, sobretudo com
jovens dos bairros precarizados.
Era o grande movimento dos Cholos. Jovens descriminalizados
que vinham do fenômeno do Pachuco dos anos de 1940 e 1950, pois
havia uma série de medidas nesse momento que buscavam não somente
criminalizar, senão, justificar o assassinato de muitos destes jovens. No
caso de Cholismo que foi massivo no Norte Mexicano e no Sul dos EUA,
a intenção era legitimar ataques racistas, baseando-se no suposto comba-
te contra os Cholos que representavam a encarnação de um mal pré-cri-
minalizado. Estes cenários eram brutais. Este tipo de cenário de crimi-
nalização era muito forte e através de sua midiatização busca-se justificar
medidas e mecanismos punitivos contra os jovens. Foi tendo por base
esse pano de fundo que, Valenzuela Arce, começou a fazer seu trabalho
com jovens dos bairros populares no Norte Mexicano e depois no resto
do país, os chamados CHAVOS BANDA, e, posteriormente, ampliando

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para outros contextos, como é o caso do Rio de Janeiro quando, este, de
ocupou de estudar as favelas e o Movimento Funk.
No início de 2010, passou a se ocupar mais com o tema de femini-
cídio que, nesse momento, era muito visível em função do caso da cidade
de Juárez por o que envolvia “As Mortas de Juárez”, ou seja, uma série
de mulheres desaparecidas e assassinadas. Nesse momento, o conceito de
“Mortas de Juárez” era uma palavra que convocava a condolência, que
convocava o agravo, a dor ou a tristeza, mas que não implicava em um
ato homicida e tão pouco implicava em responsáveis. E, então, a partir
do que foi um conceito da literatura estadunidense no século 19, “Fe-
micide” de Diana Russell, este, vai adquirindo novos contornos e a ser
usado para designar os casos que envolviam o assassinato sistemático de
mulheres. Nasce aí o conceito de feminicídio.

Mauro Meirelles: E ideia de juvenicídio, vem de onde, como construíste


o conceito?

Valenzuela Arce: Trabalhar com o tema feminicídio na cidade de Juárez


neste período, era colocar acento e dar destaque que o feminicídio im-
plicava em ato homicida e, em considerar, ao ator do homicídio como
alguém quer não deveria ser objeto de condolência. Tal movimento
implicava, portanto, na possibilidade de se construir uma ação política
em torno de um evento de ordem social que neste caso teria que ver
com a violência de gênero. Como primeira abordagem, poderíamos di-
zer que a partir desta perspectiva de feminicídio, eu trabalhei desde en-
tão com uma perspectiva de feminicídio como ato limite, ato misógino
ao limite que arrebata a vida das mulheres. Então, o que me parece que
é central, mais que o ato homicida são os processos de precarização da
vida que possibilita que certas pessoas, com certas características, sejam
assassinadas. Era preciso focar na violência e, com isso, constatei que a
principal causa de morte de jovens na América Latina são as violências
onde, o assassinato prematuro, sujo e sistemático de jovens, me pos-
sibilitou ampliar os horizontes e aquilo que já estava trabalhando em
relação as mulheres, mas agora, me ocupando dos jovens, de processos
de juvenicídio.

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Maurício Perondi: Mas então, onde estaria o ponto de partida de tal
abordagem e modo de pensar o juvenicídio?

Valenzuela Arce: Acredito que a ordem patriarcal é o ponto de partida


indispensável para entender o feminicídio. A articulação da ordem pa-
triarcal com a ordem capitalista, essa é a segunda grande ordem que nos
permite compreender como estamos vivendo e a terceira, obviamente,
passa pelo Colonial. São elementos que se trabalham de forma muito
apropriada no livro que vocês estão por publicar. Este livro que realiza-
ram: Juvenicídio, território e políticas públicas no rosto de sangue na cidade
de Porto Alegre, porque me parece que esta tese se coloca de maneira mui-
to clara e que não somente os coloca como elementos de uma plataforma
heurística-interpretativa, mas que, também é um trabalho organizado a
partir de uma vinculação muito importante entre a informação socio-
lógica, o trabalho etnográfico, as histórias de vida e o que são os regis-
tros, os informes oficiais e institucionais que permitem, definitivamente,
construir uma interpretação muito digna para entender estes processos
de precarização da vida dos jovens no Brasil e quais são os elementos que
os definem, que lhes caracterizam. Dito isto, para mim, dentro do que
foi o desenvolvimento de conceito de juvenicídio, resultava em colocar
uma grande importância nisto, na articulação dos elementos que pos-
sibilitam o assassinato de jovens, como ocorre no caso do feminicídio.
Então, definitivamente, o conceito de juvenicídio surge a partir deste
trabalho realizado em 2012, intitulado “Sed de Mal”, o qual, buscou
explorar e refletir sobre essa realidade de vulnerabilidade, de desamparo,
de assassinato e mortes sistemáticas de jovens.
Acredito que um dos grandes acertos do livro que vocês estão pro-
pondo é que ele coloca de maneira muito evidente, por um lado, o que
são os elementos de ordem sócio-histórico e cultural econômico que de-
finem as trajetórias de vida e as obliterações das trajetórias de vida dos jo-
vens no Brasil. E, por outro lado, a regionalização que é muito pertinen-
te, no caso de Porto Alegre, pois, vocês estão realizando e tecendo enlaces
entre a dimensão nacional e a dimensão regional. Em terceiro lugar colo-
ca, destaco a condição de proxêmica que me parece fundamental a partir
de um pouco do que vocês utilizam, não tão forte, mas basicamente na

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abordagem da nova chamada sociologia francesa, ou seja, da compreen-
são de espaço vivido, de espaço concebido e de espaço representado; mas
também, como efetivamente a construção social do espaço, do território,
do espaço habitado por esses jovens é uma expressão das relações sociais
que os constituem. Isso me parece uma parte muito importante do traba-
lho de vocês que vão desenvolvendo, porque efetivamente não é mais um
tema da criminalização de certos grupos juvenis, senão, como um con-
junto os âmbitos (bi)proxêmicos em que eles habitam que implicam em
formas de relações sociais precarizadas e estigmatizadas que os colocam
em condição de vulnerabilidade e em situação de desamparo.
Também colocam o que seria a vulnerabilidade específica que
fazem os jovens desde esta condição de juvenicídio onde há ordena-
mentos racializados. Por isso, me parece muito importante o questio-
namento que vocês fazem a esta ilusão da democracia a partir de uma
suposta, digamos, igualdade desatenta das diferenças a partir da descri-
ção racializada, como tem sido e questionado no caso de outros países
latino-americanos, o mito de miscigenação, como se tudo de repente
entrasse nessa ordem. Também é interessante o modo como vocês abor-
dam a questão de gênero e condição LGBTQIA+ como um elemento
muito importante para compreender esse processo de articulação que
para mim seria central.
Assim, o que posso dizer é que estamos frente a processos amplos
de juvenicídio que só podemos entender através destas lógicas articu-
ladas quando se conjugam repertórios sociais identitários precarizados
que são os que permitem e possibilitam esta morte suja, precoce, siste-
mática, persistente de jovens em nossos países. Isso é o que eu poderia
dizer de entrada.

Mauro Meirelles: Manuel, gostaria de perguntar duas questões. Uma


é pensar, do ponto de vista de Achille Mbembe, da necropolítica. Nós
podemos dizer que a morte se mostra de modo geracional. Primeiro se
matam as mães e, depois, os filhos destas que habitam sobre o território.
E, como diria Goffman, é como se as crianças nascessem com uma marca
corporal, porque nasceu sobre esse território, então, será morto. E que
hoje, pelo ponto de vista política, da política e da polícia, se vê como algo

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natural, que determinado território seja território de morte. É possível
dizer que desde esse ponto de vista o juvenicídio é uma forma de con-
trole – de um estética da existência, como diria Foucault – e, portanto, o
viver desses jovens é uma forma de resistência e nesta direção poderíamos
pensar também que mais adiante aqueles jovens que resistem, ou seja,
não morrem, seriam aqueles que no campo da política, educação, se tor-
naram os defensores dos mortos, com vista a se garantir uma mudança
futura em que a morte dos jovens e das mulheres não seja vista de uma
forma banal e, sim, como problema sociológico. Nesse ponto, gostaria de
pensar em relação a esse movimento, ao mesmo tempo que eles morrem,
aqueles que vivem, pensam sobre isto, não?

José Manuel Valenzuela Arce: O conceito de estigma que trabalha Er-


ving Goffman, de fato, no primeiro momento tem como objetivo criar
certas marcas com as quais se significava certos corpos com penalizações,
os tornando corpos proscritos que vão além do raspar a cabeça no caso
dos presos no presídio, de formas de identificação, estamos aqui falando
de marcas culturais que geram identidades desacreditadas. Diante disso,
tem-se que estes jovens afro, primeiro pela cor de pele e, depois, pela
mera condição de pobreza, são criminalizados sem que necessariamente
cometam nenhum tipo de delito, de fato, como coloca Mauro. Então,
como coloca Achille Mbembe, de fato, o que temos é que estas formas,
estas perspectivas estigmatizantes operam na construção do que seria a
significação dos corpos prescindíveis. São construções culturais baseadas
em preconceito, esta ideia antecipada, esta pré-noção, esta construção
baseada na ignorância, quando muitas vezes essas pessoas não conhecem
a esses outros e essas outras, mas tem já um posicionamento sobre eles.
E, portanto, estamos frente a estereótipos.
Já o racismo tem a ver com formas de relações estruturadas, ins-
tituídas e estimuladas a partir da qual um grupo social, as quais, tem a
capacidade de produzir e reproduzir uma condição de desigualdade e de
subalternização de outro grupo social. O racismo não é só uma perspec-
tiva, é uma forma de organização social que através sua reprodução e do
uso de narrativas de miscigenação cultural serve unicamente para ocultar
essa forma de dominação e subalternização de uma classe sobre a outra.

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No livro de vocês, isso é muito bem trabalhando quando vocês
demonstram que ainda persistem na sociedade brasileira muitas formas
inerciais de desigualdade social construídas a partir de um processo de
racialização da pobreza e da cor da pele que servem apenas para fortale-
cer a condição prescindível de certos setores sociais e fortalecer esta ideia
que as vidas destes jovens efetivamente não importam, pois eles, se pode
matar que não acontece absolutamente nada. E mudar isso, passa efeti-
vamente por se pensar as próprias políticas de Estado em relação a esses
grupos sociais tidos como prescindíveis, de grupos sociais tidos como
precários, de grupos sociais marcados vulnerabilidade social e por sua cor
da pele. Assim, quando observamos os testemunhos, as histórias de vida,
as narrativas que vocês recuperam neste importante trabalho e aproveito
e abro um parêntese para dizer que considero que Juvenicídio, território
e políticas públicas. Rastros de sangue na cidade de Porto Alegre é uma obra
fundamental para a compreensão não somente do que são os processos
de precarização da vida e da morte que ocorrem em Porto Alegre e no
Brasil, senão uma obra fundamental para compreender grande parte do
que seriam estes traços de sangue e fogo, esses traços de sangue e lodo,
traços esses que definem a precarização da vida e o assassinato sistemático
de jovens na América Latina.
Portanto, o que quero destacar aqui antes de encerrarmos é que
essa obra tem um tramado teórico conceitual muito bem elaborado,
muito claro e pertinente com as apostas metodológicas, as abordagens
metodológicas desde as quais se constroem este conhecimento dialógico,
não é uma obra extrativista, é um trabalho bem pensado, trabalhado, no
qual se faz e se pensa a realidade a partir do acompanhamento dos atores
sociais com os quais trabalham.
E, de fato, a potência dessa obra reside na sua reflexividade e no
fato de romper com as ferramentas utilizadas tradicionalmente pela aca-
demia. Está é uma obra pensada desde as lógicas de horizontalidade onde
se busca com isso se romper as formas heteronômicas de pensamento e si-
tua-se numa perspectivas de construção de pensamento, de reflexão com
as/os jovens dos bairros precarizados no Brasil, das/os jovens favelados,
e as experiências que deles emanam, suas narrativas, seus testemunhos,
mas também os testemunhos de suas famílias, daqueles com os quais

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eles vivem. Portanto, eu lhes diria que este trabalho se deve recomendar
de maneira muito ampla para uma leitura não somente para os leitores
acadêmicos, não somente para os pesquisadores do tema juventude, mas
também para aqueles que trabalham no campo dos estudos sobre a cida-
de, sobre os bairros e os territórios, nos temas da proxêmica social, mas
também para quem trabalha o tema da Educação, algo vocês discorrem.
Uma vez que, em muitos casos, a Educação tem servido como um dispo-
sitivo da produção e reprodução da desigualdade social, como também
nos demonstram que os presídios, estas máquinas punitivas de que nos
fala Foucault efetivamente também funcionam como um maquinário,
mas o que fazem, é, apenas, reproduzir o que seria uma interminável ca-
deia de criminalização das pessoas pobres e com corpos racializados que
passam por esses espaços do presídio, porque, efetivamente, o presídio e
o estigma de presídio nunca terminam.

Maurício Perondi: Muito obrigada, professor Valenzuela, pelas suas pa-


lavras acerca da produção do livro. Sabes que para nós, é uma inspiração,
tanto pelo conceito na investigação, o livro Juvenicídio, que tenho aqui
é uma inspiração para nós. E penso também que nós temos, assim como
em quase toda a América Latina, um problema muito grande que é gera-
do por toda esta complexidade...

José Manuel Valenzuela Arce: Obrigada, Maurício. Assim, espero que


assim como o meu livro inspirou vocês, o de vocês, inspire outros. Uma
boa leitura a todos.

José Manuel Valenzuela Arce

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Apresentação

Karla Aveline de Oliveira1



Pensar Porto Alegre reparando, com acuidade, nos rastros de san-
gue que escoaram/escoam em seus territórios desde sua fundação – e lá
se vão 250 anos – pode ter como pano de fundo áudio amplamente di-
vulgado através do WhatsApp, no mês de março do corrente ano, dando
conta do início de mais uma violenta guerra dos coletivos criminais que
exploram o narcotráfico na capital gaúcha. O recado que nos informa
do início de outra intensa disputa por domínio territorial, disseminada
em mais de 17 bairros, vilas e comunidades porto-alegrenses, com insta-
lação de toque de recolher, deslocamentos forçados, atentados, despejos
de corpos dilacerados em cemitérios clandestinos ou no “Rio Guaíba”,
cancelamento de atividades comunitárias, entre outras violências, fina-
liza com a ameaça de que, enquanto determinada facção não tomar o
território dominado pela outra, a guerra persistirá.
Ainda sob o impacto dessa comunicação, recebi a notícia, em um
dos processos que estão sob minha jurisdição, da entrada de mais de um
adolescente, ferido com arma de fogo, em um hospital da cidade. É desse
sangue ainda morno, denso, que escorre sem cessar, escondido de modo
proposital por e para alguns, e alardeado, nas redes sociais para outros,
que a presente pesquisa vai se debruçar, pensando como o juvenicídio –
esse processo que implica em condições precarizadas e persistentes que
têm custado a vida de centenas de milhares de jovens, tem relação com a
ausência/insuficiência de políticas públicas nas comunidades.
Segundo Renato Dornelles e Tatiana Sager, produtores do pre-
miado documentário Central e escritores do livro Paz nas Prisões Guer-
1 Juíza da 3º Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre. Especialista e Mestre em
Derechos Humanos, Interculturalidad Desarrollo - Universidad Pablo de Olavide, Se-
villa, España.

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ras na Ruas (Porto Alegre, Falange Produções, p. 50, 2021), em 2016,
as quadrilhas e facções haviam se expandido por Porto Alegre e demais
cidades da região metropolitana, a ponto de estarem presentes em pelo
menos 38 bairros, de um total de 81, incluídos os mais populosos,
afetando, assim, direta ou indiretamente, cerca de 900 mil pessoas, ou
seja, 64% dos moradores da capital sofriam e/ou sofrem as consequên-
cias dessa situação.
A inexistência de políticas públicas intersetoriais e eficazes, em um
horizonte de crescimento do número de mortes da juventude negra e
periferizada (tanto que já se denuncia o genocídio da juventude negra
desde, pelo menos, 1978) e de encarceramento juvenil por envolvimento
de adolescentes com o narcotráfico, merece ser pensada criticamente.
Nesse contexto de precarização de vidas, as desigualdades raciais
nos falam de encarceramento e morte de pessoas não brancas e passam
a fazer sentido quando se pensa no projeto colonial do Século XVI que
se estende ao presente momento – ano de 2022. Diversos indicadores
sociais demonstram que há um lugar específico designado à população
negra na sociedade brasileira, qual seja, sem emprego ou subocupada,
com alto índice de analfabetismo, sem ocupar cargos de poder ou de
saber, presa ou morta: desumanizada, hierarquizada, empobrecida e sob
intenso controle social. Cabe aqui a pergunta: qual o papel dos brancos
e brancas nesse cenário? Antes e agora?
Apesar da superação do conceito da superioridade racial desde o
ponto de vista biológico, ou seja, mesmo tendo em conta que a ciên-
cia demonstrou, à saciedade, que raça não existe e que são irracionais
as crenças baseadas na superioridade e inferioridade raciais dos grupos
humanos, a raça continua sendo o elemento chave no processo de hierar-
quização entre as pessoas, sobretudo desde a escravidão.
Assim, impõe-se visibilizar que, quanto ao recorte racial, no âmbi-
to sul-rio-grandense, levando-se em conta os dados compilados no Plano
Decenal do RS, entre os anos de 2002 e 2016, 53% dos adolescentes
que cumpriram medida socioeducativa eram brancos; 16% pretos e 18%
pardos. Contudo, adolescentes brancos representam 76% da população
gaúcha, ao passo que pretos correspondem a 6,2% e pardos a 17,3%, de
modo que os pretos, seguidos dos pardos, proporcionalmente, são os que

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mais ingressam no sistema socioeducativo. Também os dados do Atlas
da Violência 2019 e do Mapa do Encarceramento Juvenil, evidenciam
importante paralelo entre as mortes e o encarceramento de dezenas de
milhares de jovens negros com a atividade desenvolvida pelas organiza-
ções criminosas que exploram o narcotráfico.
Os valores produzidos e reproduzidos mediante o uso da violên-
cia, aliados à produção de consensos a respeito da “raça negra” forjaram
e mantêm um mundo onde se naturalizou a existência de raça como
elemento central de controle social, como, por exemplo, observa-se do
fenômeno do superencarceramento no Brasil ou nos Estados Unidos da
América resultado da construção da figura do homem negro como in-
dolente, violento e perigoso, construção que se dá através da estética
racista, da literatura racista, dos cientistas racistas e de todo esse processo
histórico de violência desumanizadora.
Por tudo, impõe-se afastar-se da leitura particular e parcial da rea-
lidade que não leva em conta o racismo institucional, o racismo estru-
tural e o quanto a construção social da raça negra têm implicação no
encarceramento e morte da juventude negra. Como se extrai, todas as
vidas, brancas e negras, estão imbricadas em um mesmo processo já que
presente uma relação assimétrica de poder em que o grupo racial domi-
nante – o branco – permanece usufruindo, historicamente, de vantagens
e privilégios materiais e imateriais às custas do sofrimento, da exclusão,
da opressão e da violência produzida contra o povo negro.
Nesse sentido, parece importante perquirir como o Direito Penal
(e juvenil), próprio de um estado policialesco, absolutamente violento e
violador de direitos, sustentando como bandeira a chamada “Guerra às
Drogas”, construiu o traficante de drogas como inimigo número um da
sociedade, seja ele criança, adolescente ou jovem e como as instituições
que compõem o sistema de justiça predominantemente branco (Polícia,
Ministério Público e Poder Judiciário) produzem e reproduzem subjeti-
vidades que simplificam de modo radical situações complexas e passam
a entender que a criminalização e o encarceramento poderão erradicar as
drogas do planeta, tal qual a estratégia de repressão com foco na redução
da oferta de drogas ilícitas, combate à produção e comercialização, elabo-
rada por Richard Nixon, em 1971, então Presidente dos Estados Unidos.

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E nessa simplificação, matar e encarcerar a juventude empobrecida,
em sua maioria negra, que vive em um contexto de violação de direitos em
face da insuficiência das políticas públicas nos territórios, como a presente
pesquisa sobejamente demonstrou, apresenta-se desejável ou razoável.
O laudo de necropsia, a que chamo as pesquisas que ora são apresen-
tadas, atentando-me à linha de investigação desse espesso rastro de sangue
que mancha indelevelmente a consciência de todos e todas, revela a inefi-
ciência/insuficiência das políticas públicas em Porto Alegre e escancara as
consequências nefastas que ceifam vidas e ferem de morte um projeto de
nação que já se pretendeu emancipadora, democrática, igualitária, justa,
como se vê do idílico preâmbulo da Constituição Federal de 1988.
Nessa linha de raciocínio, permito-me responder em face do pri-
meiro quesito do laudo de necropsia – “se houve morte?”, SIM, centenas,
talvez milhares; ao segundo quesito – “qual a causa da morte” e ao ter-
ceiro quesito – “qual instrumento ou meio que produziu esta morte?”,
menciono, procurando desvendar outras realidades dessa Porto não tão
Alegre, documento produzido e apresentado aos/a candidatos/a ao car-
go de Prefeito/a em 2020, pelo Conselho Gestor do Serviço de Medidas
em Meio Aberto de Porto Alegre intitulado “Pacto pela Socioeducação”, o
qual, ao se referir às políticas públicas que os adolescentes em cumprimen-
to de medida socioeducativa em meio aberto necessitam acessar, retrata as
deficiências da rede (PACTO PELA SOCIOEDUCAÇÃO, 2020)2.
O estudo lembra que a dificuldade de acesso ao trabalho e renda
e a falta de investimentos em políticas públicas de proteção social impacta
diretamente a população periferizada, em especial, jovens, mulheres e
população negra, ressaltando que os jovens estão alijados do trabalho em
maior proporção, a indicar a necessidade de que esforços e recursos se-
jam empreendidos para garantir a inserção dos adolescentes e jovens nas
diversas políticas públicas necessárias para a construção dos seus projetos
de vida e exercício da cidadania.
O Conselho Gestor, na Carta, sustenta a necessidade de fortaleci-
mento da política pública de assistência social prevenindo, assim, situações
de risco social; da política pública de educação, garantindo aos jovens a esco-
2 Disponível em: https://www.tjrs.jus.br/static/2020/11/PACTO-PELA-SOCIOE-
DUCAC%CC%A7A%CC%83O-1.pdf

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larização, com foco específico na evasão escolar e com vistas à diminuição
da distorção idade/série (nos CREAS de POA percebeu-se que 74% dos
jovens ali atendidos encontram-se com distorção idade/série); da política
de saúde, em especial na política de Saúde Mental, em razão da falta de
perspectiva dos adolescentes e jovens das comunidades empobrecidas e pe-
riferizadas, circunstância que agrava o risco de suicídio, de depressão e de
abusivo uso de álcool e substâncias psicoativas, da política de qualificação
e inserção profissional, ainda mais quando todas as estatísticas demonstram
que adolescentes em situação de vulnerabilidade social (em sua maioria
do sexo masculino, negros e moradores da periferia) são os que, em maior
número, restam cooptados pelas organizações criminosas que exploram o
narcotráfico para trabalhar em uma das piores formas de trabalho infantil,
segundo Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP) e Con-
venção 182 da OIT; da política de cultura, lazer e esporte, propiciando o
acesso a programações culturais, teatro, literatura, dança, música, artes,
com construção de espaço que oportunize vivência de diferentes atividades
culturais e artísticas que favoreçam à qualificação artística.
Especificadamente, quanto à intersecção entre tráfico de drogas e
adolescências, analisada sob o amplo prisma que o conceito de juveni-
cídio proporciona, verifica-se como a juventude brasileira, sem acesso a
outros meios de sobrevivência e sujeita às políticas públicas ineficientes/
inexistentes, serve de força de trabalho para grandes organizações crimi-
nosas e encontra remuneração, encarceramento e morte nessa atividade
considerada uma das piores formas de trabalho infantil!
É absolutamente premente que se discuta sobre tal prática que
produz morte e encarceramento da juventude racializada, periferizada
e empobrecida desse país, ainda mais quando cabe às instituições que
formam o sistema de justiça,  enfrentar juridicamente,  alijando-se dos
seus preconceitos, visões distorcidas e discriminatórias de mundo, o fato
incontestável de que a prática do tráfico de drogas, consistente na explo-
ração por parte das organizações criminosas, do trabalho de crianças e
adolescentes desassistidos pelo Estado, constitui-se em trabalho infantil.
Aliás, de ressaltar que o Brasil, ao assinar a Agenda 2030 (Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável), aprovada pelas Nações Unidas em 2015,
comprometeu-se em erradicar todas as formas de trabalho infantil até

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2025 (Objetivo 8.7), contudo, segue a juventude racializada, empobre-
cida e periferizada sendo duplamente penalizada, em desacordo com o
regramento legal, tudo a refletir valores e práticas de um passado recente
e nada glorioso, regido pelo antigo Código de Menores, pois, mantém-se
a visão punitivista e olvidam-se das medidas protetivas e das políticas
públicas de Assistência Social.
Por fim, seguindo a linha de raciocínio do laudo de necropsia que
investiga o juvenicídio em Porto Alegre, através da licença metafórica
que o título do presente livro me convocou, em relação ao quarto que-
sito – “se foi produzida por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia
ou tortura, ou por meio insidioso ou cruel (resposta específica): sim, a
resposta é sim. Centenas, milhares de mortes provocadas por ASFIXIA;
provocadas pelo neoliberalismo, pelo racismo estrutural, pelo racismo
institucional, pelo machismo, entre outras tantas causas amplamente dis-
secadas nas pesquisas aqui produzidas, cujo substrato ora apresento aos e
às atentos/as leitores/as.

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Um convite à leitura

Caros/as leitores/as,

O livro “Juvenicídio, Território e Políticas Públicas: rastros de san-


gue na cidade de Porto Alegre”, organizado pelo Dr. Giovane Antonio
Scherer, constitui-se como uma obra imprescindível para o debate sobre
juventude(s) e violência. Ao longo dos dez capítulos que compõem o pre-
sente trabalho, é possível encontrar um conjunto de textos que se destacam
tanto por um elevado rigor teórico-conceitual quanto pelo trato de temas
que apresentam profunda relevância social no contexto brasileiro, marca-
do pelo aprofundamento das condições que conduzem largos setores da
juventude a processos de mortificação simbólica, social e biológica.
Assim, utilizando como eixo central os dados referentes à letalida-
de juvenil em Porto Alegre nos últimos dez anos, os capítulos da presente
obra nos fornecem um qualificado diagnóstico acerca das determinações
que se encontram involucradas com o juvenicídio na referida capital.
Todavia, o esforço empreendido em perceber de que maneira o universal
e o singular se relacionam fazem desta obra uma produção não apenas
local e contemporânea, mas com importantes subsídios para auxiliar na
compreensão de distintos cenários – no Brasil e além – e em diferentes
tempos históricos.
Dentre os inúmeros predicados que podem ser atribuídos ao pre-
sente livro, destaca-se o esforço realizado para retirar o juvenicídio das
sombras, isto é, colocá-lo em uma posição central nos debates públicos e
acadêmicos acerca da distribuição desigual da violência. Tal empreendi-
mento implicou tanto colocar em evidência esse perverso processo social
– por vezes invisibilizado – quanto expor a maneira como ele se encontra
atrelado às contradições do capitalismo brasileiro.
Desse modo, seguindo os rastros de sangue deixados na cidade
de Porto Alegre, o livro destaca o processo de precarização das políticas

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sociais endereçadas à juventude, bem como a consequente intensificação
dos aparatos penais de controle penal do refugo da sociedade de mer-
cado e das expressões da assim chamada “questão social”. Conforme é
demonstrado no decorrer da obra, a juventude pauperizada se constitui
como principal agente social alvo desse processo, que tem o seu itinerário
marcado por uma relação de iminência com a morte, seja pelas precárias
condições de vida, pela militarização da questão social ou pelo racismo,
que impõe a jovens não brancos uma condição contínua de risco.
Dessa maneira, retirando o juvenicídio das sombras, vê-se como o
modo de produção capitalista, o avanço do neoliberalismo, a consolida-
ção dos mecanismos de gestão penal da pobreza, a política proibicionista
de drogas, a política urbana da segregação e o racismo são mediações
que se relacionam com os rastros de sangue da juventude pobre e negra,
seja em Porto Alegre, seja em outras cidades brasileiras ou até mesmo
em becos e vielas da América Latina que permanecem encobertos pelas
sombras da indiferença.
Juvenicídio tem sido o termo que diversos especialistas têm utili-
zado para compreender e denunciar o assassinato sistemático de jovens.
Trata-se de uma plataforma acadêmica, ética e política para assinalar o
que está ocorrendo com mortes prematuras de jovens no Brasil e em
toda a América Latina. Importa aqui estudar e desvelar os contextos que
possibilitam que atos homicidas contra jovens ocorram e que sigam se
reproduzindo, sem o devido direito à reparação, memória e justiça.
Como dissemos, o que está no centro desses fenômenos são os
marcos de precarização da vida, nas suas mais diversas formas: desigual-
dade estrutural, pobreza e racismo estrutural, precarização no acesso à
justiça e às políticas sociais. Além disso, ressalta-se a precarização simbó-
lica, tendo em vista que os jovens que mais morrem de “morte matada”
são profundamente criminalizados, convertidos em extermináveis, matá-
veis, não sujeitos.
A origem do conceito está inspirada nas discussões sobre os Fe-
minicídios na Ciudad Juárez e suas derivações na América Latina, bem
como no assassinato dos 43 estudantes de Ayotzinapa no México. Na
discussão sobre o juvenicídio, reconhece-se, também, a importância de
colocar no centro do debate o assassinato sistemático e persistente de jo-

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vens, buscando desnudar as raízes profundas dessa violência, imbricadas
com anos de precarização de vida a qual são submetidos os jovens latino-
-americanos. Jovens que vivem no fogo cruzado da violência, vítimas de
atores do próprio estado, da violência policial e da paralegalidade – como
as milícias e os mercados ilegais de drogas.
Em uma sociabilidade que afirma direitos humanos, mas que os
torna irrealizáveis, uma máquina necrocapitalista de triturar gente, que
impede que as pessoas se realizem como sujeitos e sujeitas, o presenteís-
mo intenso captura os jovens nessas redes de morte. Há expropriação
completa da esperança, não há o que pensar – ou pesar – sobre o futuro,
e a banalização morte, a brevidade da vida, já fazem parte do seu reper-
tório cotidiano.
Superar o juvenicídio e construir políticas para o seu enfrenta-
mento pressupõem ter à disposição um diagnóstico sobre as causas da
produção da morte dos adolescentes e jovens, sobretudo daqueles que
compõem os setores mais pauperizados da classe trabalhadora. Eviden-
te que, sem qualquer ilusão herdada do positivismo, sabe-se que o co-
nhecimento sobre o real deve estar endereçado não à contemplação do
mundo, mas à sua transformação, em um movimento que a teoria e
prática possam atuar de maneira articulada, constituindo, assim, uma
filosofia da práxis.
O livro que agora o(a) leitor(a) tem em mãos nos fornece esse
diagnóstico e sugere caminhos de ação. Que possamos, então, utilizá-lo
como como um potente instrumento para fomentar políticas públicas e
ações atreladas a processos de resistência e enfrentamento às diferentes
estratégias que o capitalismo se apropria, evoca e ressignifica dia após dia
para exercer o seu poder de matar.
Nesse sentido, há que se chamar a atenção para as redes de vida e os
movimentos sociais que, na contra mola que resiste, também capturam
as juventudes. Nos últimos anos, em toda a América Latina, assistimos à
reação de resistência protagonizada por jovens, por diversos movimentos
juvenis que denunciam as tramas do colonialismo, do racismo e do sexis-
mo, estruturantes da sociabilidade capitalista. A contraofensiva às políti-
cas de morte pode ser vista nas mobilizações para uma nova constituinte
no Chile e no regresso do MAS na Bolívia. Na Colômbia, no corrente

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ano, a esquerda ganha as eleições pela primeira vez no país, após anos de
conflitos políticos violentos. No Brasil, por sua vez, diversos jovens têm
saído às ruas contra o governo Bolsonaro e seu projeto ultraconservador.
Desejamos que façam um excelente proveito dessa obra que é im-
prescindível para os estudos sobre juventudes!

Ilana Paiva
Gabriel Miranda
Natal (RN), julho de 2022.

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Notas Introdutórias:
O Juvenicídio para além das “sombras”

O tema da mortalidade juvenil se constitui como um fenômeno que


vem ganhando visibilidade em diversos meios, porém, muitas vezes, esse
debate é realizado de forma fragmentada, reproduzindo discursos que se
calcam em uma perspectiva neoconversadora e criminalizatória dos seg-
mentos sociais que mais vivenciam tais processos. Nesse sentido, analisar
o tema dos homicídios de jovens para além das “sombras”, significa com-
preender esse fenômeno para superar os inúmeros estigmas que são asso-
ciados a esse tema, na perspectiva de apreender criticamente os complexos
processos que envolvem a mortalidade juvenil provocada por homicídios.
O termo juvenicídio surge como uma importante categoria ana-
lítica dessa realidade, sendo cunhado pelo pesquisador mexicano José
Manuel Valenzuela para designar o fenômeno da mortalidade juvenil por
meio dos homicídios. Para Valenzuela (2015) o juvenicídio se constitui
de diversos fatores que incluem a precarização, pobreza, desigualdade e
a estigmatização, tendo como eixo central a estratificação social baseada
em relações de subalternização. Nesse sentido, o juvenicídio inicia com
a precarização da vida dos jovens, a ampliação da sua vulnerabilidade e a
diminuição das opções disponíveis para que possam desenvolver seus pro-
jetos de vida (VALENZUELA, 2015). Conforme Rocha (2020) o termo
juvenicídio vem do latim juvene [pessoa jovem] + excidium [destruição],
se relacionando a forma destrutiva de tratar a juventude enquanto um fe-
nômeno social que compõe a constituição das relações sociais brasileiras
historicamente. É importante destacar que o juvenicídio se constitui na
interrupção de vidas jovens, de forma violenta por meio dos homicídios,
provocados, especialmente, pela condição de precarização existencial ge-
rada pela violência estrutural que impossibilita a construção de projetos
de vida e futuro (SCHERER, 2018).
A análise presente nas linhas que se seguem dá viabilidade para o
fenômeno do juvenicídio como uma expressão da questão social, enquan-

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to resultado trágico das violações de direitos que vem atingindo grande
parte a juventude brasileira. Desta forma, evidencia-se a necessidade de
relacionar o tema do juvenicídio com políticas públicas, uma vez que,
como será debatido nos capítulos que seguem, a falta de proteção social
se constitui como um dos elementos propulsores da mortalidade juvenil.
Tal dado já é demonstrado em diversos estudos, dentre eles destaca-se
a Nota Técnica Indicadores Multidimensionais de Educação e Homi-
cídios nos Territórios Focalizados pelo Pacto Nacional pela Redução de
Homicídios (IPEA, 2016), onde demonstra-se que para cada 1% a mais
de jovens entre 15 e 17 anos nas escolas, há uma diminuição de 2% na
taxa de assassinatos. A análise dos territórios que concentram os maiores
índices de mortalidade juvenil é reveladora para compreender a dinâmica
dos processos sociais que se estabelecem de forma geográfica, típicas da
divisão capitalista do espaço, nos termos de Harvey (2005).
O presente livro, ao abordar a tríade juvenicídio, território e política
pública, busca uma análise densa dos diversos aspectos que se relacionam
a mortalidade juvenil por homicídios, compreendendo esse fenômeno
como pluridimensional, que se configura a partir de relações sociais e de
sociabilidade que tem a desigualdade social como eixo central. Eviden-
temente, tal análise não pode ser realizada descolada dos processos his-
tóricos que o constituem de modo que o juvenicídio no Brasil pode ser
compreendido como um constructo social fundado na processualidade
histórica da sociedade brasileira.
Do ponto de vista histórico tem-se que o capitalismo brasileiro
se consolidou por meio de um processo constitutivo que guarda mar-
cas profundas ligadas ao seu passado colonial, enquanto uma colônia de
exploração, reabsorvendo e redefinindo as desigualdades presentes nas
relações raciais do passado escravista por meio do advento do trabalho
“livre” e de novas condições sócio-históricas (FERNANDES, 2008). O
desenvolvimento do capitalismo no Brasil se deu mantendo os “elemen-
tos arcaicos” (FERNANDES, 2008), consolidando reformas na perspec-
tiva que tornassem inalteradas a dinâmica da desigualdade social histó-
rica e mantendo a dependência com países de capitalismo central. As
mudanças para a implantação do capitalismo brasileiro foram feitas “pelo
alto”, com pouca participação popular em suas decisões (IAMAMOTO,

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2007). Nos termos de Gramsci (2005), vivenciou-se no Brasil uma “re-
volução passiva”, onde a hegemonia se adianta em qualquer movimento
contra-hegemônico, desenvolvendo reformas na perspectiva de garantir
a manutenção do poder.
Em uma síntese dialética entre o arcaico e o novo, o Brasil constrói
a sua história mantendo intacta a dinâmica da desigualdade social, sendo
que a lógica genocida do passado se reapresenta no presente com novas
roupagens, mas mantém a perspectiva da reificação da vida humana para
as classes subalternas. Com o desenvolvimento das forças produtivas na
realidade brasileira, que mantém intocável os privilégios de uma burguesia
submissa aos desígnios do capital internacional, reforça-se a prerrogativa
dos atributos das coisas em detrimento das relações sociais que as qualifi-
cam (IAMAMOTO, 2007). Reifica-se a vida humana quando esta é trans-
formada em um objeto, sem utilidade, descartado na lógica da produção
mercantil de valores na dinâmica do capital em seu atual momento históri-
co. Tal lógica é fruto das relações sociais pautadas a partir dos interesses do
capital, as quais, possuem particularidades diversas em países de desenvol-
vimento capitalista dependente e periférico, como é caso do Brasil.
Evidentemente, a lógica da descartabilidade da vida humana na
atual sociedade brasileira atinge diversos segmentos sociais, porém, di-
versos dados de pesquisa demonstram que as juventudes se constituem
como os segmentos sociais que vivenciam mais intensamente tais pro-
cessos. Como refere o Atlas da Violência 2021, no Brasil a violência é a
principal causa de morte dos jovens. No ano de 2019, de cada 100 jovens
entre 15 e 19 anos que morreram no país, 39 foram vítimas da violência
letal; sendo que entre aqueles que possuíam de 20 a 24, foram 38 vítimas
de homicídios a cada 100 óbitos e, entre aqueles de 25 a 29 anos, foram
31 (CERQUEIRA et Al., 2021). O mesmo estudo demonstra que dos
45.503 homicídios ocorridos no Brasil em 2019, 51,3% vitimaram jo-
vens entre 15 e 29 anos, isso é 23.327 jovens tiveram suas vidas ceifadas
prematuramente, em uma média de 64 jovens assassinados por dia no
país. Os números de guerra demonstram a barbárie que as juventudes,
especialmente aquelas que possuem morada nos territórios periféricos,
vivenciam em seu cotidiano; sendo essa realidade, na maioria das vezes,
invisibilizada de inúmeras formas.

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A compreensão de juventude que norteia a presente discussão, não
desconsidera, mas visa superar a simples análise etária do segmento ju-
venil. Conforme a Lei n. 12.852, de 5 de agosto de 2013, que institui
o Estatuto da Juventude, são consideradas jovens as pessoas com idade
entre 15 (quinze) e 29 (vinte e nove) anos de idade. Mais do que “pa-
râmetros etários”, fundamentais no que se referem às políticas públicas,
as juventudes se constituem em uma construção social, tecida ao longo
do tempo, que se relaciona a inúmeros elementos que se condensam
na concepção de “juventude”. Importante considerar que as juventudes
se constituem, como expressão da diversidade humana que encontra na
própria relação social, pactuada e construída por cada sociedade, as for-
mas e possibilidades de convivência e de crescimento humano, que as
viabilizam ou as reprimem (CALIARI, 2021).
Savage (2007) destaca que a visibilidade da categoria juventude foi
produto de um processo histórico, resultado de diversas transformações
que a sociedade vivenciou, culminando nas concepções sobre juventudes
que foram desenvolvidas ao longo do século XX. A construção social da
visibilidade da categoria juventude começa a ser instituída na segunda me-
tade desse século, especialmente no pós-guerra, no bojo do desenvolvi-
mento e das transformações do modo de produção capitalista, e se inicia o
processo de construção social da juventude, tendo como elemento central
as mudanças ocorridas no mundo do trabalho (SCHERER, 2017).
Ao abordar o conceito de juventude, é importante salientar a premis-
sa da diversidade, já bastante consolidada nos estudos acerca da temática,
como os de Dayrell (2003) e Sposito (2009), com a defesa de um olhar
para as similaridades encontradas nessa parcela da população e que não
encubram especificidades de classe, gênero e raça/etnia. Isso significa des-
tacar a necessidade de compreender as cadeias de mediações presentes nas
relações sociais tecidas no atual contexto histórico, considerando a cen-
tralidade do debate de luta de classes na análise dos fenômenos ligados a
juventude, mas sem desconsiderar as diversas manifestações juvenis no que
diz respeito a raça/etnia, gênero, diversidade sexual, bem como diversos
elementos que caracterizam esse segmento social (SCHERER, 2020).
No que se refere ao juvenicídio, evidencia-se a necessidade de se
explorar as íntimas mediações desse fenômeno com o racismo estrutural,

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enquanto um dos principais pilares de sustentação do juvenícidio na rea-
lidade brasileira. Como serão evidenciados no livro, os jovens negros vi-
venciam com maior intensidade a dinâmica da violência homicida, sen-
do que o genocídio da juventude negra é categoria recorrente em grande
parte dos estudos sobre o tema. Tais estudos também demonstram a di-
nâmica da descartabilidade da vida humana, que se sustenta no racismo
estrutural e encontra seu amparo e fundamento no neoconservadorismo
neoliberal. Neste sentido, Correia (2020) aponta que à questão social no
Brasil, expressa, de forma inegável, determinações do racismo estrutural
que fundamentam as relações sociais e sustentam a desigualdade socior-
racial. Diante desta realidade, mostra-se fundamental analisar como essa
dinâmica homicida se particulariza em diversos lugares do Brasil, a fim
de compreender com maior densidade as particularidades da dinâmica
homicida em um país com extensões continentais.
A presente obra, portanto, se constitui como resultado de uma in-
vestigação que teve como o objetivo analisar o modo como vem se cons-
tituindo a relação entre os altos índices de mortalidade juvenil e o acesso
das juventudes às políticas públicas no Rio Grande do Sul, a fim de sub-
sidiar ações no âmbito da proteção social para esse segmento. Observa-se
que no estado do Rio Grande do Sul houve aumento na quantidade de
jovens assassinados, apontando o crescimento de 58% referente no in-
tervalo de 10 anos, entre 2006 e 2016. Nesse sentido, aponta-se que em
2006 a taxa de homicídios do Estado estava em 18% e que em 2016 sobe
para 28,6%, quantitativo esse que em números absolutos refere-se a 1983
ocorrências para um total de 3225 homicídios (IPEA/FBSP, 2018). Sendo
assim, o presente estudo procura problematizar a realidade das juventudes
para além dos números anunciados cotidianamente pelos atuais meios de
comunicação, buscado problematizar alguns fatores que incidem nesse
quadro de violações de direitos humanos. Além de levantar quantitati-
vamente os dados acerca da realidade de Porto Alegre/RS, enquanto a
cidade escolhida como amostra para esse estudo. No que se refere às mor-
tes por homicídios das juventudes, busca-se analisar a sua trajetória no
âmbito das políticas públicas, bem como, valorizar a análise da realidade
da violência homicida pelos jovens e familiares que a vivenciam nos terri-
tórios com os maiores índices de mortalidade juvenil na cidade.

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O estudo que dá origem ao presente livro tem o intuito de con-
tribuir para a qualificação de políticas públicas que possam materializar
o papel de uma proteção social efetiva para as juventudes, na busca pela
garantia do maior de todos os direitos: o direito à vida! A cidade de
Porto Alegre foi escolhida para a realização desse estudo por ser a capital
do Estado e por ter um dos mais altos índices de mortalidade juvenil do
Rio Grande do Sul. Desta forma, apesar desse recorte, a presente pesqui-
sa visa contribuir com o debate acerca da mortalidade juvenil em todo
o Rio Grande do Sul, bem como, para o debate sobre o juvenicídio na
realidade brasileira, uma vez que, apesar de particularidades locais, obser-
vam-se tendências comuns nos estudos acerca do tema.
O livro que o leitor tem em mãos é fruto de um movimento co-
letivo, escrito por diversas mãos, por meio de um esforço conjunto de
pessoas que buscaram, ao longo de três anos, investigar o fenômeno do
juvenícidio por meio de um cuidadoso e complexo processo de pesquisa.
A investigação foi desenvolvida a partir de uma articulação entre o Gru-
po de Estudos em Juventudes e Políticas Públicas – GEJUP, vinculado ao
Programa de Pós-graduação em Política Social e Serviço Social da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e a Frente de Enfren-
tamento Mortalidade Juvenil em Porto Alegre – FEMJUV; unindo esforços
entre universidade e movimentos sociais, na perspectiva da construção
de um saber com o intuito de incidir na garantia à vida das juventudes.
O GEJUP/UFRGS se constitui como um dos espaços de produção de
conhecimento dedicado à discussão e produção científica acerca de di-
versos debates relacionados às juventudes, em especial, no que tange a
análise das expressões da questão social que esse segmento social vivencia
e as políticas públicas voltadas para esse público. Tendo como perspectiva
de análise o método dialético-crítico, o referido grupo de pesquisa busca
compreender em profundidade os fenômenos vivenciados por essas ju-
ventudes e como, esses jovens, são impactados pela lógica de produção
e reprodução do capital, em especial, a partir dos avanços neoliberais e
neoconservadores que trazem consigo rebatimentos particulares para esse
segmento social, não só no Brasil, mas em toda América Latina.
A Frente de Enfrentamento à Mortalidade Juvenil em Porto Alegre/
RS – FEMJUV configura-se como uma rede de profissionais vinculados

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às políticas públicas ligadas a Assistência Social, a Saúde, ao Atendimento
Sociojurídico, a Previdência Social e a Educação, bem como ao trabalho
desenvolvido junto aos movimentos sociais, aos grupos juvenis, a outros
grupos de pesquisa, dentre outros. Nesse sentido, constitui-se enquanto
um espaço de articulação entre a sociedade civil e o poder público para
pensar de maneira coletiva, propostas que possam realizar o enfrentamen-
to à mortalidade juvenil no município de Porto Alegre, desde agosto de
2016. A presente Frente tem por objetivo dar visibilidade à mortalidade
de jovens na cidade de Porto Alegre, bem como propor ações que consi-
gam fazer o enfrentamento a essa realidade. Os participantes da frente re-
latam diversas formas de violação de direitos que as juventudes vivenciam
em seu cotidiano, bem como, um intenso processo de mortalidade juvenil
que, muitas vezes, passam despercebidos diante da opinião pública.
Desse modo, um dos eixos centrais de atuação da Frente de Enfren-
tamento à Mortalidade Juvenil em Porto Alegre é justamente voltar-se à
visibilidade destes jovens não como sujeitos perigosos, mas sim como
sujeitos de direitos que vêm sendo atingidos brutalmente pela violência
estrutural. Para, além disso, tem também por objetivo pensar de maneira
coletiva propostas que possam realizar o enfrentamento à mortalidade
juvenil no município a partir de seminários, conferências, espaços de for-
mação e qualificação profissional, pesquisas, produção de conhecimento,
sugestões às políticas públicas de juventude, entre outros.
A proposta da investigação nasce por meio do diálogo coletivo en-
tre GEJUP e FEMJUV, na construção de um projeto de pesquisa que
pudesse trazer respostas na perspectiva de subsidiar políticas públicas de
enfrentamento a mortalidade juvenil. A investigação foi possível de ser
realizada por meio do financiamento público mobilizado por meio do
edital ARD/2019 da Fundação de Amparo à Pesquisa no Rio Grande do
Sul – FAPERGS que possibilitou os aportes1 para a execução do estudo,
bem como para que o presente livro pudesse chegar às mãos do público
de forma gratuita.

1 Importante ressaltar que a presente investigação também contou com os aportes da


Bolsa Produtividade em Pesquisa (PQ) do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq/MCTI) por meio da concessão voltada para o coorde-
nador do estudo Prof. Dr. Giovane Antonio Scherer.

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A pesquisa que dá origem ao presente livro foi constituída por
meio de três etapas, buscando responder aos objetivos específicos elenca-
dos para o presente estudo, através de uma investigação de enfoque misto,
que considera dados quantitativos e qualitativos ao longo do estudo. O
enfoque misto, para Prates (2012) mostra-se como apropriado para co-
nhecer e subsidiar políticas públicas que contemplem contingentes po-
pulacionais mais amplos, tendo mostrado vigor e qualidade científica.
A primeira etapa do presente estudo buscou aprofundar o tema,
bem como encaminhar o presente projeto para a avaliação junto à Co-
missão Científica – COMPESQ do Instituto de Psicologia da Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, na perspectiva de garantir
a cientificidade da investigação. Nessa etapa, também o estudo obteve
aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS e do Comitê
de Ética em Pesquisa da Secretaria de Saúde da Prefeitura Municipal de
Porto Alegre. Ressalta-se que a investigação, ao longo de todas as suas
etapas e divulgação de seus resultados observou com atenção as orienta-
ções e normativas éticas em vigência no país, com especial destaque para
a Resolução n. 510/2016 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa
– CONEP. Portanto, a ética na pesquisa se constituiu em elemento trans-
versal em todo o desenvolvimento do estudo, estando sempre pautado na
observância de todos os direitos dos participantes da pesquisa.
Nessa etapa da investigação, com as aprovações éticas necessárias
para o andamento do estudo, buscou realizar uma análise dos dados de
mortalidade juvenil no Brasil e no Rio Grande do Sul. Para a sua realiza-
ção foram incluídos intencionalmente na investigação dados públicos e já
publicados por institutos de pesquisa como: Instituto de Pesquisa Econô-
mica Aplicada – IPEA, Fórum Brasileiro de Segurança Pública e demais
dados públicos acerca dos monitoramentos acerca da violência letal em
território nacional. Na perspectiva de compreender com maior profun-
didade acerca das particularidades da dinâmica do juvenicídio na cidade
de Porto Alegre/RS foi realizada análise documental dos dados brutos do
Sistema de Informação de Mortalidade – SIM. A pesquisa documental se
constitui no levantamento e análise de dados advindos de documentos de
fontes primárias, isto é, todos os materiais ainda não elaborados, escritos

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ou não, que pode servir como fonte de informação para a pesquisa cien-
tífica (MARCONI e LAKATOS, 2001). O Sistema de Informação Sobre
Mortalidade – SIM desenvolvido pelo Ministério da Saúde, em 1975,
é produto da unificação de mais de quarenta modelos de instrumentos
utilizados, ao longo dos anos, para coletar dados sobre mortalidade no
país. Possui variáveis que permitem, a partir da causa mortis atestada pelo
médico, construir indicadores e processar análises epidemiológicas que
contribuam para a eficiência da gestão em saúde (BRASIL, 2017).
No âmbito desse sistema, após a aprovação ética, foi realizada
análise dos dados específicos de mortalidade juvenil, dos jovens de 12
até 29 anos, vitimizados na cidade de Porto Alegre nos anos de 2015 a
2019. Buscou-se realizar diversos cruzamentos de dados, com o instituto
de perceber com mais profundidade como vem se constituindo o fenô-
meno da mortalidade juvenil (perfil dos jovens mortos, territórios onde
ocorreram as mortalidades, principais causas, entre outros). A opção pela
análise de adolescentes a partir dos 12 anos de idade se constitui em uma
demanda dos participantes da Frente de Enfrentamento a Mortalidade
Juvenil, uma vez que a experiência profissional de muito membros indi-
cava a observância que a dinâmica do juvenicídio vem atingindo cada vez
mais cedo as trajetórias de vida, também, na adolescência.
A partir dos dados tabulados pelo Sistema de Informação de Mor-
talidade – SIM, foi possível construir uma Cartografia da mortalidade
juvenil em Porto Alegre, levantando dados sobre a situação dos territó-
rios mais particularmente afetados pela mortalidade juvenil. Como lócus
dessa prática cartográfica, foram selecionados os três bairros da cidade
com os maiores índices de mortalidade juvenil. Desta forma, buscou-se
mapear os territórios com maiores incidências de mortalidade, a fim de
construir um mapa das dinâmicas homicidas e de compreender como
vem se constituindo o acesso às políticas públicas nos territórios de maior
incidência de mortes de adolescentes e jovens. Nesse sentido, a cartogra-
fia é compreendida como valiosa ferramenta de investigação, exatamente
por abarcar a complexidade que envolve se investigar o coletivo de forças
em cada situação, sendo mais do que procedimentos metodológicos deli-
mitados, mas um modo de conceber a pesquisa e o encontro do pesquisa-
dor com seu campo (ROMAGNOLI, 2009). A prática cartográfica é uti-

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lizada no âmbito desta pesquisa como forma de apreender os territórios
onde ocorreram os homicídios de jovens, compreendendo a dinâmica
territorial como espaço vivo onde são tecidas as relações sociais.
Para que fosse possível a prática cartográfica, além da análise dos
dados de mortalidade juvenil, o estudo buscou coletar dados históricos
da construção dos territórios, informações geográficas, dados acerca de
políticas públicas disponíveis nas localidades e sua forma de acesso, bem
como, contou com contribuições de relatos orais de moradores. A pri-
meira etapa da pesquisa, nesse sentido, buscou identificar o perfil, a dinâ-
mica da mortalidade e a constituição dos territórios onde ocorrem as si-
tuações de mortalidade, tendo como referência a cidade de Porto Alegre.
A segunda etapa da pesquisa buscou analisar as trajetórias de jovens
vítimas de homicídios na cidade de Porto Alegre no âmbito das políticas
públicas de Assistência Social, Educação e Socioeducação (no que se refe-
re ao cumprimento de medida socioeducativa), por meio de uma análise
documental nos registros de tais políticas. Para a realização dessa etapa
foram selecionados, de forma aleatória, seis jovens vítimas de homicídios
no ano de 2018 nas três regiões mais afetadas pela mortalidade juvenil
na cidade de Porto Alegre (somando 18 jovens). Tais informações foram
coletadas por meio dos dados fornecidos pela Secretaria de Saúde e pre-
sente nos bancos de dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade
– SIM. Com base nos dados pessoais das 18 jovens assassinados, foi rea-
lizada a análise documental nos registros das políticas públicas no âmbito
dos serviços da rede de Assistência Social, Educação, Conselho Tutelar
e Socioeducação; objetivando levantar informações acerca das trajetórias
desses jovens no âmbito dessas políticas públicas, com o intuito de anali-
sar os acessos e as lacunas no âmbito da proteção social juvenil.
Foram analisados prontuários e demais documentos dos jovens e
de seus familiares junto a Fundação de Assistência Social e Cidadania
de Porto Alegre, Secretaria Municipal de Educação, Secretaria Estadual
de Educação, Conselho Tutelar e Fundação de Atendimento Socioedu-
cativo do Rio Grande do Sul – FASE, a fim de perceber como se deu o
atendimento, ou o não atendimento, desses jovens no âmbito das políti-
cas públicas, bem como identificar elementos de suas trajetórias de vida.
Importante considerar que todas as instituições autorizaram o acesso aos

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seus registros, tendo atentado para as questões éticas no que diz respeito
ao sigilo dos dados manipulados pela equipe de pesquisa. No âmbito
desta investigação, todos os nomes e informações pessoais que possam
identificar os jovens ou seus familiares foram substituídos por nomes
fictícios, buscando atender as normativas da ética em pesquisa e demais
legislações em vigor.
Na terceira e última etapa da investigação foi planejado a realização
de grupos focais com jovens e familiares moradores dos territórios com
maior concentração de índices de mortalidade juvenil na cidade de Porto
Alegre, porém houve a necessidade de alteração na metodologia do estu-
do, devido à necessidade de distanciamento social em razão da pandemia
de COVID-19. Importante considerar que o presente estudo foi desen-
volvido durante essa pandemia, o que colocou inúmeros desafios para a
equipe de pesquisa, não somente nessa etapa, mas em todo o desenvol-
vimento do estudo, tornando mais complexa a sua execução. O estudo
teve inicio no final de 2019, sendo desenvolvido no momento em que
os índices de contaminação estavam mais elevados; o que demandou a
prorrogação do cronograma da investigação. A pandemia de COVID-19
impactou as juventudes de inúmeras formas, além do impacto em sua
saúde física, o vírus aprofundou questões relacionadas à histórica desi-
gualdade social vivenciada por esse segmento social.
No que se refere à coleta de dados da investigação, sua principal al-
teração metodológica se deu na forma da coleta de dados dos relatos orais
da juventude e de seus familiares na perspectiva da compreensão desses
sujeitos acerca da realidade do juvenicídio nos territórios. Os grupos focais
previstos não foram efetivados, sendo realizadas entrevistas semiestruturadas
on-line com jovens e familiares nos territórios com maior índice de morta-
lidade juvenil na cidade de Porto Alegre, bem como com os profissionais
da rede assistencial das três regiões com maiores incidência nos índices de
mortalidade juvenil, visando analisar a sua percepção a respeito da violên-
cia letal. A entrevista semiestruturada pode congregar perguntas abertas e
fechadas, abrindo possibilidades ao sujeito entrevistado para que pense e
fale sobre o tema em questão sem que o mesmo fique preso somente à per-
gunta formulada pelo pesquisador, além de ser um procedimento utilizado
para construir informações sobre determinado objeto (MINAYO, 2002).

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A fim de tornar exequível a realização da entrevista on-line com mo-
radores dos territórios com maiores índices de mortalidade juvenil, reali-
zou-se articulações com instituições da rede socioassistencial que estavam
realizando atendendo presencialmente aos moradores das localidades. Tal
articulação mostrou-se necessária diante das dificuldades de conectividade
que grande parte da população vivencia, o que inviabilizaria qualquer tipo
de coleta on-line, devido à falta de acesso a equipamentos e a internet.
Foram convidados para participar do estudo, somente, usuários desses ser-
viços que estavam em atendimento presencial, isso é: nenhum participante
será deslocado do seu local de moradia para participar do estudo, sendo
convidado para participar da pesquisa após o atendimento no serviço.
Nesse sentido, as instituições parceiras participaram de reuniões
com a equipe de investigação, onde foram explicitados os objetivos do
estudo, cuidados éticos e planejamento para a coleta de dados, assinando
um termo de autorização institucional para a realização da pesquisa. Res-
salta-se que o objetivo da investigação não era a análise do serviço, mas
sim, as vivências da população com relação ao território e sua experiência
com relação ao tema do juvenicídio. As instituições se comprometeram
a participar do estudo, convidando os usuários dos serviços para parti-
ciparem da pesquisa após o atendimento realizado, sendo que se o par-
ticipante se interessasse em participar da pesquisa ele era encaminhado
para uma sala com um computador com conexão de internet, onde se
encontrava virtualmente com um membro da equipe de pesquisa. As
instituições se comprometeram a reservar uma sala que tivesse condições
de manter o sigilo na investigação, sem nenhuma outra pessoa presente
no recinto e com condições mínimas de isolamento acústico. Todos os
trabalhadores e usuários tomaram todos os cuidados sanitários necessá-
rios para evitar a contaminação em um contexto pandêmico.
Diante desse contexto, ao longo do estudo, foram entrevistadas vin-
te e três (23) participantes que contribuíram com seus relatos orais para
uma compreensão mais aprofundada acerca da realidade do juvenicídio
na cidade de Porto Alegre. Compuseram esse grupo nove (9) trabalhado-
res de políticas públicas que atuam nos territórios com maiores índices e
mortalidade juvenil na cidade de Porto Alegre; três (3) responsáveis por
jovens que residem em cada um dos territórios investigados e dez (10) jo-

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vens com idades entre 14 e 24 anos moradores dos territórios com maio-
res índices de mortalidade juvenil. Ao longo do presente livro as juventu-
des participantes das entrevistas serão identificadas por um nome fictício,
sendo escolhido2 pelos participantes do estudo no momento da entrevis-
ta. Os demais participantes serão identificados pelos termos “familiar” ou
“profissional”, seguindo do número de identificação da entrevista.
A presente investigação utilizou a Análise de Conteúdo para inter-
pretar os dados coletados. Esta técnica visa obter, por procedimentos
sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indi-
cadores que permitem a interferência de conhecimentos relativos às con-
dições de produção/recepção destas mensagens (BARDIN, 1977, p. 42).
Esta técnica, segundo Triviños (1995) pode ser utilizada para desvendar
ideologias que podem existir nos dispositivos legais, princípios e dire-
trizes, que, à simples vista, não se apresentam com a devida nitidez. Por
meio desses procedimentos metodológicos buscou-se analisar como vem
se constituindo o fenômeno da mortalidade de adolescentes e jovens, na
perspectiva de contribuir tanto no âmbito das políticas públicas quanto
nos debates realizados junto à sociedade.
As páginas que seguem procuram sistematizar os resultados do pre-
sente estudo, contando com a contribuição de pesquisadores de diversas
áreas do saber, bem como trabalhadores de políticas públicas e militantes
na área dos direitos das juventudes, em uma perspectiva interdisciplinar
para que seja possível tornar mais nítida a análise do complexo fenômeno
do juvenicídio nos territórios da cidade de Porto Alegre e a forma pela
qual as políticas públicas se articulam na perspectiva da vida das juven-
tudes. Evidentemente, os achados da presente investigação transcendem
essas páginas da presente produção, porém, as linhas que o leitor irá
percorrer possibilitarão os resultados do presente estudo, que reafirmam
a necessidade de amplia formas de proteção social para a necessária ga-
rantia da vida das juventudes. Nesse sentido, as reflexões presentes na

2 Importante considerar que os jovens foram orientados a escolher um nome que


não possa ser identificado por seus amigos e familiares. Essa estratégia é adotada
como uma forma de ampliar a participação dos sujeitos na pesquisa, possibilitando
o seu autorreconhecimento ao ler os resultados do estudo, sem macular o sigilo das
informações coletadas.

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presente produção, além de expressarem os debates estabelecidos junto à
equipe da investigação, dão visibilidade para o acúmulo teórico e corren-
tes epistemológicas a que se filiam os autores.
O capítulo “Seguindo os rastros de sangue: as marcas do juve-
nicídio na realidade brasileira: rebatimentos no Rio Grande do Sul
e na cidade de Porto Alegre” que abre o livro, de autoria de Giovane
Antonio Scherer e Laís Silva Staats, apresenta uma análise dos dados
estatísticos acerca da mortalidade juvenil na realidade brasileira, do es-
tado do Rio Grande do Sul e da cidade de Porto Alegre. Suas reflexões
visam transcender a simples descrição dos dados, buscando estabelecer
mediações teóricas a partir de uma corrente crítica na articulação entre
universalidades e particularidades na análise do fenômeno. Os dados re-
ferentes à cidade de Porto Alegre são aprofundados ao longo do capítulo,
procurando demonstrar as expressões do juvenicídio por meio do apro-
fundamento dos dados tabulados através do Sistema de Informações de
Mortalidade – SIM, buscando problematizar as principais características
das vítimas de juvenicídio na realidade concreta.
Diante de um contexto marcado pelo juvenícidio, as políticas so-
ciais se constituem em elementos essenciais para o enfrentamento a esse
fenômeno, buscando materializar a proteção social das juventudes. Esse
debate é realizado por Maurício da Silva César, Maurício Perondi, Moni-
que Fernandes Silveira e Paula de Fátima Moura dos Santos no segundo
capítulo do presente livro, intitulado “A (difícil) consolidação da Pro-
teção Social Juvenil: políticas públicas de/para/com as juventudes na
realidade contemporânea”, buscando demonstrar a trajetória histórica
de consolidação das políticas públicas para as juventudes no cenário bra-
sileiro, gaúcho e na cidade de Porto Alegre. Além da análise de tais polí-
ticas, o presente capítulo dá visibilidade para os desafios contemporâneos
na constituição da proteção social de/para/com as juventudes.
Os desafios para as políticas públicas passam por sua materializa-
ção na proteção social nos territórios da cidade, compreendidos como
espaços de vida e resistência das juventudes. Nesse sentido, o terceiro
capítulo da obra, intitulado “Produção dos territórios violentados: a
tríade perversa entre gentrificação, favelização e juvenicídio nos terri-
tórios com maiores índices de mortalidade juvenil na cidade de Porto

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Alegre”, de autoria de Ana Patricia Barbosa, Nicole Kunze Rigon, Laura
Barcelos de Valls e de Giovane Antonio Scherer, analisa a construção
histórica dos territórios que concentram maiores índices de mortalidade
juvenil na cidade de Porto Alegre. Por meio da análise sócio-histórica, em
uma perspectiva cartográfica crítica, pretende-se desnaturalizar a concep-
ção de territórios violentos por meio da compreensão das relações dialé-
ticas estabelecidas entre gentrificação e favelização, que contribuem para
o fomento do fenômeno do juvenicídio através de dinâmicas espaciais
pensadas para a acumulação de capital e ampliação de desigualdades. A
cidade de Porto Alegre é tomada como lócus de análise, porém os achados
da investigação apontam para tendências presentes nas principais metró-
poles que concentram altos índices de mortalidade juvenil.
Relacionado a esse debate, o quarto capítulo da obra “A (des)pro-
teção juvenil nos territórios com maiores índices de mortalidade em
Porto Alegre” de autoria de Maurício Perondi, Oriana Holsbach Ha-
dler, Ivana Oliveira Giovanaz e Mariana Porto Ruwer de Azambuja visa
aprofundar a análise entre território e políticas sociais, compreendendo
a constituição da proteção social juvenil por meio da análise crítica da
oferta de serviços públicos voltados para as juventudes nas área de As-
sistência Social, Saúde, Educação e Segurança nos territórios analisados
pela presente investigação. A análise aprofunda as contradições, lacunas
e potências das políticas públicas, apontam para a necessária articulação
intersetorial na perspectiva da garantia da proteção social juvenil.
O quinto capítulo “Traços de vida e morte: percorrendo os rastros
juvenis nas políticas públicas”, de autoria de Alex da Silva Vidal, Bruna
Rossi Koerich e Renata Maieron Turcato, tem como mote a análise a traje-
tória juvenil de jovens que foram assassinados em Porto Alegre, por meio
da análise documental de seus registros nas políticas públicas da cidade. O
capítulo reconstrói as trajetórias juvenis por meio dos registros deixados
nas políticas públicas, evidenciando particularidades de suas vidas e mortes,
problematizando elementos de fundamental importância para compreen-
der a dialética da proteção e da desproteção social juvenil, assim como as
potencialidades e lacunas existentes no âmbito das políticas públicas.
O sexto capítulo intitulado “Não tem recursos pra juventude: pre-
carização, fragmentação e ausência de políticas públicas”, de autoria

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de Gisele Ribeiro Seimetz e Cristina Bettio Bragagnolo, procura debater
o contexto da proteção social juvenil por meio da análise dos relatos orais
dos entrevistados na investigação. Suas reflexões apontam para os impactos
do desmantelamento das políticas públicas, incidindo sobre um cenário de
precarização, fragmentação e ausência de políticas públicas para as juven-
tudes e os seus impactos reais nas histórias de vida e morte das juventudes.
Os relatos orais dos participantes da pesquisa apontaram como
fator catalisador do juvenicídio as dinâmicas estabelecidas pelo merca-
do do tráfico de drogas. Nesse sentido, o sétimo capítulo da obra, que
leva o nome “Tráfico de drogas e precarização existencial das juven-
tudes: juvenicídio nas periferias do capital”, escrito por Vanelise de
Paula Aloraldo e Cíntia Florence Nunes, problematiza a dinâmica desse
mercado e o seu impacto para as populações que vivem em territórios
que concentram altos índices de mortalidade juvenil. Por meio da análise
dos relatos orais das juventudes e familiares que residem nos territórios
com maiores índices de mortalidade juvenil na cidade de Porto Alegre,
bem como trabalhadores de políticas públicas, busca-se problematizar as
dinâmicas do mercado de drogas na vida concreta de quem vivencia mais
intensamente o cotidiano da violência homicida.
Assim como o tráfico de drogas, a criminalização da pobreza e a
violência policial foram categorias emergentes na análise dos relatos orais
dos participantes do estudo, sendo que esse debate é realizado por Gio-
vane Antonio Scherer no oitavo capítulo da obra, que ganha o título “A
criminalização da pobreza e juvenicídio: a violência do Estado Penal
em uma cojuntura de (des)proteção Social”. O texto procura evidenciar
a presença do Estado Penal nos territórios que vivenciam altos índices de
juvenicídio, e seus impactos em um contexto marcado por violações de di-
reitos. Temas como a violência policial, a guerra às drogas e as concepções
ideológicas punitivistas são abordadas, buscando evidenciar as complexas
teias de relações que são tecidas em territórios marcados pelo juvenicídio.
O nono capítulo da obra evidencia um tema central que, também, se
constituiu enquanto uma categoria emergente na análise dos relatos orais
da pesquisa: o racismo estrutural e sua relação com o juvenicídio. Embo-
ra sendo elementos transversais em diversos capítulos do livro, é no item
“Racismo estrutural como pilar do juvenicídio: as faces de genocídio

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da juventude negra”, escrito por Giovane Antonio Scherer e David Con-
ceição Mantalof, que o tema é evidenciado com centralidade, compreen-
dendo tanto dimensões sócio-históricas como suas expressões cotidianas.
Valorizando os relatos orais coletados pela investigação, o capítulo procura
demonstrar as múltiplas manifestações do racismo estrutural nas trajetórias
das juventudes e dos demais entrevistados na investigação, procurando evi-
denciar as nítidas mediações entre racismo e juvenicídio.
O décimo capítulo, que encera a produção, intitulado “Frente de
Enfrentamento à Mortalidade Juvenil: sociedade civil, políticas pú-
blicas e respostas coletivas”, assinado pelos militantes desse movimento
social: David Petar da Conceição Mantalof, Maria Fernanda Landim,
Joice Lopes da Silva e Maurício Perondi aborda o histórico de construção
da FEMJUV, bem como apresenta elementos reflexivos sobre a impor-
tância da luta coletiva contra a dinâmica da mortalidade juvenil. Além
de trazer reflexões que se referem tanto à necessária atuação da sociedade
civil no que se refere à luta pela proteção social juvenil, também, apre-
senta reflexões acerca do protagonismo juvenil, as formas de participação
e as resistências desenvolvidas pelos jovens.
O livro Juvenicídio, Território e Políticas Públicas: rastros de sangue na
cidade de Porto Alegre se constitui como uma síntese de um complexo movi-
mento de investigação que buscou analisar o movimento do real, na pers-
pectiva de evidenciar as múltiplas faces do juvenicídio, especialmente no
que diz respeito o seu fomento diante de um cenário em que as violações de
direitos se intensificam. Perseguir os “rastros de sangue” deixados pela dinâ-
mica do juvenicídio se constitui em um movimento analítico na perspectiva
de fazer enfrentamento a cortina de fumaça ideológica que naturaliza tais
mortes e abre possibilidades diversas para formas destrutivas de proteção
social por meio dos perversos discursos neoliberais e neoconservadores, que
servem, unicamente, para encharcar de sangue jovem o solo das periferias
brasileiras em nome do acúmulo de capital. Mais do que uma produção
teórica, o livro procura se constituir como um instrumento de luta para a
garantia do direito à vida de todas as juventudes. Boa leitura (e boa luta).

Giovane Antonio Scherer


Organizador

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Referências
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Seguindo os Rastros de Sangue: as marcas do juvenicídio
na realidade brasileira e seus rebatimentos
no Rio Grande do Sul e na cidade de Porto Alegre

Giovane Antonio Scherer


Laís Silva Staats

A violência letal no Brasil vem sendo evidenciada há décadas em


diversas pesquisas, noticiários, jornais, registros de órgãos públicos etc.
Segundo Muggah e Pellegrino (2020), o país apresenta mais registros
de mortes do que todos os ataques terroristas entre os anos de 1997 e
2018 em todo o mundo. Muggah e Pellegrino (2020, p. 13) referem
que o Brasil é um dos países que mais mata seus adolescentes e jovens,
sendo o país que “registra a segunda maior carga mundial de violência
homicida no mundo entre jovens”. Os homicídios registrados ao lon-
go dos anos são algumas das diversas características que evidenciam a
desproteção social a que estão expostos alguns segmentos sociais na
sociedade. As juventudes brasileiras, sendo um desses segmentos, são
diariamente vitimadas por homicídios, e demonstram o aumento ex-
pressivo a cada ano (WAISELFISZ, 2016; CERQUEIRA, 2018; 2019;
MUGGAH e PELLEGRINO, 2020).
No município de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul,
tal realidade também é constatada. Nesse sentido, seguir os “rastros
de sangue” significa investigar a realidade da dinâmica homicida que
vem vitimando as juventudes para além de discursos simplistas, redu-
cionistas e neoconservadores, que acarretam o ocultamento do real e
dificultam, ainda mais a análise de um fenômeno complexo. O objetivo
do presente capítulo é dar visibilidade as “faces ocultas” das vítimas
de juvenicídio, buscando identificar aspectos que possam evidenciar as
principais características dos adolescentes e jovens assassinados. Serão
debatidos dados de homicídio na realidade brasileira e no Estado do
Rio Grande do Sul, com ênfase na análise do município de Porto Ale-
gre, entre os anos de 2015 e 2018. Para o alcance do presente objetivo

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foi realizada a análise documental dos registros do Sistema de Informa-
ção sobre Mortalidade (SIM)1.
Nesse sentido, serão apresentados no presente capítulo informa-
ções referentes à mortalidade juvenil no Brasil e no Estado do Rio Gran-
de do Sul, bem como as características da dinâmica da mortalidade dos
adolescentes e jovens no município de Porto Alegre. Assim, está organi-
zado em um primeiro título introdutório; o segundo, demonstra os da-
dos nacionais referentes à mortalidade juvenil; o terceiro, expõe os dados
analisados do SIM referente à mortalidade de adolescentes e jovens em
Porto Alegre; e o quarto, sendo as considerações finais, retoma alguns
pontos desenvolvidos, apontando para a desproteção social vivenciada
pelas juventudes e para a necessidade da efetivação de políticas públicas
de proteção.

A violência letal contra adolescentes e jovens no Brasil

Não é por acaso que as vidas de adolescentes e jovens vêm sendo


interrompidas. A formação sócio-histórica do Brasil é marcada por der-
ramamento de sangue dos indígenas, negros e negras, ao longo de quase
quatrocentos anos de colonização e escravização. A violência contra esses
segmentos sociais é perpetuada atualmente com roupagens variadas que
condenam à morte, ao esquecimento, ao encarceramento. São seleciona-
dos por um sistema punitivo e vivenciam a violência estrutural de forma
perversa cotidianamente.
O estudo Global Study On Homicide: Understanding homicide -
typologies, demographic factors, mechanisms and contributors2, organiza-
do em 2019 pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime

1 “O Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), desenvolvido pelo Ministério


da Saúde, em 1975, é produto da unificação de mais de quarenta modelos de instru-
mentos utilizados, ao longo dos anos, para coletar dados sobre mortalidade no país.
Possui variáveis que permitem, a partir da causa mortis atestada pelo médico, construir
indicadores e processar análises epidemiológicas que contribuam para a eficiência da
gestão em saúde” (BRASIL, 2017a).
2 Esse estudo aponta dados sobre mortes violentas intencionais, conceituando-as como
aquelas mortes que apresentam as seguintes características: relacionadas ao crime (“related
to criminal activities”), interpessoais (“interpersonal”) e sócio-políticas (“sociopolitical”).

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(UNODC), coloca o Brasil entre os países com maiores índices de homi-
cídios do mundo, destacando que, embora o país esteja experimentando
uma redução considerável em sua população juvenil, em termos demo-
gráficos nos últimos anos, a taxa de homicídios não tem seguido a mesma
tendência de declínio entre essa população, mas em vez disso aumentou
consideravelmente nas últimas décadas (UNODC, 2019). A faixa etária
é um traço marcante das características das vítimas de violência letal no
Brasil, sendo que a juventude se constitui como segmento social mais
afetado pela violência homicida no Brasil.
No Brasil, há uma média de 64 assassinatos de jovens de 15 a 29
anos por dia. As vítimas de violência letal nessa faixa etária são em sua
maioria homens, representando um total de 93,9% dos homicídios no
país. A violência contra pessoas negras também é alarmante: 34.446 foram
vítimas de homicídio em 2019, com um aumento de 1,6% em compara-
ção a 2018, ao passo que 10.217 não negros foram vitimados, apresentan-
do redução de 33% em relação a 2018. Assim, 77% das pessoas vítimas
de homicídio no Brasil eram negras, sendo a chance de uma pessoa negra
ser assassinada 2,6 vezes maior que de uma pessoa não negra (CERQUEI-
RA et AL., 2021). Além disso, houve 6.416 mortes em 2020 decorrentes
de intervenções policiais no Brasil, sendo registradas uma média de 17,6
mortes por dia. Dessas mortes, 98% eram do sexo masculino, aproximada-
mente 79% eram negras e 21% brancas, 44,8% tinham entre 18 e 24 anos
e 24% entre 25 e 29 anos (BUENO, MARQUES e PACHECO, 2021).
As crianças e os adolescentes também são vitimados no Brasil. No
ano de 2020, 6.122 crianças, adolescentes e jovens de 0 a 19 anos foram
vítimas de mortes violentas intencionais, sendo que 91% delas tinham
entre 15 a 19 anos. Entre 10 e 14 anos, 77% das vítimas eram do sexo
masculino e 74% eram negras; e entre 15 a 19 anos, 90% eram do sexo
masculino e 80% eram negras. O tipo de crime mais cometido foi o ho-
micídio doloso: entre 0 a 4 anos, 91%; 5 a 9 anos, 88%; 10 a 14 anos,
89%; e 15 a 19 anos, 82%. O instrumento mais utilizado foi a arma de
fogo nas faixas etárias compreendidas entre 10 e 14 anos, com 68%; e 15
a 19 anos, com 85% (REINACH, 2021).
O encarceramento também é uma realidade para jovens brasileiros.
Em 2020, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2021),

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753.966 pessoas estavam presas no Brasil, sendo 76,1% em regimes fe-
chado e provisório e 17,4% em regime semiaberto em junho de 2020.
Eram 716.967 pessoas do sexo masculino e 39.999 do sexo feminino. A
maioria das pessoas era negra, representando 66,3% da população apri-
sionada. Além disso, 48,6% da população do sistema penitenciário era
jovem com idade entre 18 a 29 anos.
O Levantamento Anual do Sinase 2017 (BRASIL, 2019) aponta
para uma realidade similar. Quanto a faixa etária em 2017: 388 dos ado-
lescentes e jovens tinham entre 12 e 13 anos; 2.931, entre 14 a 15 anos;
12.857, entre 16 a 17 anos; e 6.767, entre 18 a 21 anos (BRASIL, 2019,
p. 38). Os dados referentes à raça/etnia nos anos de 2014 a 2016 eram:
branca, 17.558; preta, 9.939; amarela, 623; parda, 36.270; indígena,
403; e sem informação, 13.953. Os atos infracionais de maior incidência
na medida de restrição e privação de liberdade são: homicídio qualifica-
do, 696; homicídio, 1.074; roubo, 3.045; tráfico e associação ao tráfico
de drogas, 3.601; roubo qualificado, 4.504 (BRASIL, 2019, p. 51).
De maneira geral, historicamente o Brasil tem assassinado adoles-
centes e jovens do sexo masculino negros, apresentando forte seletivi-
dade. As vidas dessas pessoas são “matadas” objetiva e simbolicamente,
seja pelo assassinato, seja pelo encarceramento. Com o direito à vida
violado, não apenas no momento de suas mortes como também durante
o percurso de suas vidas, esse segmento social encontra-se em extrema
desproteção social, necessitando olhar atento e ações efetivas e protetivas
desde suas infâncias.
No modo de produção capitalista, contudo, torna-se inviável a
efetivação da proteção da população, ainda mais na realidade brasileira
caracterizada pela sua dependência aos países centrais. O racismo estru-
tural evidenciado pela seletividade é extremamente funcional ao capital
e potencializa mecanismos violentos de controle sobre a classe trabalha-
dora e, principalmente, a população negra desde o processo de transição
da escravização para o capitalismo dependente. A implantação do capi-
talismo dependente no Brasil foi marcada por uma inclusão excludente
das pessoas negras do mercado de trabalho livre, respondendo a lógica
capitalista que necessitava dos “sobrantes”.

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[...] O trabalhador nacional descendente de africanos seria margi-
nalizado e estigmatizado. [...] O negro, ex-escravo, é atirado como
sobra na periferia do trabalho livre, o racismo é remanipulado
criando mecanismos de barragem para o negro em todos os níveis
da sociedade, e o modelo de capitalismo dependente é implanta-
do [...] (MOURA, 1992, p. 62).

Ferrugem (2018, p. 62) refere, nesse sentido, que “[...] os negros,


outrora escravizados e após a abolição, marginalizados e miseráveis, ain-
da hoje são o maior contingente dos presídios, dos subempregos e das
favelas”. Os dados nacionais apresentados no início desse capítulo expli-
citam, portanto, cicatrizes históricas do Brasil geradas pela violência e
extermínio de segmentos selecionados da classe trabalhadora.
A vida dos jovens negros no país é violada tanto pelos homicídios,
quanto pelo encarceramento. Vidas entendidas como descartáveis a par-
tir do momento em que nascem. A visibilidade da interrupção dessas
vidas se dá pelos números estatísticos dos diversos estudos ora apresenta-
dos; entretanto, o seu descarte começa desde cedo, quando direitos hu-
manos e fundamentais são violados pelo próprio Estado, ao não garantir
condições materiais e imateriais de vida.
Ao identificar as características dos segmentos sociais mais afetados
pela violência letal, cria-se a possibilidade de formulação de estratégias
para a prevenção e garantia da vida das juventudes brasileiras. Nesse sen-
tido, compreender as particularidades da dinâmica homicida nas diferen-
tes regiões do país é fundamental.

O juvenicídio no Rio Grande do Sul:


considerações acerca dos dados de mortalidade no Estado

A formação do Rio Grande do Sul (RS), estado da região sul do
Brasil, é marcada pela forte imigração de europeus e também pela escra-
vização da população negra. No item 3 desse capítulo, que explicita os
dados de mortalidade em Porto Alegre/RS, é possível perceber que a mor-
talidade juvenil vitimiza os jovens negros mais do que os jovens brancos,
mesmo que a população branca seja numericamente maior que a popu-
lação negra nesse município. Analisar os dados de mortalidade juvenil no

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Rio Grande do Sul e em Porto Alegre exige, portanto, contextualizar as
relações estabelecidas ao longo da história, quais sejam o racismo, classis-
mo etc., que tudo tem a ver com a formação do referido Estado.
No Rio Grande do Sul, os dados referentes à dinâmica da violência
letal apontam para a elevada mortalidade juvenil. Entre 2006 e 2016 hou-
ve um crescimento de 58% nas taxas de homicídio, sendo que em 2006
foram registrados 1.983 homicídios e, em 2016, 3.225 (CERQUEIRA,
2018). A mortalidade de jovens também apresenta um crescimento que
chega a 64%, sendo que em 2006 foram assassinados 908 jovens e, em
2016, 1.608 jovens. Já em 2018 o Estado apresentou uma taxa de 50,8
homicídios de jovens de 15 a 29 anos por grupo de 100 mil. Considerando
o recorte de homens jovens vitimados em 2018 a taxa, por grupos de 100
mil, foi de 91,9. Em se tratando da vitimização de negros, em 2018 no RS,
a taxa de homicídios de negros e não negros por 100 mil habitantes era,
respectivamente, de 28,4 e 22,2 (CERQUEIRA e BUENO, 2020).
O |relatório Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência (BRA-
SIL, 2017b, p. 49) criou “um indicador sintético que classifica municí-
pios com mais de 100 mil habitantes a partir de uma série de variáveis
mobilizadas na explicação da associação e envolvimento de jovens com
a violência”. Dezessete municípios do Rio Grande do Sul foram analisa-
dos, sendo classificados3 como média vulnerabilidade os municípios que
apresentaram os seguintes índices: Alvorada (0,427), Viamão (0,419),
Pelotas (0,378) e São Leopoldo (0,373). Já os índices dessa vulnerabili-
dade nos municípios cuja vulnerabilidade foi classificada como média-
-baixa foram: Rio Grande (0,364), Novo Hamburgo (0,362), Sapucaia
do Sul (0,339), Passo Fundo (0,338), Santa Maria (0,335), Porto Ale-
gre (0,333), Uruguaiana (0,327) e Canoas (0,309). Já o dos municípios
com baixa vulnerabilidade foram: Gravataí (0,299), Bento Gonçalves
(0,290), Cachoeirinha (0,288), Erechim (0,281), Bagé (0,265), Caxias
do Sul (0,243) e Santa Cruz do Sul (0,217).
Corroborando esses dados, Lima, Bueno e Alcadipani (2021) refe-
rem que os municípios do RS com mais de 100 mil habitantes que apre-

3 O Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência classifica os municípios em cinco


categorias: baixa (até 0,300), Média-baixa (Mais de 0,300 a 0,370), Média (Mais de
0,370 a 0,450), alta (Mais de 0,450 a 0,500) e Muito alta (Mais de 0,500).

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sentam taxa de mortes violentas intencionais4 superior à taxa nacional
(23,6/100 mil habitantes) são Alvorada e Viamão (53/100 mil habitantes
e 36,3/100 mil habitantes, respectivamente). Esse dado permite perceber
que esses municípios, que já demonstravam maior vulnerabilidade juve-
nil à violência, segundo o relatório de Índice de Vulnerabilidade Juvenil
à Violência (BRASIL, 2017b), continuam apresentando elevados índices
de violência. Lima, Bueno e Alcadipani (2021) também apontam que o
Rio Grande do Sul manteve, de 2019 para 2020, números praticamente
estáveis de mortes violentas intencionais (redução de 0,3%).
Porto Alegre, segundo o relatório Índice de Vulnerabilidade Ju-
venil à Violência, foi classificado com um índice “médio-baixo”. Ainda
assim, muitos jovens são vitimados nesse município, conforme explici-
tado no item 3 desse capítulo, sendo necessário dar maior visibilidade
e atenção a essa questão. A realidade do Estado do Rio Grande do Sul,
portanto, aponta para a violência letal que afeta os adolescentes e jovens
negros, assim como no cenário nacional.
Nesse sentido, cabe ressaltar que as marcas do passado escravocrata
no Rio Grande do Sul contribuem para explicar a violência contra jo-
vens negros. Assumpção (2015) aponta que apesar de muitos quererem
abrandar a violência contra a população negra no Rio Grande do Sul na
época da escravização, é inegável o tratamento violento a que eram sub-
metidos. Isso ainda reflete atualmente no cotidiano da população negra,
quando percebemos a negação do acesso e da garantia de seus direitos, a
violação de suas vidas, através da violência letal e pelo encarceramento,
entre tantas outras maneiras que isso ocorre.
Nesse sentido, a questão da mortalidade juvenil precisa ser explici-
tada a partir dos dados estatísticos e, ao mesmo tempo, compreendendo
os fatores estruturais que permeiam tal realidade. Cabe destacar, por-
tanto, que os dados da realidade nacional brasileira refletem nos dados
da realidade do Estado do Rio Grande do Sul em relação à seletividade
letal, inclusive em seus municípios, cuja ênfase será dada ao município
de Porto Alegre no próximo item.

4 Os autores utilizam como critério de morte violenta intencional a definição de ho-


micídio prevista no Protocolo de Bogotá, a qual inclui todas as mortes causadas por
agressão intencional de outros indivíduos.

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Homicídios de adolescentes e jovens em Porto Alegre
nos anos de 2015 a 2018

A interrupção das vidas dos adolescentes e jovens é pauta de preo-


cupação e mobilização de pesquisadores, trabalhadores de diferentes po-
líticas públicas, adolescentes, jovens e demais pessoas da sociedade civil
do município de Porto Alegre, partícipes do Grupo de Estudos em Ju-
ventudes e Políticas Públicas (GEJUP) e da Frente de Enfrentamento à
Mortalidade Juvenil (FEMJUV), visto que o Rio Grande do Sul apresen-
ta o maior crescimento nas taxas de juvenicídio. Além disso, dados mais
recentes apontam que Porto Alegre está entre as capitais com maiores
taxas de homicídios, sendo a que apresenta maiores taxa de homicídio
do Sul do Brasil, ficando à frente de cidades como Rio de Janeiro/RJ, São
Paulo/SP, São Luís/MA e Vitória/ES (CERQUEIRA, 2019).
Para compreender melhor a dinâmica homicida em Porto Alegre, a
pesquisa documental realizada a partir dos dados do SIM possibilitou com-
preender com mais especificidade as particularidades dos homicídios em
Porto Alegre, adentrando sua dinâmica interna, a partir de cruzamentos de
dados referentes ao perfil dos jovens mortos, territórios onde ocorreram as
mortalidades, principais causas, entre outros. Assim, foram analisados os
dados específicos de mortalidade juvenil, de adolescentes e jovens de 125
até 29 anos, vitimados no município nos anos de 2015 a 2018.
Os dados estão organizados em subtítulos, de maneira que possibi-
lita identificar o perfil das vítimas de homicídio. No item I apresenta-se
quantos adolescentes e jovens e quantas pessoas das demais faixas etárias
foram vítimas de homicídio. No item II, expõe-se as idades dos adolescen-
tes e jovens com maiores índices de mortalidade. No item III, o sexo dos
adolescentes e jovens. No item IV, a raça/cor dos adolescentes e jovens. No
item V, os bairros de residência com maior incidência de homicídios. No
item VI, os locais de ocorrência e os CID Descritivos dos homicídios.

5 Inicialmente a presente investigação pretendia analisar unicamente a dinâmica da mor-


talidade juvenil relacionados aos dados de jovens de 15 até 29 anos; porém, considerou-se
ampliar a análise para adolescentes a partir dos 12 anos, considerando-se os relatos de
profissionais militantes da Frente de Enfrentamento à Mortalidade Juvenil, bem como,
pela análise da dinâmica da vitimização por homicídio tem início cada vez mais precoce.

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Importante considerar que tais informações sobre a dinâmica da
mortalidade de adolescentes e jovens dão visibilidade acerca do fim dessas
vidas e reafirmam a importância e a necessidade de que as histórias de
vida desses adolescentes e jovens sejam contadas na sua integralidade, en-
quanto eram vividas, e reconhecidas pela sociedade como vidas que foram
interrompidas violentamente. Os números não captam as dores e vazios
deixados por uma morte prematura que, não raras as vezes, são associadas a
uma visibilidade perversa, sendo a importância das suas trajetórias de vida
jogada a um segundo plano. Assim, essas histórias são contadas a partir do
seu fim e de registros quantitativos, mas com a constante provocação de
que seja pensado o “durante” dessas vidas interrompidas e das vidas que
ainda estão vivas – mas em situação de risco letal –, e com a proposta de
subsidiar na elaboração de políticas públicas de proteção social.

A mortalidade de adolescentes e jovens nos anos de 2015 a 2018

Os homicídios registrados em Porto Alegre apresentam elevados


índices. Foram 2.794 assassinatos nos quatro anos, sendo os adolescentes
de 12 a 29 anos mais vitimadas do que pessoas das demais faixas etárias,
apresentando 54,5% e 45,5% de homicídios respectivamente.

Gráfico 1 – Homicídios de adolescentes e jovens e demais faixas etárias


nos anos de 2015 a 2018.
57,89%
51,83% 53,63% 53,89%
48,17% 46,37% 46,11%
42,11%

2015 2016 2017 2018


710 homicídios 843 homicídios 688 homicídios 553 homicídios

Adolescentes e Jovens Demais faixas etárias

Fonte: SIM. Elaboração dos autores.

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O pico de homicídios foi observado em 2016 com 843 mortes,
sendo que 57,89% das vítimas eram adolescentes e jovens, com gradual
diminuição até o ano de 2018, com 533 homicídios. Cipriani (2019), ao
analisar a emergência de um ciclo de mortes, refere que esse ano é mar-
cado por uma guerra entre facções com a polarização entre dois grandes
grupos, chamados de “Bala na Cara” e “Antibala”, redimensionando con-
flitos microlocais e englobando os grupos da capital em torno do binô-
mio aliados e contras. Por meio dos atentados e da “caçada aos inimigos”,
as facções ampliaram as vítimas em potencial, inaugurando um ciclo re-
taliatório de violência letal. Já em 2018, a autora aponta o deslocamento
dos conflitos para o interior expandindo também seus territórios, mas
não mais entre essas duas facções: nesse ano os conflitos ocorriam entre
as facções “Bala na Cara” e os “Manos”, sendo essa última a facção mais
antiga de Porto Alegre, com uma característica “pacífica de crime”, mais
voltada para os negócios do que para a guerra. Isso possibilitou que tal
situação em Porto Alegre se acalmasse, inclusive no que diz respeito aos
homicídios nesse ano (ESTUDO, 2020).
Assim, a análise de Cipriani (2019) demonstra as relações do trá-
fico de drogas como um elemento catalizador dos processos de mortali-
dade, tendo uma relação intrínseca com o juvenicídio. Diante do acirra-
mento das condições de vida de toda a população, fruto da dinâmica de
acumulação neoliberal, cresce – especialmente nos territórios violentados
pela lógica do capital, de forma exponencial – um mercado de traba-
lho extremante lucrativo, proporcionando a possibilidade de inserção de
muitos sujeitos no circuito do capital: o tráfico de drogas. Soares (2006,
p. 92) corrobora isso ao afirmar que “[...] o tráfico de armas e drogas é
a dinâmica criminal que mais cresce nas regiões metropolitanas brasilei-
ras, mais organicamente se articula à rede do crime organizado [...]. As
drogas financiam as armas e estas intensificam a violência associada às
práticas criminosas [...]”.
A resposta a esse crescimento, calcado no paradigma da guerra
as drogas, resulta em confrontos bélicos e no aumento significativo do
número de mortes – seja de pessoas envolvidas com o tráfico, policiais,
ou ainda moradores desses territórios, que passaram a sofrer diretamen-
te os efeitos deste confronto (SILVA, FERNANDES e BRAGA, 2008).

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Nesse contexto, o tráfico de drogas se constitui como reflexo perverso
da violência estrutural, que se constitui elemento basilar no processo
de juvenicídio em Porto Alegre, assim como em demais cidades da
América Latina.
As relações com base no tráfico de drogas podem explicar as flu-
tuações com relação à dinâmica da mortalidade, não somente em Porto
Alegre, mas em todo o Brasil. O Mapa da Violência de 2020 refere que
longos períodos de guerra entre facções ocasionam altos custos para
ambos os lados, em termos de letalidade e aquisição de armas e muni-
ção, sendo que a guerra entre grupos criminais se torna inviável eco-
nomicamente por um longo tempo. Esse fato poderia explicar a dimi-
nuição das taxas de homicídio juvenil em Porto Alegre a partir do ano
de 2016, sendo fundamental o alerta do Atlas da Violência 2020, que
a presunção sobre a correlação de forças entre as facções pode mudar
ao longo do tempo, gerando novos incentivos para guerras, sendo que
a trégua entre facções é sempre instável e cíclica, o que pode ocasionar
novos conflitos a qualquer momento. Tal contexto se agrava com uma
política de segurança pública de enfrentamento às drogas altamente
ineficaz, calcadas nos pressupostos de “guerra às drogas”, vem produ-
zindo mais mortalidade e menos perspectiva de proteção social para as
populações que vivenciam precárias condições de vida.

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I – Os homicídios de adolescentes e jovens entre 12 e 29 anos

O elevado número de homicídios de adolescentes e jovens indica


as marcas do juvenicídio na cidade de Porto Alegre, sendo observado um
aumento nos índices a partir dos 15 anos de idade que se intensificam
principalmente a partir dos 16 até os 23 anos de idade, com um agrava-
mento nos índices de mortalidade aos 18 anos.

Gráfico 2 – A faixa etária das vítimas de homicídio nos anos de 2015


a 2018.
60

50

40

30

20

10

0
12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29
anos anos anos anos anos anos anos anos anos anos anos anos anos anos anos anos anos anos
2015 0 2 10 17 16 32 24 33 24 28 31 28 22 21 17 23 22 18
2016 2 3 6 19 37 29 51 40 38 40 45 28 24 29 24 28 20 25
2017 0 0 2 18 27 26 29 21 30 33 25 32 20 19 18 19 29 21
2018 0 0 5 6 12 20 34 25 18 21 21 27 15 15 25 13 19 22

Fonte: SIM. Elaboração dos autores.

Além de o ano de 2016 apresentar o maior índice de homicídios


no município dentre os quatro anos analisados, também foi o ano em
que jovens de 18 anos foram mais assassinados, com 51 homicídios regis-
trados, seguido de jovens de 22 anos, com 45 homicídios. A pesquisa de
Barros et Al. (2019), que procurou investigar os homicídios de jovens na
cidade de Porto Alegre entre os anos 2015 e 2017, ao analisar a série his-
tórica da mortalidade juvenil aponta para uma tendência de redução da

64

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faixa etária da mortalidade juvenil nos últimos anos. Os homicídios entre
15 e 24 anos na cidade de Porto Alegre, em 2006, representavam 34%
do total de vítimas, sendo que em 2016 corresponde a 43,1% do número
total (BARROS et AL., 2019). Observa-se assim, que o juvenicídio vem
ceifando vidas cada vez mais jovens na capital gaúcha, o que aponta para
a urgência de mecanismos de proteção social para esse segmento.

II – O sexo dos adolescentes e jovens vítimas de homicídio

Entre os anos de 2015 e 2018, 1.523 adolescentes e jovens tiveram


suas vidas interrompidas. A maioria era do sexo masculino, com 1.399
homicídios (91,86%). Também foram registradas 121 vítimas de morta-
lidade do sexo feminino (7,94%), e IGN6 apresentou 3 (0,20%).

Gráfico 3 – O sexo das vítimas de homicídio nos anos de 2015 a 2018.


500

450

400

350

300

250

200

150

100

50

0
2015 2016 2017 2018
Masculino 348 453 331 267
Feminino 19 33 38 31
IGN 1 2 0 0

Fonte: SIM. Elaboração dos autores.

Assim, Porto Alegre acompanha a tendência nacional, uma vez iden-


tificada a predominância dos homicídios de adolescentes e jovens do sexo
6 IGN no SIM significa “ignorado”. Assim, o sexo dessas pessoas não foi conside-
rado no momento do registro.

65

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masculino (CERQUEIRA et AL., 2021; MUGGAH e PELLEGRINO,
2020). No que diz respeito às adolescentes e jovens do sexo feminino hou-
ve um aumento no número de ocorrências a partir de 2016, o que torna
necessário observar o aumento da mortalidade de jovens do sexo feminino
na cidade e as possíveis causas deste aumento ao longo dos últimos anos.

III - A raça/cor dos adolescentes e jovens vítimas de homicídio

Identificou-se que dos 1.523 homicídios registrados em Porto Ale-


gre ocorridos entre os anos de 2015 e 2018 ocorreram, em números
absolutos, mais homicídios de jovens e adolescentes da raça/cor branca,
com 864 (56,73%); seguida da negra, com 622 (40,84%); da amarela,
com 07 (0,46%); a indígena não apresentou nenhum registro de homi-
cídio; além de 30 (1,27%) de esses homicídios terem sido registrados
como IGN. O gráfico 4 demonstra os dados referentes à raça/cor em
cada um dos anos no município de Porto Alegre:

Gráfico 4 – A raça/cor dos adolescentes e jovens vítimas de homicídio.

300

250

200

150

100

50

0
Negro Branco Amarelo Indígena IGN
2015 139 222 1 0 6
2016 188 283 3 0 14
2017 164 202 1 0 2
2018 131 157 2 0 8

Fonte: SIM. Elaboração dos autores.

66

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Contudo, há que se considerar que a população negra correspon-
dia, em 2010, a somente 20,24% da população no município de Porto
Alegre7. Assim, ao analisar proporcionalmente as taxas de mortalidade de
adolescentes e jovens no município, considerando o índice populacional
deste segmento social, constata-se que Porto Alegre segue a tendência
nacional de vitimização maior de jovens negros do que brancos por ho-
micídios: no período estudado de 2015 a 2018, os adolescentes e jovens
negros vitimados representam 0,22%, ao passo que os brancos represen-
tam 0,08%. Essa tendência nacional é identificada por Cerqueira et AL.
(2021) que observa essa dinâmica no país: em 2018, 75,7% das vítimas
de homicídio no país são jovens negros, destaque esse, também dado por
Muggah e Pellegrino (2020) quando apontam que:

[...] Eles têm entre 15 e 29 anos, sendo geralmente homens, de


baixa renda e negros. Os jovens entre 15 e 29 anos representam
apenas 25% da população total do país, mas quase 50% do total
de homicídios entre 2005-2015 tiveram esse perfil como vítima.
Negros são 2,5 vezes mais propensos a serem vítimas de um assas-
sinato do que os não-negros.

Além destes aspectos, observa-se ao longo dos anos analisados um


aumento considerável dos índices de mortalidade juvenil entre negros na
cidade de Porto Alegre, subindo de 37,7% em 2015, para 43,96% no
ano de 2018. Tal aumento pode ser considerando uma continuidade de
um processo que já vinha ocorrendo e que foi apontado pelo Observa-
tório da Cidade de Porto Alegre (OBSERVA POA) na década anterior:
de 2001 a 2012 o indicador da mortalidade de jovens negros de 15 a 29
anos teve uma ampliação de 41,04% (OBSERVA POA, SD-a). Já refe-
rente aos jovens e adolescentes brancos, segundo a análise dos dados do
SIM, os índices de homicídios diminuíram de 60,33% em 2015, para
um percentual de 52,68% em 2018.

7 A população de Porto Alegre, segundo o Censo de 2010, contava com um total de


1.409.351 de habitantes. Destes, 79,23% se autodeclarava brancos e 20,24% de pes-
soas se autodeclarava negras e/ou pardas. Os dados mais recentes divulgados pelo IBGE
(disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/porto-alegre/panorama), estimam
que a população em 2020 nesse município chegava a 1.488.252 pessoas.

67

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Isso indica que os índices de vitimização de jovens negros na ci-
dade de Porto Alegre têm um aumento considerável na última década,
dando visibilidade para o genocídio da juventude negra no Município.
O estudo de Barros et AL. (2019) também aponta para uma curva as-
cendente da representação dos negros em relação ao conjunto de homi-
cídios dos jovens moradores de Porto Alegre, que é acompanhada por
uma curva descendente da representação dos homens na totalidade das
vítimas, sendo que o acréscimo das mortes por homicídios na última dé-
cada se concentrou sobre a população negra do Estado. As características
da dinâmica homicida na cidade também se expressam territorialmente,
compreendendo o território como um espaço vivo, formado por sujeitos
que tecem espacialmente seu cotidiano e constroem suas histórias, e que
ilustra desigualdades e resistências no processo de desenvolvimento de
determinados espaços.

IV - Os bairros de residência dos adolescentes


e jovens vítimas de homicídio

O território se constitui como um produto concreto da luta trava-


da pela sociedade no processo de produção de sua existência, configuran-
do-se como espaço onde são estabelecidas as relações sociais de produção
que dão a configuração histórica específica ao território (OLIVEIRA,
2005). Nesse sentido, a cidade de Porto Alegre, assim como grande parte
das capitalistas brasileiras, ilustra em sua geografia um enorme processo
de desigualdade social. A dinâmica capitalista apropria-se intensamente
da dimensão espacial, expandindo-se através de transformações de cará-
ter técnico e organizacional em escalas diferenciadas – sendo que tais ex-
pansões, somadas à distinção geográfica, geram desigualdades geográficas
que contribuem para delimitar relações de poder e de luta de classes (PE-
REIRA, 2010). A mortalidade juvenil é parte e expressão deste processo,
em que as desigualdades territoriais se expressam na forma mais cruel de
violação de direitos: o direito à vida.
São nos territórios com maiores índices de pobreza, vulnerabili-
dade e precariedade no acesso às políticas públicas que se concentram
as maiores taxas de mortalidade juvenil na cidade de Porto Alegre. Nos

68

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termos de Scherer (2018), a concentração de altas taxas de violência –
sendo a violência homicida como expressão mais trágica desse processo
– revela que alguns territórios são sim violentados pela dinâmica espacial
do capital, por meio do processo de reprodução espacial do modo de
produção capitalista, que vem vitimando segmentos populacionais espe-
cíficos através de uma dinâmica de segregação, que é fundamental para a
manutenção do metabolismo social do capital.
A própria dimensão espacial também revela dimensões do racismo
estrutural, transversalizado em todas as relações sociais tecidas no âmbi-
to da sociedade capitalista. Nos registros do SIM, é possível identificar
os bairros de residência dos adolescentes e jovens vítimas de homicídio,
como podemos observar no gráfico 5.

Gráfico 5 – Os bairros de residência das vítimas de homicídio em Porto


Alegre com mais incidência nos anos de 2015 a 2018.
80

70

60

50

40

30

20

10

0
Lomba do Rubem Santa
IGN Restinga Sarandi Vazio
Pinheiro Berta Tereza
2015 12 24 39 43 33 18 0
2016 20 25 48 16 24 33 72
2017 29 24 35 11 18 19 48
2018 0 16 20 7 7 18 68

Fonte: SIM. Elaboração dos autores.

Os dados registrados no SIM identificam os bairros de residência


dos jovens vitimados por homicídio. Assim, verificou-se que os bairros
que apresentaram os maiores índices de mortalidade juvenil em Porto
Alegre nos anos pesquisados foram: Restinga (17,68%), Lomba do Pi-

69

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nheiro (11,17%), Sarandi (10,41%), Santa Tereza (9,87%) e Rubem
Berta (8,99%). Esses bairros, segundo o IBGE (2010), apresentam uma
maior concentração da população negra em Porto Alegre. A composição
étnico-racial da capital gaúcha apresenta 20,24% de pessoas negras, sen-
do que todos os territórios supracitados da capital gaúcha superam essa
média. Em contraponto, os bairros que apresentam menor concentração
de população negra são aqueles que apresentam os menores índices de
violência letal contra a juventude entre 2015 e 2018: Moinhos de Vento
(0%), Chácara das Pedras (0%), Três Figueiras (0%), Higienópolis (0%)
e Boa Vista do Sul (0,1%), sendo que nos quatro primeiros bairros refe-
ridos, não foi registrado qualquer homicídio contra os jovens residentes
desses bairros, e que, nesse mesmo período, o único registro de homicí-
dio de um residente do bairro Boa Vista do Sul era de um jovem negro.
Visto isso, torna-se relevante os dados de mortalidade dos resi-
dentes dos bairros com maiores índices de homicídio, com os índices de
Desenvolvimento Humano – IDH, os quais, em sua maioria, demons-
traram baixos valores se comparados ao IDH geral do município que foi
de 0,805, considerado “muito alto” dentre as faixas elencadas para medir
o desenvolvimento dos municípios (OBSERVA POA, SD-c). A Restinga
apresentou um IDH de 0,685; a Lomba do Pinheiro, 0,683; a região
norte do município, onde o bairro Sarandi está localizado, apresentou
um IDH de 0,729; a região do Eixo Baltazar, onde o bairro Rubem Berta
está localizado, o IDH era de 0,779; e a região Cruzeiro, onde se localiza
o bairro Santa Tereza, 0,747 (OBSERVA POA, SD-b).
Desta forma, a análise dos territórios com altos índices de morta-
lidade juvenil de seus residentes na cidade de Porto Alegre revela a nítida
relação existente entre a divisão capitalista do espaço, do racismo e a
dinâmica da mortalidade juvenil. A cidade de Porto Alegre se consoli-
dou como uma capital marcada por processos e pela dialética contradi-
tória entre gentrificação e favelização, onde as populações residentes nos
territórios com piores índices de desenvolvimento humano e precários
acessos às políticas públicas vivenciam o juvenicídio em seu cotidiano,
enquanto expressão mais trágica das violações de direitos.

70

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V - Os locais de ocorrência e CID Descritivos dos homicídios
de adolescentes e jovens em Porto Alegre

Os dados do SIM apontam para maior vitimização por homicídio


em via pública no município de Porto Alegre nos anos de 2015 a 2018,
com um total de 771 (51,6%). Seguida de Outros, com 22,1%; do Hos-
pital com 17,8%; do Domicílio, com 7,4%; de Outro Estabelecimento
de Saúde, com 1,8%; e de IGN, com 0,13%. Se comparado com os da-
dos apresentados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que apon-
tam que 59,3% das mortes violentas ocorreram em via pública (BAR-
ROS, 2021), percebe-se que Porto Alegre segue a tendência nacional.

Tabela 1 - Os locais de ocorrência dos homicídios de adolescentes e


jovens em Porto Alegre

Ano Outro
Via
Hospital Estabelecimento Domicílio Outros IGN
Pública
Local de Saúde

2015 85 3 19 211 50 0
2016 90 12 41 250 95 0
2017 56 3 32 175 101 2
2018 41 10 21 135 91 0
Fonte: Sistema de Informações Sobre Mortalidade – SIM. Elaboração
dos autores.

Além disso, O SIM apresenta em seus documentos os CID Des-
critivos, indicando a causa da morte das pessoas. Assim, tem-se que a
maioria das mortes ocorreram por arma de fogo não identificada, com os
seguintes CID Descritivos: x950 – agressão por meio de disparo de arma
não especificada - residência; x954 – agressão por meio de disparo de
arma não especificada - rua e estrada; x955 – agressão por meio de dispa-
ro de outra arma de fogo ou de arma não especificada - áreas de comércio
e de serviços; x959 – agressão por meio de disparo de arma não especi-
ficada - local não especificado; x958 – agressão por meio de disparo de
arma não especificada - outros locais especificados. Desses cinco, o x954

71

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é o mais recorrente, representando a maior parte da causa das mortes por
homicídio dos adolescentes e jovens em Porto Alegre.
Como já explanado por Cipriani (2019), os conflitos armados en-
tre as facções Bala na Cara e Antibala, tem forte relação com os altos
índices de homicídios em Porto Alegre principalmente a partir do ano de
2016. Essa particularidade da capital do Rio Grande do Sul revela muito
sobre a dinâmica homicida nessa localidade e sobre a desproteção social
que os adolescentes e jovens vivenciam histórica e cotidianamente.
Nesse sentido, pontua-se a necessidade da construção de políti-
cas públicas que possam, de forma efetiva, consolidar perspectivas de
proteção social para os adolescentes e jovens vítimas de violência, espe-
cialmente nos territórios que apresentam maiores índices e mortalidade
juvenil, contrapondo a hegemonia neoliberal e neoconservadora. A luta
na perspectiva da garantia de direitos das juventudes é elemento central,
em uma conjuntura em que o sangue jovem é derramado, mortes são
naturalizadas e dores apagadas em um processo perverso, que ilustra a
barbárie em nome da ordem do capital.

Considerações Finais

O juvenicídio se constitui como a expressão mais perversa de um


complexo processo que envolve diversos elementos, estando calcados na
lógica da reificação humana, típica da forma de sociabilidade do capi-
tal, diante de um momento de agravamento de sua crise estrutural. No
atual contexto, o avanço neoliberal, compreendido como racionalidade
que, grande parte das vezes, se fundamenta e se fortalece em perspectivas
neoconservadoras, auxiliam na naturalização e aprofundamento deste fe-
nômeno. A retração de direitos e o avanço do Estado Penal, por meio dos
processos de criminalização da pobreza, escamoteada por meio das estra-
tégias de “guerra às drogas”, se constituem como elementos que tendem
a agravar esse fenômeno. A precarização existencial contribui para absor-
ção de uma gama de jovens no mercado varejista do tráfico de drogas,
se constituindo como elemento catalizador da dinâmica da mortalidade,
tanto por suas relações entre facções, como pela forma que se estabelece
a política de segurança pública do estado brasileiro.

72

Livro Geovane Scherer v2final2.indd 72 22/11/2022 14:50


A lógica do descarte de vidas humanas não se constitui como fenô-
meno novo na realidade do Brasil, sendo que o contexto contemporâneo
apresenta, com novas roupagens, as velhas estratégias de reificação da
vida humana, constitutivas do seu processo de constituição histórica. A
imensa desigualdade social, agravada ainda mais em tempos de pande-
mia, é elemento fundante do juvenicídio, ao mesmo tempo em que, tal
desigualdade, se constitui na essência da lógica do capital, potencializada
no capitalismo brasileiro – marcado pela lógica da superexploração da
força de trabalho, como requisito fundamental da marca da dependência
do capital internacional.
A análise dos dados, realizados por meio SIM, acerca da cidade de
Porto Alegre é reveladora no que se refere à dinâmica do juvenicídio na
cidade, sendo que a capital gaúcha segue a tendência nacional de vitimi-
zação de jovens. A dinâmica da mortalidade juvenil na cidade de Porto
Alegre/RS no período analisado, inicia com maior incidência a partir dos
15 anos de idade e se intensifica principalmente a partir dos 16 até os
22 anos de idade, com um agravamento nos índices de mortalidade aos
18 anos. Na série histórica analisada, o ano de 2016 se constitui como o
período com maior ápice dos índices de mortalidade, o que indica para
os impactos das guerras entre facções nos índices de mortalidade juvenil.
Evidencia-se o racismo estrutural como elemento que compõe o juveni-
cídio no Brasil, sendo que, proporcionalmente, Porto Alegre tem ceifado
mais as vidas de jovens negros do sexo masculino. São os jovens morado-
res de territórios habitados por corpos negros, que vivenciam com mais
intensidade a dinâmica da mortalidade juvenil. Os territórios concen-
tram os maiores índices de mortalidade juvenil e vivenciam, ao mesmo
tempo, uma maior intensidade a precarização de políticas públicas e a
falta de serviços básicos na perspectiva da proteção social.
A investigação também revela lacunas no âmbito do monitora-
mento da mortalidade juvenil, uma vez que há informações registradas
no SIM como “IGN” (ignorado) ou “vazio”, que dificultaram a análise
dos dados coletados. Por exemplo, caso seja considerado o critério de
análise “bairro”, observa-se que 249 adolescentes e jovens tiveram seus
bairros de residência registrados como IGN ou Vazio. Isso ocorre, segun-
do a Secretaria Municipal de Saúde, quando não é possível identificar os

73

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bairros de residência, ou quando a pessoa não possui residência alguma.
O mesmo ocorreu referente à raça/cor e ao sexo: no total dos anos pes-
quisados, 30 adolescentes e jovens tiveram sua raça/cor registrada como
“IGN”, bem como 03 pessoas tiveram seu sexo registrado também como
“IGN”. Sem essas informações, torna-se mais difícil a construção de es-
tratégias de prevenção a mortalidade juvenil, não apenas nos bairros de
residência, mas também nos locais onde os homicídios ocorrem, tendo
em vista a proteção dos adolescentes e jovens mais vitimados pelo juve-
nicídio. As lacunas indicadas apontam para a necessidade de visibilizar
melhor tais informações, para que se possam ser identificadas mais carac-
terísticas da dinâmica homicida em Porto Alegre.
Evidencia-se, nesse sentido, a urgente necessidade de construção
de políticas de proteção social para as juventudes, uma vez que, apesar
dos avanços legais nas últimas décadas acerca do reconhecimento dos
direitos juvenis, observam-se poucas e frágeis políticas públicas para as
juventudes na realidade brasileira em nível nacional, com frágeis capila-
ridades entre os Estados e Municípios. O Estado do Rio Grande do Sul
e a cidade de Porto Alegre, assim como a maior parte das dos estados e
cidades brasileiras, não contam com planos de enfrentamento aos homi-
cídios de adolescentes e jovens, cumprindo com o seu papel de construir
políticas públicas para a proteção social de seus cidadãos, como indica os
preceitos constitucionais. O juvenicídio escancara da forma mais trágica
possível a desproteção social das juventudes, sendo que o sangue jovem
continuará sendo derramado, caso não seja revertida à tendência de re-
tração Estatal de precarização de políticas públicas, que se constituí em
uma das marcas do Estado Brasileiro no cenário atual.

74

Livro Geovane Scherer v2final2.indd 74 22/11/2022 14:50


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A (difícil) consolidação da Proteção Social Juvenil:
políticas públicas de/para/com as juventudes
na realidade contemporânea

Maurício da Silva César


Maurício Perondi
Monique Fernandes Silveira
Paula de Fátima Moura dos Santos

Políticas de Juventude diante do avanço neoliberal e neoconservador

De forma genérica, há duas grandes tendências que conceituam as


juventudes: a primeira, que considera a juventude como grupo social ho-
mogêneo, composto por indivíduos cuja característica mais importante é
pertencerem a um dado grupo etário; a segunda, considera a juventude
como grupo social heterogêneo, em função de reconhecer a existência das
diversidades juvenis. Desse modo, considera-se, sobretudo, que a realidade
social demonstra não só um tipo de juventude, mas grupos juvenis que
constituem um conjunto heterogêneo, já que a juventude é, por definição,
uma construção social. Consequentemente, o conceito é construído a partir
de diferentes visões, de uma sociedade que projeta os jovens de diversas for-
mas, a partir de múltiplas referências (ESTEVES e ABRAMOVAY, 2007).
Historicamente, no Brasil, os jovens foram concebidos de duas ma-
neiras: de um lado, como indivíduos em fase de transição para a vida adul-
ta, em vista disso, grande parte das ações que lhes eram voltadas, estavam
destinadas a prepará-los para o futuro; de outro como indivíduos proble-
máticos, que necessitariam de ações de contenção e de punição. Sendo
assim, de uma forma, não se consideravam necessárias políticas públicas
específicas, nem legislações que tratassem essencialmente das juventudes,
de outra, as ações que haviam, possuíam caráter punitivo ou de controle.
Essas compreensões começam a se modificar quando a Unesco de-
clara 1985 como o Ano Internacional da Juventude, numa clara alusão
de que era necessário um olhar particular para as juventudes. No entanto,

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As primeiras demandas em torno dos “problemas dos jovens” foram
levadas a público por organismos internacionais, gestores e políticos
nacionais, ONGs, organizações empresariais, setores de Igrejas e
também sustentadas por um conjunto de grupos, redes e movimen-
tos juvenis. A favor da “juventude”, em um movimento de mão
dupla, envolveram-se instâncias do poder público e diferentes seto-
res e atores da sociedade civil. Contudo, nesse primeiro momento,
ainda não se falava em “direitos”. A ênfase estava, principalmente,
na necessidade de contenção e prevenção (NOVAES, 2012).

No caso brasileiro a virada nesta compreensão de realizar políticas


públicas de juventude só tem início a partir dos anos 2000, no que veio
a ser denominado ciclo de políticas públicas de juventude no Brasil, que
se inicia por volta do ano de 2005 e é interrompido em 2015, com o
processo de impeachment da então Presidenta Dilma Rousseff (DULCI
e MACEDO, 2019). Neste período adota-se a perspectiva de que as polí-
ticas públicas significam que é o “Estado em Ação” (HÖFLING, 2001),
em que ele assume a responsabilidade para fomentar e implementar um
projeto próprio de governo, com programas, projetos e ações para públi-
cos sociais específicos, como é o caso das juventudes.
Tal processo teve início com algumas ações concretas tais como:
o Projeto Juventude, realizado pelo Instituto Cidadania; a criação da
Frente Parlamentar em Defesa da Juventude; a criação de um Grupo
Interministerial; a promulgação da Lei n. 11.129, de 2005, que insti-
tuiu a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ), o Conselho Nacional de
Juventude (CONJUVE) e o Programa Nacional de Inclusão de Jovens
(ProJovem), vinculados à Secretaria Geral da Presidência da República
(DULCI e MACEDO, 2019).
Tais ações colocaram em pauta uma nova concepção de juventudes
em que “o novo sujeito de direitos, os jovens, reitera a importância do
credenciamento da palavra de determinado grupo social para o exercício
democrático, percebendo que é exatamente esse pronunciamento que
pode deslocar e alargar o debate sobre os direitos sociais” (RIBEIRO e
MACEDO, 2018, p. 109).
Ainda que tais avanços tenham ocorrido, no âmbito das políticas
públicas de juventude, cabe destacar que o modelo capitalista vigente,

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juntamente com as perspectivas neoliberais e neodesenvolvimentistas do
final do século XX e início do século XXI, dificultaram que esta visão
pudesse consolidar um programa profundo e de longo prazo para as ju-
ventudes brasileiras.
Considerando a ofensiva do capital, percebe-se que as políticas pú-
blicas para as juventudes, se restringiram, em grande parte, às ações no
campo das políticas sociais. Dessa maneira, não foram assegurados aos
jovens, de modo solidificado, seus direitos, o que será discutido no sub-
capítulo sobre Políticas de Juventude no Estado do Rio Grande do Sul
(RS) e no município de Porto Alegre (POA).
Essa realidade não se restringe somente ao Estado do RS, tampou-
co, ao município de POA, mas representa uma síntese do que se vivencia
em todo o país. Embora existam políticas públicas para juventude em
nível nacional, elas são restritas, principalmente, a jovens menores de 18
anos, ou seja, adolescentes em detrimento de jovens entre 18 e 29 anos.
Segundo Scherer (2015, p. 146):

A política social brasileira, no contexto contemporâneo, é inscrita


no solo sócio-histórico do contexto neodesenvolvimentista, tendo
certo protagonismo enquanto instrumento de aquecimento do
mercado interno. Apesar de representar um projeto burguês me-
nos agressivo que a perspectiva neoliberal, impactando de modo
positivo em alguns indicadores sociais, tal projeto conserva inal-
terados os princípios neoliberais, mantendo distante a perspectiva
da universalização e da qualificação de políticas públicas. É diante
deste contexto que vem se desenhando a atual Política Nacional
de Juventude [...].

Em síntese, Scherer relaciona, historicamente, as ideias neoliberais


com as políticas públicas de juventude, a partir da expansão neoliberal
nos anos 1990. O avanço do neoliberalismo foi reconhecido por des-
mantelar direitos historicamente construídos e continua presente na for-
mulação de políticas sociais, principalmente, com novos paradigmas que
impõe o momento, ou seja, com “novas roupagens”.
Essa reordenação teve como consequência a implementação de
políticas neoliberais, já que “o pensamento dominante no capitalismo

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contemporâneo – a ideologia neoliberal e seu subproduto, a ideologia
pós‑moderna –, exerce a função social de justificação das transformações
operadas na vida social pela ofensiva do capital” (BARROCO, 2011, p.
206). Consequentemente, a lógica neoliberal acabou por impactar tam-
bém as políticas públicas para as juventudes.
Ainda que tenham sido implementadas políticas com caráter mais
democrático, participativo e de cidadania, durante os governos de Luis
Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff (2002 a 2016), as consequên-
cias do paradigma neoliberal continuaram impactando decisivamente as
juventudes. Isso pode ser percebido especialmente no mundo do traba-
lho, nos índices de mortalidade juvenil e na qualidade do acesso e de
conclusão dos diferentes níveis de educação do país, por parte dos jovens.
Com relação ao mercado de trabalho, há um aumento significativo
do número de jovens que ingressam neste segmento muito precocemente,
sendo a maioria esmagadora no mercado informal e precarizado. Percebe-se
que os jovens nessa condição enfrentam problemas relacionados à perversa
infraestrutura de trabalho a que são submetidos e, por isso, são expostos,
nestes locais, a acidentes e doenças por falta de ações preventivas no âmbito
das políticas públicas de saúde voltadas à classe trabalhadora. Em grande
parte, isso tem como causa o modo de produção capitalista, que tem como
objetivo principal a manutenção das taxas de lucro do grande capital.
A partir da crise estrutural do capital, houve um rearranjo no
modo de organizar e gerenciar o trabalho no mundo, que ficou conheci-
da como reestruturação produtiva na forma de acumulação flexível, “[...]
por meio do processo de reestruturação produtiva, que resulta numa am-
pliação da exploração e descarte da força de trabalho vivo [...]” (SCHE-
RER, 2018, p. 253). Dessa forma, o trabalho foi transformado em uma
incessante concorrência em busca do lucro, de maneira que o potencial
emancipador do mesmo se converte em exploração da força de trabalho
e, alienantemente, produz uma grande quantidade de trabalhadores ex-
cluídos e precarizados (ANTUNES, 2002).
A partir de um contexto de precarização da vida, muitos adoles-
centes e jovens do Brasil vivenciam um contexto marcado por uma série
de violações de direitos. O Anuário de Segurança Pública 2021 eviden-
cia que adolescentes e jovens no Brasil se constituem como o segmento

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social mais afetado pela violência letal, sobretudo, quando se trata de
mortes violentas intencionadas. A maior ênfase se dá na faixa etária de
12 a 19 anos quando se trata de adolescentes e 18 a 24 anos de idade
quando se trata de jovens. Estes últimos, com emprego de arma de fogo.
A mortalidade juvenil, que representa uma das mais graves violações de
direitos, se dá, sobretudo, a jovens, negros, do sexo masculino e pobres, o
que evidencia uma seletividade etária, de raça/etnia, de gênero e de classe
social, respectivamente, não obstante, a realidade de seletividade penal.
Tais situações possuem um impacto muito grande nas trajetórias
juvenis e nas suas configurações vitais. As políticas públicas podem ser
consideradas com formas concretas, que podem contribuir para a mu-
dança deste panorama, desde que o Estado assuma seu papel na sua cons-
trução e efetivação. Neste capítulo, serão discutidas como as políticas pú-
blicas de juventude têm sido conduzidas em âmbito nacional, em âmbito
estadual, no Rio Grande do Sul, e no âmbito municipal de Porto Alegre.

A constituição da Proteção Social Juvenil na Sociedade Brasileira

Recentemente as políticas públicas relacionadas às juventudes fo-


ram adquirindo maior relevância no cenário nacional, principalmente a
partir da década de 1990, com os esforços da sociedade civil organizada
foi possível a construção de legislações protetivas. O Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA), foi determinante para a afirmação dos direitos
da infância e adolescência no Brasil, constituindo-se com uma legislação
que avança em relação à visibilidade das adolescências e juventudes. Já
a concepção de juventude não pode ser entendida de forma homogê-
nea, para Esteves e Abramovay (2007), Dayrell (2003), Groppo (2016)
e Perondi e Vieira (2018) entre outros, o conceito de juventude deve ser
colocado no plural, assim, existem juventudes diversas. Pois,

Construir uma noção de juventude na perspectiva da diversidade


implica, em primeiro lugar, considerá- la não mais presa a crité-
rios rígidos, mas sim como parte de um processo de crescimento
mais totalizante, que ganha contornos específicos no conjunto das
experiências vivenciadas pelos indivíduos no seu contexto social
(DAYRELL, 2003, p. 42).

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No que diz respeito à elaboração desse conceito há que se consi-
derar as singularidades desse segmento, sendo analisadas em contextos
sociais específicos, a partir de uma construção social, histórica e cultural.
Com a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente houve
muitos avanços em relação à proteção social para criança e adolescente,
no entanto, o Estatuto é restrito ao universo dos adolescentes, dessa for-
ma as políticas públicas destinadas aos/às jovens com idade superior a 18
anos permaneceram deficitárias. Esse segmento era atendido por políti-
cas voltadas para a população em geral com uma abordagem emergencial
cujo foco era o jovem em situação de risco social. A partir da década de
1990, a juventude enquanto categoria social passa a ter maior visibilida-
de social, com pesquisas no mundo acadêmico e com o surgimento dos
primeiros programas do governo federal com atenção à população jovem.
Segundo Castro e Macedo (2019), com início nos anos 2000, o debate
sobre juventude e seus direitos como população específica experimenta
um grande impulso, ao mesmo tempo em que seu paradigma conceitual
é alterado. A categoria “juventude sujeito de direitos”, assume lugar de
prioridade no debate de políticas públicas e novas leituras trazem em seu
bojo um olhar que valoriza cortes interseccionais e que percebem, na
categoria, um entrecruzamento de interesses e realidades, em forte diá-
logo com a diversidade da população jovem brasileira. Com isso, novos
paradigmas para as discussões vêm sendo trazidos pelas juventudes que
apontam para ações, intervenções políticas em ambientes distintos, dessa
forma recai sobre as juventudes uma cobrança de participação política,
no entanto existe pouco investimento, seja em formação, cultura entre
outros, que permita aos jovens acompanhar o fazer da política institucio-
nal formal (CASTRO; VASCONCELOS, 2007).
A temática dos direitos das juventudes ganhou, no âmbito gover-
namental, possibilidade de maior diálogo, a partir dos anos 2000, com
a intensificação e ampliação de processos organizativos nos partidos po-
líticos, movimentos sociais e uma infinidade de outras formas de orga-
nização política e cultural. Essa questão conquistou, assim, densidade
política e social. Silva e Silva (2011) referem que no decorrer dessas dis-
cussões, foi sendo desenvolvida a percepção da necessidade de se cons-
truir políticas públicas específicas para o segmento da juventude, ou seja,

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políticas que atendessem aos jovens da faixa etária além da reconhecida
como adolescência. Os autores afirmam que essa iniciativa representou o
reconhecimento da importância do segmento para a elaboração de polí-
ticas públicas, e o reconhecimento desse grupo como sujeitos detentores
de direitos, algo que foi:

Motivado pelas demandas apresentadas por tais movimentos, ain-


da em 2003 começa a tramitar, no Congresso Nacional, o Projeto
de Emenda Constitucional – PEC nº 138/2003, que dispunha
sobre a proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais da
juventude, ou seja, objetivava garantir, para esse segmento, os
direitos constitucionais já assegurados às crianças, adolescentes e
idosos (SILVA; SILVA, 2011, p. 667).

Em 2004, por meio dos trabalhos do Grupo Interministerial vincu-


lado à Secretaria Geral da Presidência da República (SGPR), tramitaram,
na Câmara dos Deputados, dois projetos de lei tratando desse tema: o Pro-
jeto de Lei – PL n. 4.529, que dispunha sobre o Estatuto da Juventude, e
o PL n. 4.530, que visava a estabelecer o Plano Nacional de Juventude, no
intuito de possibilitar maior visibilidade para o segmento da juventude.
Em junho de 2005, com a criação da Secretaria Nacional de Juventude
(SNJ), do Conselho Nacional de Juventude (CONJUVE) e do Programa
Nacional de Inclusão de Jovens (ProJovem, Lei n. 11.129), se articula
um novo momento para as políticas públicas de juventude, em que, se
acentuam as possibilidades de comunicação entre as Juventudes, o Go-
verno Federal e a Sociedade Civil organizada. Um exemplo da ampliação
da participação juvenil na esfera pública é a constituição do CONJUVE,
que passou a ser composta por dois terços de representantes da Sociedade
Civil (40 vagas) e um terço por representantes do Governo (20 vagas).
O CONJUVE passou a ter um papel fundamental, pois seu objetivo era
assessorar a Secretaria Nacional de Juventude na elaboração, desenvolvi-
mento e avaliação das políticas de juventude. Outro aspecto importante
que ampliou a participação das Juventudes no contexto da formulação
das políticas públicas foi a realização das Conferências Nacionais da Ju-
ventude, ocorridas nos anos de 2008, 2011 e 2015. Estas foram prece-
didas por conferências estaduais e municipais, fator que mobilizou uma

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ampla participação de jovens e de entidades juvenis, de forma articulada,
de modo como ainda não havia ocorrido no Brasil. A primeira edição da
Conferência Nacional da Juventude, realizada no mês de abril de 2008
na cidade de Brasília, contou com a participação de quase 2.500 pessoas,
entre elas jovens, estudantes, representantes de organizações políticas de
diversas áreas e da Sociedade Civil organizada. Após a Conferência, ficou
a cargo do CONJUVE o monitoramento das resoluções e prioridades
aprovadas na Conferência, a articulação com os diversos Ministérios, a
criação de Grupos de Trabalho para acompanhar resoluções específicas
e a criação do Pacto pela Juventude, que foi uma iniciativa que visou
comprometer o Governo Federal, os Governos Estaduais e Os Governos
Municipais, a transformar as propostas elaboradas na conferência em ini-
ciativas, programas e projetos para os segmento das juventudes em âmbito
nacional, estadual e municipal (CASTRO; ABRAMOVAY, 2009).
Apesar dos avanços iniciais realizados no âmbito do CONJUVE,
a partir de 2016 a configuração do Conselho passou a ter interferência
direta dos governos federais sucessivos ao período, o que é possível per-
ceber pelo fato de que,

O Conselho, que já teve em torno de 180 organizações partici-


pantes desde que foi criado, viu, no último processo de eleição da
sociedade civil em 2017, uma saída coletiva de mais de 20 orga-
nizações participantes, por não concordarem com o estreitamento
do processo de participação e com a perda de autonomia, pois a
composição da sociedade civil começou a passar pela definição de
comissão governamental. Desde sua criação, em 2005, esse fato é
inédito (RIBEIRO; MACEDO, 2018, p. 114).

A realização das Conferências Nacionais da Juventude (2008, 2011


e 2015), colaboraram para institucionalização de uma política pública
voltada especificamente para as juventudes, fato que viria ocorrer somente
com a aprovação do Estatuto da Juventude em 2013, assim como, para
a criação de órgãos subnacionais que se ocuparam das políticas de juven-
tude (Relatório de políticas públicas, CONJUVE, 2021). Outro marco
importante para as juventudes foi a alteração realizada no Capítulo VII
do Título VIII da Constituição Federal, Emenda Constitucional n. 65,

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de 13 de julho de 2010, que modifica o seu art. 227, inserindo o termo
jovem, até então ausente da Carta Magna. O Capítulo VII do Título VIII
da Constituição Federal passa a denominar-se “Da Família, da Criança,
do Adolescente, do Jovem e do Idoso”. A modificação no texto constitu-
cional é fruto de uma reivindicação histórica dos movimentos juvenis e do
campo das políticas públicas de juventude, para que esse segmento tenha
maior proteção social e que, esta, seja garantida também pela legislação,
visto que os/as jovens são os mais atingidos pelas transformações no mun-
do do trabalho e pelas distintas formas de violência física e simbólica que
caracterizam o século XXI. Todos esses avanços abriram caminho para
a criação do Estatuto da Juventude, instituído através da Lei Federal n.
12.852 de 5 de agosto de 2013, que dispõe sobre os direitos dos/das jo-
vens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude. Como
um desdobramento do referido estatuto foi criado o Sistema Nacional
de Juventude (SINAJUVE), instituído pelo Decreto n. 9.306, de 15 de
março de 2018, que se constitui como uma forma de articulação e orga-
nização da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e da
Sociedade Civil para a promoção de políticas públicas de juventude.
Reconhecida legal e politicamente, a temática das juventudes passa
então a gerar expectativas vislumbrando a possibilidade de incorporação
das políticas de juventude como Política de Estado, para além da transi-
toriedade de governos, e por apontar a possibilidade de complementação
entre a proteção assegurada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
(BRASIL, 1990), para crianças e adolescentes até 18 anos, e o fortaleci-
mento das políticas de autonomia e emancipação dos/das jovens entre 18
e 29 anos no Brasil. E é a partir do Estatuto da Juventude que a juventu-
de passa a ser reconhecida enquanto sujeito de direitos, rompendo com a
lógica de jovens em situação de risco, que embasava parte dos primeiros
programas sociais voltados a esta população. Destaca-se ainda que o “Es-
tatuto da Juventude é forjado sob a ideia de que o jovem deve ser um su-
jeito que efetivamente participe da vida política de seu país, o que pode
ser realizado individual e autonomamente, ou por meio das representa-
ções de juventude” (LÉPORE; RAMIDOFF; ROSSATO, 2014, p. 27).
Ainda sobre reconhecimento das juventudes no que diz respeito
às garantias de direitos, reivindicações e participação na arena política é

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regulamentado, através do Decreto n. 8.537 de 5 de outubro de 2015,
o benefício da meia-entrada em eventos artístico-culturais e esportivos,
bem como são estabelecidos os critérios para a reserva de vagas a jovens
de baixa renda nos veículos do sistema de transporte coletivo interesta-
dual. Através do ID Jovem (Identidade Juvenil), documento que com-
prova a condição de jovem de baixa renda, da mesma forma a Carteira de
Identificação Estudantil, confirma a condição de estudante regularmente
matriculado nos níveis e modalidades de educação previstas dentro da
legislação vigente. Essas são uma pequena amostra de conquistas voltadas
especificamente para o público jovem como resultado de um processo de
luta de diversos setores em prol das juventudes.
No que diz respeito às políticas públicas voltadas para as juventudes
com ampla abrangência no cenário nacional, e o gerenciamento da Secre-
taria Nacional da Juventude (SNJ), o Relatório Evidências sobre as polí-
ticas públicas federais de juventude no Brasil: mapeamento dos investi-
mentos de 2012 a 20201 (2021), deixa evidente que o maior montante de
recursos financeiros disponibilizados para a execução de políticas públicas
para as juventudes inserido no orçamento do Governo Federal e enviado
à Secretaria Nacional da Juventude (SNJ), ocorreu no período de tempo
que compreende os anos de 2005 até 2011, sendo 2010 o ano ao qual
mais se investiu. Também aponta que há uma diferença significativa entre
o que estava orçado, empenhado e o que realmente foi repassado. Outro
ponto complicador para a efetivação de repasse de verbas, ainda segundo
o mesmo relatório, após 2011, foi as constantes mudanças que ocorre-
ram na origem do recurso e diminuição orçamentária para realização de
programas e ações gerenciados pela Secretaria Nacional da Juventude. De
2005 até 2011, o orçamento era vinculado à Presidência da República,
mas em 2016 passou a fazer parte do então Ministério da Mulher, da
Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Já em 2017 e 2018, voltou a
fazer parte do orçamento da Presidência da República e entre 2019 e 2020
a vinculação orçamentária outra vez retorna para a pasta do Ministério da
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, assim chamado atualmen-
te. No que diz respeito aos recursos, até 2017 os valores sofreram pouca
variação, já em 2018 houve forte diminuição do que havia sido previsto
1 Para mais informações sobre as especificidades das políticas consultar o relatório.

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no orçamento, e em 2019 e 2020 houve uma pequena elevação, mas sem
atingir o patamar de recursos repassados anteriormente e muito distante
do maior volume de recursos financeiros já destinado para a Secretaria
Nacional da Juventude. Evidenciando que nos últimos anos, do ponto de
vista da viabilidade financeira, houve um progressivo desinvestimento por
parte do Governo Federal em relação às políticas públicas de juventude o
que impacta diretamente nos programas, projetos e ações.
Em relação aos projetos, programas e ações para a juventude sele-
cionamos somente os programas e ações que ainda estão ativos de acordo
com os eixos do Estatuto da Juventude no Brasil. No eixo Cidadania,
Participação Social e Política e Representação Juvenil aparecem o Plano
Nacional da Juventude, projeto de lei em tramitação; Sistema Nacional
de Juventude (SINAJUVE), em vigência; Estação Juventude, ativo em
alguns municípios (Estação 2.0); Prêmio de Inovação em Políticas Pú-
blicas de Juventude – segunda edição e Frente Parlamentar Mista em
Defesa das Políticas Públicas de Juventude. No eixo Educação, consta o
ProJovem. No eixo Profissionalização, estão Trabalho e Renda; Aprendi-
zagem Profissional; Projeto Amanhã; Espaço 4.0; Programa Horizontes
e Juventude Empreendedora. No eixo Cultura, está vigente o Programa
Identidade Jovem. No eixo Saúde, o Adolescência Primeiro, Gravidez
Depois – Tudo tem o seu tempo. No eixo Sustentabilidade e Meio Am-
biente, estão o Plano Nacional de Juventude e Meio Ambiente e Legisla-
ção em vigência. A partir dos dados observados do relatório foi possível
identificar que alguns programas e ações permanecem ativos e outra par-
cela está em tramitação. No entanto, uma parte do que já existiu sofreu
o processo de descontinuidade, assim como, há eixos que não conta com
nenhum programa e ações em específico, como é o caso dos eixos de
segurança pública ou ainda aqueles que transversalizam os eixos Diver-
sidade e Igualdade, Comunicação e Liberdade de Expressão, Desporto
e Lazer, Território e Mobilidade, como por exemplo, os programas ID
Jovem, Estação Juventude e Juventude Viva.
Diante das informações disponíveis é possível observar a grande di-
ficuldade de continuidade dos programas ativos, muitos não seguem exis-
tindo, assim como há obstáculos para a criação de novos projetos e pro-
gramas que atendam as necessidades das juventudes no último período.

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A difícil construção de Políticas de Juventude
no Estado do Rio Grande do Sul

Assim como em grande parte das unidades federativas brasileiras,


o Estado do Rio Grande do Sul não contou com políticas públicas de ju-
ventude articuladas até o início dos anos 2000. Até então, foram desen-
volvidas políticas e projetos pontuais, sem uma articulação abrangente,
do ponto de vista de Estado. Algumas destas iniciativas se localizaram
em torno de projetos culturais, sobretudo ligados ao hip-hop, ao esporte
e ao lazer. Entre 2001 e 2005 o Estado contribuiu de maneira efetiva
para garantir a estrutura do Acampamento Intercontinental da Juventu-
de-AIJ, dentro da organização do Fórum Social Mundial-FSM, no Par-
que Maurício Sirotsky Sobrinho e no Parque de Exposições Assis Brasil
(Parque da Expointer), em Esteio. A edição de 2005 chegou a contar
com a participação de 35.000 jovens no AIJ, com jovens de diferentes
lugares do Brasil e do Mundo, que se reuniram em atividades paralelas ao
FSM, buscando discutir políticas específicas das juventudes, bem como
demandas que historicamente foram esquecidas pelo poder público e
pela sociedade civil (PERONDI, 2013).
Nos anos de 2008, 2011 e 2015, seguindo a proposta das confe-
rências nacionais, o Estado do RS, também realizou as suas conferências
próprias. A primeira Conferência Estadual, que foi realizada na PUCRS,
teve como tema Levante sua Bandeira e se debruçou sobre três temas: a)
Democracia, Participação e Desenvolvimento Nacional; b) Parâmetros e
Diretrizes da Política Nacional de Juventude; e, c) Desafios e Prioridades
para as Políticas Públicas de Juventude.
A segunda Conferência Estadual, realizada em 2011, nas dependên-
cias do Colégio La Salle Dores, contou com novidades buscando democra-
tizar e ampliar as formas de participação das juventudes. Para tal, além das
Conferências Municipais prévias, foram realizadas Conferências Regionais
e Conferências Livres. O evento também foi marcado por várias inova-
ções que possibilitaram uma maior democratização da conferência, entre
as quais esteve a participação das comunidades tradicionais, com represen-
tantes dos índios Kaingang, Guarani e Charrua. Entre os 1,3 mil delega-
dos, também estiveram presentes egressos da Fundação de Atendimento

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Socioeducativo (FASE) que fazem parte do POD (Programa de Oportu-
nidades e Direitos) Socioeducativo, assim como adolescentes da Fase. Foi
a primeira vez que a Conferência contou com a participação de meninos e
meninas da Fase, o que representou uma ampliação da diversidade consti-
tutiva das juventudes (RIO GRANDE DO SUL, 2011).
A 3ª Conferência Estadual de Juventude aconteceu em 2015, na
sede da Câmara de Vereadores de Porto Alegre e teve como tema “As
várias formas de mudar o Rio Grande do Sul e o Brasil: Protagonismo e
Garantia de Direitos”. Foi um espaço para discutir, analisar, reivindicar
e propor ações para os poderes públicos, mas também para pactuar ins-
trumentos de monitoramento e ação entre as redes de organizações, com
foco no controle social das políticas públicas de juventude (RIO GRAN-
DE DO SUL, 2015). O evento definiu 22 propostas prioritárias, sobre
os seguintes temas: participação social, educação, trabalho, diversidade,
saúde, cultura, comunicação, esporte, mobilidade e território, susten-
tabilidade e meio ambiente e segurança e acesso à justiça. Tais defini-
ções foram levadas à etapa Nacional e ajudaram na construção do Plano
de Juventude. Destaca-se ainda que foi redigida uma carta de apoio à
permanência da Secretaria Nacional de Juventude, que vinha sofrendo
ameaças de ser reorganizada junto a outro órgão do Governo Federal.
Em 2013, o Fórum Estadual de Entidades da Juventude (FEJU/
RS) foi criado a partir da articulação de 137 entidades do segmento das
juventudes, com atuação em âmbito estadual. O FEJU/RS instituiu o
Conselho de Juventude do Rio Grande do Sul (Conjuve/RS), promul-
gado oficialmente pela Lei Estadual n. 14.246, de 11 de junho de 2013,
integrante da estrutura, à época, da Secretaria da Justiça e dos Direitos
Humanos (SJDH). Com caráter consultivo e deliberativo, o Conjuve/
RS teve como principal tarefa elaborar políticas públicas para as juventu-
des, assim como promover a participação dos jovens na formulação das
políticas públicas voltadas a esse segmento, contando com a participação
de 30 representantes da sociedade civil e 15 do governo (mantendo a
proporcionalidade de dois terços da sociedade civil, assim como ocorria
no Conjuve Nacional).
A discussão sobre dados de políticas públicas do último período,
foi obtido por meio da consulta aos sites oficiais do Estado do Rio Gran-

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de do Sul2, assim como os sites das secretarias e departamentos do Estado
do Rio Grande do Sul que tinham relação com as políticas, programas,
projetos e ações voltadas para a juventude.
Vale ressaltar que as mudanças ocorridas, no ano de 2020, na ges-
tão estadual das políticas públicas de juventude, no Estado do Rio Gran-
de do Sul, estava a cargo da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos
Humanos. No dia 30/4/2021 foi realizada uma reestruturação de algu-
mas secretarias pelo governador Eduardo Leite, que modificou a pasta
com a criação de duas novas secretarias intituladas Secretaria da Igual-
dade, Cidadania, Direitos Humanos e Assistência Social e a Secretaria
de Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo, dentro das quais estão os
departamentos específicos. As duas secretarias são as que mais se ocupam
dos programas, políticas e ações voltadas para a juventude. Dentro da
Secretaria de Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo estão situados o
Departamento Estadual de Políticas Públicas sobre Drogas (DEPPAD),
que tem as atribuições de promover ações que contribuam para a in-
clusão social do cidadão, promover a educação e a socialização do co-
nhecimento sobre drogas, promover políticas de prevenção, orientação
das famílias de usuários e auxiliar na reinserção social de dependentes
químicos, assim como, gerir o Fundo Estadual sobre Drogas e definir
as prioridades de acordo com as recomendações do Conselho Estadual
de Políticas Públicas sobre Drogas. E o Departamento de Justiça (DJ),
que tem a intenção de garantir o acesso à justiça e proteção à pessoa por
meio da ampliação e implementação de Políticas Públicas, por meio de
parcerias com o Departamento de Justiça.
O Departamento de Justiça (DJ) executa políticas voltadas egressos
da Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul –
FASE, o Programa de Oportunidade e Direitos – POD, o Programa Esta-
dual de Proteção, Auxílio e Assistência a Testemunhas Ameaçadas (PRO-
TEGE) e pelo Programa de Proteção a Crianças e Adolescente Ameaçados
de Morte (PPCAAM-RS). Foi possível observar maior ênfase de Políticas
Públicas na esfera da Justiça, seguidas de Políticas de Assistência Social.
O principal programa para adolescentes e jovens é o Programa de
Oportunidade e Direitos (POD). Iniciado no final de 2014, através de
2 https://www.rs.gov.br/inicial

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uma parceria do governo do Rio Grande do Sul e o Banco Interameri-
cano de Desenvolvimento (BID), o programa é orientado pelos eixos de
prevenção, segurança cidadã e efetividade policial, qualificação do sistema
socioeducativo e fortalecimento institucional. O programa atende jovens
de 15 a 24 anos que vivem em territórios vulnerabilizados, com os meno-
res índices de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Foram cria-
dos seis Centros da Juventude, quatro situados na cidade de Porto Alegre,
um em Viamão e um em Alvorada, onde são oferecidas oficinas de arte,
cultura e esportes, atividades de lazer, cursos de qualificação profissional,
encaminhamento ao mundo do trabalho, entre outras atividades com o
intuito de criar oportunidades aos jovens e melhorar a qualidade de vida
dos territórios com maiores índices e com altos índices de violência.
Ainda no âmbito do POD, em 2021 foi dado o início para a cria-
ção do Observatório da Socioeducação do Rio Grande do Sul – OB-
SERGS. O projeto teve chamada pública para entidades interessadas na
consultoria do projeto, tendo sido assumida pelo Centro Interdisciplinar
de Educação Social e Socioeducação-CIESS, da Faculdade de Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul3.
O Programa Estadual de Proteção, Auxílio e Assistência a Teste-
munhas Ameaçadas (PROTEGE) tem o propósito de assegurar a integri-
dade física e psicológica e a segurança das testemunhas que tenham pre-
senciado ou indiretamente tomado conhecimento de atos criminosos. É
um programa que contempla a juventude, mesmo não sendo específico
para este segmento. O Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes
Ameaçados de Morte no Estado do Rio Grande do Sul (PPCAAM-RS) é
uma política em parceria com o Governo Federal que objetiva preservar
a vida de crianças e adolescentes que estão sob ameaça de morte.
Em relação às demais políticas, observamos uma Política de Assis-
tência Social, com o Programa Criança Feliz, do Governo Federal, mas
operacionalizada pela Secretaria da Igualdade, Cidadania, Direitos Hu-
manos e Assistência Social por meio de seus serviços vinculados, tais

3 No momento da finalização deste livro, a consultoria está em andamento, com previsão


de finalização no final do primeiro semestre de 2022. Pelo CIESS/UFRGS, a unidade que
está responsável pela a execução é o projeto de Extensão Observatório da Socioeducação
(n. 42522, Sistema de Extensão - UFRGS, Interação Acadêmica n. 001668).

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como os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), de cada
município. Atende o público de mulheres gestantes e crianças de 0 a 36
meses e suas famílias inseridas no Cadastro Único para Programas Sociais
do Governo Federal (CadÚnico), crianças de 37 a 72 meses e suas famí-
lias beneficiárias do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e crianças
de até 72 meses afastadas do convívio familiar por meio da aplicação de
medida protetiva, assim, em certa medida, também vinculado ao Sistema
de Justiça. Ainda que não se trate de uma política pública especifica-
mente juvenil, atende muitas mães jovens, o que se configura como uma
transversalidade da política.
Outra política transversal, é aquela voltada para a Proteção Social
e contra o Trabalho Infantil com o Programa de Erradicação do Tra-
balho Infantil (PETI), atualmente a cargo da Secretaria da Igualdade,
Cidadania, Direitos Humanos e Assistência Social, com ações de apoio
técnico aos trabalhadores e aos gestores do Sistema Único de Assistência
Social (SUAS). Dentro do Plano de Trabalho da Proteção Social Especial
de Média Complexidade também se encontra a Comissão Estadual do
PETI (CEPETI). É uma política, também executada pela Secretaria da
Igualdade, Cidadania, Direitos Humanos e Assistência Social, voltada
ao atendimento às demandas básicas de alimentação, espaço físico para
higienização e banho, material de higiene pessoal, rouparia de cama e
banho entre outros, para as populações em situação de rua, LGBTQI+
(gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, entre outros), jovens,
adultos, idosos e famílias com programa o PopRua RS. Ainda que não
seja uma política pensada somente para as demandas específicas da ju-
ventude, acaba por atuar junto a diversos jovens que necessitam de um
atendimento especializado.
E por fim, em 2020, as principais ações registradas no documen-
to “Entregas da Secretaria4, da então Secretaria de Justiça, Cidadania e
Direitos Humanos, a qual consta a campanha “Não é Não”, que tratou
do tema do assédio e da importunação sexual contra mulheres, a ação
“16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres” do qual
o ônibus lilás, veículo que serve de local atendimento às mulheres víti-
mas de violência que circulou por 16 cidades gaúchas. Também consta
4 https://sjcdh.rs.gov.br/upload/arquivos/202103/18114400-entregas-da-secretaria.pdf

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a construção do módulo escolar anexo ao Centro de Atendimento So-
cioeducativo Feminino (Casef ), em Porto Alegre e a implementação de
salas de audiência na Fundação de Atendimento Socioeducativo (FASE),
para a realização de audiências, via videoconferência. São apontadas a
construção de uma Escola Estadual, a entrega de mais de 10.000 cestas
básicas para populações vulneráveis durante a pandemia de Covid-19 e a
realização de oficinas de confecção de máscaras na Fundação de Atendi-
mento Socioeducativo (FASE) e nas unidades do Centros de Atendimen-
to Socioeducativo (Case) Feminino.
No mapeamento realizado não foi encontrada nenhuma políti-
ca pública direcionada especificamente para jovens entre 18 e 29 anos.
Sendo, dentro das políticas, programas, projetos e ações, o Programa de
Oportunidade e Direitos (POD) o principal programa direcionado para
a juventude, porém não contemplando a juventude até os 29 anos. Em
relação ao controle social para a juventude a participação na formulação,
execução e avaliação das políticas públicas de juventude, como prevê o
Estatuto da Juventude (2013), sendo uma das diretrizes do Sistema Na-
cional de Juventude (2013), as últimas notícias que aparecem em desta-
que no site do Conselho Estadual de Juventude (Conjuve) são do ano de
2014. Evidenciou-se também que o acompanhamento, monitoramento
e avaliação das políticas públicas não são citados nos documentos, mes-
mo sendo instrumentos imprescindíveis para se obter informações de
acordo com o planejamento e cobrar o poder público na intenção de se
atingirem os resultados esperados.

As escassas Políticas de Juventude na cidade de Porto Alegre

Ao se investigar sobre as políticas públicas específicas para as ju-


ventudes em Porto Alegre, fica visível a falta de um plano municipal de
juventude e de uma estrutura organizada que trabalhe com as demandas
deste segmento da população. De acordo com levantamento realizado
no site da Prefeitura, na seção “Juventude” foi possível identificar 25
notícias veiculadas como sendo relacionadas às juventudes. Destas, 22
são relativas a eventos, 2, às políticas públicas e 1 sobre estudos (PORTO
ALEGRE, 2022).

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Com relação aos eventos, 8 têm conexão com o tema da educa-
ção, em que são divulgadas ações tais como: aulão preparatório para o
ENEM, inscrições para cursos de capacitação gratuitos, sorteio público
para o curso preparatório ao ENEM e oficinas de capacitação entre ou-
tros. Outras 6 são relacionadas a eventos públicos pontuais tais como:
Semana Municipal da Juventude, Estação Juventude e atividade aberta
para jovens no Largo Glênio Peres, no centro da cidade. Também foram
localizadas 6 notícias com o tema do empreendedorismo tais como: Se-
mana do Jovem Empreendedor, Curso de Empreendedorismo para Jo-
vens e Premiação para Jovens Empreendedores. Tal perspectiva aponta
para uma ênfase cada vez maior em ações individuais em que os sujeitos
são responsáveis pelo seu desenvolvimento, do que em políticas públicas
que contribuam para que as jovens possam ter os seus direitos garantidos.
O tema do trabalho também se faz presente com 3 menções, em aspectos
como: dia de inserção de jovens no mercado de trabalho, capacitação de
mecânica para mulheres e semana de emprego no Sine Municipal.
Por fim, estão as 3 notícias que não são vinculadas a eventos. Uma
delas é sobre Jornada de Estudos sobre Adolescentes e Jovens, promovida
pela promovida pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social,
que reuniu profissionais que trabalham com jovens para debater temas
como a inclusão dos adolescentes no mercado de trabalho, diversidade,
igualdade racial, violência e drogadição (PORTO ALEGRE, 2019).
Uma das duas notícias referentes às políticas de juventude, se refere
ao Centro de Artes e Esportes Unificados (CEU) Restinga, contando
com quadra de esportes coberta, pistas de skate e caminhadas, sala de
informática, biblioteca e um cineteatro, gerido pela Prefeitura e por um
Comitê de Lideranças Comunitárias. Além disso, conta com a presença
de um Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), que fará par-
te da estrutura de atendimento da população local. O projeto de vincu-
lação de receitas teve início em 2010, através de recursos do Ministério
da Cultura.
Por fim, a outra notícia sobre política de juventude trata da estru-
turação das sedes definitivas dos Centros de Juventude de Porto Alegre e
Região Metropolitana. Este é um projeto que está em desenvolvimento
desde o ano de 2016, numa parceria com o Governo Estadual e aporte

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de recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento-BID. Os seis
centros em atividade realizam cursos, oficinas, atividades culturais, capaci-
tações, orientação profissional e uma série de articulações para garantir o
acesso à direitos básicos para as juventudes dos bairros onde estão situados.
Cabe salientar a importância de políticas como o CEU da Restinga
e os Centros de Juventude, visto que, bairros como a Restinga, consti-
tuem-se com aqueles com maior incidência de mortalidade juvenil, con-
forme destacado nos dados da pesquisa, que originaram esta publicação.
Na impossibilidade de se localizar as demais políticas de juventu-
de, se buscou informações junto aos demais sites oficiais do município
de Porto Alegre, da mesma maneira, os sites das Secretarias do Município
que tinham vinculação com as políticas, programas, projetos e ações vol-
tadas para a juventude.
A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social operacionaliza
ações, projetos e programas, entre os quais, o Serviço de Convivência e
Fortalecimento de Vínculos para crianças e adolescentes de 6 a 14 anos,
que tem por objetivo a constituição de espaço de convivência, desen-
volvimento do protagonismo e da autonomia dos participantes, entre
outros aspectos. Já o serviço de Convivência e Fortalecimento de Vín-
culos (SCFV)-Projovem Adolescente, para jovens de 15 a 18 anos, tem
o objetivo contribuir para o retorno ou permanência dos adolescentes e
jovens na escola, para a participação cidadã e para uma formação geral
para o mundo do trabalho.
A Secretaria por meio da Rede de Serviços da Política de Assistên-
cia Social realiza acolhimento institucional, como uma das medidas de
proteção aplicáveis a crianças e adolescentes que tiveram seus direitos
ameaçados ou violados. Também realiza abordagem social de rua identi-
ficando crianças, adolescentes, famílias e pessoas em situação de rua nos
espaços públicos, com o propósito de estabelecer vínculos e promover
ações para reinserção familiar e comunitária.
Outra ação realizada é o atendimento de adolescentes que cum-
prem medida socioeducativa de Liberdade Assistida ou Prestação de Ser-
viço à Comunidade devido a algum ato infracional. Ainda dentro da
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, há a Diretoria de Tra-
balho, Emprego e Renda que realiza cursos de qualificação, capacitação

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orientadas para o mercado de trabalho, ainda que, não seja uma atuação
específica para os jovens.
A Secretaria Municipal de Esporte, Lazer e Juventude conta com o
Bonde da Cidadania, que é um ônibus equipado com brinquedos e jogos
para a realização de atividades lúdicas e pedagógicas. Dentro da estrutura
da Secretaria, consta a Diretoria de Esporte e Lazer, que é quem elabora,
organiza e executa os projetos e programações de eventos esportivos e re-
creativos de escolas e associações, bem como o estabelecimento de parce-
rias com federações esportivas, universidades e iniciativa privada. Possui
piscinas para banhos livres, hidroginástica, natação e outras práticas nos
cinco centros comunitários do qual fornece diversas modalidades de ati-
vidades esportivas e recreativas como voleibol, ginástica, ginástica artís-
tica, ginástica chinesa, yoga, dança circular, brinquedoteca, musculação,
alongamento, dança, futsal, caminhada orientada, judô, entre outros.
Além destas, a Secretaria empresta as quadras e materiais esportivos
(bolas e redes) para comunidade. Também executa o Projeto Verão, que
conta com muitas atividades esportivas nos centros comunitários e parques
públicos. Realiza o programa Social Esporte Clube, que tem como público
alvo crianças e jovens de baixa renda familiar, oferecendo vagas em diversas
modalidades, em parceria com clubes esportivos. Promove a organização
de campeonato municipal de futebol amador em campos municipais, in-
tegrado com ligas de futebol e efetua o curso de capacitação de arbitragem
no futebol para as lideranças comunitárias, acima dos 18 anos de idade. E
por fim desenvolve escolinhas de futebol para crianças e adolescentes dos 7
aos 15 anos, com o projeto “Em cada campo uma escolinha”.
A Secretaria de Cultura realiza um Festival de Cinema voltado para
alunos da rede pública de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Mé-
dio e Educação de Jovens e Adultos (EJA), atividades que compõem o
Programa de Alfabetização Audiovisual. Através de parceria com a Se-
cretaria Municipal da Educação (SMED), faz a formação gratuita em
diversas modalidades de dança, direcionado a crianças e adolescentes,
em cinco escolas da Rede Municipal de Ensino, no turno inverso ao das
aulas, para crianças e jovens entre 8 e 16 anos.
A Secretaria de Educação fornece gratuidade da passagem de ôni-
bus para 7 mil estudantes de baixa renda do Ensino Fundamental na

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Rede Pública Municipal, Estadual ou Federal de ensino, que não con-
seguem vaga em escola próxima à residência. Da mesma forma que no
mapeamento realizado nas políticas estaduais voltadas para as juventu-
des, não foi encontrada nenhuma política pública que contemplasse as
juventudes entre 18 e 29 anos.
Em relação ao controle social para a juventude a participação na
formulação, execução e avaliação das políticas públicas de juventude,
como prevê o Estatuto da Juventude (2013), sendo uma das diretrizes
do Sistema Nacional de Juventude (2013), o Município de Porto Alegre
não possui um Conselho Municipal de Juventude ativo, que possa tratar
especificamente das políticas públicas de juventude. A última composi-
ção de membros e o último calendário de atividades do Conselho são de
2015. De lá para cá, não constam informações e detalhes sobre a conti-
nuidade das ações.
Evidenciou-se que há um considerável número de políticas públi-
cas gerais, em diversas áreas no Município, no entanto, elas não conse-
guem contemplar a totalidade dos jovens. Assim como, o acompanha-
mento, monitoramento e avaliação das políticas públicas não são citados
nos documentos, visto que são instrumentos imprescindíveis para obter
informações de acordo com o planejamento e se estão atingindo os re-
sultados esperados.
O cenário apresentado demonstra a precarização das políticas
implementadas para as juventudes pelos governos municipais de Por-
to Alegre. O fato de serem ações pontuais, demonstra a fragilidade das
políticas, principalmente, quando referentes para juventudes acima de
18 anos. Isso ocorre, justamente, pois a Secretaria Municipal é dividida
entre “Esporte, Lazer e Juventude” – com maior foco em esporte e lazer
em detrimento das juventudes – o que evidencia ainda mais a escassez
das ações/políticas de maneira que vise somente essa população.

Considerações finais

A maior visibilidade para a categoria juventude é uma constru-


ção contemporânea, a partir das mudanças sociais transcorridas depois
da Segunda Guerra Mundial, em que as percepções sobre as juventudes

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adquirem os contornos mais próximos do que conhecemos atualmente
(SCHERER, 2017). No Brasil vigorou por muitos anos o paradigma
menorista, a partir do Código de Menores de 1927 e de sua versão de
1979, que não alteraram a forma de como as crianças e os adolescentes
eram tratados nas legislações, sendo estes vistos como um problema e
uma ameaça para a sociedade, colocando sobre a infância e a adolescên-
cia, principalmente as pobres e as abandonadas, a ideia de periculosidade
(AZAMBUJA, 2018). Somente com a Constituição Federal (1988) e
com o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) é que ocorre uma
mudança paradigmática, da perspectiva da situação irregular para a dou-
trina da proteção integral.
Mesmo com essas modificações no âmbito legal, os diferentes
olhares lançados pela sociedade sobre a juventude ainda estão em cons-
tante atualização, aprimoramento e apresentam diferentes abordagens
sociais. Para Groppo (2016) as juventudes adquirem status de uma ca-
tegoria social, estruturante das sociedades modernas, que se contrapõe
a ideia de uma característica biológica natural do indivíduo, devendo
ser analisada de forma concreta na intersecção com outras categorias
sociais e condicionantes históricos. Há que se considerar o reconheci-
mento no âmbito normativo da referência etária para o segmento das
juventudes, que vai dos 15 aos 29 anos, estabelecido no Estatuto da
Juventude (BRASIL, 2013).

O Estatuto da Juventude se constitui como um importante marco


na luta para todos os jovens brasileiros, isso porque, além de in-
dicar uma série de direitos que esse segmento social possui, reco-
nhece legalmente a necessidade de ações específicas para sujeitos
de 15 até 29 anos (SCHERER, 2018, p. 64).

Ainda hoje, são diversas as representações atribuídas às juventudes,


muitas vezes colocando sobre elas a visão de uma condição de transito-
riedade, da juventude como um “vir a ser” etapista, como um atribulado
momento de preparação para a fase adulta e de crise, assim socialmente
criando estereótipos negativos, não considerando os sujeitos em sua to-
talidade e negando o que o jovem vive no presente (DAYRELL, 2003).
Dentro desse mesmo movimento, a partir do processo de industrializa-

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ção e urbanização nas sociedades modernas e contemporâneas europeias
no final do século XVIII, perpassando pelo século XIX, se produziu so-
bre juventudes da classe trabalhadora uma preocupação constante rela-
cionada com a “delinquência” e/ou promiscuidade que se espalhou pelo
mundo tratando a juventude como uma “questão pública” (GROPPO,
2016). Assim, foi se elaborando uma ideia de juventude ligada à pericu-
losidade, do jovem como problema, de forma a justificar por parte do
poder público ações de vigilância e intervenção.
Mesmo com essas visões distorcidas do conceito de juventudes,
existe um enaltecimento das juventudes associado a valores e estilos de
vida a serem alcançadas por outras faixas etárias com a ideia de continui-
dade irrestrita de ser jovem.

Trata-se da percepção da juventude como modelo cultural: os jo-


vens como modelos a serem imitados, a juventude como a fase
da vida que se quer prolongar. Se em outros tempos históricos o
ideal era ser adulto, atualmente o desejo recai sobre a juventude
(PERONDI; STEPHANOU, 2017, p. 74).

A cultura juvenil como um modelo almejado, a ser alcançado,


surge a partir da criação de padrões impulsionados pela indústria cul-
tural dos anos 1960, articulado a outros tipos de produções, como
a indústria cinematográfica, televisiva, fonográfica, editorial, da moda
entre outros, com o direcionamento orientado para o consumo (COR-
DEIRO, 2008).
Todo esse conjunto de ideias e representações limitadas, como a
maneira de tratar as juventudes como sendo infantilizadas, como um
estado de incompletude, não sendo capazes de se colocar como sujeito
diante de instâncias decisórias, coloca sobre as juventudes a ideia de uma
necessidade de tutela, o que pode ser definido como uma visão adulto-
centrista (GÓIS, 2013).
A abordagem social empregada sobre as juventudes no caminho
em constante construção das políticas públicas, até aqui apresenta-
das, consideram e reconhecem as juventudes como sujeitos de direitos
com participação social e poder de decisão, mesmo com esse árduo
caminho trilhado para a construção das políticas públicas há que se

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avançar bastante para que seja efetivada a garantia de direitos que as
juventudes necessitam.
Os levantamentos sobre as políticas públicas de juventude, em
nível nacional, estadual e municipal, realizados neste capítulo apontam
para um ciclo de construção muito potente e participativo na criação de
políticas específicas para este segmento populacional, ocorrido a partir
do início dos anos 2000. Durante este período se buscou estruturar polí-
ticas que fossem de/para/com juventudes (UNESCO, 2004), no sentido
de que os próprios jovens fossem sujeitos ativos na sua construção. No
entanto, este ciclo foi abreviado e muito do impulso inicial se perdeu
nas diferentes esferas, sendo que restam poucas políticas de juventude,
que sejam articuladas com planejamento, orçamento específico, órgãos
governamentais de juventude e espaços de controle sociais, tais como
os conselhos. Tais evidências confirmam o quanto ainda são necessários
esforços hercúleos para uma efetiva implantação de um Sistema Nacional
de Juventude, que por ora é inexistente.
Dessa forma, percebe-se o quão importante é o aprimoramento e a
efetivação das diretrizes das políticas, sobretudo, públicas e sociais a fim
de que se viabilize cada vez mais a garantia da articulação da rede socioas-
sistencial e de um sistema de garantia de direitos que possam garantir o
acesso básico por parte das juventudes brasileiras.
Por fim, destaca-se que a ausência do Estado na garantia de políti-
cas de juventude eficientes contribui para o enfraquecimento do tecido
social, ocasionando uma fragilidade nas relações sociais e uma dificulda-
de de oportunizar aos jovens opções que lhes garantam a cidadania e uma
vida digna. Quando isso não ocorre, a perspectiva que se apresenta para
as juventudes é da vulnerabilidade, da violência e da mortalidade, que é
o que este projeto está evidenciando, a partir dos dados produzidos.

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Produção dos territórios violentados: a tríade perversa
entre Gentrificação, Favelização e Juvenicídio
nos territórios com maiores índices
de mortalidade juvenil na cidade de Porto Alegre

Ana Patricia Barbosa


Nicole Kunze Rigon
Laura Barcelos de Valls
Giovane Antonio Scherer

A cidade é um campo privilegiado para o estudo da vida humana,


pois nela se tornam evidentes questões políticas e sociais da vida cole-
tiva, dizia Robert Park (1999), célebre teórico da Escola de Chicago.
Nessa perspectiva, a violência urbana e a mortalidade juvenil são cate-
gorias fundamentais que nortearão o debate do presente capítulo, bus-
cando compreender os processos históricos de consolidação dos bairros
que concentram os maiores índices de mortalidade juvenil, conforme
evidenciado na investigação que dá origem a esse livro. Assim, aborda-
remos a cidade de Porto Alegre como um lócus de “construção social”
(LEFEBVRE, 2001), buscando descrever as diferenças que se expressam
na cidade, demarcando fronteiras e construindo espaços de segregação
(PARK, 1987). A análise aqui presente visa refletir sobre os territórios
como espaços vivos tecidos nas relações sociais que a cidade de Porto Ale-
gre foi construída, evidenciando os interesses em disputa consolidados ao
longo do processo de desenvolvimento histórico da cidade.
A reflexão parte da constatação de que nos bairros mais pobres e
com baixos índices de desenvolvimento humano, existe uma predomi-
nância da população negra, quando comparados com outros bairros da
cidade. Essa configuração resulta de atos de planejamento urbano nos
quais se expressa o caráter racializado de organização da cidade, seguindo
uma tendência de desenvolvimento dos grandes centros urbanos brasilei-
ros desde o século XIX. Para que possamos compreender a violência ur-
bana como fenômeno imbricado em uma rede complexa de relações que

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se desenvolve desde a estrutura material das cidades até a mortalidade de
jovens negros e periféricos, é necessário desnaturalizar a lógica dos terri-
tórios violentos e do vínculo causal entre pobreza e criminalidade. Nessa
linha argumentativa, demonstra-se aqui que as estruturas e políticas da
administração pública possuem um papel decisivo na gênese da margina-
lidade urbana de grupos socialmente excluídos (WACQUANT, 2001).
A divisão capitalista das cidades cria distanciamentos sociais entre
deserdados e vencedores da sociedade de mercado (WACQUANT, 2001).
Nesse mecanismo de produção de cidades, os “deserdados” são desqualifica-
dos e condenados à exclusão, de modo a promover a manutenção das fron-
teiras sociais que se sustentam pelo estigma dessas populações. Na regiona-
lização dessas desigualdades, criam-se contextos de sistemáticas violações de
direitos, e uma das mais perversas faces da violência estrutural se manifesta
através dos altos índices de mortalidade juvenil. Sabemos que essas mortes
têm cor e endereço, sendo as principais vítimas os jovens, pobres, negros e
moradores de territórios com precário acesso às políticas públicas e sociais.
A categoria território, diante deste contexto, emerge como uma im-
portante chave de leitura para compreender a dinâmica do capital e sua
manifestação espacial.  O território não é um conceito em si, uma vez que
mostra todos os movimentos da sociedade, e que em si não é um conceito,
sendo que ele só se torna um conceito utilizável para a análise social quan-
do considerado a partir de seu uso, a partir do momento em que é pensado
justamente com aqueles que dele se utilizam (SANTOS, 2006). A forma
pela qual o modo de produção capitalista impacta nas relações sociais con-
temporâneas se expressa, evidentemente, no espaço físico: criando locais de
valorização e de segregação, em uma dinâmica onde as contradições do sis-
tema capitalista tornaram-se visíveis em divisões estabelecidas nas cidades.   
Compreendemos que a produção de territórios violentados nas
metrópoles é uma construção social que envolve, pelo menos, três pro-
cessos: gentrificação, favelização e juvenicidio. Nesse sentido, conforme
Scherer (2018) os territórios não se constituem enquanto espaços “vio-
lentos”, mas sim, são violentados pela dinâmica espacial do capital, por
meio do processo de reprodução espacial do modo de produção capi-
talista, que vem vitimando segmentos populacionais específicos através
de uma dinâmica de segregação, que é fundamental para a manutenção

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do metabolismo social do capital. Nos referimos aqui aos jovens como
segmento populacional que ganha destaque nos registros de vitimização
por violência letal nos territórios violentados da cidade de Porto Alegre.
Considerando a influência do fator urbano na construção das traje-
tórias juvenis e seus projetos de vida, o presente capítulo visa analisar a reali-
dade socioespacial dos bairros que, de acordo com o Sistema de Informação
sobre Mortalidade (SIM), apresentaram os maiores índices de mortalidade
juvenil em Porto Alegre, a saber: Restinga, Lomba do Pinheiro e Sarandi.
Nessa direção, serão analisados os processos históricos que consolidam esses
territórios como produto de relações sociais que se consolidam na direção
da acumulação do capital, na perspectiva de construir uma cartografia des-
ses territórios a partir de uma abordagem sócio-histórica. De modo a situar
esses bairros no contexto mais amplo do município, o texto o contextualiza
a capital gaúcha, considerando aspectos históricos e contemporâneos de seu
desenvolvimento urbano. Na sequência, a análise se centra nos processos
sócio-históricos de formação dos três bairros selecionados. Por fim, serão
analisadas as relações entre gentrificação, favelização e juvenicidio, demons-
trando a forma pela qual os territórios são violentados pela dinâmica do
atual modelo de produção capitalista, enquanto resultantes do momento
histórico de consolidação socioespacial que tem como base a produção de
desigualdades e na manutenção das relações de classe social com nítidos
recortes ético-raciais que contribuem para ceifar a vida das juventudes.

“Arrumando a Sala de Visitas”1: Análise dos Processos de Moderniza-


ção de Porto Alegre no Início do Século XX

Porto Alegre, no início do século XX, era uma cidade que se desen-
volvia sob um ideal de modernidade, buscando satisfazer as “exigências
morais, higiênicas e estéticas” para se parecer moderna (PESAVENTO,
1995). Esse ideal, de acordo com Sandra Pesavento, correspondia mais a
um imaginário social sobre as metrópoles do que a realidade concreta do
desenvolvimento urbano. As paisagens materiais da nova cidade foram se
transformando muito lentamente, mas o discurso da modernidade logo
surtiu efeito na construção de práticas sociais individualizantes e exclu-
1 Para saber mais, ver: Vieira (2017).

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dentes, como a expulsão dos pobres das regiões centrais. O crescimento
populacional desmedido e centralizado, segundo a ordem dominante,
apontava para a criação de uma metrópole onde não haveria espaço para
todos em seu centro político e econômico. Os desequilíbrios sociais re-
sultantes desse processo, denominado por pesquisadores de “urbanização
sociopática” (PEREIRA, 1969 apud VELHO, 1989), possuem como
uma de suas formas de expressão o surgimento das favelas no Brasil.
Segundo Daniele Vieira (2017), a abolição da escravatura e a ins-
tauração da República (1889) provocaram uma intensa reorganização
territorial nas cidades brasileiras. A autora se refere aos processos de mo-
dernização do centro entre os anos de 1897 e 1937 como “políticas para
arrumar a sala de visitas”. Ficava explícito nesse movimento o desejo
pelo isolamento do centro e sua reconstrução estética para as classes ricas
com base em uma concepção de modernidade burguesa. Essa concepção
preconizava a transformação do espaço urbano de modo a apagar seu
passado colonial e tudo o que a ele remetia. “Modos de vida, hábitos e
costumes populares como o jogo, as tabernas, as habitações coletivas” já
não condiziam mais com a nova ideologia urbana (VIEIRA, 2017, p.
66). Assim, Porto Alegre naquela época começava a empreender uma
campanha de saneamento de espaços e pessoas, “relacionando precarie-
dade material à degradação moral” (VIEIRA, 2017, p. 67).
O desenvolvimento das áreas centrais das grandes cidades, na virada
do século XX, foi determinante para a expansão da cidade e para o início
da ocupação das regiões periféricas de Porto Alegre. Isso porque a valoriza-
ção imobiliária do centro e os altos custos de vida tornavam insustentável
a vida nessa região para as classes trabalhadoras. Nesse paradigma higieni-
zante e embranquecedor, foram se construindo estratégias de controle das
populações mais pobres, minando seu direito à cidade nas zonas centrais.
As condições socioeconômicas das famílias que precisaram evadir de seus
espaços de habitação na região central eram precárias. Sem condições so-
cioeconômicas, e na ausência de políticas sociais de habitação apropriadas,
grande parte dos territórios periféricos foi ocupada clandestinamente por
habitações irregulares, muitas vezes em zonas de risco.
Se conjecturarmos sobre a experiência de Porto Alegre levando em
consideração movimentos globais de transformação das cidades, o con-

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ceito de gentrificação se constitui como uma importante categoria teórica
na análise da construção da cidade e na consolidação dos territórios com
altos índices de mortalidade juvenil. O termo gentrificação emerge na dé-
cada de 1960 através dos estudos da socióloga inglesa Ruth Glass. Nestes,
são descritos processos iniciados na década de 1950 na cidade de Londres
em que, bairros localizados à região central da capital inglesa ocupados à
época pela classe trabalhadora. Tais bairros encontravam-se em situação de
deterioração (ALCÂNTARA, 2018). Supostamente, em razão de tais con-
dições de deterioração ou habitabilidade, estes passam a ser revitalizados e
transformados em territórios de moradia para a classe média: gentry2.
Foi na década de 1970 que o termo veio a popularizar-se enquanto
conceito na Europa e em países da América do Norte, tais como Estados
Unidos e Canadá. O conceito de gentrificação tem sido relacionado com
frequência a um fenômeno que acontece no mercado residencial. No en-
tanto, conforme sinaliza Furtado (2014), se olharmos para as descrições de
alguns processos de remoção de trabalhadores, percebemos que o processo
de gentrificação parece não um novo, mas, antes, a nova forma de um
velho processo. O conceito aplicado em dimensão sócio-histórica, não tão
somente em dimensão fenomenológica vai ao encontro com o que Harvey
(2005, p. 53) caracteriza enquanto produção capitalista do espaço, uma
vez que este espaço se assemelha à paisagem do capital e passa a ser repre-
sentado na forma de uma paisagem física, criada à sua própria imagem.
Na realidade brasileira e porto-alegrense, este processo verificado como
gentrificação promove a higienização social nas áreas urbanas – especialmen-
te centrais – e o branqueamento de territórios marcadamente privilegiados
não tão somente pelo aparelhamento de serviços públicos, como também
pela presença de oferta de bens e serviços e, consequentemente, pelo mer-
cado de trabalho oriundo desta esfera. Dessa maneira, se removem sujeitos
sociais socialmente marcados por raça e classe da zona urbana central através
da iniciativa estatal; estando, assim, tais iniciativas vinculadas aos interesses
expressos pelo capital e operacionalizados pela elite econômica; intencionan-
do, dessa forma, o uso do espaço sob égide do modo capitalista de produção.

2  Termo utilizado na Inglaterra para designar a classe média. O termo tem origem na
designação da classe palaciana situada imediatamente abaixo da nobreza no ranking
social em inglês.

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O processo de gentrificação atravessa os tempos na história de
Porto Alegre, se reconfigurando, por meio de diversas feições, em es-
tratégias da gestão da cidade que, muitas vezes, se calca em concepções
que visam a “limpeza social” de espaços públicos. Nesse sentido, mos-
tra-se fundamental a compreensão do caráter dialético existente nesse
processo, uma vez que o processo de gentrificação acarreta de um lado
a produção de “bairros nobres” e de outro a ampliação de espaços de
favelização em determinados territórios, em uma nítida contradição
estrutural da cidade sob os signos neoliberais. A ampliação de espaços
de favelização acarreta na privação de massas populacionais do direito
à cidade, acarretando em uma série de violações de um conglomerado
populacional cada vez mais amplo.
A constituição das desigualdades socioespaciais nas cidades se dá
mediante dinâmicas de desterritorialização/reterritorialização (HAES-
BAERT, 2004; 2005) das populações mais pobres da cidade, uma vez
que os moradores são provenientes de outras localidades da cidade e que,
devido às condições de pobreza, vislumbram uma possibilidade de deixar
de pagar aluguel, e fixar-se em nova moradia na condição de proprietá-
rio. Essas dinâmicas são pensadas conceitualmente como processos de
gentrificação e adquirem diferentes configurações conforme as caracte-
rísticas dos espaços em que estão em curso. Cabe, portanto, analisar mais
detalhadamente a seguir como essas dinâmicas vêm se constituindo nos
territórios de Porto Alegre/RS que concentram as maiores taxas de mor-
talidade juvenil: os bairros da Restinga, Lomba do Pinheiro e Sarandi.

Restinga Popular:
o destino das Vilas de Malocas removidas na década de 60

Localizada a cerca de 22 quilômetros de distância do centro e com


uma população de mais de 60 mil habitantes, a Restinga é um dos maio-
res bairros de Porto Alegre. Sua existência na atualidade é fruto de pro-
cessos de gentrificação e favelização da cidade, que nas décadas de 1960 e
1970 foram chamados, pelos gestores públicos, de “modernização”.
Uma das formas de contar a história da Restinga é a partir da crise
habitacional ocorrida entre os anos 1940 e 1950. Naquela época, houve

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uma forte onda migratória de trabalhadores(as) do campo para a capital
em busca de melhores condições de vida e trabalho. O êxodo rural inflou
a população de Porto Alegre e para gerar soluções a essa crise de habi-
tação, foi criado, em 1965, o Departamento Municipal de Habitação
(DEMHAB), para administrar políticas sociais de habitação.
A atuação do DEMHAB naquela época pautou-se pela filosofia “re-
mover para promover”. Na prática, buscava remover habitantes das vilas de
malocas, que eram focos de pobreza, da região de desenvolvimento urbano
para locais onde supostamente pudessem levar uma vida mais digna. O
objetivo da iniciativa era atender uma demanda habitacional, mas acabou
maquinando uma verdadeira onda de higienização urbana (HEIDRICH,
2000). Invés de construir uma política habitacional que visasse a inclusão
social desses grupos desprivilegiados nos espaços onde possuíam víncu-
los territoriais e afetivos, o caminho escolhido foi o desmantelamento e
realocação de territórios negros e pobres. Nesse processo, que aconteceu
durante a ditadura militar, foram removidas pela Prefeitura de Porto Alegre
48.194 pessoas das vilas de malocas e a Restinga foi o destino de 10% des-
sas pessoas (GAMALHO, 2009). A primeira das vilas a serem removidas
da região central foi a Ilhota, em 1967. Depois foram as vilas Teodora,
Marítimos, Santa Luzia e outras 16 outras vilas na sequência.
Analisando tais processos de “remoção”, podemos notar que a se-
gregação socioespacial que deu origem à Restinga foi produto de escolhas
de políticos e gestores e projetos construídos para esse fim. Contudo,
havia na época um projeto que vislumbrava a construção de um núcleo
habitacional para 20 mil pessoas e as notícias veiculadas nas mídias lo-
cais contavam que estava prevista a instalação de equipamentos sociais
e infraestrutura, mas essa não foi a realidade encontrada pelas primeiras
famílias a chegarem lá. Essas contradições ficam evidentes em uma re-
portagem publicada pela Zero Hora em 19673, que descreve o cenário
da Restinga como espaço do vazio, chamando-a de “vila do abandono”:

A Restinga não é uma vila, nem uma granja, nem um loteamento.


Não é coisa alguma. Um deserto. Areia fina e sêca, côr de cinza.
Nem capim, nem árvores [...] capões de arbustos secos, também

3 Para saber mais, ver: Gamalho (2010).

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cinzentos, barbas de pau, plantas em agonia, uma sanga esverdea-
da de limo [...]. Nem luz, nem água, nem comércio, nem hortas,
nem indústria [...] nem trabalho. [...] A Restinga não tem coisa
alguma. Isto é, tem gente.
A água é fornecida de oito em oito dias por carros–tanques, que
enchem as pipas públicas e as três ou quatro caixas d’água que exis-
tem [...] Água exposta a todas as contaminações. E quando o carro
atrasa mais de quinze dias, eles bebem água da sanga [...]. Em de-
sespero de causa, os moradores tentaram perfurar poços por conta
própria [...] só encontraram barro [...]. A escola fica a mais de três
quilômetros de distância e os pequenos que não podem caminhar
tanto, perderam o ano [...]. Os grandes perderam os empregos [...].

Condizentes com a conduta militar da ditadura, os processos de re-


moção foram repentinos e inescrupulosos, deixando marcas permanentes
no bairro e na vida de seus habitantes. A partir de entrevistas com pessoas
que vivenciaram esse evento, a pesquisadora Neila Araújo conta que as
casas eram “removidas do local de origem, desmontadas e carregadas em
caminhão da Prefeitura junto dos seus moradores. Na Restinga, local de
destino, a casa era jogada em um monte de tábuas, que aguardavam o tem-
po de se transformarem novamente em casas” (ARAÚJO, 2018, p. 10-11).
Um senhor, morador da Restinga, entrevistado pela pesquisadora,
lembra que 1967, quando tinha 8 anos, voltava para casa cansado após tra-
balhar o dia todo engraxando sapatos e chegando à Ilhota, onde costuma-
va morar, se deparou com um espaço vazio no local de sua casa. Sua mãe
também não estava ali. Um trecho da entrevista nos permite compreender
um pouco do sentimento vivenciado por ele nesse acontecimento:

P: Na Ilhota, você viu as primeiras casas serem retiras?


E: Sim, a nossa foi uma das primeiras.
P: Como foi esse momento?
E: É como eu te falo né, quando cheguei lá, só tava a marca da
casa no terreno, tive que dormi por lá, ai tinha um Russo lá, o
cara que tinha uma tendinha, que disse - não, tu fica aqui que,
amanhã nois vamo indo pra lá e tu vai com nois. Ai tá, quando
eles vieram tinha um caminhão lá, [...] era uma trazera de ônibus,
a cabine eles cortaram [...] era a trazera de ferro, era o caminhão
[...]. (ARAÚJO, 2018, p. 11).

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Chegando lá, não havia infraestrutura, nem água, nem transporte.
A falta de condições mínimas de moradia fez com que os/as moradores/as
precisassem trabalhar coletivamente para o desenvolvimento comunitário.
Era necessário construir uma estrutura mínima de estabelecimentos e ser-
viços para que a população não tivesse que se deslocar tanto para satisfazer
suas necessidades e isso foi se tornando possível devido à ação política da
comunidade na formação de associações. Assim, nesse histórico de luta e
sofrimento, em uma cidade fragmentada pelo capital, a ação dos sujeitos
foi dando forma ao bairro e à sua vida cotidiana compartilhada.
Se por um lado a falta de recursos e amparo social foram fatores
que marcaram a produção do espaço na Restinga, a venda de terrenos a
baixo custo possibilitou também o acesso formal à habitação para muitas
famílias de baixa renda que pagavam aluguel ou viviam em situação irre-
gular. Além de conquistar o direito à moradia, ter uma casa própria tam-
bém traria ganhos simbólicos às famílias, como progresso, autoafirma-
ção e sentimento de pertencimento. A esse respeito, um profissional que
trabalha em um equipamento social para juventude no bairro comenta:

Eu acho que a formação sócio-histórica da Restinga, esse pro-


cesso de remoção, de jogar as pessoas dentro desse espaço. A
população que vem pra cá como forma de ter sua moradia, por
ser um território ainda com várias áreas que chamam de áreas
verdes, então ocupa aquelas áreas pra poder manter a sua... pra
poder ter sua vida, sair do aluguel e conseguir sustentar os seus
filhos (PROFISSIONAL 3).

Na constituição sócio-histórica do bairro, há também que se con-


siderar o fator racial como determinante de sua população. Atualmente
38,5% da população da restinga é negra (IBGE, 2010), concentração
comparativamente maior do que em todo o território porto alegrense,
conforme descreve o profissional:

Ele é um território majoritariamente negro. Então tu vê no terri-


tório, tu vai no mercado, tu vai encontrar várias pessoas negras na
padaria, no cabelereiro, enfim. É uma quantidade muito grande
de famílias negras dentro desse território. Até pela formação dele...
Um território que sofreu uma certa violência, porque a população

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negra acaba sendo removida da região central e foi lançada pra
alguns pontos. Um deles foi a Restinga, né, no Remover para Pro-
mover na época da ditadura. Então é traço dessa população preta
que chegou neste território (PROFISSIONAL 3).

Existe uma naturalização do racismo estrutural que forma e man-


tém precárias as condições de vida nas periferias, por isso enfatizamos aqui
que a favelização das cidades brasileiras é uma das expressões do racismo
que rege a produção desses espaços. Sob essa perspectiva, as remoções,
que aconteceram e seguem acontecendo, são intervenções arbitrarias nos
territórios negros, como foi o caso da Ilhota nos anos de 1960, cuja po-
pulação teve a Restinga como principal destino (WEIMER, 2017).
A Restinga é um território amplo e afastado do centro. Por isso, é
vista por muitos como uma cidade à parte, que se subdivide em Restin-
ga Velha e Restinga Nova. A Restinga Nova, ocupada a partir dos anos
1970, é mais urbanizada, mais desenvolvida, com asfaltamento e uma
grande praça central, enquanto que a Restinga Velha tem o terreno mais
acidentado, com declividades e ruas de chão batido. Como a Restinga
Velha foi ocupada anteriormente, na década de 1960, ela concentra mo-
radores(as) mais antigos e predominam sociabilidades de um bairro mais
residencial, como crianças na rua e pessoas em frente às casas tomando
chimarrão (ZAMBONI e ECKERT, 2006).
Com a chegada dos anos de 1980, no período de redemocratiza-
ção do país, o aumento da criminalidade contribuiu para transformações
espaciais nas cidades brasileiras, surtindo efeito no aumento da violência
nas periferias. De acordo com Teresa Caldeira (2000), o aumento da
criminalidade violenta nesse período vem sendo explicado pelas Ciências
Sociais devido a alguns fatores como: 1) urbanização, pobreza, indus-
trialização e analfabetismo; 2) desempenho das instituições encarregadas
de manter a ordem; 3) elementos culturais e ação violenta do Estado no
manejo da criminalidade. A ausência de políticas urbanas e de desenvol-
vimento social adequadas para as áreas mais pobres das cidades faz delas
territórios férteis à criminalidade e ao tráfico de drogas.
As inúmeras dificuldades estruturais vivenciadas por jovens da Res-
tinga na atualidade são resultantes da construção histórica do bairro, como

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vínhamos argumentando. O movimento comunitário lutou autonoma-
mente para construir condições mínimas de habitação no espaço da cidade
que foi reservado à sua população. Ainda assim, a ausência de políticas de
habitação e desenvolvimento social naquela época surte efeitos nas condi-
ções sociais do bairro na atualidade. A violência urbana e a mortalidade
juvenil são alguns reflexos disso. As características da Restinga refletem as
mazelas de um processo de desenvolvimento árduo que já dura mais de 50
anos: 70,16% dos(as) responsáveis por domicílios recebem até dois salá-
rios-mínimos, outros 30,39% vivem e sustentam suas famílias com até um
salário-mínimo. Além disso, a Restinga é o quarto bairro com menor IDH
da cidade, ficando abaixo do valor médio do país (OBSERVAPOA, 2015).
No cenário mais amplo da cidade de Porto Alegre, a Restinga se
destaca a partir de dois distanciamentos, social e físico. As longas distân-
cias a serem percorridas tanto dentro do bairro quanto fora dificultam o
acesso de jovens ao comércio, lazer, serviços e empregos fora do períme-
tro do bairro ou seus arredores. O preço do transporte público e o tempo
de deslocamento circunscrevem as sociabilidades juvenis aos limites da
Restinga. Nos termos do profissional:

É um território muito distante da região central, também é um


território muito extenso. Então por vezes o deslocamento e o
acesso à política pública dentro desse território são dificultosos.
Envolve transporte, e transporte envolve dinheiro. Ele envolve às
vezes a organização de um dia, meio turno no mínimo, pra ti po-
der fazer alguma atividade. Então, essa configuração do território
periférico, isso às vezes acaba dificultando um pouco o processo
de atendimento (PROFISSIONAL 3).

O distanciamento também é um obstáculo para a implementação


e o acesso às políticas públicas, pois possuem abordagens territorializadas
e não conseguem abranger a totalidade do território, conforme comen-
tou o profissional:

A Restinga é um território muito grande. A Restinga e o Extremo


Sul são o maior território que tem em Porto Alegre, falando na
abrangência do CREAS, a maior distância territorial. Tanto que
eu vou atender um adolescente lá no Cantagalo e do Cantagalo

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ele vai demorar uma hora até o CREAS. Isso é o tempo que se leva
de uma praia. Sei lá, alguém que mora em Imbé e vai frequentar o
CREAS de Tramandaí. Ele vai atravessar algumas cidades. E isso a
gente tá falando de uma capital [...] dessa distância dentro de uma
capital. Então ele é um território já distante do centro. Acho que
esse é um fator [...] se leva uma hora, uma hora e dez de ônibus
pra poder se deslocar até o centro (PROFISSIONAL 3).

Parte importante da história do desenvolvimento de Porto Alegre


está na Restinga. Os traumáticos reassentamentos da década de 1960 e
a construção popular desse território se tornaram, na história do bairro,
uma espécie de “mito de origem” (GAMALHO, 2009). Nesse processo,
o esforço coletivo envolvido na construção de um lugar para se viver
fortaleceu o sentimento de pertencimento comunitário e a construção de
uma identidade cultural para o bairro. Hoje a Restinga conta com uma
ampla rede de serviços e equipamentos de saúde, educacionais, transpor-
te, lazer, comércio etc., funcionando, apesar das dificuldades estruturais
que persistem, de forma autossuficiente na cidade. Aquele território para
o qual a população temia ser realocada, hoje possui uma comunidade
fortalecida que já não se imagina habitando outros espaços na cidade,
senão aquele próprio.

Lomba do Pinheiro: Territorialidades e Temporalidades

A ocupação e organização do território denominado Lomba do Pi-


nheiro acompanha os ritmos temporais da cidade de Porto Alegre. O iní-
cio da ocupação dessa Região, nos anos de 1960, ocorreu num momento
de profundas mudanças estruturais na cidade de Porto Alegre, dada a
complexificação do espaço urbano e da vida social, pela modernização
e industrialização. A produção e organização deste território é resultado
desse processo histórico de urbanização que a cidade de Porto Alegre
passou nos últimos anos, produzindo uma cidade bem mais complexa
em relação à distribuição das pessoas e que reflete a complexidade do
processo da urbanização brasileira.
O processo de constituição dessa Região deu-se mediante dinâ-
micas de desterritorialização/reterritorialização (HAESBAERT, 2004;

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2005), de inúmeras populações mais pobres da cidade, uma vez que os
moradores são provenientes de outras localidades da cidade e que, devido
às condições de pobreza, representava a possibilidade de ascensão social,
através da oportunidade de emprego e de moradia própria.
A formação do bairro Lomba do Pinheiro acompanha os processos
de êxodo rural que ocorreram fortemente no Brasil, a partir da segun-
da metade do século XX. Neste período, Porto Alegre experimentou um
crescimento vertiginoso e desordenado da população urbana quando as
grandes cidades brasileiras passaram por profundas transformações advin-
das do processo de urbanização. Segundo dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE, 2010), a população urbana brasileira, em
1945, era de 25%, e, em 2010, chegou a 84%, ocasionando, em um curto
espaço de tempo, uma mudança brusca na forma de uso e ocupação do
solo urbano, sem planejamento adequado para receber tal demanda, crian-
do condições para que, paralelo ao desenvolvimento das áreas centrais das
cidades, começasse o afastamento da população das camadas mais pobres
para zonas de infraestrutura mínima ou zero (ÁVILA e ARAÚJO, 2006).
Os moradores da Lomba do Pinheiro são, na sua maioria oriundos
do interior do Estado e, a partir da década de 1960 e 1970, passa a rece-
ber pessoas de outros bairros da cidade. De modo geral, a maioria de seus
moradores são de baixa renda, o que nos auxilia na compreensão da mor-
fologia urbana do bairro, caracterizada por sub-habitações, constituindo
aglomerados irregulares sem planos urbanísticos. Os principais motivos
que caracterizaram o processo de ocupação mais intenso da Lomba do
Pinheiro, nos anos de 1970, se deram devido a elevação dos preços dos
imóveis nas áreas mais centrais de Porto Alegre e a remoção de vilas4
(FONTOURA, 2005).
Localizada na região leste de Porto Alegre, fazendo divisa com
Viamão, a Lomba do Pinheiro é heterogênea em sua ocupação: nela
convivem núcleos densamente povoados e áreas verdes, de preservação

4 A utilização do termo Vila serve para caracterizar as favelas no sul do país e tem ori-
gem no termo “vila operária”, utilizado “para nomear um grupo de moradias destinadas
a operários de um mesmo empreendimento fabril [...]”, mas que em seguida “seria
estendido para designar grupos de casas modestas semelhantes produzidas por outros
agentes” (CORREIA, 2001, p. 84 apud ECKERT e LORD, 2002).

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ecológica. O bairro também possui uma formação quilombola, princi-
palmente próximo a região do Belém Velho, bairro fronteiriço à Lomba
do Pinheiro, onde há muitos quilombos, sendo, portanto, outra marca
bastante forte da região.
Inicialmente, a região estava dividida em grandes extensões de ter-
ras pertencentes a famílias de origem portuguesa que cultivavam a terra
e criavam animais. Até meados dos anos de 1940, a Lomba do Pinheiro
manteve características rurais, e seus moradores comercializavam seus
produtos hortifrutigranjeiros no Centro de Porto Alegre. O relato do
Profissional 2 nos revela essas características:

A Lomba do Pinheiro é um território marginalizado já no seu


processo de formação. É uma região que fica entre Viamão e Por-
to Alegre, sendo a maior parte em Porto Alegre, fazendo divisa
com a Restinga, e a menor, em Viamão. É um território formado
basicamente por indígenas ou povos tradicionais, pessoas que fo-
ram desalojadas dos seus territórios no processo de ‘urbanização e
modernização’ da capital. Neste processo, estas pessoas foram “jo-
gadas” (SIC) na Lomba do Pinheiro. É um território que tem uma
formação bastante rural, então, as pessoas que vieram do interior
e que não tinham, também, onde morar, acabaram por se fixarem
na Lomba do Pinheiro. Nos últimos 20 a 25 anos, a Lomba do
Pinheiro tem uma geografia [com características] bastante perifé-
rica, sendo que, ao irem chegando, as pessoas foram se acomodan-
do em lugares de difícil, ou até mesmo, impossível acesso. Então,
muitos moradores da região construíram suas residências em lo-
cais inabitáveis, perto de mangues, ou moram em ribanceiras, ou
locais que foram lixões, etc. O bairro só começou a se desenvolver
enquanto um território com maiores condições de sobrevivência,
a partir da construção da Avenida do Trabalhador – Estrada João
de Oliveira Remião –, cuja construção permitiu uma melhora na
organização territorial, isto é, surgiram loteamentos, o comércio
passou a ser mais organizado, proporcionando aos moradores a
permanência no território da Lomba do Pinheiro para compra
de produtos básicos como alimentos, acesso a saúde e afins. É
também uma região distante do centro de Porto Alegre, e quando
cheguei aqui (SIC), em 1993, chegava-se a demorar de 01h30min
a 02h30min para chegar ao centro da capital, pois o ônibus, em
dias de chuva, não subia e nem lomba (PROFISSIONAL 2).

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À margem das condições básicas da vida na cidade, essas popu-
lações buscam construir as suas estratégias de sobrevivência, e passam a
ocupar espaços públicos e privados, estabelecendo marcos, definindo li-
mites e fronteiras espaciais. As “formas espaciais” decorrentes dessas ocu-
pações podem ser consideradas pela dinâmica territorial que movimenta
o tecido urbano, enredando a constituição de “territórios alternativos”
(TROILES, DANTAS e MORAIS, 2012).
A Lomba do Pinheiro, como local de moradia das camadas mais
pobres da população é um lugar onde o Estado não se instalou de fato
e em que precisa ser ativada a qualidade de todos os serviços para evitar
o medo, a escuridão, o lixo largado, a insegurança e a ilegalidade (MEI-
RELLES e ATHAYDE, 2014). É um território ainda pouco explorado
do ponto de vista da cidadania. A desigualdade de acesso a direitos bá-
sicos, inerentes à noção de cidadania, representam a continuidade e o
paradoxo dessa sociedade que, ao mesmo tempo em que cultua os valores
da independência, da autonomia e da igualdade, presentes na lógica do
indivíduo-cidadão (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1992), reproduz per-
manentemente segmentações e diferenciações hierárquicas.
Oriundos desse espaço, as juventudes da Lomba do Pinheiro vêm
de realidades caracterizadas pela dificuldade de acesso ao estudo, ao lazer
e ao trabalho, na baixa renda familiar, na estrutura precarizada das mora-
dias, das ruas, e outros aparatos da infraestrutura estatal, que perduram
no tempo. Os jovens da Lomba do Pinheiro vivem os dilemas da sua
condição juvenil contemporânea com as possibilidades e limites que são
historicamente produzidos. Moram em espaços sociais de precarização
da cidadania. A pobreza, as adversidades e ausências estruturais que im-
pactam na qualidade de vida compõem os principais elementos que os
jovens enfrentam, em distintas gerações.
Além disso, como fator determinante em sua constituição social,
habitam territórios que são atravessados pela violência, em especial a
presença (e mesmo domínio) do narcotráfico, que estabelece uma sé-
rie de restrições e proibições (de circulação no espaço, de convivência
com moradores de outras regiões, de ameaças e perigos constantes, entre
tantas outras que caracterizam essa relação entre traficantes e moradores
das favelas), gerando, para esses indivíduos, uma possibilidade sempre

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iminente de morte seja como vítimas da competição violenta entre trafi-
cantes, seja pelo envolvimento direto como agentes no tráfico de drogas
ou no próprio consumo, seja pela repressão policial ou ainda pela disputa
de território entre gangues.

De outro lado, esta região, ainda que seja mais escondida, por
ter proximidade com o Campus do Vale e, ao mesmo tempo, li-
gada à Viamão e a Restinga, possui um forte “assédio” a venda
de drogas, sendo conhecida como um “corredor da droga”. Além
disso, é uma rota de fuga dos jovens que trabalham com a venda
de drogas, o que torna a “questão da droga” algo muito forte, não
sendo à toa um dos territórios de maior mortalidade, tanto por
suas características, quanto por ser um “corredor”, o que facilitada
essa questão (PROFISSIONAL 2).

Viver nesses territórios, principalmente das grandes metrópoles


contemporâneas, é conviver com vulnerabilidades variadas, equipamen-
tos públicos insuficientes, oportunidades limitadas de trabalho, cultura,
esporte e lazer – e, muitas vezes, os jovens desse meio são atraídos pelas
possibilidades vislumbradas mediante a inserção no mundo do crime,
sobretudo o tráfico de drogas.
O crescimento do crime organizado, em especial seus tentáculos re-
lacionados ao tráfico de drogas, que vem recrutando muitos jovens na pers-
pectiva da exploração do trabalho dentro do insalubre e perigoso mercado
da ilegalidade, constitui mais um reflexo de um Estado retraído na exe-
cução de políticas públicas que possam garantir os direitos da população
de forma universal. Em outros termos, o crescimento da ilegalidade dá ao
mesmo tempo visibilidade para a ineficácia de um Estado Penal, que busca
marcar sua atuação com ações de repressão na perspectiva da minimização
de suas responsabilidades na providência de direitos sociais, bem como re-
vela as fraturas de uma sociedade desigual, que gera processos de trabalhos
ligados a práticas ilegais, catalisando processos de violência e violações de
direitos, afetando grande parte da sociedade (SCHERER, 2015).
Ao analisar as juventudes da Lomba do Pinheiro, é possível perce-
ber um quadro que se desenha em meio a dificuldades e precariedades de
inserção no mercado de trabalho, acesso ao direito à educação, aos bens e

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serviços públicos, que marcam a duração dos modos de vida dos habitan-
tes da região. Com poucas expectativas de melhoria da qualidade de vida,
muitas juventudes percebem a sua inserção em processos de trabalho vin-
culados à clandestinidade, isto é, um mercado informal não legal. São no-
vos tempos, em que a ausência do Estado atualiza novas vulnerabilidades.
Mendes (2007) afirma que a vulnerabilidade social não se resume
à simples consequência da exposição aos perigos, mas sim ao resultado
de condições de desigualdades sociais que vão acumulando as desvanta-
gens ao longo das trajetórias dos moradores das camadas mais pobres da
população, criando-se assim um déficit de cidadania.
Nesse contexto, marcado por desigualdades e contradições que
condicionam a vivência plena do direito às oportunidades da cidade, as
juventudes da Lomba do Pinheiro convivem, ao longo dos tempos, com
diferentes vulnerabilidades que permeiam suas vidas. Essas juventudes
vivenciam as contradições das lutas existentes no espaço urbano, onde,
apesar dos seus escapes e manejos cotidianos, usufruem de um meio cita-
dino caracterizado pelo descaso e pela negligência em que faltam equipa-
mentos e serviços essenciais a uma condição social digna.
Em que pesem as dificuldades e carências que marcam as condições
de vida na Lomba do Pinheiro, ao longo dos tempos, é um território de
lutas e de estratégias coletivas (DE CERTEAU, 2012), para a superação de
dificuldades e enfrentamento das vulnerabilidades sociais. Essas dinâmicas
são importantes para compreender as territorialidades consolidadas na re-
gião, fruto das interações entre os sujeitos e que assume papel importante
na constituição de grupos sociais, sendo referenciadas, sobretudo, pelas
marcas acumuladas no tempo, dos moradores que ali vivem.
Diante da história dessa Região, como espaço de conquista, pode-
-se dizer que a “solidariedade” tornou-se um elo entre os seus moradores
visando à sobrevivência num mundo contingente. É importante ressaltar
que o surgimento da Lomba do Pinheiro ocorreu devido às condições
de pobreza de seus ocupantes, em que a forma de resistir às pressões do
poder público e subsistir no vácuo do estado social foi promovendo a
solidariedade entre seus ocupantes.
Mais que um lugar de habitar, a Lomba do Pinheiro constitui-
-se um local simbólico do imaginário, de lutas e construção de uma

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identidade coletiva, território que não é somente o espaço físico, mas
também código de relações de convívio (ÁVILA e ARAÚJO, 2006). O
sentido de pertencimento àquele lugar evidencia a dimensão da exclu-
são social que se perfila nas cidades: unem-se os “vileiros”, na constru-
ção de alianças de solidariedade.

Sarandi: novas figurações


de uma Velha História de “Desenvolvimento”

Segundo informações do Centro de Pesquisa Histórica, vinculado


à Coordenação de Memória Cultural, da Secretaria Municipal de Cultu-
ra de Porto Alegre, o território do bairro Sarandi está situado na localida-
de que pertencia à sesmaria doada a Jerônimo de Ornellas e Menezes5. A
partir do século XIX, a região do arroio Sarandi foi ocupada por estâncias
de criação de gado, chácaras e tambos de leite, aproveitando a fertilida-
de das terras, sendo que, somente no início do século XX começa a ser
povoada com maior intensidade, surgindo, também, plantações de arroz
nas margens do Gravataí. Percebe-se que a presença de alguns afluentes,
especialmente o arroio Sarandi, que mais tarde dará o nome ao bairro,
teve forte influência para o desenvolvimento da agricultura na região.
O processo de urbanização da região começa a ocorrer, de forma
mais intensa, a partir da década de 1940, acompanhando o crescimento
da cidade de Porto Alegre no contexto do processo de desenvolvimentismo
brasileiro. No início do século XX, os investimentos na reorganização e
melhorias urbanas mantiveram-se restritos à área central, enquanto os bair-
5 Tal sesmaria vinha até o Porto e a Ponta do Gasômetro; ao sul, ela era limitada pelo
Arroio Dilúvio; ao norte, pelo Rio Gravataí; a leste pelos arroios Feijó e Dornelles (SOU-
ZA, 2012). Segundo Alveral (2015), o modelo das sesmarias, que era pensado para resol-
ver problemas de abastecimento em Portugal a partir de 1375, e utilizado na colonização
do Atlântico, teve que ser aperfeiçoado à medida que novas situações eram apresenta-
das no decorrer da ocupação territorial. Tal modelo teve uma maior consolidação entre
1683-1706, sob o qual as conquistas na América passaram a receber mais atenção por
parte das autoridades reinóis, formulando, no tocante às sesmarias, uma gama de or-
dens reais que passaram a regulamentar aspectos antes não contemplados, sendo que
tais novas diretrizes resultaram em uma tentativa ampla de regulamentação da posse de
sesmarias em praticamente todas as capitanias, inclusive com a instituição de um foro
anual, o que configurava uma mudança no estatuto jurídico das doações de sesmarias.

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ros mais afastados do centro, como o bairro Sarandi, mantiveram-se com
precários acessos com relação à água encanada, iluminação pública e ener-
gia elétrica domiciliar (SCHERER, et al., 2021). O crescimento urbano
de Porto Alegre se constitui como um produto de um processo histórico
marcado pela desigualdade social no espaço da cidade, buscando construir
espaços geográficos de segregação. Conforme ressaltam Polidoro e Demi-
chei (2015), os projetos de modernização, executados ao longo do século
XX e XXI na cidade de Porto Alegre, vislumbram um espaço heterogêneo,
marcado pela divisão espacial da população, sobretudo a partir da renda e
raça, e o acesso ao mercado formal de trabalho, com uma também desigual
distribuição dos elementos essenciais para a vida na cidade.
O desenvolvimento do bairro está relacionado com as mudanças
no cenário da capital gaúcha, especialmente após a década de 1940. So-
bre isso, ressalta Farinon (2015, p. 66):

O processo de loteamento de terras em Porto Alegre teve início em


1920, mas foi a partir da década de 40 que os loteamentos come-
çaram a aparecer. Na primeira metade do século XX a expansão
de Porto Alegre ocorreu a partir do centro histórico em direção
à região norte no sentido da ferrovia e BR 116. Foi nessa região,
em meados de 1940, que a instalação das indústrias se intensificou
constituindo, dessa forma, a principal zona industrial da cidade.

A zona norte, região em que se localiza o bairro Sarandi, desem-


penhou um importante papel no desenvolvimento industrial da cidade.
Após a enchente histórica de 1941, que inundou grande parte das in-
dústrias localizadas na região central, muitos dos estabelecimentos foram
realocados para a zona norte da cidade. A localização privilegiada do
bairro, na fronteira com cidades da região metropolitana, como Canoas,
Alvorada e Cachoeirinha, atraiu os interesses de empresários para a re-
gião. Os terrenos eram adequados e com fácil acesso pela entrada da ci-
dade, os valores imobiliários eram mais econômicos e a área era distante
do Rio Guaíba (FARINON, 2015).
A expansão do setor industrial e a geração de empregos, a partir da
década de 1940, fez com que a população operária residente na capital
acabasse se concentrando nas adjacências das fábricas da zona norte. Foi

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nessa mesma época que a Prefeitura Municipal de Porto Alegre concen-
trou esforços para o saneamento e loteamento do Sarandi, no intuito de
criação de um bairro popular para as classes trabalhadoras. Outro fator
que motivou a prefeitura a investir no desenvolvimento da região foi a
compra da Vila Caiu do Céu, em 1945, pelo clube Grêmio Football Por-
to Alegrense, onde pretendia construir seu estádio. Assim, no bojo desse
processo de urbanização, as primeiras vilas criadas no Sarandi foram a
Meneghetti, Leão, Parque, Elizabeth e Minuano.
Nas décadas seguintes Porto Alegre vivencia um amplo crescimento
populacional. O processo de industrialização da cidade não absorveu ade-
quadamente a grande massa populacional que se concentrou na região da
Zona Norte de Porto Alegre, formando grandes áreas e ocupações popu-
lacionais com precários acessos a serviços públicos e a direitos sociais. Essa
conjuntura se agrava na medida em que a crise estrutural do capital avança,
especialmente a partir da década de 1980, aumentando o desemprego es-
trutural que atinge diretamente a classe trabalhadora urbana. Das diversas
expressões da questão social no território, como desemprego, precárias con-
dições de habitação, saneamento e acesso a serviços, os altos índices de mor-
talidade juvenil são uma de suas manifestações mais trágicas no território.
A região vem se estruturando nos últimos anos do ponto de vista
viário e imobiliário, em decorrência da instalação de grandes empresas de
atacado, galpões de estocagem e pavilhões industriais. Assim, como des-
creveram Mello, Lersch e Rovati (2019, p. 32), atualmente predominam
no bairro Sarandi “poderosas multinacionais, forte especulação imobiliária,
grandes obras de ampliação de avenidas e a extensão da pista do aeroporto”.
O Sarandi, assim como outros 12 bairros da Zona Norte, ainda hoje
mantem as características de um bairro com vocação para indústria e co-
mércio. No bairro estão localizadas indústrias de diversos setores e também
a Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (FIERGS), uma
imponente entidade de representação da indústria gaúcha. As contradições
capitalistas do espaço residem no fato de que embora seja uma área de gran-
de mobilização e circulação de capital, ainda assim se trata de uma região
com muita pobreza e condições de vida muito aquém do ideal. O Sarandi
carece de estruturas e equipamentos públicos necessários para o progresso
da vida comunitária, como argumentou um profissional entrevistado: “Ao

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mesmo tempo que a gente tem assim, por exemplo, as transportadas né, no
polo de comércio, de indústria, então teria uma situação de dinheiro, a gen-
te também tem várias comunidades vulneráveis né” (PROFISSIONAL 5).
A instalação de grandes empresas na região como o Aeroporto Sal-
gado Filho e a Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul
(FIERGS), atribui visibilidade ao bairro dentro do cenário mais amplo da
cidade de Porto Alegre, assim como promove o desenvolvimento urbano
da região com a construção de estradas, equipamentos e transporte públi-
co. No entanto, o rendimento médio dos responsáveis por domicílio é de
2,64 salários mínimos e 17,86% dos domicílios são considerados pobres
ou indigentes (IBGE, 2010). Além disso, a escolaridade média dos(as) res-
ponsáveis por domicílios é de 6,51 anos de estudo. A baixa escolaridade e a
evasão escolar no sexto ano foi mencionada pelo profissional como um dos
fatores de adesão ao tráfico de drogas entre jovens do bairro:

Muitos jovens que largam a escola, a escola deixa de fazer sentido


lá pelos 11, 12 anos, quando começa um ciclo de repetência e de
abandono e de evasão né. Matricula, fica 2, 3 meses e nunca sai
do 6º ano. Eu acho que tem essa questão da escolarização, de se
inserir, de que isso faça sentido na sua vida. Um apelo muito forte
então do trabalho no tráfico em alguns territórios mais específi-
cos, claro, não vou dizer que todo Sarandi passa por isso, mas pen-
sando mais nas vilas onde tem esse predomínio maior das facções,
esse apelo muito forte pra eles (PROFISSIONAL 5).

Em sua história, como podemos ver, o capital financeiro se voltou


ao Sarandi atrelado aos interesses de grandes indústrias. As vilas do bairro,
espaços de moradia de inúmeras famílias, foram sendo usurpadas, com
o apoio da Prefeitura, para favorecer a construção de empreendimentos
imobiliários e outras grandes obras financiadas por capital internacional,
como o Grêmio e, mais recentemente, o grupo Fraport AG Frankfurt
Airport Services, responsável pelo aeroporto da cidade. O progresso tra-
zido por essas empresas para a cidade de Porto Alegre foi e vem sendo
alavancado por remoções de inúmeras famílias moradoras do Sarandi.
A dizimação da Vila Nazaré, no bairro Sarandi, é um caso emblemáti-
co que reflete os efeitos dos processos de desenvolvimento urbano nas vidas

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das comunidades afetadas. A ampliação da pista do aeroporto Salgado Filho
foi uma das obras previstas no pacote de transformações da cidade para
sediar a Copa do Mundo de 2014. No entanto, nos arredores do terreno lo-
calizado na zona norte haviam duas vilas: a Vila Dique e a Vila Nazaré. Para
executar as obras, desde 2009 tiveram que ser removidas 900 famílias da
Vila Dique e 1,3 mil famílias da Vila Nazaré, ocasionando a extinção desses
espaços. De acordo com uma matéria jornalística6, esse acontecimento foi
chamado pelo prefeito municipal Sebastião Melo (gestão 2021-2024), de
um “marco social de desenvolvimento”. As famílias, muitas vezes numero-
sas, foram reassentadas em apartamentos de 45 metros quadrados em um
condomínio do programa Minha Casa Minha Vida.
Na Vila Nazaré as condições de vida eram precárias e a população
que ali morava era de baixa renda e baixa escolaridade. Nesse sentido, o
reassentamento trouxe o progresso para a vida de algumas famílias que
viviam em situação de extrema pobreza. No entanto, para muitas ou-
tras, foi o caminho para o aumento do empobrecimento. Muitas pessoas
perderam o emprego pela distância do local de trabalho e ausência de
transporte público, e muitas mães tiveram que deixar de trabalhar pois
não há creches nas proximidades, então não têm com quem deixar as
crianças. Além disso, cerca de 30% das famílias da Vila Nazaré viviam da
reciclagem de resíduos (WEISSHEIMER, 2021) e próximo ao condo-
mínio não há galpões de reciclagem, minando a fonte de renda principal
de grande parte da população.
O que se observa no contexto do Sarandi é que a ausência de polí-
ticas urbanas que impliquem no engajamento de empresas no desenvol-
vimento das regiões onde se inserem, contribui com o aumento da po-
breza e da criminalidade na região. O alto rendimento e reconhecimento
das empresas que ocupam parte do território do bairro Sarandi não se
converte em desenvolvimento econômico e social da população local,
nem reconhecimento e fortalecimento político das lutas das comunida-
des do Sarandi por melhores condições de vida.

6 WEISSHEIMER, M. Porto Alegre: a história de Nazaré, a comunidade que foi re-


movida para a periferia da periferia. Brasil de Fato, 21 de julho de 2021. Disponível
em: https://www.brasildefato.com.br/2021/07/21/porto-alegre-a-historia-de-nazare-a-
-comunidade-que-foi-removida-para-a-periferia-da-periferia.

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O Sarandi é um espelho dos processos de gentrificação na cidade
de Porto Alegre. No caso da Vila Nazaré podemos observar a perversida-
de desses projetos globais de urbanização, que muitas vezes ocorrem às
margens da legalidade, na violação de direitos e na vida de comunidades
locais que lutam pela sobrevivência na estrutura capitalista. As remo-
ções populacionais que precedem as grandes obras de desenvolvimento
urbano não somente tiram as pessoas de seus espaços, como também
promovem uma ruptura traumática de laços comunitários e relações de
trabalho que gerações familiares lutaram arduamente para construir.
A consequência dessas dinâmicas urbanas na vida social da nossa
cidade é o aumento das desigualdades socioespaciais, em decorrência da
segregação racial e social, criando bolsões de pobreza e violação de di-
reitos. Nesses contextos, onde as oportunidades e projetos de vida são
limitados pela necessidade de sobrevivência, a violência urbana encontra
um terreno fértil para seu desenvolvimento, ceifando vidas e trajetórias
de inúmeros jovens e adolescentes.

Considerações Finais

A análise do território, enquanto espaço vivo construído por relações


sociais estabelecidas ao longo do processo histórico se constitui elemento
fundamental para perceber como as dinâmicas de desigualdade social são
expressas no âmbito da cidade. A compreensão de território, nesse sentido,
transcende a apreensão da simples descrição de fatores objetivos, mas, ne-
cessariamente, se calca na análise da consolidação de processos históricos
guiados pela égide do capital, na perspectiva da acumulação de riquezas.
Diante desse contexto, a análise da cidade de Porto Alegre revela, com suas
particularidades, a mesma tendência observada na construção de outras
cidades brasileiras e de países que vivenciam em sua pele e em seu solo o
contexto da superexploração da força de trabalho. A dinâmica da gentrifi-
cação, na perspectiva da criação de espaços nobres e higienizados, geram,
de forma dialética, um contexto de favelização e de violação de outros ter-
ritórios; consolidando a cidade pensada para satisfação da acumulação do
capital, e não na direção da garantia de direitos das populações. Evidencia-
-se assim a dinâmica capitalista do espaço, descrita por Harvey (2005), no

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que se refere à criação da paisagem do capital à sua própria imagem, em in-
cessantes processos de rediferenciação e reconfiguração do espaço urbano.
Nesse processo dialético entre gentrificação e favelização, consoli-
dam-se as dinâmicas das cidades o que acarreta na reprodução de múltiplos
processos de violência que atingem grandes contingentes populacionais
que vivenciam o estigma de viverem nos chamados “bairros violentos”.
Nesse sentido, a reflexão proposta por Scherer (2018) torna-se válida ao
compreender que tais territórios, são, em verdade, violentados pela dinâ-
mica estrutural do capital. O juvenicídio, diante desse contexto, se consti-
tui como a expressão mais trágica de inúmeras violações de direitos que os
habitantes desses territórios vivenciam. Os demais capítulos desse livro de-
monstrarão como que tais violações são vivenciadas por essas populações,
na perspectiva de desnaturalizar as violências vivenciadas nesses territórios.
As linhas escritas até aqui materializam o esforço de evidenciar
os processos de gentrificação, favelização como simultâneos e interde-
pendentes, onde o juvenicídio emerge como expressão mais trágica da
violência estrutural vivenciada pelas populações nos territórios violenta-
dos da cidade de Porto Alegre. Ao trazer para este estudo a preocupação
sobre as formas de compreender a cidade, a partir de autores das ciências
sociais, que estudam sobre grupos urbanos, tomamos como referência a
Escola de Chicago (PARK, 1987), em sua preocupação em descrever as
diferenças que se expressam na própria cidade, demarcando fronteiras
internas, com forte dimensão segregativa. Além desse aspecto, mostra-se
fundamental a análise crítica, fundamentada no materialismo histórico-
-dialético, na busca de desvendar fenômenos esfumaçados pela ideologia
que sustenta a acumulação de riqueza e fomenta a desigualdade social.
A aproximação com os bairros estudados revelou o sentido secreto
desses territórios, denotando o que a cidade pensa em relação às pessoas
que ali residem, às diferenças que se expressam na própria cidade, de-
marcando fronteiras internas, com forte dimensão segregativa (FOOTE-
-WHYTE, 2005; PARK, 1987). Como espaço diferenciado do espaço da
cidade e como lócus de exclusão, as favelas e periferias criam no imaginá-
rio social (PESAVENTO, 1995), por meio de suas arquiteturas, modos
de vida que acabam por conformar identidades e formas de habitar e
usufruir do espaço urbano.

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Os bairros aqui abordados têm sido constantemente retratados
como regiões “perigosas”, territórios que são valorados negativamente
no contexto urbano da cidade de Porto Alegre. Por intermédio da car-
tografia espaço-temporal de territorialidades juvenis foi possível revelar
experiências urbanas atravessadas por várias formas de vulnerabilidades.
Os jovens das camadas mais pobres da população, como os que vivem
nas regiões apresentadas neste estudo, vivem os dilemas da sua condição
juvenil contemporânea com as possibilidades e limites que são histori-
camente produzidos. Eles moram em espaços sociais de precarização da
cidadania. A pobreza, as adversidades e ausências estruturais que impac-
tam na qualidade de vida compõem os principais elementos que os jovens
enfrentam, em distintas gerações, como demonstrados nos próximos ca-
pítulos da presente produção. Importante considerar a análise crítica nos
territórios onde são percebidos os “rastros de sangue” das juventudes, na
direção de compreender os múltiplos determinantes presentes na cons-
trução de espaços de precarização e de ausência de políticas públicas.

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A (des)protecão juvenil nos territórios
com maiores índices de mortalidade em Porto Alegre

Maurício Perondi
Oriana Holsbach Hadler
Ivana Oliveira Giovanaz
Mariana Porto Ruwer de Azambuja

A construção das políticas públicas nos territórios

Esses dias tinha um moleque na quebrada com uma arma de qua-


se 400 páginas na mão.
Uma mina cheirando prosa, uns acendendo poesia.
Um cara sem nike no pé indo para o trampo com o zóio vermelho
de tanto ler no ônibus.
Uns tiozinhos e umas tiazinha no sarau enchendo a cara de poe-
mas. Depois saíram vomitando versos na calçada.
O tráfico de informação não para, uns estão saindo algemado aos
diplomas depois de experimentarem umas pílulas de sabedoria. As
famílias, coniventes, estão em êxtase.
Esses vidas mansas estão esvaziando as cadeias e desempregando
os Datenas.
A Vida não é mesmo loka? (A vida é loka, Poeta Sérgio Vaz, 2016)

A poesia de Sérgio Vaz nos remete a refletir sobre as condições nas


quais vivem os jovens brasileiros, de modo especial, aqueles que estão nas
periferias das grandes cidades, com privação dos meios básicos de subsis-
tência e com uma série de violações de direitos. Ao se falar da difícil reali-
dade de grande parte dos jovens nestas condições, não é rara a percepção
de que se houvesse oportunidades, eles teriam outras perspectivas e outras
trajetórias de vidas. Esta falta se materializa na insuficiência de políticas
públicas que possam atender os direitos fundamentais das juventudes.
Entre outros motivos, a inexistência e/ou a ineficácia das políticas
públicas se constituem em fatores que contribuem para os altos índices

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de mortalidade juvenil. Desse modo, cabe problematizar sobre a cons-
trução dessas políticas no contexto brasileiro. O grande marco para a
estruturação das políticas públicas, no país, é a Constituição Federal de
1988, que buscou assegurar os principais direitos para toda a população,
tanto que passou a ser chamada de “Constituição Cidadã”. Nela estão
contidos aspectos fundamentais para a garantia de cidadania para todas
as pessoas, tais como, a educação, a saúde, a assistência social, a cultura,
o esporte, o lazer, o direito de expressão, entre outros.
Contudo, a concretização de tais direitos legais, ainda é um desafio
a ser implementado de maneira ampla e efetiva nas diferentes realidades
do país. De acordo com Rua (1998), as políticas públicas não se efetivam
de modo automático, pela iniciativa do Estado, como se este colocasse
executasse instantaneamente aquilo que está previsto em lei, pois

As políticas públicas são respostas que não ocorrerão a menos que


haja uma provocação. Em linguagem mais especializada, as políti-
cas públicas se destinam a solucionar problemas políticos, que são
as demandas que lograram ser incluídas na agenda governamental.
Enquanto essa inclusão não ocorre, o que se tem são ‘estados de coi-
sas’: situações mais ou menos prolongadas de incômodo, injustiça,
insatisfação ou perigo que atingem grupos mais ou menos amplos
da sociedade sem, todavia, chegar a compor a agenda governamen-
tal ou mobilizar as autoridades políticas (RUA, 1988, p. 732).

Deste modo é possível perceber que a concretização das políticas
públicas passa, necessariamente, pela articulação e pela pressão social
junto aos órgãos governamentais para que eles assumam o seu papel na
construção e implementação. Isso não exime que o Estado assuma o seu
papel, pois há o entendimento de que política pública é o “Estado em
Ação” (HÖFLING, 2001), em que há a responsabilização pela formu-
lação, implementação e avaliação de programas e ações em benefício de
determinado segmento da população.
De acordo com Lotta (2019) uma das formas mais usuais para
a construção de políticas públicas é aquela que tem sido denominada
como Ciclo de Políticas Públicas, composto por quatro fases: 1) Defini-
ção de temas e pautas a serem tratados como prioridade pelo Estado; 2)

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Formulação através de planejamento e decisão sobre os modelos e obje-
tivos a serem alcançados; 3) Implementação, ou seja, desenvolvimento
dos planos formulados; 4) Avaliação, e que os resultados das políticas
são mensurados. Ainda que seja tenha essa perspectiva processual para a
definição e implementação de políticas, é possível perceber que há uma
dificuldade de execução, visto que grande parte das políticas não passam
por todas as fases, inclusive nem podendo ser classificadas como tal, visto
serem ações ou projetos isolados.
Quando as políticas não são planejadas e implementadas abrem-se
lacunas nos mais diversos aspectos da vida social, causando precarização
no atendimento à população, bem como na privação do acesso à direitos
básicos por parte de determinados segmentos da população, como é o
caso das juventudes. Apesar de os jovens representarem em torno de 25%
da população brasileira, com aproximadamente 50 milhões de pessoas
(PINHEIRO et al, 2016), só muito recentemente os poderes públicos
passaram a desenvolver políticas específicas para este grupo demográfico
conforme pode ser visualizado no capítulo 2 deste livro.
Desta forma, as políticas públicas destinadas às juventudes acabam
sendo aquelas universais, que atendem toda a população e que, acabam
contemplando, em certa medida, os próprios jovens. Sendo assim, neste
capítulo, abordaremos algumas destas políticas, buscando compreender
em que medida elas se efetivam no atendimento aos jovens dos bairros de
Porto Alegre com os maiores índices de mortalidade juvenil, abordados
nesta obra: Restinga, Lomba do Pinheiro e Sarandi. Para tal, inicialmen-
te serão analisadas as políticas da área da educação, depois da área da
Saúde, da Assistência Social e, por fim, da Segurança Pública.

Quanto mais educação, menos homicídios

A educação como direito é uma luta constante no cenário nacio-


nal. Com a Constituição Federal de 1988, a escolarização passou a ser
obrigatória dos 7 aos 14 anos, garantindo o acesso gratuito por parte de
todas as crianças e adolescentes desta faixa etária (BRASIL, 1988). Em
1996, através da LDB-Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(9493/96), foi realizada a regulamentação da educação básica brasileira,

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sendo dividida em dois níveis: Educação Básica e Educação Superior. A
Educação Básica foi segmentada em três etapas: Educação Infantil, Ensi-
no Fundamental e Ensino Médio (BRASIL, 1996).
Em 2009, por meio da Emenda Constitucional nº 59, o ensino se
tornou obrigatório entre os 4 e os 17 anos e sua regulamentação ocorreu
através da Lei nº 12.796, de 2013 (BRASIL, 2013). Pode-se considerar
um significativo avanço no contexto da educação brasileira, visto que
a universalização da oferta obrigatória de acesso para toda a Educação
Básica era uma demanda histórica no país.
As políticas educacionais, principalmente as ligadas ao acesso à
Educação Básica, podem ser consideradas como aquelas de maior acesso
por parte da população brasileira. Ainda assim, são múltiplos os desafios
para que tais políticas sejam concretizadas de forma abrangente e com
qualidade em todo o território nacional. Devido à sua importância no
contexto social, a pesquisa buscou compreender como as políticas de
educação acontecem nos territórios investigados.
De acordo com o PNUD, (2013)1, o índice de crianças com ida-
de entre 5 e 6 anos, frequentando a escola nos bairros pesquisados é de
79,2% no Sarandi, 60,5% na Lomba do Pinheiro e 70% na Restinga. No
município de Porto Alegre o índice é de 77,6%, enquanto que no Rio
Grande do Sul é de 79,8% e no Brasil é de 91,7%. Com a recente obriga-
toriedade de oferta de ensino baixando de 7 anos para 4 anos (BRASIL,
2013), é possível perceber um aumento da presença de crianças na escola
na faixa etária compreendida entre 5 e 6 anos, sobretudo em nível nacio-
nal. Em nível municipal e estadual este índice chega a aproximadamente
80%, ficando mais de 10 pontos percentuais abaixo da média do Brasil.
Quando tratamos dos territórios da pesquisa, estes números são ainda
mais baixos, sendo que o bairro Sarandi é o que mais se aproxima da
média municipal e da estadual. Contudo, a Restinga e, principalmente,
a Lomba do Pinheiro ficam bem abaixo da média nacional.
Ao se analisar o percentual de crianças e adolescentes com idade
entre 11 e 13 anos frequentando os Anos Finais do Ensino Fundamen-
tal ou com Ensino Fundamental completo, percebe-se que é o nível de
1 Os dados apresentados na sequência são uma produção da equipe de pesquisa, com
valores aproximados, de acordo com os dados do Atlas Brasil (PNUD, IPEA e FJP).

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escolaridade com maiores índices em nível nacional. A média brasileira
é de 85,1%, a do Rio Grande do Sul é de 89,9% e a de Porto Alegre
computa 87,8%. Entre os bairros pesquisados, Sarandi, novamente, tem
o maior índice com 86,1%, enquanto a Restinga soma 85,4% e a Lomba
do Pinheiro,78,4%.
Ainda que se tenha margem para crescimento em todas as esferas,
este é o nível de ensino em que não parece residir os principais proble-
mas educacionais em termos de acesso em todos os níveis apontados
na pesquisa. Tal avanço pode ser constatado a partir da ampliação do
acesso ao Ensino Fundamental, sobretudo, a partir das definições da
Constituição de 1988.
No entanto, os maiores problemas quanto à frequência e à con-
clusão de etapas de ensino, da Educação Básica, se encontram, poste-
riormente, no Ensino Médio. Tal constatação pode ser verificada através
do PNUD (2013), ao apontar que a porcentagem de jovens com idade
entre 15 a 17 anos de idade com Ensino Fundamental completo no país
somam 57%, enquanto que no Rio Grande do Sul o índice é de 62,2%
e na cidade de Porto Alegre é de 59,1%. A situação é mais preocupante
nos territórios participantes da pesquisa, onde o Sarandi tem 52,5%, a
Lomba do Pinheiro, 49,7% e a Restinga 47,6%. Esta é a primeira etapa
deste nível de ensino que contempla índices abaixo dos 50% de acesso e
conclusão por parte dos jovens.
Todavia, o real problema, do ponto de vista educacional se reflete
no segmento etário seguinte, onde se analisa a porcentagem de jovens
com idade 18 a 20 anos de idade com Ensino Médio completo. Os nú-
meros são estarrecedores, do ponto de vista, da perspectiva do desen-
volvimento humano e da formação educativa juvenil. A média nacional
aponta para 41,9% de jovens com esta etapa concluída, enquanto que
o Rio Grande do Sul tem 44,2%, que são índices menores do que Por-
to Alegre, que apresenta números um pouco maiores, somando 47,8%.
A realidade se torna impactante quando se analisam os dados dos três
bairros participantes da investigação, pois, Lomba do Pinheiro e Saran-
di apresentam dados semelhantes com um total de 32,8% e de 31,7%,
respectivamente. Contudo, o bairro Restinga apresenta míseros 19% de
jovens concluintes do Ensino Médio.

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Nos quatro indicadores educacionais avaliados, o bairro que apre-
senta os resultados menos ruins é o Sarandi, seguido pela Lomba do
Pinheiro, e, por fim, com os índices mais baixos, a Restinga. Estes dados
encontram consonância quando se avalia os dados do Índice de Desen-
volvimento Humano, no quesito educação, em que é possível constatar
o IDHM Educação, dos referidos bairros, apresenta os seguintes núme-
ros: Sarandi 0,620, Lomba do Pinheiro 0,595 e Restinga 0,567. Se for
realizada uma relação com o índice nacional, percebe-se que estes índices
estão muito abaixo, visto que aquele é de 0,701.
Para a definição do IDH de um país são utilizados três aspectos: a)
saúde/expectativa de vida; b) renda; e, c) educação. Deste modo, é possí-
vel perceber que o alto índice de mortalidade juvenil nestes três bairros,
juntamente com o baixo nível de escolaridade contribuem para que a
média do IDH nestes territórios seja muito baixa.
Tendo em vista esses baixos índices, se faz necessário analisar quan-
tas são as escolas existentes nestes territórios e quais são as suas caracterís-
ticas, visto que, estas podem ser consideradas como a principal política
de educação que se faz presente nestes espaços.
Com relação ao bairro Restinga foram contabilizadas 12 escolas
municipais, 3 estaduais e 1 federal. Das 12 instituições da rede pública
municipal, 10 oferecem Educação Infantil, sendo que 4 delas oferecem
exclusivamente a Educação Infantil; 5 oferecem na Educação Infantil
creche e pré-escola; 5 oferecem apenas pré-escola; 8 instituições ofere-
cem Ensino Fundamental, com anos iniciais e anos finais e 5 instituições
oferecem Educação de Jovens e Adultos. As 3 instituições estaduais ofe-
recem Ensino Fundamental, com Anos Iniciais e Anos Finais e Ensino
Médio, destas, 1 oferece Educação Profissional e 1 oferece Educação de
Jovens e Adultos.
A instituição federal, presente na Restinga, é o Instituto Federal
de Educação – IFRS, que iniciou suas atividades no ano de 2010, signi-
ficando um avanço significativo para o acesso à educação de qualidade,
sobretudo para o nível do Ensino Médio e para o Ensino Superior. Até
essa ocasião, socialmente e geograficamente o acesso a esses níveis de
ensino eram limitados, o que se mostrou uma ampliação de acesso ao
direito básico da educação.

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Ainda assim, se somadas as três escolas estaduais e o IFRS, que
oferecem vagas para o Ensino Médio, temos um número muito pequeno
de instituições para um território tão abrangente. Tal evidência pode ser
apontada como uma das causas dos baixos índices de jovens que con-
cluem a etapa do Ensino Médio no bairro da Restinga.
O bairro Lomba do Pinheiro conta com 11 escolas municipais, 1
estadual e 14 de Educação Infantil, que são conveniadas. Deste modo,
percebe-se uma limitação de oferta de escolas de Ensino Médio, visto que
há somente uma escola de Ensino Médio, que corresponde à faixa etária
dos jovens participantes desta pesquisa. Diante deste cenário, provavel-
mente, muitos estudantes precisam se deslocar por grandes distâncias
para poderem frequentar a escola. De acordo com a Unicef (2021), não
ter escola próximo de casa e a falta de vaga na escola ou no turno letivo
desejado, correspondem ao quarto motivo para não frequentar a escola
na idade entre 14 e 17 anos, no Brasil, o que acaba contribuindo para a
evasão escolar nesta faixa etária.
No bairro Sarandi foram identificadas 13 escolas públicas, sendo 8
estaduais e 5 municipais. Além destas, existem 33 Escolas Comunitárias
de Educação Infantil. Dos três territórios pesquisados, o Sarandi é o que
tem o maior número de escolas estaduais, que por terem Ensino Médio,
atende adolescentes e jovens. É possível perceber que também é o bairro
com maior porcentagem de jovens com idade entre 15 a 17 anos de idade
com Ensino Fundamental completo e de jovens com idade 18 a 20 anos
de idade com Ensino Médio completo, dos três territórios. Tal constata-
ção, leva a crer que ter mais escolas no bairro, possibilita que os índices
de escolarização sejam maiores.
Os dados da pesquisa apontam para a necessidade de um núme-
ro maior de escolas mais próximas ao local de moradia dos estudantes,
sobretudo do Ensino Médio. No entanto, o que se percebe nas esferas
nacional, estadual e municipal é uma tendência de fechamento de es-
colas e de turmas. O Rio Grande do Sul, de acordo com o Centro dos
Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS), fechou 61 escolas
estaduais, além de ter fechado quase 1.899 turmas, entre os anos de 2019
e 2020. Para o CPERS, “o fechamento de turmas, muitas vezes associado
a enturmações e multisseriações, reduz a capacidade de atendimento da

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rede, desagrega vínculos e desestimula estudantes, contribuindo para a
evasão escolar” (BRASIL DE FATO, 2021, p. 1).
Para além dos dados em si, se faz necessário pensar no que a escola re-
presenta na vida dos jovens. Para Craidy (2008, p. 180), a escola é uma “ins-
tituição inibidora do cometimento de atos infracionais, não necessariamen-
te por uma ação programática, mas por oferecer um espaço de socialização
e por ser uma instituição que produz um sentimento de “pertencimento”.
Sendo assim, percebe-se a importância que a instituição escolar desempe-
nha na vida dos jovens e o seu número deveria ser ampliado e não reduzido.
Craidy (2008, p. 180), destaca ainda que “os dados demonstram
que o abandono da escola é um agravante na situação de vulnerabilidade
do adolescente. Basta dizer que cerca de 50% dos que cometem ato in-
fracional já abandonaram a escola”. Tais indicativos demonstram que o
Estado, juntamente com a Sociedade Civil organizada, deveria compro-
meter-se com políticas públicas de educação, que possam garantir a per-
manência dos jovens o maior tempo possível em seus espaços educativos.
Tais indicativos também podem ser averiguados na pesquisa de
Rolim (2016), que ao realizar ampla pesquisa com adolescentes do meio
socioeducativo e com jovens, de 18 a 29 anos, que estavam no Presídio
Central de Porto Alegre, constatou que todos os participantes da pes-
quisa, independentemente de suas condições familiares, dos atos infra-
cionais ou crimes cometidos, do envolvimento ou não com o tráfico de
drogas etc., tinham um fator em comum: a baixa escolaridade e evasão
escolar. Esses dados apontam para a centralidade que a escolarização tem
na vida dos adolescentes e jovens e como ela impacta em suas trajetórias.
De acordo com a Nota Técnica Indicadores Multidimensionais de
Educação e Homicídios nos Territórios Focalizados pelo Pacto Nacional
pela Redução de Homicídios (IPEA, 2016), a educação pode ser consi-
derada a principal política social de redução dos assassinatos de jovens
no Brasil. A partir das pesquisas realizadas pelo instituto, foi possível per-
ceber que para cada 1% a mais de jovens entre 15 e 17 anos nas escolas,
há uma diminuição de 2% na taxa de assassinatos nos municípios. Tal
evidência, por si mesma, demonstra a necessidade de investimento em
educação no país, como uma das formas de redução dos altos índices de
homicídio das juventudes brasileiras.

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O difícil acesso à saúde nos territórios

No último século, as perspectivas sobre saúde no Brasil passaram


por diversas transformações. Dentro do escopo deste capítulo cabe en-
tender três movimentos epistemológicos que ajudaram a constituir as
políticas de saúde existentes atualmente em nosso país, a saber: um pri-
meiro momento onde a saúde correlacionava-se diretamente a noções hi-
gienistas e eugênicas; um segundo momento em que temos a emergência
da noção de salubridade e a preocupação com um corpo coletivo; e, um
terceiro, onde as políticas sociais têm sua formação a partir da desins-
titucionalização da saúde, apostando no desenvolvimento de uma rede
integral deslocada do universalismo naturalista e da clínica nosológica
medicalocêntrica. Tais processos são nomeados enquanto movimentos
epistemológicos, pois cada um carrega consigo diferentes noções de su-
jeitos e, com isso, distintas ferramentas públicas que emergem para lidar
com novas noções de saúde. Importante ressaltar que, conforme ocor-
rem, estes movimentos não se encontram amarrados cronologicamente,
ou seja, não surgem para a exclusão do anterior; portanto, as diferentes
noções de saúde produzidas são encontradas concomitantemente na so-
ciedade brasileira nos dias de hoje.
De acordo com Paim e Almeida Filho (1998), o primeiro movi-
mento epistemológico tem sua base doutrinária nos discursos sociais
sobre saúde que aparecem na metade do século XVIII na Europa Oci-
dental. Com o surgimento da Medicina Social na Alemanha, França
e Inglaterra, para lidar com epidemias que assolaram o solo europeu,
temos a criação de estratégias que chegam para normalizar o saber mé-
dico, contabilizar a vida e a morte, e vigiar territórios através do con-
trole da circulação de pessoas (FOUCAULT, 2007). Esta é a marca do
primeiro momento epistêmico, que se sustenta nos modelos da lepra e
da peste instaurando a quarentena e a exclusão social como formas de
tratamento. Já o segundo movimento traz uma noção de saúde mais
complexa, que busca romper com o isolamento de determinados gru-
pos sociais, ampliando para a melhora das condições de vida e saúde da
população. Há, com o surgimento da noção de saúde pública, a neces-
sidade de investir nos corpos como modo de sustentação dos espaços

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da cidade, fornecendo àqueles que neles vivem, condições de existência
para a qualidade de vida. Contudo, a primazia do internamento ainda
configura a principal ferramenta de intervenção e, os hospitais, o meca-
nismo de atuação para esta configuração.
A superação do modelo de internação somente começa a ter res-
sonância nas políticas de saúde do Brasil com o processo de redemo-
cratização no país, tendo na 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986)
e na 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental (1987) os marcos teó-
ricos e políticos para se pensar um Sistema Único de Saúde (SUS) em
todo o território nacional. Tendo por base a Constituição Federal, a
organização das políticas de saúde se fundamenta no entendimento
de que a saúde é um direito de todos e dever do Estado através do
Art. 196 (BRASIL, 1988). Neste contexto, a maneira de organização e
funcionamento da rede de saúde passa a ocorrer de forma hierárquica e
regionalizada. Os princípios de universalidade, equidade e integralida-
de passam a nortear o trabalho em saúde, não mais centrado no saber
médico, mas em olhares interdisciplinares. O atendimento integral, a
descentralização da política e a participação comunitária provocam um
deslocamento de uma sintomatologia individualista e passa-se a pensar
na promoção, proteção e recuperação da saúde na perspectiva de uma
clínica ampliada e coletiva (PAIM, 2009).
Em setembro de 2000 foi editada a Emenda Constitucional nº 29
que assegura e organiza a hierarquização da rede em saúde na relação en-
tre União, Estados e Municípios (BRASIL, 2000). Isto significa dizer que
o sistema e os equipamentos do SUS organizam-se por diferentes níveis
de complexidade: a) Atenção Básica – porta de entrada no sistema de
saúde (postos de saúde, unidades e centros de saúde, estratégias de saúde
da família) e principal recurso da rede, pois pode absorver cerca de 80%
das necessidades de saúde de uma população; b) Média Complexidade
– foca em atendimentos especializados ambulatoriais e/ou hospitalares;
e, c) Alta Complexidade – atendimentos que envolvem alta tecnologia
e/ou alto custo. No campo da Saúde Mental, esta divisão se traduz nos
equipamentos como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que
passam a ser classificados por CAPS I, CAPS II e CAPS III (conforme
porte e abrangência populacional), além de CAPSi (que atende o público

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infanto-juvenil) e CAPSad (que atende pacientes com transtornos decor-
rentes do uso e dependência de substâncias psicoativas, álcool e drogas)2.
As equipes nesses instrumentos podem ser compostas por diferen-
tes profissionais conforme a necessidade de atendimento e demandas po-
pulacionais, podendo incluir médicos, enfermeiros, cirurgiões-dentistas,
auxiliares ou técnicos em saúde bucal, auxiliares ou técnicos de enfer-
magem e Agentes Comunitários da Saúde dentre outros profissionais
em função da realidade epidemiológica, institucional e das necessidades
de saúde da população local (BRASIL, 2011). Uma vez que compreen-
demos o modo de gestão dessa política e o formato de seus equipamen-
tos, cabe voltar nossa atenção para como esta ferramenta se organiza nos
territórios com maior índice de mortalidade juvenil em Porto Alegre:
Lomba do Pinheiro, Restinga e Sarandi.
A Lomba do Pinheiro, bairro que, conforme Rosa (2013), vem
mostrando um intenso processo de reestruturação espacial nos últimos
60 anos, apresenta algumas particularidades em relação à Política de
Saúde. Composta por uma unidade emergencial (Pronto Atendimento
Lomba do Pinheiro) e nove Unidades Básicas de Saúde (Esmeralda,
Herdeiros, Lomba do Pinheiro, Mapa, Panorama, Recreio da Divisa,
Santa Helena, São Pedro e Viçosa), possui toda sua Rede de Saúde
Mental não situada no território. Desde a Equipe de Saúde da Crian-
ça e do Adolescente (EESCA) e a Equipe de Saúde Mental Adulto
(ESMA), até seus CAPS e a emergência de Saúde Mental. O CAPSi do
Hospital de Clínicas de Porto Alegre, referência para a população deste
território, situa-se no centro da cidade, mais especificamente a 13km
da Lomba, localizado no bairro Rio Branco. Para acessar este serviço,
é preciso fazer uso de transporte público, o que leva em média uma
hora para o deslocamento. Da mesma forma, a Emergência em Saú-
de Mental da Lomba é feita no Pronto Atendimento Cruzeiro do Sul
(Postão da Cruzeiro), localizado também a cerca de 13km do território.
Ainda que localizados mais próximos (metade da distância do CAPSi
mencionado), o Centro Integrado de Atenção Psicossocial (CIAPS),
localiza-se no Hospital São Pedro, cerca de 10km da Lomba; enquanto
2 Para um estudo sobre os CAPS em Porto Alegre e região metropolitana, ver Leal e
Antoni (2013).

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o CAPSad III Partenon e Lomba, está localizado a 7km do centro do
território, na vila São José; EESCA e ESMA, ambas situadas no bair-
ro Partenon e, respectivamente, cerca de 7km e 9km do bairro. Tais
aspectos não somente dificultam o acesso da população local a estes
serviços, como nos faz pensar na instrumentalização e gestão da vida
urbana enquanto controle sobre determinadas populações. Na medida
em que todos os serviços de Saúde Mental deste bairro estão localizados
em sua fronteira mais próxima do centro da cidade, o direito à saúde é
atravessado por impedimentos físicos referentes à circulação na mesma.
Nesse sentido, tendo esse vazio de acompanhamento da Saúde Mental,
os serviços de atenção primária e assistência social sobrecarregam-se
buscando dar conta dessa demanda. No que tange o público jovem, o
próprio valor da passagem de ônibus (que sofreu um reajuste de mais
de 40% na última década e deve ter novo aumento no ano corrente)
torna inviável o acompanhamento no serviço e, sendo o CAPSi um
dos equipamentos de referência para o atendimento de adolescentes
no campo da Saúde Mental, um jovem que se encontre em situação de
ameaça à vida poderá não frequentar este serviço pelo risco que atraves-
sar outros territórios pode lhe suscitar. Desta forma, ao estar localizado
fora do território de moradia, o acesso ao CAPS pode se tornar impos-
sível dependendo da situação de vida e risco que o jovem se encontra.
A Restinga e Extremo-sul da cidade conta com a Clínica Saúde da
Família e sete Unidades Básicas de Saúde (Estratégia Saúde da Família
Castelo; Estratégia Saúde da Família Chácara do Banco; Estratégia Saúde
da Família Quinta Unidade; Estratégia Saúde da Família Vila Pitinga;
Pronto Atendimento Restinga; Unidade Básica da Restinga; Unidade
Básica de Saúde Macedônia). Além desses locais, desde julho do ano
passado uma reivindicação da comunidade foi atendida, com a inaugu-
ração do Hospital da Restinga. Construído com recursos do Programa de
Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (Proadi-SUS), o hos-
pital recebe financiamento mensal em uma parceria dos governos Muni-
cipal, Estadual e Federal, sendo administrado pelo Hospital Moinhos de
Vento. Assim, a Gerência Distrital da Restinga, além do Hospital Geral,
conta com a Farmácia Distrital e o Instituto Federal do Rio Grande do
Sul. No campo do atendimento à Saúde Mental, este território conta

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com o CAPSad III Girassol, com atendimento 24h, possuindo de 8 a 12
vagas para acolhimento noturno e observação.
Em relação à organização da saúde, o bairro Sarandi faz parte da
Gerência Distrital Norte/Eixo Baltazar, que engloba também os bair-
ros Rubem Berta e Passo das Pedras. Dentre os dispositivos da Rede de
Saúde, as Unidades de Saúde são o principal equipamento do bairro,
dispondo de nove Unidades Básicas de Saúde (Asa Branca, Assis Bra-
sil, Esperança Cordeiro, Nossa Senhora Aparecida, Nova Brasília, Santo
Agostinho, Sarandi, São Borja, Vila Elizabeth), para atender uma popu-
lação com cerca de 190 mil pessoas (IBGE, 2010; ObservaPOA, 2022).
O bairro conta com a Farmácia Distrital de Saúde Sarandi, que oferece
acesso aos medicamentos constantes na Relação Municipal de Medica-
mentos Essenciais de Porto Alegre (REMUME), requeridos por meio
de atendimentos nas Unidades Básicas de Saúde. Próximo ao bairro fica
situado o pronto-atendimento Moacyr Scliar, que atende os casos de ur-
gência e emergência, espaço no qual a população do bairro recorre em
caso de necessidade. Contando com serviços localizados no interior do
bairro e em locais próximos, o Grupo Hospitalar Conceição (GHC),
uma sociedade de economia mista, administra uma série de serviços de
saúde em todos os níveis de atenção à saúde que são correspondentes
para o bairro Sarandi. Dentre estes estão o Hospital Cristo Redentor,
referência na assistência ao trauma agudo e que contava com um plantão
da Polícia Civil funcionando em suas dependências, desativado em 2019
com a justificativa de falta de demanda e de contingente de trabalhadores
(Natusch, 2019, 22 de abril); e o Hospital Nossa Senhora da Conceição,
que oferece cuidado em todas as especialidades da média e alta complexi-
dade, tendo um Centro Obstétrico referência em parto humanizado pelo
SUS. Além disso, o GHC oferece ainda diversos serviços na Rede de Saú-
de Mental, como o CAPSi, CAPS II – adulto e o CAPSad III. Finalmen-
te, os moradores do bairro também podem recorrer ao atendimento no
Plantão de Emergência em Saúde Mental (Vila dos Industriários/IAPI).
Dentre os princípios e diretrizes do SUS, dois deles são essenciais
para a discussão que tecemos aqui, quanto à promoção de saúde e à pro-
teção da vida, principalmente quando pensamos na população jovem:
os princípios da universalidade e o da integralidade. Ambos colocam o

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direito à saúde diretamente vinculado à questão do acesso aos serviços,
o que “significa que todas as pessoas devem ter acesso a todas as ações e
serviços exigidos para cada caso ou situação em todos os níveis do sistema
de saúde” (PAIM, 2009, p. 56). Sob tal ótica, das três regiões mapeadas,
a Lomba do Pinheiro é a mais afetada pela dificuldade de acesso aos ser-
viços de saúde, mais especificamente de Saúde Mental, acarretando uma
fragilidade no cuidado à população local.
Vale relembrar, nesses termos, o aspecto da noção de territoriali-
zação proposto pelo SUS: onde o planejamento de ações de saúde deve
estar pautado nas necessidades de um território e sua população (FA-
RIA, 2020). Contudo, Braga et Al. (2016) e Ibiapina e Bernardes (2018)
nos apontam o quanto existem lacunas entre aquilo que as populações
existentes demandam e os serviços ofertados, sendo uma estratégica de
governo para manter grupos vulneráveis desassistidos:

Identifica-se uma lacuna entre oferta, demandas por cuidados e as


necessidades em saúde, evidenciando-se muito mais a racionaliza-
ção dos custos pensando-se no planejamento e gestão de saúde do
que na assistência às necessidades de saúde que se colocam como
demanda (IBIAPINA e BERNARDES, 2018, p. 9).

Portanto, temos em jogo práticas estatais que vêm legitimar uma


desproteção territorial, o que serve de palco para a exposição de deter-
minados grupos populacionais e sua desassistência. Formando-se assim,
uma rede de vulnerabilidades, onde o jovem encontra-se amarrado.

A (des)assistência social como fator preponderante

Em 1988, a Constituição Federal do Brasil (BRASIL, 1988) reco-


nheceu a Assistência Social como uma das bases do sistema de seguridade
social do país, juntamente com a Saúde e a Previdência Social, decla-
rando, no seu Art. 203, que “a Assistência Social será prestada a quem
dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social”.
Com isso, a Assistência Social passou a ser direito da população e res-
ponsabilidade do Estado. Entretanto, somente em 1993 a Lei Orgânica
da Assistência Social, LOAS (BRASIL, 1993) regulamentou o disposto

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na Carta Magna, estabelecendo normas e critérios para sua organização e
orientando para uma gestão de forma descentralizada e participativa. Em
2004, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) estabeleceu os ní-
veis de proteção (básica e especial), numa perspectiva socioterritorial que
considera as diversidades locais e regionais e tem como base de referência
a família, espaço privilegiado e insubstituível de proteção e socialização
primárias (BRASIL, 2004).
Incorporando a noção de “território vivido”, do geógrafo Milton
Santos, a PNAS assume que o território está vinculado às relações de
poder que nele se estabelecem, as quais têm como fruto as assimetrias no
exercício do poder e se expressam nas condições de maior vulnerabilida-
de a riscos em determinados espaços (NASCIMENTO e MELAZZO,
2013; PEREIRA e KOGA, 2020). Mais recentemente, o conceito de
gentrificação tem sido incorporado nas discussões das políticas públicas
para a juventude (SCHERER ET AL., 2021) ressaltando que o desen-
volvimento do sistema capitalista marca também a organização espacial
das cidades de modo a criar zonas periféricas, sem investimentos do ca-
pital, para onde são impulsionadas as pessoas que não conseguem fazer
frente a esse sistema. Também deste modo, são estabelecidos “territórios
de morte”, ou seja, os locais de morte da grande maioria dos homicídios
de jovens (BARROS ET AL., 2019).
Em Porto Alegre, a Política de Assistência Social conta com um
longo histórico de atendimento, anterior ao SUAS. Já em 1977, a Fun-
dação de Educação Social e Comunitária (FESC) oferecia atividades
culturais, esportivas e de lazer em seus Centros Comunitários. Todavia,
somente em 2010 os serviços foram adaptados às demandas da Política
Nacional de Assistência Social, com a implantação de 22 Centros de Re-
ferência de Assistência Social (CRAS) e de nove Centros de Referência
Especializados de Assistência Social (CREAS), além da reorganização da
rede de acolhimento institucional para crianças, adolescentes e popu-
lação adulta. Foram criados também os Serviços de Acompanhamento
Familiar (SAF) que, embora não estejam previstos na Tipificação Na-
cional de Serviços Socioassistenciais (BRASIL, 2009), são ofertados no
Município de Porto Alegre visando solucionar vazios de atendimentos da
política da Assistência Social em determinados microterritórios.

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Assim, os serviços socioassistenciais estão organizados de acordo
com as regiões político-administrativas da cidade (17 regiões do Orça-
mento Participativo, OP), embora nem sempre essa divisão contemple
o acesso da população. Ademais, os territórios são diversos quanto a sua
geografia, população, oferta de serviços públicos, infraestrutura urbana,
organização comunitária, dentre tantos fatores. Eles também mostram
uma cidade desigual em termos de infraestrutura urbana, condições ha-
bitacionais, acessibilidade, mobilidade e acesso a serviços públicos e bens
culturais, bem como uma diversidade étnica e racial com a presença de
povos indígenas, comunidades de quilombos e imigrantes, oriundos es-
pecialmente da Venezuela e do Haiti (PMPA, 2020).
De modo geral, os territórios de Porto Alegre contam com dife-
rentes redes de organizações, redes de apoio e lideranças que realizam
atividades recreativas, esportivas, culturais e de apoio social. São identifi-
cadas atividades recreativas como bailes, festas e shows promovidos pelas
organizações comunitárias, igrejas e, mesmo, pelo tráfico de drogas, mos-
trando que, embora as atividades voltadas aos jovens busquem afastá-los
do “mundo do crime”, há uma disputa permanente entre os serviços
públicos, as organizações sociais diversas e o crime organizado (PMPA,
2021). Nesta parte do texto, destacaremos dados oriundos do Diagnós-
tico Socioterritorial de 2020 (PMPA, 2020) apenas para os territórios
mapeados como de maior mortalidade juvenil, foco desta publicação:
bairros Sarandi, Lomba do Pinheiro e Restinga.
Conforme o Diagnóstico Socioterritorial de Porto Alegre (PMPA/
FASC, 2020), o bairro Sarandi, localizado na região norte, é impactado
por vazios de atendimento socioassistenciais e oferece riscos ambientais
decorrentes, principalmente, de transbordamento de “valões” e a presença
de reciclagens de lixo nos ambientes domésticos. É também marcado por
um número elevado de assentamentos irregulares e precários, além de áreas
de reassentamentos, decorrentes da ampliação do aeroporto. Há, ainda,
relatos de precariedade da infraestrutura urbana e de serviços (saneamento
básico, iluminação pública, calçamento das vias e calçadas), o que se cons-
titui em fator de vulnerabilidade e risco para as famílias e indivíduos.
Por outro lado, foram também apontadas potencialidades relacio-
nadas às formas de resistência, solidariedade, trabalho, lazer e convivên-

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cia, quais sejam: grupo solidário de WhatsApp, Serviço de Convivência
e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) oferecidos no CRAS Norte e SAF
Sempre Mulher e atividades esportivas e culturais oferecidas em asso-
ciações de moradores. Outra particularidade da região Norte como um
todo é o expressivo número de imigrantes haitianos e senegaleses, o que
tem impactado de forma significativa a dinâmica de atendimentos nos
serviços (PMPA, 2020).
Quanto às crianças e adolescentes em Acolhimento Institucional,
o Cadastro de Crianças e Adolescentes em Acolhimento Institucional
organizado pela FASC, apontava, em 2018, 40 crianças/adolescentes nos
serviços de acolhimento institucional de Porto Alegre oriundos da região
Norte, o que corresponde a 4,6% do total de acolhimentos na cidade.
Destes, 15 não estavam em acompanhamento na época do levantamento
e seis famílias não foram localizadas, totalizando 21 casos sem acom-
panhamento, demonstrando uma fragilidade da rede em atender estas
situações nos territórios de origem (PMPA, 2020).
Já no bairro Lomba do Pinheiro, a política da Assistência Social
se efetiva através dos equipamentos próprios (CRAS, CREAS) e par-
ceirizados (SAF, Abordagem Social, SCFV). Entretanto, conforme o
diagnóstico socioterritorial (PMPA, 2020), as comunidades Recreio da
Divisa, Estrada das Quirinas, Quinta do Portal e Esmeralda não apre-
sentam cobertura de serviços socioassistenciais. Além disso, há áreas de
risco, onde regiões de vegetação nativa, com vertentes de água, riachos e
rio servem para assentamentos irregulares de moradias, estando sujeitas a
alagamentos e inundações. Neste aspecto, destacam-se a Vila Bonsuces-
so, o Parque Saint Hilaire, o Recreio da Divisa (cerca de 1000 famílias
cadastradas, totalizando em torno de 2000 pessoas) e a região da Parada
15, caracterizada como área de ocupação/área verde.
Com relação às potencialidades, 14% dos participantes do levanta-
mento realizado durante o processo de elaboração do diagnóstico socio-
territorial (PMPA, 2020), responderam que “não existe nada de positivo
na Lomba do Pinheiro”, demonstrando sentimentos de desesperança,
indiferença e falta de motivação. No âmbito do lazer e convivência, são
relatados a Escola de Samba, a Locadora, a praça e quadra de futebol,
que proporcionam momentos de lazer e convivência; e, assim como já

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relatado na Região Norte, o pessoal do tráfico de drogas (“os guris”) se
mostra presente no auxílio às famílias, promovendo momentos de lazer e
fazendo a manutenção básica da estrutura da comunidade.
Em relação aos aspectos positivos da região, os usuários identi-
ficaram uma pracinha nova, localizada em frente ao CRAS, um grupo
da horta, os postos de saúde, a limpeza do bairro, a Escola Municipal
de Ensino Fundamental Villa Lobos e o seu coral oficinas, a escola Eva
Carminati, o Centro de Promoção da Criança e do Adolescente (CPCA)
e o Centro da Juventude, assim como a sensação de segurança por não
serem assaltados dentro da Vila Herdeiros. Chama a atenção que as esco-
las apareceram em apenas 9,34% das respostas como aspecto positivo no
território, mostrando que os usuários que participaram da pesquisa não
veem a Política de Educação como uma potencialidade (PMPA, 2020).
Outra particularidade do território é a grande presença de popula-
ção autodeclarada negra no Cadastro Único, bem como o fato de apre-
sentar a maior comunidade indígena da cidade (quatro assentamentos
das etnias Kaingang, Charrua e Guarani). Com relação à origem das
crianças e adolescentes nos serviços de acolhimento em 2020, a região
ocupava a quarta posição entre as principais demandantes, com 49 crian-
ças/adolescentes oriundos da Lomba do Pinheiro, demonstrando que as
vulnerabilidades do território acabam impactando nas formas de cuida-
do e proteção das crianças e adolescentes que nele vivem (PMPA, 2020).
Conforme o diagnóstico socioterritorial (PMPA, 2020), no bairro
Restinga os territórios Restinga Velha e Pitinga não apresentam cobertura
de serviços, fato que se agrava ao ser associado com a informação de que
em 2019 o bairro contava com sete empreendimentos do Programa Minha
Casa, Minha Vida (3.020 residências e 12.080 pessoas) e 12 áreas de ocu-
pações novas (cerca de 14.828 pessoas), as quais não foram acompanhadas
pela ampliação dos serviços. Percebe-se como potencialidade a forte identi-
ficação que a comunidade tem com o seu território, apesar do preconceito
que afirma existir na cidade contra o bairro, e são também identificadas redes
de solidariedade e apoio mútuo entre os moradores, com especial destaque
para o para a Escola de Samba Estado Maior da Restinga. Por meio da cul-
tura local, corporificada pela população residente, com ênfase aos seus mais
antigos moradores e representada, principalmente, por sua escola de samba,

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a comunidade chama a sua “torcida tinguerreira”, constituindo, através des-
se símbolo, a demarcação da resistência no território frente ao processo de
gentrificação que presidiu a sua formação. Esta resistência se apresenta evi-
denciando uma comunidade que batalhou e batalha frente às adversidades
que lhe foram impostas pelas políticas de remoção e seus efeitos deletérios.
Entre os jovens entrevistados para a elaboração do referido diagnós-
tico (PMPA, 2020), o serviço de convivência e fortalecimento de vínculos
denominado Projovem e as atividades do Centro Comunitário da Restinga
(CECORES) são vistos como importantes para evitar que estivessem ocio-
sos em casa ou nas ruas e, consequentemente, expostos a riscos. Ademais,
com relação aos dados do Cadastro Único (CadÚnico) de 2019, chama a
atenção que a Restinga é a região com o maior número de beneficiários do
Programa Bolsa Família e a segunda com o maior número de famílias em
situação de extrema pobreza na cidade, bem como a informação de que a
população negra representa aproximadamente 38% dos residentes na re-
gião, o que nos leva a inferir que exista uma associação entre raça/renda.
Assim, entendemos que esta associação raça/renda também está associada
ao fato de este ser um dos territórios de maior mortalidade juvenil na cida-
de, conforme já vem sendo apontado em diversos estudos sobre a realidade
nacional, como o Atlas Nacional da Violência (IPEA, 2019).
A título de conclusão, seguimos Capellari et Al. (2021), que afirma
que o território é também produtor de subjetividades e, nessa perspec-
tiva, torna-se importante saber das fragilidades ali existentes e do que
precisa ser construído.

Diante da omissão do Estado e da falta de recursos e possibilida-


des, o tráfico predomina e a polícia genocida decide quem deve
viver ou morrer. E nesses territórios encontramos crianças e ado-
lescentes, a nossa juventude, que demanda por olhar, acolhimen-
to, respostas. Juventude que Canta e Grita: Roubaram a nossa
Infância, o nosso direito de viver com dignidade, de acessar o
ensino de qualidade, de ter o direito de escolher entre a vida e a
morte (CAPELLARI ET AL., 2021, p. 40),

Por fim, é possível perceber que a insuficiência de Políticas de Assis-


tência Social nos bairros investigados, sobretudo pelas condições dos terri-

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tórios, pelos grandes contingentes demográficos e a falta de atenção dos po-
deres públicos para com estes espaços, é fator de risco para a sua juventude.

Desafios da (in)segurança pública em Porto Alegre

A segurança é um direito previsto aos brasileiros e residentes no


país, como demonstra o Art. 5º, caput, da Constituição da República
Federativa do Brasil - CRFB/CF. É dever do Estado e responsabilidade
de todos, sem distinção – espera-se – de qualquer natureza e tem como
objetivo preservar a segurança das pessoas e do patrimônio, conforme o
Art. 144 da Constituição Federal (BRASIL, 1988).
Os órgãos previstos no Art. 144 da CRFB possuem competências
distintas. A Polícia Federal (Art. 144, § 1º, CF/88), por exemplo, é um
órgão organizado e mantido pela União e destina-se a apurar as infrações
penais contra a ordem política e social de bens, prevenir e reprimir o
tráfico ilícito de entorpecentes em áreas de competência federal. Ao pas-
so que as Polícias Civis (Art. 144, § 4º, CF/88) apuram e investigam as
infrações penais, exceto as militares.
A Polícia Civil e a Polícia Federal investigam com autonomia os
boletins de ocorrência registrados pela Polícia Militar para “atingir-se
elementos suficientes de autoria e materialidade para oferecimento da
acusação (ao Ministério Público) ou justificação do pedido de arquiva-
mento” (LOPES JR., 2020, p. 138). A Polícia Militar, conhecida no Rio
Grande do Sul como Brigada Militar (Art. 144, § 5º, CF/88) têm a fun-
ção de polícia ostensiva, “é a Brigada Militar que está nas ruas da capital
desempenhando a função preventiva” (LOPES JR., 2020, p. 139).
A 50ª edição do Anuário Estatístico, elaborado pela Secretaria de
Planejamento e Assuntos Estratégicos, vinculada à Prefeitura de Porto Ale-
gre, aponta que “na falta de estimativas populacionais por bairros” pode-se
compreender que os bairros mais populosos permanecem sendo os bairros
Sarandi, Rubem Berta, Restinga, Santa Tereza e Lomba do Pinheiro (PM-
POA, 2022, p. 17). Todavia, é possível dizer que a densidade populacional
não dialoga com o desenho geográfico das unidades da Brigada Militar.
Sabe-se que, conforme o sítio eletrônico da Brigada Militar, Porto
Alegre possui onze unidades da BM. Duas unidades estão situadas no

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Bairro Glória, uma na Restinga, uma no Menino Deus, uma no Cascata,
uma no Praia de Belas, uma no Partenon, uma na Baltazar de Oliveira
Garcia e uma no Passo da Areia. São três unidades na Zona Sul, uma na
região Central, uma na Zona Leste e duas na Zona Norte.
Ao analisar os bairros estudados na presente pesquisa, Sarandi,
Lomba do Pinheiro e Restinga, com o serviço ofertado pela Brigada Mi-
litar, é possível dizer que as unidades da Brigada Militar não são próxi-
mas geograficamente de todos os três bairros com maior incidência de
mortalidade juvenil e também os mais populosos. Somente a Restinga
conta com o 21º batalhão, situado na Av. João Antônio Silveira n. 2590.
Ressalta-se que, no momento da escrita do presente livro, a passagem de
ônibus na cidade de Porto Alegre custa R$ 4,80, o que dificulta a mobili-
dade dos moradores dentro da própria cidade e faz com que seus bairros
precisem – ainda mais – de serviços voltados para a cidadania. Sobretudo
bairros com altos índices de violência.
Segundo os últimos dados disponibilizados pela Secretaria da Se-
gurança Pública, que abrangem os meses de janeiro e fevereiro do ano de
2022, (SSP.RS, 2022), em Porto Alegre foram registradas 17.795 ocor-
rências de delitos variados, como homicídio, furto, roubo etc. Sarandi,
Lomba do Pinheiro e Restinga aparecem entre os dez bairros onde mais
ocorreram esses registros.
Sarandi, com 659 ocorrências registradas e 587 vítimas, somente
em dois meses, ocupa a quarta posição, perdendo apenas para o Centro
Histórico, o bairro “em branco” – acredita-se que na hora de preencher o
sistema tenha acontecido um erro de digitação, o que pode sugerir falta
de cuidado com dados oficiais - e o bairro Rubem Berta. Já o bairro Res-
tinga está em quinto lugar com 647 ocorrências e 550 vítimas e a Lomba
do Pinheiro em décimo com 438 ocorrências e 395 vítimas. Ressalta-se
que Porto Alegre possui 154 bairros oficiais.
Dessa forma, levando em conta os altos índices populacionais e de
violência nesses territórios, seria fundamental a presença de batalhões da
Brigada Militar no Bairro Sarandi, por exemplo. Entretanto, os batalhões
mais próximos do CREAS-Sarandi, local em que as pessoas vão quan-
do algum direito foi violado ou há fortes indícios de violação e buscam
amparo da Assistência Social, que está localizado na Rua Paulo Gomes

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de Oliveira, ficam na Avenida Baltazar de Oliveira Garcia, nº 2132 e na
Rua Sapé, nº 58, bairro Passo da Areia. A unidade 20º BPM, situada na
Avenida Baltazar de Oliveira Garcia, está a 05 km de distância, isto é, 09
min de carro e 23 min de ônibus do CREAS. Enquanto a unidade 11º
BPM, localizada na rua Sapé, nº 58, bairro Passo da Areia, está a 07 km
de distância, ou seja, 13 min de carro e 42 min de ônibus do CREAS,
ambas estimativas realizadas pelo aplicativo Google Maps.
Seguindo a problemática do bairro Sarandi, as delegacias da Polícia
Civil (ERGS, 2022), mais próximas estão na Avenida Protásio Alves, nº
2914, na Avenida do Forte, nº 1853 e na Rua Regina Araújo Rocha, nº
205. A primeira encontra-se a uma distância de 11 km, 20 min de carro
e de 40 min de ônibus, a segunda a 6 km, 13 min de carro e 35 min de
ônibus e a terceira a 08 km, 18 min de carro e 50min de ônibus, con-
soante o Google Maps.
Já as unidades do corpo de bombeiros, conforme o site do corpo
de bombeiros, que são cinco, estão duas na Avenida Silva Só, uma na
Avenida Mauá e uma na Avenida Aureliano de Figueiredo Pinto, to-
das distantes geograficamente dos bairros Sarandi e Lomba do Pinheiro.
Destaca-se que há um corpo de bombeiros na Restinga, situado na Ave-
nida João Antônio Silveira, no 2590, o que é imprescindível, haja vista
que as outras unidades estão na região central e o Bairro Restinga está
distante cerca de 22 km do bairro Centro Histórico, levando quase 1h
quando se vai de carro. De ônibus, pode demorar o dobro de tempo ou
mais, dependendo do trânsito, o que causaria – maiores – estragos em
um episódio de incêndio.
A Lei da cidade de Porto Alegre nº 9.056, de 27 de dezembro de
2002, (PMPOA, 2002), no Art. 3º incorporou a Guarda Municipal à
Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana. Esta,
que foi criada no ano de 1892, possui como atribuição “proteger o pa-
trimônio público, especificamente os próprios municipais, ou seja, Es-
colas, Postos de Saúde e Repartições”. Atualmente, a Guarda Municipal
é composta por efetivos fixos, móveis e quadro de chefia que dispõe de
automóvel de patrulha, exercendo a fiscalização de prédios públicos e a
Divisão de Patrulha que é descentralizada para que haja atendimento
24h em Porto Alegre.

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Paralelamente, mas imbricados ao desempenho das forças de Se-
gurança Pública do Estado, está o fenômeno das facções criminais, agru-
pamentos que transitam pela capital gaúcha, principalmente em espaços
urbanos precarizados e disputam o lucro que advém do mercado de ilí-
citos. Exemplo do poder das facções é que a Brigada Militar, responsável
pela gestão da Cadeia Pública de Porto Alegre, conhecida como Presídio
Central, utiliza como estratégia “separar os apenados conforme a facção
pertencente ou o bairro que ele reside” (SOHNGEN e GIOVANAZ,
2021, p. 132).
Dentre as facções, estão os “Abertos” e os “Manos”, que são fac-
ções mais antigas, influenciadas pela “Falange Gaúcha”, primeira facção
de Porto Alegre (CIPRIANI, 2016, p. 114). Outros grupos conhecidos
são os “Bala na Cara” e os “V7”, que são mais recentes, e os “AntiBala”,
movimento contrário aos “Bala na Cara”. Segundo entrevista realizada
por Marcelli Cipriani (CIPRIANI, 2016, p. 114):

Os Balas surgiram na vila Bom Jesus. Ali, tiveram vários homicí-


dios – homicídios, não traficídios, envolvendo famílias rivais: os
Bragés e os Mirandas, várias mortes entre eles. E dessa rivalidade
que surgiu ali, também surgiu uma relação de ódio muito grande,
de onde veio o tiro de esculacho, né, que é o tiro na cara, pra fazer
a família enterrar o cara com o caixão fechado. E daí que teria
surgido o nome, dizem.

Cumpre dizer que nos territórios urbanos com alta influência dos
coletivos criminais houve modificação das sociabilidades com o passar
dos anos. Foi afastada a figura da liderança do tráfico com viés de “Ro-
bin Hood”, como Melara, Paulão e Xandi, conforme destaca Renato
Dornelles: “A idolatria aos traficantes Xandi e Teréu e o pesar na morte
de ambos, demonstrados por uma parcela de suas respectivas comuni-
dades, não são novidade por essas bandas” (Diário Gaúcho, 2015). É
correto afirmar que a sensação de pertencimento às facções e a cultura
do poder/arma são fatores importantes, mas o dinheiro atualmente é
fator decisivo.
Indo ao encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, “as
polícias têm estado no centro do debate público e vêm sendo usadas por

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políticos populistas para fazer valer a ideia de que o enfrentamento ao
criminoso e o uso da violência são a sua missão primordial” (FBSP, 2019,
p. 58). Exemplo disso é a discussão na seara da liberdade de expressão
sobre o grafite do traficante Xandi ter sido removido pela polícia em uma
expressão de poder diante da comunidade (GLOBO, 2015).
Dessa forma, tem-se que o debate sobre a segurança pública é
complexo, pois embora existam programas como o RS SEGURO (SSP.
RS, 2022), vinculado a Secretaria da Segurança Pública do Estado do
Rio Grande do Sul, e tem dentre seus objetivos a qualificação do aten-
dimento ao cidadão, o combate ao crime e melhorar o sistema prisional,
verifica-se, como aqui foi relatado, que o Presídio Central continua com
divisões de galerias conforme a facção que o apenado está ou a facção que
domina seu bairro, o que é cauteloso para não haver maiores confusões,
mas demonstra a precariedade do sistema prisional. Ainda, foi visto que
os dados abertos possuem falhas, como a presença do “bairro em bran-
co”, o que dificulta a análise por pesquisadores e a sociedade em geral.
Ademais, há ainda falta de diálogo com a comunidade, é notório
em jornais e pesquisas acadêmicas denúncias de violência policial ou des-
crença ao Estado e suas políticas públicas, exemplo disso é o número de
abstenções dos eleitores aptos nas votações, conforme dados do Tribunal
Superior Eleitoral (BRASIL/TSE, 2022). Acredita-se, portanto, em um
sistema de rede entre a Educação, a Segurança Pública, a Assistência So-
cial e a Saúde, em que estejam interligados e próximos da comunidade,
principalmente em bairros precarizados, onde a cidadania e a oferta de
serviços é vital desde a infância e sobretudo para a juventude.

Considerações finais

A partir da análise das políticas públicas presentes nos territórios


envolvidos na pesquisa, ficou evidente o quanto ainda são ausentes as
ditas políticas universais de acesso básico por parte da população, espe-
cialmente, os jovens. Ainda que haja consciência sobre a participação de
grupos de interesse e dos movimentos sociais, no processo de formulação
das políticas públicas, os governos não podem se eximir da sua respon-
sabilidade central nesta área, visto que é o seu papel realizar diagnósticos

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e formular políticas que atendam as demandas dos diferentes grupos so-
ciais, conforme é o das juventudes (SOUZA, 2006).
Esta responsabilidade cresce, diante do fenômeno do aumento da
situação da vulnerabilidade de grande parte das juventudes brasileiras,
que se veem privadas dos direitos básicos. O cenário é tão drástico que
a dimensão do juvenicídio (VALENZUELA, 2015), é uma realidade
implacável, que tem tirado a vida de mais de 30 mil jovens por ano,
no Brasil.
Para tal, não bastam ações e projetos isolados, pois se fazem neces-
sárias políticas articuladas com as demandas dos próprios jovens, a partir
de suas realidades. De acordo com Ribeiro e Macedo (2018, p. 123),

A percepção é de que as questões da juventude estão intimamente


conectadas e são intrinsecamente interdisciplinares. Tal afirmação é
clara, quando se observa a complexa convergência de demandas e
agendas contemporâneas – educação, trabalho, cultura, comunica-
ção e informação, saúde, meio ambiente e desenvolvimento, vida
segura, participação, direitos humanos entre outras –, e o desafio de
integrá-las no cotidiano da gestão pública, de forma original.

Ressalta-se, portanto, a importância da interdisciplinaridade, à


qual, é possível acrescentar a ideia da interseccionalidade, em que as po-
líticas públicas podem – e deveriam – ser formuladas a partir das dife-
rentes pastas governamentais, buscando a articulação entre os temas, as
demandas, os perfis juvenis e as características dos territórios, em que
estão inseridos. Quando se trabalha com esta visão, adota-se o paradigma
da garantia de direitos, na perspectiva da cidadania, em que cada jovem
é considerado sujeito e, como tal, deve ter pleno acesso às condições de
desenvolvimento pessoal e social.
Este é o ideário que se deseja para que as juventudes possam viver
e ter garantida a sua dignidade. Contudo, a pesquisa aqui empreendida
evidenciou que a realidade concreta das políticas públicas é desigual nos
diferentes territórios de Porto Alegre e que os direitos fundamentais estão
distantes de serem alcançados.
Na área da Educação foi possível perceber que o número de escolas
é insuficiente nos bairros de maior mortalidade juvenil, principalmen-

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te, aquelas de Ensino Médio, em que deveriam estar grande parte dos
jovens de 14 a 17 anos. O número de jovens que concluem o Ensino
Fundamental e o Ensino Médio é muito inferior nestes territórios do que
em outros espaços. Ressalta-se o dado impactante afirmado pelo IPEA
(2016) de que para cada 1% a mais de jovens entre 15 e 17 anos nas es-
colas, há uma diminuição de 2% na taxa de assassinatos nos municípios.
Esta impressionante conclusão, por si própria, deveria provocar o Estado
a se ocupar da qualificação e ampliação do acesso e da qualidade das
escolas, ao invés de promover o seu fechamento, como é o caso que está
ocorrendo no Rio Grande do Sul.
Ao se debruçar sobre a área da Saúde fica evidente a necessidade
de aprofundar o movimento epistemológico que considera que políti-
cas sociais têm sua formação a partir da desinstitucionalização da saúde,
apostando no desenvolvimento de uma rede integral dos sujeitos. Com
isso, aponta para a demanda de que se tenham equipamentos públicos
e políticas voltadas às juventudes – e à população em geral – de modo
mais próximo dos territórios, sem a necessidade de grandes desloca-
mentos para o atendimento de suas necessidades. Somado a isso, cabe
também destacar a importância da garantia de dois princípios do SUS,
que são fundamentais para as juventudes, qual seja, a universalidade e a
integralidade. A partir da pandemia de Covid-19, ampliaram-se as de-
mandas de atendimento na área da Saúde Mental, contudo, os serviços
de atendimento encontram-se superlotados, sem condições de dar conta
da grande demanda.
A área da Assistência Social tem um histórico importante de aten-
ção à população na cidade de Porto Alegre, mesmo antes da Constituição
Federal de 1988 e da Lei Orgânica da Assistência Social, LOAS (BRA-
SIL, 1993). A partir das demandas da Política Nacional de Assistência
Social-PNAS, em 2010, os CRAS e os CREAS foram distribuídos em
17 regiões, tomando como base a organização dos territórios do Orça-
mento Participativo. Contudo, apesar dessa organização, as demandas
sociais também foram se ampliando, de modo, que atualmente, a Rede
Socioassistencial não apresenta condições de responder efetivamente às
necessidades locais. De modo especial, nos três bairros participantes da
pesquisa, há um déficit de unidades de atendimento na área de Assistên-

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cia Social. Tal realidade é ainda mais impactada quando se tem um teto
de gastos públicos (PEC 95), que congelou os orçamentos das políticas
sociais por um período de 20 anos.
Por fim, a área da Segurança Pública pode ser considerada aquela
em que há uma grande vinculação quando se fala em violência e mor-
talidade juvenil. De acordo com a Constituição Federal, a segurança é
um direito de todos os cidadãos, inclusive dos jovens, contudo, o que
se percebe é uma grande limitação, tendo em vista que muitas vezes esta
dimensão é reduzida a uma perspectiva policial e militar. A pesquisa de-
monstrou que os órgãos de segurança, tal como a Brigada Militar e os
Bombeiros, estão situados distantes dos territórios mais impactados pela
mortalidade juvenil, sendo que o mais próximo é a Guarda Municipal,
que tem uma dinamização mais descentralizada. No caso de Porto Ale-
gre – e do Brasil – não há como falar do fenômeno da mortalidade, sem
destacar a atuação e as disputas das facções criminosas, que têm se confi-
gurado como uma situação de alta complexidade, demandando esforços
significativos para atenuar os seus impactos.
O cenário é extremamente difícil e os índices de homicídios de
jovens são muito preocupantes. Neste contexto, a Frente de Enfrenta-
mento à Mortalidade Juvenil em Porto Alegre tem procurado atuar na
perspectiva de mostrar os déficits nas diversas áreas das políticas públicas,
problematizando a sua importância para servir como um dos fatores de
diminuição deste impacto. Para que isso aconteça, foi possível identificar
através dos dados deste capítulo, que se fazem necessários investimentos
realmente significativos em áreas como Educação, Saúde, Assistência So-
cial e Segurança Pública, entre outros.

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Traços de Vida e Morte:
percorrendo os rastros juvenis nas políticas públicas

Alex da Silva Vidal


Bruna Rossi Koerich
Renata Maieron Turcato

Introdução

Ao longo deste livro, buscamos olhar para as expressões do fenô-


meno do juvenicídio no município de Porto Alegre, analisando dados do
Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e das políticas públicas
dos territórios mais marcados pela mortalidade juvenil no município.
Este capítulo é dedicado à construção de um movimento “inver-
so”. A partir da construção de uma amostra de 18 jovens, buscamos
reconstituir aspectos de seus percursos de vida, por meio do que ficou
registrado sobre eles nas políticas Públicas de Educação, Assistência
Social, Socioeducação, Conselho Tutelar e do Sistema de Informações
sobre Mortalidade.
Chamamos então de traços de vida, inspirados no conceito utiliza-
do por José Machado Pais (2000) para pesquisas com jovens em contex-
tos de desenquadramentos sociais. Para o autor, é importante, nesses con-
textos, construir processos investigativos que olhem para as trajetórias
juvenis não pela perspectiva do risco, da ruptura, do desenquadramento,
mas compreendendo esses elementos como um dentre tantos traços que
compõem os quadros de vida juvenis.
Segundo Pais (2000), a exclusão social dos jovens tem tido cada
vez maior relevância, especialmente em relação à percepção de que os
jovens constantemente se colocam em situações de risco. No caso do
Brasil, há uma grande preocupação pública com a crescente mortali-
dade juvenil, que na última década alcançou índices alarmantes. Com-
preendemos fundamental, quando se trata de mortalidade juvenil, o

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debate sobre os jovens e o risco, tão corriqueiramente associados, es-
pecialmente quando se olha para os jovens mais vulneráveis de nossa
população. Quando falamos em condutas de risco, estamos pensando
em questões estruturais que vão ampliar ou diminuir as possibilidades
das escolhas individuais? Quais as dimensões da liberdade de um jovem
inserido em um contexto de violência estrutural em territórios violen-
tados? Tão temerário quanto desconsiderar o contexto no qual as vidas
dos jovens que alimentam os índices de mortalidade juvenil é também
desconsiderá-los por completo nas suas individualidades, nas suas es-
colhas, ações, relações, enfim, suas vidas. O que provocamos aqui é a
percepção de que não podemos pensá-los sem o seu contexto, e não
podemos desconsiderar o jovem tratando-o como uma determinação
socialmente constituída, mas a complexidade desta relação.
Pais (2000) adverte, então, que há uma forte tendência em olhar
em demasia para as situações e condutas de risco, perdendo de vista a
própria vida dos jovens. Para entender melhor os riscos vividos pela
juventude, um método interessante é olhá-los a partir de suas vidas, de
suas realidades. Nas palavras de Pais, é preciso,

[...] partir dos traços de vida para compreender os seus eventuais


riscos. A proposta – que é também uma aposta metodológica –
vai, pois, no sentido de clarificar as condições ou determinantes
sociais de jovens vivendo em trajetórias de risco ou em contextos
de exclusão ou desenquadramento social mostrando e questio-
nando as suas múltiplas formas de expressão; pesquisando as suas
estratégias de sobrevivência; debatendo acções sociopolíticas que
melhor poderão prevenir a exclusão desses mesmos jovens (PAIS,
2000, p. 9).

O indício que funcionou como ponto de partida dos registros so-


bre essas vidas foi o que os uniu: a morte precoce. Mas o que mais ti-
nham em comum? O que possuíam de singular? Compartilharam outros
marcadores de passagem pelas políticas públicas? Essas questões instiga-
ram a busca pela reconstrução de suas trajetórias por entre as políticas
públicas, na tentativa de fazer emergir traços de vida para além do risco
que se efetivou como tragédia.

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O que sabemos sobre esses jovens foi o que ficou de registro de
suas breves existências. Partimos, então, de documentos com rastro das
passagens dos jovens pelas políticas públicas, jovens que o discurso social
esperava que fossem esquecidos. E são estes documentos e dados que essa
pesquisa recolhe e analisa; notícias que configuram um rápido lampejo
da existência destes jovens, só possíveis devido ao choque com o poder,
com as instituições.

Para que alguma coisa delas [das vidas dos jovens] chegue até
nós, foi preciso, no entanto, que um feixe de luz, ao menos por
um instante, viesse iluminá-las. Luz que vem de outro lugar.
O que as arranca da noite em que elas teriam podido, e talvez
sempre devido, permanecer é o encontro com o poder: sem esse
choque, nenhuma palavra, sem dúvida, estaria mais ali para lem-
brar seu fugidio trajeto. O poder que espreitava essas vidas, que
as perseguiu, que prestou atenção, ainda que por um instante,
em suas queixas e em seu pequeno tumulto, e que as marcou
com suas garras, foi ele que suscitou as poucas palavras que disso
nos restam; seja por se ter querido dirigir a ele para denunciar,
queixar-se, solicitar, suplicar, seja por ele ter querido intervir e
tenha, em poucas palavras, julgado e decidido. Todas essas vidas
destinadas a passar por baixo de qualquer discurso e a desapa-
recer sem nunca terem sido faladas só puderam deixar rastros –
breves, incisivos, com frequência enigmáticos – a partir do mo-
mento de seu contato instantâneo com o poder (FOUCAULT,
2003, p. 206).

Foucault destaca as vidas infames como aquelas que dificilmente


desempenham qualquer atuação na história, marcados pelo esquecimen-
to, sem deixar nenhum vestígio sobre suas trajetórias exceto no encontro
com o poder. As vidas infames não possuem qualquer tipo de ingerência
sobre suas histórias, os vestígios que nos chegam foram produzidos pelas
instituições burocráticas e técnicas que se debruçam sobre os sujeitos. As-
sim, a perspectiva destes registros, é a infâmia que os levou ao encontro
com o poder, é o que marca a sua história.
Reconstruir essas trajetórias tem aqui dois propósitos: o primeiro é
o de rastrear pistas da vida daqueles que até aqui foram olhados a partir
do risco. O segundo é conseguir olhar para os desafios de acesso e perma-

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nência das políticas públicas, procurando identificar possíveis violações
nas trajetórias de vida de jovens que residem nos territórios mais marca-
dos pela violência juvenil.

Percurso Metodológico

Conforme já apresentado anteriormente neste livro, o primeiro


passo do percurso metodológico envolveu identificar os três territórios
com maiores índices de mortalidade juvenil em Porto Alegre no período
entre 2015 a 2020 a partir dos dados do SIM. O passo seguinte foi sele-
cionar aleatoriamente 6 trajetórias juvenis de cada um desses territórios,
chegando-se assim em uma amostra de 18 jovens que foram vítimas de
homicídio realizado por arma de fogo no ano de 2018.
A partir dessa amostra, iniciou-se o trabalho de buscar registros
desses jovens junto às políticas públicas. Depois dos trâmites burocrá-
ticos necessários para o acesso as informações, conseguimos acessar os
registros existentes destes 18 jovens junto ao Conselho Tutelar de Porto
Alegre e às Políticas de Educação, Socioeducação E Assistência Social.
Os dados acerca da trajetória educacional dos jovens foram obti-
dos por meio da Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul
(SEDUC-RS) e da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre
(SMED). Os registros acessados da Política de Socioeducação são da
Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (FA-
SE-RS) e do Programa Municipal de Execução de Medidas Socioedu-
cativas em Meio Aberto (PEMSE), da Fundação de Assistência Social e
Cidadania de Porto Alegre (FASC). Já os dados da Política de Assistên-
cia se referem, sobretudo, aos registros encontrados junto aos Centros
de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) dos três
territórios que compõem a amostra dessa pesquisa (CREAS Restinga/
Extremo Sul; CREAS Lomba do Pinheiro; CREAS Norte/Noroeste).
Além disso, houve a tentativa de buscar registros junto à Política de
Proteção Social Básica, o que foi dificultado muitas vezes, pela ausência
de dados da mãe que permitisse uma busca mais completa. Também foi
realizada coleta de informações sobre os jovens nos Conselhos Tutelares
de cada uma das três regiões.

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Em um primeiro momento, a busca por informações dos jovens
foi realizada por um profissional designado em cada um desses equi-
pamentos, que nos retornou com as informações encontradas. No caso
da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, tivemos acesso,
também, à cópia dos registros das trajetórias escolares desses jovens
junto à Rede Municipal de Ensino. Também tivemos acesso à cópia de
alguns documentos constantes nos prontuários de alguns jovens junto
à Política de Assistência Social. No Conselho Tutelar obtivemos o re-
passe de informações resumidas de alguns jovens, e até o fechamento
da edição deste livro, estávamos aguardando acesso aos documentos
respectivos, ainda pendente de análise em processo administrativo na
instituição. Este foi o órgão onde encontramos menos informações,
devido a uma sistematização precária. E, no caso da Fundação de Aten-
dimento Socioeducativo, pudemos, enquanto pesquisadores, acessar
diretamente os prontuários físicos de alguns dos jovens, podendo ex-
trair dali as informações que julgamos necessárias para a reconstituição
de suas trajetórias. Alguns prontuários não foram localizados junto ao
Arquivo da FASE e, nesse caso, conseguimos acessar apenas as informa-
ções constantes no sistema.
Importante salientar que foram seguidos todos os protocolos éti-
cos e a pesquisa somente foi realizada após aprovação nos Comitês de
Ética da UFRGS e SMS de Porto Alegre e mediante autorização das de-
mais instituições, a partir de Termos de Compromisso de Uso de Dados.
Em posse de todas as informações que foram possíveis de serem
coletadas, passamos à fase de reconstituição das trajetórias, que envolveu
a construção de uma linha do tempo para cada jovem, permitindo a vi-
sualização dos principais marcadores de suas trajetórias junto às políticas
analisadas. A figura abaixo demonstra um modelo de linha do tempo
elaborada com esse propósito de reconstituição:

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Figura 1- Linha do tempo (Floriano)

Fonte: Elaboração própria

Depois disso, realizou-se uma fase descritiva das trajetórias, onde


buscamos construir textualmente a narrativa possível de cada uma dessas
18 vidas. Prontas, essas trajetórias foram relidas com o intuito de identifi-
carmos similaridades e diferenças em seus percursos pelas políticas públi-
cas. Nesse processo, foi produzida uma planilha para sistematizar aqueles
marcadores que apareceram com maior recorrência nas trajetórias.
Os resultados encontrados são apresentados em duas seções prin-
cipais deste capítulo: a primeira, dedicada à apresentação de algumas das
trajetórias reconstituídas, como forma de evidenciar o que foi possível
traçar sobre os percursos juvenis nas políticas públicas e outra com as
principais similaridades encontradas nas trajetórias.
Importante ressaltar que os registros dessas trajetórias, que dão in-
dícios dos traços de vida, não necessariamente representam as trajetórias
vividas pelos jovens por entre essas políticas. Em alguns equipamentos, ti-
vemos grande dificuldade em acessar as informações, por vezes existia ape-
nas o prontuário físico e ele não era localizado com facilidade. Em outras,
havia anotações lacônicas, sem muita informação. Como é o caso de uma
das anotações que dizia “atendimento pela equipe de abordagem”, sem
nenhuma outra informação adicional. Em algumas situações, consegui-
mos consultar profissionais dessas políticas, questionando o que poderia

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representar cada uma dessas anotações, mas nem sempre eles conseguiram
nos auxiliar nesse sentido. Dessa forma, a ausência de registros de um jo-
vem em determinada política não evidencia que ele não a acessou em ne-
nhum momento de sua trajetória, mesmo que dê indícios nessa direção.
Destacamos alguns limites da pesquisa na reconstrução das traje-
tórias dos jovens. Primeiramente, como já mencionamos, os registros nas
políticas públicas tinham muitas lacunas e se mostraram pouco confiáveis
em alguns aspectos. Importante ressaltar que muitas dimensões da vida
dos jovens não foram exploradas, como relações afetivas, familiares, com
o território, aspectos socioculturais e de classe, ou seja, a reconstrução
realizada a partir de pistas das políticas está longe de ter a complexidade
da vida vivida. Outro elemento importante é que não possuímos a versão
dos jovens sobre os fatos e sobre sua história, assim a reconstrução de
suas trajetórias parte de vestígios institucionais e olhares externos. Dessa
forma, não temos a pretensão de reconstruir a vida destes jovens em sua
totalidade e complexidade, mas sistematizar aspectos de suas histórias a
partir dos rastros que ecoam de suas trajetórias nas instituições públicas
como forma de contribuir na compreensão da Mortalidade Juvenil.
No processo de reconstituição das trajetórias, nos deparamos com
uma situação que despertou nosso interesse investigativo: alguns jovens
pareciam ter uma trajetória permeada de muitos rastros, enquanto outros
pareciam estar quase invisíveis, devido ao reduzido número de traços des-
sa vida que encontramos nos registros das políticas públicas acessadas.
No caso de alguns jovens, conseguimos acessar tantos registros de
suas passagens pelas políticas públicas, que quase era possível remontar
uma trajetória, como que juntando peças de um quebra-cabeça, princi-
palmente se ele havia passado pelo sistema socioeducativo. No caso de
outros, contudo, foi basicamente impossível realizar essa reconstituição,
já que encontramos poucas informações nas políticas públicas, estabele-
cendo algumas trajetórias com muitas lacunas.
Com o intuito de garantir o anonimato dos jovens que compuse-
ram a amostra, seus nomes foram substituídos por personagens de livros
de Érico Veríssimo, como forma de lembrar que foram vidas vividas (e
interrompidas) no Rio Grande do Sul.

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Rastros de Vida: biografias registradas
no percurso das políticas públicas

A seguir apresentamos a reconstrução de algumas dessas biografias,


no intuito de possibilitar a visualização de seus percursos entre as polí-
ticas públicas e permitindo compreender que a relação entre juventudes
e políticas públicas é fruto de um complexo processo de aproximação e
distanciamento, não sendo possível apenas uma divisão binária entre ter
acessado ou não uma política específica de forma isolada.

Floriano

Floriano nasceu em abril de 2001 e seu primeiro registro nas po-


líticas públicas é a abertura de um expediente no Conselho Tutelar por
suspeita de negligência, quando tinha ainda 5 anos de idade. No ano
seguinte, tivemos o registro de seu ingresso na Rede Municipal de En-
sino. Os registros apontam para a infrequência na escola, inclusive com
registros de FICAI1 por parte da escola e o conceito de Abandono Escolar
ao final do primeiro ano do Ensino Fundamental. Depois de ingressar
na escola, e talvez devido ao grande número de faltas, Floriano repete
duas vezes de ano e consegue ser aprovado para o terceiro ano, apenas
em 2010, evidenciando que o jovem acaba convivendo com a distorção
idade/ano desde o início de sua trajetória escolar.
As informações coletadas nos serviços da Assistência Social e Con-
selho Tutelar trazem alguns vestígios que ajudam a entender um pouco
do contexto que Floriano estava experienciando no início de sua escola-
rização. O CREAS da Restinga tem o registro de ter realizado uma abor-
dagem em 2009 e encontrá-lo em situação de rua, quando tinha 8 anos.
Foi atendido pelo Ação Rua e, segundo as informações, vivia em situação
de mendicância. Um dos esforços do equipamento social foi, aparente-
mente, encaminhá-lo a um Serviço de Convivência e Fortalecimento de
Vínculos (SCFV) no bairro Restinga. No ano seguinte, Floriano e seu ir-
mão têm registro de um acolhimento institucional na Casa de Passagem
para crianças vítimas de violência.
1 FICAI - Ficha de Comunicação de Aluno Infrequente.

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Durante esse período de três anos, entre 2009 e 2011, Floriano apa-
rentemente mantém uma maior presença na escola, começa a ser aprovado
e passar de ano. No entanto, segundo os registros do Conselho Tutelar,
novamente é encontrado em situação de rua, sendo realizado acolhimento
emergencial em 2012 e outro no final de 2013, período em que tinha entre
11 e 12 anos. Nesse último ano, o jovem não possui registro de matrícula,
dando indícios de uma possível situação de Evasão Escolar.
No ano de 2014, o jovem tem o seu primeiro atendimento no sis-
tema socioeducativo, com uma internação provisória realizada em mar-
ço, que acaba por transferi-lo em abril para o cumprimento de semiliber-
dade. O jovem foge do regime de semiliberdade em menos de um mês
e em junho de 2014 tem a sua segunda internação provisória. Floriano
acaba sendo sentenciado ao cumprimento de medida socioeducativa de
internação em unidade de privação de liberdade, sendo transferido para a
unidade “POA I” da FASE-RS. Em novembro do mesmo ano é transferi-
do para a unidade “POA II”. Seu ingresso na FASE fez com que o jovem
migrasse para a modalidade de Educação De Jovens E Adultos (EJA),
mesmo que ainda tivesse apenas 13 anos.
No ano seguinte as informações que temos mostram uma trajetó-
ria de oscilações entre a moradia em casas de acolhimento e períodos de
internação na Fundação de Atendimento Socioeducativo.
O ano de 2016 é onde se concentram grande parte dos registros de
passagem do jovem pelas políticas públicas. Em fevereiro, Floriano tem
uma passagem de 18 dias na internação provisória, 10 dos quais esteve
em atendimento especial2 devido a uma ocorrência disciplinar. Em março,
o jovem possui uma nova entrada na internação provisória, ficando tam-
bém 7 dias em atendimento especial devido a problemas disciplinares. Em
abril o jovem chega a ser transferido para unidade de cumprimento de
medida socioeducativa de internação, mas logo progride para a medida
de semiliberdade. Floriano foge da semiliberdade e, em junho, é apreen-
dido em um município da Região Metropolitana, onde estava na casa de
uma tia. É levado para a unidade Padre Cacique da FASE-RS, destinada

2 Terminologia utilizada na FASE-RS para designar o afastamento do jovem que teve


uma prática de ocorrência disciplinar do convívio com os demais jovens. Informalmen-
te, o atendimento especial é chamado de “isolamento”.

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ao atendimento dos jovens de outros municípios, para o cumprimento
de uma Internação Sanção3.
Dias depois Floriano é transferido para o Centro de Internação
Provisória Carlos Santos, onde deve permanecer para o cumprimento
de sua Internação Sanção. Dos 53 dias que passa na unidade para o
cumprimento dessa medida, o jovem permanece 27 em atendimento
especial, devido ao descumprimento de regras disciplinares. Em agosto
recebe sentença para cumprimento de medida de Liberdade Assistida
e volta a residir em Casa de Acolhimento Institucional, além de ser
encaminhado para o Programa de Oportunidades e Direitos (POD),
na modalidade destinada a egressos do sistema socioeducativo. Em ou-
tubro, a direção do espaço onde Floriano se encontrava abrigado pede
sua transferência para um Abrigo da Fundação de Proteção Especial,
tendo em vista o risco de morte do então adolescente. Além disso,
Floriano é novamente internado no regime de Internação Sanção por
descumprimento da medida de Liberdade Assistida. Durante a audiên-
cia, também é relatada a não adesão do jovem ao POD-Socioeducativo
e a existência de diversas ocorrências disciplinares dentro da instituição
de acolhimento. Durante essa passagem, o jovem permanece 14 dias
em atendimento especial, no que parece ter sido o seu descumprimento
mais severo de regras disciplinares, que ocasionou inclusive no acio-
namento do Batalhão de Operações Especiais por parte da FASE-RS,
devido a instabilidade institucional ocasionada.
Ao final do mesmo mês, o jovem é sentenciado ao cumprimento
de medida socioeducativa de internação, sendo transferido para a quinta
unidade da FASE-RS que frequentou, a Comunidade Socioeducativa.
Nessa época, seu irmão também cumpria medida nessa unidade. O jo-
vem permaneceu 15 meses nesta unidade, sendo desligado em janeiro de
2018. Neste período havia conseguido passar da Totalidade 5 da Educa-
ção de Jovens e Adultos. O desligamento da FASE é o último registro do
jovem nas políticas públicas com vida. Ele foi assassinado em março de
2018, cinquenta e dois dias depois.

3 Internação Sanção é uma medida restritiva de liberdade que pode ser aplicada ao
adolescente que descumprir uma medida socioeducativa mais branda. Ela tem duração
máxima de 90 dias.

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Segundo o registro do SIM, o óbito de Floriano ocorreu no bairro
Teresópolis, na cidade de Porto Alegre. O local registrado fica no final de
uma rua, bem no alto do Morro São Caetano, de um lado ficam algumas
casas de classe alta e média, e do outro fica o campo e mata do morro. A
Região tem baixa densidade populacional, sem edifícios, apenas casas e
uma mata com arbustos bem fechados.
Não sabemos as circunstâncias da morte do jovem, apenas que foi
baleado no peito e encontrado em via pública. O óbito ocorreu em uma
quinta-feira, às 16 horas da tarde. Nessa altura, Floriano tinha 16 anos,
completaria 17 anos 30 dias depois. Sabemos também, que, segundo os
registros do SIM, o jovem recebeu atendimento médico, o que sugere
que ainda estava vivo quando encontrado. A causa da morte principal é
agressão por meio de disparo de arma não especificada em rua e estrada.
O registro também aponta traumatismo não especificado do tórax.
Pelo registro do SIM foi possível obter outras informações do jo-
vem, como ele ser branco, não ter registro paterno e não possuir o nú-
mero do cartão do SUS. O registro também indica como endereço um
conjunto habitacional na periferia do bairro Restinga, local bem distante
de onde foi assassinado. Mas, conforme vimos ao longo de sua trajetória,
seu vínculo territorial fora instável, tendo vivido boa parte de sua vida
em espaços institucionalizados e inclusive em situação de rua.

Roque

Roque nasceu em 2001 e ingressou no primeiro ano do Ensino


Fundamental na Rede Municipal de Ensino com 7 anos. Já no primei-
ro ano é aprovado, mas com encaminhamento de Plano Pedagógico de
Apoio Didático, sugerindo alguma dificuldade de aprendizagem ou a
existência de necessidade de recuperação. No ano seguinte, há registro de
manutenção do aluno no 2º ano e de encaminhamento ao Laboratório
de Aprendizagem e de “Classe Especial”. Em 2011 e 2012 progrediu de
série. Em 2013, quando contava 11 anos, houve uma rápida transferên-
cia do aluno que iniciou o ano letivo cursando o 4º ano na Rede Estadual
de Ensino. O jovem retornou para sua escola de origem em meados do
mesmo ano, progredindo de forma contínua até o ano de 2016, quando

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estava matriculado no 7º ano. Neste ano, há um encaminhamento de
Roque para o Laboratório de Aprendizagem e, posteriormente, uma re-
provação por falta de frequência.
Há, também neste ano, o atendimento do jovem na socioeducação
de meio aberto, tendo recebido sentença de 24 semanas de Liberdade
Assistida e 20 semanas de Prestação de Serviços à Comunidade devido
a participação em um ato infracional de roubo4. Roque cumpriu essas
medidas socioeducativas na integralidade e se matriculou em curso pro-
fissionalizante na área de padaria.
Em 2017 o jovem, então com 15 anos, é matriculado no 9º ano
do Ensino Fundamental, indicando certa compatibilidade idade-série,
mas dois dias depois migra para a modalidade de Educação de Jovens
e Adultos em outra escola da Rede Municipal. No início de 2018 in-
gressa no Centro de Internação Provisória Carlos Santos (FASE-RS), se
matriculando assim na EJA da Escola localizada no interior da unidade.
Seu desligamento ocorre poucos dias depois e o jovem é enturmado no
Totalidade 4 da EJA na mesma Escola Municipal que cursava antes da
internação provisória, mas não chega a concluir o ano letivo, já que é
assassinado por disparo de arma de fogo 70 dias depois. Segundo regis-
tros, foi baleado em frente de casa e nem chegou a receber atendimento
médico. A essa altura, Roque estava com 16 anos.

Eugênio

Eugênio nasceu em 2001 e o primeiro registro que temos de sua


trajetória pelas políticas públicas é de 2002, quando ingressou na Rede
Municipal de Ensino no berçário de uma Escola de Educação Infantil.
De acordo com os registos a que tivemos acesso, Eugênio teve mo-
mentos em que esteve sob a tutela do Estado, em acolhimento institu-
cional. Não temos registros sobre a idade que tinha durante o período
de acolhimento, apenas que o que gerou o acolhimento foi o fato de o
pai estar privado de liberdade e a mãe encontrar-se dependente química.
No período de 2002 a 2016, o jovem esteve registrado na Rede
4 O roubo consiste em uma variação do furto (subtrair coisa alheia) quando se dá me-
diante violência ou grave ameaça reduzindo a pessoa à impossibilidade de resistência.

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Municipal de Ensino, com episódios de infrequência escolar. Há um
breve registro de mudança de rede de ensino em 2008, quando Eugênio
chegou a ser matriculado em uma Escola Estadual no 1º ano, contava 7
anos de idade. Essa mudança de rede pode indicar que foi nesse período
que ocorreu o episódio de acolhimento institucional, já que a mudança
de escola ocorre com frequência nessas situações. No mesmo ano foi no-
vamente transferido para a Rede Municipal de Ensino.
No ano de 2016, quando o jovem tinha 15 anos, o pai foi vítima
de homicídio. Em 2017 Eugênio não concluiu o ano letivo, ficando em
situação de abandono escolar. No ano seguinte, o tio é assassinado. De
acordo com os registros de Atendimento Socioeducativo, Eugênio re-
latou aos técnicos que o alvo do homicídio era o próprio jovem, e que,
portanto, seu tio acabou morrendo em seu lugar.
Em fevereiro de 2018 foi apreendido por dirigir moto sem habilita-
ção, o que acabou ocasionando em uma remissão com aplicação de medida
de advertência. No início do mês de maio do mesmo ano, Eugênio é apreen-
dido junto com outros três jovens maiores de idade, por porte de arma de
fogo. A arma de fogo que supostamente estava com Eugênio no momento
da abordagem estava com o registro raspado. O jovem é, então, enviado
para a internação provisória, onde aguarda o andamento do processo.
Quando ingressa na Fundação de Atendimento Socioeducativo
(FASE-RS), a única documentação existente é a certidão de nascimento,
guardada pela mãe. Nos primeiros dias de sua internação provisória, o
jovem ofende uma agente socioeducadora da FASE e é colocado em si-
tuação de atendimento especial.
No dia 15 de junho de 2018, é revogada a internação provisória do
jovem, tendo em vista a proximidade de seu limite máximo legal, que é
de 45 dias. A mãe recebeu 9 reais para pagar a passagem e poder buscar
o adolescente.
Setenta e dois dias após seu desligamento, Eugênio é apreendido
novamente. Segundo a representação do Ministério Público, o jovem
estava portando uma arma de fogo e dispensou pedras de crack durante
a fuga. Depois da apreensão, é emitida nova solicitação de internação
provisória, dessa vez por produção e tráfico ilícito de drogas, Eugênio re-
torna para o Centro de Internação Provisória Carlos Santos (FASE-RS).

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Há um registro de ocorrência disciplinar (ROD) no 17º dia dessa
internação, que relata que Eugênio, durante a rotina de banheiro, teria
ofendido os agentes socioeducadores, falando para os demais jovens que
“Na rua a gente enche eles de tiro, viram umas mulherzinha”. O relato do
jovem é que a ameaça decorreu do fato de o agente ter negado mais pasta
de dente para o adolescente. Essa atitude foi entendida como incitação
dos adolescentes contra os agentes, levando Eugênio para um período de
oito dias de atendimento especial.
O jovem saiu da internação provisória em outubro de 2018 e sete
dias depois foi baleado durante uma abordagem policial. De acordo com
os registros do Boletim de Ocorrência, o policial afirma que o jovem
estava dirigindo um carro roubado e dirigia em direção ao policial que
atirou. O jovem recebeu atendimento médico e ficou em coma, tendo
mesmo assim sua internação determinada, ficando sob a custódia do Es-
tado durante os dias que separaram a ocorrência do óbito.
No registro do SIM, seu bairro de residência era a Restinga, e a
morte aconteceu no Centro de Porto Alegre, sem especificar a rua.
A mãe do jovem teve que levar sua certidão de óbito para a FASE
para que fosse efetivado o seu desligamento. Na certidão, consta que a
causa da morte foi “choque neurogênico, desorganização da massa ence-
fálica, traumatismo cranioencefálico, lesão provocada por disparo de arma
de fogo”. Além disso há a seguinte observação: “tipo de morte: violenta”.
Por fim, o último registro que temos dessa vida e dessa trajetória
por entre as políticas públicas é a observação final de sua certidão de
óbito: “Era estudante. Não deixou bens. Não deixou testamento co-
nhecido. Não deixou filhos”. As últimas palavras que temos registradas
sobre o jovem versam sobre o que não deixou. Mesmo assim, sua traje-
tória “deixa” importantes marcas sobre os percursos de vida juvenis nas
políticas públicas.

Bolívar

Bolívar nasceu em 1994 e o primeiro registro que temos de sua tra-


jetória nas políticas públicas analisadas é de 2000 quando, com 6 anos,
ele ingressa na Rede Municipal de Ensino. O jovem cursou todo o Ensi-

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no Fundamental na mesma escola, progredindo em todos os anos, apre-
sentando uma trajetória escolar linear, com um único registro de Plano
Pedagógico de Apoio Didático no 4º ano, o que sugere a necessidade de
recuperação de algum conteúdo.
Em 2009 ingressou para a Rede Estadual de Ensino, tendo repro-
vado no primeiro ano do Ensino Médio. Sua situação de matrícula na
Rede Estadual é de “cancelado” no ano de 2010 e “transferido” no ano de
2011, ambas com o registro do nível de primeiro ano do Ensino Médio.
O seu último registro na Rede Estadual de Ensino é ainda relativo ao pri-
meiro ano do Ensino Médio, em uma escola localizada a uma distância
de mais de 12 km do endereço registrado na documentação de Bolívar. É
bastante provável, nesse sentido, que o jovem tenha residido em diferen-
tes territórios durante sua vida.
Não temos muitas informações sobre o percurso deste jovem pe-
las políticas públicas. Sabemos, apenas, que no ano de 2012 (ano em
que completou a maioridade), houve uma abordagem pela equipe do
CREAS Leste, mas não há registros da motivação desse atendimento, ou
mesmo a data em que a abordagem ocorreu.
Para além dessas informações, tivemos apenas acesso às informa-
ções registradas no Sistema de Informações sobre Mortalidade que nos
permitem identificar que o jovem era declarado branco, civilmente sol-
teiro, contava com o nome do pai em seu registro, e que constava em seu
registro o endereço de residência no bairro Lomba do Pinheiro, em uma
rua bastante marcada pela precariedade de serviços urbanos.
Os dados relativos à sua morte registram lesão classificada como
“outros traumatismos intracranianos” causados por disparo de arma de
fogo ou outra arma não especificada em rua ou estrada. O endereço re-
gistrado como local de ocorrência do evento também é localizado no
bairro Lomba do Pinheiro, em uma estrada de chão, rodeada por mata
fechada, há cerca de 2,5 km do endereço residencial do jovem.
O óbito ocorreu em setembro de 2018, quando Bolívar possuía 24
anos. Não temos nenhuma informação que nos ajude a identificar o seu
percurso de vida nos seis anos que separam o episódio de abordagem pela
Assistência Social e o seu assassinato.

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Toríbio

Toríbio nasceu na Lomba do Pinheiro em 1999. Começou sua


vida escolar em 2007 em uma Escola Estadual no bairro Intercap. Não
concluiu o Ensino Fundamental. O jovem reprovou duas vezes seguidas
no 2º ano do Ensino Fundamental, quando estava com 8 e 9 anos, res-
pectivamente, sendo aprovado nessa etapa somente em 2010. Em 2013
iniciou o 5° ano e foi reprovado, e em 2014 migrou para a modalidade
de Educação de Jovens e Adultos (EJA), quando estava com 14 anos e
quatro anos de distorção idade-série. No ano seguinte localizam-se as úl-
timas informações de sua trajetória escolar, quando o jovem tem registro
de infrequência, migra para a EJA na Rede Municipal, mas acaba o ano
tendo a reprovação em seu registro.
É registrado como jovem branco, e não há registros de que te-
nha sido atendido pelo CRAS, abordagem ou PAEFI. Há informação
de atendimento pelo Conselho Tutelar em 2012 sem detalhamento de
motivos e encaminhamentos.
Em setembro de 2014, aos 15 anos de idade, é iniciado um pro-
cesso judicial pelo Ato Infracional de produção e tráfico ilícito de drogas
onde o adolescente foi ouvido em audiência e foi indeferido o pedido de
internação provisória. Toríbio teve seu processo suspenso, com a condi-
ção de remissão por meio do cumprimento de Medida Socioeducativa de
Liberdade Assistida por 6 meses e cumprimento de Prestação de Serviço
Comunitário – PSC por 20 semanas, cumprindo 4 horas semanais. Ainda,
foi determinada como medida protetiva matrícula em escola e frequência
escolar. A partir deste Ato Infracional Toríbio passou a ser atendido pelo
CREAS Lomba do Pinheiro no Serviço de proteção social a adolescentes
em cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto – PEMSE.
O jovem compareceu ao acolhimento no CREAS no dia seguinte à
audiência e acompanhado da mãe. Relatou que trabalha na construção civil
junto com seu pai e que àquela altura cursava a EJA no turno da noite.
Em seu Plano Individual de Atendimento (PIA) do PEMSE/
CREAS é referido que o jovem recebeu atendimento médico em uma
ESF/UBS, foi indicado que pretendiam motivá-lo a participar de cursos,
identificaram necessidade de fazer uma segunda via do RG, sua mãe foi

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orientada a acompanhar e dar retaguarda para os encaminhamentos da
medida do filho. Toríbio foi encaminhado para cumprir sua Liberdade
Assistida na sede do CREAS uma vez por semana, nas segundas-feiras
com atendimento individual e grupal, quinzenalmente supervisão da
Prestação de Serviço à Comunidade (PSC) e mensalmente acompanha-
mento familiar.
Para cumprir as 4 horas semanais de PSC, o jovem foi encami-
nhado para a instituição social vinculada à mantenedora religiosa, onde
atuaria aos domingos, auxiliando nas tarefas dos educadores sociais. Em
fevereiro de 2015 a pedagoga do CREAS assinou um relatório informan-
do que Toríbio concluiu a PSC atendendo os objetivos do seu PIA, bem
como participou das oficinas ofertadas pela instituição executora de sua
medida. Também menciona que o menino continua trabalhando com
o pai na construção civil e cursando a EJA. Referem que a mãe do ado-
lescente participou ativamente do processo de atendimento de Toríbio.
Neste relatório há um espaço para autoavaliação do adolescente
onde Toríbio escreveu com próprio punho; Não vou repeti mais, indi-
cando que pretendia romper com a prática delitiva. No espaço destinado
para o parecer do orientador de referência há a seguinte redação: “Cum-
priu sua PSC com autonomia e responsabilidade. Teve dificuldades em
algumas atividades devido à dificuldade em escrever. Respeitoso e presta-
tivo com colegas e equipe de instrutores”.
Em março de 2015 é emitida a Guia de desligamento de ado-
lescente de Programa de Execução de Medida em Meio Aberto, onde
consta encerrada a medida socioeducativa de cumprimento de PSC, mas
permanece em aberto a execução da Liberdade Assistida. Há também
um relatório de sua técnica de referência no CREAS informando que o
jovem não conseguiu concluir a Liberdade Assistida porque morava dis-
tante do CREAS, e não havia recebido as passagens. Em maio deste ano,
Toríbio tem sua medida extinta, estava com 15 anos.
Toríbio faleceu aos 19 anos de idade, por homicídio, por meio
de disparo de arma não especificado em rua ou estrada. Segundo dados
do SIM, o jovem residia na Lomba do Pinheiro e sua morte ocorreu em
bairro indefinido e localização ignorada. Assim, não temos dados sobre o
local ou maiores detalhes sobre a morte do jovem.

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Eduardo

Eduardo nasceu em 1999 e ingressou na Rede Municipal de En-


sino em 2006. Ainda em 2006, há um registro de atendimento no
Conselho Tutelar por infrequência escolar, ficando com registro de
Abandono Escolar já no primeiro ano do Ensino Fundamental. A in-
frequência foi um marcador constante em sua trajetória escolar, tendo
o jovem sido retido em diferentes momentos, devido ao número de
faltas. Em seus registros junto à Secretaria Municipal de Educação,
encontramos indicação para Laboratório de Aprendizagem. Em 2014,
o adolescente, então com 15 anos, migrou para a modalidade de Edu-
cação de Jovens e Adultos, quando apresentava cinco anos de distor-
ção idade-série. O ano seguinte, 2015, foi o último em que Eduardo
teve matrícula na Rede Municipal, ano em que entrou em situação de
Abandono Escolar.
De acordo com os registros do Sistema de Justiça Juvenil, há duas
representações do Ministério Público contra o jovem. A primeira com-
pila a realização de dois fatos, ao alegar que em outubro de 2015 o ado-
lescente, junto com seu irmão mais velho e outros três jovens maiores de
idade, participou de uma emboscada contra dois outros jovens na Lomba
do Pinheiro, baleados em frente a suas casas. Os dois jovens foram so-
corridos e conseguiram sobreviver. Além disso, de acordo com a primeira
representação do Ministério Público, Eduardo teria participado de mais
uma emboscada contra outro jovem, realizada nove dias mais tarde. Neste
segundo episódio, a vítima baleada foi encaminhada à UPA do bairro
Lomba do Pinheiro, onde faleceu.
De acordo com a segunda representação, em abril de 2016 Eduar-
do, juntamente com três jovens maiores de idade, participou de uma
terceira emboscada, em uma via pública do bairro Lomba do Pinheiro,
onde um jovem foi assassinado e outros dois ficaram gravemente feridos,
ambos devido a disparos de arma de fogo.
As duas representações, realizadas em fevereiro de 2017, reque-
rem a internação provisória do adolescente. O juizado emite, então,
um mandado de citação e notificação para audiência de apresentação
na justiça instantânea.

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Nos primeiros dias de março de 2017 é realizada a audiência de
apresentação, onde foi determinada a internação provisória do adoles-
cente. Treze dias depois é realizada uma nova audiência de apresentação,
relativa ao segundo processo. Segundo registros da audiência, o jovem
nega a sua participação no ocorrido e o juizado decide pela continui-
dade do processo. É agendada, então, audiência de instrução relativa ao
ato que gerou sua internação provisória. A audiência ocorreu no início
do mês de abril de 2017 e contou com o depoimento de uma testemu-
nha de defesa. Foi agendada, então, uma nova audiência com o intuito
de escutar uma das vítimas sobreviventes. Uma nova audiência ocorreu
em maio, sem o comparecimento da vítima, levando ao agendamento
de uma nova audiência na semana subsequente. A terceira audiência de
instrução é realizada e, mais uma vez, não há o comparecimento da ví-
tima intimada. À esta altura o prazo máximo para internação provisória
(45 dias) já havia sido ultrapassado, fato que levou a defesa a requerer a
revogação da Internação Provisória. O pedido foi negado pelo juizado,
que determinou a prorrogação da internação provisória. Uma quarta au-
diência foi realizada no último dia de maio e, devido ao não compareci-
mento da vítima, fica designada a realização de nova audiência. Contu-
do, levando em consideração que Eduardo não apresentava antecedentes
criminais e que a internação provisória já durava mais que o limite legal,
o juizado determinou a revogação da medida.
Importante salientar que nos registros de atendimento técnico do
adolescente durante o seu período de internação, Eduardo nega reitera-
damente o seu envolvimento nos fatos ocorridos e diz não saber o porquê
de eles terem sido atribuídos a ele. Segundo registros da sua Ficha de
Acolhimento, o jovem estava trabalhando com venda de roupas antes de
sua internação provisória.
O pai de Eduardo apresenta dificuldades de mobilidade, devido a
um tiro que levou na perna. Segundo o jovem, o tiro foi decorrente de
um assalto ocorrido anos antes. Há um registro de autorização para que
o pai do jovem possa ingressar na FASE de carro durante os dias de visita,
em razão das dificuldades de mobilidade.
Os registros de cartão de visitas da FASE dão indícios de uma
família bastante presente na vida do jovem já que, durante os 84 dias de

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internação provisória, Eduardo recebeu dez visitas da mãe, onze visitas
do pai e sete visitas da irmã mais velha.
De acordo com os dados de sua ficha de acolhimento, o jovem e
a família estavam morando no município de Quintão no momento de
sua apreensão. De acordo com o que o jovem disse em atendimentos
técnicos, essa mudança ocorreu devido à violência presente no território
da Lomba do Pinheiro.
Durante o período de internação provisória, Eduardo foi matri-
culado na Escola Estadual Senador Pasqualini (interna da unidade) na
modalidade de Educação de Jovens e Adultos, em etapa condizente com
o 5º ano do Ensino Fundamental, tendo avançado para o 6º ano. Esse é o
último registro de matrícula de Eduardo na Secretaria Estadual de Edu-
cação. Há, também, um registro no sistema em 2018 como “transferido”,
sem que existam indicações para onde foi realizada a transferência, ou se
é um registro decorrente de seu falecimento.
Durante a internação provisória, o jovem teve um registro de ocor-
rência disciplinar em março de 2017 por urinar na lixeira da sala de aula
durante o intervalo. Durante sua estadia na Fundação de Atendimento
Socioeducativo, teve investigação e tratamento endodôntico que, apa-
rentemente, era responsável por crises constantes de dor de cabeça. Nos
documentos de seu prontuário, encontramos sete registros de medicação
para cefaleia por parte da enfermagem. Em atendimento com Psicóloga
em abril de 2017 relata dificuldade em permanecer na escola porque
estava muito triste com a ausência da mãe.
Depois de seu desligamento da FASE, em maio de 2017, não en-
contramos novos registros do percurso do jovem por políticas públicas.
As próximas informações que temos do jovem são já de seu registro junto
ao Sistema de Informações à Mortalidade. De acordo com esses registros,
o seu óbito ocorreu em novembro de 2018, no Pronto Atendimento
da Lomba, sugerindo que o jovem teve atendimento médico depois de
ser baleado. Os registros de sua morte apontam para traumatismo não
especificado no tórax e como causa básica do óbito consta “Agressão por
meio de disparo de outra arma de fogo ou de arma não especificada em
local não especificado”. Também as circunstâncias do óbito são registra-
das como “não especificado”.

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Apesar da informação sobre a identificação racial de Eduardo va-
riar em alguns documentos, a maioria deles registra o jovem como bran-
co, incluindo seu registro de óbito.

Licurgo

Licurgo nasceu em agosto de 1991 e é identificado como preto em
todos os documentos acessados onde constava registro de identificação
racial. Ingressou em 2001, aos 9 anos na Rede Estadual de ensino, cur-
sando a 1º ano do Ensino Fundamental, já com três anos de distorção
idade/série. Em 2002 fora reprovado, cursando a 2ª série novamente em
2003 e fora reprovado por três anos consecutivos a 3ª série até 2006, ano
em que deixou a Rede de Ensino Estadual.
Em 2007, já com 15 anos de idade, ingressou na rede municipal
de ensino para cursar a EJA, Programa no qual configurou infrequência
e obteve registro de FICAI. Licurgo permaneceu na escola até sua evasão
em 2013. Na Rede Municipal de Ensino também estudaram oito irmãos
do jovem, incluindo sua irmã mais velha, registrada nos dados de Licur-
go como sua responsável.
Não há registros de atendimento no Conselho Tutelar, nos equipa-
mentos da Assistência Social ou no Sistema Socioeducativo.
Licurgo morreu aos 26 anos, segundo registro de seu óbito, deu-
-se por homicídio, por arma de fogo não especificada, em outros locais
especificados, no município de Viamão, próximo do bairro Lomba do
Pinheiro.

Ângelo

Ângelo é um jovem declarado como pardo em seu Registro Edu-


cacional, que nasceu em 1998. O jovem morava com a mãe e com um
irmão 7 anos mais novo e não há registro do nome do pai. O primeiro
registro do percurso do jovem pelas políticas públicas que tivemos acesso
é de seu ingresso na Rede Estadual de Ensino em 2005, momento em
que tinha 7 anos. A situação escolar do jovem ao final desse ano de 2005
foi de reprovação no 1º ano do Ensino Fundamental, obtendo aprovação

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no ano seguinte. Nos anos de 2007 e 2008, Ângelo foi aprovado, respec-
tivamente, no 2º e no 3º ano do Ensino Fundamental, também na Rede
Estadual De Ensino. No ano de 2009, não há registros de matrícula de
Ângelo na Rede Municipal ou na Rede Estadual de Ensino, o que sugere
a situação de Evasão Escolar.
Em 2010, Ângelo retorna para a Rede Estadual e, segundo os re-
gistros, reprova no 4º ano do Ensino Fundamental. Em 2011 há registro
de transferência da Rede de Ensino Estadual, mas não temos informação
de qual o destino da transferência. Em 2012, a situação do jovem é de
aprovação no 5º ano pela Rede Estadual de Ensino. No ano seguinte, o
jovem é reprovado no 6º ano e em 2014, novamente matriculado no 6º
ano, o jovem entra em situação de Abandono Escolar. Em 2015 cursou
o 6º ano na Rede Municipal de Ensino, quando entra em internação
provisória e é, portanto, transferido para escola interna da unidade na
modalidade de Educação de Jovens e Adultos.
De acordo com os registros do Sistema de Justiça Juvenil, há três
processos contra Ângelo. O primeiro, referente a uma acusação de tráfico
de drogas em fevereiro de 2014, julgado extinto em fevereiro de 2015.
O segundo é referente a uma ação contra a liberdade pessoal/indi-
vidual ocorrida em abril de 2014, decorrendo uma sentença de 6 meses
de Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade – PSC.
Segundo os registros da Assistência Social, o jovem iniciou o cumpri-
mento das medidas em maio de 2014, mas em outubro é registrado seu
descumprimento da medida.
Em maio de 2015 Ângelo é apreendido em flagrante em uma si-
tuação de roubo de carro com utilização de simulacro de arma de fogo.
O jovem é levado para o hospital, onde é atendido devido a ferimentos
no tórax, pernas e cabeça, chegando a levar pontos. Segundo relatos do
jovem, os ferimentos foram decorrentes de violência policial durante a
abordagem. Horas depois, Ângelo dá entrada no Centro de Internação
Provisória da Fundação de Atendimento Socioeducativo, depois da reali-
zação de oitiva inicial que contou com a presença da responsável.
A audiência de apresentação ocorreu dois dias depois, onde foi
mantida a internação provisória, designada defesa via Defensoria Pública
e marcada a audiência de instrução para dali 30 dias. Como na audiência

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de instrução, não compareceram a vítima ou membro da Brigada Militar,
o juizado acatou o pedido de desligamento apresentado pela defesa. O
jovem é desligado depois de 32 dias de internação provisória.
Mesmo depois do seu desligamento, a mãe segue em contato
com a equipe técnica da FASE porque a escola em que Ângelo estava
matriculado antes da internação alegou que a sua vaga já havia sido
preenchida durante esses dias e, por isso, não poderia aceitar o aluno
novamente. A equipe técnica entra em contato com o Conselho Tu-
telar, que informa que tentará a vaga judicialmente. Não temos mais
registros desse atendimento, mas sabemos que o jovem não voltou a ser
matriculado na Rede Municipal de Porto Alegre ou na Rede Estadual
do Rio Grande do Sul.
Ainda, há registros de uma nova medida socioeducativa de meio
aberto no ano de 2018, mas as únicas informações que conseguimos
acessar sobre o assunto foi de que Ângelo não compareceu ao acolhimen-
to e que o ato gerador da medida foi praticado juntamente com outro
jovem, por sua vez, assassinado logo depois. Tendo em vista que o óbito
de Ângelo ocorreu em março deste ano, é plausível pensar que o seu não
comparecimento ao acolhimento pode ser decorrente de seu falecimento.
Os dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade apontam
que o óbito ocorreu no Hospital Cristo Redentor, indicando que o jo-
vem teve assistência médica antes da morte. De acordo com os registros,
foi possível constatar “Hemorragia traumática secundária” e “Traumatis-
mo de órgão intra-abdominal não especificado”. A causa básica do óbito
foi considerada como “agressão por meio de disparo de outra arma de
fogo ou de arma não especificada – rua e estrada”.
Segundo dados do SIM, Ângelo residia no bairro Sarandi e morreu
aproximadamente 3 quilômetros de distância de onde residia.

Pedro

O jovem nasceu no ano 2000 e o primeiro registro que temos é


de seu ingresso na Rede Municipal de Ensino, em 2006, ainda na Educa-
ção Infantil. Pedro sempre estudou na mesma escola, não tendo nenhum
episódio de transferência escolar.

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Os registros apontam para uma trajetória escolar relativamente li-
near, mesmo com as dificuldades de aprendizagem que aparecem já nos
seus primeiros registros. A partir do 2º ano o jovem é aprovado, mas com
indicação de necessidade de auxílio para aprendizagem e a partir do 4º
ano frequenta Laboratório de Aprendizagem. Ao longo de sua trajetó-
ria, possui três episódios de reprovação: no 4º e 7º ano por questões de
aprendizagem e no 8º ano por faltas. A infrequência escolar ocorreu em
2016 e há registro de encaminhamento do jovem ao Conselho Tutelar
por este motivo. No ano seguinte Pedro chegou a se matricular, mas foi
dado como evadido em maio do mesmo ano e essa é a última informação
que temos de seus registros escolares.
Em dezembro de 2017 Pedro teve uma internação provisória de
um dia e, por meio de remissão, saiu com as medidas de cumprimento
de 6 meses de Liberdade Assistida, 24 semanas de Prestação de Serviços
à Comunidade – PSC, tratamento para drogadição5 e necessidade de efe-
tuar matrícula escolar.
O jovem chega a cumprir parcialmente as medidas de meio aberto.
Um dos registros de atendimento no CREAS é o agendamento do teste
de nivelamento do jovem para reingresso na escola, marcado para feverei-
ro de 2018. Nesse mesmo mês Pedro foi vítima de homicídio.
Segundo os registros do SIM, o jovem residia no bairro Sarandi,
não sabemos onde foi assassinado pois o registro do local de sua morte
está no hospital Cristo Redentor, para onde foi levado. A causa da morte
indica que Pedro foi morto por múltiplos tiros de arma de fogo, tendo
traumatismo craniano, no pulmão e coração.

Entre singularidades e similaridades: considerações possíveis


acerca dos percursos juvenis nas políticas públicas

Ao analisarmos as trajetórias reconstruídas desses jovens por entre


as políticas públicas conseguimos identificar, antes de tudo, a existên-
cia da singularidade dessas vidas. Por mais que nossa busca tenha sido
no sentido de identificar semelhanças que nos permitissem estabelecer
convergências sobre os percursos juvenis nessas políticas, sempre nos de-
5 Terminologia utilizada no respectivo documento.

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paramos com a multiplicidade e singularidade dessas trajetórias. Eviden-
temente, elas guardam semelhanças, mas também abrem espaço para as
particularidades e sutilezas dos inúmeros caminhos possíveis. Por mais
que os trajetos sejam parecidos, é possível identificar as individualidades
em cada passo dado por esses jovens, tornando suas trajetórias únicas.
Essa constatação é particularmente importante no sentido de con-
trapor discursos homogeneizantes que frequentemente são lançados so-
bre os jovens, como se todos os jovens vítimas de homicídio tivessem
uma trajetória similar, marcadas pelo mesmo contexto, pelas mesmas
violações de direitos e por escolhas semelhantes.
Contudo, é importante pontuar que alguns marcadores se mos-
traram regulares nas trajetórias da maioria dos jovens que compuseram
a amostra da pesquisa. Foram seis os principais marcadores identificados
nas trajetórias juvenis ao longo desta pesquisa. Três deles dizem respeito
à trajetória escolar: 1) A presença de trajetórias escolares não lineares
(com episódios de infrequência escolar, abandono, distorção idade-série)
na maioria dos percursos juvenis; 2) A passagem pela modalidade de
Educação de Jovens e Adultos (EJA); e, 3) Indícios de necessidade de
atendimento especializado no contexto educativo. Os outros três mar-
cadores dizem respeito a outros aspectos: 4) Passagem pelo Sistema So-
cioeducativo; 5) Ausência de registros de trabalho formal; e, por fim, 6)
Proximidade entre a residência e o local do homicídio.
A seguir, apresentaremos brevemente cada um desses marcadores,
não no sentido de estabelecer qualquer relação de causalidade ou mesmo
de correlação estática entre esses marcadores e a Mortalidade Juvenil e sim
no sentido de compreender quais aspectos do percurso juvenil nas políticas
públicas merecem destaque e demandam reflexões e aprofundamentos.
Não é à toa que três dos seis marcadores que mais se destacaram
nas trajetórias juvenis digam respeito aos seus percursos escolares: a insti-
tuição escolar é, provavelmente, a maior política pública que esses jovens
acessam. Maior em diferentes sentidos: é a mais abrangente, atingindo
basicamente a totalidade de crianças e adolescentes em ao menos algum
momento de suas vidas. Mas também no sentido da permanência dessa
política na vida desses jovens, já que a escolarização básica obrigatória
envolve ao menos doze anos de vínculo com esta política.

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A primeira das regularidades observadas diz respeito à presença re-
corrente de episódios de Reprovação, Infrequência e Abandono Escolar
em grande parte dos percursos escolares dos jovens analisados. Diferentes
autores que se dedicam a estudar a escolarização de estudantes oriundos
de classes populares utilizam diferentes conceitos para falar da presença
desses episódios no percurso escolar. Apesar das diferenças, esses conceitos
são, em essência, bastante similares e tem o propósito de questionar o uso
simplificado do conceito de insucesso escolar para designar esses elementos.
São exemplos desses usos os conceitos de trajetórias truncadas (CARRA-
NO ET AL., 2015); acidentadas (PEREGRINO, 2010); irregulares (BOF,
OLIVEIRA e BARROS, 2018) e não lineares (ZAGO, 2000).
Dos dezoito jovens que compuseram a amostra desta pesquisa, de-
zesseis deles tiveram ao menos um episódio de Abandono Escolar6 em
sua trajetória. Um deles chegou a um total de cinco episódios. Além
disso, quatorze dos dezoito jovens apresentaram indícios de Evasão Esco-
lar7, ao terem momentos em que não estavam matriculados nem na Rede
Estadual, nem na Rede Municipal de Ensino. Outro ponto que vale des-
taque nesse sentido é de que os episódios de Abandono Escolar não se
restringiam ao período da adolescência. Seis jovens tiveram episódios de
Abandono Escolar antes de completarem 10 anos de idade, sugerindo
que sua relação com a escola encontra dificuldades desde a infância.
Além dos episódios de Infrequência, a repetência é outro ponto
recorrente nas trajetórias escolares analisadas. Quinze dos dezoito jovens
tiveram episódios de Reprovação. Ao reconstituir as trajetórias escolares
desses jovens, nos chamou a atenção o quanto era frequente a Reprovação
já nos primeiros anos do Ensino Fundamental. Doze dos jovens tiveram
episódios de Reprovação antes da finalização do terceiro ano do Ensino
Fundamental, sugerindo uma trajetória escolar marcada por tensões desde
o início. A reprovação no início da trajetória escolar foi alvo de críticas por
parte de estudiosos na área da Educação, que defendiam a existência de

6 Utilizamos aqui o conceito de abandono escolar tal como proposto pelo INEP
(2014), se referindo ao estudante que está matriculado, mas que parou de frequentar a
escola naquele ano letivo.
7 Também segundo o INEP (2014), a evasão escolar diz respeito ao estudante que tendo
sido reprovado ou abandonado a escola no ano anterior, não se matricula no ano seguinte.

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uma forte correlação entre o que chamavam de pedagogia da repetência (RI-
BEIRO, 1991) e a Evasão Escolar. No âmbito dessa discussão, a Resolução
nº 7 de 14 de dezembro de 2010 do Conselho Nacional da Educação que
estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais, recomenda a não reprova-
ção nos dois primeiros anos do Ensino Fundamental.
Analisando as trajetórias escolares de cada um dos jovens ano após
ano, fica evidente que a questão central a ser trabalhada não diz respeito
apenas aos episódios de não linearidade dessas trajetórias e sim de como
a relação estabelecida entre eles e a Escola é complexa.
O segundo marcador que separamos relaciona-se também com es-
sas tentativas de compatibilização entre trajetória escolar e percurso de
vida juvenil, mesmo que em uma modalidade diferenciada: a inserção
dos jovens na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Qua-
torze dos dezoito jovens migraram para a EJA em algum momento de
suas vidas. A EJA é uma modalidade de educação criada com o intuito
de proporcionar a escolarização básica àqueles que não tiveram acesso a
ela durante a idade que seria “prevista” para esse fim. Diferentes autores
têm apontado para um processo de juvenilização da EJA e autores como
Pereira e Oliveira (2018) o apontam como uma consequência do proces-
so de expulsão dos jovens com defasagem idade-série do Ensino Regular
como uma estratégia utilizada pelos gestores para evitar as sanções pre-
vistas nas políticas de responsabilização às escolas que não alcançam as
metas de desempenho estabelecidas pelos sistemas de avaliação.
Os indícios que encontramos sugerem que esse processo de “em-
purrar” os jovens para a EJA pode ter ocorrido em algumas das trajetórias
analisadas. Um dos jovens, por exemplo, migrou para a EJA quando
tinha 12 anos e apenas um ano de distorção idade-série. Ao todo, quatro
jovens fizeram a migração para a EJA antes dos 15 anos, algo diferente
da previsão legal atual, que entende essa como idade mínima para a in-
serção nessa modalidade (BRASIL, 2021). É preciso, contudo, salientar
que essa migração para a EJA precisa ser analisada com cautela já que,
mesmo que ocorra de forma precoce em vários dos casos, pode se tratar
de um dos últimos recursos para tentar garantir a conclusão da escolari-
zação para os jovens que tiveram, desde o início, uma relação conturbada
com a escola.

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O último aspecto a ser apontado acerca das trajetórias escolares foi
a recorrência de ações relacionadas à necessidade de atendimentos edu-
cacionais especializados nas trajetórias desses jovens. Oito dos dezoito
jovens possuíam registro de atendimento especializado, como Labora-
tório de Aprendizagem (LA), Sala de Inclusão e Recursos (SIR), Classe
Especial (CE) e Planejamento de Atendimento Especial (PSAE). Esses
indícios apontam para alguma barreira à aprendizagem, como sucessivas
reprovações (que podem ser devido a múltiplos fatores) ou alguma difi-
culdade no aprendizado. Estes são elementos que podem contribuir para
uma trajetória irregular na escola, mas ao mesmo tempo, apontam para
o fato de que a instituição escolar buscou abordagens de atendimento
voltadas a tentativa de garantir a sua vinculação com o espaço escolar8.
Como as informações que temos nesse sentido são pontuais e escassas,
esboça-se a necessidade de realizar pesquisas mais aprofundadas sobre
essa temática voltado ao tema da Evasão/Exclusão Escolar.
É perceptível na trajetória dos jovens o quanto as intervenções
nas políticas públicas buscam incluí-los na escola novamente, seja pelo
Conselho Tutelar, seja por discussões com a Rede de Assistência, seja nas
Medidas Socioeducativas, seja em diferentes estratégias dentro da ins-
tituição escolar, como os laboratórios de aprendizagem, classe especial
ou a modalidade da EJA. Embora esses movimentos sejam perceptíveis,
não conseguimos saber qual a qualidade destas ações, do acolhimen-
to nos espaços e do trabalho realizado. O fato é que esse movimento
de vaivém nas trajetórias escolares juvenis demonstra a dualidade de
sua relação com a escola. Por mais difícil que aparente ser permanecer
na escola, em poucos casos a ruptura da trajetória escolar é definitiva,
apontando que existe, em alguma medida, desejo e expectativas rela-
cionadas à conclusão da escolarização. Ao mesmo tempo, as políticas

8 Monica Santos e Mylene Santiago ressaltam que existe uma relação complexa em
espaços especiais de intervenção pedagógica, como os Laboratórios de Aprendizagem
dentro das escolas. Estes espaços podem acabar se constituindo em um processo de
exclusão, caso a identificação dos estudantes com barreiras à aprendizagem produza
um efeito de rotulações e estereótipos, fato que nos coloca diante de um paradoxo,
pois a intenção inicial de oferecer oportunidades e apoio adicional à aprendizagem
desses estudantes, geralmente, se constitui em novas modalidades e sentidos de exclusão
(SANTOS e SANTIAGO, 2017).

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públicas apresentam mecanismos interessantes em conduzir crianças e
jovens a retomar a escola.
O quarto marcador aqui destacado no sentido das similaridades
das trajetórias juvenis pelas políticas públicas corrobora estudos como
o de Mauat da Silva (2016) que aponta uma associação entre a mortali-
dade juvenil e episódios de atendimento do sistema socioeducativo. Dez
dos dezoito jovens que compuseram a pesquisa possuíam registros de
atendimento socioeducativo. Todos eles haviam ingressado, ao menos
uma vez, no Centro de Internação Provisória da Fundação de Atendi-
mento Socioeducativo do Rio Grande Sul. Desses, apenas três chegaram
a cumprir medida socioeducativa de internação em regime de privação
de liberdade, sendo transferidos para outras unidades da FASE-RS. Além
disso, seis dos dez jovens com histórico de atendimento socioeducativo
também possuíam registro de atendimento no Programa de Execução de
Medidas Socioeducativas de Meio Aberto, sendo que apenas um deles
cumpriu na integralidade as medidas de Prestação de Serviços à Comu-
nidade e de Liberdade Assistida que havia recebido.
Ao acessarmos os prontuários de atendimentos dos jovens que fo-
ram localizados no arquivo da FASE-RS ficou evidente, em um primeiro
plano, o quanto a passagem pela privação de liberdade (mesmo que pro-
visória) produz registros sobre as trajetórias juvenis. No prontuário de
um interno de uma unidade de internação, encontrarmos os relatórios
policiais, os documentos produzidos nas audiências, com argumentação
da promotoria, da defesa e decisão do juiz, documentos com dados gerais
do jovem (como RG, CPF, nome, idade, cor/raça, escolaridade, território
etc.) e seu responsável (geralmente a mãe) produzidos no Judiciário, na
Delegacia e na Unidade Socioeducativa. Ali se encontra o histórico das
passagens do jovem pela Justiça e medidas socioeducativas, certidão de
nascimento, relatórios dos técnicos da unidade no âmbito da Pedagogia,
Assistência Social e Psicologia, questões de Saúde Física e Mental, além
de informações sobre suas atividades na unidade. Ou seja, a Socioedu-
cação concentra um grande volume de informações, inclusive, muito
maior que qualquer outra política pública. De certa forma esse fato de-
monstra o quanto, durante a Medida Socioeducativa, o poder se debruça
e produz sobre os jovens.

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Encontramos, nos prontuários desses jovens, inclusive informações
relativas às outras políticas públicas que compõem o escopo dessa pesquisa
e que não haviam sido encontradas em seus registros. Assim, descobri-
mos que alguns jovens haviam sido acolhidos institucionalmente ou então
cumprido medidas socioeducativas de meio aberto, sem que tivéssemos
conseguido localizar esses registros nas buscas pelas documentações do
Conselho Tutelar ou dos equipamentos da política de Assistência Social.
Esta disparidade entre os registros encontrados junto aos equipa-
mentos sociojurídicos e os das demais políticas pode sinalizar em um
rápido olhar que os jovens analisados acessaram FASE, Ministério Pú-
blico e Judiciário e pouco ou nada acessaram as demais políticas. Con-
tudo, não nos parece provável seja esta a evidência, posto que, além de
ser característico daquelas instituições processos burocratizados, pois em
debate criminalização e defesa, o que necessita registros, precisamos con-
siderar também processos de trabalho, e relações interinstitucionais, es-
pecialmente com instituições de poder, onde encontramos medidas judi-
ciais com determinações para cumprimento por trabalhadores das outras
instituições, como encaminhamentos de matrícula escolar, por exemplo.
Terão os equipamentos das políticas públicas cujos registros pro-
curamos acessar com menor sucesso uma cultura de maior oralidade em
detrimento de registros de atendimento por escrito? E mais, como opção
metodológica? Ou em virtude das relações de trabalho e institucionais?
Há possibilidade dentre as demandas atribuídas a cada trabalhador dos
equipamentos de cumprir as determinações e efetuar o registro dos aten-
dimentos? São questões que atravessam a dimensão do mundo do traba-
lho e nos parecem não poderem ser desconsideradas quando avaliamos a
incidência sobre a vida dos usuários das políticas, em nosso caso específi-
co, como reflexo a dificuldade, em razão de poucos registros localizados,
de maior conhecimento sobre o atendimento de jovens nas políticas mais
tarde vitimados pela violência urbana.
Outros pontos podem ser destacados na relação entre as trajetórias
juvenis e o atendimento socioeducativo. É curioso, por exemplo, que
tantos jovens da amostra tenham passado pela medida cautelar de in-
ternação provisória, que deveria ocorrer em caráter excepcional quando
há a necessidade de certificar a segurança pessoal do adolescente e/ou a

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manutenção da garantia da ordem pública. Essa recorrência pode suge-
rir o uso dessa ferramenta como tentativa de “ajustamento” da conduta
juvenil e, muitas vezes, conjuntamente com a extinção da internação,
há a decisão de reinserção escolar como medida protetiva. Os registros
demonstram, contudo, que poucas vezes esse retorno se efetivou, mesmo
quando aparentemente houve o interesse do jovem e da família. É o que
demonstra um dos registros apresentados, em que após o desligamento,
a família solicita ajuda da FASE-RS para conseguir garantir o acesso à
educação do adolescente.
A quinta similaridade de registros encontrada nas trajetórias é, na
realidade, uma ausência de registros. Poucas informações acerca de vín-
culos de trabalho foram encontradas na documentação que compôs o
campo empírico desta pesquisa. Nos registros do Sistema de Informa-
ções sobre Mortalidade, no campo destinado ao registro de “ocupação
habitual”, que se refere ao “tipo de trabalho que o falecido desenvolveu
na maior parte da vida produtiva” (BRASIL, 2011), apenas dois jovens
possuíam como registro alguma CBO que indicasse um histórico de vín-
culo de trabalho formal (um deles como operador de caixa e outro como
vendedor ambulante). Seis jovens possuíam como registro o código que
identifica a categoria “estudante” e sete o código que significa “ocupação
não identificada” e um deles possuía como registro o código identificado
como “desempregado crônico”. Em alguns registros de atendimentos téc-
nicos ligados à execução de medidas socioeducativas de meio aberto ou
fechado, foram encontradas informações sobre a realização de atividades
remuneradas não formalizadas, sugerindo que a trajetória de trabalho
desses jovens é, em grande medida, marcada pela informalidade.
O último aspecto relacionado às similaridades de registro diz res-
peito ao local de ocorrência do óbito. Nove dos dezoito jovens tiveram
como registro do local de ocorrência a via pública; quatro deles tiveram
o óbito registrado em hospital ou equipamento de saúde, indicando que
depois de baleado o jovem teve atendimento médico; um deles tinha
como local registrado o próprio domicílio, sugerindo a existência de uma
emboscada; e quatro deles tinham como local de registro “outros”, o que
dificulta a compreensão da circunstância da ocorrência. No caso dos jo-
vens que foram mortos em via pública, chama a atenção também a pro-

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ximidade entre o local de ocorrência e seus domicílios, sugerindo uma
complexa relação entre território e segurança.
Concluindo, é importante destacar que a análise dos registros
das políticas públicas nos permitiu compreender de uma forma um
pouco mais qualitativa quais os equipamentos os jovens que foram
vítimas de homicídio em Porto Alegre acessaram, permaneceram (ou
não) e, mais do que isso, como essa vinculação com as diferentes po-
líticas de atendimento se apresentou ao longo de sua trajetória. Com-
preender a relação entre essas trajetórias juvenis e as políticas públicas
pode contribuir para aprofundar o conhecimento acerca do fenômeno
da mortalidade juvenil.

202

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“Não tem recursos pra juventude”:
Precarização, Fragmentação e Ausência
de Políticas Públicas

Gisele Ribeiro Seimetz


Cristina BettioBragagnolo

Enfim, né, não tem recursos pra juventude, nem pro seu lazer,
nem pra sua formação de iniciação no mundo profissional, nem
espaços de escuta pra essa juventude, nem oportunidades, por
exemplo, pra eles desenvolverem as suas virtuosidades… Nós te-
mos vários jovens que são artistas por natureza, que gostam de
música, que gostam de grafite, que gostam do rap, né, que gostam
de música (Profissional 02).

O título escolhido para a realização do debate desenvolvido neste


capítulo foi extraído da fala descrita acima de um/a profissional parti-
cipante da pesquisa, quando faz um levantamento geral sobre a exis-
tência de políticas públicas para as juventudes1. Assim, sua conclusão é
certeira, pois “Não tem recursos pra juventude”: precarização, fragmenta-
ção e ausência de políticas públicas é a realidade vivenciada por jovens,
famílias e profissionais que atuam com essa população no âmbito da
pesquisa realizada.
Apesar dos avanços significativos no que tange à promulgação do
Estatuto da Juventude (Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013), que de-
fine jovem como a pessoa de 15 a 29 anos2 e que visibiliza esse segmento
social definindo seus direitos os colocando no rol das políticas públicas,
sabe-se, no entanto, que efetivamente poucas políticas foram desenvolvi-
das para o atendimento das demandas desses sujeitos.
1 “A realidade social demonstra, no entanto, que não existe somente um tipo de juven-
tude, mas grupos juvenis que constituem um conjunto heterogêneo, com diferentes
parcelas de oportunidades, dificuldades, facilidades e poder nas sociedades” (ESTEVES
e ABRAMOVAY, 2007, p. 21).
2 Muito mais que um critério etário, as juventudes quando analisadas por uma perspec-
tiva dialética são consideradas uma construção social (SCHERER, 2013).

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No primeiro item do presente capítulo, intitulado A descartabi-
lidade das vidas jovens em uma conjuntura de acumulação desenfreada e
retração estatal será debatido esse contexto geral de acumulação desen-
freada do capital e esse processo de descartabilidade – principalmente
das juventudes com recorte de raça/cor, gênero e classe social – diante
de um Estado mínimo para as e os trabalhadores e máximo para o
capital (NETTO, 1993). Em uma conjuntura de inúmeros retroces-
sos no que tange às conquistas históricas de direitos pela classe traba-
lhadora – diretamente associada à agudização do ideário neoliberal,
se faz muito presente a ausência de políticas públicas que atendam
as demandas de jovens, para além do que é positivo para o capital –
profissionalização e educação, bem como a fragmentação, focalização,
precarização e terceirização das políticas existentes. Os reflexos desse
contexto de desproteção social, diretamente associado à retração esta-
tal, vivenciado pelas juventudes brasileiras refletem nos altos índices
de mortalidade juvenil e na necessidade de uma valorização e investi-
mento dessas vidas jovens.
O segundo item, intitulado Eles “não investem no que realmente
precisa”: intersetorialidade como garantia de acesso à direitos?, aborda, a
partir das narrativas de jovens e profissionais entrevistadas/os, que a
mortalidade juvenil tem como uma de suas causas justamente a des-
proteção social a que eles3 estão expostos. A desproteção, em contexto
neoliberal, é marcada – não apenas, mas também – pelanão interseto-
rialidade das políticas públicas que acabam não garantindo a proteção
social dessas pessoas, justamente pela focalização própria da raciona-
lidade neoliberal. Por fim, nas considerações finais, retoma-se alguns
pontos debatidos ao longo do capítulo, principalmente no que se refere
à consolidação da perspectiva intersetorial das políticas públicas en-
quanto garantia da proteção social.

3 O presente texto se utiliza de linguagem não sexista, conforme “Manual para o uso
Não Sexista da Linguagem: o que bem se diz bem se entende” (2014), contudo, ao se
referir ao contexto de ausências de direitos, manter-se-á a linguagem no masculino,
uma vez que são os jovens do sexo masculino os sujeitos mais afetados pelo contexto de
mortalidade juvenil.

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A descartabilidade das vidas jovens em uma conjuntura
de acumulação desenfreada e retração estatal

[...] O sonho de vários na quebrada é abrir um boteco


Ser empresário não dá, estudar nem pensar
Tem que trampar ou ripar pros irmãos sustentar
Ser criminoso aqui é bem mais prático
Rápido, sádico, ou simplesmente esquema tático
Será instinto ou consciência
Viver entre o sonho e a merda da sobrevivência
(Racionais Mc’s, 2006)

As composições da banda de rap Racionais Mc’s, sempre elucidaram


muito bem a falta de acesso a direitos básicos e as dificuldades enfrentadas
pelos sujeitos que vivem nas periferias brasileiras. Sabe-se que para muitos
desses jovens de baixa renda a realidade é bastante cruel desde seu nasci-
mento devido às expressões da questão social que perpassam suas vidas
em um sistema de acumulação desenfreada que transforma as pessoas em
meros objetos descartáveis. A descartabilidade das vidas jovens, pobres e
periféricas reflete nos altos índices de mortalidade juvenil e no perfil desses
jovens que têm suas vidas interrompidas precocemente, bem como na va-
garosidade e/ou omissão do Estado diante dessas demandas.
Essa descartabilidade reflete em trajetórias de vida juvenis marcadas
por constantes violações de direitos e torna, para muitos, um horizonte
distante e até mesmo inalcançável o direito de sonhar e planejar um futuro,
considerando a necessidade de superação de tantos obstáculos no cotidia-
no apenas para manter seu direito à vida. Mesmo com as crescentes taxas
de Mortalidade Juvenil no Brasil, principalmente, no período de 2015 a
2019 o Estado seguiu negligenciando as demandas dos jovens,

[...] na escola falta oportunidade, uma escola de lata. No bairro


não tem futebol, não tem clube que você possa entrar ali, que você
queira seguir uma carreira, não tem um curso profissionalizante.
Não tem um teatro para as meninas que querem dançar, os meni-
nos que querem dançar um ballet, que querem um curso de atriz/
ator, então eu acho que isso é o principal e o crime tá em toda a
esquina – falta de políticas públicas. [...] Eu acho que isso é a prin-

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cipal, que nós temos que mudar a cabeça de todo mundo e falar
que a gente não pode mais ter uma escola de lata, a gente precisa
ter uma escola de ouro, principalmente nos bairros com população
mais pobre, em que os índices de educação são baixíssimos, enten-
de? Acho que isso é o principal ponto (EVERTON, 16 anos).

A fala do adolescente participante da pesquisa expressa a influência


do ideário neoliberal e a consequente retração estatal, bem como a ausência
e fragmentação de políticas públicas voltadas às necessidades sociais das pe-
riferias brasileiras. Segundo o jovem acima citado, a desigualdade social e a
consequente desigualdade de acessos vivenciadas por esses jovens favorece
à inserção na criminalidade e no tráfico de drogas, ou seja, a ausência de
um sistema de proteção social de qualidade afeta diretamente à vida das ju-
ventudes brasileiras que necessitam de políticas públicas qualificadas para o
atendimento de suas demandas, como, por exemplo, uma política de edu-
cação de qualidade, políticas de lazer, cultura e cursos profissionalizantes.
Dessa forma, a pobreza, a violência e as péssimas condições de acesso ao
trabalho são somente alguns exemplos do impacto do sociometabolismo
do capital na vida desses jovens (SCHERER e GERSHENSON, 2016).
Corroborando a essa ideia, o principal motivo elencado pelas/os
profissionais entrevistadas/os na pesquisa como uma das principais cau-
sas da Mortalidade Juvenil na atualidade é a inserção na criminalidade e
no tráfico de drogas. Essa inserção dos jovens, por sua vez, foi apontada
pelas/os profissionais como decorrentes, dentre outros motivos, da cen-
tralidade do dinheiro e da mercadoria na vida dos jovens, o que pode ser
justificado pela teoria de Marx (2013) sobre o fetichismo do dinheiro e
das mercadorias e o poder destes de enfeitiçarem os seres humanos que
vivem em um sistema capitalista de acumulação.
Além disso, foram citados também como motivos de inserção no
tráfico de drogas e do crime: a evasão escolar, a falta de recursos econô-
micos das famílias e uma consequente adultização e responsabilização
precoce desses adolescentes e jovens, o sentimento de pertencimento, a
resistência ao Estado e às negligências deste principalmente associado à
violência policial e a ausência e/ou fragmentação das políticas públicas.
Acima de todas as questões anteriormente citadas, no entanto, foi
unanimidade dentre as/os profissionais, que a Mortalidade Juvenil está

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diretamente associada à ausência e/ou fragmentação de políticas públicas
para as juventudes no Brasil. Segundo exposto pela/o profissional 5: “[...]
pra mim, que essa questão da mortalidade tem muito a ver com a ques-
tão do tráfico [...] e claro se a gente pensa mais a fundo tem a ver com a
desigualdade, tem a ver com acesso às políticas públicas que são as coisas
que levam o jovem ao envolvimento com o tráfico, né [...]”.
Nessa perspectiva, compreende-se que o sistema capitalista propi-
cia condições “para a materialização de todo e qualquer processo violen-
to (por mais pontual que pareça). Trata-se, então, de reconhecer, com
toda radicalidade, que as condições atuais de reprodução do capital [...]
desencadeiam e alimentam muitos processos sociais violentos” (SILVA,
2006, p. 36-37). A desigualdade social atenuada e a consequente falta
de recursos socioeconômicos por parte das famílias da classe trabalha-
dora constituem-se como alguns desses processos sociais violentos. Tal
situação é agravada quando a resposta do Estado para o enfrentamento
da questão social, em um contexto de ideário neoliberal vigente, se dá de
forma mínima e precarizada.
Para os defensores do Estado Mínimo, portanto, o mercado pos-
sui a capacidade de regular o capital e o trabalho, sendo as políticas
públicas consideradas as culpadas pelas crises cíclicas do capital e por
retirarem a liberdade e individualidade dos sujeitos, valores considera-
dos básicos para o capitalismo (AZEVEDO, 2014). É nesse contexto
de desproteção social que muitas das demandas urgentes das juventu-
des brasileiras, bem como de suas famílias seguem sendo considera-
velmente negligenciadas por parte do Estado, seja pela sua desrespon-
sabilização ou pela fragmentação e focalização das políticas públicas
existentes, tornando essas necessidades cada vez mais agravadas. Nessa
perspectiva, a atual lógica do sistema capitalista embasada no neolibe-
ralismo propõe,

[...] novas modalidades de reprodução da força de trabalho, an-


coradas nos processos de mercantilização, focalização e descen-
tralização das políticas sociais [...] É esta perspectiva que vem
determinando as tendências da Seguridade Social brasileira (saúde,
previdência e assistência social) no Brasil, que, em oposição à
universalização e à integração entre as três políticas da Seguridade

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Social, passa a ser centralizada em programas sociais focalizados e
seletivos, enquanto estratégia de combate à pobreza (DAVI; SER-
PA; SILVA; JUNIOR; SANTOS, 2010, p. 65).

Nesses processos de privatização, focalização e descentralização


das políticas sociais públicas, o Estado passa massivamente por cima das
lutas historicamente travadas pela classe trabalhadora para o acesso aos
seus direitos básicos. É nesse contexto também que a emergencialidade e
fragmentação dessas políticas oferecem à população usuária dos serviços,
serviços cada vez mais precarizados e cada vez menos voltados ao atendi-
mento integral dos sujeitos. Corroborando essa ideia Behring e Boschetti
(2008) irão denominar esse quadro das políticas sociais na conjuntura
atual como o “trinômio” do ideário neoliberal, constituído pela privati-
zação, descentralização e focalização.
É nesse cenário de retrocessos e de atuação mínima do Estado
para com a questão social que o “terceiro setor” acaba assumindo as res-
ponsabilidades sociais, principalmente, como temos visto na atualidade,
instituições com vínculos religiosos e/ou com objetivos mercadológicos
provocando, assim, retrocessos significativos que nos remetem aos pri-
mórdios das políticas sociais quando estas eram de domínio das Igrejas e
com um caráter caritativo, provocando, assim, uma remercantilização e
a refilantronpização da questão social (MONTAÑO, 2002). Conforme
exposto pelas/os profissionais 4 e 5,

O retorno ao entendimento da caridade, da benemerência, isso


se traduz muito no retorno… não no retorno… na ruptura que
nós tivemos quando nós estávamos no processo de expansão da
política, dos equipamentos [...] Tem que ter uma mudança de
paradigma, de conceito das relações sociais… E do papel, prin-
cipalmente, do papel do Estado na regulação das relações, o pa-
pel das políticas públicas no sentido de atender a todos, todos
os cidadãos... Não essa visão restritiva que hoje está permeando
todos os poderes enfim (PROFISSIONAL 4).

Eu acho que as dificuldades atuais tem a ver com contexto,


assim, das políticas públicas em geral né [...] os cortes de recur-
sos, de orçamento, o enxugamento das outras políticas públicas

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setoriais também né [...] acho que isso então são as limitações
impostas né, pelas restrições governamentais, a precarização
dos serviços públicos, isso também vai gerando uma série de
insatisfações profissionais, vai gerando uma desmotivação [...]
(PROFISSIONAL 5).

As/os profissionais 4 e 5 expressam, dessa forma, os impactos des-


sas privatizações e terceirizações e os retrocessos atrelados aelas no coti-
diano do trabalho profissional. Além da retração estatal, destacam tam-
bém a precarização das políticas sociais de caráter público gerando uma
focalização dos atendimentos que vai na contramão da universalização,
cortes orçamentários, a setorialização das políticas e refletem, assim, o
adoecimento da categoria profissional relacionado a essas condições de
trabalho que lhes são oferecidas.
É nesse contexto de descompasso, agudização da questão social
e desproteção social que as juventudes com recorte de raça/cor e classe
social tem necessitado de inúmeras respostas para suas demandas e para
o atendimento de seus direitos básicos. Porém, o Estado neoliberal ao
se omitir diante dessas necessidades e de suas responsabilidades reforça
a descartabilidade dessas vidas jovens para o sistema,

O contexto atual, na análise da (in)segurança para as juventu-


des, evidencia a necessidade de proteção para este segmento so-
cial, uma vez que tal contexto é marcado pela ampliação das
diversas manifestações da (in)segurança, com reflexos cada vez
mais visíveis da dinâmica do capital, que produz a luta de classes
em favor da ampliação do lucro em detrimento da vida humana
(SCHERER, 2017, p. 146).

As consequências dessa retração estatal na vida das juventudes bra-


sileiras refletem nas condições – ou ausência destas – de vida proporcio-
nadas para esses jovens dificultando, inclusive, com que esses jovens con-
sigam ter uma projeção de futuro, visto que o acesso ao lazer, à cultura,
ao esporte, à profissionalização, a atendimentos de saúde e educação de
qualidade e ao mundo do trabalho formal constitui-se, muitas vezes, um
universo bastante distante, podendo, dessa maneira, levar à falta de pers-
pectivas e possivelmente à inserção em outras formas de sistemas, que às

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vezes se mostram mais protetivos que o Estado para as juventudes como
a criminalidade e o tráfico de drogas

[...] e quais são todos os processos de violação de direito que essa


vida passa antes dela morrer? [...] Então a violência também se
dá por esse lado. Pela falta de política pública, pela pobreza, pelo
racismo, e pelas outras formas. O próprio não acesso a um aten-
dimento de saúde mental, a falta de acessibilidade, [...].Então, eu
acho que estas questões estão interligadas na própria questão da
mortalidade juvenil. A falta de política pública voltada à juventu-
de, a falta de estrutura, a organização do território e o olhar do
estado sob o território [...] (PROFISSIONAL 3).

A ideia expressa pelos autores e pela/o profissional 3 corrobora o


exposto pelas/os profissionais 1 e 4:

Penso que está aquém [...] eu acho que a gente precisa reforçar a
necessidade de construção de políticas públicas… um olhar mais
acurado nesse sentido. Porque não adianta a gente lembrar que
mais um faleceu… a gente tem que criar estratégia para que não
aconteça um novo. É isso que eu penso (PROFISSIONAL 1).

[...] no campo da juventude eu acho que nós devemos muito, nós


temos muito pouco. E não só na assistência, nas políticas públi-
cas. Muito pouco a oferecer… O que nós temos para fornecer de
política pública na área da cultura, do esporte… o que nós temos?
É quase nada (PROFISSIONAL 4).

É diante desse cenário que inúmeros jovens brasileiros se encon-


tram sem acesso a direitos básicos, sem espaços para escuta, convivência,
profissionalização, desenvolvimento de potencialidades, dentre outros
aspectos que vêm a favorecer e facilitar a morte precoce desses sujeitos.
Ainda, a falta de compreensão e interesse pelas reais demandas dos jo-
vens ocasionam em políticas, mesmo que escassas, diretamente voltadas
à educação e ao trabalho, sendo uma das poucas alternativas oferecidas
para esses jovens uma promessa civilizatória perversa, na qual, a educação
e a profissionalização seriam as responsáveis por salvar essas juventudes
pobres (SCHERER e GERSHENSON, 2016). Isso, por sua vez, tam-

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bém representa uma forma de controle das juventudes pobres, visto que,
dissemina uma noção de “controle a ‘futuros criminosos’ por meio da
educação e do trabalho, na tentativa de inserir este jovem no precário
mundo do trabalho e educá-lo, consentânea com uma visão romântica
de desenvolvimento” (SCHERER e GERSHENSON, 2016, p. 166).
A ideia de que a maior parte das políticas desenvolvidas para as
juventudes possuem esse caráter se comprova pelas falas expostas pelas/
os profissionais ao citarem programas e políticas desenvolvidos para as
juventudes nos últimos anos, sendo estes, o PROJOVEM, Jovem Apren-
diz, as medidas socioeducativas e os Centros de Juventude, tendo, boa
parte destes, um viés bastante voltado à profissionalização. Além disso,
algumas dessas iniciativas foram citadas como tendo sofrido uma grande
precarização e fragmentação, além de possuírem importantes condicio-
nalidades de acesso que os torna, muitas vezes, programas mais excluden-
tes do que inclusivos, como o PROJOVEM e o Jovem Aprendiz.
A associação dessas políticas às medidas socioeducativas, por sua
vez, reflete um estigma socialmente disseminado das juventudes associa-
da à criminalidade e/ou à rebeldia. Os Centros de Juventude foram mui-
to evidenciados como importantes espaços para convivência, desenvol-
vimento e profissionalização de jovens, no entanto, também apresentam
suas contradições. Primeiramente por estarem associados à Secretaria de
Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo reforçando, assim, esse estigma
social de criminalização das juventudes, principalmente pobres, e pelo
viés de profissionalização e educação que apresentam, de modo que são
inseridos em bairros com altos índices de criminalidade e vulnerabilidade
reforçando essa ideia de controle da pobreza.
É nessa conjuntura de desmontes públicos que entram em cena
outros atores responsáveis pelo enfrentamento de algumas frações da
questão social, como o terceiro setor. Dissemina-se, portanto, a ideia do
privado em detrimento do público e representa uma articulação/transfe-
rência de responsabilidades entre Estado e sociedade civil, o que, por sua
vez, resultou em “uma alteração na articulação entre Estado e socieda-
de no processo de proteção social, concorrendo para o rebaixamento da
qualidade de vida e de cidadania de consideráveis parcelas da população
do planeta” (PEREIRA, 2008, p. 159).

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Essa disseminação de privatizações e a crescente atuação do tercei-
ro setor no campo das políticas sociais tem como marco legal a aprovação
da Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999, a qual dispõe sobre a quali-
ficação de pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, como
as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIPs, bem
como, institui e disciplina o Termo de Parceria (BRASIL, 1999). Atual-
mente, tal situação sofre um agravamento após a aprovação da Emenda
Constitucional 95 (BRASIL, 2016) que congela os investimentos em
políticas sociais por 20 anos.
É nesse contexto de congelamento de recursos para as áreas sociais
que a precarização das políticas públicas em nível nacional também refle-
te no nível local. Os inúmeros desmontes das diversas políticas públicas
setoriais em Porto Alegre é elencado pela/o profissional 4 e pela/o jovem
participante da pesquisa,

Então tem toda uma história, toda uma luta, toda uma trajetória
para implantar essa política que hoje eu vejo como uma políti-
ca bem fragilizada no município de Porto Alegre. Nós tivemos
muitas interferências de gestão que não […] vamos dizer assim
[…] que é uma questão nacional, estadual, municipal, um nive-
lamento dos três níveis e vem trazendo, é […] desconstituindo
todo o entendimento que nós lutamos para constituir essa polí-
tica (PROFISSIONAL 4).

O que eu acho que falta aqui? Eu acho que falta mais CRAS,
entendeu? Mais postos, entendeu? Eu acho que é isso que falta.
Porque o atendimento eu não acho ruim, entendeu? Porque tem
muita gente no CRAS […]. Assistente Social, né […]. Que eles
mostram ser […]. Ter empatia, na verdade, com as pessoas que
[…].Se importar com as pessoas, se colocar no lugar delas, en-
tendeu? Só que eu acho que falta mais CRAS. Porque a Lomba
é enorme e tem um CRAS só. Um CRAS só. Entendeu? Então
não tem como. Entendeu? Igual na Restinga. Na Restinga eu sei
que tem um CRAS lá também só. E a Restinga também não é
pequena. Aí, muita gente querendo ajuda pra um espaço só […]
não dá. Entendeu? Não tem como (WAKANDA, 20 anos).

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Dessa maneira, a ausência e fragmentação de políticas públicas
têm impactado de forma valiosa a vida de jovens e famílias brasileiras
que, diante desse contexto de crise estrutural do capital e desproteção
social crescente, enfrentam inúmeras dificuldades no cotidiano, seja pela
falta de acesso à direitos básicos ou pela ausência de políticas públicas
que atendam as demandas desse segmento social. A omissão do Estado
diante das demandas das juventudes brasileiras, por sua vez, reflete a au-
sência de neutralidade do Estado neoliberal e torna-o cúmplice das mor-
tes de jovens que poderiam ter sido evitadas com maiores investimentos
em políticas sociais públicas que atendam às suas diversas necessidades de
maneira qualificada e integralizada, superando, inclusive, a crescente se-
torialização das políticas sociais e a refração das necessidades dos sujeitos
atreladas à precarização e falta de investimentos nessas políticas.
Mesmo sendo realizados os avanços necessários no âmbito da cria-
ção de novas políticas públicas para as juventudes, bem como a superação
da fragmentação e da setorialização das políticas existentes serem deman-
das urgentes para a gestão das políticas públicas no Brasil visando, dentre
outras coisas, a prevenção de inúmeras mortes precoces, sabe-se que no
capitalismo a igualdade é um universo inalcançável. Nesse contexto de
violências atreladas à exploração do sistema capitalista cabe utilizar-se
de espaços de discussão como a academia e/ou espaços de trabalho para
problematizar com as juventudes brasileiras os direitos que lhes deveriam
ser garantidos pela gestão pública e, com isso, estimular ao protagonismo
juvenil e seus inúmeros movimentos de resistências.

Eles “não investem no que realmente precisa”:


intersetorialidade como garantia de acesso à direitos?

Quando se trata de uma discussão que envolve o contexto estrutu-


ral de retração de direitos no capitalismo neoliberal é possível equivocar-
-se de que este contexto não é presente no miúdo do cotidiano, ou seja,
a ideia de que o cenário macroeconômico não influencia diretamente
a vida das pessoas, por exemplo, a partir de decisões políticas, acordos
internacionais, cortes orçamentários, entre outros. No entanto, confor-
me analisado, a partir das falas das pessoas entrevistadas, percebe-se o

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impacto direto na vida de sujeitos jovens que é, na verdade, intenso e
alarmante, sendo possível essa observação através da realidade concreta
das juventudes, a qual é imbricada pelo processo de ausência de direitos,
sendo que sua máxima se revela num cenário de Mortalidade Juvenil,
cujos elementos serão abordados neste item.
Para a jovem Lua (14 anos) “Eles [gestão pública] investem em coisas
que não são tão... coisas mais banais e não investem no que realmente preci-
sa. Eu vejo muitas escolas, assim... decaídas. Tem outras fechadas, tem outras
que não concluíram obra”. Ou seja, é nas decisões políticas que está parte
do problema, a decisão a respeito dos investimentos, de prioridades e do
desmantelamento das políticas públicas. Isso reflete, assim como apon-
tou Lua, diretamente na Política de Educação que, mesmo quando há
investimentos, acaba ocorrendo em uma lógica neoliberal, focalizando
as ações do Estado e responsabilizando as pessoas individualmente de
garantirem seus direitos pela via do mercado e da inserção no mundo
do trabalho, o que afeta inclusive a articulação entre as demais políticas.
No que diz respeito à precarização das políticas públicas de ma-
neira geral, observa-se que a totalidade de profissionais que participaram
da pesquisa elencam que houve um retrocesso de direitos sociais, bem
como abordam a partir de cada política pública que representam a falta
de materialidade intersetorial, apontando para o fato de que cada polí-
tica isolada não se basta em si mesma. A/o Profissional 7, por exemplo,
aponta que “falar em baixo IDEB, que é o Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica, falar que ele é baixo sem olhar de perto, com uma lente de
aumento, pra ver o que conteúdo, que contexto é esse né, o que que traz, faz
isso acontecer”. Compreende-se a partir da fala da/o profissional que as
métricas utilizadas pelos gestores das políticas públicas não apresentam
uma leitura mais abrangente do contexto social de cada sujeito atendido
por aquela política, sendo limitada para compreensão da realidade.
Assim, quando a/o Profissional 7 fala que as métricas não estão
olhando de perto para essa realidade, com uma lente de aumento, perce-
be-se a necessidade de aprimorar a intersetorialidade entre as políticas de
modo a possibilitar a sua compreensão, desde os parâmetros da gestão e
planejamento até sua materialidade no cotidiano. Nesse sentido:

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Para que a intersetorialidade ocorra, é necessário que os setores
dialoguem entre si, se conheçam e construam forma(s) de traba-
lhar conjuntamente. [...] O objetivo da articulação intersetorial é
proporcionar a melhoria das condições de vida das famílias, pos-
sibilitando o acesso a serviços, especialmente para os que se en-
contram em situação de maior vulnerabilidade social. Deve favo-
recer a troca de experiências e a busca de apoio e de soluções para
problemas comuns, de maneira a constituir uma rede de proteção
social (BRASIL, 2009, p.26).

Na mesma direção, a categoria central que emergiu a partir das


entrevistas realizadas com profissionais se refere ao contexto interseto-
rial entre as políticas públicas, onde possa ocorrer na concreticidade um
diálogo entre esses diferentes atores que transcende a relação de atuação
em rede, também fundamental, mas permitindo que as políticas possam
ser pensadas, financiadas e geridas de maneira mais próxima. Além disso,
é possível analisar a partir da entrevista com a/o Profissional 7, que se
desenvolveu um contexto em que a Educação ficou restrita à Política de
Educação, a Saúde ficou restrita à Política de Saúde e assim sucessiva-
mente. Ou seja, as políticas públicas estão sendo geridas e executadas em
uma perspectiva focalista, mesmo não se bastando em si mesmas.
Considerando-se o contexto de fragmentação das políticas públicas
é possível afirmar que ocorre a cisão de direitos, não apenas do panorama
da população atendida, como também das e dos trabalhadores que estão à
frente destas políticas. A/o Profissional 1, ao se referir à situação da Política
de Assistência Social na atualidade, afirma que “por mais que a gente tenha
técnicos muito qualificados nos CRAS e nos CREAS, mas não existe um interesse
do poder público de dar condições de trabalho para que esses profissionais possam
desenvolver com muito mais precisão seu trabalho”. Para outra/o profissional
existe o entendimento de que “hoje a rede já existe, o que é frágil são as polí-
ticas”: por falta de recursos humanos, investimentos, a precarização das políticas
se identifica ano a ano e na pandemia não foi diferente (PROFISSIONAL 7).
As falas supracitadas, portanto, identificam a desproteção social
vivenciada pelas/os jovens, famílias e profissionais que atuam nessa rea-
lidade, ou seja, ocorre pela não materialização das políticas em si e da
intersetorialidade. Boschetti (2012, p. 756) afirma que

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um sistema de proteção social não é somente a justaposição de
programas e políticas sociais, nem tampouco se restringe a uma
política social, o que significa dizer que as políticas sociais não
constituem, em si mesmas, um sistema de proteção social. O
que o configura é o conjunto organizado, coerente, sistemático e
planejado de políticas sociais que garantem a proteção social por
meio de amplos direitos, bens e serviços sociais, nas áreas de em-
prego, saúde, previdência, habitação, assistência, educação [...].

Considerando o que Boschetti (2012) afirma, concebe-se que atual-


mente a ideia de proteção social não está sendo alcançada. Pelo contrário,
a desproteção social afeta essas pessoas de inúmeras formas, inclusive pela
própria maneira que vem sendo gerida e executada, ancorada na racionali-
dade neoliberal. Dentre as formas que essas pessoas são afetadas, as deman-
das de Saúde Mental destacaram-se nas falas de todas/os profissionais en-
trevistadas/os, tanto do ponto de vista da Saúde Mental de trabalhadoras/
es das políticas, quanto do ponto de vista da população atendida.

Mas tu vês a questão da saúde mental, que é algo que a gente não
tem como negar. Que é um processo muitas vezes muito violento,
de várias famílias com situações de saúde mental e é uma dificul-
dade dar encaminhamento, nós não temos um CAPS infantil [...].
Mas, decorrente dos determinantes sociais de saúde e das vulnera-
bilidades, nós vamos ter vários adolescentes e várias famílias que
fazem uso abusivo de substância psicoativa. Outras questões rela-
cionadas simplesmente à saúde mental [...]. Não se consegue ter
muitos encaminhamentos pra esses casos. Isso é uma questão bem
violenta (PROFISSIONAL 3).

A fala da/o Profissional 3 revela suas complexidades, pois trata de


temas fundamentais, desde as diferentes ramificações a respeito dos fa-
tores que levam às demandas de Saúde Mental na atualidade até o pano-
rama das possibilidades de se trabalhar com essa temática. Outra/o pro-
fissional vai tratar da questão da demanda em relação ao acesso a serviços
de Saúde Mental: “a gente percebe é a questão do acesso da saúde mental, de
encaminhar a situação e o atendimento psicológico… isso demora muitas ve-
zes. Então, isso é muito sério. Principalmente porque… uma demanda mui-
to dolorosa para nós que é a questão do abuso sexual” (PROFISSIONAL 1).

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A saúde da classe trabalhadora, nesse sentido, precisa ser entendida
para além da ausência de doenças, ou das diferentes violências que sofre.
É necessário destacar que o direito à saúde deve englobar a compreensão
sobre os Determinantes Sociais em Saúde:

Em seu sentido mais abrangente, a saúde é resultante das condi-


ções de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambien-
te, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse
da terra e acesso a serviços de saúde. É, assim, antes de tudo, o
resultado das formas de organização social da produção, as quais
podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida (BRASIL,
1986, p. 12).

Nesse sentido, pode-se analisar a partir das falas das/os profissio-


nais 1 e 3 supracitadas/os, que as demandas que chegam aos serviços,
como o uso de substâncias psicoativas e abuso sexual em relação à Saú-
de Mental, somam-se pelo contexto de retração de acesso aos demais
direitos. Portanto, a partir da leitura que os Determinantes Sociais em
Saúde, impacta na Saúde Mental da população, transcende a ordem es-
tritamente psicológica de modo que, é possível identificar um cenário de
múltiplas necessidades, que vão se modificando ao longo dos anos, sendo
evidenciado ainda mais em contexto neoliberal, bem como de acordo
com cada realidade, em um sentido territorial, cultural, geracional, entre
outros. Para Pereira (2006, p. 70):

Embora seja difícil precisar o que sejam necessidades humanas,


existem contribuições teóricas não convencionais, tributárias da
tradição marxista, que nos ajudam a identificá-las no marco das
relações sociais e, portanto, como algo que não existe a priori, mas
determinado por formas concretas de vida em sociedade [...]. Tal
entendimento é fundamental para estabelecer a diferença entre a
mera carência material e necessidades sociais como um conceito
complexo, avesso a naturalizações e fatalismos.

Este contexto de insuficiências se amplifica à medida que seobser-


va nas falas de profissionais que muitas vezes as políticas que existem e
são consideradas para esse segmento social referem-se, na verdade, para o

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segmento de adolescentes e/ou jovens adolescentes, considerando-se a am-
pliação de direitos nessa faixa etária anterior aos 18 anos, no contraponto
da maioridade civil, onde se identifica uma lacuna significativa. Para o
Estatuto da Juventude, são jovens no Brasil quem tem entre 15 e 29 anos,
de modo que sujeitos entre 15 e 17 anos são amparados também pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente, sem prejuízos de direitos. Soma-se
a isso a construção social em torno desse debate, “durante muito tempo,
o termo juventude manteve-se associado ao período da adolescência ou foi
tomado como algo indistinto da infância. [...]. Os jovens maiores de 18
anos ficaram fora do alcance das ações e dos debates sobre direitos e cida-
dania trazidos pelo ECA” (SILVA e ANDRADE, 2009, p. 48).
Nesse sentido, compreende-se a violação da juventude de jovens
a partir dos 18 anos inclusive nas legislações que não os contemplam.
Assim, há uma supressão do processo de “ser jovem”, porque na faixa
etária dos 18 anos a sobrecarga de responsabilidades se intensifica e
retira essa possibilidade, ou seja, as/os jovens, principalmente aquelas/
os mais empobrecidas/os, têm sido responsabilizadas/os cada vez mais
cedo, vivenciando uma adultização que roubam e violam sua juven-
tude. Isso ocorre devido às ações do Estado voltadas a esse segmento,
limitadas a relação Trabalho/Renda X Educação, visando torná-las/os
produtivos ao capital. Essa é outra característica pontuada por algu-
mas/alguns profissionais, ao afirmarem que ocorre “a falta de política
pública dentro do território voltada à juventude, [...] e voltada à juventu-
de no sentido de que possa trabalhar questões da juventude. Não só merca-
do de trabalho, mas que possa dialogar, enfim, possibilidades [...] que possa
dialogar com essa juventude” (PROFISSIONAL 3). Pois:

A atual configuração das políticas públicas para as juventudes se


concentra na “administração e controle” da juventude pobre, por
meio de políticas que se centram na educação e no trabalho, na
perspectiva da capacitação juvenil para atividades laborais. A in-
serção no mercado de trabalho, quando se torna possível, é ge-
ralmente por meio de contratos flexíveis, trabalhos precarizados,
com baixas remunerações, que acarretam uma inserção produtiva
precária (SCHERER, 2017, p. 197).

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A partir dessa configuração de controle é possível retornar a frase
dita pela jovem Lua, uma vez que a gestão não investe no que a juventude
demanda, mas sim em leis como a EC 95 de 2016 (BRASIL, 2016), já
abordada anteriormente. Tais elementos se agravaram no contexto de
pandemia, sendo possível identificar o aprofundamento dessas desigual-
dades, quando, por exemplo, é pautado o isolamento social para as es-
colas públicas, principalmente aquelas situadas nas regiões periféricas.
Ademais, com o agravamento dessas desigualdades a mão de obra jovem
precisa apresentar ainda mais retornos, desde cuidados domésticos até a
combinação com o trabalho externo.

Nesse contexto, a oferta de trabalho para a população mais jovem


tende a ser marcada por vínculos curtos, elevada rotatividade, em
ocupações que exigem pouca qualificação, com identidades profis-
sionais pouco definidas e valorizadas e crescente alocação no setor
de serviços. Os altos índices de desemprego, os desafios para a con-
quista do primeiro emprego, a oferta predominante de trabalhos
pouco qualificados e repetitivos são alguns dos desafios enfrenta-
dos pelos jovens no mundo do trabalho (DAYRELL, 2016, p. 8).

Diante disso, outras questões vão sendo identificadas. Muitas vezes


a dificuldade de inserção laboral, a precarização e a fragilização das políti-
cas existentes podem levar também a uma situação de rualização, fazendo
com que muitas/os jovens se encontrem em uma condição de pobreza
extrema e de significativa violação de direitos. Algumas expressões dessa
realidade são quando as/os jovens evadem das escolas para contribuírem
com a renda da família, vendendo produtos em sinaleiras, portas de su-
permercados e semelhantes, tendo que assumir, concomitantemente, as
responsabilidades pelo cuidado de suas e seus irmãos mais novos, sendo
esta uma das cenas que mais cresceram no município de Porto Alegre.
Dito isso, é necessário problematizar a questão da obrigatoriedade
da Frequência Escolar que explicita contradições das políticas públicas (que
assumem caráter controlador). Isso porque tal obrigatoriedade assume uma
funcionalidade de impor o acesso à educação como condição às famílias
empobrecidas para acesso a outras políticas, sendo algumas vezes mais forte
do que o entendimento da educação como direito dessas famílias, acarre-

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tando na violação dos demais direitos, uma vez que se tal obrigatoriedade
não for cumprida, os demais direitos não serão acessados, principalmente
aqueles vinculados à políticas com viés de transferência de renda.
Além disso, não necessariamente as/os jovens e suas famílias têm
condições objetivas prévias para garantir sua permanência na escola,
acarretando a infrequência escolar, como, por exemplo, a não garantia ao
transporte, à alimentação, à habitação, vestuário, dentre outros. Assim,
o contexto de não articulação entre as políticas públicas, para além da
perspectiva do controle a partir da imposição de condições para o acesso
da população empobrecida a tais políticas, irá afetar a vida da população.
A/o Profissional 2 aponta que

o investimento maior se dá justamente na questão de fortalecimen-


to do processo de vínculo dessas famílias, nas questões de subjeti-
vação, de pertencimento, do acesso das famílias à rede de serviços,
bem como da aproximação, principalmente, das crianças que vêm
de famílias fragilizadas pelo contexto [ao qual estão inseridas], as
quais acabam saindo do seio familiar e indo, muitas vezes, tendo
que trabalhar durante a infância, muitas vezes ficam à mercê dos
processos de vulnerabilização dos territórios (PROFISSIONAL 2).

Em relação aos processos de vulnerabilidades referidos pela/o Pro-


fissional 2, pode-se relacionar com o que Yazbek (2002, p. 35) afirma
sobre a “‘violência da pobreza’ como elemento cotidiano: [cujos] impac-
tos destrutivos das transformações em andamento no capitalismo con-
temporâneo vão deixando suas marcas sobre a população empobrecida”.
Essas marcas, no capitalismo, explicitam as diversas violações de direitos
e violências que crianças, adolescentes e jovens vivenciam:

As crianças, muitas não ficavam em casa fazendo isolamento, dis-


tanciamento social, pelo contrário, precisavam sair pra trabalhar.
Se viu o aumento do trabalho infantil também. A violência ela
não diminuiu, ela continuou no mesmo ou em maior nível até.
[...]. O que se percebe é que não teve nenhum movimento pra
frear isso que a gente tá tratando hoje que é a Mortalidade Juvenil
(PROFISSIONAL 7).

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Como forma de enfrentamento dessa realidade, no que se refere à
Política de Educação, é possível identificar que a maioria de profissionais
respondentes da pesquisa tratam-na como a política que dará conta de
todas as mazelas da sociedade. No entanto, compreende-se que isolada-
mente nenhuma política pública consegue enfrentar as violências e vio-
lações de direitos da população, pontuando-se novamente a importância
da materialização da intersetorialidade.
Ao mesmo tempo, observa-se, a partir de algumas falas, que a polí-
tica de educação vive uma realidade de sobrecarga de demandas de crian-
ças, adolescentes e jovens. Isso se dá, ainda segundo as/os entrevistadas/
os, em razão de a Educação se constituir enquanto uma política pública
mais estável, ou seja, está socialmente mais consolidada, além de ser a
mais acessada pelos jovens assassinados em Porto Alegre devido a sua
obrigatoriedade, sendo esse dado verificado na pesquisa realizada sobre
suas trajetórias.
O mesmo se atribui em parte à Política de Saúde, dado que esta
acaba sendo a política pública mais acessada nos primeiros anos de vida,
mas que deixa de ser acessada justamente na migração etária da inserção
para a escola no seu período de obrigatoriedade. Para a/o Profissional 3
“a escola, depois do Posto de Saúde, é a segunda política pública que, em tese,
as crianças acessam. Então se acessa a saúde, até os quatro, cinco anos, pelas
vacinações. Depois, se acessa a política de escola [...]”.
Na contrapartida, tem-se políticas como a Assistência Social que
não só não atingiu um status de consolidação, como foi uma das primei-
ras a evidenciar os retrocessos no que diz respeito às políticas públicas
brasileiras. Para a/o Profissional 1 “em 1993 vem a LOAS e a Política da
Assistência Social na verdade só é constituída no Brasil a partir de 2010”.

Eu acho que a própria questão dos serviços não darem conta das
demandas, de nós termos poucos trabalhadores pra muitos casos,
pra muitos atendimentos dentro da política de assistência, dentro
da política de saúde, dentro da política de educação. Eu acho que
não tem nenhum serviço dentro dessas três áreas que consiga tra-
balhar de maneira como deveria. Que consiga dar conta respirar
e consiga articular tudo aquilo que se deve, porque não se tem
RH suficiente. Eu acho que a própria precarização dos serviços

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públicos vai atravessar isso, a própria condição de trabalho dos
professores, das escolas, da diminuição dos profissionais de saúde,
dos profissionais da assistência (PROFISSIONAL 3).

É possível analisar que a “escola é a porta aberta na comunidade para


o aluno ser visto”, em detrimento das outras políticas, dada a amplitude
da perspectiva de atendimento, mas ela precisa fazer sentido e “pra fazer
sentido não é a família que precisa entender a escola, é a escola que precisa
sair do seu espaço restrito, [...] a família também precisa ser acolhida, dado
seu histórico de abandono” (PROFISSIONAL 7). Em outra fala, pode-se
aprofundar essa compreensão:

Eles não acreditam que a educação possa promover mudanças po-


sitivas em suas vidas, sendo isso possível apenas com o trabalho,
seja o trabalho que for, capaz de proporcionar poder de compra
de um carro, de uma moto, de um tênis, ou qualquer bem que
possa dar a ele uma imagem de reconhecimento. Essa perspec-
tiva está muito relacionada à escassez de escolas [no território],
considerando que o bairro, que é bastante extenso, possui apenas
uma escola de ensino médio. E embora sejam jovens que possuem
bastante inteligência da rua, do processo de sobrevivência, por
outro lado, questões relativas à formação humana, da afetividade,
da emotividade, eles ainda estão procurando ainda esse processo
de maturação (Profissional 2).

Essa fala dialoga com a perspectiva do trabalho como espaço de


acessos, desde questões básicas de subsistência, até o “tênis”, a “festa”,
a “roupa” que, para além de questões estéticas, demarca o lugar de per-
tencimento de acordo com a realidade que cada jovem se insere. Com
isso, perpassando a perspectiva intersetorial, salienta-se que a Política de
Assistência Social é vista por algumas/ns profissionais como um apêndice
da política de educação, aderindo ações de caráter complementar princi-
palmente no que se refere às famílias atendidas, agora entendidas como
um coletivo, como se isto fosse restrito à política da assistência social.
Outras pautas foram colocadas por profissionais nas entrevistas,
embora de maneira menos intensa, havendo a pontuação de políticas
públicas que acabam sendo mais invisibilizadas, dada a complexidade

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que envolve todas elas juntas. A/o profissional da educação trata da ques-
tão da moradia como elemento fundamental, inclusive permitindo às
crianças, adolescentes e jovens o “ser” e o “ter”, porque para ter o material
escolar é preciso ter onde guardá-lo, por exemplo, indo para deman-
das como saneamento básico, acesso à água, luz, alimentação, habitação.
Outras/os profissionais vão tratar da Política de Assistência Social como
complementar, um anexo para cada política de onde se parte sua própria
fala, uma vez que está se falando de famílias mais vulnerabilizadas, dado
que se trata de à quem dela precisar.

O que nós temos para fornecer de política pública na área da


cultura, do esporte… o que nós temos? É quase nada [...] Tem
que ter uma articulação da política de segurança fundamental no
processo que venha a trabalhar a redução da mortalidade juvenil;
a política de educação no sentido de inserir os adolescentes; a po-
lítica de renda [...] realmente, nós temos essa dívida extremamen-
te importante, grande assim… com o público jovem em situação
de vulnerabilidade (PROFISSIONAL 04).

Percebe-se, assim, a possibilidade de infinitas ramificações de neces-


sidades humanas, dado o aprofundamento da crise estrutural do capital,
em síntese, poderia ser feita uma placa: “precisa-se de (quase) tudo”. O
acesso ao território, a tensão do transporte público… tudo isso vai se
somando nas falas das pessoas participantes da pesquisa, vai-se do acesso
à serviços no território até ter acesso à determinados serviços. Apesar de
profissionais trazerem o debate para várias políticas que precisam se arti-
cular, não se consegue fugir da centralidade da Assistência Social, Saúde
e Educação porque são as mais presentes no cotidiano das populações
atendidas, enquanto reconhecimento da sua materialidade, ao passo que
outras políticas como Habitação e Transporte acabam passando por ar-
ranjos de resistências de outras ordens, seja na ocupação de algum terre-
no, nas construções precárias, na caminhada de duas horas para chegar à
um serviço. Há também a relação do trabalho da família com a condição
de cuidado que essas pessoas podem oferecer dentro das próprias famí-
lias, dessas pessoas que são dependentes desses adultos, que nem sempre
são tão adultos assim – ou seriam adultas?

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O suporte a essas famílias que estão em condições de vulnerabili-
dade social e por vezes não vão dar conta. Não vão dar conta... e
essas famílias eu falo majoritariamente as mães, não vão dar con-
ta da questão financeira... de ter condições financeiras. Não vão
dar conta de discutir assuntos extremamente importantes, como
projeto de vida, sexualidade, acesso à lazer, mercado de trabalho,
enfim, não vão dar conta (PROFISSIONAL 3).

Outra/o profissional complementa esta ideia, ao afirmar que “en-


tendendo que todo ser humano e acompanhamento da família é multifato-
rial, multifacetado nenhuma política pública pode dar conta disso sozinho”
(PROFISSIONAL 5). Dessa forma, um marco existente em relação às
entrevistas analisadas pode ser observado a partir do momento que existe
uma cisão entre as políticas públicas, inclusive a Política de Educação,
uma vez que a educação, pela sua amplitude no atendimento à popu-
lação se coloca num lugar de maior contato com usuárias e usuários,
conjuntos familiares e assim por diante. A Política de Saúde na realidade
brasileira também exemplifica tal cisão, pois o entendimento de saúde
ainda é muito associado à ausência de doenças, mesmo com os signifi-
cativos avanços do SUS (Sistema Único de Saúde) nas últimas décadas.

Acho que retirar a responsabilidade do Estado né, de oferecer ser-


viço, a política, a responsabilidade de articular. Porque o SUAS foi
pensado enquanto sistema; um sistema onde as proteções se arti-
culam, se conversem. Foi pensado para atuar em rede, para atuar
numa rede de proteção onde conta com as demais políticas. Nós
nos colocamos enquanto política na responsabilidade de articular
política de saúde, de educação, de direitos humanos, todas as po-
líticas num sentido de garantir que o público que nós atendemos
acessem seus direitos né […] a Política de Habitação […] então
foi pensado um sistema de proteção articulado a ser oferecido em
rede, a ser pensado em rede, onde os casos atendidos sejam discu-
tidos né […] (PROFISSIONAL 04).

Sendo assim, a partir da articulação entre as políticas, ou seja, da


materialização da intersetorialidade, observa-se possibilidades de resis-
tência, que geralmente se inicia pelo acesso à Política de Educação, em-
bora não estejam restritas a ela, pela maioria das/os jovens. Uma consi-

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deração fundamental é que, quando questionadas/os, as/os profissionais,
famílias, jovens, sabem afirmar com precisão onde ocorrem as maiores
faltas, que políticas precisam de fortalecimento, apontando para uma
demanda de gestão e conseguem pontuar que a culpa não é das e dos
trabalhadores que se encontram na execução das políticas públicas.
Nesse sentido que se pontua a importância da intersetorialidade.
Almeida e Alencar (2011, p. 70) referem que

A intersetorialidade é uma das práticas sociais que se articulam na


mediação institucional entre diferentes políticas públicas na esfera
municipal. Expande-se a partir do fenômeno da descentralização
e como uma decorrência concreta das dificuldades e possibilida-
des que se apresentam nos processos cotidianos de oferta dos ser-
viços sociais no âmbito das políticas públicas na esfera local.

Assim, compreende-se que a desproteção social que as/os jovens


e suas famílias vivenciam atinge esferas amplas que explicitam as múl-
tiplas violações de direitos em contexto do capitalismo neoliberal, que
não possibilita materializar a intersetorialidade tendo em vista a garantia
da proteção social dessas pessoas. Isso ocorre desde a ausência de políti-
cas públicas voltadas a jovens a partir dos 18 anos, para além daquelas
voltadas para a inserção no mercado de trabalho, até a descartabilidade
de suas vidas, quando não se tornam produtivos (pela própria lógica de
reprodução do capital e controle da classe trabalhadora) e explicitados
pela mortalidade juvenil. Conforme pontuado pela/o Profissional 4:

Então se não for feito uma ação articulada com uma decisão po-
lítica de peso dificilmente eu vejo essa questão da violência e da
mortalidade terminar por si só, até porque, infelizmente, eu vejo
um agravamento, uma excitação, um estímulo às ações violentas,
um estímulo à intolerância, um estímulo ao uso de arma, um estí-
mulo a buscar a resolução do conflito pela força, pela violência […].
Então assim, as ações que eu vejo são muito mais profundas[…].
Tem que ter uma mudança de paradigma, de conceito das relações
sociais […]. E do papel, principalmente, do papel do Estado na
regulação das relações, o papel das políticas públicas no sentido de
atender a todos, todos os cidadãos […] (PROFISSIONAL 4).

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Aponta-se, nessa direção, que enquanto o Estado intervir em prol
do capital, a desproteção social que atinge as/os jovens e suas famílias
continuará sendo perpetuada. É necessário que, em contraponto à racio-
nalidade neoliberal que responsabiliza os indivíduos e desresponsabiliza
o Estado, assim como referido pela/o Profissional 4, que haja mudança
desse papel do Estado e das suas intervenções a partir das políticas públi-
cas. Nessa direção, a/o Profissional 3 aponta a importância da construção
de políticas públicas estratégicas para lutar contra a Mortalidade Juvenil.

Então acho que a questão de montar, ter políticas públicas estra-


tégicas voltadas à adolescência e a juventude, vinculada também à
política de assistência que dá a questão da matricialidadesociofa-
miliar, de condições que possam garantir acesso às famílias à segu-
rança alimentar, segurança na acolhida, a diminuição da violência,
acesso ao turno inverso. Isso, na minha visão, com certeza dimi-
nuiria os índices de mortalidade juvenil. Diminuiria, sem dúvida.
A própria formação da polícia, com processo de uma abordagem
humanizada, o próprio ingresso ao mercado de trabalho, as condi-
ções desse ingresso dentro desse modelo de sociedade que a gente
vive, são essas questões né... e o direito da juventude de conseguir
e ser, e viver, tudo aquilo que ela tem pra viver. Porque ela vai es-
perar... ela vai ter que viver isso em algum espaço, e quem deveria
garantir esse espaço, deveria ser o Estado, a sociedade, a família
(PROFISSIONAL 3).

Portanto, as estratégias de sobrevivência e resistência desse segmen-


to social no território abrangem tanto a sua inteligência da rua, como fa-
lado pela/o Profissional 2, anteriormente, quanto à luta pela garantia de
direitos, buscando trazer o Estado para assumir sua responsabilidade em
garantir a proteção social a partir da materialização da intersetorialidade
das políticas públicas, tomando um sentido oposto ao que o neolibera-
lismo tem dado às políticas atualmente. Nesse sentido, a elaboração e
fortalecimento de políticas públicas que deem conta das demandas desse
segmento social, bem como do conjunto social onde se inserem apon-
ta-se como fundamental no enfrentamento à Mortalidade Juvenil e na
promoção da proteção social da população.

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Considerações finais:
“Não Tem Recursos Pra Juventude”

Retoma-se a frase “não tem recursos pra juventude” para encerrar


o presente debate que trata do atual contexto de desmantelamento das
políticas públicas, incidindo sobre um cenário de precarização, frag-
mentação e ausência de políticas públicas para esse segmento social,
cuja máxima se dá no processo de descartabilidade humana. Para além
do contexto de precarização e fragmentação, no que se refere à ausên-
cia de políticas públicas para esse segmento social atenta-se para a não
existência de recursos, principalmente para jovens após a maioridade
civil, quando se percebe um não interesse de investimentos do poder
público. Além disso, quando há algum investimento, observa-se a in-
fluência do caráter neoliberal nas políticas públicas de maneira geral,
gerando processos de focalização, setorialização, terceirizações, cortes
de orçamentos, dentre outros aspectos que afetam diretamente a vida
dos sujeitos usuários dessas políticas.
Essa omissão e retração do Estado diante de suas responsabilida-
des sociais, atrelado ao ideário neoliberal, tem gerado uma incansável
onda de terceirizações das políticas sociais, representando retrocessos
significativos no que tange às lutas históricas para conquista de direi-
tos da classe trabalhadora, bem como, tem gerado grandes impactos
nas trajetórias de vida de inúmeras famílias e jovens – que diante desse
contexto de desproteção social e trajetórias de violação de direitos têm
sido mortos precocemente. Ressalta-se ainda que, quando essas polí-
ticas são destinadas exclusivamente às juventudes, apesar de escassas,
ainda são muito voltadas para a Educação e o Mundo do Trabalho
visando a criação de mão de obra para sustentar o sistema capitalista,
envolta em uma promessa ilusória de desenvolvimento e realização
financeira e pessoal para esses jovens ao ingressarem no Mundo do
Trabalho. Esses programas ao se inserirem em territórios de maior vul-
nerabilidade social acabam também por promover formas de controle
das juventudes pobres.
Dessa forma, essa escassez de políticas voltadas para as juventu-
des brasileiras e sua precarização, bem como as trajetórias de vida ju-

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venis marcadas pela violação de direitos foram citadas pela maior parte
das/os profissionais participantes da pesquisa como sendo direta ou
indiretamente responsáveis pela inserção na criminalidade e no tráfico
de drogas, facilitando assim o genocídio de uma população jovem que
tem raça/cor, gênero e classe social definida. Necessita-se, assim, de po-
líticas públicas para o atendimento das demandas das juventudes que
extrapolem a focalização, a setorialização, a fragmentação e promovam
a intersetorialidade, a universalidade de acessos, espaços de escuta, con-
vivência e, principalmente a garantia de direitos materiais, alcançando
assim a intersetorialidade e a integralidade.
A ideia de a Política de Assistência Social ser complementar à Polí-
tica de Educação pode ser vista como uma resposta para a perspectiva da
intersetorialidade como materialização de acesso a direitos. Mas, como
dito em algumas entrevistas, as políticas públicas não se bastam em si
mesmas, de modo que cada política precisa transcender de si mesma e
ao mesmo tempo possibilitar construções intra-políticas, para além de
limitadores estanques no que se refere a planejamento, recursos e gestão.
As políticas públicas precisam retomar os espaços de orçamento partici-
pativo e efetiva participação da população nas decisões, porque são essas
pessoas que melhor entendem suas necessidades, com a contribuição de
profissionais que trabalham na execução desses serviços.
Apesar de profissionais trazerem elementos para diferentes polí-
ticas sociais que precisam realizar inúmeras articulações, o debate não
consegue fugir da centralidade da Assistência Social, Saúde e Educação
porque são estas que se configuram como as mais presentes no cotidiano
das populações atendidas, mas existem muitas outras demandas que pre-
cisam ser consideradas e que não estão descoladas, tais como moradia,
acesso à saneamento básico, ao lazer, à cultura, ao esporte, à profissio-
nalização, a atendimentos de saúde e educação de qualidade, preparo e
espaço de atuação para/no mundo do trabalho formal, dando conta das
necessidades humanas mencionadas ao longo do texto. Mas também se
mostra cada vez mais presente a urgência da arte, da cultura, da possibi-
lidade de expressão em suas múltiplas facetas, possibilitando o pensar em
liberdade e criatividade, isso é o que a juventude demanda quando diz
que o investimento não ocorre onde realmente precisa.

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Por fim, as demandas das juventudes, nesse contexto de desprote-
ção social tornam-se cada vez mais agravadas e necessitam de respostas do
poder público para o atendimento de suas necessidades reais, superando
essa lógica de retração de direitos sociais que ceifa as vidas de jovens.
Apesar dessa conjuntura precária que assola a vida de boa parte das ju-
ventudes brasileiras, esses jovens ainda existem e resistem às perversida-
des desse sistema excludente.

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Tráfico de drogas e precarização existencial
das juventudes: juvenicídio nas periferias do capital

Vanelise de Paula Aloraldo


Cíntia Florence Nunes

Há muito tempo, segmentos etários que vivem às margens do sis-


tema capitalista, mesmo em condições adversas, sofrem silenciamentos,
neutralizações, disciplinamento dos corpos, institucionalizações e olhares
adultocêntricos. Segundo a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adi-
chie (2009, p. 16) “Muitas histórias importam. As histórias foram usadas
para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para empoderar
e humanizar. Elas podem despedaçar a dignidade de um povo, mas tam-
bém podem reparar essa dignidade despedaçada”, por isso, o presente
capítulo tem por objetivo refletir sobre uma das tantas dimensões que
envolvem a entrada de jovens moradores de periferias nas atividades cri-
minosas do tráfico de drogas. A sociedade os condena e muito facilmente
os aponta como delinquentes e perigosos, mas pouco debate a recessão
econômica e a ausência da presença estatal que arrasa a vida desses su-
jeitos não garantindo seu sustento e condições de desenvolvimento. Vale
a pena destacar que, nas entrevistas realizadas na investigação, o tráfico
de drogas foi o elemento mais relacionado à dinâmica da mortalidade
juvenil nos territórios.
Conforme a autora Chimamanda, este estudo quer ouvir as vozes
silenciadas, pois “muitas histórias importam”, trazendo alguns relatos de
jovens, profissionais da rede de atendimento e familiares, e, convocando a
sociedade, os movimentos sociais e estudiosos ao desvendamento do dra-
ma vivido pelas juventudes que diante do desemprego estrutural, da falta
de renda, alimentação, moradia, transporte, educação, profissionalização e
acesso aos mínimos sociais necessários, pagam a conta, muitas vezes, com a
própria vida nessa inserção no mercado ilegal e brutal, convivendo com o
risco, uma vez que a insegurança cotidiana desses jovens e suas famílias e a

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falta de alternativas frente à violência, são questões ignoradas no orçamento
público. Vários são os sujeitos que enfrentam este dilema: entrada numa
organização que promete “dinheiro fácil” para o tão sonhado acesso ao con-
sumo, ou continuar na precariedade existencial sem perspectivas futuras.
A crise do capital, em 2008, além de demonstrar que o capitalismo
permanece profundamente instável, revelou também que o capitalismo
de tipo neoliberal é incapaz de conviver com as liberdades democráticas
e as políticas de caráter compensatório de bem-estar social, sobretudo
nos países periféricos. Nesse cenário, os jovens brasileiros tornam-se um
dos segmentos mais atingidos pelo agravamento das expressões da ques-
tão social, fruto do processo de acumulação e centralização de capital
(IAMAMOTO, 2015), especialmente após os elementos conjunturais
vivenciados nos últimos anos no Brasil. A vida dos jovens brasileiros,
sobretudo, aqueles que vivem nas periferias dos grandes centros urbanos
e que sofrem cotidianamente processos de negação de direitos, é atingida
pelas políticas de austeridade fiscal e incertezas cada vez maiores não
apenas em relação ao futuro, mas também ao presente.
No Brasil, em particular a partir de 2016, após o impeachment da
presidenta Dilma Rousseff, se identifica um conjunto de medidas ultra-
neoliberais, como a retirada de direitos e o aprofundamento da desigual-
dade social, que não apenas impossibilita um futuro melhor para a classe
trabalhadora como também faz retroceder o país ao passado, favorecendo
a relação de dependência e submissão ao imperialismo.
A eleição de Jair Bolsonaro, em outubro de 2018, candidato favo-
recido pela propagação de notícias falsas (as chamadas fakes news) e pelo
fundamentalismo religioso, se assentou em discursos de ódio à comuni-
dade LGBTTTQIA+, às mulheres, aos negros e aos povos tradicionais,
bem como o ataque direcionado aos direitos humanos e o fortalecimento
do aparato civil militar (como a proposta de flexibilização da compra e
venda de armas de fogo no país).
A conjuntura brasileira, já pouco favorável à classe trabalhadora,
em 2020, se vê diante da agudização da crise do capital em um contexto
sanitário que recrudesce as desigualdades preexistentes, amparadas por
um Estado genocida, durante a pandemia do novo coronavírus. A Orga-
nização Mundial da Saúde (OMS), em 11 de março de 2020, declarou

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que o surto do novo coronavírus (Sars-CoV 2) se constitui de uma pan-
demia, alertando para os altos níveis de propagação e gravidade da doen-
ça provocada pelo vírus. Um ano depois, os dados da OMS indicaram
120 milhões de pessoas infectadas e mais de 2,6 milhões de mortes em
todo o mundo (OMS, 2021). No Brasil, a condução do Governo Federal
tem se demonstrado desastrosa em relação a medidas para contenção da
propagação do vírus e atendimento à saúde da população.
Um estudo do Conectas Direitos Humanos e do Centro de Pesquisa
e Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA, 2021), da Faculdade de Saú-
de Pública da Universidade de São Paulo, a partir dos atos normativos do
Poder Executivo Federal e Estaduais com relação à pandemia (Covid-19)
revelou a ausência da participação social na legislação federal sobre a pan-
demia, em uma relação de antagonismo explícito entre Governo Federal e
Sociedade Civil. Nesse sentido, criou-se obrigações normativas para a po-
pulação em geral de forma fragmentada e, por vezes, contraditória. Contu-
do, mais do que o parco empenho do governo na prevenção e minimização
dos efeitos da pandemia, o estudo citado releva que, em âmbito federal,
há uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo
governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República. O relatório
de pesquisa analisado apresenta três eixos para subsidiar a afirmação ante-
rior, sendo eles: a) os atos normativos da União; b) atos de obstrução às
respostas dos governos estaduais e municipais à pandemia; e, c) propagan-
da contra a saúde pública, com o propósito de desacreditar as autoridades
sanitárias e enfraquecer a adesão popular às recomendações de saúde basea-
das em evidências científicas (CEPEDISA e CONECTAS, 2021).
Desse modo, o relatório destaca tanto os diversos atos normativos
que se sobrepõem e, por vezes, chegam até mesmo a ser contraditórios
entre si, bem como, a campanha publicitária “Brasil não pode parar”, vin-
culada à Secretaria de Comunicação da Presidência da República, a qual
divulgava uma informação de que seriam raros os casos de vítimas fatais do
novo coronavírus entre jovens e adultos, induzindo a população a crer que
as medidas de isolamento e distanciamento social não seriam necessárias
para este segmento, contrariando todas as orientações de saúde pública. Da
negação da gravidade da pandemia – inicialmente propagada pelo Presi-
dente como uma mera “gripezinha” –, desencadeia-se uma forte campanha

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para o tratamento precoce com o uso de cloroquina, ivermectina e nitazo-
xanida, em resposta à Covid-19, a qual não existiria sem o favorecimento
às indústrias farmacêuticas (CEPEDISA e CONECTAS, 2021).
Embora a sociedade conviva com um Estado omisso e um chefe do
Executivo que cria no imaginário social a dualidade: investir na economia
(referindo que os trabalhadores “não podem parar”, pois seriam acome-
tidos pela fome e desemprego) ou investir na saúde (negando a gravidade
da pandemia e minimizando as perdas de inúmeras vidas), a falta de
políticas sociais abrangentes e integradas provocam na população deses-
perança e individualismos que se entranham nas relações e nos discursos.
Diante do sentimento de impotência e da exposição às mais di-
versas vulnerabilidades, juventudes das camadas populares sentem o
gosto amargo da indiferença, da criminalização por pertencerem a
bairros periféricos, dos abusos de poder, da sua capacidade de sonhar
sendo tolhida pela ausência de perspectivas e oportunidades. Abre-se
aí um caminho possível que garante a renda que antes era negada, mas
não sem riscos: integrar à rede que comercializa drogas e sobreviver na
informalidade. Os próximos itens abordarão a realidade de jovens tra-
tados como caso de polícia, quando deveriam ser atendidos como caso
de políticas públicas.

A precarização existencial das juventudes diante da crise estrutural


do capital: implicações na construção de projetos de vida

A América Latina e o Caribe têm sido uma das regiões do mundo


mais afetadas pelo novo coronavírus, tanto em número de casos como de
óbitos, de acordo com o relatório a CEPAL: Panorama Social de América
Latina, 2020, publicado em março de 2021. Em 2020, apenas 8,4% da
população mundial vivia na região e, até dezembro daquele ano, chegou-se a
18,6% das infecções acumuladas por Covid-19 e 27,8% das mortes causadas
pela doença. A porcentagem da extrema pobreza aumentou de 7,8% para
11,3%, e da pobreza de 27,8% para 30,5% da população (CEPAL, 2021).
O relatório também demonstra que, ao comparar os trimestres de
abril a junho de 2019 e 2020, há uma redução ano a ano na força de tra-
balho de quase 10 milhões de pessoas, passando de 106.108 milhões para

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96.138 milhões, devido à perda de um número semelhante de empregos.
A faixa etária mais afetada pela redução do emprego durante a pandemia
tem sido da população mais jovem. A pandemia não apenas fecha postos
de emprego e coloca grandes obstáculos na busca pelo primeiro emprego
ou em uma melhor colocação no mercado de trabalho, como também
interrompe o acesso à educação e formação dos jovens em situação de
vulnerabilidade socioeconômica, sobretudo com o fechamento de escolas
e a instituição de aulas on-line, que deixam à deriva uma imensa parcela
de jovens por falta de recursos tecnológicos satisfatórios (CEPAL, 2021).
No mundo do trabalho, as juventudes brasileiras são impactadas,
também, pelo empenho do governo no desenvolvimento econômico que
privilegia parcela ínfima da população, uma vez que se fortalece as polí-
ticas de austeridade e privatização de bens públicos, além dos índices de
desemprego juvenil serem maiores do que a taxa média de desemprego
da população em geral. Os jovens ingressam no trabalho em condições
precárias, de superexploração, com baixos salários e altas jornadas de tra-
balho, além de sofrerem os mais diversos tipos de assédios morais, sexuais
e psicológicos nas atividades laborais.
As juventudes são um dos segmentos mais afetados pela reestrutu-
ração produtiva do capital, a partir da década de 1970, que alterou radi-
calmente a organização do trabalho com a inserção de novas formas de
gestão e inovações tecnológicas. A chamada Terceira Revolução Indus-
trial, ou Revolução Informacional, na qual o modelo taylorista-fordista
é substituído pelo toyotismo, ocorre com uma intensificação na jornada
de trabalho e com o aprofundando do grau de exploração da força de tra-
balho (ANTUNES, 2018; MÉSZÁROS, 2011). Nesse sentido, o toyo-
tismo, enquanto um novo padrão de acumulação do capital, amplia as
contradições entre as classes, em que segmentos cada vez maiores da po-
pulação mundial são considerados redundantes e descartáveis enquanto
trabalhadores produtivos, encontrando dificuldades cada vez maiores de
sobreviver, tanto material quanto psicologicamente (HARVEY, 2016),
como se pode observar nos relatos a seguir:

Eles não acreditam que a educação possa promover mudanças po-


sitivas em suas vidas, sendo isso possível apenas com o trabalho,

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seja o trabalho que for, capaz de proporcionar poder de compra de
um carro, de uma moto, de um tênis, ou qualquer bem que possa
dar a ele uma imagem de reconhecimento (PROFISSIONAL 2).

Ah, de tentar se inserir no mercado de trabalho e não conseguir, de


ter poucas oportunidades… Porque eu sei, porque eu procurei mui-
to estágio e foi, “tipo” [...] Bah, muito poucas assim, de tu mandar
cinco currículos numa semana, e esperar umas duas, três, pra um te
chamar, então é muito pouco mesmo (CACHINHOS, 16 anos).

Conforme os extratos das narrativas do Profissional 2 e do jovem


Cachinhos (16 anos), é possível observar que na realidade brasileira, as
juventudes são duramente atingidas pelas expressões da questão social,
com nítida ausência de políticas que garantam a expansão do emprego
e políticas educacionais e profissionalizantes que ofereçam perspectivas
de desenvolvimento aos jovens moradores de territórios periféricos. No
imaginário social, por exemplo, atribui-se à juventude pobre e das pe-
riferias as causas da violência urbana, sem a devida problematização da
gênese deste complexo fenômeno, bem como, da realidade vivida por
jovens em territórios violentados pela falta de acesso a bens públicos
de qualidade, como espaços de lazer, saúde e educação. Ademais, o de-
semprego, a desregulamentação das legislações trabalhistas, a inserção
laboral precária, a alta rotatividade nos postos de trabalho e os baixos
salários conformam um cenário de crise estrutural do capital, nos termos
de Mészáros (2011), no qual as juventudes deparam-se com um árduo
processo ao inserir-se no mundo do trabalho.
Segundo a PNAD Contínua, referente aos meses entre outubro
e dezembro de 2019, a taxa de desocupação no Brasil entre outubro e
dezembro de 2019 foi estimada em 11,0%, representando cerca de 11,6
milhões de pessoas1. Destas, o grupo de 14 a 17 anos de idade representa-

1 “São classificadas como desocupadas na semana de referência as pessoas sem trabalho


em ocupação nessa semana que tomaram alguma providência efetiva para consegui-lo
no período de referência de 30 dias, e que estavam disponíveis para assumi-lo na semana
de referência. Consideram-se, também, como desocupadas as pessoas sem trabalho em
ocupação na semana de referência que não tomaram providência efetiva para consegui-lo
no período de referência de 30 dias porque já o haviam conseguido e iriam começá-lo em
menos de quatro meses após o último dia da semana de referência” (IBGE, 2019, p. 4).

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va 7,8% das pessoas desocupadas e o grupo entre 18 e 24 anos represen-
tava 31,3% das pessoas desocupadas, que somados, constituíam os maio-
res índices em relação aos demais grupos etários – cerca de 39,1% –, uma
vez que o grupo de pessoas desocupadas entre 25 e 39 anos representava
aproximadamente 34,8% (IBGE, 2019). Desse modo, identifica-se que,
na realidade brasileira, a taxa de desemprego dos jovens é bem maior do
que de outras faixas etárias, sendo um fenômeno já observado em ou-
tras conjunturas históricas (POCHMANN, 2000; REIS e CAMARGO,
2007; FLORI, 2005; GUILLAND e MONTEIRO, 2010; REIS, 2014).
Já entre dezembro de 2019 e fevereiro de 2020, a taxa de desocu-
pação foi estimada em 11,6%, o que significa, aproximadamente, 12,3
milhões de pessoas desocupadas, de acordo com dados da PNAD Contí-
nua divulgados em março de 2020. No mesmo período, o contingente de
pessoas ocupadas foi estimado em aproximadamente 93,7 milhões, equi-
valente a 54,5%. Essa estimativa apresentou redução de -0,7%, ou seja,
menos 706 mil pessoas ocupadas em relação ao trimestre anterior (IBGE,
2020), agravando a situação de desemprego no país e, consequentemente,
constituindo um cenário ainda mais nocivo ao trabalho das juventudes,
seja de desemprego juvenil ou aprofundamento dos mecanismos de explo-
ração dos jovens ao inserirem-se no mundo do trabalho.
Em números totais, os jovens que se mantiveram na condição de
desempregados mais que dobrou, passando de 905 mil, no quarto tri-
mestre de 2014, para 2 milhões, no quarto trimestre de 2019. A propor-
ção de jovens desempregados que buscavam trabalho há pelo menos um
ano, que era de 29,9% no primeiro trimestre de 2013, aumentou para
38,8% no primeiro trimestre de 2019 (CORSEUIL, POLOPONSKY e
FRANCA, 2020). Desse modo, os achados dessa pesquisa apontam para
as elevadas taxas de desemprego juvenil no Brasil após 2015, fenômeno
este que precisa ser compreendido à luz do desemprego estrutural, ou
seja, enquanto uma das dimensões da crise estrutural do capital que afeta
diretamente os jovens brasileiros.
Na América Latina e Caribe, um a cada cinco jovens vai à procura
de trabalho e não encontra, o que indica que há cerca de 25 milhões de
jovens desempregados segundo o Panorama Social da América Latina pu-
blicado pela OIT em dezembro de 2018. Desse modo, há uma taxa média

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de desemprego contínua na região próxima dos 20% (19,6% no terceiro
trimestre de 2018, o que implica em uma taxa de desemprego juvenil três
vezes superior à da população adulta, gerando desânimos e frustrações pela
falta de oportunidades de emprego. Conforme o próprio relatório, “las
estadísticas de este año también sirven para reiterar cuán difícil es ser joven
en los mercados de trabajo de la región” (OIT, 2018 p. 17).
O relatório também destaca os dados referentes ao Brasil, a maior
economia da região e que representa dois em cada cinco membros da
População Economicamente Ativa (PEA). Desse modo, indica que, se a
taxa de desemprego juvenil para a América Latina e Caribe é de 19,6%
(terceiro trimestre de 2018), esta cai para 12,7% quando se exclui o Bra-
sil dos cálculos, o que demonstra o alto índice de desemprego juvenil
no país. No entanto, mesmo sem o Brasil, a taxa de desemprego juvenil
ainda é três vezes superior à taxa de desemprego da população adulta,
sendo uma questão que preocupa todos os países da região. O desempre-
go juvenil ocorre devido à escassez de demanda por esta mão de obra, a
qual geralmente tem menor escolaridade e menor experiência. Ou seja,
quanto mais jovem, maior é a taxa de desemprego que recai sobremanei-
ra sobre os pobres, mulheres, negros e pardos (OIT, 2018).
O desemprego juvenil não é um fenômeno novo no país, contu-
do, conforme Antunes (2018), este demonstra a enorme destrutividade
que preside na sociedade do capital ao gerar uma sociedade monumental
dos descartáveis. Mesmo diante da reestruturação produtiva, o capital
não pode eliminar o trabalho vivo do processo de mercadorias; pode,
porém, incrementar ao máximo o trabalho morto, a fim de aumentar a
produtividade do trabalho de modo a intensificar as formas de extração
de mais valia. As consequências para o mundo do trabalho se expressam
na precarização e na eliminação de postos de trabalho, fruto de um de-
semprego estrutural explosivo (ANTUNES, 2018). Nesse sentido, iden-
tifica-se que as juventudes formam um privilegiado segmento do exército
industrial de reserva, correspondendo a uma força de trabalho excedente
na produção do capitalismo contemporâneo (LANES, 2019).
O estigma de “vagabundos” ou “perigosos” por residirem em bair-
ros longe dos centros urbanos e a angústia de trabalhar e poder consumir
bens básicos que garantam alguma estabilidade e/ou reconhecimento so-

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cial, fazem com que segmentos jovens estejam dispostos a fazer o que for
preciso, mesmo que isso custe uma vida em constante estado de alerta. Para
a sociedade neoconservadora, o governo atual e as manchetes jornalísticas
sensacionalistas, esses sujeitos naturalmente violentos criam a desordem e
o caos, mas, na contramão desses discursos, a Profissional 3 adverte que:

[...] violento é isso de tu enterrar um filho com vinte e poucos


anos, e tu daqui a pouco ir num serviço pegar uma passagem,
porque tu não tem condições de ter a passagem, pra ir na frente de
um juiz provar que tu tem que ir lá ficar com as tuas filhas e trazer
as tuas filhas de volta. Isso tudo no mesmo dia. É muito violento.
Então, dentro dessas condições, como é que se pensa essa questão
da mortalidade (PROFISSIONAL 3).

Nesse sentido, conforme extrato do(a) Profissional 3, a questão da


violência possui raízes mais profundas e precisa ser compreendida consi-
derando o regime de acumulação de capital que reproduz em suas con-
tradições miséria humana, desamparo e desigualdades sociais ao mesmo
tempo que tensões, dominações e possibilidades de resistência.
Desse modo, aos jovens pobres que não tiverem sucesso na socia-
bilidade do capital, fica delegado os aparatos coercitivos do Estado. Ou
seja, estes jovens estarão sujeitos à ampliação do Estado Penal sobre as
“classes perigosas”, nos termos de Wacquant (2003), por meio do encar-
ceramento em massa da população pobre e negra, da repressão e das altas
taxas de homicídio juvenil. De acordo com Carvalho (2015), os dados
nacionais vêm demonstrando que o encarceramento de jovens autores de
atos infracionais tem superado significativamente as taxas de encarcera-
mento da população adulta no Brasil, revelando uma tendência nacional
de aumento do punitivismo em todos os níveis de controle formal, espe-
cialmente com relação à juventude negra e pobre.
Conforme o relatório de desenvolvimento humano do Progra-
ma das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), lançado
em dezembro de 2019, a América Latina foi apontada como a região
com maior desigualdade de renda no mundo. Do mesmo modo, tam-
bém se destaca a desigualdade que envolve demais marcadores sociais,
como a cor da pele, onde, em comparação com os brancos, os negros e

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indígenas têm menores possibilidades de concluírem a escola ou con-
seguirem um emprego formal e uma maior probabilidade de estarem
em situação de pobreza. Já os 10% mais ricos da América Latina con-
centram uma parcela maior da renda do que qualquer outra região,
cerca de 37% dos rendimentos, enquanto os 40% mais pobres rece-
bem apenas 13% dos rendimentos. No Brasil, por sua vez, a parcela
dos 10% mais ricos do Brasil concentra cerca de 42% da renda total
do país (PNUD, 2019).
Os efeitos da pandemia do novo coronavírus só agravaram tais
condições desiguais na vida da população. Todavia, a pandemia revela
que mesmo em períodos de crises, sejam elas econômicas e/ou sani-
tárias, o capitalismo consegue se retroalimentar para manter sua he-
gemonia global. Na América Latina e Caribe, mesmo com as quedas
econômicas, a riqueza dos bilionários aumentou 17% entre março e
julho de 2020. O montante chega a US$ 48 bilhões adicionais, o que
seria suficiente para pagar um terço de todos os pacotes fiscais de estí-
mulo introduzidos pelos governos da região em resposta à crise do novo
coronavírus nesse período (OXFAN, 2021).
Essa crise do capital marcada pelo desmonte das políticas de saúde,
educação, assistência, previdência e do mundo do trabalho, a partir da
desregulamentação dos direitos humanos e sociais, atingem acentuada-
mente a vida social daqueles sujeitos em fase de desenvolvimento que
historicamente foram tolhidos da materialização da proteção integral. As
juventudes que cometem atos infracionais, foram por muito tempo con-
cebidas sob a perspectiva de apartação social, da fragmentação de ações e
destinatários de práticas que corrigissem seus desvios de conduta.
Na atualidade, o tráfico de drogas possui elementos constituti-
vos de uma realidade capitalista que potencializa o recurso à violência
e a busca pela sobrevivência e reconhecimento, mesmo que isto custe a
própria vida, pois na complexidade desse fenômeno, existem histórias
e trajetórias juvenis cuja segregação urbana, precarização e violência es-
trutural as empurram como mercadoria barata e descartável nas relações
tensas e contraditórias entre capital e trabalho.

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O Tráfico de drogas como inserção laboral juvenil
e risco de mortalidade

A conjuntura brasileira após 30 anos do Estatuto da Criança e do


Adolescente (ECA) e se aproximando de comemorar a primeira década
do Estatuto da Juventude (EJUVE), ainda encontra dificuldades de ma-
terialização das garantias legais e do princípio de proteção integral no
cotidiano das juventudes. Na agenda das políticas de proteção social, o
investimento necessário para atendimento das necessidades dessa popu-
lação que estimulem sua independência, autonomia e protagonismo com
dignidade, ainda se encontra moroso e escasso.
Nesse tempo de desmonte de direitos humanos e sociais, em que
pronunciamentos violentos aliados a um falso patriotismo2 e o clamor
por regimes de exceção são amplamente divulgados e defendidos pelo
chefe de Estado, e para piorar, a crise sanitária acentuada pela Pandemia
descortinou a desigualdade étnico-racial, de classe e gênero na distribui-
ção de recursos, a população negra, oriunda de famílias empobrecidas e
moradoras de bairros periféricos foram as mais atingidas pelas mortalida-
des, desempregos ou subempregos e inseguranças.
Pesquisas já apontam essa relação entre a menor renda e o maior
coeficiente de mortalidade durante a Pandemia, mesmo entre os mais
jovens, que não foram considerados grupo de risco para o vírus. Essa
relação pode ser explicada pela menor qualidade de vida e exposição por
maior tempo em deslocamentos no transporte público da população
mais pobre (SANTIAGO, 2021).
O Estado, longe de reconhecer que as desigualdades existentes
possuem raízes históricas que exigem políticas públicas de defesa e pro-
teção para a população jovem das classes subalternizadas, no caminho

2 Segundo Anderson (2020, p. 160) “Quando bate no peito para afirmar seu patrio-
tismo, Bolsonaro está sendo apenas teatral. Assim, hoje, ele não é inimigo do capital
estrangeiro. Seu nacionalismo hiperbólico na expressão, assume a forma de virulentas
imagens de antissocialismo, antifeminismo e homofobia, por ele representadas como
excrescências estranhas à alma brasileira. Com o livre mercado, porém, não há discor-
dâncias. É um nacionalismo pautado pelo paradoxo do populismo entreguista: total-
mente disposto, ao menos em princípio, a entregar ativos nacionais a bancos e corpo-
rações globais”.

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contrário, leva a cabo políticas de extermínio, de controle institucional
que fazem crescer o encarceramento em massa e aumentar os índices de
letalidade policial, deixando intacto o imaginário social de que a crimi-
nalidade advém da pobreza e é um mal em circulação perpetuado pelos
corpos jovens e negros.

A segurança é entendida como a fórmula mágica de proteger a


sociedade (entenda-se as pessoas e o seu patrimônio) da violência
produzida por “desajustados sociais” que precisam ser afastados
do convívio social para serem recuperados. É difícil para o sen-
so comum juntar a ideia de segurança e cidadania. Reconhecer
no agressor um cidadão parece-nos um exercício difícil e, para
alguns, inapropriado. Os adolescentes em conflito com a lei, em-
bora façam parte do mesmo quadro acima citado, não encontram
eco para a defesa dos seus direitos, pois, pelo fato de terem pra-
ticado um ato infracional, são desqualificados como adolescentes
e rotulados como infratores, predadores, delinquentes, perigosos
e outros adjetivos estigmatizantes que constituem uma face da
violência simbólica (VOLPI, 2001, p. 14).

Assim, a segurança como “fórmula mágica” que protege da violên-


cia, não oferece respostas para uma sociedade que vive de acumulação e
miséria. A história vem mostrando, que as políticas de destruição das for-
mas populares de moradia sempre usaram como justificativas as questões
de saúde e segurança pública, enquanto sua verdadeira motivação era
elitista (favorecendo o mercado imobiliário) e eugenista (pessoas eram
consideradas inferiores e indignas de habitar nos centros urbanos). Os
cortiços, loteamentos ilegais e favelas, mais do que locais de segregação,
foram e são locais fortemente associados à periculosidade e imoralidade,
reduzindo moradores a estigmas e a uma categoria de “subcidadãos3”.
A violência e o conflito marcaram a formação sócio-histórica bra-
sileira, a pilhagem das terras dos povos originários, a invasão territorial,

3 Segundo Kowarick (2009, p. 54) essa condição se manifesta na “Irregularidade, ile-


galidade ou clandestinidade em face de um ordenamento jurídico-institucional que, ao
desconhecer a realidade socioeconômica da maioria, nega o acesso a benefícios básicos
para a vida na cidade”, portanto, “Trata-se de um processo político que produz uma
concepção de ordem estreita e excludente”.

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a apropriação das riquezas naturais, a expulsão de pequenos e pobres
trabalhadores e o genocídio de populações inteiras, estabeleceram rela-
ções de propriedade e hierarquias de poder que alcançam os dias atuais.
Nesse sentido, grupos com marcadores sociais etários, de classe, gênero e
étnico-raciais sofrem ainda mais os reflexos da forma particular de capi-
talismo num país colonizado em que

[...] o escravismo e a servidão foram fundantes das relações con-


traditórias que antecederam o capitalismo, as cisões geradas pela
alienação colonial são continuadas, exatamente porque a estru-
tura produtiva desses países, diante do imperialismo e a depen-
dência, perpetua as condições de reprodução daquela alienação: a
propriedade privada da terra e os meios de produção, a produção
primária voltada ao mercado externo; a racialização como tentati-
va de justificar e naturalizar a desigualdade social. [...] Racismo e
superexploração são gêmeos siameses, nascidos das entranhas do
colonialismo e alimentados pela dinâmica da dependência (SOU-
ZA, 2020, p. 158).

Nesse sentido, as contradições da dinâmica de acumulação ca-


pitalista se tornam mais complexas nessa formação sócio-histórica de
capitalismo periférico, pois, diante de uma realidade em que impera o
rebaixamento do valor da força de trabalho da população, o aumento
das jornadas de trabalho e intensidade desse trabalho (levando ao esgota-
mento biopsicossocial dos trabalhadores) diante da falta de conformação
do mercado interno, que restringe o acesso a bens básicos e suntuários, o
recorte racial impacta ainda mais nessa superexploração. Para elucidar a
perversidade do racismo e da superexploração que desvaloriza e deprecia
a mão-de-obra das juventudes negras periféricas, a seguir trago alguns
fragmentos das falas dos(as) entrevistados(as):

“Tá vendo eu? [...] Eu sou assim, eu sou […]. É bem o perfil de
uma pessoa da favela, entendeu? Querendo ou não, é essa a ver-
dade. E a gente que é assim, porque é assim […]. Não tá errado
ser assim. Entendeu? Mas a gente tem menos oportunidade do
que as pessoas que moram no Moinhos de Vento, que ‘tão’ usan-
do Lacoste, porque têm dinheiro pra comprar, entendeu? E, eu
acho que a gente se envolve nesse mundo porque eu por ser assim

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tenho as piores oportunidades. [...] Olha quantos bilionários exis-
tem no Brasil? Olha quantos são preto? Entendeu? Então, eu acho
que a gente quer subir também e acaba embarcando em qualquer
barco, né? Só que aí né […]. Tem mais chances ‘deu’ […]. Eles
falam que não é uma vida digna, porque tu faz muita coisa errada
e acaba envolvendo muita gente, matando muita gente, fazendo
muita coisa errada. Mas, querendo ou não, dá um empoderamen-
to pra gente também né? Acho que é isso aí que a gente busca um
pouco também né?” (Jovem Menor – 19 anos).

Eu até lembro o que ele falou: bah cara tu tem um rostinho de


playboy a polícia nunca vai desconfiar de ti. Aí tu tá vendo a ques-
tão cultural [...] Ele falou que eu podia tirar 5 mil em um dia.
Imagina, precisando de dinheiro, 5 mil em um dia. Nem um pro-
fessor ganha 5 mil em um dia, cara, não ganha nem em um mês.
Agora tu imagina uma pessoa que tá passando extrema necessida-
de, um monte de conta, 5 mil em um dia, quem que ia recusar?
(Jovem Everton – 16 anos).

As falas dos entrevistados demonstram o preconceito social e racial,


a distância de expectativas de quem nasce em bairros com maiores barrei-
ras em termos de qualidade de vida, de poder aquisitivo e de qualidade do
trabalho, ou seja, a desvalorização das juventudes negras e periféricas cujas
profissões e funções profissionais esperadas são voltadas para trabalhos ma-
nuais ou pouco especializados e de baixos salários, como na fala seguinte:

Tu vai perguntar pra todo mundo: “Ah, por que não ‘tá’ traba-
lhando?” Daí “Ah, vai lá no Mc, vai no mercado” É o que as
‘pessoa’ falam pra gente. Nosso serviço tem que ser assim. E não
é um serviço não digno, tem que ter pessoas trabalhando no mer-
cado. Tem e não tem né, por que tem alguns lugares que tu vai
olhar nos países mais desenvolvidos não existe mais ninguém no
mercado, não tem nem mais caixa no supermercado… Mais avan-
çado, entendeu? Então, realmente a gente tem que ficar com essa
parte mais braçal, a gente tem que receber o menor salário […].
Enquanto, alguém que faz faculdade e tem oportunidades boas,
trabalha seis horas e ganha mais que um salário mínimo. [...] Isso
aí vai revoltando a gente […]. Querendo ou não, vai te revoltan-
do. Bah, por que que eu tô recebendo a mesma coisa de quem tá

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trabalhando metade do que eu? tu te sente impotente, tu te sente
desvalorizado (Jovem Menor – 19 anos).

Para grande parcela da juventude brasileira faltam oportunidades


de acesso a políticas públicas de atendimento efetivo que garantam o
ingresso e permanência na Educação Básica, na Educação Profissionali-
zante, no Ensino Superior e inserção no mercado de trabalho sem preca-
rizações. Estudos já apontam a experiência comum vivida por alguns seg-
mentos juvenis, em que episódios de violência, ausência de escolarização
e vidas precárias antecederam o ingresso na carreira do tráfico, embora
esta perigosa associação têm provocado concepções determinísticas ao
longo da história na forma das políticas sociais (GODOI, 2019).
Partindo dessa premissa, é preciso retomar a história do atendimento
às infâncias, adolescências e juventudes nas políticas de proteção, em que
o Estado atuou sob três verbos: intervir, educar e corrigir. Retirar esses seg-
mentos sociais das ruas e das famílias vistas como “incapazes” e inseri-los
em instituições totais, sob trato higienista e repressivo do antigo Código
de Menores, culpabilizando essa família como responsável pelo desvio de
conduta dos filhos, foi a intervenção que perdurou por muitos anos. Dian-
te da Doutrina da Situação Irregular, tudo poderia se resolver no tribunal:
a pobreza, o perigo moral e os atos infracionais. Dessa forma,

O recolhimento, ou a institucionalização, pressupõe, em primeiro


lugar, a segregação do meio social a que pertence o “menor”; o con-
finamento e a contenção espacial; o controle do tempo; a submissão
à autoridade – formas de disciplinamento do interno, sob o manto
da prevenção de desvios ou da reeducação dos degenerados. Na me-
dida em que os métodos de atendimento foram sendo aperfeiçoa-
dos, as instituições adotavam novas denominações, abandonando o
termo asilo, representante de práticas antiquadas, e substituindo-o
por outros, como escola de preservação, premonitória, industrial ou
de reforma, educandário, instituto […] (RIZZINI, 2011, p. 20).

De acordo com Rizzini (2011), mesmo com diferentes denomi-


nações, as instituições exerciam práticas ineficazes que produziam o cha-
mado “menor institucionalizado”, isto é, jovens, oriundos de famílias
empobrecidas e estigmatizados com grande dificuldade de inserção so-

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cial após anos de subordinação a uma vida institucional. Assim, histo-
ricamente “famílias consideradas “desestruturadas”, “em desordem” ou
“ilógicas” são frequentemente alvos de intervenções de poderes e saberes
(principalmente do poder judiciário)” (ALORALDO, 2021, p. 64) en-
quanto aos jovens sobram intervenções político-ideológicas voltadas para
seu ajustamento a partir de valores ético-morais dominantes, por outro
lado, convivem com parcas ou quase inexistentes ações que direcionem o
acesso aos direitos humanos, a recursos e serviços básicos, a prevenção de
violências e ao que se entende por proteção integral.
As famílias de classes periféricas se tornam alvos frequentes das prá-
ticas repressivas e moralistas do Estado, pois é visto nelas a possibilidade
de gerar “criminosos em potencial”, uma vez que está enraizado no senso
comum que há variadas influências negativas no seu meio. No entanto, o
que o senso comum ignora é que a realidade social se apresenta com maior
nível de complexidade do que aparenta, assim, a família é apenas um dos
espaços de socialização que as juventudes circulam reproduzindo diferentes
valores e concepções. Há a vivência na escola que pode oferecer barreiras4
ou não, pode despertar interesses ou rótulos de alunos fracassados, criação
de projetos no presente e futuro ou sensação de incapacidade, desestímulo.
Há o espaço da rua, na comunidade, que pode ser de acesso a programas e
projetos, produção de cultura ou formas alternativas de sobrevivência. Há
um mundo de aparatos (mídia, igreja, instituições ao longo da vida, redes
sociais etc.) que repercutem a ideia do futuro incerto ao mesmo tempo em
que disseminam a necessidade dessas juventudes “serem alguém na vida”.
No Brasil, convive-se com o aprofundamento de desigualdades já
elevadas, o “acesso às oportunidades” torna-se discurso vazio para parce-
las que vivem sob inúmeras dificuldades. Diante da ausência de políticas
públicas e da naturalização da violência reproduzida no cotidiano pela
mídia hegemônica, o tráfico de drogas, constituiu-se como alternativa
para jovens que arriscam a vida (tornando-se alvos de traficantes e da
polícia) para galgarem um lugar melhor, fora da margem da pobreza, mas

4 Segundo Godoi (2019, p. 65) “A questão da dificuldade de aprendizagem, portanto,


pode transcender a mera noção de competência ou incompetência para aprender: ela
pode se fundar na ausência de sentido que os conhecimentos escolares apresentam para
esses jovens, bem como o próprio ato de estudar”.

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na contramão da justiça. Os relatos a seguir mostram as vulnerabilidades
socioeconômicas e o poder de sedução das atividades ilegais diante da
oferta de driblar as necessidades básicas.

Porque quando tu não tem o que comer, em vez de tu abrir aque-


las portas de várias oportunidades, entendeu? Tu abre portas pra
outras oportunidades, só que oportunidades ruins. Entendeu? Tu
tá com fome. Tu não tem o conhecimento… Tu não tem conheci-
mento, tu não tem experiência em trabalho, nada, entendeu? Que
que tu vai fazer? Eu vou pra um mais fácil entre aspas, né? Pra um
“mais fácil”. Que acaba não sendo o mais fácil pra eles. Ou morre
cedo, ou a polícia ‘tá’ sempre te perseguindo. Entendeu? Tu abre
aquela porta só pras coisas ruins (Jovem Wakanda - 20 anos).

Sabemos que a pessoa chega a um determinado momento nes-


ses territórios onde nada foi alcançado e ela vai buscar as coisas
do jeito que ela entende que é a forma possível de se alcançar,
geralmente, na prática de algum ilícito, seja ameaçando alguém,
roubando, entre outras coisas (PROFISSIONAL 6).

Eles veem por situação de sócio educação né, encaminhado pela


justiça juvenil, mas o que a gente percebe é que o adolescente,
quando chegou nessa situação, vem por um processo de violação
de direitos muito forte, de evasão escolar de 2, 3 anos ou mais,
distorção idade-série muito importante, associação ao tráfico. Por
exemplo, por falta de alternativa assim […] por não enxergar pos-
sibilidades, alternativas, para suas questões subjetivas inclusive de
pertencimento, não só por questões monetárias, mas também por
questão de pertencimento de se sentir valorizado e importante
na comunidade […] é o tráfico que oportuniza isso, né […] esse
pertencimento [...] (PROFISSIONAL 4).

Eu já vi muito colega, não amigo, colega, indo pra droga por que
não arranja emprego digno e precisou ir pra droga pra sustentar a
família e vai falar que é errado? O cara teve que seguir um mun-
do errado, mas por um bem certo, entende? São muitos temas e
caminhos que dá pra dialogar a tarde inteira que não vai levar a
nada, que vai levar a um único culpado que é o governo que não
dá nada digno pra gente. Eu sinto falta de uma escola digna, de
uma universidade digna (Jovem Everton - 16 anos).

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Conforme os extratos das entrevistas com jovens e profissionais da
rede de atendimento, a baixa escolaridade, a dificuldade de inserção no mer-
cado de trabalho e a busca por reconhecimento e pertencimento a um gru-
po que oportuniza momentos de consumo e poder, são fatores que tornam
as juventudes subalternas, alvos fáceis para o mercado ilegal e mortífero.
Embora o jovem Everton (16 anos) mencione que um colega foi aviltado
em seu direito ao trabalho e renda digna e que diante da falta de opção para
sustento da família, “precisou ir pra droga”, reporta a responsabilidade para
um único culpado “o governo que não dá nada digno pra gente”. De fato,
a atuação dos diferentes governos na liderança do Estado-Nação, segue a
direção contrária da universalização e integração dos direitos garantidos por
lei, consolidam a fragmentação e seletividade dos serviços, marginalizando
sujeitos e privando famílias do exercício da cidadania.
Mais do que governos, a própria sociabilidade capitalista sobrevive
da exploração e dominação coesa em suas múltiplas opressões, permitin-
do inclusive uma aversão social específica: aquela contra os pobres, cha-
mada “aporofobia” que é a tendência de admiração pelos ricos e desprezo
pelos pobres. No mundo das trocas, os pobres provocam um sentimento
de rejeição, porque “só apresentam problemas”, suscitam desprezo quan-
do são vistos com olhar de superioridade de quem intervém neles, medo
quando “geram insegurança e riscos” e, na melhor das hipóteses, impa-
ciência para se livrar deles (CORTINA, 2020). Mesmo que tenha sido
possível avançar em algumas garantias jurídico-legais, as juventudes ne-
gras e periféricas ainda são tratadas pelo poder público por meio de con-
cepções vinculadas à situação irregular, pela mídia como potencialmente
violentos e pela sociedade com indiferença e invisibilidade.

Nenhum dos meus amigos fizeram mal pra ninguém, portanto,


que eles “tavam” numa biqueira, porque não tinham o que comer,
não tinha […] “tavam” passando bastante necessidade, né? Nisso
eu não posso julgar. Porque se eu visse minha mãe, minha vó,
meus “parente” passando fome, eu ia fazer alguma coisa, enten-
deu? (Jovem Japa – 20 anos).

Sem dinheiro, as contas batendo na porta, faltando luz, faltando


água e com aquele amigo sempre falando: ó vende aquilo ali pra

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mim, não dá, cara, não tem como não aceitar e é um dinheiro fácil.
Eu sei porque meu amigo ele esbanjava, ele tinha relógio caro, celu-
lar das últimas, é um dinheiro fácil, cara, mas te leva a um caminho
que tu já sabe o que vai acontecer […] (Jovem Everton – 16 anos).

Me perguntaram se eu queria entrar pro tráfico, entendeu? Por-


que, tipo assim […]. Lá, sempre tinha uma roda de amigos que,
bah, jogava bola, entendeu? Eram conhecidos. E lá, sempre ti-
nha um que tinha dinheiro pra fazer isso, tinha dinheiro pra fazer
aquilo e eu era a pessoa que não tinha condições, sabe? E, muitas
vezes, eles viam, e perguntavam se eu não queria entrar, entendeu?
Só que eu via que aquilo ali também não iria me ajudar, enten-
deu? Aí, nunca aceitei, né? [...]. E eu percebi que muitos deles
que me perguntaram acabaram morrendo. Às vezes no dia seguin-
te, às vezes meses, entendeu? Então, a gente fica pensando assim,
com mesmo as dificuldades, a gente não pode […]. Na verdade tu
acaba até morrendo mais cedo, né? (Jovem Wakanda - 20 anos).

Diante dos relatos das experiências de vida dessas juventudes resi-


dentes em periferias, é possível analisar a partir da fala de Japa (20 anos)
que muitos julgamentos morais e criminalizantes sobre a situação dos jo-
vens envolvidos no tráfico de drogas, excluem as motivações que levaram
esses jovens a adentrar nesse universo urbano, clandestino e arriscado.
A escassez, a miséria e a fome são latentes em países subdesenvolvidos,
mesmo a produção global de alimentos sendo mais do que suficiente
para suprir as necessidades calóricas de toda a população. No entanto,
um dos motivos para a entrada na atividade do tráfico, é a ausência de
recursos necessários para a sobrevivência familiar. A oferta de alimentos
no que tange à qualidade e quantidade ainda não é distribuída de manei-
ra equânime a todas as regiões e classes sociais, o que faz com que muitas
pessoas ainda em desenvolvimento, se tornem vítimas fatais da falta de
opções oferecidas pelo Estado e a Sociedade.
Conforme o relato do jovem Everton (16 anos) o envolvimento com
atividades ilegais atrai sempre novos executores por se apresentar como
“dinheiro fácil”, mas que “leva a um caminho que tu já sabe o que vai
acontecer” e Wakanda (20 anos) complementa: “mesmo as dificuldades, a
gente não pode”, pois “acaba até morrendo mais cedo”. Assim, a morte se

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mostra como parte integrante e por vezes, inevitável, nesse emaranhado de
tensões e relações contraditórias. Todavia, existe uma ideia equivocada de
que o avanço da criminalidade ocorre pela violência que nasce com os pró-
prios sujeitos, pela “rebeldia” própria da faixa etária e, por fim, pela “falta
de cultura” do meio em que vivem, justificativas essas que ideologicamente
desumanizam a população pobre e corporificam estigmas generalizados.

Não existe relação direta entre pobreza e violência, e sim violência


estruturada, perpetrada pelo Estado, que vem oprimindo grande
parcela da população e que muitas vezes impede o próprio susten-
to. Esta população está sob grande vulnerabilidade social, e em
decorrência disso, vive situações de desrespeito e privações. Estas
condições não são definidoras para a adesão ao crime, mas podem
ser vereda propiciadora para que setores ilegais e criminosos se ex-
pandam, como no caso do tráfico de drogas. É nesses lugares que
o tráfico se torna visível, em regiões em que o Estado é omisso e/
ou violento. Esses lugares tornam-se campos férteis para ativida-
des ilícitas (FEFFERMANN, 2006, p. 24).

Tornar-se parte das estatísticas de mortalidade é uma das con-


sequências mais esperadas para aqueles que se inserem no universo do
tráfico de drogas, especialmente em contexto de Necropolítica5, onde
as engrenagens do sistema capitalista permitem que neste comércio lu-
crativo das drogas, vidas sejam descartáveis na medida em que o capital
financeiro se acumula nas mãos de grupos seletos que vivem nos cen-
tros urbanos.
Diante da mundialização do capital e do avanço tecnológico no
mundo do trabalho, ocorre uma dispensa em massa da mão de obra de
trabalhadores, que leva à insegurança subjetiva, material, ocupacional,
alimentar e de perspectivas futuras. Como saída para a crise, parcelas jo-
vens encontram espaço no mercado ilegal para sua sobrevivência e de sua
família. A resposta de um(a) familiar retrata um pouco o medo constante
fomentado diante das vulnerabilidades:

5 Segundo Mbembe (2018) São atores internacionais e políticas de Estado que decidem
quem deve viver e quem deve morrer em um determinado momento, com base em
critérios econômicos, subjugando populações e transformando seres humanos em uma
mercadoria descartável na ordem do capital.

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[...] Acho que foi devido a essa crise que ta aí, né? Ao desemprego,
à fome, à tudo, né? Aí tem pessoas aí que, que eu conheci – pessoas
boas! – e acabaram furtando coisas banais: bicicleta, tênis, enten-
deu? E pessoas que eu conheci e que não faziam isso, né? [...]. Tu
vê um filho teu passando dificuldade, né? Aí tu começa a pensar
em outras maneiras de conseguir o dinheiro fácil, entendeu? E eu
tenho esse pensamento, não sei, não é o meu pensamento, enten-
deu? E eu tento passar pra eles também que não vale a pena, né?
Tu pegar, ficar de aviãozinho na vila ali, avisando quem chega e
quem não chega pra ti ganhar R$300,00, R$400,00. Ganhar um
dinheiro bom, uma noite tu fica ali e tu ganha uns R$500.00, ali na
boca na entrada da vila [...]. Pra ti ficar 12 horinhas ali, R$500,00 aí
que eu não tiro num dia de trabalho, né? Tu ganha um dinheirinho
fácil, de manhã tu vai dormir, 6h tu vai dormir com quinhentinhos
dentro do bolso. E eu disse que isso aí não é [...]. Não é o objetivo
deles, né? Não vale a pena que um dia a casa vai cair, né? Dinheiro
fácil vai fácil, né? Aí isso eu tento falar [...] tento passar isso pra eles,
né? E as ‘coisa tão’ ficando cada vez pior, né? E, se tu não tiver uma
orientação boa, tu acaba indo. Tu acaba indo. Não vê? Ainda mais
se tu ver uma família né, não ter o que comer [...] Não ter o que
beber, né? Não ter uma luz, não ter uma água, não ter um [...]. Um
feijão, um arroz [...]. Bah, é difícil (FAMILIAR 2).

Diante da falta de oportunidades no mercado de trabalho formal,


muitos jovens buscam no tráfico o exercício de um trabalho com funções
bem definidas: soldados, vendedores, aviões, gerentes de bocas, olhei-
ros etc. de matriz semelhante ao sistema capitalista mais amplo, onde se
idealiza líderes salvadores, detentores de poder inquestionável, o apelo à
violência como resposta imediata, desproteção, busca de consumo exces-
sivo, grupos hierárquicos no comando e uma série de contradições que
constituem esse fenômeno complexo (FEFFERMANN, 2006).
Quanto à narrativa da(o) Familiar 2, sobre a entrada no mundo do
crime “Não vale a pena que um dia a casa vai cair”, trata-se do medo do
encarceramento e dos altos índices de mortalidade homicida. No ano de
2012, mesmo com as quedas derivadas da Campanha do Desarmamento
e de diversas iniciativas estaduais, aconteceram mais de 56 mil homi-
cídios, o que representa 154 vítimas diárias, número que equivale 1,4

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massacres do Carandiru6 a cada dia do ano de 2012. Entre 2002 e 2012,
morreram 556 mil cidadãos vítimas de homicídio no Brasil, quantitativo
que excede, largamente, o número de mortes da maioria dos conflitos
armados registrados no mundo. Observa-se ainda nessa década, a queda
dos homicídios brancos, reduzindo em 24,8% e um aumento dos homi-
cídios negros, com crescimento de 38,7% (WAISELFISZ, 2014).
Nesse sentido, o tráfico de drogas conduz as juventudes à barbárie ao
incrementar essas estatísticas que demonstram a face racista excludente da
sociedade. A maioria das vítimas de homicídios são jovens que possuem en-
volvimento com o tráfico de drogas, do sexo masculino e baixa escolaridade.
A enorme concentração de mortalidade nas idades jovens, com pico nos 20
anos de idade, revela também que os homicídios por armas de fogo atingem
a impressionante marca de 67,4 mortes por 100 mil jovens. Segundo o
Mapa da Violência de 2016, de 1980 até 2014 morreram no Brasil 967.851
vítimas de disparo de arma de fogo. Se esse número já é assustador, ainda
mais impactante é verificar que 830.420 dessas mortes, isto é, 85,8% do to-
tal, foram resultantes de agressão com intenção de matar: foram homicídios
(WAISELFSZ, 2015, p. 69). Nesse sentido, esses indicadores devem ser
analisados para além do registro de mortes, incorporando também a com-
plexidade que envolve o processo de criminalização de um segmento social
específico em toda América Latina e que é conhecido como Juvenicídio.
No Brasil, o conceito de Juvenicídio imbrica-se ao genocídio da
população negra, uma vez que o país convive com raízes históricas de
violência étnico-racial e institucional exercida pelos agentes do Estado
que coloca grupos jovens negros e periféricos como principais alvos de
seu controle, proibicionismo e extermínio. Estes jovens cotidianamente
convivem além da violência estrutural, com estereótipos (reforçados pela
mídia hegemônica) e estigmas de ameaçadores, violentos, suspeitos ou
malandros e, por isso, corpos passíveis de serem maltratados pelo Estado
e a Sociedade. Conforme descreve Valenzuela Arce (2015, p. 15)
6 Refere-se a uma intervenção desastrosa e trágica de cerca de 300 policiais militares
em outubro de 1992, autorizada para conter uma rebelião na Casa de Detenção de São
Paulo, mas levando à morte violenta de 111 detentos. Este extermínio ficou amplamen-
te conhecido, não só pela impossibilidade de defesa dos apenados como pela demora
nos julgamentos dos réus e absolvições de vários envolvidos, revelando as lacunas do
sistema de justiça e desrespeito aos direitos humanos.

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Sin embargo, los procesos sociales que derivan em la posibilidad de
que miles de jovenes sean asesinados, implica colocar estas muertes
en escenarios sociales más amplios que incluyen procesos de preca-
rización económica y social, la estigmatización y construcción de
grupos, sectores o identidades juveniles desacreditadas [...].

Todavia, nessa sociedade orientada pelo capitalismo neoliberal em


que imperam valores meritocráticos e individualistas que polarizam a
sociedade entre os merecedores de direitos humanos e os merecedores de
repressões, naturalizam-se as mortes de corpos juvenis nos territórios pre-
carizados, os juvenicídios, uma vez considerados supérfluos e residuais
– especialmente, quando se tratam de segmentos jovens envolvidos em
atos infracionais.
As juventudes envolvidas no tráfico de drogas, ao vender a sua
força de trabalho para organizações criminosas em busca “dinheiro mais
fácil”, possuem não só funções bem definidas como carga horária intensa
em condições precárias. Nesse sentido, sofrem ao mesmo tempo, duas
situações de risco: a repressão e abusos de poder de alguns policiais mi-
litares ou torturas e emboscadas de facções rivais que disputam violenta-
mente os territórios, como mostra o relato a seguir:

O pessoal jovem acha: “Ah! É dinheiro mais fácil, é vida mais fácil,
é tudo mais fácil, eu vou pra lá também!” E daí é onde eles acham
que [...] que vão ganhar o mundo com isso, né? E é uma coisa
fictícia, porque tu não vai ter vida fácil, tu não vai ter dinheiro
fácil. Tu vai tar lá das sete às sete, vai “tar” correndo de ser pego
pela polícia, vai ser... pode ser pego por outra facção. É bem com-
plicado, bem complicado (Jovem Japa – 20 anos).

As políticas antidrogas historicamente serviram à discriminação de


grupos considerados fora dos padrões morais, tradicionais e da ordem so-
cial estabelecida. Da mesma forma, “a manutenção da ordem exige que
se afastem, cada vez mais, os já excluídos. A polícia, detentora legal do
uso da violência, garante essa ‘exclusão’” (FEFFERMANN, 2006, p. 23).
O discurso autoritário de “guerra às drogas” reforça na população,
comportamentos de medo e fé cega de que o Estado e as forças armadas
combatem efetivamente o narcotráfico por meio das normas, limites e

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disciplina imposta àqueles que “desequilibram a nação”, “destroem os
valores da ordem e do progresso” e “ameaçam a segurança nacional”:
as juventudes “delinquentes”. Dessa forma, a percepção de combate e
guerra às drogas centra-se, no imaginário social, como necessidade de
combater militarmente os territórios mais precários, controlar os corpos
negros e intensificar arcabouços legais repressivos e punitivos aos setores
mais vulneráveis do mercado ilegal.
No entanto, esses discursos ideológicos omitem os verdadeiros fi-
nanciadores e responsáveis pela manutenção das engrenagens desse siste-
ma lucrativo e transgressor. Assim como naturalizam os procedimentos
arbitrários e seletivos da polícia que historicamente relaciona a pobreza à
violência, reproduzindo sua criminalização apenas a um segmento racial,
etário e social específico. Nessas situações, o acesso à justiça e aos direitos
humanos também ocorrem de maneira diferenciada: Para as juventu-
des negras e periféricas responde-se com encarceramento, abandono dos
aparatos institucionais, estigmas de “nocivos e malandros”. Já para as
juventudes brancas dos centros urbanos com maior poder aquisitivo, en-
contra-se a impunidade, cidadania respeitada e a imagem de potenciais
consumidores ou até mesmo, idealizadas como “futuro da nação”.
O tráfico de drogas é fonte de grandes lucros e correspondem à
lógica capitalista, gerando grupos dominantes que detêm o poder, dinâ-
micas violentas, além de formas de controle e organização própria (bem
articulada ao mundo da legalidade). Nas relações estabelecidas entre tra-
ficantes, pode-se caracterizá-los como “empresários de um setor econô-
mico ilegal que buscam acumular capital” (FEFFERMANN, 2006, p.
25). Já aos seus “soldados” subalternos nessas relações de poder, qualifi-
cados como bandidos e algumas vezes, também entram nessa dinâmica
como usuários de drogas, necessitam seguir as normas, exploração e tira-
nias próprias dessas organizações.
Se a mortalidade juvenil constitui fenômeno multicausal debatido
na literatura, devemos buscar os mecanismos concretos para as mudan-
ças estruturais necessárias e a superação dessa realidade violenta e selva-
gem, que torna o Estado e a Sociedade testemunhas e ao mesmo tempo,
responsáveis. Se por um lado os índices de mortalidade juvenil e os riscos
da entrada no tráfico de drogas revela uma situação preocupante, justi-

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ficando a necessidade de inúmeras campanhas, programas, mecanismos
de prevenção e proteção. Por outro lado, o número de homicídios e fe-
minicídios de jovens que ceifa vidas de forma prematura, tem recebido
pouca ou nenhuma atenção merecida em termos de financiamento, con-
tinuidade e centralidade.
Observa-se que as mortes violentas que acometem em grande
maioria jovens negros e periféricos, não provocam o mesmo impacto
nacional e internacional midiático que os conflitos atuais da Europa,
pelo contrário, para as juventudes pobres e marginalizadas discute-se a
ampliação da repressão do Estado e maior circulação de armas de fogo
na sociedade. É preciso investir em acesso aos direitos básicos para as
juventudes e suas famílias, como moradia, saúde, segurança alimentar,
emprego e transporte público. A oferta de cursos profissionalizantes e
ações no contraturno escolar também são fundamentais para o direito ao
lazer, cultura, esporte e partilha de aprendizagens múltiplas. Ter o direito
à convivência familiar e comunitária é fundamental para o sentimento
de segurança, pertencimento e identidade. O incentivo à projetos de vida
com dignidade e acesso às oportunidades de crescimento e desenvolvi-
mento, retirando assim, a necessidade do envolvimento com o mundo
do tráfico e das drogas, possibilita que a população jovem que vive longe
dos centros urbanos e que possuem diferentes marcadores sociais de clas-
se, raça/etnia e gênero, possam efetivamente viver com maior autono-
mia, independência e protagonismo.
A ampliação de um Estado Social em detrimento de um Estado
Penal, atua na contramão da alta violência policial, do racismo institu-
cional, das humilhações cotidianas justificadas por estigmas históricos,
da falta de projetos sociais, do estímulo à agrupamentos corporativos e
grupos rivais, da violência expressa em diferentes formas, do assédio do
tráfico de drogas, do uso de álcool e outras drogas e da evasão escolar
como saídas em um contexto sociopolítico e econômico permeado pela
cultura de consumo, pela indiferença e desamparo em massa, próprios
do sistema econômico capitalista simbolizado pelo fetichismo dos bens e
das relações mercadorizadas. 
Na atual conjuntura brasileira, as juventudes da classe trabalhadora
precisam se articular e se organizar politicamente para além das denún-

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cias de violências reproduzidas pelo Estado e seus agentes e das restrições
de direitos cotidianos, precisam ocupar maior espaço nas instituições a
fim de garantirem a efetivação e ampliação dos avanços legais, fortalece-
rem as resistências existentes e implantarem socialmente compromissos
e desejos de mudança. Diante da acentuada crise sanitária, política, eco-
nômica e social que escancara as desigualdades preexistentes, constitui-se
luta imprescindível, a derrubada de governos autoritários, negacionistas,
genocidas e ultraconservadores como o que se apresenta nesta sociedade
hodierna, periférica e dependente.

Considerações finais

Quando uma pessoa jovem se inscreve no tráfico, se submete a


inúmeras pressões que refletem na construção de suas subjetividades. As
expectativas das juventudes que moram nas periferias em relação ao trá-
fico oscilam entre medo e compreensão de que essas organizações trazem
alívios imediatos aos integrantes e os familiares necessitados. Os depoi-
mentos recolhidos nesta pesquisa, evidenciam que uma das motivações
que levam jovens periféricos à participação do mercado ilegal e brutal é
pela sobrevivência econômica, especialmente, impulsionados pelas trans-
formações econômico-sociais do mundo do trabalho que com o avanço
tecnológico expulsa cada vez mais um contingente de trabalhadores do
acesso aos direitos básicos, colocando-os na marginalidade das políticas,
gerando desproteção e invisibilidade.
No mundo do trabalho, as juventudes brasileiras são impactadas
pelo desempenho do governo que ao invés de facilitar o ingresso das juven-
tudes no mercado de trabalho, imprime políticas de austeridade, a privati-
zação de bens públicos e privilegia parcelas ínfimas da população no acesso
e permanência escolar e profissionalizante. Com a crise sanitária, política,
econômica e social, agudizam-se os obstáculos na busca pelo primeiro em-
prego, a remuneração abaixo do valor da força de trabalho, como tam-
bém interrompe o acesso à educação e formação dos jovens em situação de
vulnerabilidade sem condições de acesso a recursos tecnológicos mínimos
para acompanhamento das aulas remotamente. Em condições precárias,
são submetidos à superexploração do capital, com baixos salários e altas

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jornadas de trabalho, além de sofrerem com apelos frequentes de consumo
uma vez que na lógica do capital, dinheiro é poder.
Apesar do mundo do tráfico representar toda a violência, a des-
cartabilidade humana e a lógica de dominação, sob a égide do sistema
capitalista, representa também a face cruel da exclusão de parcela sig-
nificativa da população jovem e periférica do acesso à proteção social e
a banalização do juvenicídio cotidiano nas periferias do Capital. Nesse
sentido, a voz das juventudes e suas famílias devem ser ouvidas e in-
cluídas nas estratégias voltadas à segurança pública e ao enfrentamento
ao crime organizado. Os corpos jovens negros tornam-se mercadorias
baratas e geram lucro nas mãos de traficantes que financiam esses jogos
de poder e crueldades.
A fome é imediata. Pagar o aluguel, transporte público, água, luz
elétrica, ajudar nas despesas da casa, poder consumir e obter alguma vi-
sibilidade/reconhecimento, pertencer a algum grupo de confiança etc.
envolve a luta diária pela sobrevivência daqueles sujeitos que vendem
ou carregam drogas, envolve seus processos de produção e/ou consumo,
matam e morrem ou são encarcerados, revela as contradições desse modo
de sociabilidade e a lógica capitalista que interrompe projetos de vida e
elimina perversamente jovens das favelas e periferias retirando deles o
caráter de humanidade e um futuro com dignidade. Se por um lado, são
alarmantes os dados de encarceramento e mortalidade juvenil no Brasil,
por outro lado, é preciso que tais informações levem à priorização de po-
líticas públicas, à qualificação dos recursos humanos sobre esta realidade
com vistas a redução da violência institucional e, principalmente, apoio e
promoção da participação social e política desse segmento na construção
de um verdadeiro sistema que efetivamente materialize os direitos previs-
tos no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Estatuto da Juventude.

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Criminalização da Pobreza e Juvenicídio:
a violência do Estado Penal
em uma conjuntura de (des)proteção social

Giovane Antonio Scherer



O tráfico de drogas, enquanto um elemento constitutivo do mer-
cado de trabalho informal e ilegal vem impactando fortemente as trajetó-
rias de vida e morte em territórios violentados pela dinâmica do capital.
Como debatido nos capítulos anteriores deste livro, o tráfico de drogas
foi elencado pelos participantes da investigação como o principal fator
que amplia o contexto de mortalidade juvenil nos territórios investiga-
dos. Nesse sentido é necessário questionar como vem se constituindo
o papel do Estado, no que se refere à perspectiva da segurança dessas
populações que vivenciam em seu cotidiano a dinâmica da mortalidade,
diante da eminente violação do direito à vida.
No que tange esse debate, observa-se a violência reproduzida pelos
órgãos de segurança pública como categoria emergente nas entrevistas, sen-
do um elemento presente em 90% dos relatos orais tanto das juventudes
moradoras dos territórios com maiores índices de mortalidade juvenil,
quanto de seus familiares e dos profissionais que atuam nas políticas pú-
blicas nessas regiões. A análise dessa realidade necessita ser compreendida
para além da sua aparência fenomênica, isso é: distanciada de perspecti-
vas dualistas que acarretam lógicas culpabilizadoras. Evidencia-se assim,
a necessidade de compreensão dos complexos processos que se calcam
em paradigmas punitivistas que, de fundo, são funcionais ao status quo
e a manutenção da dinâmica homicida que vem ceifando diversas vidas.
Neste sentido, o presente capítulo busca analisar, por meio da
análise dos relatos orais dos participantes da investigação, a presença do
Estado Penal nos territórios que vivenciam altos índices de juvenicídio.
A compreensão acerca da experiência social dos participantes do estudo
se constitui em elemento de fundamental importância para a presente
investigação, sendo que tais experiências representam uma dimensão sin-

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gular da vida dos participantes, mas que se relacionam, diretamente, com
dimensões particulares e universais. Na perspectiva de Lukács (1967), o
particular representa a expressão lógica da categoria de mediação entre o
específico, o singular, e o geral, universal, que não podem ser compreen-
didos de modo isolado e por si mesmos.
Nesse sentido, “frente a essas experiências, velhos sistemas concei-
tuais podem desmoronar e novas problemáticas podem insistir em im-
por sua presença” (THOMPSON, 1981, p. 17), em uma perspectiva de
avançar na compreensão do contexto de violações e garantias de direitos
para as populações destes territórios marcados pela violência estrutural e
pela morte em seu cotidiano. Para que seja possível essa análise, em um
primeiro momento é debatida a perspectiva dos participantes acerca da
chamada “guerra às drogas” nesses territórios, buscando compreender
como essa dinâmica vem afetando as relações sociais tecidas nesses es-
paços. Em um segundo momento, busca-se analisar os impactos da vio-
lência estatal e do punitivismo, diante do avanço das “mãos de ferro” do
Estado como resultante da falta de proteção social para essas populações.

Guerra às drogas e as faces do Estado Penal


diante da Criminalização da Pobreza

O enfrentamento à lógica do tráfico de drogas na realidade brasi-


leira vem se consolidando a partir do paradigma da chamada “guerra às
drogas”. A linguagem bélica, presente na expressão, se popularizou nos
EUA no governo de Richard Nixon (a frente da Casa Branca de 1969
até 1974), se disseminando em vários países do mundo, em uma política
fortemente punitivista e repressiva. A falta de eficácia dessa forma de
gestão da segurança pública não impediu que ela fosse utilizada como
estratégia de enfrentamento em muitos países. O proibicionismo não foi
capaz de eliminar a oferta e a procura por psicoativos ilegais e contribuiu
para a emergência e crescimento do mercado ilícito internacional (nar-
cotráfico) e sua direta associação com redes de corrupção, criminalidade
e violência, que aprofundam a questão social (BRITES, 2016). No cená-
rio brasileiro, a lógica da “guerra às drogas” encontrou um terreno fértil
para se disseminar em um país conservador, de capitalismo dependente

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e periférico; marcado por uma imensa desigualdade social, consolidado a
partir do racismo estrutural.
O punitivismo se constitui como elemento constitutivo da história
brasileira, se fortalecendo e ampliando diante de perspectivas bélicas de
enfrentamento ao tráfico de drogas. A frágil democracia brasileira – fruto
de uma longa e violenta Ditadura Militar – se constitui como compo-
nente de grande relevância para a instituição do paradigma de “guerra
às drogas” no país. Conforme aponta Soares (2015), a arquitetura das
instituições de segurança pública, a qual se inscreve o modelo policial,
não foi transformado pelo processo de transição democrática ao final da
década de 1980, ainda que suas práticas tenham sofrido inflexões, adap-
tando-se superficialmente às alterações legais, foi-se mantida a estrutura
organizacional oriunda da Ditadura Militar. O impacto desse processo
foi à permanência da perspectiva militar nas instituições de segurança
pública se constituindo em uma herança da Ditadura Militar que per-
manece nas estruturas organizacionais brasileiras. Tal perspectiva tende
a ensejar cultura afeitas a violência, cuja ideia central implica em uma
guerra com “o inimigo”, distanciando a concepção de segurança como
um bem público que deve ser oferecido de forma universal e com equi-
dade (SOARES, 2015).
A lógica da construção da ideia do “inimigo” sustenta os discur-
sos acerca da “guerra às drogas”, é fomentada pela grande mídia que
cumpre um papel fundamental na construção social de um “perfil” que
é responsável por desestabilizar a “ordem” e que precisa ser combatido
e destruído. Nesse cenário que são gestadas concepções que a violên-
cia é uma ação individual, descolada das relações sociais na qual são
produzidas, realizada por “sujeitos perigosos”, moradores dos “territórios
violentos”, sendo que tais sujeitos são percebidos como “receptáculos do
mal”, não considerando uma conjuntura social que reproduz múltiplas
desigualdades sociais e provoca processos de violência (SCHERER,
2018). Na construção da ideia do inimigo dessa guerra, em um país
calcado pelo racismo estrutural e consolidado por meio da desigualdade
social, assume a feição jovem, pobre e negra moradora da periferia um
perfil eminentemente suspeito, passível da violência estatal. Como pode
ser observado nas falas dos jovens Fernanda e Wakanda:

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– [...] a polícia vem atirando, assim. Eles já entram atirando como
se toda a população, como se todas as pessoas que vivessem ali dentro
daquela vila fossem envolvidas, mas não! Tem muita gente envolvi-
da, claro! Tem, né? Um comando. Pessoas que vendem a droga,
né? Exportam a droga, né? Tem muito dependente químico... Mas
também tem muita gente digna, que sai todo dia, que... né? Vai
trabalhar pra ganhar o seu sustento e a qual, quando a polícia vem,
a polícia, praticamente, não quer saber quem tá certo, quem tá errado.
Então, a polícia, assim, vem atirando “volte e meia”, assim, às vezes
é de tarde, três (15h), quatro (16h) horas da tarde, as crianças,
assim, não só o meu filho, né? Outras crianças, ali, tão brincando,
assim, e, no caso, dá aquela correria, no caso, que a polícia vem,
os caras... né? Vão correr, vão fugir, porque os caras sabe, né? [...]
De modo em geral, a polícia, no caso, acaba, tipo, não respeitando a
comunidade em si. A polícia acaba envolvendo toda a comunidade,
por alguns da comunidade, né? Viver, né... ‘sobre’ o tráfico, no caso,
né? [...] Como se toda a comunidade fizesse isso. Como se toda
a comunidade traficasse. Como se toda a comunidade roubasse,
matasse. A polícia não protege a comunidade. (Fernanda, 24 anos)

– Ontem mesmo estavam uns ‘brigadianos’ lá em cima da minha


rua, sabe? Eles ‘tavam’ abordando, né? Aí passou um cara por mim
e disse pra mim: “Oh, toma cuidado que eles ‘tão’ botando os
‘guri’ no paredão. E tinha gente lá que não era nem do tráfico. En-
tendeu? Aí apanha de graça. Entendeu? (Wakanda, 20 anos)

Os relatos acima evidenciam o cotidiano de insegurança vivencia-


do pela juventude, provocado pelas relações violentas entre facções cri-
minais e pela constante política repressiva e criminalizatória da política
de segurança pública nesses territórios e para com essa população. A for-
ma violenta das abordagens, reproduzindo estigmas que colocam todos
os moradores desses territórios como sujeitos “suspeitos”, se constituiu
como um elemento constante durante as entrevistas da investigação. A
forma pela qual tais ações vêm se constituindo o âmbito desses territó-
rios está intrinsecamente relacionada à face penal do Estado que tende a
estender o seu ‘manto punitivo’ especialmente para as pessoas que mais
sofrem com a dinâmica da insegurança na sociedade contemporânea,
constituindo-se uma forma seletiva e pontual de tais abordagens.

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Conforme aponta Wacquant (2011), a ação do Estado Penal se
calca em fundamentos liberais clássicos e eugênicos, sendo uma respos-
ta à retração do Estado Social diante do avanço neoliberal. A retração
do welfare state estendeu-se para abranger o controle punitivo do crime
numa chave pornográfica e gerencialista, pois a “mão invisível do merca-
do” suscita o “punho de ferro” do Estado Penal, por meio de uma virada
punitiva direcionada para a pobreza (WACQUANT, 2011). Evidente-
mente o Brasil, enquanto país de capitalismo dependente e periférico,
não experimentou as experiências do welfare state – de um Estado de
Bem-Estar Social, como os países de capitalismo central, mas vivencia a
forte presença do Estado Penal, com marcantes raízes punitivistas cada
vez mais ampliada diante do avanço de políticas neoliberais e neocon-
servadoras. Arend (2020), ao analisar a constituição do Estado Penal no
Brasil, afirma que sua consolidação se constitui a razão de ser da forma-
ção sócio-histórica de uma sociedade punitivista, que apela ao autorita-
rismo frente às crises, sendo que o punitivismo é uma forma de atuação
do Estado, ampliando a violência estrutural, especialmente para popula-
ções que vivenciam intensamente condições de vidas subalternas.
A “guerra às drogas”, nesse sentido, se constitui como expressão
intensa de um Estado Penal que, ausente em suas funções de proteção
social nesses territórios, amplia a sua atuação punitivista sob o manto a
ideia de justiça e busca pela “ordem”, justificando as suas ações de violên-
cia por meio do discurso de caça ao “inimigo”. Assim sendo, a perspec-
tiva de “guerra às drogas” se consolida como a ideia de um fetiche, isso
é: um recurso ideológico que oculta às bases que assentam a produção
e a reprodução de desigualdades e inseguranças (SCHERER, 2017). A
construção ideológica da ideia de um “inimigo” na “guerra às drogas”,
cria uma cortina de fumaça que oculta às raízes dos reais impactos da
desigualdade social e da precarização de vidas em uma sociedade guiada
sob a égide do capital. Neste sentido, Karam (2015, p. 37) aponta que:

“A guerra às drogas” não é propriamente uma guerra contras as


drogas. Não se trata de uma guerra contra coisas. Como quais-
quer outras guerras, dirige-se sim contra pessoas – os produtores,
comerciantes e consumidores das substâncias proibidas. Mas, não
exatamente todos eles. Os alvos preferenciais da “guerra às drogas”

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são os mais vulneráveis dentre esses produtores, comerciantes e
consumidores. Os inimigos dessa guerra são os pobres, os margi-
nalizados, os negros, os desprovidos de poder, como vendedores
de drogas do varejo [...], ou aqueles que se assemelham, pela mes-
ma cor de pele, pelas mesmas condições de pobreza e marginali-
zação, pelo local de moradia que, conforme o paradigma bélico,
não deve ser policiado como os demais locais de moradia, mas sim
militarmente “conquistado” e ocupado.

A análise de Karam (2015) demonstra, de forma nítida, a concep-


ção fetichizada presente no discurso de “guerra às drogas”, enquanto uma
ação seletiva direcionada para alguns sujeitos com evidentes recortes éti-
co-raciais, geracionais e de classe. A dinâmica do tráfico de drogas não se
restringe as regiões empobrecidas, uma vez que os operadores do tráfico
de drogas e armas, que atuam no atacado, lavando dinheiro no mercado
financeiro internacional, não são filhos da pobreza (SOARES, 2006):
muitas vezes pertencem à classe dominante, sendo protegidos de múlti-
plas formas pelos mecanismos da impunidade produzidos pelas normas
do Estado Burguês (SCHERER, 2018). Porém, a face do Estado Penal,
se volta para a pobreza, criminalizando segmento sociais que vivenciam
com maior intensidade a precarização de todas as duas dimensões de
vida. Como afirmam Zaffaroni e Batista (2011), é sobre os pobres que
recai a fúria persecutória do Estado: em torno destas pessoas se estabelece
um cordão de isolamento, de forma a promover a higienização social. A
lógica seletiva do punitivismo é comentada pelos participantes do estudo
em diversos relatos orais, como pode ser percebido nos extratos dos re-
latos orais de Menor (19 anos) e um dos profissionais que atuam com as
políticas públicas nesses territórios:

– Tem diferença no bairro, né? [...] Tem toda a diferença de uma


abordagem no Moinhos de Vento e uma na Lomba do Pinheiro.
Às vezes eles querem até saber o que tu tá fazendo lá né? Se tu tá
roubando ou fazendo alguma coisa. Mas alguém que mora lá nem
toma, nem sabe o que é uma abordagem. [...] Pra quem não mora
na favela e tem dinheiro, a maconha é legal no Brasil. Mas pra gente
que é preto e mora na vila, é ilegal… Apanha, qualquer coisa, só por
só tá ali. Mas pra quem é rico, pra quem tem dinheiro, já é legal no

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país, assim. Por que o pessoal passa batido né? [...] Até no Moinhos de
Vento, pra esses lados aí, o pessoal fuma na frente do apartamento,
senta no cordão na frente e fuma, não dá nada. No hotel chique,
tu vais nos ‘hotel chique’, muito perfume, muito cheiro do local
pra ocultar outros ‘cheiro’, porque o pessoal fuma na cara dura.
Já trabalhei em hotel já, e algumas coisas eu vi (Menor, 19 anos).
– A violência policial também aparece dentro do território. É um
território pobre, negro... Então quando se tem adolescentes que
tem características pobres, com a característica de alguém periféri-
co, negro, homem, ele provavelmente vai sofrer alguma abordagem
e nessa abordagem ele pode ou não sofrer violência e isso aparece em
vários relatos dos adolescentes que a gente atende (Profissional 3).
 
A reflexão do jovem Menor (19 anos) faz um paralelo entre dois
territórios da cidade e Porto Alegre, o bairro Moinhos de Vento, co-
nhecido por ser uma área nobre da capital gaúcha e o bairro Lomba do
Pinheiro, se constituindo como um território que concentra um alto ín-
dice de vulnerabilidade social, demonstrando bem as diferentes posturas
com relação ao enfrentamento à drogadição. A “guerra às drogas” volta
as suas forças para territórios marcados pela pobreza, não contemplando
a complexidade das relações mercantis do tráfico na sociedade brasileira e
contribuindo com os discursos de criminalização da pobreza e ampliação
de estigmas para pessoas que residem nos territórios periféricos das cida-
des brasileiras. Tal constatação pode ser observada na fala do Profissional
3 que relaciona a condição de classe social, raça1, gênero e geração como
elementos que poderiam contribuir para a violência policial.
Observa-se recorrência nas falas dos moradores das comunidades
no que se refere à seletividade das ações dos órgãos de segurança púbica
e seu caráter indiscriminado, caracterizando todas as pessoas da comu-
nidade como sujeitos vinculados à criminalidade, em especial, ao tráfico
de drogas. Como aponta Baratta (2003), o problema da droga assume a
forma da relação entre ricos e pobres, sendo que aos jovens consumido-
res das classes médias e altas “se aplica o paradigma médico, enquanto
aos jovens moradores das favelas e bairros pobres se aplica o paradigma

1 Acerca do debate da relação entre racismo e juvenicídio será aprofundada no capítulo


9 do presente livro.

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criminal” (BARATTA, 2003, p. 23). Essa construção de paradigmas,
relatados em diversas falas dos participantes da pesquisa, foi ampliada
com a aprovação da Lei n. 11.343/2006 que, dentre outros dispositivos
legais, prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e re-
inserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas
para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas.
Conforme refere o Profissional 6 em um dos seus relatos:

– [...] a nossa lei é cruel né? A lei do tráfico de drogas ela diz que
tu tens que estar em território reconhecidamente de tráfico, tem
que ter uma quantidade razoável do entorpecente, tem que ter
uma grana também para dizer que tu estava traficando e etc. Poh,
o cara mora na Lomba do Pinheiro, está com 70 gramas de ma-
conha e R$200,00 no bolso, ele é traficante, entendeu? Só que, se
eu saio do Iguatemi, com as mesmas 70 gramas de maconha, com
R$1.500,00 no bolso, eu sou consumidor. É dispare isso. Mas ele
está envolvido com droga, ele foi até lá buscar droga. Mesmo que
seja consumidor e etc, ele corre risco (Profissional 6).

A fala do profissional demonstra, de forma nítida, como o puni-


tivismo presente na estrutura das instituições de segurança pública se
reveste de uma forma seletiva voltada para a criminalização da pobreza.
A Lei de Drogas, comentada pelo profissional 6, apesar de avançar em
alguns princípios legais fundamentais no que se refere a necessidade de
estar apoiada na perspectiva dos direitos humanos – elemento, muitas
vezes, desrespeitado no que se refere ao tratamento as populações mais
empobrecidas; possibilitou a catalisação do processo de seletividade pe-
nal2. Carvalho (2013), ao analisar a referida lei aponta diversos aspectos
contraditórios e lacunas, chamados pelo autor de vazios da legalidade.
Um desses vazios refere-se à diferenciação entre consumo e tráfico
de drogas, conforme disposto no artigo 28, § 2º da legislação que refere
que para determinar se a droga se destinava ao consumo pessoal, o juiz
atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e
2 Observa-se que um dos resultados da lei de drogas foram o encarceramento em massa
de jovens pobres e negros acusados de tráfico de drogas. Mais sobre os impactos da
lei de drogas ver em CARVALHO, S. A Política Criminal de Drogas no Brasil. São
Paulo: Saraiva, 2013.

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às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e
pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. Embora
o dispositivo legal seja destinado ao juiz, sabe-se que a primeira agência
de controle é a polícia, sendo que a legislação, em vez de definir precisa-
mente critérios de imputação, prolifera (meta)regras que se fundam em
determinadas imagens e representações sociais de quem são, onde vivem
e onde circulam traficantes e consumidores (CARVALHO, 2013).
O desenho institucional da Lei de Drogas brasileira e o paradigma
proibicionista mostra-se inefetivo no combate ao tráfico de drogas, pois
centraliza a atuação nos territórios pobres, onde se encontram pequenos
traficantes, facilmente substituídos; bem como se mostra prejudicial para a
saúde pública, seja por permitir o encarceramento dos usuários e contribuir
com a difusão da violência (MIRANDA e PAIVA, 2019). O resultado mais
imediato desse dispositivo legal não foi reduzir as violências na sociedade
brasileira, pelo contrário, foi de ampliar o encarceramento em massa de
jovens, pobres e negros como pode ser observado em diversos estudos sobre
o tema, isso é: ampliar a perspectiva do histórico Estado Penal brasileiro
voltado para as massas empobrecidas, superlotando o caótico, violador e
ineficaz sistema carcerário brasileiro. O próximo item do presente capítulo
pretende analisar com maior profundidade os múltiplos aspectos que com-
põe a violência estatal vivenciada pelas juventudes nesses territórios.

Violência Estatal e Punitivismo: a ‘cortina de fumaça’


das raízes da violência estrutural

A seletividade do Estado Penal e a criminalização da pobreza são


elementos constituintes de um complexo social que, de fundo, são fun-
cionais a manutenção da grande indústria do tráfico internacional de
drogas, que movimenta somas estratosféricas, enquanto prende e mata
segmentos sociais empobrecidos que estão da base na cadeia produtiva
do mercado de drogas. A funcionalidade desse complexo sistema é muito
bem analisada por Baratta (2003, p. 25) quando refere:

[...] a centralidade da droga na formação do estereótipo da crimi-


nalidade faz desta um alimento formidável para o alcance social e

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para as campanhas de lei e ordem; e o alarme social e as campanhas
de lei e ordem são, por sua vez, um instrumento indispensável de
legitimação do sistema de justiça criminal. São, também, um ins-
trumento para a tecnologia do poder para o sucesso dos governos e
dos políticos conservadores. O “mito da droga” aumenta o quinhão
eleitoral da ilusão de segurança que esses governos e esses políticos
vendem com a ajuda massiva dos meios de comunicação. De tal
modo, a economia da droga, além de ser elemento de legitimação
do sistema criminal, é também, através desse sistema (mas não so-
mente dele), um elemento da economia política do poder.

A constituição dos estereótipos de criminalidade que operam a


partir da criminalização da pobreza, se constituem como uma importan-
te construção ideológica que gera uma cortina de fumaça para as raízes
de uma violência estrutural, constituída pela questão social. Utilizado
como elemento de manipulação de massas com um viés político neo-
conservador, tal construção contribui para a manutenção da crimina-
lidade e a ampliação dos índices de mortalidade juvenil nos territórios
empobrecidos. Utilizando uma racionalidade científica insustentável e
casos isolados que produzem forte apelo emocional, busca-se fortalecer a
ideologia liberal de “culpabilização do indivíduo” (MIRANDA e PAIVA,
2019), sendo que a superficialidade da análise desse discurso se torna
funcional para manter intacta a ordem social que se produz a partir da
desigualdade social e impõe um (pseudo)consenso que legitima a violên-
cia que recai sob esses segmentos sociais.
Diante desse contexto, tanto o debate acerca da produção da desi-
gualdade social, quanto a retração do Estado em suas responsabilidades
em relação a proteção social, ficam de fora de discussões e pressões da
sociedade. Em seu lugar, se consolidam reflexões e apelos punitivistas.
Tais construções sociais, potencializadas por discursos midiáticos e am-
plificadas por alas conservadoras, estão presentes em diversos espaços e,
muitas vezes, reproduzidas nas ações do Estado por meio das aborda-
gens policiais. Observa-se enquanto categoria emergente da pesquisa o
despeito acerca das ações policiais, presentes na maior parte dos relatos,
sendo que 87% dos moradores dos territórios entrevistados (jovens e
familiares), afirmam não confiar e não se sentir seguros diante da polícia.

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Os relatos orais dos jovens Japa, Menor e Wakanda ilustram a violência
policial percebida na comunidade.

– Eu não gosto de polícia. Pelo fato de eles serem abusados, eles


serem... Só por que eles acham...[...] Eles acham que podem fazer
o que quiser com a gente, né? Amigos meus, muitas vezes... Eles
pegavam, revistavam, “Ah não, agora a gente vai dar uma ban-
da”... E... Nessa banda, eles levavam pra um lugar esquisito, quebra-
vam eles... (Japa, 20 anos).
– O que acontece de vez em quando é “Ah, ‘vamo’ dá uma vol-
tinha né”... A voltinha é inevitável. Vai falar o que? Vai chamar
a polícia? [...] Já aconteceu de eu correr também da “voltinha”.
“Vamo dá uma voltinha” e o cara sai correndo lá: “Me pega en-
tão”. Deu certo. Corri. Mas não fui nessa voltinha não. Tô legal.
[...] Essa voltinha às vezes tu nem volta da voltinha. Se eles tão
espinhado, bem espinhado, vezes tu nem volta. [...] Geralmente
por ser moda, a gente tem cabelo grande né, e polícia ‘corta’ cabelo
com faca… “Ah vocês querem ser ‘cabeludinho’ e cortar com faca
mesmo. Dá choque. Várias vezes vários desmaiaram de molhar os teus
pés e te dar choque. Que brincadeira, que idiotice, é essa, né? [...]
Hoje em dia eles não ‘tão’ nem aí com nada. Vai reclamar com
quem? Eu acho que eles por ser polícia tá aí… te dá na tua cara
e ainda te pergunta “Vai reclamar pra quem?” “Quer falar o que?”.
Entendeu? E o bicho pega mesmo (Menor, 19 anos).
– Eu ‘tava’ saindo do colégio. Aí disse que teve um tiroteio na rua
de cima e tinha uma ‘gurizada’ correndo. Como eu não fiz nada, eu
não vou correr. Eu caminhei. Daí desceu o carro da brigada, assim,
o camburão. Aí começaram a chamar cada um nas ‘rua’ ali, botaram
só… só pra jogar a pessoa ali no paredão. Às vezes a pessoa não teve
nada a ver com isso, ‘tava’ até no mercado, entendeu? Botaram tudo
no paredão. Aí eu fui uma das pessoas que eles botaram também.
Eu ‘tava’ na parada e eles botaram no paredão. Aí começaram a
perguntar nome, documento e tudo… E eu ‘tava’ com meus docu-
mentos, né? Recém tinha saído do colégio, comprovei que recém
tinha saído do colégio, né? E daí um guri começou a rir lá, nesse
meio do paredão aí, aí acharam que fui eu e eu tomei um chute na
perna. Entendeu? Aí, bah… Aí só depois eles soltaram, tiraram a
gente do paredão e mandou cada um seguir pras suas casas. Isso eu
fiquei com a perna machucada. Ah, doeu. É porque naquele tempo eu
era menor, entendeu? Eu tinha doze anos (Wakanda, 20 anos).

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Os relatos de violência policial e abuso de autoridade se constituí-
ram em um elemento muito presente em diversos relatos dos morados
dos territórios. As falas ilustram grandes violações de direitos humanos
com o relato de violências físicas, estratégias de torturas como choques
elétricos e cortes de cabelo com facas, bem como, indicações de possíveis
violências letais provocadas pelos agentes de segurança. Observa-se que
tais ações de truculência, segundo o relato dos moradores, acontecem
com frequência, sendo que a maior parte dos jovens entrevistados relata-
ram abordagens com violência iniciadas no final da infância e início da
adolescência. Neste sentido, a maior parte dos entrevistados relatou que
a suas primeiras abordagens policiais que sofreram ocorreram entre 10 e
13 anos de idade.
Os relatos de tortura e violência deixam nítidos os resquícios do
modus operandi da Ditadura Militar que ainda persistem em ações fora
da legalidade provocadas por alguns agentes de segurança pública nesses
territórios. As raízes históricas desses processos se mostram consolida-
das muito antes da ditadura brasileira tendo assento na conformação
sócio-histórica de um país escravocrata e de capitalismo dependente.
Processos esses que são amplificados por um complexo social saturado de
múltiplas determinações que deságuam em posturas reprodutoras da vio-
lência em relação as classes mais empobrecidas. Conforme os estudos de
Misse (2011) a violência policial se constitui como uma resposta política
às demandas por segurança da população que reivindica mais “firmeza”
na repressão aos grupos concebidos como causadores da “violência ur-
bana”. Contudo, sua baixa efetividade fomenta a descrença nos modelos
democráticos de resolução de conflitos e acaba por incentivar práticas
extralegais de justiçamento. Tais formas de violência adquirem diversas
particularidades, como por exemplo, a violência de gênero conforme de-
monstra o relato tanto de Fernanda (24 anos) quanto de Japa (19 anos):

– Então, “tava” eu e ela [irmã], a qual, né, a polícia entrou dentro


da vila [...] Assim, a qual eu me esquivei e meio que eu me “as-
segurei” na minha irmã. E, nisso, eles nos pararam, pediram pra
nós botar a mão na cabeça, a qual a gente ‘botei’. Pediram pra
nós virar e ir pra parede que eles iam fazer uma revista em nós.
Não tinha “brigadiana”, foi os próprios policiais que nos revistaram,

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coisa, né, que não pode, né? O certo seria uma “PM”, né, nos
revistar, não os “PMs”, né? Pelo fato, né, que a gente é mulher, eles
são ‘homem’, e não teve nada disso. E aí, a qual eles perguntaram:
Ah! Por que vocês tão sempre por aqui? Não! Não é que a gente
tá sempre por aqui. A gente mora aqui. Eu tinha um dinheiro e
eles me perguntaram: Ah! De quem é esse dinheiro? Não! Esse
dinheiro é meu, eu trabalho, eu tenho uma carteira assinada. Não,
mentira! Vocês são vagabunda! A qual eles, né, nos agrediram, né?
Verbalmente... assim... com essas palavras: Vagabunda! [...] Mas já
tomei, assim, outra abordagem, assim, no caso… Foi essa e uma
outra, em outro momento, também, mas daí já foi mais tranquila,
assim, mas também não tinha “PM”, que isso seria o certo. Foram
os próprios “PMs”, a qual, né, passaram já a mão no meu corpo,
né, de uma forma mais intensa, assim, no caso, né? [...] Me senti
desrespeitada da forma, a qual eles me revistaram e botaram a mão
no meu corpo. [...] E não só eu, né? Outras meninas... [...] Se tiver
como, tu vai escutar outras histórias, talvez até mais piores do que
essa que eu tô te relatando, no caso. (Fernanda, 24 anos).
– Eu já tomei vários “paredão”, vários, não foi um, nem dois, foi
vários. E... já fui abordada por um policial... ele me revistou... coisa
que não deve...querendo ou não eu ainda sou mulher. Porque eu
ainda tô na minha fase de transição, porque eu sou um homem trans,
então eu falei pra ele: olha só, eu ainda sou mulher, então eu acho
que não poderia “tar” me revistando, tu poderia “tar” chamando
uma outra... uma outra ronda que tivesse alguma mulher vim me
revistar. “Ah, mas cala a boca!” E já saiu me agredindo. E eu acho
que as coisas ruim mesmo é a polícia e a falta de educação, né...
(Japa, 19 anos)

Os relatos acima evidenciam a violência de gênero mobilizada pelas


abordagens, com a reprodução de condutas com fortes traços patriarcais,
misóginos e transfóbicos. O artigo 240 do Código de Processo Penal
ressalta em seu § 2o que a busca pessoal só deva ocorrer quando houver
fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida, objetos
achados ou obtidos por meios criminosos, instrumentos de falsificação
ou contrafação, entre outros indícios. Nesse sentido, conforme debatido
anteriormente, os moradores dos territórios investigados referem que à
condição de ser morador desses territórios já os coloca, na perspectiva das
abordagens policiais em uma direção punitivista, como suspeitos dian-

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te dos dois fronts estabelecidos na “guerra às drogas”, vivenciando com
constância abordagens policiais.
O artigo 249, por sua vez, determina que a busca em “mulher será
feita por outra mulher, se não importar retardamento ou prejuízo da dili-
gência”. Nesse sentido, o dispositivo legal indica a necessidade de a abor-
dagem ser realizada por pessoa do mesmo gênero, sendo que essa regra
deve ser descumprida, somente, em casos em que possa haver prejuízo
da diligência, isso é: diante de uma suspeita eminente. Novamente, pelo
viés punitivista, a condição de classe social e residência nesses territórios,
abre possibilidade para a compreensão que sempre haverá prejuízos a
diligência, sendo que, diante da escassa presença feminina3 nas institui-
ções de segurança pública, a abordagem seja realizada constantemente
por homens. Acima de tudo, o relato de Fernanda (24 anos) quando
afirma que durante a abordagem “passaram a mão em seu meu corpo de
uma forma mais intensa”, pode indicar a violência sexual vivenciada na
abordagem, além das agressões verbais, podendo ser classificadas como
crime de injúria.
O jovem Japa (19 anos) relata suas vivências como homem trans
na comunidade e as violências vivenciadas em seu cotidiano, em seu rela-
to é possível perceber o desrespeito com relação o momento de transição
de gênero. Como refere em seu relato ao tratar de abordagens policiais
quando destaca “Eu já ouvi. Ah! É homenzinho vai apanhar que nem
homem! Vai ser abordado que nem homem”, relato esse que revela as
ameaças físicas e agressões verbais de forma transfóbica. Conforme a De-
fensoria Pública (BAHIA, 2019) no caso do homem trans, em caso de
possuir sexo biológico feminino, deverá o mesmo ser consultado sobre a
forma de revista mais adequada para si, também em respeito à sua digni-
dade e ao seu direito em se identificar como do gênero masculino, bem
como para preservar sua própria segurança.
Diante do exposto, contata-se que as trajetórias juvenis são marca-
das são marcadas por inúmeras violações de direitos de diversas nature-

3 Conforme afirma Calanzans (2004) no Brasil, a filosofia tradicional de policiamento


é movida pelo espírito belicoso do Exército Nacional e por ideologias machistas, assim,
o tratamento para a inserção de mulheres nos quadros das polícias dá-se de uma forma
muito limitada e com pouca visibilidade.

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zas, com nítidos recortes com relação a particularidades de raça e gênero,
os quais, são mobilizados pela condição de classe social, por meio do pa-
radigma de criminalização da pobreza. Essa realidade também é relatada
por meio dos registros orais dos profissionais que atuam nos territórios,
como pode ser observado nas falas abaixo:

– [...] a gente tem alguns jovens que vão sofrer essa violência
física, daí tô falando até mesmo da violência policial, que às vezes
é uma violência física: de cortar cabelo com facão, de outras ques-
tões que vão trazer essa violência (Profissional 3).

– [...], tem aquele cara (o policial), que chega abruptamente, que


dá um pontapé no peito do jovem, na frente de uma escola, que não
faz uma abordagem correta, que pega o jovem sozinho em uma rua
e que arranca os cabelos do jovem com uma faca. Tivemos situações
como essa, do policial ter raspado a cabeça do jovem com uma
faca, um jovem que não estava vinculado efetivamente com a função
do tráfico, mas que, simplesmente porque ele falou alguma coisa
na hora da abordagem que o policial não gostou, [assim como]
temos jovens assassinados por polícias no território, dentre várias
outras situações, como omissões de várias formas em relação à
polícia (Profissional 2).

– A gente tem muito relato de ações truculentas, de ações... to-


talmente fora, né, de tortura, de ameaças… muitas vezes os jovens
estão numa situação de ameaça pelos policiais não só pelos seus... con-
tras… vamos dizer assim, né... [...] O que chega até nós são as
situações de violência, de tortura, enfim, de uma serie de violações de
diretos desde as abordagens policiais, né… que são mal conduzidas
e que nem chegam a virar um boletim de ocorrência, por exem-
plo,  bom tá traficando, tá fazendo algo errado, ele tem que ser
responsabilizado por aquilo, né…. mas nem se chega a esse ponto
assim... a polícia bate, espanca, rouba droga, roubas os tênis e manda
andar, né… e na semana seguinte tá lá de novo. Acho que é uma
coisa que se retroalimenta assim… (Profissional 5).

Os relatos de violência policial, enquanto uma ação ilegal reprodu-


zida pelos agentes de segurança pública está presente em diversas entrevis-
tas revelando um cotidiano repleto de múltiplas violações de direitos. Os

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moradores desses territórios estão diante de um campo minado, diante de
dois fronts em uma guerra que deixa marcas de forma objetiva e subjetiva
em suas relações sociais. Como observa o jovem José, de 16 anos, quando
destaca que “Aqui parece que estamos sempre em uma guerra”.
Assim, o que se observa é que, há, nestes territórios, de um lado
a dinâmica do tráfico de drogas, com suas disputas por territórios e
relações violentas entre as facções e, de outro, uma abordagem poli-
cial que se distancia da perspectiva da segurança pública como direito,
se valendo, em muitas situações, de condutas ilegais, as quais, tratam
todas as pessoas que compõe o território como inimigos. Do exposto,
constata-se que a segurança pública como um bem de todos, enquanto
direito e aspecto de proteção, se constitui como um ideal distante para
esses sujeitos. Neste sentido, Novaes (2009) coloca em destaque que as
desigualdades e inseguranças atingem particularmente os jovens desta
geração, gerando necessidades e demandas resultantes dos efeitos de
políticas neoliberais socialmente desagregadoras, sendo essa, uma gera-
ção diretamente atingida pela perversa combinação entre a truculência
do tráfico de drogas ilícitas, a intensificação do comércio de armas e a
violência policial.
Os relatos orais na etapa qualitativa da presente investigação vão
ao encontro de diversos estudos nacionais e internacionais4 no que se
refere à lógica da criminalização da pobreza, especialmente voltada
para a juventude. A experiência social das juventudes participantes da
investigação se relaciona também com os dados da pesquisa de Anun-
ciação, Trad e Ferreira (2020) que analisou o fenômeno da violência e
outros indicadores de vulnerabilidade social que acometem a juven-
tude (15 a 29 anos) da região Nordeste do Brasil, onde, anuncia-se a

4 Conforme análise de Ferreira, Fontoura, Aquino e Campos (2009) a literatura na-


cional e internacional aponta a tendência que os jovens do sexo masculino tendem a
despertar a suspeita policial, sendo que, além das questões de gênero e etárias, há uma
potencialização dessas suspeitas com fortes traços étnico-racial na perspectiva de abor-
dagens mais agressivas. Os autores citam a pesquisa “Abordagem Policial, Estereótipos
Raciais e Percepção da Discriminação na Cidade do Rio de Janeiro”, realizada com
policiais e jovens daquela cidade em 2003 e 2004, bem como estudos sobre vitimização
realizada na Inglaterra que verificou que os jovens são mais parados pela polícia e, entre
os abordados, são mais revistados.

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prevalência no “universo pesquisado a percepção de que ‘o homem de
farda’ representa insegurança e desperta os sentimentos mais fortes de
medo e de revolta”.
Observa-se ainda que a percepção da juventude pobre e negra,
moradora de territórios com altos índices de violência letal, acerca da
polícia, tanto na região Nordeste como Sul do país permanece a mesma:
distanciada da lógica da proteção. Nessa conjuntura, em um contexto
repleto por ausências de direitos sociais, em meio aos fronts de uma guer-
ra cotidiana, a população sente-se totalmente desprotegida, vivenciando
o cotidiano da mortalidade e da violência de forma constante. É nesse
contexto de desproteção e de presença violenta do Estado que o tráfico
de drogas acaba ganhando legitimidade, configurando-se como uma al-
ternativa que, ao mesmo tempo, protege e desprotege, sendo uma das
únicas possibilidades de “segurança” que a população moradora desses
territórios possui, como pode ser observado nos seguintes relatos da jo-
vem Cachinhos e do Familiar 3:

– Lá onde eu morava eles respeitavam bastante os moradores, né,


“tipo”... Que se acontecesse alguma coisa, tu chegava lá e falava pra
eles, eles faziam “a lei” deles, né? Mas eles, pelo menos, respeitavam
bastante os moradores que moravam ali, eles conheciam… Se acon-
tecia uma coisa era só tu chegar e falar pra eles, entendeu? (Cachi-
nhos, 16 anos)

– [...] Aí, vamos supor, eu moro próximo de um tráfico. Acontece


de pegar fogo na minha casa, ou de roubarem a minha casa, ou de
violência doméstica, ou de violência contra um idoso ou alguma
coisa, eu chamo a polícia, eles não vão me atender, porque tem o
tráfico do lado. Eles não vão querer se indispor contra. Aí eu vou
ficar… no caso, eu como moradora, vou contar com a ajuda dos
traficantes e não da polícia… Que a polícia não vai pra me salvar,
ela vai pra me punir “Por que tu mora aqui?” “Por que tu…” Não
sabe se eu tenho condições de sair ou não, né? Acontece muito as-
sim. De… Escuto vários relatos de conhecidos meus que moram
próximo, que não podem chamar a polícia porque ou os bandidos
ficam brabos e botam a pessoa a correr e, realmente, a polícia não
vai né. [...] o pessoal da minha rua não podia chamar a polícia pra
um roubo de gás… violência doméstica, que aconteceu… “Não,

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não chama a polícia, que vai estragar pro lado deles” Né? E de a
pessoa pegar e “Não, eu vou chamar, porque eu tô apanhando.
Não pode. Meu marido tá louco” ou sei lá… Chamar a polícia e
a polícia não ir. Aí tem que pegar, baixar a cabeça e ir lá falar com
o patrão, e o patrão pegar e tomar a atitude dele né? De roubo de
casa. Não poder chamar, tipo… Tu ter que ir falar com o patrão
do tráfico [...] Eu vou te dizer bem sério, eu era mais protegida por
eles, do que pela própria polícia. (Familiar 3)

Os dois relatos apresentam diferentes perspectivas da mesma


realidade ao refletirem acerca da ausência da proteção social e presença
violenta dos aparelhos de segurança pública, demonstrando os impac-
tos de vivenciar um cotidiano entre os fronts de uma guerra. A fala de
Cachinhos (16 anos) evidencia a presença de um medo constante na sua
circulação no território em razão da presença do tráfico de drogas e das
relações violentas existentes em suas práticas, ao mesmo tempo, reconhe-
ce que os traficantes respeitam a comunidade, sendo que, para a jovem
entrevistada os agentes de segurança pública não exercem esse respeito.
Durante a entrevista ao ser indagada do que seria esse respeito, a jovem
relata relações de cordialidade nas relações cotidianas e no atendimento
as demandas das comunidades como evitar assalto, levar as pessoas da
comunidade ao médico ou atendimento a outras urgências. A fala do
familiar 3 relata as lacunas no atendimento as suas necessidades como
moradora do território, revelando um cotidiano marcado pela falta de
proteção social, tanto no âmbito da segurança pública, como também,
diversas outras demandas; evidenciando a presença do Estado na pers-
pectiva da punição e não da proteção.
Diante da postura do Estado, em um viés neoliberal, mais pre-
sente em sua dimensão punitiva do que em sua função de proteção so-
cial, o tráfico de drogas ganha terreno e legitimidade, tanto pelo viés da
força – com relação à forma violenta que estabelece suas normas, mas
também pela via do atendimento pontual as demandas da comunidade,
estabelecendo relações contraditórias, ao mesmo tempo de medo e de
confiança, com relações mais orgânicas que os aparelhos de segurança
pública. Ressalta-se que em todas as entrevistas, tanto jovens como fami-
liares, demonstram desconforto ao terem algumas demandas atendidas

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pelo tráfico de drogas, como refere o Familiar 1: “Não temos com quem
contar, o que vamos fazer?”; evidenciando a falta de alternativas frente a
retração Estatal. O relato do profissional 2 é emblemático ao apresentar
a seguinte situação:

– Dentro desse contexto, eles vivem a violência de várias formas,


como a violência policial, por exemplo. Inclusive, temos jovens que
entraram no mundo [do tráfico de drogas], porque viveram violência.
Jovens que frequentavam o espaço, mas não eram vinculados ao
tráfico, pois foram tão maltratados pelo sistema, que acabaram se vin-
culando, “já que sou [o jovem] visto como bandido, agora eu vou ser
mesmo”. E isso é muito difícil de desconstruir essa imagem, pois
esses jovens têm uma personalidade forte, pois é muito mais fácil
confiar no que lhes é conhecido e em si próprios do que em algo
que precisaria ser construído, que é desconhecido. E essa dureza
se torna algo tão corriqueiro e natural que é difícil enxergar outras
possibilidades (Profissional 2).

Como pode ser observado no relato oral do profissional, a violên-


cia policial se constitui como o estopim, resultante do estigma vivencia-
do pela juventude, no diz respeito à inserção no mercado do tráfico de
drogas. O relato acima evidencia muito bem o que Sales (2007) refere
como (in)visibilidade perversa, isso é: a arma ou o delito pode se consti-
tuir no passaporte para a visibilidade que se tem negado, constituindo-se
em gritos que clamam por necessidades que não são atendidas. A repro-
dução de estigmas e de uma violência manifestada de inúmeras formas,
por meio da dimensão punitiva do Estado, acarreta o fortalecimento do
mercado do tráfico de drogas, sendo que, no âmbito dessa guerra a popu-
lação moradora vive em fogo cruzado, com grande dificuldade de acesso
aos seus direitos sociais, em especial, o direito à segurança.
Evidentemente, no âmbito desse debate, é necessário considerar
as instituições de segurança pública como espaços complexos e contra-
ditórios, a fim de não cair em armadilhas dualistas na análise dessa rea-
lidade. É preciso compreender, sem abortar o complexo de contradições
presente nesse fenômeno, que o agente de segurança pública – policial,
se constitui em um trabalhador que vivencia intensamente um contexto
de precarização do mundo do trabalho no âmbito da política de seguran-

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ça pública, sendo influenciado por uma cultura institucional punitivista
que o leva a crer na ideia de “caça a inimigos” com determinado “perfil”,
sem o necessário questionamento do complexo processo que é tecido
para sua construção enquanto “inimigo” no âmbito da realidade social
no qual este está inserido.
Neste sentido, tem-se que também os profissionais da segurança
pública têm sofrido todo o tipo de violação de seus direitos como traba-
lhadores e cidadãos (SOARES, 2015), inscritos em processos de brutali-
zação das polícias que, com níveis baixíssimos de qualidade de vida têm a
tarefa de massacrar os próprios irmãos (BATISTA, 2015), diante de uma
crescente demanda punitivista fomentada midiaticamente e alimentada
pelo pensamento neoliberal e conservador. O resultado desse processo é
visível tanto por meio da ampliação nos índices de juvenicídio nos terri-
tórios, como também, pela ampliação da mortalidade dos trabalhadores
de segurança pública, sendo que, segundo os dados do Anuário de Segu-
rança Pública (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA,
2020), a polícia brasileira é a que mais mata e mais morre no mundo.
No ano de 2020, segundo o relatório foram 716 policiais mortos
no Brasil e os motivos das mortes variam: confronto em serviço, con-
fronto na folga, suicídio e, aparecendo pela primeira vez como causa de
mortes de policiais, a Covid-19. Também se observa a partir do referido
relatório que houve um aumento das mortes de policiais civis e militares
em decorrência de Crimes Violentos Letais Intencionais, em serviço e
fora de serviço, aumentaram 12,8% em 2020 em relação ao ano anterior.
Importante observar a permanência da dinâmica do racismo estrutural,
também, na vitimização letal de policiais, uma vez que, conforme o Anuá-
rio de Segurança Pública (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA
PÚBLICA, 2020) morrem mais homens negros com idades entre 35 e
39 anos (21,8%), vitimados por arma de fogo (85,2%). Diante desse
cenário, é possível afirmar que a concepção bélica de “Guerra às Drogas”
vem sendo pouco útil para o enfrentamento ao narcotráfico, mas muito
útil para o descarte de vidas humanas tanto da juventude e moradores
das comunidades mais empobrecidas, como dos trabalhadores da área da
segurança pública que estão nos fronts dessa guerra, acarretando a am-
pliação do rastro de sangue da classe trabalhadora nas periferias brasileiras.

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O juvenicídio e a mortalidade policial são dois lados de uma mes-
ma moeda resultante de um processo complexo que envolve um Estado
Penal de escopo neoliberal, ausente em suas funções sociais, voltado para
a manutenção da histórica desigualdade social que alimenta um modo
de produção que lucra por meio da morte. Diante dessa realidade, mos-
tra-se importante compreender as inúmeras correlações de forças exis-
tentes no Estado, especialmente, no âmbito das relações institucionais,
enquanto espaços complexos e contraditórios que, ao mesmo tempo em
que reproduzem condutas que se relacionam a lógica da criminalização
da pobreza e a violência, também, se constituem num espaço importante
– em uma perspectiva contra-hegemônica – na direção do cumprimento
da ideia de segurança como um bem público que deve ser acessível para
todas as pessoas, como referem às falas dos profissionais 5 e 2.

– Claro que a gente não pode generalizar, existem bons policiais, a


gente já teve situações aqui de uma pessoa em surto psicótico de
uma pessoa que precisava internar e veio a patrulha e foi muito le-
gal, consegui conversar, fez todo o manejo e foi super tranquilo assim,
né? (Profissional 5).

– Então, temos essas iniciativas [de justiça restaurativa], que, em-


bora não sejam isoladas, ainda não conseguiram ganhar “um cor-
po” por causa dessa questão da cultura, do habitus que vive dentro
das corporações que ainda é tão difícil de se poder “entrar” . Então
há um desejo e algumas iniciativas que se enveredam para o lado de
uma segurança pública mais coletivizada, mas democratizada, mas
ainda se enxerga segurança pública muito nesse viés da repressão e,
dependendo dos nossos governantes, isso pode pender tanto para
um lado quanto para outro (Profissional 2).    

Isto posto, tem-se que os relatos acima evidenciam a presença de


distintas concepções no âmbito das instituições de segurança pública que
vão reverberar, diretamente, nas relações que são tecidas na comunidade
e nos acessos aos direitos. Na esteira do exposto, a reflexão dos profissio-
nais evidencia a importância de uma abordagem policial em uma pers-
pectiva comunitária, articulada com a rede de proteção social, como nos
termos do profissional 2, que “enveredam para o lado de uma segurança

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pública mais coletivizada, mas democratizada” dado que, transparece na
fala do participante da pesquisa o reconhecimento dos desafios que se
impõem entre o estabelecimento de paradigma protetivo em detrimen-
to do atual paradigma repressivo de “guerra as drogas”. Nesse sentido,
mostra-se fundamental a construção de uma ideia de segurança pública
que se vincule organicamente com a concepção de Direitos Humanos,
enquanto uma concepção oposta à ideia de segurança de forma crimi-
nalizatória da pobreza, que se materialize em ações cotidianas presentes
nesses territórios. Com relação a esse aspecto, o profissional 6, enquanto
trabalhador da política de segurança pública, reflete acerca dos desafios
para a materialização dessa concepção na realidade concreta.

– [...] a nossa política para territórios é de resolução de conflito,


não é de mediação e antecipação do conflito. [...] Eu faço policia-
mento no Iguatemi, o meu procedimento é X, eu faço policiamento
na Lomba, o meu procedimento é Y, porque eu mesmo sei que lá
matam 5 ou 6, que as pessoas andam armadas e que eu tenho
fatos que podem gerar risco a minha integridade física, então, eu
me caracterizo para entrar naquele território. Por quê? Porque eu
não estou presente no território, por que eu não conheço o ter-
ritório. Se eu conhecesse o território como tivemos depois, 4, 5,
6 policiais lá na Lomba que conheciam o território muito bem,
eles já transitavam de outra forma no território, já conversavam
com as pessoas de outra forma… Então, geralmente estes territórios
que são conflituosos não tem uma presença permanente da polícia e
também não tem atividades de rotina da polícia, somente quando dá
problema, quando eu tenho que prender alguém, quando eu tenho
uma denúncia bem específica de homicídio, de tráfico de drogas, de
roubo e etc., quando estou em perseguição. Aí eu chego naquele
território como? Para a guerra. E aí, talvez, esse jovem, que se
manifesta nessa entrevista, não conheceu o policial que estava lá
[no território] para fornecer segurança pública. Então, a grande
falha é sim, primeiro, numa meia culpa de treinamento, e segun-
do pela falta de convívio com aquela comunidade. Então isso gera
uma expectativa do jovem, negativa, por parte da polícia, por não
conhecer a polícia, e porque quando [ele] tem o contato com a
polícia, é desagradável (Profissional 6).

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O relato do profissional vai de encontro aos elementos já debatidos
no presente capítulo, no que se refere às condutas distintas conforme o
território da cidade e os impactos que tal distinção causa no distancia-
mento entre a política de segurança pública e os moradores da comuni-
dade. Além disso, evidencia a perspectiva da segurança pública voltada
para esses territórios, como ações pontuais na perspectiva da guerra, sem
estabelecimento de uma presença na direção da segurança pública como
bem universal. Com relação a esse debate, a investigação evidencia de-
safios importantes com relação à perspectiva da segurança pública nos
territórios que vivenciam com maior profundidade a dinâmica do juve-
nicídio, dentre eles, destaca-se dois elementos distintos e complementa-
res: a qualificação das ações de segurança pública nesses territórios e ma-
terialização concreto do direito à segurança como bem público universal.
Com relação ao primeiro desafio, no que se refere à qualificação
das ações de segurança pública nesses territórios, parte-se do pressuposto
da concretização do princípio legal que caracteriza o cerne da segurança
pública, que deve ser compreendida como um direito social que possa
gerar proteção às pessoas, conforme prevê o caput do Art. 5º da Cons-
tituição de 1988. Na esteira desse pensamento, mostra-se fundamental
o combate a perspectivas reificadas das relações sociais no âmbito dessa
política pública, que reduz a política de segurança pública como “defesa
da propriedade” em total detrimento a “defesa das pessoas”. Trata-se, nes-
se sentido, do enfrentamento a dinâmicas estruturais e estruturantes no
âmbito dessa política pública e envolve o combate ao Estado Penal, com
sua mão de ferro punitivista que criminaliza a pobreza, direcionando suas
ações para a construção de estereótipos com nítidas mediações de classe,
raça, gênero e geração. O desmantelamento dessa ideologia, funcional a
manutenção do status quo, se constitui em uma luta fundamental que se
relaciona diretamente ao enfrentamento da perspectiva neoliberal que
sustenta e retroalimenta essa lógica.
Evidencia-se, com isto, a necessidade de desfetichização dos discur-
sos presentes nos apelos midiáticos de massa, nos projetos neoconserva-
dores e antidemocráticos que compõe as tendências nunca superadas na
realidade brasileira. Nesse sentido, o embrutecimento das ações policiais
não pode ser deslocado de todo o complexo social que o gere, uma vez

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que, como quer Mena (2015) a violência policial é um reflexo da violenta
sociedade brasileira, que banaliza o assassinato e o racismo, sendo preciso
enfrentar a militarização ideológica da segurança pública, amplamente
tolerada e apoiada por grande parte da sociedade (KARAM, 2015).
O questionamento aos nítidos limites e ineficácia do Estado Penal,
de matriz neoliberal, se constitui em um elemento necessário de ser pro-
blematizado pelo conjunto da sociedade brasileira, porém, além dessas
dimensões estruturais5 que se relacionam ao conjunto da sociedade em
meio às disputas de distintos projetos societários, existem diversos outros
elementos necessários a esse debate. Uma das pautas envolve a qualifi-
cação da segurança pública, como política que deveria materializar um
direito social acessível a todas as pessoas.
Contudo, o direito à segurança pública só pode ser materializa-
do por meio da mediação concreta com os trabalhadores que atuam na
execução desse serviço público, sendo necessárias condições dignas de
trabalho tanto no que diz respeito a condições de trabalho, como na
formação permanente e qualificada na perspectiva da garantia de direi-
tos. No âmbito dessa discussão, observa-se no cenário brasileiro diversos
debates na direção da qualificação da Segurança Pública no país, que
encontram diversos desafios diante da correlação de forças entre a lógica
punitivista (constituída pela chamada “bancada da bala”) e perspectivas
de reformas mais profundas nas instituições que compõe a Segurança
Pública brasileira.
Neste sentido, Mena (2015) localiza duas grandes tendências no
debate de qualificação da segurança pública, sendo que a primeira diz
respeito à necessidade de reformas na arquitetura do sistema legal e das
instituições com propostas vinculadas a desmilitarização e unificação das
policias civil e militar, como a expressa na Proposta de Ementa Consti-
tucional 51. E, uma segunda que aponta para reformas gerenciais que
visem incrementar a eficiência dos processos valendo-se do choque de

5 Evidentemente tem-se nítido que em uma sociedade que se rege pela lógica do ca-
pital, esbarra-se em limites emancipatórios, sendo possíveis, unicamente, os avanços
da perspectiva da emancipação política, distante de uma real e efetiva emancipação
humana. O questionamento central, no âmbito desse debate, reside na forma pela qual
se estruturam as relações sociais calcadas na desigualdade social.

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gestão, na perspectiva de aumento de recursos e de pessoal, moderni-
zação das instituições, valorização da carreira e integração do trabalho
das duas polícias. Importante considerar que as duas tendências não são
excludentes, sendo possível avançar em reformas normativas e imple-
mentar reformas gerenciais (MENA, 2015).
Acerca da importância da qualificação desta política pública, o
profissional 6 ressalta a importância do investimento na inteligência
junto às políticas de segurança pública como um elemento que poderia
contribuir com a redução da mortalidade por meio de uma abordagem
policial mais estratégica, nos termos do Profissional 6 “nós precisamos de
estatísticos, de matemáticos, de cientistas de dados na polícia”. A impor-
tância do investimento no âmbito dessa política pública, especialmente
na direção da qualificação das ações policiais também se constitui como
um elemento presente nos relatos orais junto às comunidades, como
pode ser observado na fala da jovem Fernanda (24 anos),

– É, quem tem que melhorar, acredito, né, que... ali, né... vem a
questão política, no caso, que são as autoridades, né? Que tem,
né, que disponibilizar mais verba, capacitar melhor, no caso, os PM,
pra quando eles fazem uma abordagem, no caso. Aí, o que eles
teriam que fazer, eles teriam que, no caso, tratar melhor... tratar
melhor um apenado, tratar melhor um adolescente, no caso, né, que
cumpre uma medida socioeducativa. [...] As autoridades deveriam
de organizar, no caso, capacitar os PMs melhor, pra que eles não fa-
çam tanta violência com toda a comunidade, no caso. E as autorida-
des deveriam de fazer com que as pessoas que cometeram crime,
um delito, que, no caso, entendeu... que, a partir desse momento,
entendeu? Que elas não cometessem mais isso, entendeu? Que
eles também dessem uma oportunidade pra que eles sejem visto
de uma forma melhor (Fernanda, 24 anos).

A fala de Fernanda (24 anos) ressalta a necessidade que as ações


policiais possam comungar na direção oposta à lógica da criminalização
da pobreza, compreendendo a importância da qualificação desses pro-
fissionais vinculada à noção de Direitos Humanos. No âmbito desse de-
bate Miranda e Paiva (2019) afirmam que compreender a formação das
polícias como única e isolada alternativa de trazer contribuições efetivas

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no combate à violência e a seletividade policial no Brasil, retorna a visão
teleológica de sociedade em que a educação aparece como panaceia. O
enfrentamento a tais perspectivas só pode decorrer de um conjunto de
ações articuladas que integrem a valorização da carreira policial com in-
cremento salarial, apoio institucional adequado e um processo formativo
que invista na ruptura do paradigma repressivo e na desmilitarização da
polícia, bem como, o incremento de ações que sobreponham a inteli-
gência à força de combate ao crime, juntamente com o controle externo
e interno das ações (MIRANDA e PAIVA, 2019). A qualificação da se-
gurança pública só pode ocorrer dentro de um amplo aspecto, ou seja,
de uma série de ações na direção oposta de uma sociedade punitivista.
Porém, para isto, é necessário compreender a segurança pública não de
forma isolada a demais políticas públicas, pois, é nesse sentido que se
constitui o segundo desafio com relação à perspectiva de segurança pú-
blica, qual seja: da materialização concreta do direito à segurança como bem
público universal.
Contudo, diante de um cenário de ataque aos direitos sociais e
ampliação do pensamento neoconservador que alimenta concepção pu-
nitivistas, mostra-se necessário a compreensão que a segurança pública
só poderá se consolidar de forma articulada com as demais políticas pú-
blicas. No ano de 1994, o Programa das Nações Unidas para o desen-
volvimento – PNUD lança o Relatório do Desenvolvimento Humano,
que centra o seu foco no respeito a Segurança Humana. Tal documen-
to mostra-se um marco na compreensão ampliada de segurança, pois
busca substituir a lógica militar e repressiva, que embasava as ações de
segurança, introduzindo uma concepção que compreende que o cerne
da insegurança humana está vinculado com as diversas vulnerabilidades,
provocadas, também, pelas desigualdades sociais.
Este documento institui que a Segurança Humana deve possuir
algumas características fundamentais como: 1) a Segurança Humana
deve ser uma preocupação universal, devendo ser assegurada para todas
as pessoas de todos os países; 2) os componentes da Segurança Humana
são interdependentes, uma vez que os acontecimentos que ameaçam a
segurança (fome, epidemias, desastres ecológicos, narcotráfico, entre ou-
tros) não estão isolados, confinados em barreiras nacionais; 3) a garantia

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da Segurança Humana deve estar baseada na proteção; 4) a Segurança
Humana deve ser centrada no ser humano (PNUD, 1994).
Desta forma, tem-se que a segurança pública só se consolidará
quando compreendida como Segurança Humana, articulada em uma
perspectiva interdisciplinar e intersetorial de forma equitativa nos terri-
tórios, isso é: a luta pela segurança pública não se faz desassociada da luta
pelos demais direitos. Como observa o profissional 6 e 3:

– Nós, da segurança pública, não somos ninguém nos territórios.


Nós não temos condição alguma de alcançar segurança pública a
ninguém se todos os demais serviços não forem alcançados. Costu-
mo dizer que o cara que não foi atendido na política pública de
segurança, já não foi atendido na política pública do trabalho,
da assistência social, da educação e da saúde. Então, se quatro
políticas públicas falharam, até o cara cair na minha mão. Então
fica muito difícil ajustarmos essa dinâmica dentro de um bairro para
que a segurança pública consiga atender de forma humana, racional,
próxima e - usando a palavra da moda - humanizada, sem que
essa pessoa tenha tido um tratamento pelo Estado que a tornasse
um ser de direitos. Sabemos que a pessoa chega a um determina-
do momento nesses territórios onde nada foi alcançado e ela vai
buscar as coisas do jeito que ela entende que é a forma possível de se
alcançar, geralmente, na prática de algum ilícito, seja ameaçando
alguém, roubando, entre outras coisas (Profissional 6).

Mas eu faço algumas críticas para se pensar segurança pública,


porque hoje quando se fala em segurança pública se pensa em
polícia, se pensa em câmera, se pensa em iluminação, acho que
a gente já conseguiu evoluir pelo menos pra iluminação... Acho
que já é um processo de evolução. Mas não se para por aí, sabe?
Não se discute segurança pública relacionada à cultura, não se dis-
cute segurança pública relacionada ao esporte, não se discute segu-
rança pública relacionada ao lazer. Segurança pública de quem, né?
Quem que vai ser protegido? É o trabalhador, é o adolescente,
adolescente envolvido em ato infracional, é a empresa, é o banco,
é o comércio? Quem que é pra ser protegido, e ser protegido de
quem? Então, acho que essas perguntas são primordiais pra discu-
tir segurança pública. Ser protegido de quem? Ah, do bandido. Tá,

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vamos construir essa imagem do bandido. Como que se produz
esse bandido? Sorteio? Não. Então pensar segurança pública é ir
pra além disso (Profissional 3).

A reflexão do profissional 6 e 3 evidencia os desafios da segurança
pública diante da precarização das demais políticas de proteção social,
sendo que todas as entrevistas relatadas no âmbito do presente estudo
referem o contexto de precarização das políticas sociais, conforme já de-
batido nos capítulos do presente livro. E, neste sentido, como destaca
Scherer (2017) tem-se que a ampliação do conceito de segurança huma-
na, para além da sua feição bélica, se relaciona à defesa de direitos sociais,
na perspectiva da proteção social. Pois, será somente ao se considerar
a universalidade de suas ações, compreendendo que tais componentes
são interdependentes e pressupondo-se a necessidade de ações integradas
para a sua materialização para todos os sujeitos, bem como a carência de
garantia de múltiplos direitos para atendimento às demandas de seguran-
ça, que será possível se operar sobre um outro paradigma, que não, este,
que criminaliza a pobreza e pune as classes menos favorecidas em função
de sua condição de classe (SCHERER, 2017).
Com isto, o que quero dizer é que a compreensão da materialização
concreta do direito à segurança como bem público universal se relaciona,
fundamentalmente, a necessidade da presença estatal como garantidora
de direitos sociais, de forma articulada em uma direção intersetorial. O
que significa, do ponto de vista prático e teórico, de se operar a partir
do fortalecimento de uma luta oposta a direção de um Estado neoliberal
e neoconservador, que vem sendo materializado na realidade brasileira
com rebatimentos em gestões federais, estaduais e nacionais. Pois, en-
quanto a Segurança Humana não for uma prioridade para o Estado e
garantida por este nesse país, o chão das cidades brasileiras continuará
encharcado de sangue jovem, negro e periférico.

Considerações finais

A segurança se constitui como um clamor em muitos espaços, se


constituindo como uma das grandes preocupações dos brasileiros em di-

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versos cenários, comumente utilizada por diversos segmentos como um
‘trunfo’ na disputa de projetos societários. Discursos conservadores, em
grande parte, propagados pela mídia de massa, contribuem para inflar o
clamor punitivista diante de um dos países do mundo que mais encarce-
ra e mata jovens pobres e periféricos.
As raízes desse viés punitivista, não são uma novidade em um país
que garantiu, historicamente, a manutenção de mais de 300 anos de escra-
vidão e que, hoje, configura-se como um país de economia capitalista de-
pendente e periférica que nunca consolidou um sistema de proteção social
que, realmente, pudesse atender as demandas por segurança humana de
sua população, na perspectiva da proteção social. As ditaduras, em especial,
a Ditadura Militar instaurada em 1964, contribuiu, significativamente,
para a consolidação da perspectiva punitivista, tanto em uma perspectiva
histórica, como na manutenção do direcionamento das instituições de se-
gurança pública de cunho militar no cenário contemporâneo.
Nesse contexto, o punitivismo guia olhares, corações e almas, in-
flando discursos de ódio com nítidos recortes de classe, raça e geração. Tal
perspectiva é potencializada diante da presença do Estado Penal, que se
faz presente diante da desproteção social vivenciada, especialmente, por
segmentos da classe trabalhadora que constroem suas vidas cotidianas em
meio às múltiplas e mais intensas expressões dessa questão social. Dian-
te desse cenário, onde os impactos da desigualdade social se fazem mais
perversos, o discurso da “guerra às drogas”, guiado na direção da crimina-
lização da pobreza cumpre um papel fundamental, de esfumaçar as raízes
dessa desigualdade por meio da criação do perfil de um inimigo que ne-
cessita ser combatido: o jovem, pobre, negro e morador de periferia.
O saldo dessa guerra é o fortalecimento do tráfico de drogas, o
juvenicídio e a mortalidade dos trabalhadores de segurança pública que
estão front desse confronto. A violência policial se constitui como um dos
reflexos das políticas neoliberais, retraídas da perspectiva da proteção so-
cial, mas presente em ações punitivistas, violentas e criminalizadoras das
juventudes pretas, pobres e periféricas no contexto atual. Os relatos dos
participantes da pesquisa relatam uma série de violências que se materia-
lizam em suas trajetórias de vida de inúmeras formas através do caráter
seletivo da “guerra às drogas”, da forma violenta das abordagens policiais,

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da insegurança diante da desproteção dos órgãos de segurança pública e
do medo perante as relações violentas entre as facções etc. Mas que, se faz
presente na presença do Estado Penal e no enfrentamento à violência do
narcotráfico nos territórios.
Consolida-se assim, uma proteção que promete proteger a so-
ciedade ao passo que desprotege, pela perspectiva da violência Estatal,
segmentos sociais moradores desses territórios. Consolida-se, com isto,
um perversa (des)proteção social fomentada pela sociedade neoliberal
de caráter neoconservador. Os resultados desse processo são desastro-
sos, não impactando na redução dos chamados índices de criminalidade,
mas consolidando uma gestão de segurança pública desassociada da ideia
de segurança humana, isso é: distante da intersetorialidade das políticas
públicas que acarretam a ampliação das manifestações da violência e o
fortalecimento da criminalidade.
Aponta-se, diante dessa realidade, a necessidade urgente de qualifi-
cação das ações de segurança pública nesses territórios e a materialização
concreta do direito à segurança como bem público universal, sendo que
esses movimentos só serão possíveis com o enfrentamento do Estado Pe-
nal que tem, sistematicamente, matado as juventudes nesses territórios.
Contudo, o que se observa é exatamente o contrário, de modo que a
dinâmica neoliberal somente tem contribuído para ampliação da acu-
mulação de riqueza fundamentada na desigualdade social crescente em
patamares nunca vistos, ao mesmo tempo em que, a passos largos, têm
colaborado para a ampliação do genocídio da juventude, onde, vislum-
bra-se uma riqueza que encharcada pelo sangue jovem, preto e periférico
no Brasil continua a reproduzir e a aprofundar tais desigualdades por
meio da criminalização da pobreza.

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Racismo Estrutural como pilar do Juvenícidio:
as faces de genocídio da juventude negra

Giovane Antonio Scherer


David Petar da Conceição Mantalof

A madrugada de 14 de novembro de 1844, na cidade de gaúcha


de Pinheiro Machado no Rio Grande do Sul, foi palco de um sanguento
massacre: o chamado Combate dos Porongos ou, nos termos de Assumpção
(2015), Traição dos Porongos deixou um rastro de sangue negro na tão exal-
tada história da Revolução Farroupilha. Eternizada por grandes autores
e romantizadas em filmes e minisséries brasileiras, a presente revolução é
muito festejada no Estado do Rio Grande do Sul, bem como em outros
territórios que se afeiçoam com as tradições gaúchas, sendo que tal com-
bate e suas eminentes contradições, grande parte das vezes, ficam ocultos
pelos discursos ufanistas presentes nas tradições do Sul do país. A Revolu-
ção Farroupilha principiada em 1835, também conhecida como “Guerra
dos Farrapos”, inicia com o objetivo de atender os interesses políticos e
econômicos da elite gaúcha formada por grandes proprietários rurais, inco-
modados pelos altos impostos cobrados pela coroa pelo preço do charque
e do sal, sendo inflamada pelos “ideais liberais1”, por uma propaganda
“republicana” que prolongaram a guerra até 1845 (SOUZA, 2018).
A Traição dos Porongos, na qual resultou no massacre dos Lanceiros
Negros, marca um episódio que ilustra a forma pela qual as vidas negras
1 Uma das inúmeras contradições nesse movimento é que a maior parte dos líderes da
revolução, hoje tidos por muitos como “Heróis Farroupilhas” que em seus discursos
proclamavam os ideais de liberdade, eram em proprietários de escravos e, muitos deles,
contrário às lutas abolicionistas. Demonstra-se, assim, que o discurso de liberdade pre-
sente na perspectiva liberal, tanto no passado como no presente, se refere à liberdade de
mercado e não a liberdade humana em torno das suas satisfações e necessidades. Com
relação a essa discussão recomenda-se a leitura do autor italiano Domenico Losurdo
na obra “Contra-história do Liberalismo” (Editora Ideias & Letras, 2020) na qual o
pesquisador demonstra como a escravidão se constitui como pedra angular para a con-
solidação das ideias liberais em todo o mundo.

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foram e são tratados nesse país. O Movimento Farroupilha, na busca por
ampliar o número de soldados incorporaram pessoas escravizadas às suas
fileiras da guerra, prometendo em troca a sua liberdade após o fim do
conflito, porém, apesar das promessas, em nenhum momento a República
Rio-Grandense libertou “seus escravos” (SOUZA, 2018). Segundo relata
Assumpção (2015), um dos líderes farroupilhas, David Canabarro, firmou
acordo com o Barão de Caxias, comandante do exército brasileiro, que
por sua vez, ordenou ataque ao acampamento farroupilha na data com-
binada. Conforme o “acordo secreto” entre Canabarro e Caxias, o ataque
ao acompanhamento farroupilha2 se constitui em um banho de sangue,
pois a infantaria, composta por pessoas escravizadas, estaria desarmada.
Com o auxílio do chefe farroupilha, a infantaria negra foi covardemente
massacrada, sendo que a ordem de Caxias era nítida com relação ao foco
dos ataques: os lanceiros, somente eles, deveriam ser massacrados, consoli-
dando um ato covarde dos farroupilhas e imperiais contra os combatentes,
se constituindo em apenas um dos vários massacres aos quais foram sub-
metidos às pessoas escravizadas no Brasil (ASSUMPÇÃO, 2015).
A breve descrição histórica acima se constitui como uma digressão
importante para demonstrar, por meio de um fato concreto, um dos
aspectos que compõe as raízes históricas do racismo estrutural na cons-
trução do Brasil e do Estado do Rio Grande do Sul. Esse Estado, muitas
vezes, publicizado como um “pedacinho da Europa” no Brasil, onde as
tradições dos imigrantes europeus, em um movimento de raiz eugêni-
co, grande parte das vezes, ocultou a história negra na construção desse
território. Nesse sentido, não se trata de analisar a história como um
conjunto de fatos isolados, mas como movimento de uma totalidade
envolta de múltiplas contradições, que fundamentam concepções e pers-
pectivas e guiam a forma pela qual as relações sociais são estabelecidas na
atualidade. Como demonstrado no primeiro capítulo deste livro, os da-
dos de mortalidade juvenil no Rio Grande do Sul, mais especificamente,

2 A citação acerca da história dos Lanceiros Negros, ou Massacre dos Porongos, adquire
aqui um sentido linguístico metafórico para demonstrar a presença da perspectiva do
genocídio negro e seu apagamento pelos discursos de cunho eugênicos. Não trataremos
do debate histórico, bem como, das diversas divergências historiográficas que envolvem
os acontecimentos.

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na cidade de Porto Alegre/RS, revelam que a cidade segue a tendência
nacional no que se refere a maior vitimização de jovens negros do que
brancos quando analisados os índices de Juvenicídio.
O debate acerca das medições entre Juvenicídio e suas dimensões
étnico-raciais, são transversais em inúmeros debates que foram tratados
nas páginas do presente livro, porém, pela importância da temática mos-
tra-se necessário que o tema do racismo estrutural mediado com o Juve-
nicídio possa ser mais bem aprofundado no presente capítulo. O objeti-
vo deste capítulo é demonstrar os múltiplos elementos que constituem o
racismo estrutural como um dos pilares centrais do Juvenicídio no Brasil.
Para essa análise, além de uma análise bibliográfica, o capítulo visa apre-
sentar os relatos orais dos participantes da pesquisa que evidenciam em
suas experiências com o tema do Juvenicídioas mais diversas expressões
do racismo estrutural.
Nesse sentido, em um primeiro momento o texto procura analisa
a consolidação do racismo estrutural, buscando compreender algumas
das expressões contemporâneas do racismo e seu impacto na trajetória de
vida dos jovens e familiares negros entrevistados na investigação. Em um
segundo momento, o texto analisa as experiências sociais dos participan-
tes na pesquisa com relação as suas vivencias enquanto juventude negra
nos territórios com altos índices de Juvenicídio.

Consolidação do Racismo Estrutural


e suas mediações com a realidade contemporânea

O alto índice de mortalidade juvenil de pessoas negras no Brasil


não se constitui em uma novidade na conjuntura deste país, sendo que
inúmeros estudos, ao longo do tempo, vêm alertando para os alarmantes
índices de mortalidade que ceifam jovens vidas negras no Brasil. Como
referem Cerqueira, Ferreira e Bueno (2021), a intensa concentração de
um viés racial entre as mortes violentas ocorridas no Brasil é desde a
década de 1980, quando as taxas de homicídios começam a crescer no
país, vê-se também crescer os homicídios entre a população negra, es-
pecialmente na sua parcela mais jovem, sendo que a desigualdade racial
se perpetua nos indicadores sociais da violência ao longo do tempo e

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parece não dar sinais de melhora, mesmo quando os números mais ge-
rais apresentam queda. No ano de 2019, a taxa de violência letal contra
pessoas negras foi 162% maior que entre não negras (CERQUEIRA,
FERREIRA e BUENO, 2021), evidenciando que no Brasil o racismo
estrutural mostra-se como um dos pilares centrais que sustentam as taxas
de mortalidade juvenil. Para a compreensão dessa trágica realidade, não
basta analisarmos os dados de homicídios descolados de todo o comple-
xo social que o constitui, uma vez que o Juvenicídio é compreendido
como resultado trágico de um contexto de violações de direitos.
A discussão acerca do racismo no Brasil, muitas vezes compreen-
dida como um resquício residual de um passado distante, em verdade,
se constitui como uma mediação fundante das relações sociais tecidas
no contexto contemporâneo, que assenta suas raízes em uma história
marcada de violações de direitos. A categoria racismo, na perspectiva
de Rocha (2020), se constitui como uma construção social, política e
ideológica que interfere nas relações sociais e, inclusive, na forma como
o Estado contemporâneo constrói sua intervenção, balizadas na garantia
de direitos ou, opostamente, em formas de controle social e racial. Não
se trata, nessa perspectiva, de compreender a existência de raça huma-
nas distintas, mas de reconhecer que as relações sociais são consolidadas
por marcadores raciais, enquanto construções sócio-históricas, de cunho
ideológico (e, muitas vezes, eugênicos), que se configuram como instru-
mento utilizado para a dominação de classe e étnico-cultural (ROCHA,
2020). A raça é uma relação social, o que significa dizer que ela se mani-
festa em atos concretos ocorridos no interior de uma sociedade marcada
por conflitos antagônicos (ALMEIDA, 2019).
O racismo se configura como uma construção social que se conso-
lida como mediação fundamental no desenvolvimento das relações sociais
na atualidade, sendo que, na perspectiva de Eurico (2020), racismo e capi-
talismo possui uma intrínseca articulação fortalecida pela ideologia racial,
essencial para a dinâmica das relações sociais na contemporaneidade. A es-
cravidão e capitalismo não se confundem, mas se relacionam, uma vez que
o trabalho escravo foi à base sobre a qual o capitalismo pôde se desenvolver,
funcionar e expandir em sua fase mercantil, caracterizada pela produção
de mercadorias nas colônias e sua comercialização entre as metrópoles eu-

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ropeias; sendo que o mercantilismo, por sua vez, criou algumas condi-
ções básicas à passagem para as fases seguintes do capitalismo (VALENTE,
1994). A pesquisa de Losurdo (2020) demonstra as bases estruturantes do
liberalismo no “novo mundo”, sendo que o processo de escravização de se-
res humanos se constituiu como um elemento central para a consolidação
da perspectiva liberal na forma que hoje a conhecemos.
No caso brasileiro, como um país de capitalismo dependente e
periférico, a escravidão se constitui em elemento central na história desse
país. O Brasil escravizou cerca de 4,9 milhões de africanos, o que equiva-
le a 40% dos 12,5 milhões que embarcaram da África para o continente
americano até meados do século XIX (GOMES, 2021). Os mais de 300
anos de escravidão e violência, seguidos e um processo “abolicionista”
que não reconhecia os mínimos direitos da população negra, se conso-
lidam em feridas abertas na história brasileira que deixa marcas de inú-
meras formas na contemporaneidade. Para Eurico (2020) a substituição
do trabalho sob o regime de escravidão pelo trabalho livre nos moldes
capitalistas visou atender os interesses da burguesia brasileira, sem in-
cluir a adoção de políticas sociais que visem alterar o cenário de pobreza
absoluta a que estava submetida à população negra e livre. A assinatura
da Lei Áurea possibilitou a retomada da economia nacional sob outro
patamar, da produção capitalista, da apropriação da mais-valia e do sur-
gimento do cidadão consumidor, sendo adotadas as reivindicações do
movimento abolicionista de base conservadora, cujas propostas não alte-
ram a estrutura social, sequer ofertam condições objetivas satisfatórias de
manutenção da vida, alterando definitivamente os rumos da “liberdade”
pós-escravidão (EURICO, 2020).
Como refere Fernandes (2016), a abolição, por si mesma, não
pôs fim, mas agravou o genocídio da população negra no Brasil, ela
própria intensificou-o nas áreas de vitalidade econômica, onde a mão
de obra escravizada ainda possuía utilidade; sendo que, posteriormen-
te, o negro foi condenado à periferia da sociedade de classes, como se
não pertencesse à ordem legal. No início do período pós-abolição,
algumas expressões da questão social referente ao trabalho tornam-se
evidentes na medida em que os negros estavam sendo, de acordo com
Fernandes (2007, p. 135), “reabsorvidos pelo sistema de trabalho ur-

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bano e pela ordem social competitiva, [o negro acaba sendo] repelido
para as esferas marginais [...] nas quais se concentravam as ocupações
irregulares e degradadas, tanto econômica quanto socialmente”.
Esse movimento histórico mostra-se fundamental para a análise
da constituição do racismo como componente fundamental das rela-
ções sociais estabelecidas na contemporaneidade, uma vez que o ra-
cismo não se constitui como um “elemento pontual”; mas como uma
medição central nas relações sociais de forma estrutural e estruturante.
Conforme Almeida (2019) o racismo estrutural parte da compreen-
são que o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou
seja, do modo com que se constituem as relações políticas, econômi-
cas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem
um desarranjo institucional, mas como parte de um processo social.
Reconhecer que o racismo é parte constitutiva das relações sociais que
são produzidas e reproduzidas na realidade contemporânea, torna-se
imperativo para se refletir sobre mudanças profundas nas relações so-
ciais, políticas e econômicas (ALMEIDA, 2019). O racismo estrutural
se expressa de inúmeras formas, podendo ser percebido, nitidamente
no contexto contemporâneo por meio da desigualdade social, agravada
diante da crise estrutural do capital e da crise sanitária.
Este contexto contemporâneo é fruto do impacto da formação só-
cio-histórica brasileira no cotidiano da população negra, trazendo em
inúmeras vidas as marcas do racismo estrutural que se manifesta desde
a infância de crianças pretas e pardas, segundo os dados da UNICEF
(2019), 66,1% das crianças e adolescentes em situação de trabalho in-
fantil são pretos ou pardos, os dados ainda revelam que o trabalho in-
fantil tem crescido no Brasil pela primeira vez nas últimas duas décadas,
vulnerabilizando ainda mais a infância e juventude da população negra
e periférica. Na vida adulta os dados do IBGE (2018) apontam que o
rendimento financeiro médio da população negra é inferior ao da po-
pulação branca, pois a população branca tem um rendimento de 73,9%
maior que a população negra.Entre as pessoas abaixo da linha de pobre-
za, 73,6% eram de cor preta ou parda e 25,4% eram brancas. A desigual-
dade salarial é herança do “lugar’’ na qual a população negra foi lançada
desde o período colonial até a Abolição da Escravatura.

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As condições de moradia também são atravessadas pelo marcador
da raça etnia, os dados do IBGE explanam que a população negra é
a que mais reside em domicílios sem coleta de lixo, estima-se que seja
12,5%, enquanto o percentual da população branca é de 6,0 %. No que
se refere ao abastecimento de água por rede geral, percebe-se que tais
dados também são atravessados pelo racismo estrutural na medida em
que 17,9% da população negra não possui acesso, contra 11,5% da po-
pulação branca, e sem esgotamento sanitário por rede coletora ou pluvial
(42,8% da população negra contra 26,5% da população branca), tais
dados influenciam diretamente nos determinantes sociais em saúde e na
qualidade de vida.
Os impactos na Educação são visíveis na medida em que a Taxa
de Analfabetismo da população negra em 2018 era de 9,1% enquanto a
Taxa de Analfabetismo da população branca era de 3,9%. Os dados de
acesso ao Ensino Médio também explanam que a proporção de jovens de
18 a 24 anos de idade de cor ou raça branca que frequentavam ou já ha-
viam concluído o Ensino Superior (36,1%) era quase o dobro da obser-
vada entre aqueles de cor ou raça preta ou parda (18,3%) (IBGE,2018)
Assim, os dados de realidade demonstram a presença do racismo
estrutural que deixam marcas nas trajetórias de vida das populações ne-
gras no Brasil, evidenciando que os dados de Juvenicídio da população
negra são a expressão mais trágica de uma trajetória de violações de direi-
tos. Ao analisar dados de realidade contemporânea percebe-se de forma
nítida a presença do racismo estrutural como componente presente na
desigualdade social no Brasil, sendo impossível desassociar a análise da
questão social brasileira, sem considerar os múltiplos aspectos que envol-
vem o racismo estrutural no Brasil. Os relatos orais dos participantes da
pesquisa referem de forma nítida tais relações, como pode ser observado
no relato do familiar 2

– [...] a gente da raça negra, não desmerecendo a raça branca, mas


tu tem que ser duas vezes mais que a raça branca, entendeu? [...]
Tu pode ter o mesmo grau de estudo, mas tu tem que ser duas ve-
zes mais na frente, entendeu? Pra ti poder pegar uma posição den-
tro da sociedade, de uma coisa assim, sabe? [...] a gente tem que tá
dois, sempre dois passos à frente, né? Isso aí que eu acho errado,

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assim. Poderia ser todo mundo igual, né? Mas a gente tem que tá
sempre um passo à frente.[...] Tu pode ser igual, tu tem as mesmas
qualidades, mas tu tem que estar sempre um, um “quezinho”, que
tu possa ultrapassar aquele que é o branco (FAMILIAR 2).

Em sua fala, o familiar 2, relata as desigualdades raciais que se re-


laciona intrinsecamente as desigualdades sociais na realidade brasileira,
demonstrando que, o fato de ser negro, já o coloca em posição de desvan-
tagem de outra pessoa com a mesma qualificação nas relações de competi-
tividade, típica das relações capitalistas. O presente relato evidencia que a
meritocracia e a democracia racial, ainda presente em muitas análises sobre
o tema na contemporaneidade, se constituem em mitos que não se mate-
rializam na realidade concreta. Conforme a análise de Nascimento (2016),
o conceito de “democracia racial”3 supostamente refletiria determinada
relação concreta na dinâmica da sociedade brasileira: que pretos e bran-
cos conviviam harmoniosamente, desfrutando de iguais oportunidades de
existência, sem nenhuma interferência, nesse jogo de paridade social, das
respectivas origens raciais ou étnicas. O mito da democracia racial no Bra-
sil se constitui como uma farsa que tende a ocultar processos de violência,
na naturalização do racismo em diversas esferas da vida; nos termos de
Nascimento (2016) se conforma em uma “democracia” cuja artificialidade
se expõe por meios dos níveis políticos, econômicos e sociais.
Historicamente o Estado brasileiro cria mecanismos legais e jurídi-
cos para encobrir o processo de desigualdade racial, fornecendo respostas
ao racismo estrutural que não movimentam com a base que produz e
reproduz tal fenômeno político social, pode-se apontar a Lei do Ventre
Livre (Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871) enquanto “maquiagem”
utilizada pelo Estado para encobrir as violências do Período Colonial. A
lei foi assinada pela Princesa Isabel, considerando livre todos os filhos de

3 A ideia de democracia racial tem como um dos seus principais expoentes Gilberto
Freyre. Nascimento (2016) analisa as contradições da sua obra, demonstrando como
as tendências lusotropicalista presente na concepção do autor, que se constitui como
recurso ideológico para naturalizar a violência da escravidão. A análise de Florestan
Fernandes acerca da construção do mito da democracia racial em Freyre se constitui em
uma leitura fundamental para a compreensão dos limites, contradições e farsas presente
nesse termo.

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mulheres escravas nascidas a partir de então. A “liberdade” expressa na lei
fora, naquele contexto, foi uma falácia, visto que crianças e adolescentes
negros descendentes de negros escravizados não tinham condições algu-
ma de sobreviver sem estarem vinculadas às ações escravagistas. Mora-
vam nas senzalas, se alimentavam com e por negros(as) escravizados(as),
tinham seu direito político negado, não acessavam a educação e sofriam
todo o impacto do colonialismo racista. O fato de não serem mais con-
sideradas “propriedades” da branquitude brasileira não significava que
tais crianças e adolescentes tinham poder de escolha e gerência de suas
próprias vidas, pois as condições materiais de sobrevivência e subsistência
continuavam entrelaçadas com o processo escravagista.
A partir da compreensão que o capital constantemente se atualiza
e se reestrutura, pode-se afirmar que a Lei do Ventre Livre ressurge na
atualidade contemporânea, não como lei jurídica, mas sim como relação
social, calcada em uma lógica individualista, fomentada através do dis-
curso da falsa ‘’democracia racial’’. A referida lei e a lógica individualis-
ta neoliberal se aproximam, na medida em que ambas são pensadas na
perspectiva da “liberdade no capital”, em que se pressupõe que um “ser
livre” é capaz de alcançar qualquer objetivo a partir do seu desempenho
subjetivo. Da mesma forma que as crianças negras no Período Colonial
não se tornaram livres com a promulgação da lei, tampouco hoje a pe-
riferia negra é de fato livre devido à Abolição da Escravatura, em 1888.
As condições de sobrevivências se tornam mínimas para a população
negra: os impactos racistas da sociabilidade capitalista brasileira ceifam,
diariamente, vidas de jovens negros e negras nas grandes favelas, sejam pela
guerra ao tráfico de drogas, sejam pela mão do Estado através da violência
policial e da ausência/precariedade de políticas públicas. A juventude peri-
férica se torna vítima dos “pseudoacessos” aos direitos humanos, uma vez
que estes são negados estruturalmente. O aspecto jurídico do direito serve,
muitas vezes, como base para apontar, culpar e questionar o sujeito que
não está “se apropriando” de tal direito apontado constitucionalmente. Os
impactos desta “herança colonial” se expressam na atualidade, ainda que
haja avanços nas leis para a democratização de direitos básicos. Um exem-
plo é o acesso à Educação, que é garantido por lei através do artigo 53 do
Estatuto da Criança e do Adolescente. O texto afirma o direito das crian-

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ças e adolescentes à Educação e ao pleno desenvolvimento como “preparo
para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho”, assegurando
a estas a igualdade de condições para acesso e permanência na escola, o
direito de ser respeitado, de contestar critérios avaliativos e da organização
e participação em entidades estudantis, além do acesso à educação pública
e gratuita em seu território (BRASIL, 1990).
Apesar da vigência da legislação, os dados referentes ao acesso à
Educação no país provam que a jurisdição desse direito humano não é
suficiente para consolidá-lo. Os dados do IBGE (2019) apontam que
entre os jovens de 18 a 24 anos, quase 75% estavam atrasados ou aban-
donaram os estudos, sendo que 11,0% estavam atrasados e 63,5% não
frequentavam escola e não tinham concluído o ensino obrigatório. No
referido ano, apenas 65,1% dos jovens pretos e 66,7% dos pardos de 15 a
17 anos frequentavam o Ensino Médio, frente a 79,2% dos brancos. Es-
tes dados evidenciam que não basta tornar a Educação um direito legis-
lado, é necessário pensar mecanismos que efetivem o acesso a esse direito.
A meritocracia dentro do capital só fortalece sujeitos pertencentes a
marcadores sociais privilegiados (homens, brancos, heterossexuais e com
acesso a bens de consumo), ainda que existam políticas públicas para ame-
nizar a desigualdade entre as classes sociais e de equiparação entre negros e
brancos, elas não são suficientes. O discurso meritocrático afirma que to-
dos são iguais e têm os mesmos direitos e (re)atualiza a Lei do Ventre Livre
e joga sobre os corpos negros e periféricos a responsabilidade das desigual-
dades vivenciadas por eles. Ignora a formação sócio-histórica brasileira e
traz ao esquecimento a forma com que os corpos negros foram arrancados
do continente africano; apaga o epistemicídio dos conhecimentos afro-
centrados em detrimento à ordem eurocêntrica e, ademais, protege quem
detém a riqueza do país, deixando a miséria para as classes subalternas, que
devem administrá-la em organizações próprias.
Um dos aspectos que evidenciam o mito da “democracia racial”
se relaciona à análise dos índices de precarização do mundo do trabalho
e desemprego. Considerando que o capitalismo no Brasil se utilizou da
raça étnica como um instrumento fundamental para a manutenção e
implementação da superexploração da mão de obra, pode-se afirmar que
a população negra ocupou “um lugar” neste processo de desenvolvimen-

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to do capital na sociedade brasileira (MARTINS, 2012). Esse lugar foi
marcado no período pós-Abolição da Escravatura pela desocupação, for-
mação do exército industrial de reserva, superexploração e informalidade
da mão de obra. Os privilégios referentes à raça e à etnia são evidentes in-
clusive entre a própria classe trabalhadora, conforme afirma Hobsbawm
(1988, p. 107) “a [...] superioridade de brancos ocidentais – ricos, classe
média e pobres – não se deveu apenas ao fato de todos desfrutarem de
privilégios de governantes nas colônias”, mas se dava fundamentalmente
por aquela inferioridade dos negros construída pela burguesia imperialis-
ta, sob a batuta da ciência, de modo que até mesmo “o operário branco
era um comandante de negro” (MARTINS, 2012).
Compreende-se que a sociedade capitalista se estrutura a partir do
trabalho e das relações sociais que são reproduzidas a partir do mesmo. A
população negra historicamente foi excluída do mercado formal de traba-
lho. Os dados do IBGE, apontam que em 2018 a taxa da população negra
desocupada ou subutilizada é de 66,1 % enquanto entre brancos é 32,7
%.Em 2018, enquanto 34,6% das pessoas ocupadas de cor ou raça branca
estavam em ocupações informais, entre as de cor ou raça preta ou parda
esse percentual atingiu 47,3%. Ou seja, se tem um número maior negros e
negras em desemprego, mas também em empregos informais sem proteção
social; esses elementos podem ser observados no extrato da fala de um dos
jovens entrevistados pela pesquisa, quando este coloca que:

– Tem que ser bonito pra trabalhar, gente feia não trabalha, né?
Não entendo. Não é bom pro mercado gente feia… Gente… preta.
Vai ser ruim pro mercado. Assim como… É uma coisa cultural,
né? Hoje em dia se a gente tá na TV, se a gente tá em muitos
‘lugar’ é tudo cota racial. Tu vê um comercial, tem um preto, dois
‘preto’. Quando tem…Ali no fundo,quietinho. Só passa, só aparece
a cara, nem fala nada. Tu tá tirando o espaço de fala, tu tá tirando
o poder. Tu vai ‘acabando’ apagando, né? Tu vai botando luz muito
desse lado, pra ficar escuro desse. E a gente sofre, né? Querendo ou
não, a gente sofre (MENOR, 19 anos).

As reflexões do jovem Menor (19 anos) vão muito além das dificul-
dades de inserção no mercado de trabalho por razões étnico-raciais, mas

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aprofundam reflexões acerca do silenciamento negro em uma sociedade
cujo projeto de “branqueamento” ainda está em curso, se manifestando
de diversas formas, dentre elas por meio da estética e dos padrões euro-
cêntricos no âmbito da grande mídia. Nesse sentido, o relato oral apesar
de reconhecer os pequenos avanços com relação à visibilidade da popula-
ção negra na mídia, denuncia a ausência de vozes negras e protagonismo
nos mais variados espaços, indicando esse elemento como um aspecto
de sofrimento vivenciado no cotidiano de sua trajetória de vida. Com
relação a esse aspecto, Kilomba (2019) desenvolve importantes reflexões
acerca do silenciamento que a população negra vivencia diante do con-
texto de racismo estrutural. A autora, ao analisar os instrumentos de tor-
tura usados com as populações escravizadas como a Máscara de Flandes4,
relaciona com as perspectivas contemporâneas que, de inúmeras formas,
ocultam e silenciam vozes negras e diversos âmbitos diante de um con-
texto repressivo e racista. As expressões do racismo estrutural ocultam,
(in)visibilizam e impossibilitam espaços de vocalização de pessoas negras,
constatação essa que a partir dos escritos de Kilomba (2019) torna-se
nítido na fala de Menor (19 anos), bem como de outros participantes da
pesquisa que denunciam as inúmeras vivências com relação às múltiplas
manifestações do racismo estrutural.
Importante destacar a fala de Menor (19 anos) quando esse refere
“Querendo ou não, a gente sofre”, demonstra uma dor latente que surge
das dinâmicas racistas de uma sociedade guiada pela hegemonia branca,
que contribui para uma precarização de condições de vida. Com relação
a esse contexto, Kilomba (2019) coloca em destaque os traumas vivencia-
dos em contextos racistas, os quais, geram impactos na saúde mental de
pessoas negras em razão da violência produzida pelo do mundo branco,
surgida da irracionalidade do racismo, que coloca o negro como o outro,
estranho e incomum. Diante de um contexto de ausências e/ou presenças
precarizadas de políticas sociais, fruto da dinâmica neoliberal, é possível
perceber a negligência ao direito à saúde mental das juventudes, sendo

4 Instrumento de tortura usado pelas pessoas escravizadas como forma de castigo. A


máscara impedia “servia para evitar que os escravos comessem das plantações, engolis-
sem pepitas de ouro nas minerações e também para evitar que eles ingerissem terra para
tirar sua própria vida (CONCEIÇÃO, 2020, p. 350).

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que as dores provocadas pelo racismo são, também, silenciadas pela falta
de políticas sociais tanto pela via de seu enfrentamento, como pelo viés
do reconhecimento das necessidades de tratar, nos termos de Kilomba
(2019), as feridas abertas pelo racismo. Acerca desse contexto, diversas
falas dos jovens negros entrevistados na investigação dão visibilidade para
as vivências com relação ao racismo, como referem às falas dos jovens
José (16 anos) e Fernanda (24 anos):

– [...] Então, na época eu jogava futebol, e eu sai sozinho. Eu fui,


eu tava de camiseta preta, calção de jogar futebol e a chuteira na
mão. Tô indo… Só que são duas praças, e como eu não saía de
casa, não tinha vivência, não sabia de nada… Eu fiquei esperando
numa praça errada. Aí deu o horário do treino, comecei a receber
mensagem dizendo que o treino já ia começar, perguntando onde
que eu tava e eu bah, não entendi nada. Aí eu peguei a rua prin-
cipal assim, e perguntei, fui perguntar né, pra uma mulher que
morava lá. Mas a mulher abriu o “berreiro”, não sei o que… E “Abre
o portão” e “Vão me assaltar” não sei o que, daí eu falei “Moça eu
tô indo jogar, eu preciso saber se tem mais uma praça por aqui” e a
mulher “vá” gritar e dizendo que ia ligar pro guarda. [...] Aí passei
na frente de um estúdio de tatuagem e o cara falou “Meu, não te
abala, tem uma praça, é só tu subir. Tá bom?” Daí eu falei pra ele
“Não, tá bom.” Foi questão de dois, três minutos… Um guardi-
nha, o guardinha do condomínio, não sei o que, chegou. E com
uma educação de uma mula, ele começou: “Que que tá fazendo
aqui?” E eu: “Ah tô vindo treinar” E ele “Que que tá fazendo aqui?
Tu não pertence a esse lugar. Não te quero aqui.” Daí eu falei “Não,
mas o senhor não tem que querer” [...] Então, ele pediu pra mim
abrir a mochila, perguntou o que eu tinha na mochila, pegou a
mochila, abriu a mochila, tocou a mochila no chão, fez um bolo
e isso conversando comigo: “Meu, tu não pertence a esse lugar.
Sai daqui. Ninguém te quer aqui.” E eu só lá, só existindo [...] Ele
pegou e, perguntou o que era aquilo que tava na minha mochila.
Daí eu disse “Ah, meus ‘perfume’, minha roupa e meu chinelo”
Perguntei se ele ia querer cheirar minha camiseta também. Aí nis-
so ele tocou minha mochila no chão e chutou e falou “Tá meu,
mas eu não te quero aqui” e entrou no carro e foi embora. Eu fui
pro jogo, fui treinar, só que eu cheguei lá mal. Só cheguei e falei
pro sor, na época o meu treinador ele chegou assim “O que acon-

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teceu?” Daí eu falei assim “Bah sor não to afim de falar sobre isso”
Aí depois eu fiquei muito mal, fiquei mal mesmo… E quando o
professor ficou sabendo do que aconteceu, bah, ele ficou muito
bravo, muito bravo mesmo (JOSÉ, 16 anos).

– O primeiro emprego que eu trabalhei, eu trabalhei dentro de


um dos maiores shopping que tem dentro de Porto Alegre. Então,
eu trabalhei por uma terceirizada que prestava serviço pra lojas de
shopping. Então, eu trabalhava de limpeza e eu era a única negra da
loja, porque eu trabalhava numa loja bem conhecida. [...] Então,
assim, tipo lá eu sofri muito preconceito, assim, porque às vezes eu
limpava o aprovador e as pessoas iam lá, né? Eu sempre, né, entra-
va pra ver se tava limpo, até mesmo, pra que eles, né, pudessem
usar aquilo “dali” limpo, né? E as pessoas me perguntavam: Ah, tu
é a faxineira? Tu trabalha aqui mesmo? Pô, né? Porque tu é a única
negra desse espaço, né? As atendentes, as vendedoras, o pessoal
do caixa, a própria gerente da loja... Elas eram tudo branca, né?
Então, eu era a única negra que tava, ali, dentro daquela loja e eles
fazendo cara de nojo, questionando a gerente: Ah! Não tem outra
pessoa pra limpar? [...] Então, eu já sofri na pele, de entrar em loja,
segurança vim atrás, achar que vai roubar, achar que vai furtar, no
caso. [...]Um negro dentro de um supermercado é visto diferente
de um branco. Dentro de um shopping, dentro de um restaurante,
dentro de qualquer lugar... A sociedade acredita que tem certos luga-
res que ainda negros não pode frequentar (FERNANDA, 24 anos).

Os diversos relatos trazidos pelos jovens entrevistados na investiga-


ção dão visibilidade para a presença constante do racismo, expressos de
inúmeras formas em seu cotidiano. As falas acima são apenas exemplos
dos muitos relatos que indicam a constância de um racismo que se rela-
ciona a forma pela qual as relações sociais são estabelecidas na realidade,
revelando a forma bárbara, violenta e, em grande parte das vezes, na-
turalizada de tais expressões de violência. Embora sendo falas distintas,
de jovens com experienciais sociais diferentes em suas singularidades,
tais vivências se relacionam a uma única particularidade: o incômodo de
corpos negros habitarem espaços elitizados e historicamente destinados
às pessoas brancas. O jovem José (16 anos) perdido de um “bairro no-
bre” da cidade de Porto Alegre/RS é automaticamente associado a um

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“perigo” ouvindo de moradores que ele “não pertence a esse lugar”. O
mesmo âmago do questionamento é direcionado para a jovem Fernan-
da (24 anos) ao ser a única funcionária negra de uma loja elitizada de
um shopping de uma área nobre da mesma cidade, relando o incômo-
do de clientes ao perceberam sua existência naquele espaço, bem como,
também relata as perseguições dos seguranças. A ideia de perigo e não
pertencimento a determinados espaços “brancos” da cidade são vivências
comuns de muitas pessoas negras, sendo construída no âmbito de alguns
espaços, quase que, um “cordão de isolamento” entre negros e brancos,
onde os corpos negros são impedidos de habitar. Tal concepção é muito
bem compreendida por Fernanda (24 anos) quando afirma que “a socie-
dade acredita que tem certos lugares que ainda negros não pode frequen-
tar” (FERNANDA, 24 anos).
Os relatos apontam lugares fixos para cada classe social e raça/et-
nia.Segundo Ianni (2005), é existente uma autocracia, na qual a divisão
de classes é potencializada por marcadores sociais de gênero e raça. Foca-
da no darwinismo social, evolucionismo, arianismo, entre dentre outros
termos utilizados para a eugenia social. Com isto, tem-se que essa ideo-
logia racial dos negros vai defini-los enquanto pessoas subalternizadas
que não ocupam lugares de poder e nem devem. Já a ideologia racial dos
brancos irá afirmar que estes são sujeitos predestinados a ocuparem esse
espaço de poder e dominação, portanto, os relatos de Fernanda (24 anos)
e de José (16 anos) expressam que o racismo estrutural se manifesta na
supervalorização das pessoas brancas, bem como da cultura eurocêntrica
e uma compreensão dela enquanto uma cultura universal e uma desvalo-
rização de culturas negras diaspóricas que fogem dessa lógica colonialista.
Tais construções ideológicas são naturalizadas no cotidiano, es-
condendo por detrás de tal naturalização o intenso racismo estrutural,
reatualizando a histórica relação entre o “lugar” do senhor de escravos e
os “espaços” das pessoas escravizadas no cenário contemporâneo. Como
alertam Santana, Purificação e Torres (2019), a relação entre negritu-
de e espaços de poder na sociedade, é permeada por aspectos visíveis
e invisíveis dessa relação em todos os âmbitos imagináveis das relações
sociais, tendo como base a criação histórica e social de uma divisão que
tem como premissa as vertentes de raça. Se o olho que não aprende a ver

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não enxerga (MARX, 1993).É necessário educar os sentidos de forma a
direcionar os olhares para perceber a violência da invisibilidade e falta
de vocalização de corpos e vozes negras em diversos espaços na socieda-
de. Nesse sentido, a construção social do jovem negro como um perigo,
como relatado por José (16 anos) e Fernanda (24 anos) se constitui como
um uma expressão do racismo estrutural que será abordado no próximo
item deste capítulo, buscando perseguir o questionamento de como é ser
um jovem negro nos territórios com altos índices de mortalidade juvenil.

Ser Jovem e Negro em Territórios


com Altos Índices de Mortalidade Juvenil

“E é uma coisa que eu acho muito horrível é por ser negro, tu já


ser classificado como uma pessoa ruim” (WAKANDA, 20 anos). O de-
sabafo do jovem Wakanda (20 anos) durante a entrevista da investigação
revela um traço marcante do racismo estrutural, se constituindo como
expressão do processo de (in)visibilização debatido no item anterior. Na
perspectiva de Soares (2007) a (in)visibilidade decorre, principalmente,
do preconceito ou da indiferença, uma vez que uma das formas mais
eficientes de tornar alguém invisível é projetar sobre o indivíduo um
estigma ou preconceito, pois a (in)visibilidade é sinônimo de solidão e
incomunicabilidade, falta de sentido e valor.
Sendo assim, a juventude negra é constantemente (in)visibiliza-
da, classificada como perigosa, sendo que, conforme Scherer (2017),
o visível mostra-se como o estereótipo construído sobre as juventudes,
não oportunizando o olhar para todas as possibilidades contidas neste
segmento social, sendo que neste processo, o estereótipo ganha visibi-
lidade, enquanto as potencialidades das juventudes se invisibilizam, em
um processo de percepção opaca do real. Soares (2007) refere que lançar
sobre uma pessoa um estigma corresponde a acusá-la simplesmente pelo
fato de ela existir. A constituição dessa (in)visibilidade vivenciada pela
juventude negra mostra-se como a base que se calca a construção da ideia
desse segmento social como “perigo para a sociedade”. Como já debatido
nos itens anteriores, a construção dessa concepção se constitui funcional
a manutenção da violência estrutural vivenciada por essas populações,

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reproduzida, grande parte das vezes, pela dinâmica do Estado Penal, bem
como presente nos conflitos entre facções nos territórios com altos índi-
ces de mortalidade juvenil. Diante dessa realidade, a juventude revela o
medo da morte em um contexto em que convivem com a mortalidade
juvenil de forma constante.

– Eu tenho medo de tomar uma bala perdida, porque em algum


momento isso pode acontecer, seja numa guerra entre tiro entre
os traficantes e a polícia, entre os traficantes, né? De uma lideran-
ça e da outra, de facções rivais. Eu tenho diversos medos, assim,
no caso, né? [...]. Por nós sermos jovens negros da periferia, no caso.
De ser assassinado. Acredito que não só eu, mas milhares de ‘jo-
vem’, o maior medos deles é ser assassinado, seja confundido, seja
por uma bala perdida (FERNANDA, 24 anos).

– Eu sou muito adepto de música e numa delas fala exatamente


isso “No século XXI, a cada 23 minutos morre um jovem negro.
E você é negro que nem eu, pretinho. Não ficaria preocupado?”
Lógico. Lógico. É literalmente um bingo pra ver se tu morre ou
não. Tipo sabe… um jogo da sorte, uma roleta russa, um… Sabe?
E no final quem embaralha o jogo é a morte. Então, faz 16 anos que
eu tô contrariando a estatística. Isso não é questão de sorte. Então,
eu não me vejo como um sortudo, mas sim como sobrevivente, sei
lá (JOSÉ, 16 anos).

Viver com medo de morrer se constitui em um elemento trazi-


do com frequência pelos jovens entrevistados no estudo, sendo que esse
medo é trazido com maior ênfase pelos jovens negros que foram ouvidos
pela pesquisa. Ao serem questionados sobre quais as principais caracte-
rísticas dos jovens que são vítimas de homicídio no território, a questão
racial foi o segundo aspecto mais trazido por todos os entrevistados na
investigação, somente atrás do envolvimento com facções vinculado ao
mercado do tráfico de drogas. Nesse sentido, a fala de José é emblemáti-
ca ao se reconhecer como um “sobrevivente” diante dos altos índices de
mortalidade juvenil no território. Quando questionado das principais
características dos jovens vítimas de homicídio, ele responde: “gente da
minha cor, gente com meu cabelo e gente com meu jeito” (JOSÉ, 16
anos). O relato de Fernanda (24 anos) se refere ao medo das balas perdi-

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das e de ser confundida com pessoas vinculadas ao tráfico de drogas na
comunidade, revelando os medos e inseguranças de vivenciar suas traje-
tórias de vida em um contexto de guerra. Tais medos, são potencializados
num contexto em que o processo de (in)visibilidade atua na construção
do imaginário social que coloca os jovens negros moradores das perife-
rias como “sujeitos perigosos”. Os medos e o processo de (in)visibilidade
vivenciado pela juventude negra pode ser percebido, de forma nítida, no
relato oral do Familiar 2, sendo pai de jovens negros ele refere inúmeros
medos das formas de violência que seus filhos podem sofrer. Segundo ele:

– Eu, pessoalmente, eu tenho medo. Às vezes eu digo assim,


quando meus filhos vão sair: “ô meu, quando tu estiver saindo
à noite, tu não me bota o capuz na cabeça, não me bota óculos de
noite, entendeu? Tenta ficar bem… bem aparecido. Não me bota
capuz, não me bota a mão no bolso, não me anda… né? Que tu vai
sofrer o peso. O policial vai te parar. Não sei se é um preconceito
meu, ou não, né? Um capuz é um capuz, né? De um moletom.
Mas eu já tenho esse preconceito. Opa, a pessoa negra, com capuz,
dentro do bairro lá Moinhos de Vento, né? Andando certa hora da
noite… É pedir pra levar. Tu vai levar! Né? [...] Se pedirem teu do-
cumento, dá o teu documento numa boa, não faz reação nenhu-
ma.” E mesmo assim eu não levo muita fé, entendeu? Também por
causa da… da cor, também, né?O momento de ser negro. Eu sempre
acho que eles olham com outros olhos, entendeu? (Familiar 2).

As preocupações explicitadas na fala do familiar 2 e as indicações


com relação a segurança de seus filhos demonstram bem o impacto do
racismo estrutural nas relações de cuidado estabelecidas. O familiar 2,
homem negro que relatou ao longo da entrevista diversas vivências de
diversas situações de racismo, possui muita nitidez da dinâmica puni-
tivista direcionada à população negra. Novamente, a concepção de não
pertencimento ao circular em territórios “nobres”, aparece na fala do fa-
miliar ao citar um dos bairros mais nobres e com menor presença de
moradores negros de Porto Alegre. O aspecto central da fala se refere
aos cuidados que seus filhos devem tomar em razão, especialmente, das
possíveis violências policiais tomando sempre a precaução de mostrar as
mãos e o rosto. Na realidade brasileira, a criminalização da pobreza se dá

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de forma racial, voltando à fúria punitivista do Estado para as populações
pobres e negras.
Nessa esteira do pensamento, diversos estudos na realidade bra-
sileira vêm apontando para o racismo institucional, enquanto uma das
expressões do racismo estrutural, presente nas instituições de segurança
pública. O racismo institucional, segundo Eurico (2020), refere-se às
operações anônimas de discriminação racial em instituições, profissões
ou mesmo em sociedades inteiras, sendo que o anonimato existe na me-
dida em que o racismo é institucionalizado, perpassa as diversas relações
sociais, mas não pode ser atribuído ao indivíduo isoladamente, mas, a re-
produção de práticas discriminatórias arraigadas nas instituições. A pes-
quisa realizada por Anunciação, Trad e Ferreira (2020) demonstra que
a intersecção entre raça, classe social, pertencimento territorial e perfil
etário tem sido determinante na produção dos critérios de suspeição na
prática policial brasileira, sendo que jovens negros, pobres e moradores
de favelas configuram o público-alvodas abordagens policiais. Os pes-
quisadores, ao realizarem uma investigação junto ao nordeste brasileiro,
apontam elementos como fenótipo (raça/cor e outros traços étnicos) e
pertencimento territorial/situação econômica como elementos presentes
na constituição de suspeição.
Nesse sentido, a pesquisa realizada por Duarte, Avelar e Garcia
(2018), que explora a dimensão da violência racial praticada no âmbito das
instituições de segurança nas cidades de Brasília, Salvador e Curitiba, tam-
bém sinalizam achados na direção da presença do racismo institucional,
sendo que os resultados do estudo apontam que a construção da suspeição
reproduzida nas abordagens se calca em preconceitos raciais e sociais, rela-
tivos à classe. Os achados desses estudos vão ao encontro dos depoimentos
dos participantes da presente investigação ao relatarem aspectos que são
identificados como racismo institucional nas abordagens policiais.

– É muito complicado, porque às vezes tem policiais... Lógico


que tem policiais negros, mas tem policial, assim, que é só por cor
de pele mesmo. A pessoa pode ser trabalhadora, não importa nas
se for negra já aborda, eu vejo muito isso. [...] As pessoas negras
sofrem uma abordagem policial mais violenta que as brancas... E
muito mais (LUA, 14 anos).

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– Acho que sei lá, quando sai da viatura, eles vêem alguma coisa
assim, um perfil ‘aonde’ ‘tá’ escrito assim: “Negro bandido”. Tá
ligado? Característica: Boné, não sei o que… Só que o principal
é ser negro, entendeu? Ele sendo negro, ele já é… Ele já é uma
opção de, né… De… Como é que eu posso dizer… De bandi-
do, entendeu? Já é bandido, é traficante, entendeu? [...] Sempre
vou ser eu o suspeito. Porque o racismo ‘tá’ enraizado. Entendeu?
Uma coisa que a gente quer tirar, entendeu? E, bah, todo dia
uma luta, todo dia uma luta. Cada dia a gente vê uma coisa. A
gente acaba até se emocionando com essas coisas, sabe? (WA-
KANDA, 20 anos).

Os relatos acima demonstram, na perspectiva dos jovens, a for-


ma pelo qual a negritude tende a despertar a suspeita policial, indo
ao encontro dos estudos citados anteriormente. Tanto a fala da jovem
Lua (14 anos) quanto a de Wakanda (20 anos) revelam a forma pela
qual o racismo institucionalizado impacta em suas trajetórias de vida,
remetendo a aspectos que se relacionam a perspectiva da (in)visibilida-
de no que se refere a constituição dos estereótipos que são associados
a juventude negra. O Estado Penal, conforme debatido no capítulo 8,
tende a amplificar perspectivas de criminalização da pobreza e incitar
violências de inúmeras ordens, mostrando sua feição de forma mais
intensa com um direcionamento étnico-racial. Acerca desse aspecto, o
familiar 2 refere:

– [...] Não adianta me dizer, assim, que é a mesma abordagem


que tu abordar um boyzinho branco. Não é! Vai ser abordagem
diferente. Eles já vão vir com “abre as perna”, dá-lhe tapa e coisa
assim. Vão fazer o padrão deles, né? Mas se for uns boyzinhos
bem… bom, aí o padrão já vai ser outro. [...] Eu sempre ten-
to me reservar, assim, nesse ponto, entendeu? Quando eles me
abordam, eu tento fazer tudo que eles pedem que é pra não criar
atrito, sendo o mais tranquilo possível, entendeu? Que eu sei
que seu responder… Às vezes tu pode até estar com a razão,
mas eles não vão dar o braço a torcer, né? Ou seja, eles não vão
dar o braço a torcer, mesmo que tu esteja com a razão na hora
ali. [...] Uma pessoa negra, com um policial, dois policiais, querer
falar de lei, né? Capaz até deles me levar preso, que eu ia me

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alterar com eles, ia levantar a voz com eles, e me dar a… Como
é que é que eles dizem? Desacato à autoridade, né? Iam me levar
por causa disso. Aí ia ser pior ainda. Tu tem que saber onde tu
anda, ou onde tu pisa, né? Ainda mais, assim, eu acho da raça
negra pior ainda (Familiar 2).

O familiar 2 relata a sua percepção acerca das diferenças entre


abordagens policiais voltadas para negros e para brancos, o que reitera
as falas anteriores no que diz respeito a incidência de uma maior vio-
lência policial direcionada para pessoas negras e revela a presença do
racismo institucional na execução das políticas de segurança pública.
Evidentemente, como já debatido em capítulos anteriores, a violência
policial não pode ser analisada de forma descolada do complexo so-
cial que a produz e a reproduz, tendo como fundamento a perspectiva
do Estado Penal, em tempos de retração e precarização da lógica da
proteção social. Da mesma forma, é importante perceber a política de
segurança pública inserida em um sistema de “justiça” que, também,
reproduz concepções punitivistas com nítidos direcionamentos raciais.
Nessa direção, Duarte, Avelar e Garcia (2018) ressaltam a necessidade
de se perceber que as responsabilidades são compartilhadas, sendo que
a violência policial somente existe quando o Judiciário também con-
sente e reproduz essa violência.
Diante desse contexto, é possível perceber que o racismo estrutural
se consolida como um dos pilares do Juvenicídio no Brasil. Tal afirma-
ção se confirma tanto pela análise dos dados de mortalidade juvenil –
que apontam para a perspectiva do genocídio da juventude negra ao se
analisar nos altos índices de mortalidade juvenil deste segmento; como
pelo viés da análise das experiências sociais verbalizadas pelas juventudes
na investigação. Todos os relatos apontam para a presença do racismo
estrutural nas relações que são tecidas por esses sujeitos, estando presen-
te no questionamento da presença dos jovens negros em determinados
espaços, nos medos de serem confundidos com pessoas envolvidas com
o tráfico de drogas diante de um contexto de guerra e amplificada crimi-
nalização e letalidade, na forma violenta das abordagens policiais, dentre
outros aspectos que marcam o cotidiano das juventudes que vivem nos
territórios com altos índices de mortalidade juvenil.

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Inegavelmente, como pudemos observar na maior parte das falas
apresentadas nesse capítulo, as expressões do racismo estrutural deixam
marcas de dores que, grande parte das vezes, ficam ocultas e silenciadas
diante de processos sociais que insistem em perpetuar a farsa da “de-
mocracia racial”. Explicitar tais processos, nesse sentido, se torna um
movimento fundamental na direção do necessário enfrentamento às
perspectivas racistas que guiam concepções e fortalecem o punitivismo
com nítido viés racial que, em sua última e mais cruel instância, acar-
reta e justifica a mortalidade juvenil. Tal justificativa se dá pela cons-
trução de discursos que atribuem à juventude negra, pobre e periférica
o “perfil da criminalidade”, acionando, simultaneamente, um comple-
xo ideológico calcado no punitivismo que legitima práticas violentas e
exalta o genocídio.
O uso do termo genocídio da juventude negra adquire aqui ca-
ráter conceitual e político uma vez que a “Convenção para a Prevenção
e Repressão do Crime de Genocídio” firmada pela Organização das
Nações Unidas – ONU, em 1948, considera genocídio qualquer ato
cometido com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo
nacional, étnico, racial ou religioso, tal como: assassinato de membros
do grupo, dano grave à integridade física ou mental de membros do
grupo, submissão intencional do grupo a condições de existência que
lhe ocasionem a destruição física total ou parcial, medidas destinadas
a impedir os nascimentos no seio do grupo e transferência forçada de
menores do grupo para outro grupo. Os dados de realidade apontam
que as relações desiguais de raça e classe interferem diretamente nas
condições de vida e sociabilidade da juventude negra, resultando em
sua morte sistemática (JULIANO, 2020). Nesse sentido, o termo mos-
tra-se válido tanto para compreender o racismo estrutural como pilar
do Juvenicídio, mas também, para marcar a luta política pela neces-
sidade de construção de perspectivas de proteção social que possam
frente a morte sistemática das juventudes negras.
Evidentemente, como refere Eurico (2020), o enfrentamento ao
racismo exige o combate à sociedade de classes, sendo um horizonte
necessário para guiar a luta em um contexto de naturalização da bar-
bárie. Sem negar a necessária luta pela emancipação humana torna-se

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fundamental, mesmo diante dos limites dos marcos do capital, a luta
pela proteção social das juventudes, especialmente a juventude negra
sendo o principal segmento social que vem sendo vitimado pela dinâ-
mica homicida atual. Nesse cenário de necessárias lutas, torna-se fun-
damental a perspectiva de serem travados na perceptiva das juventudes
e com as juventudes, uma vez que se esse segmento social vivencia in-
tensas desigualdades e resistências em seu cotidiano. Esvaziar a análise
das resistências das juventudes se configura em abortar potências fun-
damentais para uma direção social voltada ao fortalecimento de proces-
sos sociais emancipatórios, como nos aponta Iamamoto (2007), onde,
desigualdades e resistências se constituem como contradições inerentes
ao mesmo processo. Nessa perspectiva, as súplicas de José (16 anos) e
Fernanda (24 anos) são um alerta para a necessária construção de ações
de/para/com as juventudes:

– Vou falar agora coisas soltas e que possam se unir, tá? Ensinem
seus filhos que racismo não é algo legal, tá? Tu julgar, pré julgar
alguém pelo fato da cor da pele, não é legal. Ensinem seus filhos
que ser gay é algo natural, tá? Tu pode se identificar como tu qui-
ser, cara. Tu é livre. E, terceiro, ensine teu filho que varrer, limpar
uma casa, lavar uma louça, não é dever de mulher, entendeu? A
casa é tua também cara. Tu mora ali, o que custa? E ficar fazendo
piadinha com a insegurança dos outros também não é legal, tá?
Isso te torna um babaca. E… quer mais? Ficar assediando pessoas
na rua, também te faz um babaca. E o que eu quero dizer com
tudo isso é respeito! É isso só (JOSÉ, 16 anos).

– [...] a gente tem que lutar, que a gente, mesmo que não con-
siga mais ter esperança diante desse momento que a gente “tá”
vivendo, no caso, mas que a gente tem que manter a esperan-
ça é a única coisa, entendeu? Que talvez vai fazer, entendeu?
Que a gente, futuramente, quebre esse racismo, quebre essa falta
de segurança, essa falta de infraestrutura que nós... que nós, pessoas
pobre, no caso, vivemos, nós jovens, negros de periferia vivemos...
Que cada vez mais nós, jovens, negros... que nós ocupamos os
espaços, no caso. Seja uma cota numa universidade, seja uma
oportunidade voltada... Ah! É negro? Não importa! Nós temos
que estar, nós temos que mostrar como a gente é capaz. Como um

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negro pode ser um médico, pode ser um doutor. [...] Lutar para
que as autoridades vejam isso, no caso, e que nos proporcione
uma infraestrutura melhor, no caso. Que nos proporcione coisas
melhores, porque não é porque nós somos negros, pobres, que
nós... não! Nós temos que ter o mínimo de conforto, nós temos
que ter uma segurança boa, pra que a gente ‘vive’ bem, no caso.
A gente tem que ter um atendimento médico bom, a gente não
pode ser visto como a minoria, no caso, porque a gente é visto.
A gente tem que ser visto como todos, no caso, porque a gente somos
gente, no caso. [...] É o racismo que é em primeiro lugar, no caso.
Em segundo, no caso, é a segurança, no caso. Nós temos que
cobrar das autoridades que nos dê segurança, no caso. Que faça
a gente se sentir protegido, não desprotegido. Que faça nós se
sentir humano, não desumano, porque a gente somos humanos, a
gente sente (FERNANDA, 24 anos).

O enfrentamento à mortalidade juvenil mostra-se como uma luta


necessária diante da barbárie expressa nos altos índices de mortalidade
juvenil, para isso, mostra-se fundamental a compreensão das trajetórias
juvenis em um cotidiano marcado pela resistência por estarem vivos.
Segundo o autor camaronês Mbembe (2018, p. 5), “o estado branco
burguês exerce o poder sobre os corpos negros e periféricos, compreen-
dendo, nesse caso, o poder como a capacidade de ditar quem pode
viver e quem deve morrer”. Deste modo, entende-se que violência está
ligada à estrutura que organiza as relações sociais, reproduzindo-se na
vida diária de diferentes grupos e, aqui especificamente, no cotidiano
da juventude negra e periférica. A produção e reprodução da situação
de subalternidade dos corpos pretos e periféricos resulta em um pro-
cesso de morte social, pois exclui estes corpos do acesso a direitos polí-
ticos, econômicos e sociais, como também a morte física, que pode ser
apontada como reflexo da morte social acentuada com o apagamento
da possibilidade de existir e transformar a realidade social.
Assim, mostra-se fundamental o questionamento acerca das prá-
ticas racistas que permanecem e se fortalecem diante de um Estado Pe-
nal, potencializado pela ideologia conservadora que comemora a morte
e festeja os “rastros de sangue” deixados nas periferias urbanas. O racis-
mo estrutural articulado com o modelo de sociabilidade vigente realiza

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o que se pode chamar de um grande processo seletivo articulando raça,
etnia, classe social e território.

Considerações finais

Os índices de acesso da população negra e direitos humanos bá-


sicos em comparação com a população branca revelam por si a estrutu-
ra racista da sociabilidade brasileira. O racismo se perpetua não como
“anormalidade” dentro da sociabilidade brasileira, mas sim enquanto um
elemento estrutural do sistema econômico vigente. Diante desse con-
texto, faz-se necessário evidenciar e combater a violência sofrida pelos
corpos negros, sendo que tal processo só é possível na medida em que
se “desconstrói” o imaginário criado pela branquitude e reforçado pela
grande mídia de que o negro se constitui em um “sujeito perigoso”. Este
espetáculo que tem como direção o racismo estrutural desumaniza a po-
pulação negra e reforça os processos de violência.
Os dados da pesquisa, tanto no que se refere à análise dos índices
de mortalidade juvenil demonstrado no primeiro capítulo do presente
livro, assim como a análise dos relatos orais dos moradores dos bairros de
Porto Alegre/RS que concentram maiores índices de mortalidade juvenil
trazem elementos suficientes para sustentar a tese de que o Rio Grande
do Sul segue a tendência nacional no que se refere à vitimização de jovens
negros. O racismo estrutural mata e violenta de forma perversa os jovens
negros gaúchos com a mesmo perversidade e dinâmica que no restante
do Brasil. Nesse sentido, refuta-se a tese, muitas vezes divulgada de forma
explícita ou implícita, que a colonização europeia no Rio Grande do Sul
faria com que a dinâmica do Juvenicídio no que se refere à vitimização
de jovens negros ocorresse de maneira diferenciada. Pode-se afirmar que
a população autodeclarada negra (pretos e pardos) do Rio Grande do
Sul totaliza 1.725.166 pessoas, segundo o censo demográfico de 2010
realizado pelo IBGE, o que representa 16,13% dos habitantes do estado,
porém percebe-se a permanência da vitimização negra quando analisados
os dados de violência em termos absolutos.
A ideia que a colonização no Sul do país faria que as relações ra-
ciais fossem diferenciadas é reflexo do mito/farsa da “democracia racial”

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e da perspectiva do “embranquecimento cultural”, que, nos termos de
Nascimento (2016) se constitui em mais uma expressão do genocídio
do negro brasileiro. De fundo, tais concepções, além de distorcer a rea-
lidade, possuem cunho eugenista na medida em que são manifestações
do racismo estrutural potencializado no cenário atual. Evidencia-se, nes-
se sentido, a necessidade de se visibilizar tanto a história negra do Rio
Grande do Sul, grande parte das vezes lidas nas “notas de rodapé”, bem
como vocalizar vozes negras que denunciem as práticas racistas que são
tecidas no cotidiano.
O racismo estrutural e sua relação com a mortalidade juvenil se
constitui em uma categoria emergente do presente estudo sendo nítida
tanto nos dados estatísticos analisados, quanto nos relatos de jovens e
familiares de jovens que foram entrevistados na etapa qualitativa da pre-
sente investigação. Uma das faces do racismo estrutural que merece des-
taque é a frequente captura da população negra pelo desassalariamento
(MARTINS, 2012) e as consequências desse processo na sociabilidade
marcada pelo consumo. Outro fator importante é a compreensão que
o colonialismo é uma herança do Estado brasileiro e que o mesmo não
se responsabiliza pela reprodução e manutenção do racismo estrutural,
na medida em que a população preta e periférica se torna invisível a ele,
reforçando então a proteção aos brancos, principalmente os que possuem
maior poder aquisitivo financeiro e a (des)proteção social de negros e ne-
gras que se encontram a margem das prioridades do Estado burguês, que
quando se faz presente na vida desta população é através de ações penais,
punitivistas e conservadoras.
Desta forma, pode-se afirmar que a mortalidade juvenil tem como
base o racismo estrutural que gradualmente ceifa a vida de jovens negros
nas grandes periferias do Estado brasileiro, incluindo a cidade de Porto
Alegre- RS, sendo, portanto, o resultado de violações diárias de direitos
humanos ligados a essa população.

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Frente de Enfrentamento à Mortalidade Juvenil:
sociedade civil, políticas públicas e respostas coletivas

David Petar da Conceição Mantalof


Maria Fernanda Landim
Joice Lopes da Silva
Maurício Perondi

O presente capítulo tem por objetivo trazer reflexões acerca da
construção de processos de enfrentamento à mortalidade juvenil, tendo
como foco principal enunciar a construção da Frente de Enfrentamento
à Mortalidade Juvenil na cidade de Porto Alegre (FEMJUV). Esta se
constitui como um movimento da sociedade civil, que uniu diferentes
atores para denunciar os altos índices de morte de jovens nas periferias da
Capital. Destacam-se os movimentos de articulação entre os diferentes
segmentos sociais que estão envolvidos em sua construção, assim como a
sua dinâmica organizativa e de atuação social.
Aponta-se a importância da articulação coletiva dos movimentos
sociais enquanto tensionadores de políticas públicas que possam barrar e
combater a mortalidade juvenil. Enfatiza-se também a construção de po-
líticas públicas voltadas à infância e juventude, além da interface da socie-
dade civil na garantia dos direitos humanos das juventudes. Na parte final,
são discutidas as relações entre o protagonismo juvenil, as formas de parti-
cipação e as resistências desenvolvidas pelos jovens. Busca-se evidenciar as
conexões e articulações necessárias para que a mortalidade juvenil diminua
no Brasil e que as juventudes possam ter melhores perspectivas de vida.

A Frente de Enfrentamento à Mortalidade Juvenil: seu surgimento


e articulação com as políticas públicas

Compreender a construção da Frente de Enfrentamento à Morta-


lidade Juvenil em Porto Alegre implica conhecer quais são os sujeitos que

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vivenciam esse processo, quais são as respostas dadas pelo poder público
da Capital e quais são as interlocuções que são realizadas no âmbito das
políticas públicas até o presente momento.
Para as reflexões aqui apresentadas, nos valemos do pronome
coletivo (nós), em que pese, em vários momentos, todos e todas nós
sintamo-nos, muito sós. Contudo, as batalhas nos ensinam que não
é possível conquistar a vitória sendo um único guerreiro. Essa tercei-
ra pessoa do plural, traz consigo muitas mãos, muitas ideias e muitas
frentes. Nem todas as batalhas são curtas, ou melhor, a maioria delas
acumulam anos sem fim.
Pouco se fala sobre os jovens mortos em virtude da violência, mas
menos ainda se fala das mães desses jovens, pois ao analisarmos a traje-
tória familiar de alguns jovens pode se afirmar que o conjunto de vio-
lações de direitos permitem olhar a cada momento, e a cada momento
seguinte, histórias se repetindo. Mulheres, na maioria negras, com bai-
xa escolaridade, que não raras vezes, também tiveram que, muito cedo,
deixar a escola, para criar e sustentar seus filhos, na grande maioria das
vezes, sozinhas, exercendo trabalho informal e com renda que não atin-
ge um salário-mínimo. Isso quando conseguem se inserir no mercado
de trabalho. Em sua maioria, são separadas dos seus companheiros por
motivos que também se repetem com frequência, com histórias de vio-
lência doméstica, alcoolismo e muita, mas muita, falta de tudo. Vivem
em casas minúsculas (peças), de um, de dois ou três cômodos, muitas
frestas, sem banheiro ou com banheiro improvisado.
Nessas condições, sem o mínimo de segurança, em comunidade
vulnerável e sem a figura masculina, num mundo machista, é sempre
algo ainda mais difícil. Ter um homem que imponha autoridade, seja
em casa com os filhos, seja com o entorno (perante a vizinhança), pode
ser uma escolha cruel. Quando vivem juntos, os pais, “o homem da
casa” aquele a quem a sociedade atribui o papel do sustento, dificil-
mente se faz presente. Sai diariamente para encontrar uma forma de
trazer alguma coisa para casa e alimentar a família. Em geral eles não
se apresentam aos serviços de Assistência Social, Educação e Saúde.
Quando conhecidos, com raras exceções, é possível perceber um certo
constrangimento e até uma certa vergonha, como se tivesse que respon-

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der à sociedade, pelo fato de não corresponder ao papel de provedor.
Em geral estão em subempregos, têm baixa escolaridade, o que são
características comuns em ambos os gêneros.
Existem códigos que fazem parte do sistema econômico, que pro-
movem o acirramento da desigualdade e levam à exclusão. São códigos,
na medida em que não são decifrados se não existir a capacidade crítica
para compreendê-los. Deste modo, as histórias se repetem, junto com as
vulnerabilidades sociais, que encontram arranjos sociais que se atualizam
para perpetuar a continuidade da exclusão. Há pouco tempo, nem todas
as famílias tinham TV e telefone, e agora, poucas têm acesso à internet.
As faltas de acesso à Moradia digna, à Educação, à Saúde e ao sustento,
se naturalizam aos olhos da sociedade. As demandas da sociedade para
os gestores é ‘’tirar das ruas”, numa lógica higienista, ao invés do investi-
mento em políticas de Habitação, de Educação e de Saúde.
Outro aspecto relevante para a compreensão das trajetórias juvenis
diz respeito à sua relação com a Educação. De modo geral, quando são
crianças, estão matriculados nas escolas, quando estão em idade obriga-
tória, já que a Educação Infantil não oferece vagas suficientes para garan-
tir a inclusão dos mesmos, quando são menores. Apesar de haver maior
oferta disponível para alunos dos primeiros anos do Ensino Fundamen-
tal, constata-se que isso não significa garantia de frequência, tampouco,
é sinônimo de êxito no processo de aprendizagem. Algo que sempre é
muito indagador é a origem das dificuldades de aprendizagem, pois não
são raras as vezes que estes problemas perpassam gerações. Em vista disso,
muitos adolescentes e jovens acabam evadindo muito precocemente das
escolas, buscando outras formas de inserção social.
Tais condições, somadas a fatores de baixos níveis de escolariza-
ção, acesso precário e informal ao mundo do trabalho, a falta de suporte
familiar, a inexistência ou insuficiência de políticas públicas e a falta de
perspectiva de vida e de construção de projetos de futuro colaboram para
fragilização das situações pessoais de vida e para a violação de direitos das
juventudes. Para muitos deles, a mortalidade acaba sendo uma conse-
quência de trajetórias sem assistência e com altos índices de precarização.
Como consequência, é possível perceber que a mortalidade de jo-
vens e adolescentes por motivos violentos é uma realidade que vem se

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agravando. De 2008 a 2018, a taxa no país aumentou 13,3%, passan-
do de 53,3 homicídios a cada 100 mil jovens para 60,4 (IPEA, 2021).
O tema tomou relevância na mídia, aliado à campanha da redução da
maioridade penal que trazia um viés discriminatório voltado aos jovens
e adolescentes da periferia. É nesse cenário, em que o tema da violência
envolvendo jovens e adolescentes de periferia toma proporções preocu-
pantes, que nasce a Frente de Enfrentamento à Mortalidade Juvenil, na
cidade de Porto Alegre.
As dinâmicas sociais expressam contradições que, observadas atra-
vés de lentes inclusivas, ampliam o olhar e trazem à tona a realidade de
que os jovens e adolescentes de periferia, no Brasil e em particular em
Porto Alegre, vem historicamente sofrendo processos de exclusão social,
sendo vítimas de violências cruéis, seja perpetrada pelas dinâmicas das
comunidades, seja pela ação do Estado. Os jovens e adolescentes vêm
sofrendo a mais grave violação de direitos, o direito à vida. A constatação
do aumento vertiginoso da mortalidade entre jovens e adolescentes nos
últimos anos, revelados pelos dados do relatório do Mapa da Violência
(IPEA, 2020) trouxe o lamentável e preocupante panorama da mortali-
dade juvenil por armas de fogo.
Segundo o relatório do Atlas da Violência 2020 (IPEA, 2020), fo-
ram 30.873 jovens vítimas de homicídios no ano de 2018, o que significa
uma taxa de 60,4 homicídios a cada 100 mil jovens, e 53,3% do total de
homicídios do país. Conforme o Atlas da Violência 2021, divulgado pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2021), no Estado do
Rio Grande do Sul, 1.291 jovens entre 15 e 29 anos foram assassinados
em 2018. Em Porto Alegre, conforme os dados da pesquisa que originou
esta obra, a realidade também é preocupante e evidencia o descaso e a
falta de compromisso do poder público e da sociedade em oferecer um
olhar protetivo para esses jovens e comunidades.
Os dados do relatório, aliado aos relatos cotidianos trazidos pelos
jovens e adolescentes atendidos nos serviços nos diversos territórios da
política da Assistência Social, em especial nos atendimentos do Serviço
de Medidas Socioeducativas, sinalizam para a necessidade de ações co-
letivas e de articulação imediata com o intuito de trazer essa realidade
para o centro das discussões. O diálogo com as demais políticas da rede

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de Proteção aos Direitos da Criança e do Adolescente, com a Academia,
com o Sistema de Garantia de Direitos, com entidades da sociedade civil,
Conselhos etc. trouxe a percepção que estava pulsante a necessidade de
constituição de um espaço que agregasse as forças comprometidas com a
discussão acerca das violações de direitos a que os jovens e adolescentes
estavam submetidos.
A partir deste contexto é que a Frente de Enfrentamento à Mortali-
dade Juvenil (FEMJUV) nasceu com expressiva participação de pessoas e
entidades representativas, comprometidas em desvelar a problemática da
violência a que os jovens e adolescentes da periferia são submetidos coti-
dianamente. A primeira reunião ocorreu em agosto de 2016, em espaço
cedido por uma universidade privada de Porto Alegre. Ali, percebeu-se
o quanto todos estavam mobilizados e convocados a agir em defesa dos
direitos dos jovens e adolescentes, vítimas de violência. O Ato de Lan-
çamento da FEMJUV, foi realizado em maio de 2017, no auditório da
AJURIS – Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, com participação
que excedeu a quantidade máxima local, contando com representantes
do 3º Juizado da Infância e da Juventude, da Delegacia da Criança e
do Adolescente, da Secretaria Municipal de Educação, do Observatório
Juventudes da PUCRS, do Grupo de Estudos em Juventudes e Políticas
Públicas (GEJUP), da Defensoria Pública, da AJURIS, da Fundação da
Assistência Social Cidadania (FASC), da Secretaria de Governança Mu-
nicipal, do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescen-
te, entre várias entidades que atuam na defesa dos direitos e na rede de
proteção aos direitos das crianças e adolescentes.
A violência e a mortalidade juvenil, não coincidentemente, vêm
crescendo de forma proporcional ao processo de desmonte das políticas
públicas. Entender toda essa dinâmica, também se colocou como ques-
tão a ser entendida pela FEMJUV, tema este tomado como desafio pelo
Grupo de Pesquisa, resultando na produção ora apresentada.
Quando os dados referentes à mortalidade juvenil são apresenta-
dos, fala-se de jovens e adolescentes do gênero masculino, na sua gran-
de maioria negros, moradores de periferia. Esse contexto impele a mí-
dia e os formadores de opinião a fortalecerem o discurso do “bandido
bom, é bandido morto”, imputando apenas a condição de produtor de

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violência quando se referem a esses jovens e adolescentes. Essa atitude
de “demonizar” os jovens e adolescentes de periferia denuncia delibe-
radamente a intenção de criminalização da pobreza. A não aceitação
desta visão sobre os jovens e adolescentes de periferia, especialmente
os negros, que a mídia vem intensamente tentando construir, é mais
um aspecto mobilizador da FEMJUV, não admitindo olhares e discur-
sos absolutamente discriminatórios por parte da sociedade e do Estado
para com essa população já tão marginalizada.
É também propósito da Frente de Enfrentamento à Mortalidade
Juvenil convocar a sociedade civil a ampliar esse debate, proporcionan-
do um entendimento que ultrapasse barreiras, conceitos e preconceitos
oferecendo um olhar aos nossos jovens, libertando-os de rótulos e olha-
res discriminatórios.
Internacionalmente a adolescência é entendida enquanto condição
peculiar de pessoa em fase de desenvolvimento, de formação, de transi-
ção, de construção de valores e possibilidades. Aos adolescentes e jovens
de periferia quase nada, ou nada, é ofertado, enquanto recursos que favo-
reçam seu desenvolvimento, sua capacidade de expansão de horizontes,
de acesso à informação, mas muito lhes é cobrado. A eles são negados
direitos de existência, de pertencimento, de educação, cultura, lazer e
de expressão. O Estado e a sociedade apenas lançam seu olhar discri-
minatório, de exclusão e menos-valia, através das forças de segurança
e de outros aparatos repressivos. São muito poucas e isoladas as ações
de estímulo e de reconhecimento das produções culturais, artísticas e
demais expressões que os jovens de periferia produzem, superando todas
as dificuldades e o olhar desacreditado que a sociedade lhe oferece. A
potencialidade do jovem de periferia não é reconhecida, não é valorizada,
não é estimulada. No entanto, a qualquer ato de violência, muitas vezes
isolado, o olhar discriminatório é suficiente para capturar todas as histó-
rias, trajetórias e potencialidades dos jovens e rotulá-los, enquadrá-los na
marginalidade e exclusão.
A Política da Assistência Social é considerada uma política de arti-
culação de aquisição de direitos. Tal articulação com as demais políticas e
serviços intenciona uma mudança de cenário de pauperização das famí-
lias e indivíduos, da condição de invisibilidade, de extrema vulnerabilida-

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de, de exclusão e falta de acesso às condições mínimas de sobrevivência,
à condição de cidadania, de acesso às políticas e serviços públicos. Des-
taca-se essa política, pois ela foi diretamente impactada pela FEMJUV,
enquanto movimento social tensionador e provocador a respeito da ga-
rantia de direitos humanos e sociais. É fundamental o conhecimento das
necessidades das famílias e indivíduos atendidos pelas políticas públicas,
considerando suas individualidades, suas trajetórias, suas limitações, mas
fundamentalmente suas potencialidades, visando possibilitar processos
de mudança. Nesse contexto, faz-se indispensável que as políticas de
educação, saúde, profissionalização, trabalho e renda, segurança alimen-
tar, habitação etc. estejam vivas e em condições de atender as demandas
da população historicamente excluída, ofertando alternativas para uma
real superação da condição de vulnerabilidade.
Para uma atuação efetiva, o Sistema Único da Assistência Social
orienta como princípios balizadores da ação da política, a territorialidade
e o atendimento sociofamiliar e preconiza o trabalho em rede, a articu-
lação das demais políticas e serviços que compõem a rede de proteção à
criança e ao adolescente, no sentido de atender as necessidades identifi-
cadas. No entanto, a constatação do gradativo desmonte das políticas pú-
blicas compromete as ações articuladas de acesso aos direitos preventivos
à fome, à miséria e à violência, dificultando os processos de superação das
condições agravadas.
Desde a implantação do Sistema Único da Assistência Social
(SUAS), as medidas socioeducativas em meio aberto, sejam elas Li-
berdade Assistida e Prestação de Serviço a Comunidade, vem sendo
nacionalmente ofertado pela política da Assistência Social, através dos
Centros de Referências Especializados da Assistência Social (CREAS).
O Serviço de Medidas Socioeducativas ofertado pelo CREAS, se cons-
titui como espaço de reflexão importante em que são trabalhados com
os jovens e adolescentes temas relevantes para sua constituição enquan-
to sujeitos de direitos. São tratadas as questões que os levaram à práti-
ca do ato infracional, a identificação das necessidades de inclusão em
políticas públicas, o reconhecimento de suas potencialidades, de suas
capacidades adormecidas que, por vezes, são negadas ao longo de sua
infância e adolescência. Para muito além dos objetivos punitivos que

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a sociedade, geralmente, acredita como efetivos, a Socioeducação tem
como objetivo acentuar o caráter pedagógico da medida socioeducati-
va. Nesses momentos, reflexões profundas acontecem e se desvelam as
histórias de violência às quais os jovens e adolescentes são vítimas. Nes-
ses espaços são evidenciadas as necessidades de articulação com outras
frentes de atuação para ampliar a discussão e enfrentar a problemática
da violência e da mortalidade juvenil.
Por muitos anos Porto Alegre teve como o ato infracional mais
praticado, o tráfico de drogas. Ao se trabalhar com os adolescentes a
construção dos Planos Individuais de Atendimento (PIA), é tratada
as motivações que os levam ao envolvimento com o tráfico de drogas.
Nesse processo as equipes observaram se tratar, majoritariamente, de
adolescentes oriundos de famílias em condição de extrema pobreza, em
situação de evasão escolar importante que não vislumbram outra forma
de superação da miséria, ou seja, o envolvimento com o tráfico, mui-
tas vezes, era visto como forma de sustento familiar. O convívio com
uma mídia extremamente apelativa ao consumo leva os adolescentes
ao universo do tráfico como forma de acesso a bens de consumo que
os transportam a uma sensação de reconhecimento e poder perante a
comunidade. O sentido de pertencimento, reconhecimento, aceitação
faz parte da subjetividade de qualquer jovem, independente de classe
socioeconômica. Pontuar essa questão não é uma justificativa para o
cometimento do ato infracional, mas entendê-la faz-se necessário para
que os esforços no sentido de erradicar a pobreza e a miséria sejam em-
pregados pelo poder público e pela sociedade. Empenhar-se no forta-
lecimento das políticas públicas significa mobilizar-se definitivamente
por uma sociedade menos produtora de violências.
O Serviço de Medidas Socioeducativas possui na sua estrutura
um Conselho Gestor, que conta com a representação de vários órgãos e
representações políticas. Importante destacar a adesão e apoio do Con-
selho na construção da FEMJUV e a participação da mesma dentro do
Conselho Gestor, através de profissionais que se organizam dentro do
coletivo. As discussões acerca da violência perpetrada pelos aparatos do
Estado aos jovens e adolescentes em cumprimento de Medidas Socioe-
ducativas já aconteciam nas reuniões do Conselho, mas de forma muito

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tímida. A constituição da FEMJUV trouxe outra dimensão à discussão
do tema no Conselho Gestor, trazendo-a de forma intensa e constante,
resultando em encaminhamentos junto à Secretaria de Segurança Pú-
blica, ao Comando da Brigada Militar e demais órgãos de Segurança
Pública. Em diversas reuniões foram trazidos relatos de casos concretos
vivenciados nos territórios de atuação dos CREAS, e situações levadas
à Defensoria Pública que vem demonstrando uma atuação aguerrida
diante das denúncias relatadas.
Desta forma, destaca-se a importância de a sociedade civil orga-
nizada estar ocupando os espaços de políticas públicas, tencionando o
debate acerca da realidade social que ultrapassa barreiras institucionais.
Neste caso, a Frente de Enfrentamento à Mortalidade Juvenil torna-se
fio tensionador e condutor do debate acerca das violências sofridas pelos
adolescentes que cumprem medidas socioeducativas em meio aberto.
Após a contextualização da atuação da FEMJUV, cabe apresentar
as suas formas de organização e de dinamização de suas atividades. Antes
da Pandemia de Covid-19, a FEMJUV se organizava em quatro Grupos
de Trabalho (GTs). Estes foram espaços que reuniram pessoas que tra-
balhavam, vivenciavam e ou tinham interesse num determinado tema
que tivesse interface com a mortalidade juvenil. O GT Políticas Públicas
tinha como objetivo mapear ações ou ausências das diversas políticas
no atendimento às necessidades e proteções aos jovens e adolescentes.
O GT Comunicação tinha o objetivo de divulgar e articular as ações da
FEMJUV, assim como dar visibilidade social à temática da mortalidade
juvenil. O GT Protagonismo Juvenil tinha por objetivo articular as ju-
ventudes, fomentar o debate entre elas e incentivar a sua participação em
ações propostas pela Frente. O GT Pesquisa teve como objetivo articular,
pesquisar e enunciar de forma qualitativa e quantitativa os dados refe-
rentes à mortalidade juvenil em Porto Alegre. Esses dois últimos GT’s
merecem um destaque pela amplitude de suas ações e pelas repercussões
que suas ações tiveram para a Frente de Enfrentamento.
Em que pese à construção da FEMJUV ter se dado por iniciativa
dos trabalhadores em várias frentes de atuação, havia o entendimen-
to da necessidade e importância da participação dos jovens e adoles-
centes nas discussões e ações da mesma. Tal perspectiva dialoga com

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a de vários autores da área das políticas públicas de juventude e da
participação social juvenil, que destacam a importância de os jovens
serem sujeitos ativos nos espaços em que participam (ABRAMOVAY e
CASTRO, 2009; BRENNER e CARRANO, 2008; NOVAES, 2012;
RIBEIRO, 2016). Nesse sentido, o GT Protagonismo Juvenil realizou
um trabalho intenso de mobilização para a participação das juventudes
nos processos da FEMJUV. O envolvimento dos Centros da Juventude
e de alguns Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos foi
fundamental. As atividades passaram a ser construídas com e por esse
público jovem, que trouxe um frescor, uma riqueza e uma intensidade
enorme às ações da Frente. Ter os auditórios da Câmara de Vereadores,
das Universidades, da AJURIS e dos Centros de Juventudes lotados
por jovens de periferia, participando de discussões efervescentes sobre
temas como seletividade penal, mortalidade juvenil, mídia, criminali-
zação, resistência e políticas públicas entre outros foi muito importan-
te para a Frente. Em tais ocasiões, os jovens trouxeram para o centro
das discussões, suas trajetórias, como se enxergam no mundo e como
percebem a forma como o mundo os enxerga, problematizando o que
entendem que é a violência. Foram momentos de tanta riqueza, que
por si só, justificaram a criação da Frente de Enfrentamento.
O GT Pesquisa se mantém bastante atuante e firme no compro-
misso de aprofundar o debate acerca da Mortalidade Juvenil, enquanto
a mais grave violação de direitos vivenciada pelos jovens e adolescentes
na capital gaúcha. Para tal, foi escrito o projeto de pesquisa intitulado
A Mortalidade Juvenil no Rio Grande do Sul: Uma Análise dos Índices
de Violência Letal Juvenil e suas Possibilidades de Enfrentamento (FE-
MJUV, 2019). O produto da pesquisa, apresentado nesta produção, tem
sua origem “numa articulação coletiva na Frente de Enfrentamento à
Mortalidade Juvenil em Porto Alegre, que se constitui em uma rede de
profissionais vinculados às políticas públicas como assistência social, saú-
de, sociojurídico, previdência social, educação, bem como, movimentos
sociais, grupos de pesquisas, dentre outros” (FEMJUV, 2019, p. 3.). A
pesquisa foi coordenada pelo Professor Dr. Giovane A. Scherer e vem
preencher uma das lacunas evidenciadas nas discussões que é a análise de
“como vem se constituindo a relação entre os altos índices de mortalida-

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de juvenil e o acesso das juventudes às políticas públicas no Rio Grande
do Sul, a fim de subsidiar ações no âmbito da proteção social para esse
segmento” (FEMJUV, 2019, p. 5).
Cabe também destacar a criação de redes sociais digitais da FE-
MJUV, que foram criadas com o objetivo de ampliar a visibilidade so-
cial sobre a mortalidade juvenil, divulgar as ações do grupo e articular
instituições e pessoas mobilizadas pelo tema. Inicialmente, criou-se uma
página no Facebook1, no ano de 2017, e, com o início da Pandemia
de Covid-19, criou-se o perfil do Instagram2, em 2019. Para contribuir
com as atividades realizadas e para dinamizar as redes sociais também foi
criada uma identidade visual da Frente, com logotipo, lettering, cartaz,
banners e outros elementos que pudessem contribuir neste sentido.
Todos esses movimentos caminham em direção à utopia da cons-
trução de uma sociedade em que a existência da FEMJUV não se faça
mais necessária, uma vez que todos os cidadãos, todas as crianças, to-
dos os jovens e adolescentes terão seus direitos fundamentais garantidos.
Uma sociedade que proporcione o acesso às políticas públicas de forma
abrangente e onde todos os indivíduos terão sua dignidade garantida.
Um país em que o direito à Educação, à saúde, ao trabalho e renda, a
moradia, a arte, a cultura, a expressão e principalmente a vida, não serão
mais violados. Enquanto não for possível alcançar esse objetivo, faz-se
necessária a articulação da sociedade e dos movimentos sociais para evi-
denciar as mais diferentes desigualdades e resistir contra elas.

Articulações Coletivas: o protagonismo enquanto


processo de resistência à mortalidade juvenil

No que tange a resistência à mortalidade juvenil faz-se necessário


apontar os principais sujeitos que são vítimas nesse processo, ou seja, os
jovens, compreendendo as juventudes enquanto agentes protagonistas. A
grande mídia transmite duas imagens dos jovens da periferia. A primeira,
do jovem periférico enquanto sujeito “perigoso’’, e a segunda enquan-

1 Disponível em: https://www.facebook.com/Frentedeenfretamentomjpoa


2 Disponível em: @femjuv

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to sujeito “passivo’’ frente às transformações sociais da realidade. Nesta
dualidade, o protagonismo só se manifesta de forma criminalizadora,
excluindo qualquer possibilidade de a juventude negra e periférica ser
vista enquanto agente de transformações sociais.
Diante deste cenário, a Frente de Enfrentamento à Mortalidade
Juvenil nasce como ancoragem para publicizar os processos de resistência
das juventudes periféricas. Pode-se denominar tal ação como o fomento
do protagonismo juvenil. O protagonismo se manifesta na FEMJUV
principalmente através da articulação com os jovens atendidos pelos
serviços de políticas públicas para adolescência e juventude na cidade
de Porto Alegre. Sejam Serviços de Convivência e Fortalecimento de
Vínculos (SCFV), Centros da Juventude (CJ) ou até mesmo os jovens
atendidos pelos CREAS na política de Assistência Social. Dentro destes
equipamentos a FEMJUV tem fomentado debates a respeito da morta-
lidade juvenil na cidade de Porto Alegre, inicialmente publicizando os
dados referentes a esta realidade e posteriormente trazendo para o debate
as principais características desse fenômeno social junto às juventudes,
trabalhadores e gestores de políticas públicas.
A publicização dos dados referente a morte de jovens, bem como
os elementos para debate são por si processos de resistência das próprias
juventudes. A sua existência e inserção nos espaços de políticas públi-
cas devem ser vistas enquanto formas de enfrentamento à mortalidade
juvenil, na medida em que esses espaços fomentam o acesso a direitos
humanos e ao pensamento crítico frente a realidade social. Tais espaços
se tornam ancoragem para esses jovens, garantindo a segurança alimen-
tar, acesso ao mercado de trabalho, o direito à convivência comunitária, a
possibilidade de expor os marcadores sociais que englobam a construção
das juventudes como raça-etnia, gênero, orientação sexual, classe social
etc., livres de preconceitos.
Outra resposta de enfrentamento à mortalidade juvenil é a auto-
gestão das juventudes periféricas e dos coletivos construídos pelas mes-
mas dentro das comunidades de Porto Alegre. Movimentos sociais, gru-
pos, associações de bairros, times de futebol e demais coletivos tornam-se
pontos de segurança para as juventudes. Esse processo coletivo pode ser
visto e expresso de diversas formas: seja através da música, do slam, do

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esporte, da arte e de outras formas de existir, viver, sobreviver e resis-
tir. A arte, nesse sentido, por vezes, ocupa lugar central, tanto enquanto
denúncia da violência vivenciada pela própria juventude quanto como
espaço de lazer.
Tem-se o imaginário de que o jovem periférico não é digno de
lazer, tão pouco digno de acessar direitos básicos como Educação de qua-
lidade, Saneamento Básico etc. Nesta perspectiva, na sociabilidade atual
vivenciada pelas juventudes, o jovem periférico é visto enquanto mão de
obra barata, tem cobrança para que tenha acesso ao mercado de traba-
lho, mas não é oferecido condições para que ele se desenvolva e acesse
esse direito com proteção social. Portanto, os espaços de cultura e lazer,
construídos com e para a juventude, se tornam um oásis de resistência
frente ao processo de mortalidade juvenil. Sejam espaços fomentados
pelo Estado, com investimento público, sejam espaços de articulação e
organização comunitária. Desta forma, a sociedade civil e os movimen-
tos sociais acabam tendo um papel central, pois além de construírem
espaços de protagonismo juvenil, tem o dever de tencionar respostas pú-
blicas, eficazes e gratuitas por parte do Estado.
É preciso compreender e valorizar cada passo dado pelos sujeitos
que vivenciam os processos que levam à mortalidade juvenil. Por vezes,
o processo de desigualdade é tão agudo que o simples fato de um jovem
sair de seu bairro através de transporte público, para chegar até o cen-
tro da cidade, se torna um ato de superação das condições sociais a ele
impostas. Isso significa que ocupar lugares que, historicamente foram
excluídos das juventudes negras e periféricas, se torna ato de (r)esistência.
A FEMJUV procura realizar o debate sobre a pluralidade das
juventudes, logo não é possível analisar apenas um grupo de jovens e
presumir que diferentes jovens tenham os mesmos acessos, portanto, as
mesmas escolhas e vivências, pois os marcadores sociais influenciam tan-
to como será o desenvolvimento social desta parcela de jovens, como o
tempo de vida que eles terão para se desenvolver.
Na medida em que se compreende que as oportunidades são dis-
tintas para as diferentes juventudes, pode-se afirmar que a FEMJUV,
enquanto expressão da sociedade civil, acaba tendo um papel político de
disputa e articulação nos espaços onde ela está inserida. A onda neolibe-

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ral e o pensamento conservador se aproximam das grandes periferias da
cidade de Porto Alegre, movidos pelos jornais sensacionalistas e figuras
políticas e trazem consigo mecanismos que velam as raízes da mortalida-
de juvenil, cobrindo com uma cortina de fumaça os processos que cola-
boram com a morte das juventudes. A desinformação faz com que diver-
sos jovens não tenham a compreensão crítica dos processos de violação
de direitos humanos presentes em suas vidas, vivenciam tais violações,
sofrendo todo o impacto das políticas higienistas, racistas, LGBTfóbicas
que são reproduzidas pelo sistema vigente.
O conservadorismo faz com que, por vezes, a juventude alimente
um ódio a ela mesma, tirando assim o foco das raízes da violência repro-
duzidas socialmente. Tal movimento fornece respostas rasas e criminali-
zadoras para problemáticas complexas. Portanto, compreende-se a ne-
cessidade da construção de coletivos e movimentos sociais que disputam
os processos políticos e a consciência social das juventudes, sendo essa
também uma bandeira de luta da FEMJUV.
O processo de conscientização só é possível através do Acesso à
Informação e à Educação, formal e informal. No que tange a Educação
Formal, se perpetua, uma política de educação que está nos discursos
dos representantes, mas que raramente se apresenta na vida real, eviden-
ciando que não há, de fato, a preocupação com a qualidade do ensino
público. Não porque não existam nas escolas públicas professores capa-
zes e competentes, mas porque o fortalecimento da política pública, na
direção de um processo de conscientização de classes não interessa ao
sistema. A partir da afirmação de Paulo Freire (2005) de que as pessoas
não se libertam sozinhas, elas se libertam em comunhão, é possível com-
preender que os processos de conscientização são realizados de forma
coletiva, através do diálogo e da interação entre os sujeitos.
A mortalidade juvenil torna-se um problema coletivo com múl-
tiplas causas no Brasil, logo não é possível ter apenas uma resposta ao
problema. Portanto, faz-se necessária a participação da sociedade civil e
dos movimentos sociais neste debate, tanto enquanto ação direta, quan-
to como tensionador do Estado para construção e para a ampliação das
políticas públicas voltadas à proteção social das juventudes.

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Considerações finais

Outras diversas formas de resistência utilizadas pelas juventudes pe-


riféricas e negras não foram citadas nesse texto. As resistências podem ser
coletivas ou singulares atravessadas pela subjetividade dos sujeitos e pelo
que é exigido de cada um. Existir por vezes “não é um processo natural’’,
ou seja, as juventudes não acordam todos os dias com as devidas condições
físicas, materiais, psicológicas, sociais e subjetivas para que isso ocorra.
Sendo assim, compreende-se que a vida das juventudes é um movi-
mento de resistência, na medida em que cada jovem citado ao longo des-
sas realidades sociais adversas contraria as estatísticas estando vivo, aces-
sando espaços e direitos, que historicamente foram negados, tais como as
universidades, entrando no mercado de trabalho formal, conquistando
os sonhos e objetivos coletivos e individuais. Esses movimentos são le-
gítimos e fazem parte da pluralidade dos processos de enfrentamento à
mortalidade juvenil.
O fenômeno da mortalidade juvenil necessita de respostas efetivas
para o seu enfrentamento. Aguardar respostas do Estado, que realiza a
manutenção deste status quo, pode ser insuficiente. Portanto, a denúncia
desse processo, através da sociedade civil, torna-se um caminho possível,
ainda que lento e desgastante. O Estado movimenta estruturas rígidas,
que têm dificuldades para provocar mudanças, de modo que acaba por si-
lenciar cada uma das mortes causadas pelo Juvenicídio. Faz-se necessário
articular políticas públicas, gestores municipais, universidades, sociedade
civil organizada, poder judiciário, e outros atores para que esse processo
realmente ocorra, barrando os altos índices de mortalidade expressados
em capítulos anteriores.
Faz-se necessário também a compreensão desse processo por parte
das juventudes periféricas, buscando a articulação com as mesmas a fim
de garantir a compreensão desse fenômeno social por parte dos jovens.
É imprescindível desmistificar a imagem construída pela grande mídia
do jovem, principalmente negro, enquanto sujeito perigoso e também
publicizar as potencialidades das juventudes.
Assim como os movimentos sociais de proteção à criança e ao
adolescente tencionaram em um passado recente a construção de po-

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líticas públicas e ações para redução dos altos índices de mortalidade
infantil registrados no Brasil, é imprescindível que hoje não haja a na-
turalização da morte de jovens de maneira brutal e violenta. Para isso,
é fundamental que existam movimentos sociais e espaços comprome-
tidos com o debate e com a eliminação completa dos elevados índices
de mortalidade juvenil registrados nesse país. Mais do que um convite
é uma necessidade de articulação de novos coletivos ou até mesmo da
introdução deste debate em coletivos já existentes. Desconsiderar essa
realidade é colaborar com o projeto de genocídio das juventudes que
está em curso no Brasil.
A construção da Frente de Enfrentamento à Mortalidade Juvenil
em Porto Alegre é jovem, portanto, está em constante aprimoramento
teórico-prático para conseguir alcançar os seus objetivos de forma coleti-
va, articulando os mais diferentes atores da sociedade para intervir nesta
realidade. O que se almeja é uma mudança cultural, política, social e
econômica a fim de garantir para as juventudes, mas também para toda a
população, o principal direito humano, que é o direito à vida.

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Referências

ABRAMOVAY, M.; CASTRO, M. G. Quebrando mitos: juventude,


participação e políticas. Brasília: RITLA, 2009.

BRENNER, A. K.; CARRANO, P. Formas e conteúdos da participação


de jovens na vida pública. Observatório Jovem do Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro, 2008.

FEMJUV. A Mortalidade Juvenil no Rio Grande do Sul: Uma


Análise dos Índices de Violência Letal Juvenil e suas Possibilidades
de Enfrentamento. Projeto de Pesquisa. Universidade Federal do Rio
Grande do Sul-UFRGS, 2019.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da Violência


2021. São Paulo: FBSP, 2021.

IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da Violência


2020. São Paulo: FBSP, 2020.

NOVAES, R. R. As juventudes e a luta por direitos. Le Monde


Diplomatique Brasil. 2012. Disponível em: http://diplomatique.org.
br/as-juventudes-e-a-luta-por-direitos/.

RIBEIRO, E. Políticas de juventude no Brasil: conhecimento e percepção


dos jovens. In: PINHEIRO, Di.; Et AL. (Orgs.). Agenda Juventude
Brasil: leitura sobre uma década de mudanças. Rio de Janeiro:
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2016.

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Sobre os Autores e as Autoras

Giovane Antonio Scherer


Possui Graduação, Mestrado e Doutorado em Serviço Social. Realizou seus
estudos de doutoramento com período de estágio doutoral junto ao Cen-
tro de Estudos Sociais – CES da Universidade de Coimbra em Portugal.
Atualmente é professor no Instituto de Psicologia – curso de graduação em
Serviço Social e no Programa de Pós-graduação em Política Social e Serviço
Social da UFRGS. É coordenador do Grupo de Estudos em Juventudes e
Políticas Públicas – GEJUP/UFRGS. Professor vinculado ao Centro Inter-
disciplinar de Educação Social e Socioeducação – CIESS/UFRGS. Bolsista
produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec-
nológico – CNPq. É membro da Frente de Enfrentamento à Mortalidade
Juvenil em Porto Alegre. Autor de diversas obras dentre elas “Serviço Social
e Arte: Juventudes e Direitos Humanos em Cena” (Editora Cortez) e “Ju-
ventudes, (In)Segurança e Políticas Públicas: A Proteção Social no Brasil”
(Editora Juruá). Tem experiência na área de Serviço Social, atuando princi-
palmente nos seguintes temas: juventudes, violência, juvenicídio, arte, direi-
tos humanos, políticas públicas e segurança.
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3847-7202
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9562419488036506.
E-mail: giovaneantonioscherer@gmail.com

Alex da Silva Vidal


Doutor em Educação (UFRGS). Pesquisador do Observatório da Socioedu-
cação (CIESS/UFRGS). Integrante da Frente de Enfrentamento à Mortali-
dade Juvenil em Porto Alegre.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0166-0698
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2464442866801748
E-mail: alexsvidal1@gmail.com

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Ana Patricia Barbosa
Professora dos Cursos de Graduação em Serviço Social, Ciências Sociais
e Gestão Pública da Universidade Luterana do Brasil e do Curso de Pós-
-Graduação em Direitos Humanos nas Relações Étnico-Raciais, Gênero e
Diversidade da Universidade Luterana do Brasil. Pós-Doutorado em Socio-
logia pela Universidade do Porto/Portugal (DS/FLUP/UP), Doutora em
Diversidade Cultural e Inclusão Social pela Universidade FEEVALE e Uni-
versidade René Descartes – Sorbonne Paris V, Paris, França. É investigadora
Integrada do Centro de Investigação Transdisciplinar (CITCEM) – Cul-
tura, Espaço e Memória – Faculdade de Letras da Universidade do Porto/
Portugal e Pesquisadora associada ao Banco de Imagens e Efeitos Visuais,
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/UFRGS.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1154-6047
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8736130018046678 
E-mail: as.anapatricia@gmail.com

Bruna Rossi Koerich


Doutoranda em Sociologia (UFRGS). Pesquisadora do Observatório da So-
cioeducação (CIESS/UFRGS). Integrante da Frente de Enfrentamento à
Mortalidade Juvenil em Porto Alegre.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9791-7808
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4251908482842357
E-mail: koerich.bruna@gmail.com

Cíntia Florence Nunes


Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Maria. Mes-
tre e Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUC/RS). Assistente Social da Secretaria de Segurança Pública
do Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisadora associada ao Gru-
po de Estudos em Juventudes e Políticas Públicas (GEJUP – UFRGS). Tem
experiência na área de Serviço Social, atuando principalmente nos seguintes
temas: Política Social, Assistência Social, Saúde, Juventudes e Trabalho.
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-0679-4836
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1190177029255083
E-mail: cintia.florence@gmail.com

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Cristina Bettio Bragagnolo
Mestre em Política Social e Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação
em Política Social e Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2018. Pesquisadora integrante do Grupo
de Estudos em Juventudes e Políticas Públicas da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (GEJUP – UFRGS). Assistente Social da Prefeitura
Municipal de Bento Gonçalves/RS.
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0212-8756
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5063660188699621
E-mail: cristinabettiobragagnolo@yahoo.com.br

David Petar da Conceição Mantalof


Assistente Social, formado pela (PUCRS), trabalhador do SUAS na cidade
de Porto Alegre e militante da Frente de Enfrentamento à Mortalidade Ju-
venil de Porto Alegre-FEMJUV.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6814-1243
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5357776513025952
E-mail: davimantalof@gmail.com

Gisele Ribeiro Seimetz


Assistente Social graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS) e Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Ser-
viço Social da Escola de Humanidades da mesma Universidade. Sua pesqui-
sa de mestrado abordou a temática do acolhimento institucional de jovens
depois de completarem 18 anos, intitulada “Meu conto é de faltas”: Juven-
tudes, (des)proteção social e acolhimento institucional. Integra o Grupo
de Estudos em Juventudes e Políticas Públicas (GEJUP – UFRGS). Atual-
mente está vinculada a Residência Integrada em Saúde Mental Coletiva da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5732-3367
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6087845092295832
E-mail: grseimetz@hotmail.com

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Ivana Oliveira Giovanaz
Acadêmica de Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS), com fomento pelo Programa Universidade Para Todos –
Prouni. Integrante do Grupo de Pesquisa Gestão Integrada da Segurança
Pública (GESEG – PUCRS). Bolsista de Iniciação Científica pelo BPA/PU-
CRS. Integrante da Frente de Enfrentamento à Mortalidade Juvenil. Orien-
tadora Social no projeto UPERIFA, que tem por objetivo facilitar o acesso
de jovens da periferia de Porto Alegre e região ao ensino superior.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8344-204
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8491036881541664
E-mail: i.giovanaz@hotmail.com

Joice Lopes da Silva


Assistente Social, formada pela PUCRS, Pós em Violência Doméstica, Di-
reitos das Crianças e Adolescentes. Trabalhadora nas Políticas Públicas de
Educação e Assistência Social de Porto Alegre. Militante da Frente de En-
frentamento à Mortalidade Juvenil de Porto Alegre-FEMJUV.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5026-4579
E-mail: joicelopesdasilva2020@gmail.com

Laís Silva Staats


Assistente Social. Mestra em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação
em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7394-6938 
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0056811983719419
E-mail: lais.staats@hotmail.com

Laura Barcellos de Valls


Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS). Integra o Grupo de Estudos em Juventudes e Políticas Públi-
cas (GEJUP – UFRGS).
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6655-1214
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8377466414327518
Email: vllslaura@gmail.com

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Maria Fernanda Landim
Assistente Social, formada pela Universidade Federal do Ceará, Pós-Gradua-
da em Direito da Criança e Adolescente. Trabalha na Política da Assistência
Social de Porto Alegre. Militante da Frente de Enfrentamento à Mortalidade
Juvenil de Porto Alegre-FEMJUV.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9179-5192
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6021902167297505
E-mail: fernandalandimpoa@gmail.com

Mariana Porto Ruwer de Azambuja


Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(2001). Durante a graduação, foi bolsista PIBIC/CNPq (1997-2000).
Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, bolsista do CNPq (2004). Doutorado em Psicologia So-
cial na Universidade do Minho (Portugal, 2008), com apoio do Programa
Alban (Programa de Bolsas de Alto Nível da Comunidade Europeia para
a América Latina). Especialista em Políticas Públicas e Socioeducação pela
Escola Nacional de Socioeducação/Universidade de Brasília (ENS/UNB,
2018). Desde 2010 é servidora pública da Fundação de Assistência Social
e Cidadania (FASC), da Prefeitura Municipal de Porto Alegre (PMPA),
onde atua junto a pessoas com direitos violados por violência, negligência
ou discriminação, bem como junto a adolescentes em conflito com a lei.
Integrante do grupo fundador da Frente de Enfrentamento à Mortalidade
Juvenil de Porto Alegre.
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3103-7810
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4504953755495722
E-mail: mprazambuja@gmail.com

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Maurício da Silva César
Graduado em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul UFRGS. Pós-Graduação pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS), no Programa de Residência Integrada multiprofissional em
Saúde Mental Coletiva. Pós-Graduação no Programa de Residência Inte-
grada Multiprofissional em Saúde do Hospital de Clínicas de Porto Alegre,
com ênfase em Saúde da Criança e Mestre em Política Social e Serviço Social
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisador integrante do
Grupo de Estudos em Juventudes e Políticas Públicas (GEJUP – UFRGS).
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8462-5937
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6362780742407570
E-mail: mauriciocesarpoa@gmail.com

Maurício Perondi
Professor na Faculdade de Educação, da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Licenciado em Filosofia pela Universidade La
Salle. Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS, com realização de Pro-
grama de Doutorado Sanduíche na Universidade de Lleida, Espanha. In-
tegrante do Centro Interdisciplinar de Educação Social e Socioeducação
(CIESS/UFRGS). Coordenador do Observatório da Socioeducação e do
Ateliê de Jogos Pedagógicos da UFRGS. Coordenador substituto do Pro-
grama de Prestação de Serviços à Comunidade (PPSC/UFRGS). Coorde-
nador do GT3 – Movimentos Sociais, Sujeitos e Processos Educativos, da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Gestão
2022-2023). Membro da Frente de Enfrentamento à Mortalidade Juvenil
de Porto Alegre.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0551-468X
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1048142658453276
E-mail: mauricioperondirs@gmail.com

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Monique Fernandes Silveira
Graduanda de Serviço Social na UFRGS. Estagiária na Fundação de Aten-
dimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (FASE/RS); Bolsista na Pes-
quisa de Iniciação Científica: A Mortalidade Juvenil no Rio Grande do Sul:
Uma Análise dos Índices de Violência Letal Juvenil e suas Possibilidades de
Enfrentamento e Bolsista voluntária na Extensão Observatório da Socioedu-
cação. Experiência como Monitora de Acompanhamento Discente – Indíge-
na; Estagiária não curricular no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA)
na área de Transplante de Medula Óssea e Oncologia Pediátrica; Bolsista de
Extensão no Projeto Educação Popular e Universidade: uma experiência de
articulação com o Cursinho Popular Carolina de Jesus; Participante voluntá-
ria do Grupo de Acolhimento aos Estudantes Indígenas da UFRGS (GAIn);
E experiência como extensionista voluntária na Secretaria de Assessoria Ju-
rídica da UFRGS nos seguintes grupos: Grupo Antimanicomial de Atenção
Integral, Grupo de Assessoria Justiça Popular , Grupo de Assessoria Popular
e Grupo de Estudos e Intervenção em Matéria Penal (GEIP).
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3276-7495
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8694596497258745
E-mail: monifernandes97@gmail.com

Nicole Kunze Rigon


Graduanda em Serviço Social (ULBRA). Mestra em antropologia social pelo
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS (2021).
Bacharela em ciências sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (2018). Realizou mobilidade acadêmica (A.A 2016-2017) na Universi-
dade Ca’Foscari Venezia (UNIVE) como bolsista do programa Erasmus+.
Em 2020 recebeu o Prêmio Lévi-Strauss (3º lugar na modalidade artigo) na
32ª Reunião Brasileira de Antropologia. Desenvolve pesquisa nos campos da
antropologia urbana e antropologia visual nos eixos temáticos: juventudes,
cidades e imagens. Pesquisadora vinculada ao Núcleo de Antropologia Visual
(NAVISUAL/UFRGS) desde 2017. Membro do Grupo de Assessoria Popular
(SAJU/UFRGS). Atualmente trabalha no Centro da Juventude Viamão.
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4692-3866
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7125863057406990
E-mail: nirigon@gmail.com

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Oriana Holsbach Hadler
Professora Adjunta no Departamento de Psicologia Social e Institucional da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É integrante do Núcleo de Es-
tudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação (Núcleo
E-politcs). Doutora em Psicologia Social e Institucional pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), realizou Doutorado Sanduíche na
University of Westminster, em Londres. Mestre em Psicologia Social pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Psicóloga
graduada pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel) e Pós-Graduada
na Goldsmiths College – University of London, Inglaterra. Psicodramatista
pelo IDH-RS. Atua principalmente nos seguintes temas: direitos humanos,
políticas públicas, justiça criminal, segurança pública, juventudes e proces-
sos de subjetivação. Mãe do Hiram e da Íris.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9736-2224
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2010575326915754.
E-mail: orianahadler@gmail.com.

Paula de Fátima Moura dos Santos


Coordenadora Geral do Centro da Juventude da Lomba do Pinheiro per-
tencente ao Programa de Oportunidades e Direitos do Estado do Rio Gran-
de do Sul. Bacharela em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa
Maria, Especialista em Saúde da Criança e do Adolescente pelo Programa
de Residência Multiprofissional da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PREMUS/PUCRS), Mestranda em Política Social e Serviço
Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisa-
dora integrante do Grupo de Estudos em Juventudes e Políticas Públicas
(GEJUP – UFRGS).
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4397-1144
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3173669498318439
E-mail: paulamestradoufrgs@gmail.com

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Renata Maieron Turcato
Mestre em Política Social e Serviço Social pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Assistente Social graduada pela UFRGS. Inte-
grante do Grupo de Estudos em Juventudes e Políticas Públicas (GEJUP-
-UFRGS)
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5108-3043
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2296614559674071
E-mail: returcato@gmail.com

Vanelise de Paula Aloraldo


Professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Assistente So-
cial formada pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Mestra
e Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS). Pesquisadora associada ao Grupo de Estudos em
Juventudes e Políticas Públicas (GEJUP – UFRGS) e ao Grupo de Pesquisa
em Economia do Bem-Estar Social (GPEBES – PUCRS). Dentre os enfo-
ques de pesquisa e estudo estão as infâncias, adolescências e juventudes em
acolhimento familiar e institucional, Direitos Humanos, Políticas Públicas
e Violência Estrutural.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1996-5537
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8572510492156843
E-mail: vanelise.aloraldo@gmail.com

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Aviso importante: Ao comprar um livro você não somente está a adqui-
rir um produto qualquer. Você também remunera e reconhece o trabalho
do autor e de todos aqueles que, direta ou indiretamente, estão envol-
vidos na produção editoral e na comercialização das obras, tais como
editores, diagramadores, ilustradores, gráficos, distribuidores e livreiros,
entre outros. Se quiser saber um pouco mais sobre isso, acesse:

https://www.youtube.com/watch?v=XQkpZA6qFhc

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