Você está na página 1de 360

EM ABORDAGENS MÚLTIPLAS

CIÊNCIAS SOCIAIS

Desigualdades persistentes
e políticas afirmativas no
horizonte de incertezas

Aloisio Ruscheinsky
(Organizador)

Livro Aloisio-V4.indd 1 06/01/2021 10:44


Copyright © Editora CirKula LTDA, 2020.
1° edição - 2020

Revisão, Normatização e Edição: Mauro Meirelles


Diagramação e Projeto Gráfico: Mauro Meirelles
Capa e Ilustrações: CirKula
Tiragem: 300 exemplares impressos

Todos os direitos reservados à Editora CirKula LTDA. A reprodução não au-


torizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais
(Lei 9.610/98).

Editora CirKula
Av. Osvaldo Aranha, 522 - Bomfim
Porto Alegre - RS - CEP: 90035-190
e-mail: editora@cirkula.com.br
Loja Virtual: www.livrariacirkula.com.br

Livro Aloisio-V4.indd 2 06/01/2021 10:44


EM ABORDAGENS MÚLTIPLAS
CIÊNCIAS SOCIAIS

Desigualdades persistentes
e políticas afirmativas no
horizonte de incertezas

Aloisio Ruscheinsky
(Organizador)

2020

Livro Aloisio-V4.indd 3 06/01/2021 10:44


Livro Aloisio-V4.indd 4 06/01/2021 10:44
CONSELHO EDITORIAL

César Alessandro Sagrillo Figueiredo


José Rogério Lopes
Jussara Reis Prá
Luciana Hoppe
Marcelo Tadvald
Mauro Meirelles

CONSELHO CIENTÍFICO

Alejandro Frigerio (Argentina) - Doutor em Antropologia pela Universidade


da Califórnia, Pesquisador do CONICET e Professor da Universidade Católica
Argentina (Buenos Aires).
André Luiz da Silva (Brasil) - Doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e professor do Programa de Pós-Graduação
em Desenvolvimento Humano da Universidade de Taubaté.
Antonio David Cattani (Brasil) - Doutor pela Universidade de Paris I - Pan-
théon-Sorbonne, Pós-Doutor pela Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales e
Professor Titular de Sociologia da UFRGS.
Arnaud Sales (Canadá) - Doutor d’État pela Universidade de Paris VII e Profes-
sor Titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Montreal.
Cíntia Inês Boll (Brasil) - Doutora em Educação e professora no Departamento
de Estudos Especializados na Faculdade de Educação da UFRGS.
Daniel Gustavo Mocelin (Brasil) - Doutor em Sociologia e Professor Adjunto
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Dominique Maingueneau (França) - Doutor em Linguística e Professor na Uni-
versidade de Paris IV Paris-Sorbonne.
Estela Maris Giordani (Brasil) - Doutora em Educação, Professora Associada
da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e pesquisadora da Antonio Me-
neghetti Faculdade (AMF).
Hilario Wynarczyk (Argentina) - Doutor em Sociologia e Professor Titular da
Universidade Nacional de San Martín (UNSAM).

Livro Aloisio-V4.indd 5 06/01/2021 10:44


José Rogério Lopes (Brasil) - Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Uni-
versidade Católica de São Paulo e Professor Titular II do PPG em Ciências So-
ciais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Ileizi Luciana Fiorelli Silva (Brasil) - Doutora em Sociologia pela FFLCH- USP
e professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Leandro Raizer (Brasil) - Doutor em Sociologia e Professor da Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Luís Fernando Santos Corrêa da Silva (Brasil) - Doutor em Sociologia pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Professor do Programa de Pós-
Graduação Interdisciplinar Ciências Humanas da UFFS.
Lygia Costa (Brasil) - Pós-doutora pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Ur-
bano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ e pro-
fessora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE)
da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Maria Regina Momesso (Brasil) - Doutora em Letras e Linguística e Professora
da Universidade do Estado de São Paulo (UNESP).
Marie Jane Soares Carvalho (Brasil) - Doutora em Educação, Pós-Doutora pela
UNED/Madrid e Professora Associada da UFRGS.
Mauro Meirelles (Brasil) - Doutor em Antropologia Social e Pesquisador do
Laboratório Virtual e Interativo de Ciências Sociais (LAVIECS/UFRGS).
Silvio Roberto Taffarel (Brasil) - Doutor em Engenharia e professor do Pro-
grama de Pós-Graduação em Avaliação de Impactos Ambientais em Mineração
do Unilasalle.
Stefania Capone (França) – Doutora em Etnologia pela Universidade de Paris
X- Nanterre e Professora da Universidade de Paris X-Nanterre.
Thiago Ingrassia Pereira (Brasil) - Doutor em Educação e Professor do Progra-
ma de Pós-Graduação Profissional em Educação da UFFS e do Pós-Graduação
Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFFS.
Wrana Panizzi (Brasil) - Doutora em Urbanisme et Amenagement pela Univer-
site de Paris XII (Paris-Val-de-Marne), em Science Sociale pela Université Paris
1 (Panthéon-Sorbonne) e Professora Titular da UFRGS.
Zilá Bernd (Brasil) - Doutora em Letras e Professora do Programa de Pós-Gra-
duação em Memória Social e Bens Culturais da Universidade LaSalle.

Livro Aloisio-V4.indd 6 06/01/2021 10:44


Sumário
13 Introdução
Aloisio Ruscheinsky

Parte I
Questões sociais contemporâneas
e desigualdades persistentes

23 Sociedade de Risco: Ulrich Beck e alguns


apontamentos imperfeitos
Ângela Diniz Linhares Vieira, Aloisio Ruscheinsky

45 A abordagem sociológica na temática das capacitações


e funcionamentos de Amartya Sen
Marines Rute de Oliveira

63 O combate à fome pela articulação Estado/Sociedade


Civil: Programas Ação da Cidadania e Fome Zero
Licemar Vieira Melo

85 Manifestações sociais de 2013 a 2016 e suas repercus-


sões nas Políticas Públicas
Debora Maria Victória de Barros

107 O atual modelo de cobrança do Imposto de Renda:


uma análise sobre a perpetuação de desigualdade
social no Brasil
Luíza Cristina de Castro Faria, Bruno Lima Teixeira

133 Sociologia da Educação: contribuições dos clássicos para


compreensão da realidade contemporânea
Maria Denilva de Lima Barbosa

Livro Aloisio-V4.indd 7 06/01/2021 10:44


Livro Aloisio-V4.indd 8 06/01/2021 10:44
Parte II
A questão social penal e a política punitiva
dos diferentes e da marginalidade

155 A noção de crime como fato social e os equívocos


desastrosos do acirramento penal
Giovane Santin, Aloisio Ruscheinsky

177 Diálogos entre a lógica da inimizade e o direito penal:


consequências na política criminal brasileira
Carlos Inácio Prates

Livro Aloisio-V4.indd 9 06/01/2021 10:44


Livro Aloisio-V4.indd 10 06/01/2021 10:44
Parte III
A questão Étnico-Racial, Gênero e Corpo:
Dimensões subjetivas e objetivas

201 Memória coletiva e trauma em jovens egressos


de medidas socioeducativas
Analice Brusius, Carlos A. Gadea

219 Relações de gênero e a perspectiva de romper


com a dominação e as desigualdades
Gisela Pelegrinelli

241 Quilombos: da identidade para emancipação pela via


da teoria da luta por reconhecimento
Clarissa Bottega

265 Indústria cultural da magreza: as vivências de sujeitos


em situação de obesidade
Claudia Regina Felicetti Lordani,
Marília Veríssimo Veronese

287 Política de ações afirmativas: cotas para negros


em instituições de ensino superior
Márcio Pereira Dias

315 Identidades e sociabilidades: questão de gênero


Vânia Marquez Saraiva

329 Reflexões sobre raça, racismo e negritude no Brasil


Jamil Amorim de Queiróz, Carlos A. Gadea

355 Sobre os Autores

Livro Aloisio-V4.indd 11 06/01/2021 10:44


Livro Aloisio-V4.indd 12 06/01/2021 10:44
Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Introdução

A coletânea que ora se apresenta consiste numa ponderada e


minuciosa escolha de textos que atentam para um debate sobre “Ciên-
cias Sociais em abordagens múltiplas. Desigualdades persistentes,
políticas afirmativas e horizonte de incertezas”. A proposta acolheu
textos que se dedicassem a debates e reflexões sobre questões sociais
candentes da contemporaneidade, em especial à sociedade brasileira.
As abordagens múltiplas nas Ciências Sociais exemplificam a riqueza
de possibilidades de observação de um mesmo fenômeno social. Os
textos utilizam métodos de acordo com o seu objeto e escopo enun-
ciado. Ao mesmo tempo para se destacar com lugar na ciência social
brasileira se apropriaram de um conjunto de técnicas de pesquisa so-
cial e análise, desde perspectivas quantitativas às qualitativas, desde
abordagem documental, teórica à investigação empírica. Assim cada
um a seu modo engendra um nexo entre as suas descobertas e respec-
tiva visão de mundo e bases analíticas consagradas e testadas.
O conjunto dos textos aborda um prospecto de temáticas
numa sociedade que se interroga e inquieta em face das soluções
para seus agudos e persistentes problemas históricos. A abrangên-
cia das abordagens múltiplas percorre os âmbitos da Sociologia, da
Ciência Política, da Antropologia, do Direito e outras ciências das
humanidades. Os autores/as são na maioria doutorandos do PPG
em Ciências Sociais da Unisinos e que desta forma impulsionam as
suas capacidades para a produção de conhecimento sobre os confli-
tos em curso no cotidiano. A particularidade consiste num atributo
de somar esforços na consagração de uma agenda de investigação:
o percurso de construção das reflexões constitui o próprio processo
de amadurecimento teórico e empírico dos autores/as.
A coletânea está organizada em três partes: a primeira se con-
centra em questões sociais contemporâneas e as desigualdades per-
sistentes; a segunda versa sobre o nexo entre a questão social penal
e a política punitiva dos diferentes e da marginalidade; a terceira se 13

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 13 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

atém a reflexões sobre dimensões subjetivas e objetivas atinentes às


questões étnico-racial, gênero e corpo. Seguimos uma breve apre-
sentação de cada um dos capítulos.
A emergência da “modernidade reflexiva” se traduz em novos
contextos, impactos imprevistos, novos padrões cognitivos, novas ló-
gicas de insegurança e incertezas, outros conflitos do nexo sociedade-
-natureza. Neste percurso, Ângela Diniz Linhares Vieira e Aloisio Rus-
cheinsky em “Sociedade de Risco: Ulrich Beck e alguns apontamentos
imperfeitos” afirmam que a “segunda modernidade na perspectiva de
Beck se confirma com a globalização, o declínio das características da
sociedade industrial e a emergência de outro modelo denominado de
sociedade do Risco”. Cinco processos a caracterizam: a globalização,
a individualização, a revolução assente na diferença sexual, o desem-
prego e os riscos globais. Neste sentido, abordam em sua pesquisa “as-
pectos fundamentais do advento da sociedade de risco e um de seus
processos: o desemprego estrutural. Do trabalho como a própria iden-
tidade social com o pleno emprego às possíveis consequências das mu-
danças sociais rumo aos riscos, imprevisibilidade e incertezas”.
Em “A abordagem sociológica na temática das capacitações e
funcionamentos de Amartya Sen” Marines Rute de Oliveira” utiliza
uma parte da análise realizada para a elaboração da sua tese de dou-
toramento, defendida em 2019. O objetivo consiste em analisar o de-
senvolvimento das liberdades como capacidades dos agricultores fa-
miliares no oeste do Paraná. A abordagem relaciona, a partir de uma
perspectiva analítica, o conceito de desenvolvimento como liberdade
formulado por Amartya Sen e as noções de funcionamentos e capaci-
dades do mesmo autor. Além disto, há uma breve incursão ou seminal
das formulações de Ação Social de Max Weber, da noção de Capital
de Pierre Bourdieu e a perspectiva de Ator Social de Alain Touraine.
O capítulo “O combate à fome no Brasil contemporâneo pela
articulação Estado / Sociedade Civil – reflexões a partir da Ação da
Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida e o Programa Fome
Zero” traz uma compilação da dissertação de Licemar Vieira Melo
(2004), produzida na linha de pesquisa Atores Sociais, Políticas Pú-
blicas e Cidadania do PPG em Ciências Sociais. Respectivamente, essa
14 pesquisa contemplou estes dois estudos de caso: uma iniciativa da so-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 14 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

ciedade civil, surgida em 1993 (a ACCMV) e uma ação governamental,


implementada em 2003 (o Programa Fome Zero). A autora teve como
objetivo identificar como se deu o processo de articulação Estado-So-
ciedade Civil no combate à fome no Brasil contemporâneo. Respecti-
vamente, foram destacadas as prioridades, as diretrizes e a estrutura
operacional, reforçando as seguintes percepções: ambas conseguiram
inserir a pauta do combate à fome nas agendas política e social do país;
contemplaram espaços de interlocução o Estado e a Sociedade Civil.
Apesar de ganhos pontuais (emergenciais) as iniciativas não consegui-
ram promover e efetivar a segurança alimentar, pois mudanças estru-
turais como o combate às desigualdades radicais, ainda estão por vir.
Por sua vez em “Manifestações sociais de 2013 a 2016 e suas
repercussões nas políticas públicas” Debora Maria Victória de Bar-
ros aborda questões candentes no cenário brasileiro recente. As
referidas mobilizações independentemente de terem alcançado os
objetivos embutidos em sua retórica, a onda mobilizatória alterou
a conjuntura local e regional, pois a ascensão de novos formatos
de controle do poder político possibilitou a oportunidade da emer-
gência de novos grupos de pressão sociopolítica. Novas tensões e
desafios ofereceram condições para que, a partir das mobilizações
de massa, se forjasse uma demanda por outros regimes. A autora
se esmera em compreender como se organizaram os atores sociais
no Brasil, que caminhos percorreram para a condução destas ações
sociais e se culminaram numa agenda política nacional.
De um lado, existem distintas categorias sociais como contri-
buintes para a sustentação das ações do Estado de Direito, de outro,
igualmente distintas compreensões das funções imprescindíveis do
Estado como construção coletiva. Ao mesmo tempo referente aos re-
flexos, em seu cotidiano encontra-se vigente também uma disparidade,
apesar da modernização e eficiência da cobrança do imposto de renda.
Sob estes argumentos centrais Luíza Cristina de Castro Faria e Bruno
Lima Teixeira constroem o capítulo “O atual modelo de cobrança do
Imposto de Renda: uma análise sobre a perpetuação de desigualdade
social no Brasil”. A pesquisa identifica os alvos centrais do imposto
de renda e a sua relação com as desigualdades históricas presentes no
Brasil. Aponta as possíveis falhas presentes a partir dos dados dispo- 15

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 15 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

nibilizados pela Receita Federal (como a alíquota efetiva do imposto),


bem como a aplicabilidade de seus princípios norteadores, tais como a
legalidade, progressividade, capacidade contributiva e a justiça fiscal.
No campo das Ciências Sociais é usual destacamos, para uma
maior segurança nos referenciais e nos delineamentos temáticos, as
contribuições de autores clássicos (Marx, Durkheim, Weber) para a
compreensão dos fenômenos sociais contemporâneos. Neste sentido,
Maria Denilva de Lima Barbosa constrói uma interlocução em a “So-
ciologia da Educação: contribuições dos clássicos para compreensão
da realidade contemporânea”. No âmbito da Educação aborda a in-
fluência sobre as concepções da Sociologia nas décadas subsequentes,
bem como a incidência sobre alguns estudos de sociólogos em ter-
ras brasileiras. A Sociologia da Educação mudou a forma de pensar
e compreender o social, influenciando os modelos de educação, como
também lançam luz para compreensão da realidade dos conflitos
atuais. Porém, é inegável que a globalização, os avanços tecnológicos
entre outros aspectos reconfiguram os parâmetros de espaço-tempo,
de causalidade, de presença no mundo, de individualidade, de história.
Iniciando a segunda parte da coletânea, Giovane Santin e Aloi-
sio Ruscheinsky abordam “a noção de crime como fato social e os
equívocos desastrosos do acirramento penal”. Este capítulo consiste
numa análise do crime enquanto fato social normal na vida cotidiana
e a importância da ótica sociológica de Émile Durkheim para o direito
penal ao afastar as ideias da escola positivista do criminoso nato ou do
crime como patologia, bem como a função meramente retributiva da
pena ao considerá-la como forma de restabelecer a ordem social rom-
pida pela prática do delito. A crítica criminológica sobre as teorias
justificadoras da pena é fundamental para superarmos a crença que
o Estado é capaz de cumprir as promessas declaradas para legitimar
o castigo, bem como para demonstrar que a violência da pena de pri-
são foi programada pelo poder constituído e racionalizada pelo saber
jurídico para produzir um verdadeiro genocídio social pelo grande
encarceramento e pelo aprisionamento cautelar em massa.
O imaginário da paz social encontra obstáculos concretos e ma-
teriais. De forma paradoxal em meio ao Estado de Direito irrompe
16 uma cultura política da inimizade, aferrada às tensões e contradições
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 16 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

do colonialismo contemporâneo e escondidos ou velados sob a lógica


da democracia liberal. Nos termos antagônicos, da democracia e da
lógica da inimizade, fica demonstrado o paradoxo, pois em sentidos
inversos encontram-se associados ao mesmo movimento da história,
ou seja, opostos alinhados sustentam um ao outro. Sob este horizonte,
Carlos Inácio Prates desenvolve “Diálogos entre a lógica da inimizade
e o direito penal: consequências na política criminal brasileira”. O seu
texto trata da funcionalidade e dos efeitos de se utilizar o direito penal
como instrumento de soberania política para exclusão de pessoas da
sociedade, para compreender tal paradoxo o autor utiliza-se de ele-
mentos do pensamento de Carl Schmitt e de Giorgio Agamben.
Inaugurando a terceira parte da coletânea, Analice Brusius e
Carlos A. Gadea abordam a “Memória coletiva e trauma em jovens
egressos de medidas socioeducativas”. A reflexão possui como tema a
trajetória de vida de jovens egressos de medidas socioeducativas. Seu
objetivo é analisar pesquisas sobre a trajetória de jovens egressos de
medidas socioeducativas de internação, estabelecendo relações com o
marco analítico da memória coletiva e do trauma, e cuja pertinência
está em considerar o contexto relacional do jovem, localizado tanto
na dimensão social, quanto na perspectiva temporal. Inicia-se trazen-
do a perspectiva analítica da memória coletiva e após é aprofundada
a noção da temporalidade, relacionando-a com os estudos sobre os
jovens que se envolvem com a violência. As recordações e a memória
histórica também são analisadas no contexto dos jovens egressos de
medidas socioeducativas. Discute-se sobre as vivências passadas dos
jovens com a violência sofrida e atuada que podem tomar a dimensão
das experiências traumáticas. Percebe-se que há também a influên-
cia de traumas vivenciados pelas gerações anteriores, chamados de
pós-memória. Demonstra-se que nas situações traumáticas, a presen-
ça de um interlocutor preenche vazios de sentido provocados pelo
trauma. Diante destes elementos teóricos percebe-se que existe uma
complexidade analítica importante para se compreender a trajetória
dos jovens egressos de medidas socioeducativas.
A articulação entre termos múltiplos como sujeito e gênero,
como ator social, diferenças e igualdade leva Gisela Pelegrinelli a or-
ganizar o texto “Relações de gênero e a perspectiva de romper com 17

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 17 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

a dominação e as desigualdades”. A abordagem versa sobre questões


pertinentes a gênero articulada à leitura peculiar de conflitos sobre
um fenômeno cultural e aos movimentos sociais contemporâneos.
O objetivo consiste em apresentar as contribuições da Sociologia à
compreensão da pluralidade dos feminismos e assim, incidindo so-
bre os estudos de gênero na contemporaneidade. Para esta meta
a autora apresenta uma abordagem sobre tal fenômeno transfor-
mador da atualidade e que se encontra relacionado às questões de
gênero, tomando como referência a perspectiva da obra Mundo das
Mulheres, de Alain Touraine. Além disto, correlaciona a perspec-
tiva de dominação de Max Weber em face das relações de gênero
e o avanço das mulheres com a propagação das práticas sociais em
direitos humanos. O feminismo integra o rol dos novos movimentos
sociais e em tal perspectiva fornece uma compreensão arrojada das
relações sociais, culturais e políticas da sociedade dos dias atuais.
Por sua vez, Clarissa Bottega conecta um tema do campo em-
pírico, com uma ótica teórica selecionada em “Quilombos: da iden-
tidade para emancipação pela via da teoria da luta por reconheci-
mento”. O prisma do texto se propõe a analisar pela via da teoria da
luta por reconhecimento de autoria de Axel Honneth, a trajetória
percorrida pelo quilombo para ser uma comunidade robusta com
o fortalecimento das identidades e suas lutas pelo reconhecimento
individual e social uma vez que está inserido em uma sociedade de
desigualdades. Diante do passado de lutas e discriminações vivido
e experimentado pelo quilombo, a teoria de Honneth encontra gua-
rida para se afirmar na construção de uma identidade cultural étni-
co-racial na busca da efetiva cidadania e sobrevivência. Ainda deba-
te os trâmites burocráticos das políticas públicas e a dificuldade de
exercício efetivo da cidadania pelos quilombolas que se apresenta na
atualidade como reflexo direto na construção de suas identidades,
lutas e significados para a emancipação uma possível na história que
contemple esses contingentes populacionais.
O mercado da indústria cultural da magreza pode ser visto sob
os aspectos cultural e material, sendo um setor mercantil que impul-
siona um fantástico horizonte lucrativo, ao lado de consequências que
18 beiram a um desastre civilizatório. Em “Indústria cultural da magre-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 18 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

za: as vivências de sujeitos em situação de obesidade” Claudia Regina


Felicetti Lordani e Marília Veríssimo Veronese enveredam por uma
análise das vias de sedução ou o império da estética e da beleza. As
autoras se propõem como meta compreender o processo vivenciado
pelos sujeitos em situação de obesidade, frente aos apelos da indús-
tria cultural da magreza, identificando os diferentes discursos que os
afetam em suas dinâmicas de interações sociais. A pesquisa empírica
recorreu a 20 adultos, de ambos os sexos, que apresentavam obesida-
de considerada pelo discurso médico como grave. Como ferramenta
teórico-metodológica as autoras optaram por utilizar a teoria das re-
presentações sociais. Os principais resultados apontam para as graves
consequências psicossociais dos discursos midiáticos hegemônicos
sobre o corpo e a necessidade de produzir outras práticas de inter-
venção em saúde, que não reforcem estereótipos e estigmas.
Uma das contribuições da coletânea consiste em dar visibili-
dade as muitas caras do Brasil, entre elas destacando os conflitos
em torno da política de ações afirmativas. O fato de tal temática as-
cender ao Supremo Tribunal Federal demonstra a disputa, endosso
e rejeição, que possui entre as forças políticas que povoam o cenário
nacional. A decisão do Judiciário transcende a especificidade de um
caso, para ratificar que em termos de políticas de Estado os interes-
ses públicos se sobrepõem aos particulares. As ações afirmativas,
mesmo com todas as controvérsias de disputa pela apropriação da
gestão do Estado, constituem um marco social que mira um possível
futuro aos setores vulneráveis. Além disto, configuram na consoli-
dação de uma ampla rede de proteção social, que atenta para ações
focalizadas considerando segmentos despossuídos, desqualificados,
discriminados, dissimulados e apartados. Neste ritmo utópico é que
se situa “Política de ações afirmativas: cotas para negros em insti-
tuições de ensino superior” de Márcio Pereira Dias. As políticas de
ações afirmativas no campo étnico-racial são compatíveis com os
valores Constitucionais, pois oferecem as condições adequadas para
que os grupos minoritários tenham acesso aos espaços de poder por
força do mérito, sendo o caminho para a inclusão dos afrodescen-
dentes, pois é manifesta a existência do racismo em nossa sociedade
e a consequente situação de desigualdade. 19

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 19 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

As teorias de gênero em conexão com a construção da identi-


dade encontram-se enfocada a partir das desigualdades e como uma
questão social. Assim transcorre a exposição de Vânia Marquez Sa-
raiva em “Identidades e sociabilidades: questão de gênero”. O capí-
tulo percorre teorias e debates que surgiram nas Ciências Sociais
tendo por foco contribuições teóricas que abordam as questões de
gênero por um prisma da equidade social. Valendo-se da utiliza-
ção de conceitos fundamentais desse campo de conhecimento, entre
eles, linguagem, identidade e diferença, corpo, gênero e sexualida-
de, identidade cultural, igualdade e liberdade, liberdade e cultura,
vulnerabilidade, desigualdade, exclusão social, dentre outros, che-
ga-se à conclusão de que os conceitos não são permanentes, sofrem
mudanças e transformações principalmente porque “gênero” é uma
construção social, histórica e cultural.
Os avanços destacados a propósito das questões de gênero, raça
e etnia, também por textos da coletânea, ainda não significa que as
práticas do racismo foram suplantadas ou que as desigualdades múlti-
plas foram aplacadas. Jamil Amorim de Queiróz e Carlos A. Gadea em
“Reflexões sobre raça, racismo e negritude no Brasil” se debatem com
as correlações entre negritude e branquitude. Para encerrar o vasto
leque de textos, este em continuação apresenta algumas reflexões em
torno às noções de raça, racismo e negritude suscitadas no contexto
acadêmico brasileiro. Os autores elencam as principais temáticas dis-
cutidas que envolveram as questões étnico-raciais, bem como buscam
desenvolver uma reflexão que procure entender a negritude no espa-
ço social contemporâneo. No campo político também se encontra em
pauta a sub-representação do negro em vários setores da vida nacio-
nal. O largo debate sobre preconceito e racismo ao longo de décadas
tornou provavelmente o fenômeno mais sutil, talvez igualmente per-
verso. Enfim, não se trata em desconhecer que o Brasil no cotidiano
continua convivendo com um racismo não assumido.

Aloisio Ruscheinsky
Organizador

20

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 20 06/01/2021 10:44


Livro Aloisio-V4.indd 21 06/01/2021 10:44
Livro Aloisio-V4.indd 22 06/01/2021 10:44
Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Sociedade de Risco: Ulrich Beck e alguns


apontamentos imperfeitos

Ângela Diniz Linhares Vieira


Aloisio Ruscheinsky

Introdução

O presente estudo analisa alguns aspectos inerentes ao debate


em torno da noção “Sociedade de Risco” e sua capacidade explicati-
va para determinados fenômenos e dilemas da contemporaneidade.
Ao que tudo indica, quanto mais se incrementa ou acentua a racio-
nalização utilitarista todo tipo de ação dos cidadãos passa a estar
mais intensamente submetida a essa lógica da incerteza desenhada
como uma ameaça à equidade, aos direitos, à reciprocidade.
Do ponto de vista das Ciências Sociais, quando os níveis de in-
tegração social estão ameaçados pelo declínio inexorável do pleno
emprego ou a qualidade de vida se tornou ameaçada pelas inovações
tecnológicas e com elas o desemprego estrutural é o momento em que
somos tomados pelas incertezas diante das garantias proporcionadas
aos indivíduos e à coletividade. Os riscos se traduzem em incertezas,
dentre elas, a própria capacidade política de manter a integração à
sociedade. Longe se vai a referência ao sonho de uma sociedade sem
riscos tecnológicos, que de alguma forma já impregnam o cotidiano.
Trata-se de matéria de relevo social indiscutível e eminente,
atentando-se não apenas para seus elementos configuradores, como
também para o tratamento que lhe é conferido por setores da socie-
dade brasileira. O objeto deste trabalho circunscreve-se às princi-
pais contribuições da vasta obra de Ulrich Beck envolvendo o que se
denomina de desdobramentos quanto à emergência da Sociedade de
Risco. O tema em epígrafe tem sido desenvolvido recentemente por
pesquisadores brasileiros e estrangeiros, revestindo de inquestio-
nável atualidade, de interesse teórico, metodológico e prático mar-
cantes. A partir de uma abordagem crítica, a vida humana parece 23

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 23 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

se subordinar como coadjuvante quando no horizonte dos dias em


curso emerge o proeminente protagonismo da técnica como possí-
vel resposta às pandemias1 e tendo como base a Sociedade de Risco.
A fonte de informação para o presente texto será de índole
bibliográfica, utilizando-se de registros disponíveis, decorrente de
pesquisas de diferentes horizontes, como livros, relatórios, artigos,
teses, dentre outros. Para a realização da narrativa apresentando
os resultados da investigação empregaremos recursos técnico-me-
todológicos a partir de leitura sistemática e atenta do referencial
bibliográfico. A realização desta pesquisa bibliográfica se compôs de
tarefas que impulsionaram um aprendizado sobre uma temática que
se apresentava como desafiante para nosso afazer acadêmico. Nestas
tarefas buscamos estabelecer cruzamentos de informações de fontes
distintas para acercar-nos da compreensão da realidade social.
Aquilo que parecia ser o ponto de chegada de uma sociedade
segura a partir da abundância material passa a revelar-se exatamen-
te o inverso: quanto mais bens circulam também se incrementam
ameaças, seja de guerras, desigualdades, incertezas e imprevisibili-
dade. De qualquer forma o desenvolvimento das sociedades nacio-
nais não segue uma trajetória linear, nem mesmo o processo de uso
predatório dos bens naturais.

Da Sociedade de Risco

Não restam dúvidas que Ulrich Beck2 trouxe inovações para


a teoria social, embora, aqui no Brasil, pouco tenha sido divulgado.
Importantes obras foram escritas por Ulrich Beck e editadas em
português, como, por exemplo, “O que é Globalização?”, “Moderni-
zação Reflexiva”, “A Europa Alemã: de Maquiavel a ‘Merkievel’”, “A

1 O termo pandemia aqui compreendido como qualquer aspecto que pode ser con-
creto material ou imaterial, mas que se difunda com rapidez e possui uma grande
extensão de atuação ou influência sobre a forma como se organiza a vida e suas
respectivas relações sociais.
2 Ulrich Beck iniciou seus estudos universitários na Faculdade de Direito, em
Freiburg, mas foi no campo da Sociologia que conclui sua formação. Entre as ati-
24 vidades profissionais foi professor na universidade de Münster, entre outras, até
se tornar diretor do Instituto de Sociologia da Universidade de Munique.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 24 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Metamorfose do Mundo: novos conceitos para uma nova realidade”


, “O caos totalmente normal do amor”, e, esses outros dois que serão
a base deste trabalho “Sociedade de Risco: rumo a uma outra mo-
dernidade” e “Liberdade ou capitalismo”. As obras traduzem des-
dobramentos da Sociedade de Risco ou uma caracterização do que
o autor denomina de segunda modernidade. O autor contorna a di-
mensão evolutiva da Modernidade para a Pós-Modernidade, como
conclamam os sociólogos ocidentais da modernização.
A obra “Sociedade de Risco” largamente difundida teve seu
lançamento nas proximidades do acidente nuclear de Chernobyl,
entre outros desastres tecnológicos, surtindo um efeito que realçou
a abordagem apresentada no livro. As ideias sobre a sociedade de
risco, jamais pode-se afirmar que surgiram num momento propício
para a sua difusão e endosso pelos agentes tomadores de decisões.
Todavia, à publicação da obra pode ser creditada a ventura de emer-
gir num momento em que tudo parecia estar sob pleno domínio das
tecnologias, razão pela qual parte de suas teses acabaram por assi-
nalar um cunho profético.

Junto com a sociedade industrial, a convivência é normatiza-


da e padronizada segundo o modelo da família nuclear. Por
outro lado, a família nuclear se apoia em alocações “estamen-
tais” de posições de gênero para homens e mulheres, algo
que se fragiliza justamente na continuidade dos processos
de modernização (integração das mulheres na educação e no
mercado de trabalho, cifras crescentes de divórcio etc.) Desse
modo, porém, a relação entre produção e reprodução começa
a se mover, assim como tudo o mais que se encontra vin-
culado à “tradição da família nuclear” industrial: casamento,
paternidade, sexualidade, amor etc (BECK, 2010, p. 16)

O desastre nuclear de Chernobyl aconteceu em 26 de abril


de 1986 quando o reator da usina entrou em um certo colapso ou
sofreu de certa forma com a obsolescência planejada. Neste episó-
dio foram rompidas as barreiras de proteção que pareciam seguras
pela lógica técnica e desta forma a atmosfera foi contaminada por
radiação. Em razão deste desastre tecnológico milhares de cidadãos
25
foram afetados de forma drástica e o território do entorno foi tem-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 25 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

porariamente vetado às atividades humanas. Os países fronteiriços


correram risco de sofrer contaminação também, entre outros meios
estão os alimentos importados da região.
Porém, a energia nuclear tornou-se apenas uma das frentes de
preocupação, pois esta situação gerou a transição energética, com
incentivos estatais para a produção de energia solar por particulares.
Outros aspectos de inovação no campo dos riscos progressivamente
entraram neste rol: vírus de diversos tipos e origens, agrotóxicos,
contaminação ar, água e solo, transgenia, biotecnologia, nanotecno-
logia, entre outros. Quanto a entrelaçamentos de uma situação com-
plexa e a resolução aquém de desejado, compreende-se como segue:

A teoria da sociedade de risco desenvolvida pelo sociólogo


alemão Ulrich Beck, em que aborda as incertezas fabricadas
numa sociedade de inovação tecnológica, está conectado com
a noção de modernidade reflexiva. Os riscos abordados pelo
autor são inerentes à ação humana ou, dito de outro modo, a
humanidade tornou-se um problema para si mesma. Especi-
ficamente, na atualidade diante da intensificação de desastres
ambientais parece que se tornam prioritárias as ações e os
investimentos em prevenção e gestão de riscos. Todavia, na
gestão dos riscos, ou seja, os cuidados em todas as fases de
um desastre socioambiental como prevenção, mitigação, res-
posta de emergência, compensação e reconstrução, parecem
insuficientes na ótica de Beck (RUSCHEINSKY, 2018, p. 28).

Beck traz um novo conceito dentro da teoria social que abarca


todos os tipos de riscos transfronteiriços chamados de Teoria da So-
ciedade Global de Riscos. Os riscos aos quais Ulrich Beck faz refe-
rência são de largo leque, incluindo “os riscos ecológicos, químicos,
nucleares e genéticos, produzidos industrialmente, externalizados
economicamente, individualizados juridicamente, legitimados cien-
tificamente e minimizados politicamente” (GUIVANT, 2001, p. 95).
Algo peculiar da Sociedade de Risco é que os referidos riscos não
respeitam quaisquer fronteiras.

[...] os riscos são democráticos, afetando nações e classes so-


26 ciais sem respeitar fronteiras de nenhum tipo. Os processos

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 26 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

que passam a delinear-se a partir dessas transformações são


ambíguos, coexistindo maior pobreza em massa, crescimento
de nacionalismo, fundamentalismos religiosos, crises econô-
micas, possíveis guerras e catástrofes ecológicas e tecnológi-
cas, e espaços no planeta onde há maior riqueza, tecnificação
rápida e alta segurança no emprego. (GUIVANT, 2001, p. 96).

Pela lente das Ciências Sociais se propõe que o risco é um fenô-


meno incorporado à modernidade (GIDDENS, 2000), onde o passado
perde relevância e a avaliação dos riscos possui nexo com as possibili-
dades futuras. Outra característica contraditória da sociedade de risco
é a diferenciação e junção entre o local e o global. Esta perspectiva
está no entendido por Giddens (2000, p. 21) ao discorrer sobre um
horizonte dos riscos: “a globalização é política, tecnológica e cultural,
tanto quanto econômica”. Para o autor os riscos se conectam com
relações e eventos sociais complexos. Convém fazer referência a no-
vas dinâmicas de relações sociais que se desvinculam de fronteiras, de
acordo com Hupffer, Artmann e Pol (2017), pois atravessam o tempo
e o espaço, com transações culturais, sociais, políticas e ideológicas.

Modernização Reflexiva e Sociedade de Risco

Ulrich Beck passou a ser um dos expoentes da Sociologia Am-


biental após o lançamento da obra “Sociedade de Risco: rumo a uma
outra modernidade”. A principal discussão estabelecida é a formação
ou a evolução da sociedade onde ocorre em profusão a distribuição
de bens de consumo em massa. Segundo Beck a sociedade moderna
e industrial “é definida como sociedade de grandes grupos, no senti-
do de uma sociedade de classes e camadas sociais, e isso ontem, hoje
e para todo o sempre” (BECK, 2010, p. 16). Estas circunstâncias
compõem a conjunção na qual brotam as propriedades que circuns-
crevem a sociedade onde passa a vigorar uma robusta distribuição
de riscos. Neste sentido, sem apelar para uma abordagem evolucio-
nista, Beck (1997, p. 216) enfatiza diferenças marcantes, pois

enquanto a modernização simples ultimamente situa o motor


da transformação social nas categorias de racionalidade ins- 27

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 27 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

trumental (reflexão), a modernização “reflexiva” concebe a for-


ça motriz da mudança social em categorias do efeito colateral
(reflexividade). O que não é visto, não é refletido, mas, ao con-
trário, é externalizado, acrescentando-se à ruptura estrutural
que separa a sociedade industrial da sociedade de risco, que
separa das “novas” modernidades do presente e do futuro.

Ao adentrar-se, portanto, nos meandros da modernidade,


assim denominada por Giddens (1991, p. 11), “refere-se a estilo,
costume de vida ou organização social que emergiram na Europa
a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou
menos mundiais em sua influência”. Efetivamente, os riscos derivam
da ação e intervenção humana, usualmente amparada pelos siste-
mas peritos, como no caso sendo usual consultar o que prediz o
conhecimento científico. Os riscos possuem variadas faces, no caso
do meio ambiente, o efeito estufa, a degradação das águas potáveis,
o envenenamento dos alimentos ou a extinção de espécies, sinalizam
uma alteração profunda na conexão entre sociedade e ambiente (GI-
DDENS, 1991). Existe também um planejamento para conformar
as alterações e a distribuição dos riscos de forma diferenciada entre
segmentos sociais. Somente a título de exemplo, o autor também se
reporta a tipos de riscos que apareceriam em ambientes institucio-
nalizados, ou como parte estratégica de algumas atividades. O mer-
cado de investimentos procura prever a ação alheia para maximizar
ganhos, ou o risco de outrem comparece como forma de colonizar o
futuro relacionado a ações no presente (GIDDENS, 2000).
Giddens (1991, 2000) aponta que as mudanças em curso no
presente consolidam um momento de radicalização da modernida-
de, sendo os riscos decorrentes do modelo de modernização adotado
no ocidente. Ao contrário de Giddens, Luhmann (1991) defende o
entendimento de que predomina a visão de que o presente e o futuro
da sociedade dependem das tomadas de decisão, razão pela qual os
riscos são incrementados na medida em que se adiciona um cenário
com proliferação das possibilidades de escolha. Nesta ótica, citemos
um caso concreto quanto ao usufruto de direitos conectados direta-
mente com a questão ambiental.
28

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 28 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

A tendência do mercado induz a lógica da proteção pelo viés


de torná-la mercadoria, com precificação definida e, como tal,
valorada em ambiente de escassez. Entretanto, em uma socie-
dade com acesso desigual aos recursos naturais, evidencia-se
o sentido oposto do direito universal ao acesso à água. Espe-
cialmente a partir da questão da água, é possível associar os
efeitos da sociedade de risco e as consequências de desastres
ambientais. De acordo com a ocasião do fenômeno, o discurso
ambiental lida ora com a falta d’água, ora com o excesso por
ocasião de enchentes (RUSCHEINSKY, 2010, p. 243).

Ou seja, a realidade se move numa complexidade de fatores


e entrelaçamentos, com conflitos expressos ou implícitos. Na com-
preensão Beck (2010, 1997), por meio dos desdobramentos da mo-
dernidade o desenvolvimento da ciência e das novas tecnologias
torna-se incapaz de controlar os seus próprios efeitos e consequên-
cias. Sendo assim, os riscos gerados a partir de seus próprios engen-
dramentos suscitam consequências colaterais para a vida humana e
de forma mais geral para o meio ambiente. Com certa frequência, o
apontamento das inferências e dos corolários a longo prazo ainda é
desconhecido, para não aventar que parcela dos riscos soam como
irreversíveis: ecológicos, químicos, nucleares, genéticos e econômi-
cos, entre outros. Sendo assim, está posta uma perspectiva ou outra
concepção da sociedade de consumo ou tudo indica uma apreciação
crítica do capitalismo. Dito com as palavras do autor, na conjugação
de fatores geraria “uma nova forma de capitalismo, uma nova forma
de economia, uma nova forma de ordem global, uma nova forma
de sociedade e uma nova forma de vida pessoal” (BECK, 2010, p.
10). Se por um lado os riscos da sociedade industrial são concretos
(fumo, trânsito, utilização industrial de máquinas de corte etc.), por
outro, os riscos relacionados à sociedade de risco são demarcados
por sua invisibilidade, globalidade e imprevisibilidade
Enquanto um percurso ou mecanismo inicia-se na sociedade do
risco um processo social que autores em tela consideram moderni-
dade reflexiva. O foco para avalizar os riscos situa-se nos efeitos da
modernização que trazem ameaças e insegurança à flora e fauna, à
biodiversidade e aos humanos. Devido a sua dinamicidade os riscos 29

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 29 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

engendrados ultrapassam a segmentação em classes, as fronteiras na-


cionais geográficas, sendo o seu lado obscuro a condição de invisíveis,
imperceptíveis ou imprevisíveis. Porém, ao atingir de forma mais in-
tensa um grupo social específico deixa de lado a sua dimensão demo-
crática ou configura uma injustiça ambiental (PORTO, PACHECO e
LEROY, 2013). Ao revés, se estende à produção e à reprodução ultra-
passando fronteiras como ameaça global supranacional, e ao contrá-
rio do suposto a ciência faz parte tanto do problema, como da solução.
Na sociedade contemporânea tanto as riquezas quanto os riscos
são socialmente produzidos e circulam na qualidade de mercadorias.
Se de um lado, as relações sociais parecem deter dinâmicas incremen-
tadas pela regulação e controle ao cotidiano, com incidência sobre a
mobilização dos desejos individuais, porém, de outro, as mudanças
tecnológicas e os riscos são inerentes ao curso da modernidade (crise
da esperança, ambiental, ética, irrelevância da política, TIC’s etc.).
É causa de polêmica se os recursos informacionais facultados aos
sujeitos potencializam dinâmicas reflexivas em práticas e filiações.
Assim, de acordo com enunciados de Beck (1997; 2010) apesar des-
te processo controverso há possibilidades de se elaborar enunciados
que disputem a definição de sentidos para os projetos a nível pessoal
e societário. Seria este igualmente o ensejo de experienciar certo au-
toconfronto com as complexidades, ambivalências e contradições.

A avaliação é a seguinte: enquanto na sociedade industrial a


lógica da produção de riqueza domina a lógica da produção
de riscos, na sociedade de risco essa relação se inverte (Pri-
meira Parte). Na reflexividade dos processos de moderniza-
ção, as forças produtivas perderam sua inocência. O acúmulo
de poder do “progresso” tecnológico-econômico é cada vez
mais ofuscado pela produção dos riscos (BECK, 2010, p. 16)

No curso da modernidade os indivíduos de alguma forma


se defrontam com perigos, mas a reflexão sobre os mesmos se põe
como adversidades externas do processo de desenvolvimento. Sob a
égide da sociedade de risco, com a continuidade e aprofundamento
das mazelas do sistema produtivo, Beck (1997, p. 19) endossa que
30 “as sociedades modernas são confrontadas com as bases e com os

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 30 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

limites do seu próprio modelo até o grau exato em que eles não se
modificam, não se refletem sobre seus efeitos e dão continuidade a
uma política muito parecida”.
A “modernidade reflexiva” possui grande relevância, pois
que se aponta que a própria sociedade contemporânea se tornou
um problema para ela mesma, com acentos sobre a reinvenção de
incertezas, de ambivalências, forjando-se inclusive novas ondas de
alienação. Os indivíduos, querendo ou não, passam a viver e agir em
novos patamares de incerteza ou difusos riscos. Isto ocorre inde-
pendentemente inclusive de sua percepção como tal ou não, ocor-
re um imbricamento nas problemáticas dos riscos. No prefácio da
obra “Modernização Reflexiva”, elaborado de forma conjunta por
Beck, Giddens e Lash (1997, p. 7) apontam para a relevância estra-
tégica da noção e do espaço dedicado à reflexão sobre reflexividade.

A reflexividade - embora compreendida de maneiras muito di-


ferentes em cada um dos três autores - é um dos temas mais
importantes. Para todos nós, a prolongada discussão sobre mo-
dernidade versus pós-modernidade tornou-se cansativa e, assim
como muitas discussões desse tipo, acabou resultando pouco
produtiva. A ideia de modernização reflexiva, independente de
se usar ou não este termo como tal, rompe as amarras em que
estas discussões tenderam a manter a inovação conceitual.

A noção de reflexividade consiste num empreendimento de


uma articulação empreendedora de pensar que é possível fazer dife-
rente o que vínhamos fazendo até o presente. Convém apontar para
a relevância da distinção entre capacidade de reflexão (construção
do conhecimento) e a noção de reflexividade (autoconfrontação, au-
todissolução ou autorrisco, percepção não linear). Indo além, fica
esclarecido que reflexividade ultrapassa ou transmuta a ideia mo-
derna de reflexão (SÁ e MELLO, 2012), sendo que os indivíduos de
alguma forma são impelidos ou projetados para outro tipo de visão
perante as transmutações da vida contemporânea. Quanto à

noção é a de modernidade reflexiva, a qual aponta uma confi-


guração social em que é possível estabelecer um discernimen-
to sobre as consequências das inovações sociais. A produção
31

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 31 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

social de riquezas converteu-se na produção social de riscos,


especialmente no âmbito científico-tecnológico. Nessa ótica,
na configuração da sociedade contemporânea Beck cunha a
expressão irresponsabilidade organizada, ou seja, progressi-
vamente aumentam as atribuições de responsabilidade pelos
efeitos devido à justificativas de pertencimento a uma engre-
nagem complexa. As origens e consequências da degradação
do ambiente passam a ocupar o centro de uma teoria da socie-
dade moderna, em vez de considerá-la um elemento periféri-
co ou uma reflexão posterior (RUSCHEINSKY, 2018, p. 29).

Pelas contingências inerentes à sociedade de risco, o indivíduo


torna-se reflexivo (BECK, 1997), na medida em que contrapõe as
próprias ações, percebe os efeitos funestos do processo de consumo
voraz, se capacita para críticas racionais sobre si e seu contexto e
para a análise das consequências de fatos pretéritos devido a seus
potenciais riscos futuros (HUPFFER, ARTMANN e POL, 2017).
Em síntese, a primeira modernidade baseava-se nas socieda-
des limitadas ao Estado-Nação, onde as relações sociais, as redes
e as comunidades assumiam um caráter eminentemente territorial.
Os padrões coletivos de vida, a ideia de progresso e de controle,
o pleno emprego e a relação com a natureza foram radicalmente
afetados por cinco processos que caracterizam esta segunda moder-
nidade: a globalização, a individualização, a revolução assente na di-
ferença sexual, o desemprego e os riscos globais (MENDES, 2015).
Dentre esses processos o que merece destaque sob a égide da
sociedade de risco será o desemprego, entre outros percalços, e do
qual se tratará no próximo item. A passagem do pleno emprego da
Primeira Modernidade para o desemprego da Segunda Modernidade.

Do pleno emprego aos riscos da informalidade


e do desemprego

Ao longo do transcurso da Primeira Modernidade o trabalho


adquiriu muito destaque chegando a tornar-se a principal dimensão
da identidade social do indivíduo. Segundo Ulrich Beck (2003, p. 160)
32 “diante do pano de fundo das revoluções burguesas, da ascendente

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 32 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

economia de mercado, do capitalismo em rápida expansão, o trabalho


passou a ser a característica central da identidade social, da posição
social, da segurança existencial do homem”. Essa sociedade do traba-
lho que tem como significado central o trabalho teve como princípio
fundamental da política de bem-estar o pleno emprego, inclusive, con-
sagrados em algumas constituições da sociedade europeia.
Com o passar das mudanças tanto a concepção, quanto as prá-
ticas diante das inovações tecnológicas a configuração, da forma
como as atividades do trabalho são usualmente exercidas, foi efeti-
vamente remodelada. Neste sentido, o autor ao referir-se as profun-
das mudanças menciona que de modo peculiar na sociedade de risco:

os conflitos da distribuição em relação aos “bens” (renda, em-


pregos, seguro social), que constituíram o conflito básico da
sociedade industrial clássica e conduziram às soluções tenta-
das nas instituições relevantes, são encobertos pelos conflitos
de distribuição dos “malefícios”. Estes podem ser decodifi-
cados como conflitos de responsabilidade distributiva. Eles
irrompem sobre o modo como os riscos que acompanham a
produção dos bens (megatecnologia nuclear e química, pes-
quisa genética, a ameaça ao ambiente, supermilitarização
e miséria crescente fora da sociedade industrial ocidental)
podem ser distribuídos, evitados, controlados e legitimados
(BECK, 1997, p. 17).

O pleno emprego significa, de acordo com Ulrich Beck, um


exercício de atividade profissional remunerada, com a aprendiza-
gem de capacidades para uma profissão e então, uma base para a
existência material (BECK, 2003). Neste sentido, Muterle (2008, p.
101) adiciona que “o discurso político do pleno emprego e as políti-
cas keynesianas colocadas em práticas levaram à segurança social na
Primeira Modernidade. A busca do pleno emprego ainda continua
uma promessa, mas isto apenas retardará o enfrentamento das ques-
tões colocadas na Segunda Modernidade”. Cabe destacar também
que a proteção efetivamente é composta por um leque de dimensões
ancoradas num Estado de bem-estar social onde “... o seguro obriga-
tório assumiu a ambição de se tornar o princípio de uma cobertura
generalizada contra os riscos sociais” (CASTEL, 1998, p. 410). 33

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 33 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Em texto publicado em 1987, Habermas já previa o esgota-


mento das energias utópicas que sustentavam o estado de bem-es-
tar social e como tal o pleno emprego ou a plena proteção social.
Os indivíduos ou dependem do trabalho remunerado ou são clien-
tes da burocracia do Estado para obter a proteção de seus direitos.
Esta condição projeta, talvez menos o cidadão ativo, mas o papel de
consumidor de bens de massa com poder de compra (HABERMAS,
1987). Nestas circunstâncias se instaura o apaziguamento dos anta-
gonismos de classe, razão pela qual as negociações coletivas perma-
nentes se fragilizam e acentuam o poder e a capacidade de ação do
aparelho estatal intervencionista. Esta situação também é abordada
por outro autor francês.

O Estado social, de tipo social-democrata, havia conservado


uma versão edulcorada dessa utopia: não era mais necessário
subverter a sociedade pela revolução para promover a digni-
dade do trabalho, que continuava a ocupar um lugar central
como base do reconhecimento social e como alicerce que se
prendiam as proteções contra a insegurança e o infortúnio. ...
um cidadão em um sistema de direitos sociais, um beneficiá-
rio das subvenções distribuídas pela burocracia do Estado e,
também, bem como um consumidor reconhecido das merca-
dorias produzidas pelo mercado. Esse modo de domesticação
do capitalismo tinha, assim, reestruturado as formas moder-
nas da solidariedade [...] (CASTEL, 1998, p. 513).

No Brasil o pleno emprego também foi constitucionalmente as-


segurado, previsto por princípios expostos no art. 7º da Constituição
do Brasil de 1988 (BOTELHO e WINTER, 2014). Uma sociedade
do pleno emprego distribui as oportunidades e as capacidades, ajusta-
das as políticas do Estado Nacional. Porém, existem problemas estru-
turais ou desigualdades persistentes ou reinventadas que pervertem
o padrão de regulação. Com o advento de instituições questionadas
quanto ao seu papel histórico, desvenda-se um “Estado destituído de
poder” para dar conta de ambições estabelecidas ou atribuídas.

De outra feita, nos lembra de forma consistente Beck (2010),


34 que aquilo que conhecemos como problemas ambientais não

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 34 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

se formulam como quesitos pertencentes ao entorno como


algo que se situaria “do lado de fora” do humano. Ou, igual-
mente, os humanos e suas ações não se situam algo externo
ou à parte do ecossistema. Sendo assim, as origens, as cau-
sas e as consequências das questões ambientais se endossam
como questões sociais, implicando a história, as condições de
vida, as relações entre grupos sociais, entre outras dimensões
como realidade cultural e política.

Os conflitos ambientais e a ampliação da degradação dos bens


naturais incidiram para que as sociedades ocidentais contemporâ-
neas se tornassem reflexivas (Beck, 2010), usualmente denomina-
da modernização reflexiva. Neste interim adquirem ciência de que
novos riscos brotam são perigos inaugurando outras inseguranças
inerentes à própria modernização como processos tecnológicos. A
sociedade do trabalho com pleno emprego da sociedade industrial é
pré-requisito para a existência do Estado Social, pois a situação era
concebida segundo as categorias da sociedade do trabalho assalaria-
do (VIEIRA e DINIZ, 2015).

ao contrário, estamos às voltas com desenvolvimentos de


que, com a tecnologia da informática, revolucionam essa for-
ma de trabalho, que o fragmenta em suas dimensões espacial,
temporal e contratual, de modo que surgem cada vez mais
pseudo-autônomos, empregos de 630 marcos, atividades tem-
poralmente limitadas, empregos sem contratos, trabalho na
zona cinzenta da economia informal – coisa que, aliás, ocorre
em todos os níveis de qualificação possíveis, não só nos infe-
riores-, de modo que essas formas de ocupação questionam o
princípio central sobre o qual a atividade de profissional se
apoiava até agora, especificamente a relativa segurança e a
possibilidade de cálculo a longo prazo. Assim o regime de ris-
co passou a dominar também o centro da sociedade produtiva
(BECK, 2003, p. 161).

Na sociedade de risco na medida em que há a flexibilizações da


jornada e do local de trabalho, razão pela qual se diluem as rígidas
fronteiras entre o exercício do trabalho cotidiano e do ócio/lazer
(VIEIRA e DINIZ, 2015). Os setores institucionais e as empresas 35

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 35 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

em seus empreendimentos e, assim também, os consumidores são


interconectados pela microeletrônica. O capital especulativo ganha
espaço e poder em detrimento do setor de serviços, bem como o do
capital produtivo.

Dessa forma, porém, as atuais premissas jurídicas e sociais do


sistema empregatício são “modernizadas até desaparecerem”:
o desemprego em massa é “integrado” ao sistema empregatí-
cio sob as formas novas de “subemprego plural” – com todos
os riscos e oportunidades implicados (BECK, 2010, p. 17).

A estruturação da vida em torno da atividade laboral traduz


anseios, desejos, necessidades e utopias. O empenho laboral ou o
prolongamento da jornada se baseia, inclusive, numa busca de sa-
tisfação que se dá por meio do consumismo ou sonho por determi-
nados produtos. As ansiedades são compreendidas pela publicidade
e difundidas pela mídia, razão pela qual parece tornar-se lógica a
subserviência a situações degradantes para não perder a forma da
subsistência familiar, a sua identificação social e manter-se integra-
do ou com acesso ao bem-estar. Essa transformação do regime de
pleno emprego para o regime de risco provoca consequências que
irão descontruir todos os pilares da sociedade, aumentando a neces-
sidade de análise sociológica desta. O motivo seria o fato de que o

[...] trabalho se impôs essencialmente como princípio da so-


ciedade burguesa, e não só porque se queria oferecer certo
segurança material aos pobres, por isso também, é claro, mas
porque se queria contra-arrestar a ameaça representada por
“sujeitos” não integráveis ao controle e ao conjunto de senti-
do da sociedade (BECK, 2003, p. 165).

Surge, desta forma, a seguinte indagação: Como esses indiví-


duos se integraram à sociedade? Várias possibilidades surgem, den-
tre elas tem-se a iniciativa individual, formando o “terceiro setor”,
que Ulrich Beck explica tratar-se de “um financiamento básico que
abre as portas para todas as iniciativas possíveis” (BECK, 2003, p.
167). Diante da crise social e o advento e alargamento dos riscos de
36 insegurança Castel (1998) admoesta:
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 36 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

[...] a vulnerabilidade social é uma zona intermediária, ins-


tável, que conjuga a precariedade do trabalho e a fragilida-
de dos suportes de proximidade. [...]. A vulnerabilidade é
um vagalhão secular que marcou a condição popular com o
selo da incerteza e, mais amiúde, com o do individualismo
(CASTEL, 1998, p. 24 e 27).

Cita-se também a possibilidade de surgirem os “desemprega-


dos voluntários” que são pessoas que se retiram espontaneamente e
conseguem cuidar de si. Por isto e outras razões de acatamento da
informalidade laboral e do desemprego estrutural para Beck (2003,
p. 165) têm-se que “as pessoas se recusam a oferta de integração
como também valorizam e muito – a situação de desemprego como
um status a que se há de aspirar no futuro”.
Com a sociedade de risco como mecanismo de instauração
formas de insegurança o trabalhador está desfiliado da sociedade
na medida em que o salário já não está garantido ou o mesmo não
garante vida digna. Mas,

[...] em contrapartida, falar de desfiliação não é ratificar uma


ruptura, mas reconstruir um percurso. A noção pertence ao
mesmo campo semântico que a dissociação, a desqualificação
ou a invalidação social (CASTEL, 1998, p. 26).

Ou ainda, “a proliferação do trabalho informal e desqualifica-


do ou instável/inseguro “têm um status intermediário entre a ex-
clusão e a inserção definitiva” (CASTEL, 1998, p. 536).
Diante desse desemprego que provoca incertezas quanto ao
futuro dos indivíduos, que precisam do trabalho para integrarem-se
à sociedade e buscam uma dessas possibilidades para sobreviverem,
uma nova sociedade de múltiplas formas de insegurança é forjada.
Essa nova sociedade torna-se uma sociedade individualizada em que
a socialização no trabalho deixa de existir. Volta-se ao famoso “Cada
um por si”.

No plano da biografia, para resumi-lo mais uma vez, essa


flexibilização contratual, espacial e temporal do trabalho
redunda na intensificação da individualização, que, em todo 37

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 37 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

caso, fortalece ainda mais a presente tendência a atomização.


As relações de vida tornam-se mais fragmentárias, suprime-
-se a experiência da socialização (BECK, 2003, p. 169).

Desta forma, o que se previa como garantia tem sido alterado


de forma gradual e as incertezas dissolvem as bases dos direitos
sociais ou se erodem as bases do contrato social moderno. As mu-
danças são acima de tudo paradoxais ou carregadas de contradições
e não lineares. Os riscos emergentes com o declínio da adesão ao
pacto social de bem-estar alteram também as formas de solidarieda-
de coletiva. Ao mesmo tempo, os riscos são inerentes aos processos
sócio-políticos como dirá Habermas (1987, p. 108)

os estratos de eleitores ascendentemente mobilizados, a


quem o Estado de bem-estar aproveitou diretamente, podem
desenvolver uma mentalidade de conservação das posições
alcançadas e unirem-se com a velha classe média, em geral
com as camadas tidas com “produtivistas”, num bloco defen-
sivo contra os grupos menos favorecidos ou marginalizados.

Esta parece ser uma circunstância em ascensão no caso brasi-


leiro, polarizando as forças políticas seja pela inclusão e ampliação
do bem-estar, seja pela instauração de bases autoritárias que assegu-
ram as desigualdades persistentes.

Outros riscos desafiam a modernização reflexiva.

Diversos outros tópicos ou temáticas poderiam ser examina-


das a partir das lentes da noção sociedade de risco. Aqui somente
vamos mencionar sem aprofundar devidamente. Diante da busca
por proteção social e outras formas de assegurar o ficar vivo corres-
pondente uma situação inversa que se caracteriza pelo excesso da
ansiedade por estar assegurado. Neste excesso os sistemas apresen-
tam riscos de falhar no atendimento das expectativas, devido à im-
possibilidade de plena segurança, da sua complexidade e fragilidade.
O uso de agrotóxicos pode ser compreendido como a indús-
38 tria química dominando os elementos centrais na produção de ali-

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 38 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

mentos no território brasileiro. A utilização intencional e em larga


escala de produtos químicos para acentuar a produtividade na área
de alimentos, degrada o ambiente e conduz o risco à mesa do con-
sumidor. Este processo remonta à revolução verde ou transmutação
das inovações de guerra para o campo da produção agropastoril.
Ao mesmo tempo constatam-se lutas socioambientais em todos os
quadrantes e com múltiplas frentes e temas.

Há uma persistente e repetitiva retórica ecológica reportan-


do-se ou promovendo práticas de recuperação ambiental em
meio a uma sociedade de consumo e de risco que, de manei-
ra reiterada, produz a crise ambiental. Desta forma, isenta o
modo de vida – produção e consumo – dos delitos ambientais
do passado e do presente (RUSCHEINSKY, 2010, p. 245).

As informações sobre riscos socioambientais se difundem, po-


rém, as práticas sociais não se atualizam de acordo com o fenômeno
sobre os quais de possui ciência. Daí nasce a interrogação se está em
construção de um novo paradigma societal a partir dos riscos am-
bientais agudos identificados, ou uma nova racionalidade ambiental
que esteja em disjunção com a instrumentalização e a mercantiliza-
ção aderente ao processo de globalização.
Com a abertura dos mercados cresce a interdependência, sen-
do que Beck (2010, p. 43) acena que as “cadeias alimentares inter-
ligam cada um a praticamente todos os demais da face da Terra”.
Por isto com Hupffer, Artmann e Pol (2017, p. 172) se endossa que
“os alimentos atravessam fronteiras e há uma exportação invisível
e latente de perigos”. Por certo, o mais adequado seria afirmar que
se manifestam riscos invisíveis e latentes, quando se acompanha as
reflexões de Beck e Giddens.
As polêmicas e a luta política continuam vivas mais do que
nunca como desafio no século XXI, para os céticos os “riscos não
estão sendo comprovados” e os cientistas estão exagerando, mas
para os ambientalistas é inaceitável que os fabricantes de riscos co-
mandem os fenômenos sociais. Para ambos os lados as condições
para proteger ou proporcionar graus mínimos de segurança ainda
necessitam de mais pesquisas diante das inovações que o próprio 39

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 39 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

campo dos riscos tecnológicos suscita (BECK, 2010; HUPFFER,


ARTMANN e POL, 2017).
Estamos, portanto, diante de um outro estágio quando se de-
nominam riscos nanotecnológicos provocando danos socioambien-
tais. Diante deles a complexidade se redobra, pois que os efeitos não
possuem previsibilidade e são abarrotados de incertezas científicas
quanto as suas projeções de riscos (BERWIG e ENGELMANN,
2017). Isto acentua a dimensão do efêmero e da vulnerabilidade da
condição humana, de um lado, mas por outro, evidencia o poder da
criação da criatividade e da inovação.

Considerações finais

Na atual sociedade, quanto mais bens circulam, quanto mais


tecnologia, tanto mais crescem as incertezas como ameaças, tais
como guerras, terrorismos, epidemias, mudanças climáticas, crises
financeiras, desigualdades, pobreza, informalidade, desemprego, en-
tre outros riscos. A nossa reflexão neste capítulo permite refutar a
plena segurança proposta pela lógica da modernidade por meio da
abundância material e das descobertas científicas. O quadro com-
plica-se quando analisamos esse momento de pandemia provocado
pelo contágio mundial provocado pelo coronavírus Covid-19, apre-
sentando novas formas de risco ou intensificação dos já existentes.
De outro modo, num momento de crise afloram também conflitos de
interpretação quanto à própria ciência, bem como novas formas de
discrepâncias ou desigualdades sociais, emergindo a naturalização
do risco à vida para determinados contingentes populacionais.
Os estudos de Beck alicerçam uma reflexão a respeito da Teoria
da Sociedade de Riscos dentro do campo das Ciências Sociais, abar-
cam um leque de tipos de riscos transfronteiriços. Dentre outros ris-
cos apontados abordou os riscos do desemprego e do individualis-
mo; os ecológicos como as mudanças climáticas; os químicos como os
agrotóxicos; os nucleares e genéticos; a obsolescência programada e a
consequente percepção de descarte de objetos indesejados.
Os trabalhadores encontram-se imersos na imprevisibilidade
40 de uma Sociedade de Risco, porém mais do que isto o autor alerta
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 40 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

que a vida dos indivíduos parece transposta à condição de coadju-


vante diante do protagonismo da técnica que domina o sistema de
produção, assim como permeia o cotidiano. Durante o percurso da
modernidade, os trabalhadores estruturaram a vida em torno da
atividade laboral, inclusive, consolidando identidades e sociabilida-
des, bem como os seus anseios e projetos se basearam em bens de
consumo de determinada lógica ou imaginário. Agora na segunda
modernidade ou modernidade tardia, mediante o risco à luz do de-
semprego estrutural, apontados pela teoria da sociedade global de
riscos, este trabalhador submete-se a qualquer situação degradante
ou estende a jornada de trabalho para não ser subtraído em sua
forma primordial de subsistência. De tal forma que, por vezes, isso,
vem a afetar a sua saúde, a trocar o convívio familiar e afetar seu
bem-estar, bens efetivamente valiosos para a identidade e relaciona-
mentos sociais. Isto pode significar, inclusive uma alegria fugaz, ao
se adquirir de forma eufórica, este ou aquele produto tecnológico,
mas também perecível ou enquadrado na obsolescência planejada,
assim como afeta a sua saúde física e mental. Este é um aspecto mais
profundamente desenvolvido por Lipovetsky (2009) ao abordar as
dimensões da sedução pelo efêmero, da estetização da vida.
Este é um debate polêmico, pois que há cientistas que atestam
que todos os problemas humanos de alguma forma podem ser debe-
lados pela própria inovação tecnológica. Beck contesta esta versão ao
se referir que a ciência é parte do conjunto de problemas da atualida-
de, pois os riscos relacionam-se aos avanços científicos e industriais,
porquanto se tornaram como sintomas incalculáveis, imprevisíveis e
globais. Os riscos ultrapassam as condições de resolução ou ao con-
trole do Estado-Nação, bem como do campo das instituições sociais.
Outra temática abordada sob as lentes das Ciências Sociais
a partir da noção da Sociedade de Risco são os riscos ecológicos.
Primeiro tem-se a larga utilização intencional de produtos químicos
para acentuar a produtividade na área de alimentos e que remonta
à revolução verde ou transmutação das inovações de guerra para
o campo da produção agropastoril. No mais, devido ao reconheci-
mento de significativas e amplas contribuições esta teoria enseja um
leque de novas frentes de investigação. 41

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 41 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Como pesquisadores na área das Ciências Sociais podemos


analisar a contribuição dos riscos tecnológicos e industriais, mas,
também, os riscos da ampliação desmedida do consumo para a crise
ecológica local à global. Além disto, os desastres tecnológicos ou as
catástrofes ambientais podem advir principalmente dos setores quí-
mico, mineral, petroquímico, entre outros. Estes processos tecnoló-
gicos se traduzem em riscos que afetam os trabalhadores e a popu-
lação de forma desigual nos territórios que habitam. De um ponto
de vista cotidiano, ao olharmos para a realidade brasileira, podemos
afirmar que o descaso com as nascentes e os rios está sendo estam-
pado como uma ameaça ao Pantanal, na região oeste do Brasil.
Portanto, em última análise, verificou-se a partir da biblio-
grafia consultada para a construção deste texto que os fabrican-
tes desses riscos comandam os fenômenos sociais e que nem um
grau mínimo de segurança nessa Sociedade dos Riscos foi alcan-
çado. Ademais, conclui-se também que as pesquisas científicas são
imprescindíveis, juntamente com a intervenção dos atingidos por
esses fenômenos sociais, nos processos de tomada de decisões que
envolvem as aplicações da ciência, dada a existência dos riscos tec-
nológicos impostos por sua adoção.

42

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 42 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Referências
BECK, U. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. São
Paulo: Editora 34, 2010.
______. Liberdade ou capitalismo. São Paulo: Unesp, 2003.
______. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização
reflexiva. In: BECK, U.; GIDDENS, A.; LASH, S. Modernização re-
flexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São
Paulo: Unesp, 1997.
BECK, U.; GIDDENS, A.; LASH, S. Modernização reflexiva: po-
lítica, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo:
Unesp, 1997.
BERWIG, J. A.; ENGELMANN, W. A nanotecnologia: do fascínio
ao risco. ENGELMANN, W.; HUPFFER, H. M. (Orgs.). Impactos
sociais e jurídicos das nanotecnologias. São Leopoldo: Casa Leria,
2017. Pp. 185-206.
BOTELHO, M. M.; WINTER, L. A. C. O princípio constitucional da
busca do pleno emprego: alguns apontamentos em direito econômico
brasileiro. Revista Thesis Juris, v. 3, n. 1, pp. 55-74, 2014.
CASTEL, R. As Metamorfoses da questão social: uma crônica do
salário. Petrópolis: Vozes, 1998.
GIDDENS, A. O mundo na era da globalização. Lisboa: Editorial
Presença, 2000.
______. Consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.
GUIVANT, J. S. A teoria da sociedade de risco de Ulrich Beck: entre o
diagnóstico e a profecia. Revista de Estudos Sociedade e Agricultu-
ra, v. 9, n. 16, pp. 95-112, 2001.
HABERMAS, J. A crise do estado de bem-estar social e o esgotamento
das energias utópicas. Novos estudos CEBRAP, v. 18, p. 103-114, 1987.
HUPFFER, H. M.; ARTMANN, M.; POL, J. J. Sociedade de risco e
nanoagrotóxico: reflexões sobre os riscos invisíveis postos à mesa. In:
ENGELMANN, W.; HUPFFER, H. M. (Orgs.). Impactos sociais
e jurídicos das nanotecnologias. São Leopoldo: Casa Leria, 2017.
Pp.159-184. 43

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 43 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

LIPOVETSKY, G. O império do efêmero: a moda e seu destino nas


sociedades modernas. Editora Companhia das Letras, 2009.
LUHMANN, N. Sociologia do Risco. São Paulo: Bertrand Brasil, 1991.
MENDES, J. M. Ulrich Beck: a imanência do social e a sociedade do
risco. Análise Social, v. 50, n. 214, pp. 211-215, 2015.
MUTERLE, M. C. C. O pleno emprego na perspectiva da moderniza-
ção reflexiva. Ponto-e-Vírgula: Revista de Ciências Sociais, n. 3, pp.
92-105, 2008.
PORTO, M. F.; PACHECO, T.; LEROY, J. P. (Eds.). Injustiça ambiental e
saúde no Brasil: o mapa de conflitos. Scielo-Editora FIOCRUZ, 2013.
RUSCHEINSKY, A. Riscos socioambientais no espaço Urbano. In:
LADWIG, N. I.; SCHWALM, H. (Orgs.). Planejamento e gestão
territorial: a sustentabilidade dos ecossistemas urbanos. Criciúma:
EdiUnesc, 2018. Pp. 17-39.
______. Informação, meio ambiente e atores sociais: mediação dos con-
flitos socioambientais. Ciências Sociais Unisinos, v. 46, n. 3, pp. 232-
247, 2010.
SÁ, M. G.; MELLO, S. C. B. Reflexividade e articulação empreendedo-
ra na sociedade contemporânea: podemos fazer diferente? Revista de
Administração Pública, v. 46, n. 1, pp. 249-270, 2012.
VIEIRA, Â. D. L.; DINIZ, B. D. O valor trabalho na sociedade de risco:
a fábrica global. Revista Thesis Juris, v. 4, n. 1, pp. 13-40, 2015.

44

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 44 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

A abordagem sociológica na temática das


capacitações e funcionamentos de Amartya Sen

Marines Rute de Oliveira

Introdução

Tomando como referência teórica as principais obras de


Amartya Sen, alguns aspectos pontuais das teorias de Max Weber,
Pierre Bourdieu e Alain Touraine, e como uma parte de estudos
para fins de elaboração de tese de doutoramento, que tem como
eixo de reflexão o desenvolvimento como liberdade, com o intuito
de verificar o desenvolvimento da região oeste do Paraná a partir
da agricultura familiar, objetivou-se neste estudo, destacar as re-
flexões a respeito dos tipos de ação social, de capitais econômicos,
sociais e culturais e o conceito de ator social, relacionando-os com
a teoria de Sen quanto à importância dos agricultores familiares se
tornarem atores de suas vidas por meio de suas ações na busca da
melhoria do seu bem-estar.
Inicialmente, será apresentada a teoria de Amartya Sen sobre
desenvolvimento enquanto ampliação das liberdades individuais, des-
tacando a temática das capacitações e funcionamentos. Em um segun-
do momento, serão abordados os tipos de ação social da Sociologia
Compreensiva de Max Weber, na sequência serão trazidas as defini-
ções de capital econômico, social e cultural de Pierre Bourdieu e, por
fim, será apresentada a perspectiva de ator social em Alain Touraine.
Amartya Sen trabalha com outras áreas do conhecimento,
além da Economia, com especial destaque para a Ética, a Filosofia,
a Antropologia e a Sociologia, e que, por meio dessa junção, traduz
seu pensamento sobre desenvolvimento, o qual se relaciona com
conceitos utilizados e desenvolvidos por sociólogos clássicos e mo-
dernos, tais como Weber, Bourdieu e Touraine.
Sabe-se que o modelo de desenvolvimento adotado em uma
sociedade se relaciona com diversos fatores que interferem sobre as 45

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 45 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

condições de vida das pessoas, como, por exemplo, suas realizações


pessoais, a integração social, a participação política, além da pro-
dução e da distribuição de bens. Assim, a visão de desenvolvimento
se relaciona com variáveis econômicas, mas também culturais, nos
objetivos da sociedade, nas condições de vida da população, nos fun-
cionamentos das instituições e nos recursos naturais e ambientais.
Neste sentido, a formação das Ciências Sociais moderna ba-
seia-se em questões filosóficas que apresentam um paradoxo ao cria-
rem, em um só momento, uma lógica de compreensão de ação social
que é subordinada ao individualismo e ao igualitarismo. Assim, tem-
-se que se há pessoas autônomas, e iguais entre si, pode ocorrer que
haja também, por meio de suas relações, situações de desigualdades.
Na visão clássica da Economia, a resolução deste paradoxo aconte-
ceria se não houvesse a má interferência política, ou seja, se a vida
social ficasse a cargo da ação livre do mercado. Enquanto, na visão
Marxista, pensava-se exatamente o oposto, pois era justamente o
mercado capitalista o responsável por gerar a desigualdade entre
pessoas até então iguais (FAVARETO, 2005).
Essas duas posições, acima relatadas pelo autor, acabaram por
influenciar os caminhos tanto da Economia quanto da Sociologia.
Com esta diferenciação ocorreram formas diversas de definir a rela-
ção entre a ação dos indivíduos e as estruturas sociais, bem como no
que diz respeito ao desenvolvimento da temática da mudança social
nas áreas de pensamento.

O desenvolvimento como liberdade:


capacitações e funcionamentos

Na visão de Amartya Sen (2000), as políticas de desenvolvi-


mento devem estar orientadas para a valorização, a expansão e a
promoção do capital humano. Os cidadãos precisam não apenas vi-
ver, mas atuar na sociedade na condição de agentes ativos, desenvol-
vendo suas capacidades.
Desta forma, as políticas públicas precisam ter por objetivo o
enfrentamento das causas das desigualdades vistas a partir da con-
46 dição de não agente dos cidadãos, que se processa devido à fome, ao
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 46 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

desemprego, à falta de saúde, ao analfabetismo, à concentração de


renda, entre outros fatores. Essa condição de não-agente deslegi-
tima as organizações sociais, as instituições e as demais instâncias.
Por isso, se torna imperativo expandir as liberdades para que
as pessoas se tornem seres sociais mais completos e, para isso, é pre-
ciso o reconhecimento da diversidade cultural e também histórica
dos povos, que continuam com seus saberes, suas necessidades parti-
culares, seus laços sociais e de produção de significados para as suas
vidas, mesmo estando todos inseridos no processo de globalização
que, de certa forma, interliga os povos. Nota-se que o modelo de de-
senvolvimento adotado em uma sociedade se relaciona com diversos
fatores que interferem sobre as condições de vida das pessoas, como,
por exemplo, suas realizações pessoais, a integração social, a partici-
pação política, além da produção e da distribuição de bens.
Em sua teoria, Sen substitui o foco na renda para as capacita-
ções e funcionamentos, em que os funcionamentos são vistos como o
que as pessoas são ou fazem e as capacitações estão relacionadas aos
funcionamentos que as pessoas podem escolher, como um conjunto
orçamentário da teoria do consumidor, no entanto, representam as
diversas formas de vida que as pessoas podem ter.
A concepção de Sen (2000 p. 11) sobre o que vem a ser o de-
senvolvimento está relacionada ao fato dele definir como sendo “um
processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam”.
Observa-se que o enfoque nas liberdades humanas se contrapõe com
a usual interpretação limitada de desenvolvimento que faz relação di-
reta com o crescimento econômico por meio de variáveis como o Pro-
duto Interno Bruto, o Produto Nacional Bruto, a elevação da renda
per capita, a melhora na industrialização e o progresso técnico. Desta
forma, ao pressupor o desenvolvimento como expansão das liberda-
des substantivas, ocorre uma direção da ação voltada para os fins e
também para os meios de se obter esse desenvolvimento.
Com relação a perspectiva da capacidade, a análise da pobreza
é baseada no entendimento da natureza e de suas causas, conforme
descreve Sen (2000 p. 60): “as privações são vistas em um nível mais
fundamental – mais próximo das demandas informacionais da justiça
social. Daí a relevância da perspectiva da pobreza baseada na capaci- 47

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 47 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

dade”. Nota-se que o autor critica as análises tradicionais de desenvol-


vimento que focam na eficiência e negligenciam a equidade, atribuindo
maior importância na desigualdade de rendimento e desconsiderando
outros aspectos importantes relacionados às capacitações e liberdades
individuais, que são influenciados por variáveis como a heterogenei-
dade pessoal, as variedades ambiental, cultural e social.
O autor destaca, ainda, a importância da participação ativa, em
que os indivíduos são levados à condição de agentes e destaca tam-
bém a necessidade de que as análises da pobreza sejam direcionadas
para as potencialidades. Neste mesmo sentido, o autor argumenta
que as pessoas são as responsáveis pelo desenvolvimento no local
onde vivem e a responsabilidade requer liberdade. Essas liberdades
são resultantes de circunstâncias pessoais, sociais e ambientais.
Ao fazer essa revisão de conceitos relacionados ao bem-estar e
assinalar que há uma concepção inadequada da natureza dos males
social, Sen argumenta que o bem-estar social é composto pelo bem-
-estar individual e, por isso mesmo, é precisa que haja uma definição
operacional do bem-estar individual e de sua agregação. Dando des-
taque à questão: Igualdade de quê?, e também fazendo uma correla-
ção com a heterogeneidade das pessoas, o autor defende que as bus-
cas por igualdade não devem ser analisadas isoladamente, mas em
conjunto com as demais necessidades, em especial, com as demandas
relativas às finalidades que gerem uma agregação de benefícios e
vise à capacidade geral. Neste sentido, como escreve Sen (2001, p.
13) tem-se que “a perspectiva da capacidade é uma concepção da
igualdade de oportunidades que destaca a liberdade substantiva que
as pessoas têm para levar suas vidas”. Ao defender seu ponto de
vista, Sen (2001) defende que as capacidades das pessoas devem ser
igualadas. Deste modo, o conceito de capacidade demonstra uma
percepção de igualdade de oportunidades, dando destaque para as
liberdades substantivas das pessoas, ou seja, a liberdade delas usu-
fruírem suas vidas da maneira como desejarem, empenhando-se
para conseguirem realizar seus propósitos.
Assim, as oportunidades reais que as pessoas têm para reali-
zar os seus propósitos, sobretudo, o de bem-estar, são representa-
48 das por suas capacidades, indo além da disponibilidade de recursos,
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 48 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

tendo em vista que envolve capacidades, habilidades, talentos in-


dividuais, direitos, condicionamentos, expectativas, autoestima, voz
na comunidade, entre outros. Nota-se que, para Sen (2001, p. 79), o
bem-estar de uma pessoa pode ser concebido em termos da qualida-
de da condição da pessoa de modo que “viver pode ser visto como
consistindo num conjunto de “funcionamentos” inter-relacionados,
que compreendem estados e ações”.
Desta forma, a realização de uma pessoa pode ser definida
como o condutor de seus funcionamentos. Assim, diretamente li-
gada à noção de funcionamentos está a de capacidades para realizar
esses funcionamentos, em que as capacidades representam as diver-
sas combinações de funcionamentos que uma pessoa pode realizar,
ou seja, a capacidade é um conjunto de vetores de funcionamento
que reflete a liberdade das pessoas. Desse modo, a importância da
capacidade de uma pessoa para o seu bem-estar ocorre por meio de
seus funcionamentos que possibilita a sua liberdade, ou seja, suas
oportunidades reais para se obter o bem-estar.
Amartya Sen é um dos maiores expoentes na busca pelo dis-
tanciamento com a Economia Neoclássica, embora a unidade básica
de sua teoria seja o indivíduo. No entanto, ele argumenta que o auto
interesse não é a única guia do comportamento dos indivíduos. Ele
trabalha a ruptura entre economia e ética, mas também, faz a dis-
tinção entre capacidades e utilidades. As suas considerações das ins-
tituições e das estruturas sociais estabelece uma relação com os es-
critos de Bourdieu e principalmente de Weber (FAVARETO, 2005).

Os Tipos de Ação Social da Sociologia


Compreensiva de Max Weber

A opção por utilizar, de maneira apenas pontual, a Sociologia


Compreensiva de Max Weber na análise das ações sociais dos agri-
cultores familiares, que são a categoria social estudada em minha
tese – em andamento – deve-se ao fato de ser uma referência nas
questões relacionadas ao estudo da sociedade e as suas relações de
sociabilidade atuais, bem como por haver um diálogo possível entre
ação social e as capacitações e funcionamentos em Amartya Sen. 49

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 49 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Max Weber (1999) estabelece uma diferença expressiva entre


as ciências da cultura e as ciências da natureza, estipulando que a
última esclarece questões relacionadas aos fatos com leis próprias,
enquanto que a outra não utiliza leis já definidas e se baseia na pos-
sibilidade da compreensão do sentido da ação e esta pode ser consi-
derada a essência da Sociologia Compreensiva.
Considera-se que os valores são intrínsecos aos agentes sociais,
dos sujeitos do conhecimento, assim Weber (1999) argumenta que, na
ciência, não é possível trabalhar com a neutralidade. Em sua teoria, os
valores na ciência também têm a atribuição de orientar a escolha do
objeto, a direção da investigação, a seleção pelo grau de relevância, a
determinação do dispositivo conceitual e o fornecimento do proble-
ma da pesquisa. Desta forma, para Weber, o conhecimento não é um
reescrito da realidade social e nem o término do real. Outro ponto
marcante em sua teoria é a racionalidade enquanto marca da Socie-
dade Ocidental quando comparadas às do Oriente. Essa racionalidade
marca, em sua teoria, a validação científica e também mostra o desen-
cantamento do mundo que representa o fim das características místi-
cas que são sobrepujadas pela racionalidade da sociedade.
Na Sociologia Compreensiva de Weber, o indivíduo é tido como
fundamental, considerando que o coletivo não institui o valor em si
que possa dar uma interpretação ao comportamento. Deste modo, os
conceitos só podem ser analisados sociologicamente tendo por base
as relações advindas de condutas individuais. Assim, para estabelecer
o rigor conceitual nas Ciências Sociais, Weber definiu o tipo ideal que
é um conjunto de conceitos elaborados pelo cientista social para a
pesquisa. Em sua definição, ele estipula que o tipo ideal é obtido por
meio da “concentração unilateral de um ou de vários pontos de vista e
de grande quantidade de fenômenos isolados dados, difusos e descri-
tos” (WEBER, 1999, p. 106). Deste modo, o tipo ideal possibilita jul-
gamento de ordem causal por meio dos nexos causais, além de poder
ser utilizado na conceituação de um fenômeno em uma determinada
realidade, como é o caso, por exemplo, das ideias de ação social, de re-
lação social, de dominação, de Estado e de burocracia que são, grosso
modo, alguns de seus tipos ideais conceituais. Esses tipos ideais são
50 relevantes na Sociologia de Max Weber, considerando que os con-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 50 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

ceitos de ação social se referem aos fins, aos valores, à efetividade e


à tradição. Desta forma, o que é importante nesta concepção são as
ações sociais que apresentam sentido e significado, indo contra a ideia
de fato social como sendo externo ao indivíduo. Para Weber, o objeto
de estudo é orientado por valores e sentidos conferidos ao indivíduo.
Max Weber (2009) em suas elaborações teóricas, buscou pen-
sar numa Sociologia em que o social não estivesse acima dos in-
divíduos e nem que fizesse parte de sua natureza, mas que estaria
presente nas ações, em que a conduta dos outros, fosse levada em
consideração. Assim, o que Weber propôs foi uma ciência que pre-
tende entender e interpretar a ação social, ou seja, interpretar o su-
jeito em suas ações sociais coletivas, tendo em vista que, se todos
os sujeitos agirem em uma mesma ação com o mesmo sentido men-
talizado, não haverá a necessidade de interpretação. Assim, o fato
de ter os mesmos objetivos ao agir coletivamente não significa que
todos tenham o motivo igual para a ação. Dessa forma, na visão de
Max Weber, a Sociologia é uma ciência que pretende compreender
interpretativamente a ação social e explicá-la causalmente em seu
curso e em seus efeitos. Como ação social, ele descreveu que: “ação
“social”, por sua vez, significa uma ação que, quanto ao seu sentido
visado pelo agente ou os agentes, se refere ao comportamento de
outros, orientando-se por este em seu curso” (WEBER, 2009, p. 3).
Nesse sentido, Weber descreve que, por conveniência metodológica,
o método da Sociologia Compreensiva é racional.
O autor descreve ainda que compreensão significa: “apreensão
interpretativa do sentido ou da conexão de sentido” (WEBER, 2009,
p. 6). Assim, o que é possível é a comparação do maior número de
processos semelhantes da vida histórica ou cotidiana, mas que te-
nham diferenças no motivo ou impulso, uma vez que apenas o motivo
pode trazer algum esclarecimento da ação. Dessa forma, a ação social
orienta-se pelo comportamento dos outros, seja este passado, presen-
te ou um futuro esperado, o que significa dizer que nem toda ação
é ação social, isso só ocorre quando essa se orienta pelas ações dos
outros, quando leva em consideração o comportamento de terceiros.
A ação social de um indivíduo é vista como racional em relação
a fins se, para o alcance de um objetivo definido, anteriormente utili- 51

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 51 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

za-se os meios necessários. Deste modo, a relação entre fins e meios


é mais racional na medida em que diminuam as probabilidades de
erros que possam interferir no resultado. E a ação é racional em re-
lação a valores quando o indivíduo age de acordo com seus valores,
mantendo-se fiel a eles por acreditar que esses valores contribuem
para um comportamento que ele considere válido. Assim, o sentido
da ação não está no resultado em si, mas nas próprias condutas do
indivíduo. Ainda, a ação social weberiana pode ser definida também
com base na natureza da motivação, ou seja, ação do tipo afetiva, em
que não há motivação racional; e, ainda, do tipo tradicional, que são
determinadas pelos costumes, ou seja, a ação ocorre tendo por base
os hábitos já estabelecidos. Cabe, portanto, ao cientista social buscar
compreender o sentido da ação social e seu significado, lembrando
que, em algumas circunstâncias, a ação social pode não estar voltada
apenas para um dos tipos classificados (WEBER, 1979).
A teoria de Weber contribui para estimular a capacidade de
compreender a vida cotidiana dentro dos diversos níveis de organi-
zação social na qual o indivíduo está inserido. Com sua análise so-
ciológica, é possível perceber as ações dos indivíduos que são basea-
das em outras pessoas, ou seja, é possível compreender a vida social
por meio do modo como as pessoas organizam suas ações sociais, ve-
rificando seus sentidos, motivos, inspirações e razões para fazê-las.
Neste sentido, retomando a Sen, ao trabalhar a questão do
desenvolvimento focado nas liberdades das pessoas e nas suas capa-
cidades de ser e fazer o que elas valorizam, o autor também deixa,
assim como Weber, de focar no geral e volta-se para o indivíduo
enquanto agente. Sen também deixa de examinar apenas os meios
para o alcance do objetivo de melhora no padrão de vida, ele volta-se
também para os fins do processo de desenvolvimento, ou seja, dire-
ciona a análise para as próprias pessoas.

O Capital Econômico, Social e Cultural de Pierre Bourdieu

Pierre Bourdieu incorporou, em sua teoria, Weber. Ele argu-


menta não haver uma diferenciação entre prática e teoria, por esta-
52 rem interligadas. O autor se dedicou a buscar preencher dicotomias
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 52 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

sociológicas, sendo uma das mais importantes do seu estudo social


o objeto e o sujeito, a materialidade e a representação simbólica,
o agente e a estrutura. Bourdieu desenvolveu, inclusive, conceitos
como o de habitus, campo social, violência simbólica, entre outros.
Para Bourdieu, os agentes sociais fazem parte de um jogo de
forças contínuo que os leva para cada campo social, e ao desejarem
êxito nos campos nos quais interagem, incutem em si os modos de
ser e fazer deste campo específico. Assim, em sua visão, não é pos-
sível sintetizar uma análise social apenas tendo por base as capaci-
tações orçamentárias, mas levando em consideração a interligação
entre os elementos significativos dos campos sociais onde dos quais
as pessoas fazem parte em um determinado momento. Desta forma,
sendo a sociedade substancialmente relacional, o espaço social tor-
na-se bastante relevante na Sociologia do autor. Os diversos capi-
tais: econômico, social e cultural farão com que os agentes estejam
inseridos conforme o montante de capital dos demais agentes, ou
seja, é o todo que define as partes, e toda definição é exterior, assim,
nada se define por si só, de acordo com Bourdieu.
Sintetizando, de acordo com Bourdieu, as liberdades ou as
não-liberdades de uma pessoa não estão relacionadas apenas à sua
renda, mas relacionam-se aos seus capitais, quer sejam econômicos,
sociais ou culturais, e também, aos seus campos de atuação na socie-
dade. Considerando que apenas desta forma se torna factível com-
preender se um elevado montante de capital terá pertinência para
contribuir positivamente para as pessoas que os possuem tornarem-
-se capacitados dentro das relações de poder em que estão inseridos.
Assim como Weber, mas de uma forma mais absoluta, Bour-
dieu também se incorpora na tradição de compatibilidade da análise
sociológica com relação à probabilidade de ligação entre a explicação
por causas e a compreensão de significados, com base em um modelo
que vincula o objetivismo, voltado para reconstrução analítica das es-
truturas sociais objetivas onde os atores individuais são socializados
e atuam, com um subjetivismo, baseado na investigação de como as
condutas que são cultivadas subjetivamente nesses espaços sociais ob-
jetivos ajudam em sua reprodução quando são estimulados à produção
das práticas dos atores. E, neste sentido, Bourdieu (2003, p. 699-700) 53

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 53 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

acaba por definir que “compreender e explicar são a mesma coisa”. O


autor passa, assim, a considerar a realidade social como sendo um es-
paço estruturado por relações objetivas invisíveis, em que “não pode-
mos mostrar ou tocar e que precisamos conquistar, construir e validar
por meio do trabalho científico” (BOURDIEU, 1996, p. 9).
Bourdieu (2001) transforma o capital social em um ponto espe-
cífico de estudo para buscar compreender como os indivíduos incluí-
dos em uma rede de relações sociais estável são capazes de se favo-
recer de sua posição e produzir efeitos positivos. O papel das famílias
na construção do capital social tem sido discutido por meio de duas
análises: uma primeira que verifica a construção do capital social na
base interna da família e, outra, que enfatiza o papel das famílias na
estruturação do capital social extrafamiliar, seja em circunstâncias
econômicas, estatais, comunitárias, formais ou informais.
O capital social estipulado por Bourdieu (2001) engloba três
elementos: os constitutivos, os benefícios advindos por meio da par-
ticipação dos indivíduos em grupos ou redes sociais e as maneiras de
reprodução deste capital. Assim, o capital social é constituído pelas
redes de relações sociais, que fazem com que os indivíduos possam
ter acesso aos recursos dos membros do grupo ou da rede, e também
pela quantidade e a qualidade de recursos desses grupos.
Desta forma, Bourdieu (2001) define o capital social como
sendo a junção de recursos atuais que estão relacionados a uma rede
de relações institucionalizadas de reconhecimento e de inter-reco-
nhecimento mútuo. Essas relações entre os indivíduos pertencentes
a um grupo específico estão relacionadas a aspectos objetivos tanto
econômicos quanto sociais, e também, as trocas materiais e simbóli-
cas. As redes sociais podem ser a família, o clube, a escola, entre ou-
tras, e são elas que fornecem às pessoas a possibilidade de pertencer
a um determinado grupo. Assim, o montante de capital social de um
agente individual está relacionado à dimensão da rede de relações
que ele mobiliza, assim como a quantidade de variadas formas de
capital (econômico, cultural ou simbólico) que é algo exclusivo de
cada agente a que o indivíduo está unido.
Um outro aspecto abordado por Bourdieu (2001) dá ênfase
54 nos ganhos adquiridos pelas pessoas devido a sua participação nos
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 54 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

grupos, pois é por meio dessa participação que se torna possível


tomar posse das vantagens materiais e simbólicas disponibilizadas
entre os membros da rede. A reprodução do capital social é resulta-
do do trabalho empreendido para a produção das redes de relações
duráveis que podem proporcionar esses benefícios materiais e sim-
bólicos. Neste sentido, nota-se a importância do capital social para
as variadas classes sociais, devido às oportunidades que a sua parti-
cipação em grupos ou redes sociais lhes proporcionam, aumentando
o rendimento de seu capital social.
O capital cultural emerge da busca por compreender as de-
sigualdades de desempenho escolar dos indivíduos oriundos de di-
ferentes grupos sociais. A Sociologia da Educação de Bourdieu se
define pela redução do valor dado ao fator econômico, em compara-
ção ao fator cultural, ao esclarecimento das desigualdades escolares.
Para o autor, o capital cultural ocorre das seguintes maneiras: in-
corporado, objetivado e institucionalizado.
Conforme o autor, no estado incorporado, o capital cultural
ocorre por meio de disposições duráveis do organismo, em que os
principais elementos constitutivos são os gostos, o domínio maior
ou menor da língua culta e as informações sobre o mundo esco-
lar. Para ocorrer a acumulação desta forma de capital é preciso que
ocorra um trabalho de memorização e assimilação, que demanda
tempo e deve ser realizado pessoalmente pelo agente. No estado
objetivado, o capital cultural existe sob a forma de bens culturais,
como esculturas, pinturas, livros, entre outros.
O autor coloca que, para conseguir adquirir os bens econômicos
de forma material, se faz necessário apenas a disponibilidade de capital
econômico, como na compra de um dos objetos acima relacionados,
por exemplo. Porém, para ser possível se apropriar simbolicamente
destes mesmos bens, se torna preciso obter os meios desta apropriação
e os códigos para decodificação, quer dizer, é preciso ter o capital cul-
tural no estado incorporado. Enquanto, no estado institucionalizado, o
capital cultural concretiza-se por meio dos diplomas escolares.
Nota-se que Bourdieu conseguiu estipular uma teoria em que o
agente da ação social é o centro da análise e as estruturas sociais es-
tão interligadas ao seu modelo explicativo. Ele faz uma interligação 55

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 55 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

entre os conceitos de campo, habitus e formas de capital. O conceito


de campo representa uma ampliação da ideia de esferas do mundo
social de Weber. As posições ocupadas pelos agentes nos campos em
que se organiza o mundo social é resultante do volume de capital
existente e as disposições socialmente adequadas pelos agentes, e
que funciona como um roteiro para as suas ações, está relacionada
ao habitus. Assim como para Sen, Bourdieu considera que o indivíduo
não é movido apenas pelo interesse maximizador do utilitarismo, os
interesses são socialmente estabelecidos, levando em consideração o
que é importante para si, como define Sen: liberdade para escolher a
vida que a pessoa tem razão em valorizar (FAVARETO, 2005).

A Perspectiva de Ator Social em Alain Touraine

O autor procura demonstrar a existência de um conflito central


dentro de cada grupo da sociedade e é esse conflito central que faz
com que o sujeito se ponha contra o mercado, as técnicas e os pode-
res autoritários. Assim, em sua concepção, os movimentos sociais são
resultantes dos conflitos ao redor do controle dos modelos culturais.
Esses movimentos societais abordam questões como a liber-
dade, o projeto de vida, o respeito pelos direitos fundamentais e não
podem ser estipulados apenas com base em ganhos materiais e polí-
ticos. Desta forma, o movimento social apresenta a vertente utópica
em que o ator se identifica com os direitos do sujeito e a vertente
ideológica onde ele se concentra na luta contra um adversário social.
Nota-se que Touraine coloca a ideia de sujeito no centro de suas
análises, além de desvincular o movimento social dos instrumentos
políticos e ideológicos que desconfiguram e não permitem a visão de
que todo movimento social é uma invocação do sujeito pela liberdade.
A ação dos atores nas estruturas sociais com base nas mudan-
ças sociais é algo que vem sendo retratado na análise sociológica
clássica. Marx, com o seu materialismo histórico, sustentava que
os determinantes econômicos é que traziam as mudanças sociais,
fazendo com que sua teoria tivesse como objeto central as classes
sociais. Enquanto, Weber, mesmo tendo sido influído pela teoria de
56 Marx, visto que se volta para a mudança social, não via as estrutu-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 56 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

ras sociais como externas aos indivíduos, ao contrário, ele pensa-


va nas estruturas da sociedade como sendo instituídas por meio de
ações. Para Bourdieu, o ator é um agente, já o ator de Touraine se
assemelha ao ator de Bourdieu na situação de conflito que emerge
das relações de dominação. Porém, o ator em Touraine tem sua ação
baseada na transformação de uma ordem (GIDDENS, 2005).
De acordo com Touraine (1998, p. 37), o ator social é “alguém
que, engajado em relações concretas, profissionais, econômicas, mas
também igualmente ligado à nacionalidade ou gênero, procura au-
mentar à sua autonomia, controlar o tempo e as suas condições de
trabalho ou de existência”. Assim, para o autor, cuja análise é baseada
na sociedade industrial, o ator central é demonstrado pelo movimento
operário, considerando que esse ator social não representa a história e
o progresso, mas fala por si só enquanto sujeito determinado.
Desta forma, em Touraine, o sujeito traz a noção de luta social,
como o que ocorre na consciência de classe, no entanto, agora em ou-
tro âmbito. Assim, o sujeito torna-se parte de cada ser que tem como
base o debate, o confronto e também a resistência. Touraine (2006),
ao utilizar o sujeito em sua análise social, adota um posicionamen-
to relativista, ao não utilizar as análises universais que destacam as
grandes estruturas sociais e, também por determinar o sujeito como
político, e crítico combatente, se opondo à imagem do indivíduo mo-
derno, este, relacionado, quase sempre a ideia de sofrimento.
Desta forma, o sujeito, para o autor, aparece por meio do ques-
tionamento do indivíduo a um fenômeno social que acaba por achar
repercussão em seu consciente e também inconsciente e, por meio da
perspectiva de retornar-se a si mesmo na procura de orientação, en-
volve-se no desenvolvimento de suas próprias lutas. Para Touraine
(1996), o ator social é definido por seus papéis sociais, pela posição
que ocupa nas relações com outros atores sociais e por pressupor a
existência de normas e estatutos. A ação do ator social é orientada e
definida por instituições sociais, cujo interesse da ação é motivada e
restrita ao âmbito social.
De acordo com Touraine (1994), o sujeito é composto por
duas faces indissociáveis que são a liberdade e o pertencimento, ou
seja, é tanto liberdade quanto memória. Porém, no sistema neolibe- 57

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 57 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

ral, o sujeito acaba, por causa da falta de atores, por ser extinto em
nome da liberdade e, nas neo-comunidades, o sujeito perde o direito
de agir com liberdade devido ao encarceramento em suas crenças.
Diante deste quadro, tal qual defende Amartya Sen em seus
estudos sobre a pobreza e a defesa das liberdades em seus variados
aspectos, Touraine defende que os intelectuais exerçam suas funções
no sentido de relacionar liberdade e justiça e entre razão e sujeito,
para que assim possam realizar um trabalho útil à população com
mudanças necessárias à expansão de suas liberdades, caso contrário,
seus trabalhos não terão relevância diante da modernidade em crise.
Ainda, de acordo com Touraine (1996), a liberdade depende
da Educação que leva o indivíduo a considerar-se igual aos outros
no sentido de exercer seus direitos e adquirir suas capacidades, uma
vez que todos são dotados de capacidades para interferir em seu
meio. Assim, a liberdade depende também de valores morais e da
consciência de que há diferenças entre os indivíduos apenas em ter-
mos culturais e sociais.
Portanto, o importante é ampliar a liberdade de cada um e
fazer com que a política represente, de fato, as demandas sociais,
ou seja, o autor considera fundamental o fortalecimento das capa-
cidades de intervenção de cada um sobre sua própria vida. Para o
autor, o que precisa ser trabalhado na sociedade pós-industrial é o
direito de participação na gestão da sociedade, com uma consciência
política comum a todos para que os indivíduos acreditem em sua
capacidade de ação.

Considerações Finais

A ideia de capacidades de Sen (2001) é diretamente associada


à de liberdade efetiva, que é resultante dos funcionamentos expres-
sos pelos: teres, seres e haveres das pessoas. As formas de destitui-
ção, de exclusão e as desigualdades sociais comprimem ou anulam
as liberdades efetivas de milhões de pessoas, num mundo que atin-
giu progressos materiais extraordinários, colocando a questão da
necessidade de buscar formas de distribuição da riqueza gerada que
58 permitam ampliar as liberdades efetivas de um número cada vez
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 58 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

maior de pessoas, o que pressupõe a avaliação constante dos proces-


sos de geração e distribuição da riqueza.
Nota-se que, para Sen (2001, p. 79), o bem-estar de uma pes-
soa pode ser concebido em termos da qualidade da condição da
pessoa e “viver pode ser visto como consistindo num conjunto de
“funcionamentos” inter-relacionados, que compreendem estados e
ações”. Desta forma, a realização de uma pessoa pode ser definida
como o condutor de seus funcionamentos. Assim, diretamente liga-
da à noção de funcionamentos está a de capacidades para realizar es-
ses funcionamentos, em que as capacidades representam as diversas
combinações de funcionamentos que uma pessoa pode realizar, ou
seja, a capacidade é um conjunto de vetores de funcionamento que
reflete a liberdade das pessoas.
Ao enfatizar as capacidades pessoais, pode-se considerar que há
um diálogo com as ações sociais, considerando que o foco da análise
de Sen é a oportunidade para que os indivíduos possam ter condições
de liberdade de ação de modo a usufruírem a vida na forma que lhe
for desejada, ou seja, a condição de agente é o principal motor do de-
senvolvimento. Pode-se, portanto, entender que a ação social esteja
diretamente relacionada às buscas pelas capacidades das pessoas, uma
vez que é por meio dessas ampliações das capacidades que as ações
sociais ocorrerão, já que suas liberdades estarão expandidas.
Nota-se que a abordagem da capacidade é útil para avaliar a
desigualdade e os conceitos de capital permitem uma compreensão
dos processos e experimentos de desigualdade. Assim como Sen,
Bourdieu foi um intelectual que entendeu a importância dos recur-
sos além do econômico e a capacidade de converter esses recursos.
Sen argumenta que é importante se concentrar no que as pessoas
podem realmente fazer e em Bourdieu é verificado que essa possibi-
lidade ocorre a partir da incorporação de diferentes capitais. Acredi-
ta-se, portanto, que uma estrutura mais ampla de ideias e conceitos
possa contribuir para uma melhor compreensão das restrições so-
ciais relacionadas às privações das pessoas.
O sentido da ação é atribuído pelo ator social, por Touraine,
de modo que esse sentido depende de referências da ordem social e o
ator age movido pela liberdade. Desta forma, o sujeito seria o desejo 59

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 59 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

do indivíduo em ser um ator, e um ator que contesta as questões da


modernidade, bem como os efeitos negativos da desmodernização, é
o que procura manter a realidade construída, numa junção entre as
garantias institucionais da sociedade industrial e a cultura democrá-
tica da sociedade pós-industrial.

60

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 60 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Referências
BOURDIEU, P. Compreender. In: ______ (Org.). A Miséria do Mun-
do. Petrópolis: Vozes, 2003.
______. Os três estados do capital cultural. Petrópolis: Vozes, 2001.
______. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.
FAVARETO, A. As estruturas sociais e a economia: há uma convergên-
cia entre abordagens sociológicas e economia recentes? XXIX Encon-
tro Anual da ANPOCS. Caxambu, MG- 25 a 29 out, 2005.
GIDDENS, A. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.
SEN, A. K. Desigualdade Reexaminada. Rio de Janeiro: Record, 2001.
______. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000.
TOURAINE, A. El sujeto. Un nuevo paradigma para comprender
el mundo de hoy. Buenos Aires: Paidós, 2006.
______. Igualdade e diversidade: o sujeito democrático. São Paulo:
Edusc, 1998.
______. O retorno do Ator: ensaio de sociologia. Lisboa: Instituto
Piaget, 1996.
______. Crítica da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1994.
WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia
compreensiva. Brasília: Universidade de Brasília, 2009.
______. Metodologia das Ciências Sociais. São Paulo: Cortez, 1999.
______. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

61

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 61 06/01/2021 10:44


Livro Aloisio-V4.indd 62 06/01/2021 10:44
Ciências Sociais em abordagens múltiplas

O combate à fome pela articulação


Estado/Sociedade Civil:
Programas Ação da Cidadania e Fome Zero
Licemar Vieira Melo

Introdução

No intervalo de uma década, de um passado recente, duas ini-


ciativas de combate à fome ganharam a agenda política e social no
Brasil: em 1993 a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e
pela Vida (ACCMV) e em 2003 o Programa Fome Zero. Em ambas
as iniciativas se criaram espaços de interlocução entre o Estado e a
Sociedade Civil em busca da promoção da segurança alimentar no
país. A dissertação, aqui compilada1, buscou identificar como se deu
esse processo de articulação dos diferentes atores sociais, nas duas
iniciativas em questão, a partir da análise das diretrizes, prioridades
e estruturas operacionais de ambas.
Essa investigação teve enfoque qualitativo, os dados foram
coletados a partir de fonte documental e submetidos a análise de
conteúdo. Entre as várias fontes de coleta de dados utilizadas desta-
camos: a) oito edições do jornal Primeira e Última, publicadas entre
agosto de 1993 e janeiro de 1994 – dado que esse era o veículo de
comunicação oficial de divulgação da ACCMV – que, na época de
produção dessa pesquisa, foram cedidas pelo Comitê da Cidadania,
contra a Miséria e pela Vida, de Passo Fundo/RS; e, b) três cartilhas
lançadas no primeiro ano de programa (2003), com o objetivo de
motivar a participação de vários setores da sociedade – uma lançada
pela Subcomissão Mista sobre Segurança Alimentar e Nutricional
da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul em parceria com

1 A pesquisa intitulada “A Ação da Cidadania e o Programa Fome Zero: o combate


à fome no Brasil a partir da articulação Estado/Sociedade Divil - estudo de casos
“, de MELO (2004), foi produzida na linha de pesquisa Atores Sociais, Políticas
Públicas e Cidadania, do PPG em Ciências Sociais Aplicadas da UNISINOS, sob
orientação da Professora Drª Jaqueline Oliveira Silva e também contemplou dis- 63
cussões sobre os processos de exclusão social e a promoção das políticas sociais.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 63 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

uma organização não-governamental; outra por iniciativa conjunta


dos Ministérios da Segurança Alimentar e Combate à Fome e do
Desenvolvimento Agrário e, por fim, uma cartilha lançada por duas
entidades vinculadas à igreja católica.

O cenário da fome e a inclusão da segurança


alimentar na agenda política

A fome, enquanto questão social, há muito tempo é eviden-


ciada no nosso país. Um marco inicial dessa discussão remonta o
ano de 1946, “quando Josué de Castro, um dos precursores na abor-
dagem da fome no Brasil, publicou o clássico “Geografia da fome”,
através do qual defendeu que a subnutrição de milhões de pessoas
não está relacionada com a fatalidade, seja climática, seja religiosa”
(BETTO, 2003, p. 53).
No estudo, realizado na década de 1940, Castro destacou que os
problemas com a alimentação, em níveis diferenciados, estavam pre-
sentes em todo o país de modo que “numas regiões, os erros e defeitos
são mais graves e vive-se num estado de fome crônica; noutras, são
mais discretos e tem-se a subnutrição” (CASTRO, 2002, p. 34).
Numa referência ao pensamento de Castro, Valente (2002, p.
106) defendeu que “a fome e a má alimentação não são fenômenos
naturais, mas sim sociais”. Esse autor destacou que a fome no Brasil
era um problema histórico e revelou “(...) chegamos aos dias de hoje
com 32 milhões de brasileiros incluídos no Mapa da Fome e espa-
lhados por todo o país, mesmo que concentrados no Nordeste, nas
áreas rurais e nas grandes metrópoles” (VALENTE, 2002, p. 106).
No Brasil, todavia, quando se faz uma abordagem da fome,
não há consenso em torno dos dados estatísticos sobre o número
de brasileiros famintos. Valente (2002) a partir de fontes distintas,
sobre o número de pessoas que passavam fome no país, entre o
final da década de 1990 e início dos anos 2000, divulgou que: para
o governo eram 22 milhões de brasileiros, para o Partido dos Tra-
balhadores eram 44 milhões e para o bispo católico que realizava
trabalho junto a população mais pobre do país, Dom Mauro Mo-
64 relli, eram 55 milhões.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 64 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

A atualização desses dados, a partir de um relatório divulgado


em setembro de 2018 pela Organização das Nações Unidas para
a Alimentação e a Agricultura (FAO) e um grupo de agências da
ONU, revelaram que apesar da redução do número de famintos no
Brasil, cerca de 5,2 milhões de pessoas ainda passam fome no país2.
Nesse mesmo ano (2018) a FAO informou que o Brasil está voltando
a ocupar um lugar no Mapa da Fome, algo que não acontecia desde
2014. Entre os aspectos que podem justificar a volta dessa realidade
estão: o desemprego e o aumento da pobreza da população3.
Apesar da constatação da fome, como problema histórico no
país, a inclusão do acesso à alimentação aconteceu de forma tardia
no Brasil. Foi em 1996 que o Ministério das Relações Exteriores do
Brasil reconheceu que “o acesso à alimentação é um direito humano
em si mesmo, na medida em que a alimentação se constitui no pró-
prio direito à vida. Negar esse direito é, antes de mais nada, negar a
primeira condição para a cidadania, que é a própria vida” (MINIS-
TÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO BRASIL apud VA-
LENTE, 2002, p. 71). E foi só em 2003 que um projeto de emenda à
constituição, a PEC 47/2003, incluiu a alimentação entre os direitos
sociais previstos na Constituição Federal.

A Ação da Cidadania contra Fome, a Miséria e pela Vida (ACCMV)

A origem da ACCMV – que foi o berço da Campanha Contra


a Fome – está ligada a dois fatos históricos que ocorreram em 1993
e não partiram da sociedade civil, mas da sociedade política: a apre-
sentação de um projeto denominado “Política de Segurança Alimen-
tar” elaborado pelo Partido dos Trabalhadores ao então Presidente
da República Itamar Franco e o convite desse ao sociólogo Herbert
de Souza – o Betinho - para assumir a coordenação de um programa
de combate à fome no Brasil (GOHN, 1996).
2 Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/bra-
sil/2018/09/11/interna-brasil,705203/combate-a-fome-no-brasil-se-estagnou-
-afirma-onu.shtml. Acesso: 14 abr. 2020.
3 Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/
comissoes-permanentes/cdhm/noticias/o-curto-caminho-de-volta-ao-mapa-da- 65
-fome. Acesso: 28 out. 2019.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 65 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

A data de 08 de março de 1993 marca a criação oficial da Ação


da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, em Brasília. A estratégia,
conforme Giumbelli (1994) e Gohn (1996), seria formar “comitês”
por todo o país, a partir da iniciativa das entidades que formavam
o Movimento pela Ética na Política – MEP4 . Na data da criação
da ACCMV foi redigida a “Carta da Ação da Cidadania: democra-
cia e miséria não são compatíveis”, documento que, conforme Gohn
(1996), sintetiza os princípios do movimento: o combate à miséria,
como prioridade e, posteriormente a ênfase no combate à fome. O
lançamento nacional da Campanha contra a Fome, como ficou co-
nhecida, foi em junho de 1993, em Brasília, “marcado pela realização
de uma passeata, da qual participaram Betinho, personalidades polí-
ticas e os presidentes da CNBB e da OAB, além de 300 manifestan-
tes” (GIUMBELLI, 1994, p. 15).
A abrangência que, a partir daí, a Ação da Cidadania alcan-
çou e a sua respectiva importância no cenário social brasileiro são
destacadas por Gohn (1996) ao enfatizar que desde que a ACCMV
foi lançada, a sociedade brasileira acompanha e participa “de uma
das maiores campanhas cívicas da história do país, em termos de
abrangência de regiões, camadas sociais envolvidas, volume de bens
arrecadados e formas de manifestação” (GOHN, 1996, p. 23).

4 O MEP surgiu em julho de 1992, como organização da sociedade civil, que


reunia cerca de 200 entidades, entre elas a Organização dos Advogados do Brasil
(OAB), a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Central Única
dos Trabalhadores (CUT), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Socie-
dade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), além de sindicatos e ONGs
como o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE). O MEP
surgiu para denunciar a corrupção na administração pública brasileira e reivin-
dicar a renúncia ou o impeachment do então Presidente da República Fernando
Collor de Melo, o primeiro presidente eleito, em eleições diretas, no período de
redemocratização do país. O afastamento de Collor de Melo da Presidência da
República já havia acontecido em setembro de 1992, quando foi aberto o processo
de impeachment, mas foi em dezembro daquele ano que Collor de Melo, a partir de
votação no Senado Federal, perdeu os direitos políticos por 8 anos. Quem assumiu
a Presidência foi Itamar Franco, que era o vice-presidente eleito. In: SEMENTES
66 DE SOLIDARIEDADE: Betinho e o Ibase na Ação da Cidadania – 1993/97,
Rio de Janeiro, 1998. CD-ROM.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 66 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

As prioridades do programa

A ACCMV assumiu três prioridades: a) a arrecadação e dis-


tribuição de alimento; b) a geração de emprego e renda; e, c) o
incentivo à reforma agrária. A arrecadação e distribuição de ali-
mentos foi a prioridade assumida no início da ACCMV, em 1993
(PLASENCIA, 2001). A opção por distribuir alimentos como me-
dida emergencial se justifica pois “(...). ‘A Fome tem pressa!’, con-
clama Betinho, o profeta das mudanças e pastor da partilha e da
solidariedade” (MORELLI, 1993, p. 04).
Conforme destacam Morelli (1993) e Giumbelli (1994) já no
primeiro ano da campanha foi criado o slogan Natal sem Fome. A
partir daí, o mês de dezembro tornou-se um período de arrecadação
de alimentos, e brinquedos por todo o país – e começaram a aconte-
cer grandes shows artísticos, numa adesão voluntária de nomes de
destaque entre a classe artística do país, com o intuito de arrecadar
alimentos e/ou recursos para a campanha. Iniciativas diversas co-
meçaram a surgir, por todo o país, com a mesma finalidade:

Doações de tíquetes-refeição, projetos de horta comunitária,


e até arrendamento de bares e restaurantes, com uma porcen-
tagem destinada à campanha, foram alternativas encontradas
pelos que participam desse movimento de cidadania. Dias de
arrecadação municipal do quilo, campanha Natal sem Fome,
Show pela Vida, os jogos de futebol Fome de Bola, tudo isso
foi iniciativa que deu em alimento, através de um gesto de so-
lidariedade (PRIMEIRA e ÚLTIMA, nº 15, jan. 1994, p. 1).

Dados referentes à abrangência dessa iniciativa, encontrados


no site oficial da Ação da Cidadania5, davam conta que, entre 1993 e
2002, cerca de 18 mil toneladas de alimentos foram arrecadadas, no
Brasil, durante as edições do Natal sem Fome, beneficiando cerca de
nove milhões de pessoas.
Já a geração de emprego e renda, segunda prioridade da AC-
CMV, foi acrescida na Ação da Cidadania no ano de 1994, como uma

5 Disponível em http://www.acaodacidadania.com.br/public/relato- 67
rio-1993-2003/nsf.htm.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 67 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

questão estratégica que “visava, de um lado, responder às críticas ao


assistencialismo associada à distribuição de cestas e, de outro, dar
um sentido novo à mobilização, de forma que os comitês continuas-
sem mobilizados após o Natal (GOHN, 1996, p. 34).
Em fevereiro de 1994, os Ministérios do Trabalho e da Ciên-
cia e Tecnologia anunciaram uma ação conjunta para incentivar a
criação de 400 mil empregos em todo o país e, em março daquele
ano, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divul-
gou o “Mapa do Mercado de Trabalho no Brasil”, revelando que, na-
quela época, havia 20 milhões de pessoas desempregadas, trabalhan-
do sem receber ou recebendo menos de um salário mínimo por mês
(GIUMBELLI, 1994). Como estratégia para a geração de emprego
e renda, a Ação da Cidadania, a Associação Brasileira de Imprensa
- ABI e o SEBRAE anunciam, em março de 1994, uma campanha
para a valorização da pequena empresa. A campanha teve divulga-
ção em outdoors e na TV e foi apoiada pela Confederação Nacional
dos Bispos do Brasil - CNBB (GIUMBELLI, 1994).
Também encontramos referência ao fato de que os comitês da
cidadania, estrutura organizacional adotada pela ACCMV, tinham
autonomia para elaborar projetos com a finalidade de promover a
geração de emprego6. Foram vários os projetos de geração de em-
prego e renda, desenvolvidos pelos comitês de cidadania, em todo o
país, especialmente no Rio de Janeiro, são citados, como exemplos,
os projetos de reciclagem de papel, cozinha industrial, confecção co-
munitária, formação de alfabetizadores voluntários e marceneiros,
construção comunitária etc. (PLASENCIA, 2001).
E em 1995, a luta pela reforma agrária, foi agregada, como
prioridade da ACCMV depois da distribuição de alimentos e gera-
ção de emprego. “Uma nova frente foi criada para inaugurar uma
nova fase, desta vez relativa à reforma agrária, aos sem-terra. Assim
como em seu lançamento, uma nova carta foi lançada: a Carta da
Terra” (GOHN, 1996, p. 35).
Ao mesmo tempo em que a Ação da Cidadania agregava a de-
mocratização da terra aos seus temas de luta, a Campanha Nacional

68 6 In: SEMENTES DE SOLIDARIEDADE: Betinho e o Ibase na Ação da


Cidadania – 1993/97. Rio de Janeiro, 1998. CD-ROM.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 68 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

pela Reforma Agrária (CNRA) – que congregava mais de 90 entida-


des da sociedade civil e também era presidida por Betinho – divulgava
uma proposta para que o novo governo, do então Presidente Fernan-
do Henrique Cardoso, mudasse o rumo da situação de pelo menos um
milhão de famílias de agricultores sem trabalho e sem moradia fixos.

A Estrutura Operacional

Os comitês da cidadania, de atuação local, que surgiram em


vários municípios brasileiros, representaram a estrutura operacional
adotada pela ACCMV, com uma organização mínima, sem hierarquias
e instâncias centralizadoras (PLASENCIA, 2001). Essa opção por ini-
ciativas locais teve o intuito de buscar a “valorização do comunitário,
é a referência e o estímulo a ações locais, realizadas no âmbito muni-
cipal com a participação das prefeituras” (GIUMBELLI, 1994, p. 39).
Para Gohn (1996), os comitês funcionaram como espaços in-
terativos básicos que viabilizaram as atividades cotidianas da AC-
CMV. Conforme registros, o primeiro Comitê da ACCMV foi o de
Barra do Piraí7 - RJ, criado em março de 1993, reunindo mais de
trinta entidades entre sindicatos, igrejas, centros espíritas, bancos,
associações comerciais, etc. (GOHN, 1996). Cinco meses depois já
era contabilizada a existência de três mil comitês em todo o país
“uma rede nacional de ajuda emergencial inédita no país, pela sua
total informalidade: não há registro oficial de suas ações ou qual-
quer estrutura organizacional que a controle (SEMENTES DE SO-
LIDARIEDADE – CD-Rom, 1998).
Em relação à organização dos comitês encontramos a sugestão
de formação de grupos de trabalho para atuar em três frentes distin-
tas: um para identificar as áreas de maior pobreza da região ( verifi-
cando quantas famílias viviam nessa situação, quais eram as condi-
ções de saneamento, saúde, alimentação, grau de escolaridade, renda
mensal de seus membros e índice de desemprego); outra para fazer
um levantamento em relação à produção, comercialização e armaze-

7 Barra do Piraí, na época, era uma cidade de 110 mil habitantes “onde havia 20 mil
pessoas pobres e subnutridas”. In: SEMENTES DE SOLIDARIEDADE: Beti- 69
nho e o Ibase na Ação da Cidadania – 1993/97. Rio de Janeiro, 1998. CD-ROM.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 69 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

nagem de alimentos na região; e, a terceira frente para identificar as


iniciativas de combate à fome e à miséria, já existentes na região, fos-
sem elas provenientes do Estado ou da sociedade civil organização
(CARTILHA PARA AJUDAR A FORMAR COMITÊS, 1993).
Na referida cartilha também era sugerida a adoção, pelos co-
mitês, de ações emergenciais de combate à fome: “As ações emer-
genciais incluem as inúmeras formas de melhorar a dieta alimentar
de grupos marginalizados8: organização de grupos de ajuda comu-
nitária; hortas familiares; distribuição de cestas de alimentos; orga-
nização de sopões; manutenção de creches; cursos de nutrição (...).”
(CARTILHA PARA AJUDAR A FORMAR COMITÊS, 1993, p.
7). Seguindo ou não essas orientações, houve registros de que no
momento auge do movimento Ação da Cidadania, entre 1993 e
1994, havia mais de cinco mil comitês no país9.
Formar um comitê da cidadania era uma opção que qualquer
pessoa, entidade representativa de classe ou associação poderia ado-
tar (CARTILHA PARA AJUDAR A FORMAR COMITÊS, 1993).
Entretanto, apesar de se identificar como uma iniciativa da socieda-
de civil, a Ação da Cidadania também conquistou o apoio das em-
presas públicas que aderiram à Campanha e passaram a trabalhar
com a proposta de combate à fome, formando seus próprios Comitês
da Cidadania. Em maio de 1993, antes mesmo do lançamento oficial
da campanha, que aconteceu em junho, em Brasília (GIUMBELLI,
1994), houve a formação do Comitê das Entidades Públicas no Com-
bate à Fome e pela Vida (COEP)10, mais conhecido como “comitê das
estatais” (SEMENTES DE SOLIDARIEDADE, CD-ROM, 1998).
8 Nesse sentido a Associação Comitê-Rio, por exemplo, fez um projeto para a
criação de restaurante popular (PLASENCIA, 2001).
9 Segundo Valente (2002), o número de comitês formados, em todo o país,
chegou a 7 mil, que trabalhavam de forma independente ou em parceria com
órgãos governamentais
10 Petrobrás, Furnas Centrais Elétricas, Caixa Econômica Federal, Banco do
Brasil, Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), Rede Ferroviária, Fiocruz,
Empresa de Correios e Telégrafos, BNDES e Banco do Estado do Espírito Santo,
além da Eletrobrás, Light e Vale do Rio Doce (antes da privatização), foram algu-
mas das 55 empresas estatais que aderiram a Ação da Cidadania e formaram seus
70 próprios comitês. In.: SEMENTES DE SOLIDARIEDADE: Betinho e o Ibase
na Ação da Cidadania – 1993/97. Rio de Janeiro, 1998. CD-ROM.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 70 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

As empresas que integraram o COEP desenvolveram ações


de combate à fome e à miséria em duas frentes. A primeira, emer-
gencial, consistiu na arrecadação de tíquetes-refeição e coleta de
mantimentos, num balanço de atividades entregue ao Conselho Na-
cional de Segurança Alimentar, o CONSEA, em outubro de 1993, o
Comitê das Estatais informou haver arrecadado um total de 739,2
toneladas de alimentos, distribuído 7.219 cestas básicas e 26.775
vales-refeição (GIUMBELLI, 1994); e, a segunda, correspondeu à
disponibilidade e repasse de experiências técnicas, peculiares a cada
uma das empresas estatais.
Apesar da adesão e envolvimento na ACCMV, o Comitê das
Estatais foi perdendo a sua força, a partir de 1995, período em que
houve troca de governo, à época, o Presidente da República, Fer-
nando Henrique Cardoso optou pela criação de um programa de
políticas públicas e sociais para o combate à miséria no país que foi
o Comunidade Solidária.

Diretrizes para o seu funcionamento

As diretrizes da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria


e pela Vida, identificadas nessa investigação foram: a descentraliza-
ção, autonomia, mobilização social e parceria entre sociedade/Esta-
do. A autonomia e a descentralização eram características presentes
nos comitês da ACCMV existentes pelo país, de abrangência local,
que decidiam de que maneira implantariam ações emergenciais de
combate à fome (GIUMBELLI, 1994; PLASENCIA, 2001).
Sobre a mobilização social verificamos que a Ação da Cida-
dania foi concebida como um espaço de diversidade, onde o plura-
lismo era evidente, mas se neutralizava, pois todos os envolvidos
trabalhavam e contribuíam para a mesma proposta, a de combate à
fome. A solidariedade foi a noção-chave implícita no chamamento
da ACCMV, que possibilitou que a mesma adquirisse um caráter
neutro, apartidário e pluriclassista (PLASENCIA, 2001). Por isso,
a sua aceitação por um conjunto “heterogêneo de entidades priva-
das, instituições públicas e organizações e movimentos comunitá-
rios” (GOHN, 1996, p. 37). 71

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 71 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

E também identificamos a diretriz de parceria entre a so-


ciedade e o Estado através: a) da pressão da ACCMV por ações
do Estado no intuito de planejar e implementar políticas públicas
de promoção da segurança alimentar (PLASENCIA, 2001); b) do
incentivo à formação dos comitês das empresas públicas estatais
(GIUMBELLI, 1994); e, d) da criação do CONSEA11 – Conselho
Nacional de Segurança Alimentar, pelo Decreto Presidencial nº
807, de abril de 1993 (GOHN, 1996). Como mobilização da socie-
dade civil, em parceria com o Estado, a importância da AACMV
para o combate à fome é reconhecida. Dados de 2019 mostram que
desde 1994 a ACCMV arrecadou 33 mil toneladas de alimentos
que beneficiaram 3,5 milhões de famílias, assistiu 16 milhões de
pessoas e envolveu 100.000 (cem mil) voluntários12.

O Programa Fome Zero

O Programa Fome Zero foi lançado em 30/01/2003, como um


programa de governo do então Presidente da República Luiz Inácio
Lula da Silva, com o objetivo de “promover segurança alimentar e
nutricional a todos os brasileiros, atacando as causas estruturais da
pobreza” (GOVERNO FEDERAL, 2004, p. 1). Mas antes mesmo do
lançamento desse programa houve a criação do Ministério Extraor-
dinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA), através
de uma medida provisória, em 01/01/2003, para coordenar as ações
do Fome Zero. Essa iniciativa governamental contemplou três eixos
de ação específicos: a implantação de políticas públicas, a construção
participativa de uma política de segurança alimentar e nutricional e o
mutirão contra a fome (GOVERNO FEDERAL, 2004).
O projeto piloto do Fome Zero aconteceu em fevereiro de
2003, a partir de um projeto piloto nas cidades de Guaribas e Acauã
(Piauí) – municípios com altos índices de exclusão social (PO-
CHMANN e AMORIM, 2003). Pelo projeto, 500 famílias, de cada

11 O CONSEA foi presidido por Dom Mauro Morelli - então Bispo de Duque de
Caxias – RJ - e era composto por 7 ministros de Estado e 21 representantes da
72 sociedade civil – dentre esses 19 indicados pelo MEP. (GOHN, 1996).
12 http://www.acaodacidadania.com.br/. Acesso em 04 nov. 2019.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 72 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

um desses municípios, receberiam um benefício mensal de R$ 50,00


(cinquenta reais), através de um “cartão-alimentação”13, por um
período de seis meses, para comprar alimentos (FOLHA DE SÃO
PAULO, 31/01/2003, p. A 5).

Prioridades desenhadas

As prioridades do Programa Fome Zero eram descritas em


políticas sociais distintas – estruturais, específicas e locais – coor-
denadas pelo Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar
e Combate à Fome (MESA)14, responsável pela implementação de
ações e políticas específicas de segurança alimentar e pela articu-
lação de iniciativas de competência de outras pastas e instituições
da sociedade civil (SILVA, 2003). As políticas estruturais eram vol-
tadas para as causas profundas da fome e da pobreza; as políticas
específicas buscavam atender diretamente as famílias, no intuito de
garantir o acesso à alimentação; e as políticas locais que poderiam
ser implantadas por prefeituras e pela sociedade (BELIK, 2003a).
A geração de emprego e renda, a reforma agrária e o incentivo
à agricultura familiar eram ações previstas como políticas estruturais
do Programa Fome Zero. A adoção do cartão alimentação, a distribui-
ção de cestas básicas emergenciais, combate à desnutrição materno-
-infantil e a educação para o consumo alimentar eram referidas como
políticas específicas, enquanto a formação de restaurantes populares
e bancos de alimentos, que nos dias úteis recolhem gêneros alimentí-
cios, inclusive perecíveis, a agricultura urbana e, novamente, a fami-
liar foram mencionadas como exemplos de políticas locais15.
13 Criado pela Medida Provisória nº 108, de 27/02/2003 e regulamentado pelo
decreto nº 4.675, de 16/04/2003, o Cartão Alimentação, política específica do
Programa Fome Zero, foi inspirado numa experiência norte-americana, a Food
Stamp Program, adotada durante o governo Roosevelt em meio à recessão dos
anos 30 (BELIK, 2003b). O Cartão, iniciativa de transferência de renda no valor
de R$ 50,00; destinado a famílias com renda percapita inferior a meio salário míni-
mo; foi incorporado, em outubro de 2003, junto com outros benefícios do governo
– Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação e Vale-Gás – ao Programa Bolsa Família.
14 Em janeiro de 2004 o MESA foi incorporado ao Ministério de Desenvolvimen-
to Social e passou a adquirir status de secretaria. 73
15 Disponível no site: http:// www.fomezero.gov.br/
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 73 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

O Fome Zero previa, entretanto, a adoção de mais de um tipo


de política, simultaneamente. O benefício do cartão alimentação, por
exemplo, que era uma política específica, tinha duração prevista de
6 meses, podendo ser prorrogado por mais um ano, nesse prazo de-
veriam ser implementadas ações estruturais – conjunto de políticas
públicas – para reduzir o risco de insegurança alimentar, como cur-
sos de alfabetização e profissionalização, hortas domésticas, cons-
trução de moradia e de cisternas para captação de água da chuva na
região do semiárido, incentivo a agricultura familiar e programas de
saúde (BETTO, 2003).
Dados oficiais do governo, relativos ao período de fevereiro a
outubro de 2003, davam conta que um milhão de famílias recebiam
o cartão alimentação, cuja fiscalização do repasse de recursos e ar-
ticulação de iniciativas ficariam a cargo de Comitês Gestores, que
funcionavam em nível local (OLIVEIRA, 2003, p. 24-25).
Quanto a distribuição de cestas básicas, mencionadas como ação
emergencial, verificamos que a prioridade, no início do programa, foi
atender grupos específicos em assentamentos, comunidades quilom-
bolas e indígenas. A arrecadação de recursos através de doações pro-
venientes de pessoas físicas e jurídicas também foi descrita como uma
ação emergencial, sendo que em dezembro de 2003 foi divulgada a
arrecadação de R$ 7,5 milhões para o mutirão contra a fome e R$ 7,5
milhões para a construção de cisternas, para captar água da chuva
no semiárido nordestino; essas doações eram provenientes de pessoas
físicas e empresas (OLIVEIRA, 2003, p. 25). Em novembro de 2003
o governo retomou o programa de distribuição de leite a famílias po-
bres, “marca registrada da política social do governo José Sarney”
(FOLHA DE SÃO PAULO, 30/11/2003, p. A 4).

Estrutura operacional ou logística

A operacionalização do Programa Fome Zero acontece em


duas frentes distintas: uma governamental, envolvendo uma articu-
lação interministerial e entre os diferentes níveis de governo e outra
envolvendo setores distintos da sociedade civil. Uma dimensão é a
74 frente governamental como uma articulação entre forças políticas. O
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 74 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Fome Zero, enquanto medida governamental, não era exclusividade


do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à
Fome (MESA), era um programa interministerial. Nesse sentido,
além do MESA, encontramos referências a participação dos seguin-
tes ministérios: Esportes; Desenvolvimento Agrário; Meio Ambien-
te; Saúde; Cidades; Ciência e Tecnologia; Comunicações; Desenvol-
vimento, Indústria e Comércio Exterior; Justiça; Minas e Energia;
Trabalho e Turismo (GOVERNO FEDERAL, 2004, p. 4).
O Ministério do Desenvolvimento Agrário, por exemplo, in-
vestiu R$ 17 milhões em assistência técnica e iniciativas de capa-
citação de agricultores familiares; o Ministério da Saúde destinou
R$ 4,3 milhões para o desenvolvimento e implantação do Sistema
de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN); o Ministério das
Cidades investiu R$ 193 mil no desenvolvimento de ações para con-
tribuir na gestão integrada e sustentável dos lixões e o Ministério
do Trabalho lançou o Programa Primeiro Emprego (GOVERNO
FEDERAL, 2004, p. 4).
Em outra via, na abordagem das políticas locais do programa
Fome Zero percebemos uma articulação entre diferentes níveis de
governo. Como exemplo dessas políticas, são referidos os investi-
mentos para a construção e ampliação de restaurantes populares, o
incentivo à agricultura urbana, a criação de cozinhas comunitárias
e a formação de bancos de alimentos, ocorridos até janeiro de 2004
(GOVERNO FEDERAL, 2004). Nesse sentido, foram firmados con-
vênios entre o Governo Federal e as prefeituras de Belo Horizonte
– MG para a ampliação e modernização do Restaurante Popular
mais antigo do país, em funcionamento desde 1993, e a instalação de
uma segunda unidade; e de Goiânia (GO), para a instalação de um
Restaurante Popular. (GOVERNO FEDERAL, 2004).
Para a realização do projeto de implantação de hortas urbanas
foram firmados convênios entre o Governo Federal e seis prefeituras
– Porto Alegre, Alvorada, Santa Maria e Esteio, todas no Rio Grande
do Sul; e Governador Valadares e Três Marias, em Minas Gerais –
e com dois governos estaduais – Pernambuco e Goiás (GOVERNO
FEDERAL, 2004). Para a instalação de cozinhas comunitárias houve
convênios firmados com as prefeituras de: Porto Alegre (RS), Três 75

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 75 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Marias –MG, e Recife (PE), destinados a instalação de um total de


35 unidades cozinhas comunitárias (GOVERNO FEDERAL, 2004).
Para a instalação de Bancos de Alimentos, houve uma iniciati-
va para a redução de desperdício dos alimentos, que funciona como
intermediário entre empresas de comercialização, armazenagem e
processamento de alimentos e as entidades assistenciais (GOVER-
NO FEDERAL, 2004). Também foram firmados convênios com as
prefeituras de Juazeiro (BA), Goiânia (GO), Ribeirão Preto (SP) e
São Carlos (SP). Já com os municípios de Santo André (SP), Dia-
dema (SP), Embu (SP) e Belo Horizonte (MG) os convênios foram
para a ampliação e modernização dos Bancos já existentes (GO-
VERNO FEDERAL, 2004).
Além de convênios com as prefeituras, para a efetivação de
políticas locais, houve parcerias entre o Governo Federal e os
governos estaduais, com a destinação de recursos da União aos
Estados. Nesse sentido, encontramos referências aos convênios
com os governos de Minas Gerais (IDENE) – para a realização
de ações sociais comunitárias para população do Norte do Esta-
do e dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri; Mato Grosso do Sul,
para implantação de políticas estruturais para as comunidades
indígenas; Acre, para ações de apoio ao extrativismo, inclusão
digital e capacitação; e Rio Grande do Sul, para a distribuição
de alimentos às comunidades indígenas carentes (GOVERNO
FEDERAL, 2004). A Emater/RN e a Emater/MG também fir-
maram convênio com o Governo Federal, para, respectivamente,
ações de capacitação de agricultores familiares para a produção
de alimentos e para a implantação do Minas sem Fome (GOVER-
NO FEDERAL, 2004).
Para operacionalizar a mobilização social, o Programa
Fome Zero previu uma estrutura organizacional distinta (e pú-
blica), apresentada por Betto (2003), na qual encontramos: o
Conselho Operativo do Programa Fome Zero (COPO/CRD),
responsável pela arrecadação, armazenagem e transporte dos
alimentos; o Programa de Ação todos pela Fome Zero (PRA-
TO), que deveria organizar coletas e doações e, coordenados pelo
76 Copo/CRD, encaminhá-las para as entidades que trabalham com
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 76 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

as famílias beneficiárias; os Agentes de Segurança Alimentar


(SAL), que acompanhavam as famílias e os núcleos populacionais
beneficiados pelo Fome Zero, para verificar a adoção de políti-
cas estruturais e específicas, junto as famílias beneficiadas pelo
Programa; e um órgão chamado TALHER, para promover uma
educação cidadã dos beneficiados.

Mobilização social pelo Mutirão contra a Fome

Apesar de se configurar como um programa de governo o


Fome Zero pressupôs a adesão da sociedade civil e buscou a articu-
lação com diferentes atores sociais. Conforme Betto (2003, p. 58):

O Fome Zero é um mutirão idealizado pelo governo Lula e


protagonizado pela sociedade civil. É significativa a parceria
de entidades, instituições e empresas privadas, além das em-
presas públicas, todas elas envolvidas no êxito do programa,
cada uma com a sua atuação específica.

Sobre a participação do mercado temos no balanço das ações


implementadas pelo Fome Zero, em 2003, a informação de que “99
empresas e entidades se tornaram parceiras do Fome Zero, com
projetos de inclusão social que serão desenvolvidos nos próximos
três anos” (GOVERNO FEDERAL, 2004, p. 4). As empresas que
participam do Fome Zero passaram a receber um certificado de
“Empresa Parceira do Fome Zero”, sendo-lhes permitido o uso
do nome do programa, “a principal grife do governo na área so-
cial, para divulgar suas ações no setor” (GOVERNO FEDERAL,
2004). Associada a essas iniciativas foi criada, em julho de 2003,
a ONG Apoio Fome Zero, juridicamente uma organização da so-
ciedade civil de interesse público, cuja presidente de honra era a
então primeira-dama Maria Letícia Lula da Silva. A ONG pedia
contribuições para as empresas, que seriam destinadas ao Progra-
ma Fome Zero (FOLHA DE SÃO PAULO, 07/12/2003, p. A 14)16.

16 Nessa mesma reportagem há informação sobre a adesão de grandes empresas


como a Votorantin, Ford, Companhia Siderúrgica Nacional, Nestlé e ABN Amro 77
Real ao programa, através da destinação de recursos à ONG Apoio Fome Zero.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 77 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Para incentivar ainda mais a mobilização, havia uma cartilha


destinada às empresas privadas17 que trazia orientações sobre como
participar do Fome Zero. A proposta era de uma parceria, por qua-
tro anos, em que cada empresa credenciada ao programa, através
do NAE – Núcleo de Atendimento Especial, recebia um certificado
numerado e assinado pelo ministro da Segurança Alimentar.

Diretrizes

A interlocução entre Estado e a Sociedade Civil era uma das


diretrizes do Fome Zero, nesse sentido houve a (re)criação, me-
diante decreto presidencial de 31 de janeiro de 2003, do Conse-
lho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – o CONSEA.
Formado por 62 conselheiros, sendo: 13 ministros de Estado, 11
observadores e 38 representantes da sociedade civil, o CONSEA
tinha caráter consultivo e a incumbência de propor e pronunciar-
-se sobre diretrizes da Política Nacional de Segurança Alimentar
do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate
à Fome (SILVA, 2003).
Entre os integrantes do CONSEA, no primeiro ano do Fome
Zero, estavam representantes da sociedade civil, pessoas ligadas a
movimentos sociais, entidades representativas de classe e a diferen-
tes tradições religiosas, além de personalidades do meio artístico
e esportivo18. Os Ministérios que passaram a integrar o CONSEA

17 Na época disponível no site do Instituto Ethos de Empresas e Responsa-


bilidade Social – www.ethos.org.br – uma organização da sociedade civil, de
interesse público que tem a missão de mobilizar as empresas para ações de
responsabilidade social.
18 As entidades sociais representadas, no Conselho Nacional de Segurança Ali-
mentar, no primeiro ano do Fome Zero eram: Confederação Nacional dos Tra-
balhadores na Agricultura – Contag; Comissão Pastoral da Terra/MST; Fede-
ração dos Trabalhadores na Agricultura Familiar; Força Sindical; Comitê de
Entidades no Combate à Fome e pela Vida; Igreja Evangélica; Warã Instituto
Indígena Brasileiro; Hospital Alberto Einstein; Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil – CNBB; Central Única dos Trabalhadores – CUT; Movimento Ação
da Cidadania; SESC São Paulo; Associação Brasileira da Indústria Alimentícia –
78 ABIA; Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase; Instituto
Ethos; Articulação Nacional de Agroecologia; Fundação Djalma Guimarães; Ins-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 78 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

foram os seguintes: Extraordinário de Segurança Alimentar e Com-


bate à Fome – MESA, Agricultura; Desenvolvimento Agrário; Edu-
cação; Fazenda; Meio Ambiente; Planejamento; Saúde; Ação Social;
Trabalho; Integração Nacional; Direito das Mulheres; além da Se-
cretaria Geral da Presidência da República (FOLHA DE SÃO PAU-
LO, 31/01/2003, p. A 6).
Entre os conselheiros observadores encontramos represen-
tantes: da Assessoria Especial da Presidência da República, do Con-
selho Nacional de Saúde; do Conselho de Desenvolvimento Eco-
nômico e Social; do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural
Sustentável; do Unicef; do Fundo das Nações Unidas para Agri-
cultura e Alimentação (FAO); da Unesco; do Banco Mundial; do
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da Organiza-
ção Internacional do Trabalho (OIT). (FOLHA DE SÃO PAULO,
31/01/2003, p. A 6).
Nesse panorama, consegue-se perceber a tendência a um ca-
ráter descentralizador e a parceria entre os diferentes atores sociais
como grandes diretrizes do Programa Fome Zero. Isso se dá a par-
tir da previsão de formação de conselhos de segurança alimentar
para atuarem em nível estadual e local, além daquele que atuava em
nível nacional; pela pressuposição da interministerialidade, na qual
vários ministérios contemplam ações independentes com objetivo
de contribuir para o combate à fome; e a expectativa de participação
da sociedade civil. Isso aponta para a questão da corresponsabili-
dade que acontece em duas vias: uma entre as instâncias estatais
– ações interministeriais – e outra a partir da articulação do Estado
com a sociedade civil – CONSEA e o Mutirão contra a Fome.

tituto Materno Infantil de Pernambuco; Organização das Cooperativas do Brasil


– OCB; Centro de Estudos das Relações do Trabalho; Grupo de Trabalho da
Amazônia – GTA; Instituto de Defesa do Consumidor; Articulação do Semiári-
do; Associação Brasileira de Supermercados – Abras; Confederação Nacional dos
Municípios – CNM; Secretaria Nacional Agrária do PT; Fórum Brasileiro de Se-
gurança Alimentar e Nutricional; Confederação Geral dos Trabalhadores – CGT;
Associação Brasileira de Nutrição; Associação Brasileira de ONGs; Confederação
Geral dos Trabalhadores – CGT; Igreja Universal do Reino de Deus; Unicamp
e Pastoral da Criança; além de um ator e um ex-jogador de futebol (FOLHA DE 79
SÃO PAULO, 31/01/2003, p. A 6).
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 79 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Considerações finais

As duas iniciativas analisadas nessa pesquisa nos permitem


concluir que a insegurança alimentar no Brasil além de ser uma ques-
tão histórica, reforça aspectos relacionados à desigualdade social no
país, o que implica na potencialização dos processos de exclusão e da
fome. Isso corrobora o pensamento de Valente (2002, p. 106)

Se o sol nasce para todos, fica difícil entender por que há


ainda tanta fome e má alimentação no mundo. A fome não
acontece porque deu um apagão no sol para alguns, mas sim
porque a sociedade criou cercas arbitrárias que definem quem
tem direito à terra, quem tem direito à água, quem tem di-
reito a emprego, quem tem direito à educação e informação,
entre outras tantas coisas. Gera-se a exclusão e a fome.

Com estruturas distintas, tanto a Ação da Cidadania quanto


o Programa Fome Zero assumiram, como prioridade, ações emer-
genciais de combate à fome e, depois delas, ações estruturais, que
contemplavam iniciativas para geração de emprego e renda, de in-
centivo à agricultura familiar, de implantação de hortas urbanas e
também, como no caso da Ação da Cidadania, especificamente, de
defesa da reforma agrária no país.
Como diretriz comum, em ambas as iniciativas, havia a previsão
de grande mobilização social em torno do combate à fome como ques-
tão emergencial no país. Também destacamos, entretanto, outra dire-
triz comum nas duas iniciativas que formaram o objeto desse estudo: a
construção de espaços de articulação (interlocução) entre o Estado e a
Sociedade Civil para o planejamento de ações e políticas sociais especí-
ficas, como era o caso do Conselho de Segurança Alimentar. Isso apesar
de terem acontecido em momentos distintos em termos de posturas do
Estado em relação à competência da promoção das políticas sociais – a
ACCMV surgiu num momento em que se preconizava, pelo mundo,
uma postura de Estado Neoliberal, em que ao invés de um Estado pro-
motor de políticas sociais, passou-se a exigir de outros atores sociais,
principalmente oriundos do mercado, essa finalidade (SANTOS, 2002;
80 KLIKSBERG, 2002; LAURELL, 1997) enquanto na época do surgi-

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 80 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

mento do Programa Fome Zero se requeria uma retomada do papel


do Estado como promotor de políticas sociais em parceria com outros
atores sociais (KLIKSBERG, 2002; GIDDENS, 2001).
No Fome Zero houve, também, a questão da transversalidade,
se contemplarmos o fato de que vários ministérios e outros órgãos
do governo estavam envolvidos no planejamento de ações para o
combate à fome. Já na Ação da Cidadania outras diretrizes
apareceram como a autonomia e a descentralização, no que tange a
atuação dos Comitês da Cidadania que surgiram por todo o país.
Finalizamos percebendo que as duas iniciativas foram impor-
tantes para inserir o combate à fome nas agendas política e social
do país, mas nenhuma delas conseguiu, efetivamente, promover a
segurança alimentar. Talvez porque as ações estruturais, previstas
em ambas as iniciativas, não foram tão efetivas quanto as ações es-
pecíficas, emergências, que ficaram concentradas na arrecadação e
doação de alimentos, e foram realizadas na fase inicial da Ação da
Cidadania e do Fome Zero.
A Ação da Cidadania perdeu a força de mobilização social após
a morte do sociólogo Herbert de Souza, em 1997, embora ainda
haja comitês em funcionamento no país e o Natal sem Fome conti-
nue sendo realizado. E o Programa Fome Zero perdeu seu destaque
de principal bandeira do governo do Presidente da República Luiz
Inácio Lula da Silva, pois no segundo mandato de Lula, de 2007 a
2010, outra bandeira foi assumida como prioridade de governo: o
Programa de Aceleração do Crescimento, que contemplava obras
de infraestrutura.
Chegamos a 2019 e retrocedemos! Segundo a ONU, o Brasil
voltou a integrar o Mapa da Fome, o que não acontecia desde 2014 e
tendo em vista as recentes declarações do atual Presidente da Repú-
blica, Jair Messias Bolsonaro, dada a um grupo de jornalistas estran-
geiros, em 19 de julho de 2019, na qual o chefe do Poder Executivo
brasileiro afirmou que “não se passa fome no Brasil”19 a segurança
alimentar não faz parte da agenda do atual governo brasileiro.

19 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/07/falar-


-que-se-passa-fome-no-brasil-e-uma-grande-mentira-afirma-bolsonaro.shtml. 81
Acesso: 29 de out. 2019.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 81 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

E em 2020 a pandemia do coronavírus que assola o mundo,


voltou a revelar a persistência da fome pelos quatro cantos do Brasil.
Essa situação sinaliza que o combate à fome precisa urgentemente
ser retomada e voltar a integrar as agendas política e social do
país; além de mobilizar ações conjuntas, emergenciais e estruturais,
dos distintos atores sociais do Estado e da Sociedade Civil para,
efetivamente, promover segurança alimentar no país.

82

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 82 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Referências
BELIK, W. Como as empresas podem apoiar e participar do com-
bate à fome. São Paulo: Instituto Ethos, 2003a.
______. Segurança Alimentar: a contribuição das universidades.
São Paulo: Instituto Ethos, 2003 b.
BETTO, F. A fome como questão política. Revista Estudos Avança-
dos, São Paulo: IEA, vol. 17, n. 48, pp. 53-61. 2003.
CARTILHA PARA AJUDAR A FORMAR COMITÊS. Rio de Janei-
ro: ACCMV, 1993.
CASTRO, J. Geografia da fome: o dilema brasileiro: pão ou aço.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
FOLHA DE SÃO PAULO. São Paulo, 31/01/2003, p. A5.
_____. São Paulo, 31/01/2003, p. A6.
_____. São Paulo, 30/11/2003, p. A4.
_____. São Paulo, 07/12/2003, p. A14.
GIDDENS, A. A terceira via: reflexões sobre o impasse político
atual e o futuro da social-democracia. Rio de Janeiro: Record, 2001.
GIUMBELLI, E. Faces e dimensões da campanha contra a fome.
Rio de Janeiro: ISER, 1994.
GOHN, M. G. A Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida – ou
quando a fome se transforma em questão nacional. In: GAIGER, L. I.
(Org.). Formas de combate e resistência à pobreza. São Leopoldo:
Unisinos, 1996.
GOVERNO FEDERAL. Principais ações implementadas pelo Pro-
grama Fome Zero. São Paulo: Expo Fome Zero, 2004.
KLIKSBERG, B. Repensando o Estado para o Desenvolvimento
Social: superando dogmas e convencionalismos. São Paulo: Cor-
tez, 2002.
LAURELL, A.C. Avançando em direção ao passado: a política social
do neoliberalismo. In: LAURELL, A. C. (Org.). Estado e políticas
sociais no neoliberalismo. São Paulo: Cortez, 1997. 83

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 83 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

MELO, L. V. Ação da Cidadania e Programa Fome Zero: o com-


bate à fome no Brasil a partir da articulação Estado/Sociedade
Civil – estudo de casos. [Dissertação de Mestrado]. São Leopoldo:
Unisinos, 2004.
MORELLI, M. Ação da Cidadania prioridades e desafios. Jornal Pri-
meira e Última, Rio de Janeiro, n. 12, p. 4, nov. 1993.
OLIVEIRA, A. C. G. Brasil um país de todos: a mudança já come-
çou. Brasília: Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estra-
tégica da Presidência da República, ano 1, n. 2, 2003.
PLASENCIA, J. R. Cidadania em ação. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
POCHMANN, M.; AMORIM, R. (Orgs.). Atlas da exclusão social
no Brasil. São Paulo: Cortez, 2003.
PRIMEIRA e ÚLTIMA (Jornal da ACCMV), Rio de Janeiro, nº 15,
jan. 1994, p. 1.
SANTOS, B. S. Em defesa das políticas sociais. In: MAIA, M. (org).
Caderno Ideação: Políticas sociais para um novo mundo necessá-
rio e possível. Santa Maria: Pallotti, 2002, p. 21-32.
SEMENTES DE SOLIDARIEDADE. Betinho e o Ibase na Ação da
Cidadania – 1993/97. Rio de Janeiro, 1998. CD-ROM.
SILVA, J. G. Segurança alimentar: uma agenda republicana. Revista
Estudos Avançados, v. 17, n. 48, pp. 45-51, 2003.
VALENTE, F. (Org.). Direito Humano à alimentação: desafios e
conquistas. São Paulo: Cortez, 2002.

84

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 84 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Manifestações sociais de 2013 a 2016 e suas


repercussões nas Políticas Públicas

Debora Maria Victória de Barros

Introdução

Serão analisadas, neste texto, algumas reivindicações que são


possíveis de se detectar na diversidade visual e factual das manifes-
tações de 2013 a 2016, ou seja, os nexos plausíveis e decorrências
no campo de políticas públicas com seus resultados relacionados. A
preocupação em listar as manifestações sociais do período em estudo
é relacionar as que tiveram, de alguma forma, impacto em políticas
públicas: seja positivamente, ou dito de outra forma, alterando o cená-
rio nacional para alternativas mais progressistas ou proporcionando
um cenário mais regressivo, com alternativas mais conservadoras.
O objetivo é estabelecer um nexo entre as manifestações de
2013 a 2016 e a repercussão nas políticas públicas do período, o que
efetivamente ocorre, entretanto, o efeito é mais tênue do que se espe-
rou ao iniciar a pesquisa em 2015, para tanto, acompanhou-se o resul-
tado das principais manifestações que ocorreram pelo país no período
e o desdobramento nas políticas públicas; a pesquisa foi realizada em
sites da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e em sites e blogs
da rede mundial de computadores, a fim de acompanhar não apenas os
resultados, mas a construção de discursos em torno dos temas.
Antes de tudo, parece importante referir que existem múlti-
plas causas que levam à criação de políticas públicas, a relação entre
manifestações sociais e políticas públicas decorrentes situa-se neste
contexto. Aqui se pretende afirmar o aspecto multicausal que se
encontra na base dos fatos sociais. Entretanto, as principais reivin-
dicações como um dos fatores que adentra debates no Legislativo se
encontram documentadas por diversos sites, da Câmara dos Depu-
tados e do Senado Federal. Inclusive alguns parlamentares citam as
ruas em seu discurso como uma das razões para referendar a apro- 85

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 85 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

vação ou não de algumas medidas. Tendo-se em vista que os parla-


mentares dependem do voto popular para se eleger, é cabível pen-
sar-se que eles consideram as ruas como medidor de temperatura
para suas decisões no parlamento, que certamente repercutem entre
seus eleitores. Vamos agora analisar as manifestações selecionadas,
com uma apreciação quanto a possíveis conexões com os resultados
em políticas públicas.

Do transporte como direito social aos Royalties


de Petróleo para Educação e Saúde

As manifestações de 2013 iniciam, em São Paulo, com o pro-


testo do aumento de R$ 0,20 na tarifa das passagens; os protestos se
espalham pelo país, inicialmente, o MPL e os manifestantes conse-
guem a redução no preço das passagens e várias cidades pelo Brasil
também. Entretanto, esta reivindicação se coloca diante do que David
Harvey chama de “direito à liberdade da cidade”, para ele: “a liberdade
da cidade é, portato, muito mais que um direito de acesso àquilo que já
existe: é o direito de mudar a cidade mais de acordo com o desejo de
nossos corações” (HARVEY et AL., 2013, p. 28). Os manifestantes ao
reivindicar a redução, também demandam a ampliação de serviços à
população que não tem acesso a determinados locais da cidade. Assim
adquirem o direito de tê-lo e sua mobilidade fica ampliada, não apenas
se recria a cidade com o desenho de sua trajetória, como os cidadãos
se recriam a si mesmos, já que a cidade descrita da seguinte forma:

[...] a mais consistente e, no geral, a mais bem-sucedida ten-


tativa do homem de refazer o mundo onde vive de acordo com
o desejo de seu coração. Porém, se a cidade é o mundo que o
homem criou, então é nesse mundo que de agora em diante ele
está condenado a viver. Assim, indiretamente, e sem nenhuma
ideia clara da natureza de sua tarefa, ao fazer a cidade, o ho-
mem refaz a si mesmo (HARVEY et AL., 2013, p. 27).

A exclusão desse direito de se deslocar na cidade, uma vez


que o transporte é ordenado como uma relação social, onde a po-
86 pulação perde sua condição de sujeito e se torna assujeitada aos

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 86 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

desejos do capital, cria as condições para sua indignação e pro-


testo. Uma comissão do Movimento Passe Livre pensa o seguinte
sobre essa exclusão:

Dessa forma, a população é excluída da organização de sua


própria experiência cotidiana da metrópole, organização essa
que se realiza principalmente pelo sistema de transporte, o
qual restringe a mobilidade ao ir e vir do trabalho e coloca
catracas em todos os caminhos da cidade. E, no momento que
se fortalecem as catracas, as contradições do sistema tornam-
-se mais evidentes, suscitando processos de resistência. É em
meio a essa experiência concreta da luta contra a exclusão
urbana que se forjou o Movimento Passe Livre (HARVEY et
AL., 2013, p. 13-14).

A luta se mostra mais ampla, pois se trata de mobilidade ou


direito à cidade. Aqui estamos falando de um direito como políti-
ca social que em 2011 a deputada Luisa Erundina elabora a PEC
90/2011 (Proposta de Emenda à Constituição) para que o transpor-
te público seja incluído no artigo 6º da Constituição como direito
social. Com as manifestações de 2013, ganha celeridade e em 2015
se transforma o transporte público em direito social, incluído no
artigo 6° da Constituição. Essa é uma dimensão que se pode asso-
ciar às manifestações sociais: a celeridade de tramitação desta pro-
posta, o que ocorre também com outros Projetos de Lei em 2013.
Entretanto, se ponderarmos que a regulamentação desta PEC não
ocorreu até o momento (junho/2019), com o atual governo também
é improvável que isto ocorra.
A segunda reivindicação analisada corresponde à destinação
de recursos públicos para a Saúde e Educação. Em 2013, os mani-
festantes ao protestar quanto aos recursos financeiros destinados à
construção dos estádios de futebol para a Copa das Confederações
e em 2014, ao direcionar seus protestos a este campo esportivo exi-
gem: “Escolas padrão FIFA”.
No dia 2 de junho de 2014, a presidente Dilma Rousseff
sanciona sem vetos o Plano Nacional da Educação (PNE), Lei nº
13.005/2014, tramitando há três anos e meio na Câmara dos Deputa- 87

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 87 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

dos. Entidades que trabalham na área educacional reivindicam o veto


do PNE: a destinação de parte dos 10% do Produto Interno Bruto
(PIB) para programas desenvolvidos em parceria com instituições
privadas e a bonificação às escolas que melhorarem o IDEB (Índi-
ce de Desenvolvimento da Educação Básica). Segundo o Ministro da
Educação, Henrique Paim, em (DILMA, 2014), na época: “o governo
federal deverá fazer um “grande esforço” para cumprir a meta de 10%
do PIB previsto no PNE. Segundo (DILMA, 2014), o plano prevê 20
metas e 253 estratégias para a Educação a serem cumpridas em 10
anos, contando a partir da sanção presidencial. “Entre as diretrizes,
estão a erradicação do analfabetismo, a valorização da carreira docen-
te e o aumento de vagas no Ensino Superior, na Educação Técnica e
na Pós-Graduação”. Quanto aos destaques temos:

O texto originalmente aprovado pela Câmara previa que a


parcela do PIB fosse destinada apenas para a educação pú-
blica. O plano, porém, foi alterado no Senado, que acrescen-
tou o ponto que possibilitava a entrada na conta de recursos
destinados a creches conveniadas e programas de bolsas e
financiamento (DILMA..., 2014).

Entretanto, dirigentes municipais alegam não poder cumprir


com as exigências do PNE, já que têm que destinar, no mínimo,
25% da arrecadação para a Educação. “O PNE estabelece meta mí-
nima de investimento em educação de 7% do Produto Interno Bruto
(PIB) no quinto ano de vigência e de 10% no décimo ano. Atualmen-
te, são investidos 6,4% do PIB, segundo o Ministério da Educação”
(TOKARNIA, 2014).
Em 14.08.2013 a Câmara dos Deputados vota a destinanação
de 75% da extração de Pré-Sal à Educação e 25% à Saúde, além
disso, 50% de todos os recursos do Fundo Social foram destinados
para este dois setores, através da aprovação do PL 323/07. O PL
é tranformado na Lei Ordinária 12858/2013. A destinação ocorre
efetivamente de acordo com a SOF (Secretaria de Orçamento Fede-
ral), entretanto não se pode garantir que os Estados e Municípios
não desviem os recursos da Educação para outros fins. O senador
88 José Serra, entretanto, retira a Petrobrás como exploradora exclusi-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 88 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

va do Pré-Sal, através do PLS 131/2015, não altera a destinação da


verba para a Educação, mas na prática há redução, porque empresas
estrangeiras gastam mais para a extração do Petróleo, resultando
na Lei 13.365/2016.
Uma das respostas da presidente Dilma para as reivindica-
ções na área da Saúde em 2013 foi dada através do Programa “Mais
Médicos”, que consistia em trazer de Cuba médicos para as áreas
mais carentes do Brasil, tanto do interior quanto das periferias das
grandes cidades. A OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde)
triangulou acordos entre Brasil e Cuba para trazer estes médicos
ao país que atuaram em Unidades Básicas de Saúde, no setor de
Atenção Básica do Sistema Único de Saúde brasileiro. O programa
é composto por três eixos:

O primeiro prevê a melhoria da infraestrutura nos serviços de


saúde. O segundo se refere ao provimento emergencial de mé-
dicos, tanto brasileiros (formados dentro ou fora do país) quan-
to estrangeiros (intercambistas individuais ou mobilizados por
meio dos acordos com a OPAS). O terceiro eixo é direcionado
à ampliação de vagas nos cursos de medicina e nas residências
médicas, com mudança nos currículos de formação para me-
lhorar a qualidade da atenção à saúde (OPAS..., 2018).

As vagas são oferecidas primeiramente, segundo a OPAS, aos


médicos brasileiros. Caso as vagas não sejam preenchidas, o gover-
no lança mão do acordo internacional com a OPAS, mobilizando
os médicos estrangeiros para preencherem as vagas. Resultados do
Programa, segundo a OPAS, foi o preenchimento de mais de deze-
nas de milhares de vagas em mais de 4 mil municípios e 34 Distritos
Sanitários Especiais Indígenas. Com a implementação do programa:
“700 municípios localizados em áreas remotas do Brasil passaram
a ter, pela primeira vez na história, médico residindo no município
para atendimento na atenção básica” (OPAS..., 2018).
Apesar dos resultados, muitas foram as manifestações contra
o Programa Mais Médicos: uma das queixas dos médicos reunidos
em protestos é que os médicos estrangeiros que vierem ao Brasil
sejam submetidos ao Revalida (Prova aplicada aos postulantes para 89

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 89 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

revalidar seu diploma junto ao Brasil); outra queixa é a criação do


segundo ciclo do curso de Medicina a partir de 2015, o qual postu-
lava que os formandos deveriam atuar dois anos no Sistema Único
de Saúde (SUS) para se diplomar. Uma das críticas que se fazia ao
Programa era a destinação do dinheiro para Cuba. Eu trabalhava no
Ministério da Saúde, neste período, o questionamento feito era em
relação ao montante enviado por médico: cerca de 10 mil reais na
época e o montante que eles recebiam no Brasil: quanto a este valor
havia divergências, alguns falavam em R$ 2.000,00, outros em valor
menor. O programa tinha cunho político efetivamente, apesar do
resultado obtido no atendimento das populações menos assistidas
na periferia das grandes cidades e no interior do Brasil, não é possí-
vel negar seu caráter político: assim a presidente Dilma conseguiu
responder a uma parte significativa dos protestos de 2013.
Quanto ao Ato Médico, em 10 de julho de 2013 a Presidente
da República Dilma Rousseff sanciona a Lei 12.842 que dispõe so-
bre o exercício da Medicina. A Lei foi aprovada com 10 vetos, entre
eles, a questão mais polêmica e que provocou manifestações pelo
país se refere à formulação de diagnósticos e prescrição terapêutica
que saiu da exclusividade dos médicos, conforme o veto da presiden-
te. Outras pautas foram vetadas, conforme a seguir:

Também conhecida como Lei do Ato Médico, a norma de-


termina que são privativas do médico atividades como indi-
cação e execução de intervenção cirúrgica, sedação profunda
e procedimentos invasivos (sejam terapêuticos ou estéticos),
como biópsias, endoscopias e acessos vasculares profundos.
No entanto, os vetos permitem que a aplicação de injeção,
além de sucção, punção (introdução de agulha) e drenagem,
sejam feitos por outros profissionais, bem como a “invasão da
epiderme e derme com o uso de produtos químicos ou abra-
sivos” (como o peeling facial, por exemplo) (COM..., 2013).

Temos aqui mais uma sanção de um projeto, no caso o de nº


025/2002, conhecido como Ato Médico, que tramitava há 11 anos
no Congresso Nacional. A celeridade na aprovação do projeto que
90 vira a Lei nº 12.842/2013 é que é atribuída à influência das mani-

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 90 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

festações sociais, o veto da Presidente aos aspectos mais polêmi-


cos do projeto: como a formulação de diagnóstico de exclusividade
de médicos é uma reivindicação das ruas pelos profissionais não
médicos e também dos Conselhos dos respectivos profissionais da
área da saúde.

Protestos contra a corrupção e reformas políticas

A corrupção política é um tema que atravessa o campo do


exercício de cargos políticos, onde parece ofuscada a área entre o le-
gal e ilegal. No período de protestos de 2013 a 2016 várias medidas
são tentadas pelo governo Dilma Rousseff. Por se tratar de um tema
endêmico à cultura política brasileira, tratar do tema é como andar
em um campo minado. Desta forma a corrupção dentro do Estado
de Direito pode ser vista como um processo de composição do po-
der ou um momento de metamorfose dos espaços de mudanças. No
âmbito da democracia se forjou esta figura estranha contra a qual se
reverberam movimentos de resistência e rebelião.

O Império reconhece o fato, e dele tira proveito, de que em


cooperação os corpos produzem mais e em comunidade os
corpos se divertem mais, porém ele precisa obstruir e con-
trolar essa autonomia cooperativa para não ser destruído
por ela. A corrupção opera para impedir esse avanço ‘além
da medida’ dos corpos por meio da comunidade, essa singu-
lar universalização do novo poder dos corpos, que ameaça
a própria existência do Império. O paradoxo é insolúvel:
quanto mais o mundo enriquece, mais o Império, que é ba-
seado nessa riqueza, precisa negar as condições da produção
de bens. Nossa tarefa é investigar como a corrupção pode
definitivamente ser forçada a ceder seu controle à geração
(HARDT e NEGRI, 2004, p. 414-415).

A Presidente Dilma propõe ainda em 2013, cinco temas para


responder às manifestações das jornadas de junho, um deles é um
plebiscito para a Reforma Política. E admite a possibilidade de refe-
rendo, todavia nem o Plebiscito nem o Referendo acabam ocorren-
do, pois o Congresso não apoia as iniciativas. O que resulta são re- 91

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 91 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

mendos nas articulações políticas como o PL 6316/2013 apensado


ao PL 6114/2013. Ambos tratam do financiamento das campanhas
eleitorais e o sistema das eleições proporcionais. Em 2013 temos
também o Projeto de Inciativa Popular que trata da Reforma Políti-
ca Democrática e Eleições Limpas, que é o PL 6114/2013. Este teve
uma movimentação em 24 de maio de 2017, e a informação é para
apensá-lo ao PL 7567/20171. O PL 6316/2013 teve sua tramitação
em 2015, numa sequência de ações pedindo para desarquivá-lo e ou-
tras informando que ele não estava arquivado, lembrando que este
PL é resultante da Iniciativa popular de 2013 que trata das Eleições
Limpas e da Reforma Política Democrática (CÂMARA DOS DE-
PUTADOS, PL 6316/2013). Uma das reivindicações das Eleições
Limpas é o fim do financiamento de campanha por parte das empre-
sas, pois isto complementa a corrupção política.
A maior parte das manifestações sociais que ocorreram de
2013 a 2016 colocava a corrupção como um dos motes mais impor-
tantes, e as políticas públicas que foram colocadas em ação a partir
de então também não deram e não dão conta da corrupção como um
todo. É como se os representantes do Império e o próprio Império
resistissem aos anseios da multidão, principalmente em 2013. Por
quê? Olhando o Império como possuidor de força e colocando em
exercício seu poder através da mídia, das políticas públicas, das in-
versões feitas às reivindicações de rua, teríamos a multidão que se
deslocou para as ruas como uma contraparte, que se opõe ao poder
imperial e, em suas reivindicações abrem espaço para insistir na in-
satisfação que se encontrava estabelecida. Ao desencadear as jorna-
das de junho: quando as pessoas não têm R$ 0,20 para se deslocar
pela cidade, elas têm menos acesso à Saúde (Hospitais, UPA’s, Cen-
tros de Saúde, Consultórios) e demais fatores que propiciam saúde
física e mental, academias, cinemas, lazer em geral.
Em 26 de junho de 2013, a BBC News informa as reformas
1 PL 7567/17 – “ Dispõe sobre o financiamento das campanhas eleitorais, alte-
rando a Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), a Lei nº 9.096,
de 19 de setembro de 1995 (Lei dos Partidos Políticos), e a Lei nº 9.504, de 30 de
setembro de 1997 (Lei das Eleições), e sobre a forma de subscrição de eleitores a
92 proposições legislativas de iniciativa popular, alterando a Lei nº 9.709, de 18 de
novembro de 1998”. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, PL 7567/17).
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 92 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

políticas que tramitavam, à época no Congresso Nacional, algumas


há mais de 15 anos e lista as cinco principais propostas apresentada
nos últimos anos:

1) Financiamento público exclusivo de campanha: os partidos não


receberiam recursos de empresas, uma vez que o sistema que vi-
gorava em 2013 era misto: parte pública e parte privada, pois, os
recursos viriam de um fundo partidário;

2) Fim das coligações, porém permitindo que partidos façam federa-


ções partidárias que durariam, no mínimo, quatro anos: não há até
2013 tempo para os partidos permanecerem coligados, a proposta é
de uma fidelidade partidária que duraria, no mínimo, 4 anos;

3) Coincidência temporal das eleições (municipais, estaduais e fe-


derais), a PEC 71/2012: o objetivo é manter o foco em políticas
públicas e não em eleições, o que se contrapõe a essa ideia é que em
uma única eleição o eleitor teria que fazer sete diferentes escolhas
para os cargos;

4) Ampliação da participação da sociedade na apresentação de proje-


tos de iniciativa popular, inclusive via internet: pela medida, 500 mil
assinaturas garantiriam a apresentação de um projeto de lei; e 1,5
milhão, de proposta de emenda à Constituição (PEC). Atualmente,
se requer assinaturas equivalentes a 1% da população em cinco uni-
dades da federação – na prática, três vezes mais assinaturas para a
apresentação de Projetos de Lei; e,

5) Fim do sistema de lista aberta partidária: os votos de um eleitor


valem como votos do partido, atualmente, o que permite que um
“puxador de votos” (parlamentar mais votado) desloque parte de sua
votação a outros parlamentares (vereadores, deputados ou senado-
res). “Propostas como a criação de listas flexíveis, em que apenas o
voto na legenda fosse usado para eleger candidatos da lista partidá-
ria, já vinham circulando faz algum tempo” (CONHEÇA..., 2013).
93

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 93 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Os projetos e PECs relativos à Reforma Política que foram


redimensionados pelos protestos das jornadas de junho de 2013,
praticamente, param sua tramitação em 2014 ou voltam a trami-
tar em 2015, e em 2017 o governo aprova a PEC 97/2017 e a Lei
13.488/17. Esta última promove a reforma no ordenamento políti-
co-eleitoral. Já a emenda constitucional n° 97/2017:

Altera a Constituição Federal para vedar as coligações par-


tidárias nas eleições proporcionais, estabelecer normas sobre
acesso dos partidos políticos aos recursos do fundo partidá-
rio e ao tempo de propaganda gratuito no rádio e na televi-
são e dispor sobre regras de transição (BRASIL, EMENDA
CONSTITUCIONAL nº 97).

Na prática o que temos é o fim das coligações partidárias nas


eleições proporcionais: os partidos se coligavam transitoriamen-
te para disputar uma eleição e, no final da mesma, se separavam
causando conflitos políticos com a mudança de orientação política.
Outra mudança é a criação de um fundo eleitoral público para o
financiamento de campanhas, acabando com o aporte de recursos
das empresas, a fim de debilitar uma das faces da corrupção; estas
regras já foram utilizadas em 2018; o conhecido “fundão” tem um
valor estimado de 1,7 bilhões de reais. Limites de gastos foram es-
tabelecidos para as campanhas, levando em consideração doações e
recursos do Fundo Eleitoral.
Mais mudanças foram aprovadas, como a destinação de 30%
do fundo para as campanhas femininas, entre outras. Podemos re-
lacionar a aprovação destes projetos, sem vínculo direto com uma
aposta na reconfiguração das políticas públicas, às manifestações de
2013 a 2016 em consonância com algumas das reivindicações das
ruas. Projetos de forma descontínua foram contemplados quatro
anos depois do seu início, uma vez que manifestações contra a cor-
rupção estiveram presentes de 2013 a 2016 no país e algumas PECs
parecem respostas inclusive a demandas populares como as modifi-
cações que dispõe sobre o financiamento das campanhas eleitorais e
o sistema de eleições proporcionais. Resolve-se de forma tangencial
94 também algumas das reivindicações contrárias à corrupção: como
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 94 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

fim do financiamento de campanha por empresas e o fim das co-


ligações para o Legislativo nas eleições proporcionais. Ou seja, os
protestos de 2013 a 2016 dão visibilidade a discursos contrários à
corrupção e põem em xeque a credibilidade atribuída a políticos, já
que os mandatários são eleitos com voto popular.
De qualquer forma, ao falar sobre o Império, Hardt e Negri
(2004, p. 15) vão dizer o seguinte: “o objeto do seu governo é a vida
social como um todo, e assim o Império se apresenta como forma
paradigmática de biopoder”. De fato, o biopoder “é a forma de poder
que regula a vida social por dentro, acompanhando-a, interpretan-
do-a, absorvendo-a e a rearticulando”. “O poder só pode adquirir
comando efetivo sobre a vida total da população quando se torna
função integral, vital, que todos os indivíduos abraçam e reativam
por sua própria vontade” (HARDT e NEGRI, 2004, p. 43). Os auto-
res farão uma alusão, também à corrupção, da seguinte forma:

[...] a corrupção é, ela própria, a substância e a totalidade do


Império. A corrupção é o puro exercício do comando, sem qual-
quer referência proporcional ou adequada ao mundo da vida.
É comando dirigido para destruir a singularidade da multi-
dão mediante sua unificação coercitiva e/ou sua segmentação
cruel. É por isso que o Império necessariamente declina no
momento da sua aparição (HARDT e NEGRI, 2004, p. 414).

Outra medida que visa o combate à corrupção corresponde


à Lei 12.846/13, aprovada no Senado em julho de 2013 – no ca-
lor das jornadas de julho – e é sancionada pela Presidente Dilma
um mês depois, entrou em vigor em 2014 e foi regulamentada em
2015. Esta “Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil
de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pú-
blica, nacional ou estrangeira, e dá outras providências” (BRASIL,
LEI Nº 12.846). Outra Lei aprovada foi a de Delação premiada, Lei
nº 12.850/13, que recebeu a chancela do Senado em julho de 2013
e foi sancionada por Dilma Rousseff em agosto do mesmo ano, que
“define organização criminosa e dispõe sobre a investigação crimi-
nal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o
procedimento criminal” (BRASIL, LEI Nº 12.850). 95

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 95 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

A Gaúcha ZH veicula em 07 de julho de 2017 que a delação


premiada, mais conhecida dentro da operação “Lava Jato” é legado
da onda de protestos de 2013, informando que a onda de protestos
levou à criação de leis que viabilizaram instrumentos como colabora-
ções e acordos de leniência.
Em 10 de março de 2016, o pesquisador Pablo Ortellado (en-
trevistado pelo Instituto Humanitas da Unisinos) afirma que: “en-
tender qual é a natureza da Operação Lava Jato é chave para saber-
mos se esse processo vai fortalecer e melhorar o Brasil ou se isso é
uma espécie de golpe velado”. A partir dos significados imbutidos
na 24ª fase da Operação Lava Jato tem-se que, essa, se “mostra um
cerco tanto à Presidente Dilma quanto ao ex-presidente Lula” (FA-
CHIN, 2016). Ortellado refere, nesta entrevista, que a forma como
a Justiça está conduzindo a Lava Jato está permeado de abusos,
exemplo disso seriam as conduções coercitivas. Embora, segundo
ele, ainda seria cedo para afirmar que a Operação está politizada,
embora o debate seja politizado:

De um lado se argumenta que se trata de uma ação institu-


cional republicana, que está investigando os anteriormente
não investigados; e de outro lado, argumenta-se que ela está
sendo utilizada politicamente apenas para um ator político
e que os outros atores estão sendo poupados. O debate está
politizado e, por ora, os fatos estão obscuros.
Por enquanto afirma, ‘um dos indicadores’ de que a Operação
Lava Jato tem uma ‘institucionalidade forte’ ‘é o fato de ela ter
prendido os empresários, ou seja, duas pessoas entre as dez
mais ricas do mundo: André Esteves e Marcelo Odebrecht.
Isso mostra uma capacidade de lei que não esperávamos da
institucionalidade brasileira (FACHIN, 2016).

Com um encaminhamento similar se situam os protestos con-


tra o impedimento do Ministério Público de promover investiga-
ções criminais (BRASIL, PEC 37/2011). Temos em 2011 uma PEC
que ficou conhecida pelos manifestantes em 2013 como sinônimo de
impunidade, a (PEC 37/2011), uma vez que ela impedia o Ministé-
rio Público de promover investigações criminais por conta própria,
96
pois previa competência exclusiva da polícia nessas apurações.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 96 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

A votação é acompanhada por procuradores e policiais na ga-


leria do plenário da Câmara dos Deputados. E estes conduzidos pelo
líder do PSDB, Carlos Sampaio (SP), promotor de justiça aposenta-
do: “parlamentares tucanos ergueram cartazes no plenário contra a
PEC 37. As cartolinas estampavam ‘Eu sou contra a PEC 37. Por-
que não devo e não tenho medo da investigação. A quem interes-
sa calar o MP?’, indagava o manifesto”. (CONFIRMADO..., 2019).
Henrique Alves ainda verbaliza: “‘ter certeza’ de que os parlamenta-
res voltariam a proposta pensando no que seria melhor para o país.
‘Tenho certeza de que cada parlamentar estará votando de acordo
com a sua consciência, para o combate à corrupção, o combate à im-
punidade’, disse” (CONFIRMADO..., 2019).
Temos aqui então os eventos das jornadas de junho de 2013
como uma biopolítica2 “como réplica política da vida a todos os pro-
cedimentos de controle e captura do poder” (CORSINI, 2007, s/p),
aqui nos aproximamos da noção de contrapoder, mas um contrapo-
der da multidão, um contrapoder que é produtivo, que produz, por
exemplo: políticas públicas, não acabadas e contendo todas as reivin-
dicações feitas, até porque são contraditórias e no momento em que
entram para o Legislativo, Executivo e Judiciário compõem o jogo
político de interesses, contradições e disputas, mas políticas públicas
possíveis num mundo capitalista cheio de contradições e contrapon-
tos. Políticas que serão regulamentadas imediatamente ou entrarão
em vigor imediatamente: como a retirada da PEC 37 e políticas que
necessitam de regulamentação e de um clima político mais favorável
para acontecer, como a PEC 90/2015 tornando os transportes um
direito social, inserido no artigo 6º da Constituição Federal.
O papel das ruas também não foi deixado de lado no discurso
do líder do PSOL na Câmara, Ivan Valente (RJ), ele “destacou o pa-
pel das manifestações populares na derrubada da PEC 37”, segundo
a mesma fonte. A Câmara dos Deputados derrubou em 25 de junho

2 A propósito desta perspectiva consultar CORSINI, L. Biopolítica, biopoder


e o deslocamento das multidões. Entrevista a IHU online. 10 outubro 2007.
Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/10015-biopolitica-bio-
poder-e-o-deslocamento-das-multidoes-entrevista-especial-com-leonora-corsini. 97
Acessado 18 de janeiro 2020.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 97 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

de 2013, por 430 votos a nove (e duas abstenções), a Proposta de


Emenda à Constituição (PEC 37/11). É interessante que em junho
de 2013, após ouvir as ruas, vários deputados pedem para retirar sua
assinatura em apoio à Proposta da PEC 37/11. Pressão dos parti-
dos? Pressão das ruas? A informação da retirada das assinaturas dos
parlamentares se encontra no site da (CÂMARA DOS DEPUTA-
DOS, PEC 37/11). Na mesma direção caminhou a PEC 33/2011,
com seu arquivamento em 23 de maio de 2019, não dá pra relacioná-
-la às manifestações sociais (creio que elas dão um colorido ao tema,
mas já havia cisões entre STF e Congresso para sua não aprovação).
Há também as dez medidas contra a corrupção, associadas à co-
leta de assinaturas contra a corrupção. O projeto com as 10 medidas
contra a corrupção foi elaborado pelo MPF (Ministério Público Fe-
deral) e apresentado ao Congresso Nacional como um projeto de ini-
ciativa popular em 29 de março de 2016 (PL 4.850/2016). O projeto
do MPF estava presente nas manifestações contra o governo Dilma,
onde Sérgio Moro era idolatrado. “Em todas as passeatas de 2015 e
2016 era possível encontrar voluntários buscando assinaturas para
endossar a proposta e levá-la à Câmara para votação”. (MARTINS,
2017). Segundo a mesma fonte, entretanto, as medidas eram de difícil
entendimento, com um caráter técnico e jurídico. Muitos manifestan-
tes foram flagrados assinando o documento do MPF sem saber exa-
tamente do que ele tratava (MARTINS, 2017) e assim foram reunidas
mais de 2,5 milhões de assinaturas em todo o Brasil.
O pacote com assinaturas de cidadãos foi enviado ao Congresso
Nacional pelo MPF, todavia a Câmara inseriu mudanças no dia 30 de
novembro de 2016, antes de seguir para o Senado Federal. O deputado
Onix Lorenzoni lamenta a desconfiguração e diz que seus colegas agi-
ram assim por sede de vingança contra o Ministério Público Federal.
Para ele houve desconfiguração do relatório. E mais afirmou Lorenzo-
ni: “Lamentavelmente, o que a gente viu aqui foi uma desconfiguração
completa do relatório, ficando de pé, objetivamente, apenas as medidas
de estatísticas e a criminalização do caixa 2” (CALGARO, 2016).
Segundo Calgaro (2016), nessa ocasião foi incluída pela Câ-
mara a “proposta de punição de juízes e membros do Ministério Pú-
98 blico por abuso de autoridade”. Só permaneceram do texto original,
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 98 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

segundo o relator, “as medidas de transparência a serem adotadas


por tribunais, a criminalização do caixa 2, o agravamento de penas
para corrupção e a limitação do uso de recursos com o fim de atrasar
processos”, segundo Calgaro (2016). Em contrapartida foram reti-
radas as seguintes medidas:

- Acordos de leniência. Os deputados rejeitaram a propos-


ta que previa que os acordos de leniência (espécie de delação
premiada em que empresas reconhecem crimes em troca de re-
dução de punição) fossem celebrados pelo Ministério Público.

- Enriquecimento ilícito de funcionários públicos. Outro


trecho retirado tornava crime o enriquecimento ilícito de
funcionários públicos e previa o confisco dos bens relaciona-
dos ao crime.

- ‘Reportante do bem’. Um dos itens mais caros ao relator


que ficaram de fora previa a criação da figura do “reportante
do bem” para incentivar o cidadão a denunciar crimes de cor-
rupção em qualquer órgão, público ou não. Como estímulo,
o texto dele previa o pagamento de recompensa em dinheiro
para quem fizesse isso.

- Prescrição de penas. Também foram derrubadas as mu-


danças para dificultar a ocorrência da prescrição de penas,
que é quando o processo não pode seguir adiante porque a
Justiça não conseguiu conclui-lo em tempo hábil.

- ‘Confisco alargado’. Com o objetivo de recuperar o lucro


do crime, o texto previa o chamado “confisco alargado”, em
casos como o de crime organizado e corrupção para que o cri-
minoso não tivesse mais acesso ao produto do crime para que
não continuasse a delinquir e também para que não usufruís-
se do produto do crime. Esta proposta, porém, foi rejeitada.

- Acordos entre defesa e acusação. Outro ponto que não


passou foi o que permitia a realização de acordos entre defesa
e acusação no caso de crimes menos graves, com uma defi-
nição de pena a ser homologada pela Justiça. O objetivo era
tentar simplificar os processos.
99

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 99 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

- Responsabilização de partidos. O plenário rejeitou pontos


do relatório que previam a responsabilização dos partidos po-
líticos e a suspensão do registro da legenda por crime grave.

A conduta do ex-juiz Sérgio Moro em sua criminalização à


Lula, interferindo no processo junto a procuradores da Lava Jato e
deixando vazar informações que acabaram constituindo crime elei-
toral contra Lula, citada anteriormente, e que gerou resposta no
Senado Federal em 26 de junho de 2019, sendo que:

O Senado aprovou na noite desta quarta-feira (26) o projeto


de lei que pune abuso de autoridade praticado por magistra-
dos e membros do Ministério Público. A votação foi simbó-
lica e o projeto volta à Câmera. O texto, parado desde 2017,
quando saiu da Câmara, ganhou celeridade no momento em
que a conduta do Ministro Sérgio Moro (Justiça), quando
juiz federal, está sob questionamento por causa da revelação
de mensagens atribuídas a ele e a Deltan Dallagnol, procura-
dor da Lava Jato em Curitiba.
Senadores se esforçam para mostrar que o projeto trata de
medidas de combate à corrupção, e não de abuso de autorida-
de, embora aborde o assunto. A proposta de iniciativa popu-
lar chegou à Câmara sob o título de 10 medidas de combate
à corrupção, mas foi bem modificada durante a tramitação
(CARVALHO, 2019, s/p).

Esse projeto de Lei aprovado no Senado aconteceu a partir do


projeto de iniciativa do MPF sob o título “10 medidas de combate à
corrupção” e a proposta incluída, pela Câmara, prevendo a punição de
juízes e membros do Ministério Público por abuso de autoridade foi a
que foi aprovada no Senado no dia 26 de junho de 2019.

Política Nacional de Participação Popular, auxílio


aos Estados e teto dos gastos públicos

Dilma apresenta a proposição da Política Nacional de Parti-


cipação Popular (PNPP) em 23 de maio de 2014, em meio à onda
100 de reivindicações presentes nas mobilizações das ruas. O Decreto

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 100 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

8243/14 da PNPP e dos Conselhos Participativos é vetado pela Câ-


mara dos Deputados em 18 de outubro de 2014. Acilino Ribeiro,
entrevistado por mim em 2015, informou que foi ele o autor que
elaborou esse projeto de participação popular.
Parece uma iniciativa que trata da complementariedade en-
tre democracia representativa através do parlamento e a democra-
cia direta. Portanto, ainda caberia analisar os aspectos centrais da
proposição com a específica finalidade de identificar até que ponto
contém inovações efetivas em relação às práticas políticas existen-
tes. Os deputados se posicionaram contra o decreto presidencial por
considerar que ele invade prerrogativas do Legislativo.
Não agradou o Congresso o fato de o decreto dar ao Secretário
Geral da Presidência da República o poder de indicar os integran-
tes das instâncias de participação e definir a forma de participação.
Aqui nós temos uma tentativa de Dilma Rousseff se aproximar dos
movimentos sociais e tentar dar voz aos possíveis manifestantes,
através de suas lideranças, para atender as reivindicações das ruas
antes que elas se transformem em protestos de deslegitimação. En-
tretanto temos neste episódio, narrado anteriormente, a expressão
da “naturalização da injustiça, a exploração e a pobreza nas mentes
da população, inibindo o desenvolvimento do pensamento crítico”
(GOHN, 2015, p. 179). Como poderíamos conceber uma mudança
de paradigma onde este poder dominante (representado neste epi-
sódio pelos membros do Congresso Nacional) cedesse espaço para
os manifestantes dos movimentos sociais, estaríamos quebrando
uma longa tradição.
Quem estabelece o Plano de Auxílio aos Estados e ao Dis-
trito Federal e medidas de estímulo ao reequilíbrio fiscal, é o PLP
257/2016; ele altera a Lei nº 9.496, de 11 de setembro de 1997,
a Medida Provisória nº 2.192-70, de 24 de agosto de 2001, a Lei
Complementar nº 148, de 25 de novembro de 2014, e a Lei Com-
plementar nº 101, de 4 de maio de 2000; e dá outras providências.
Nova Ementa: Estabelece o Plano de Auxílio aos Estados e ao
Distrito Federal e medidas de estímulo ao reequilíbrio fiscal; e al-
tera a Lei Complementar nº 148, de 25 de novembro de 2014, a
Lei nº 9.496, de 11 de setembro de 1997, e a Medida Provisória 101

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 101 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

nº 2.192-70, de 24 de agosto de 2001, segundo a (CÂMARA DOS


DEPUTADOS, PL 257/2016).
O Projeto se transforma na Lei Complementar nº 156/2016.
O interessante aqui é que devido às manifestações que ocorreram em
torno deste Projeto de Lei, já que ele previa o congelamento dos salá-
rios dos servidores públicos, não saiu o congelamento dos salários na
Lei Complementar, segundo site da CONFETAM CUT (Confedera-
ção dos (as) trabalhadores (as) no serviço público municipal. (ESCRI-
TO..., 2016). Já a PEC do teto dos gastos públicos – PEC 55 ou PEC
241/2016 – não teve o mesmo destino do PL 156/2016. A PEC 55
congela por vinte anos o salário dos servidores públicos.
Isso deve impactar diretamente o servidor público que sem es-
paço para aumento da folha de pagamento e com sanções previstas na
PEC, o teto deve reduzir o número de funcionários, o que pode causar
prejuízos ainda maiores em hospitais e escolas pelo país, ainda segundo
a mesma fonte anterior. Esta PEC, segundo site do Senado Federal:

Institui o Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos


Fiscal e da Seguridade Social da União, que vigorará por
20 exercícios financeiros, existindo limites individualiza-
dos para as despesas primárias de cada um dos três Poderes,
do Ministério Público da União e da Defensoria Pública da
União; sendo que cada um dos limites equivalerá: I - para o
exercício de 2017, à despesa primária paga no exercício de
2016, incluídos os restos a pagar pagos e demais operações
que afetam o resultado primário, corrigida em 7,2% e II -
para os exercícios posteriores, ao valor do limite referente ao
exercício imediatamente anterior, corrigido pela variação do
Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA.
Determina que não se incluem na base de cálculo e nos limi-
tes estabelecidos: I - transferências constitucionais; II - crédi-
tos extraordinários III - despesas não recorrentes da Justiça
Eleitoral com a realização de eleições; e IV - despesas com
aumento de capital de empresas estatais não dependentes
(SENADO FEDERAL, PEC 55).

Desta feita, tem-se que apesar dos protestos que se realizaram


102 em todo país, ela é aprovada em 13 de dezembro de 2016 e segue
para a promulgação (SENADO..., 2016).
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 102 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Considerações finais

A partir do exposto, podemos concluir que houve um nexo en-


tre manifestações sociais de 2013 a 2016 no cenário nacional, entre-
tanto, esta relação é pontual e a continuidade de sua influência está
dependente do cenário que se desenhará – dependendo, por exem-
plo, de qual é a orientação política do governante que estará à frente
da Presidência – e também da relação que este é capaz de estabe-
lecer entre os poderes estatais, principalmente, com o Legislativo.
Ademais, tem-se ainda que as forças políticas que se configu-
rarem em determinado momento político – e não só as nacionais,
mas as internacionais efetivamente – farão a diferença para colo-
car ou não em ação as políticas progressistas ou conservadoras.
Como exemplo disso, temos a aprovação da PEC que tornou di-
reito social o transporte público, mas não houve uma regulação da
mesma e não se crê que isso ocorra a curto prazo, tendo em vista
o atual cenário político.

103

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 103 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Referências
GOHN, M. G. Desafios para a pesquisa em ciências sociais na América
Latina na temática da participação social. Polis - Revista Latinoame-
ricana, n. 41, pp. 175-188, 2015.
HARDT, M.; NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro: Record, 2004.
HARVEY, D. et AL. Cidades Rebeldes, passe livre e as manifesta-
ções que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013.
Para material com visualização na internet:
BRASIL, EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 97, DE 4 DE OUTU-
BRO DE 2017. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/Emendas/Emc/emc97.htm>. Acesso em 02 jul. 2019.
CALGARO, F. Câmara retira seis propostas do MPF e desfigura paco-
te anticorrupção. G1, 31 nov. 2016. Disponível em: <http://g1.globo.
com/politica/noticia/2016/11/camara-dos-deputados-conclui-vota-
cao-de-medidas-contra-corrupcao.html>. Acesso em 04 jul. 2019.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. PEC 90/2011- Proposta de Emenda à
Constituição. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoes-
Web/fichadetramitacao?idProposicao=522343> Acesso em 07 nov. 2019.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Proposta de Emenda à Constituição
nº 37/2011. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/propostas-
-legislativas/507965>. Acesso em 03 jul. 2019.
CARVALHO, D. Senado aprova projeto contra abuso de autoridade por
juiz e procurador. Folha de São Paulo, 26 jun. 2019, Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/06/senado-aprova-
-projeto-contra-abuso-de-autoridade-por-juiz-e-procurador.shtml>.
Acesso em 03 jul. 2019.
COM dez vetos Dilma sanciona Ato Médico. UOL, 11 jul. 2013. Dis-
ponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/re-
dacao/2013/07/11/com-dez-vetos-dilma-sanciona-ato-medico.htm?-
cmpid=copiaecola>. Acesso em 02 jul. 2019.
CONFIRMADO: PEC 37 é rejeitada pela Câmara. Nação Jurídi-
ca, 25 jun. 2013. Disponível em: <https://www.nacaojuridica.com.
br/2013/06/confirmado-pec-37-e-rejeitada-pela.html>. Acesso em
104 03 jul. 2019.

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 104 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

CONHEÇA as mais recentes propostas de reforma política no Brasil.


BBC News, 26 jun. 2013. Disponível em:<https://www.bbc.com/por-
tuguese/noticias/2013/06/130625_reforma_politica_rp>. Acesso em
02 jul. 2019.
CORSINI, L. Biopolítica, biopoder e o deslocamento das multidões.
Entrevista a IHU online. 10 outubro 2007. Disponível em http://
www.ihu.unisinos.br/entrevistas/10015-biopolitica-biopoder-e-o-des-
locamento-das-multidoes-entrevista-especial-com-leonora-corsini.
Acessado 18 de janeiro 2020.
DILMA sanciona Plano Nacional de Educação sem vetos. UOL,
26 jun. 2014. Disponível em: <https://educacao.uol.com.br/noti-
cias/2014/06/26/dilma-sanciona-plano-nacional-da-educacao-sem-
-vetos.htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em: 01 jul. 2019.
ESCRITO por Confetam. PL 257 é aprovado sem o congelamento dos
salários dos servidores públicos. Confetam, 10 ago. 2016. Disponível
em: <http://www.confetam.com.br/noticias/pl-257-e-aprovado-sem-
-o-congelamento-dos-salarios-dos-servidores-publicos-beec/>. Aces-
so em 04 jul. 2019.
MARTINS, R. As dez medidas contra a corrupção resolvem o pro-
blema? Exame, 01 ago. 2017. Disponível em: <https://exame.abril.
com.br/brasil/as-10-medidas-contra-a-corrupcao-resolvem-o-proble-
ma/>. Acesso em 03 jul. 2019.
OPAS Brasil. Folha Informativa - Programa Mais Médicos. Atualizada
em novembro de 2018. Disponível em:<https://www.paho.org/bra/in-
dex.php?option=com_content&view=article&id=5662:folha-informati-
va-programa-mais-medicos&Itemid=347>. Acesso em 01 jul. 2019.
ORTELLADO, P. Qual é a natureza da Lava Jato? Compreendê-la é
chave neste momento político. [Entrevista cedida a] FACHIN, P. IHU
On-line: revista do Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, 10
mar. 2016. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/
552444-qual-e-a-natureza-da-lava-jato-compreende-la-e-chave-neste-
-moment>. Acesso em 10 jul. 2019.
SENADO Notícias. PEC que restringe gastos públicos é aprovada e vai
a promulgação. 13 dez. 2016. Disponível em: <https://www12.senado.
leg.br/noticias/materias/2016/12/13/pec-que-restringe-gastos-pu-
blicos-e-aprovada-e-vai-a-promulgacao>. Acesso em: 04 jul. 2019.
105

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 105 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

SENADO FEDERAL. Proposta de Emenda à Constituição n° 55, de


2016 - PEC DO TETO DOS GASTOS PÚBLICOS. Disponível em:
<https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/mate-
ria/127337>. Acesso em 04 jul. 2019.
TOKARNIA, M. Municípios acusam falta de recurso para cumprir
metas do PNE. EBC, Agência Brasil, 28 maio 2014. Disponível em:
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2014-05/munici-
pios-acusam-falta-de-recursos-para-cumprir-metas-do-pne>. Acesso
em: 01 jul. 2019.

106

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 106 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

O atual modelo de cobrança do Imposto de Renda:


uma análise sobre a perpetuação de
desigualdade social no Brasil
Luíza Cristina de Castro Faria
Bruno Lima Teixeira

Introdução

A presente pesquisa busca analisar, conforme os dados informa-


dos pela própria Receita Federal (que é a entidade responsável pela
arrecadação) e já estudados por outros autores, identificar as princi-
pais dificuldades em relação a cobrança de Imposto de Renda e as de-
sigualdades. Dito no plural, uma vez que se entende que são múltiplas
e persistentes. O objetivo central é verificar sobre quais perspectivas
o Imposto de Renda contribui e mantém desigualdades sociais histó-
ricas presentes no Brasil. Aponta ainda possíveis falhas encontradas
na legislação brasileira que concorrem para essa realidade.
Primeiramente, será explicado o Imposto de Renda e suas
nuances, tais como fato gerador, base de cálculo e outras informações
relevantes. Em seguida, estudará os princípios tributários constitu-
cionais, com relevância aos específicos do tema, tais como a justiça
fiscal, a progressividade e a capacidade contributiva e sua efetivação
na cobrança do Imposto de Renda. A escolha do Imposto de Renda
se justifica pelo fato de a doutrina apresentá-lo como maior expoente
dos chamados impostos diretos – e que, em tese, potencializam a efe-
tividade dos princípios supracitados. Por esta razão, o objetivo do pre-
sente estudo é verificar como o atual ordenamento jurídico brasileiro
contribui para limitar o potencial progressivo do Imposto de Renda.
As relações sociais complexas entre os indivíduos e os con-
flitos decorrentes se traduzem em uma necessidade de proteger a
vida e os bens. Com isto existem acordos tácitos em que indivíduos
e grupos sociais trocam parcela de sua liberdade em nome de segu-
rança. Isto se torna muito evidente com grades e cercas elétricas
e cinturões ou coletes à prova de bala. Deste modo, recorre a um 107

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 107 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

pacto tacitamente firmado entre os indivíduos de um determinado


agrupamento a fim de lhes conferir proteção efetiva. Qualquer so-
ciedade resulta de um pacto entre seus partícipes, sendo que a ade-
são ao denominado contrato social é fundamental para o convívio e,
como tal, tem profunda relação com o Estado Moderno.
Neste contrato, firma-se o bem comum, como exercício da
vontade geral. Todavia, para atingir o bem comum, o Estado precisa
de recursos financeiros. Tais recursos podem ser auferidos através
de receitas originárias e derivadas. Assim, tem-se que a primeira
legitimação da instituição de impostos vem do próprio contrato so-
cial. É polêmica a questão de pagamento de impostos, se constituem
como fundamentos de quem defende a ideia inicial de direitos ou se
apresentam como dever a contribuição ao coletivo pela via de im-
postos. Isto porque a instituição dos impostos se justifica pela mes-
ma razão da existência do próprio Estado: a busca da satisfação do
interesse comum. Neste ínterim sem dúvida é relevante distinguir
realidades pertinentes ao campo econômico e conectar abordagens a
partir da complexidade que as relações sociais contêm. Assim, Gai-
ger (2019, p. 97) se reporta ao

desconhecimento da pluralidade de lógicas subjacentes às


instituições e comportamentos econômicos[...]enfatiza a ne-
cessidade de reconhecer a pluralidade de lógicas subjacentes
à economia, como modo de avaliar adequadamente os signifi-
cados das práticas econômicas dos setores populares e o seu
papel nos processos de desenvolvimento.

Assim, as práticas sociais e a dimensão econômica se entrela-


çam. Embora possa causar estranheza num primeiro momento, há
um direito fundamental ao pagamento de impostos. E, quando se
fala em direito em pagar impostos, fala-se, sobretudo no direito de
ver os princípios defendidos na Constituição respeitados, quando
da incidência dos tributos. O Estado, como ente responsável pela
gestão e organização do bem comum, utiliza os tributos como prin-
cipal fonte de arrecadação. E o cidadão, neste caso, o contribuinte,
ciente do contrato social, arca com o ônus tributário. Todavia o Es-
108 tado deve respeitar algumas limitações quando da imposição dos
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 108 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

tributos. Dentre elas, a principal é a realizar uma tributação justa,


equânime, que como será demonstrado, não está a contento no caso
de Imposto de Renda e por isso precisa ser estudada.

Imposto: sociedade e a organização do Estado nacional

Os impostos são uma das espécies de tributo. Segundo Ale-


xandre (2017), incidem sobre manifestação de riquezas do sujeito
passivo da obrigação tributária. Justificam-se sobre a ideia de solida-
riedade social, segundo a qual as pessoas que manifestam riquezas
devolvem ao Estado, na forma de impostos, contribuição para que
ele, provido de recursos, promova o bem comum. De uma maneira
sintética, pode-se dizer que os impostos consistem na “retirada de
parcela de riquezas dos particulares” (HARADA, 2017, p. 272), ne-
cessária para a consecução dos objetivos estatais.
Fundamental é compreender que os impostos devem, sim, re-
tornar na forma de serviços para a população, mas desmistificando
ao senso comum de vinculação, como o percebido em questiona-
mentos relacionando o pagamento, por exemplo, do Imposto sobre
a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e a qualidade das
estradas nacionais.
O Imposto de Renda é um tributo de competência federal e está
previsto no art. 153, III, da Constituição Federal. Nos termos consti-
tucionais, o imposto incide sobre renda e proventos de qualquer natu-
reza. A renda sobre a qual recai o imposto é tripartite (art. 43, I e II,
CTN). Ela pode ser a renda do capital – como os rendimentos obtidos
a partir de uma aplicação financeira –; a do trabalho – a exemplo do
salário –; ou da combinação de ambos – o lucro. O texto constitucio-
nal estende a base de incidência deste imposto para os proventos de
qualquer natureza – cuja natureza conceitual é residual. Assim, tudo
aquilo que for manifestação de riqueza e não se enquadrar no conceito
de renda é dito provento de qualquer natureza.
O texto constitucional, no mesmo art. 153, §2º, I, dispõe que o
Imposto de Renda deve obedecer aos critérios da generalidade, uni-
versalidade e da progressividade. Alexandre (2017, p. 656) destaca
que, na verdade, tais critérios emanam dos princípios da isonomia e 109

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 109 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

da capacidade contributiva. Segundo o autor, a isonomia se manifes-


ta no seu sentido horizontal, ao impor que todas as pessoas (critério
da generalidade) em situação equivalente e todos os proventos (uni-
versalidade) estão sujeitos à incidência do imposto de renda, e em
seu sentido vertical, ao tratar o critério da progressividade, segundo
o qual alíquota do imposto deve aumentar à medida que se aumen-
tam os rendimentos ou proventos.

Princípios tributários como prescrição constitucional

Princípios constituem-se em mandamentos que alicerçam todo


um sistema normativo, servindo como parâmetro interpretativo, con-
ferindo-lhe sentido harmônico. Nesse sentido, a compreensão das re-
gras exige daqueles que lidam com as normas legais a compreensão
dos princípios. Para o presente texto destacam-se cinco pontos.

Princípio da legalidade

Nabais (2005) sintetiza o princípio da legalidade como sendo


a necessidade de que impostos e seus elementos essenciais somente
podem ser criados e disciplinados através da intervenção do Parla-
mento. Essa regra consolida uma questão de segurança ao Estado e
contribuintes. Seguindo a lição de constitucionalistas, o princípio da
legalidade está presente caso se esteja diante de uma obrigação que
se subordine ao domínio de uma Lei. Nos casos em que é necessária
a edição de Lei Regulamentadora sobre determinada matéria, está-
-se, na verdade, defronte do princípio da reserva legal.

Princípio da isonomia

Alexandre (2017, p. 141) aponta que o princípio da isonomia


encontra guarida na legislação brasileira. É vedado no ordenamento
jurídico brasileiro dar tratamento jurídico diferenciado a pessoas – se-
jam físicas ou jurídicas – sujeitas aos mesmos pressupostos de fato.
A importância da existência do art. 150, II, da Constituição Federalé
110 revelada também na medida em que se lembra do princípio da isono-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 110 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

mia tributária, uma vez que não faz acepção de rótulos para agrupar
entre si os iguais. Esta é a razão por quenão se considera ter havido
afronta ao princípio da isonomia quando a norma jurídica dispensar
tratamento diferenciado que guarde relação de pertinência lógica com
o motivo do tratamento discriminatório. Igualmente, não se fala em
afronta quando a Lei considera “determinada situação objetivamente
considerada para prescrever a inclusão ou exclusão de determinado
benefício, ou a imposição de certo gravame” (HARADA, 2017, p. 272).
A isonomia, portanto, possui uma dupla acepção: vertical e
horizontal. Aquela diz respeito às pessoas que se apresentam em si-
tuações diferentes, devendo ser tratadas de forma diferenciada. Já a
segunda se refere às pessoas que, dentro de um estrato de igualdade,
devem ser tratadas de forma igual.

Princípio da capacidade contributiva

O princípio da capacidade contributiva está umbilicalmente li-


gado ao da isonomia. Estabelece que os impostos devam ser cobrados
em face da possibilidade de cada pessoa de arcar com aquele custo, de-
vendo os desiguais serem tratados de forma desigual. Cumpre desta-
car que o princípio, verdadeira norma programática, tem por escopo
o atingimento da justiça fiscal. Esta é alcançada, em grande medida,
pelo fato de a norma supratranscrita abrigar, segundo Harada (2017,
p. 272), o princípio da “personalização dos impostos graduados se-
gundo a capacidade econômica do contribuinte”, sempre que possível.
A possibilidade econômica adotada no Brasil baseia-se em
signos presuntivos de capacidade tributária – isto é, diz respeito à
capacidade econômica real dos contribuintes e leva em consideração
manifestações objetivas de riqueza de pessoa física e jurídica. Toda-
via, nesta ótica não está posto em questão a tributação das grandes
fortunas. Ainda quanto ao fato de se tratar de preceito programá-
tico, interessante salientar que a norma produz efeito pelo seu as-
pecto negativo. Isto quer dizer que nasce para o Estado uma obri-
gação de não legislar normas tributárias que firam este princípio.
Portanto, seria inconstitucional, por exemplo, qualquer norma que
institua alíquotas de IPTU (Imposto sobre a Propriedade Predial e 111

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 111 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Territorial Urbana) inversamente proporcionais ao valor venal de


determinado imóvel urbano.

Justiça fiscal: amparo legal e um projeto


a espera de realização

Segundo Nabais (2005) um sistema fiscal pode ser conceitua-


do como um conjunto de impostos dotados de uma estrutura inter-
na ou de uma articulação. Este sistema, no entanto, precisa de um
instrumento que efetive esta coerência. Assim, diz-se que o prin-
cípio da justiça do sistema é este instrumento que dá a coerência
necessária ao sistema fiscal para que seja possível esta articulação.
Uma vez que o princípio se aplica ao sistema fiscal, nomeia-o prin-
cípio da justiça fiscal.
Observa-se, no entanto, que a coerência integrativa deve
ocorrer tanto dentro do sistema fiscal – isto é, no conjunto articu-
lado de impostos – quanto com relação ao sistema jurídico público e
global. Dito isto, o princípio se revela importante na medida em que
os impostos não devem ser incoerentes entre si e tampouco dever
ser incoerentes com o próprio ordenamento jurídico no qual está
inserido. Nabais (2005) dispõe que os impostos, cada um per si, e em
seu conjunto, não podem viver em um regime apartado do sistema
jurídico no qual estão inseridos.
No caso brasileiro, nota-se, pela leitura da Constituição Fede-
ral (CF/88), que há a presença de um modelo de Estado solidário e
garantidor de direitos fundamentais. Logo no início, a CF/88, nos
termos de seu artigo 2º, dispõe que o Brasil objetiva a construção de
uma sociedade justa e solidária (inciso I) e a redução de desigualda-
des sociais e regionais (inciso III). A fim de alcançar tais objetivos,
a Constituição prevê os chamados direitos a prestações materiais.
Estes direitos resultam da concepção social do Estado e estão con-
cebidos com o propósito de atenuar desigualdades de fato em uma
sociedade. Para isto, é fundamental que todo o arcabouço legal cami-
nhe em direção a estes objetivos dispostos na Carta Magna, uma vez
que a maioria destas prestações necessita da atuação do legislador
112 para a produção de efeitos plenos. Destarte, o sistema de impostos
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 112 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

deve ser coerente com essa proposta promotora de justiça, solida-


riedade e igualdade.
O ordenamento jurídico, e, neste caso, o próprio mandamento
constitucional – fio condutor do ordenamento como um todo – deve
orientar a ação do sistema de impostos, irradiando para dentro da
necessária articulação interna do sistema fiscal. Dentro deste mo-
delo, imprescindível é a construção de impostos mais progressivos
no que diz respeito ao patrimônio e riqueza. A visão contributiva da
justiça fiscal se manifesta dentro da visão de justiça social apresen-
tada por Leonetti (2002), segundo o qual, a justiça social se refere
tanto à distribuição do bem comum, entre os indivíduos e os grupos,
assegurando a cada um o mínimo indispensável de vida digna; quan-
to à contribuição de cada um para com a coletividade, a partir da sua
própria capacidade contributiva.
A justiça fiscal se dá em diversos momentos, não só na per-
cepção de quando o tributo será cobrado, mas também de quem será
cobrado e para onde será destinado. O Imposto de Renda, por exem-
plo, é um tributo com função fiscal, que visa a arrecadação. Todavia,
possui um enorme potencial distributivo e por isso merece destaque.
Além disso, é possível depreender de uma leitura sistemática
da Constituição que, o sistema tributário deve observar a equidade
social. Para tanto, pode se valer de mecanismos de justiça fiscal e
“através da aplicação dos recursos arrecadados em serviços e políti-
cas públicas em prol dos menos favorecidos” (LUKIC, 2017, p. 531).
Trata-se de uma visão que enxerga o potencial distributivo tanto do
lado do gasto quanto da arrecadação.

Progressividade: existente e insuficiente

A progressividade consiste numa técnica de aferição da capa-


cidade contributiva, que se externaliza e se entrelaça com a isono-
mia. A progressividade deve ser observada quando da previsão do
Imposto de Renda, de acordo com a regra prevista na Constitui-
ção Federal. O legislador, para cumprir essa diretriz constitucional
criou alíquotas do imposto de renda progressivas, as quais variam
de acordo com a base de cálculo. Dessa forma, uma pessoa com uma 113

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 113 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

renda mais alta pagará proporcionalmente mais Imposto de Renda


do que uma pessoa com uma renda mais baixa. Atualmente as alí-
quotas variam entre 7,5% e 27,5%, a serem definidas de acordo com
a renda de cada pessoa. Em sentido oposto, fala-se em regressivida-
de quando há uma relação inversa entre o pagamento de um tributo
e a renda do contribuinte.

A progressividade do Imposto de Renda


e a persistência das desigualdades

Pinheiro, Waltenberg e Kerstenetzky (2017), a partir da aná-


lise de dados extraídos entre setembro e novembro de 2016, obser-
varam um comportamento de regressividade do imposto de renda
entre os mais pobres e de razoável progressividade até alcançar o
extrato dos 10% mais ricos. À medida que se subia o topo da pirâ-
mide, a progressividade foi suavizada, até ver seus efeitos converte-
rem-se novamente em regressivos, no caso da renda dos super-ricos
– inseridos no extrato dos 3% mais abastados do país.

114

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 114 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Gráfico 1 – Alíquota efetiva média de Imposto de Renda (rendimen-


tos totais) - 2017

Fonte: RECEITA FEDERAL, 2018, p. 9.

Interessante notar que a alíquota efetiva paga, de acordo


com os dados relativos ao tributo, não é linear, pois a partir de
uma determinada faixa de renda, ela diminui. O que demonstra
que as pessoas com maior rendimento acabam pagando uma alí-
quota efetiva similar as de renda inferior. Esse fenômeno se dá
especialmente pelas isenções permitidas pela lei e pela tributação
diferenciada de rendas, como a do capital e do trabalho. Pode-se
considerar do ponto de vista da justiça fiscal que no Brasil está
baixa a alíquota máxima do Imposto de Renda para Pessoa Física 115

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 115 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

(IRPF), bem como quase inexiste o imposto de renda sobre o capi-


tal especulativo financeiro.
A progressividade tributária, de uma maneira bem simpli-
ficada, ocorre quando as alíquotas de incidência do imposto au-
mentam à medida que extratos da renda também aumentam. Ou
seja, é uma técnica que tem profunda relação com a capacidade
contributiva dos indivíduos. A progressividade, além de afetar o
valor absoluto da renda despendido para o pagamento de tributos,
também influencia sobre a porcentagem da renda despendida. Por
esta razão, diz-se que o critério da progressividade é adequado
para atacar, sob o prisma da arrecadação tributária, as desigual-
dades sociais.
Fernandes, Campolina e Silveira (2017, p. 297) a fim de com-
parar parâmetros básicos do IRPF, se valeram de dados de países
selecionados da OCDE e observaram que, nos países da OCDE (Or-
ganização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), “tan-
to a média quanto a mediana das alíquotas máximas consolidadas
estão acima de 40%, enquanto a brasileira não alcança nem 30%”.
Este baixo intervalo progressivo – “que incide sobre os rendimen-
tos tributáveis, além de sobre cerca de metade dos sujeitos à tributa-
ção exclusiva, ambos vinculados mais diretamente às remunerações
dos trabalhadores” – segundo Gobetti e Orair (2016, p.18), torna
as alíquotas médias efetivas ainda menores, uma vez que partem de
patamares próximos de zero até 20,8% na última faixa, “alíquotas
relativamente baixas, quando comparadas com países da OCDE”
(FERNANDES, CAMPOLINA e SILVEIRA,2017, p. 173).
Fernandes, Campolina e Silveira (2017) constataram também
uma parcial correlação positiva entre o nível de desenvolvimento
social e seu amparo no IR (Imposto de Renda), isto é, o quanto a
receita oriunda de IR representa no Produto Interno Bruto (PIB)
nacional. Comparado aos países da OCDE, o Brasil apresenta re-
duzidíssimo nível de dependência do IR na composição do PIB: em
2013 – ano sobre o qual recaiu a análise dos autores – apenas 2,69%
do PIB brasileiro é oriundo de tributação do IR, bem abaixo da mé-
dia dos países da OCDE, que, no mesmo ano, foi de 8,06% (FER-
116 NANDES, CAMPOLINA e SILVEIRA, 2017, p. 297).
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 116 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Cumpre destacar que, de acordo com o Estudo da Carga Tribu-


tária no Brasil de 2016, o Imposto de Renda retido na fonte em 2015
e em 2016 corresponderam a, respectivamente, 3,5% e 3,63% do valor
total. No mesmo período, a média dos países da OCDE foi de 8,28% e
8,24%. Embora tenha havido alguma evolução no período, dentro do
cenário comparativo, nota-se que ainda há margem para sua expansão.
Essa expansão é importante, uma vez que, como observaram
Pinheiro, Waltenberg e Kerstenetzky (2017), em sua pesquisa, há
razoável progressividade sobre as fontes de renda tributáveis. E es-
tas fontes compõem majoritariamente as receitas oriundas do capi-
tal. Portanto, fixar uma alíquota máxima em valores baixos, limita
o próprio potencial progressivo do Imposto de Renda. Gobetti e
Orair (2016, p. 35) advertem, no entanto, que “o aumento da pro-
gressividade não pode depender apenas da estrutura de alíquotas
aplicadas aos salários e demais ‘rendimentos tributáveis”. Funda-
mental é ampliar a “base tributável”, o que inclui tributar rendas
atualmente isentas, como é o caso dos lucros e dividendos.
Em síntese, existe na lógica da tributação uma injustiça per-
sistente com o favorecimento tributário à renda do capital e a per-
petuidade de desigualdades, na medida em que incide sobre a renda
dos mais pobres. Outro ponto importante diz respeito ao tratamen-
to dado a diferentes fontes de renda. No caso brasileiro, a legislação
prevê, dentre outras hipóteses, a incidência do imposto sobre ren-
dimentos provenientes do trabalho e sobre rendimentos de capital
– e, dentro dos rendimentos de capital, sobre lucros e dividendos.
O tratamento dado a cada uma dessas fontes, no entanto, é diverso.
Sobre os rendimentos tributáveis provenientes do trabalho in-
cide uma alíquota progressiva em função da renda que varia entre
7,5% e 27,5%. Sobre os rendimentos de capital incidem alíquotas
regressivas no tempo, que se iniciam em 22,5% e podem alcançar até
15%. Nota-se que, se por um lado, a tributação sobre os rendimentos
do trabalho já apresenta algumas distorções que geram desigualda-
de, esse cenário se agrava de vez quando se leva em conta a baixa
tributação dos ganhos de capital.
Ao levantar as fontes que compõem o IRPF para o ano-calen-
dário de 2014, Lettieri (2017) constatou este tratamento diferencia- 117

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 117 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

do dado aos rendimentos do capital. Segundo o autor, em 2014 fo-


ram declarados rendimentos totais de R$ 2,40 trilhões. Deste total,
60% (ou R$ 1,437 trilhões) foram de rendimentos tributáveis, 31%
(ou R$ 737,17 bilhões), rendas isentas e não-tributáveis; e os outros
9% (ou R$ 225,45 bilhões) foram tributados exclusiva e definitiva-
mente nas fontes pagadoras.
Uma informação interessante recai sobre a composição dos
rendimentos isentos e não-tributáveis e os tributados exclusiva-
mente na fonte. Os principais componentes dos rendimentos isen-
tos e não-tributáveis apresentados por Lettieri (2017) são lucros e
dividendos recebidos pelo titular e pelos dependentes, rendimentos
de sócio/titular de microempresa (ME) ou de empresa de pequeno
porte (EPP), transferências patrimoniais – doações e herança, par-
cela isenta proveniente de aposentadoria de declarantes de 65 anos
ou mais, alienação de bens e direitos de pequeno valor e incorpora-
ção de reservas ao capital ou bonificações em ações.
Já as principais origens dos rendimentos tributados exclusi-
vamente na fonte referem-se ao 13º salário, a rendimentos de aplica-
ções financeiras, a ganho de capital na alienação de bens ou direitos,
a participação nos lucros ou resultados, a rendimentos recebidos
acumuladamente e a juros sobre capital próprio. Ora, como se nota,
exceto pelo 13º salário, todas as demais fontes de renda beneficiadas
pela isenção e não-tributação ou pela tributação exclusiva na fonte
advêm das rendas do capital.
Gobetti e Orair (2016) observam que esse viés tributário ten-
de a favorecer os mais ricos, uma vez que são estes os que mais
dependem de rendimentos provenientes do capital – em que se con-
centram os rendimentos isentos e não tributáveis e os de tributação
exclusiva na fonte. É importante destacar a composição dos ganhos
do capital. Segundo Harding (apud FERNANDES, CAMPOLINA
e SILVEIRA, 2017, p. 298), “tradicionalmente, os ganhos de capital
são divididos em três categorias: i) juros de depósitos e títulos; ii)
realização de ganhos a partir de propriedades reais ou ações; e iii)
lucros e dividendos”. Esse tipo de rendimento se concentra entre os
mais ricos. Os autores destacam ainda que a desigualdade da renda
118 do capital é muito maior do que a relacionada ao trabalho. Assim,
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 118 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Fernandes, Campolina e Silveira (2017, p. 299) trazem pesquisas de


outros autores que identificam, por exemplo que:

em 2010 nos EUA, o quintil superior da distribuição norte-


-americana auferia 90% das rendas de capital; o 1% mais rico
concentrava 70% desses ganhos. Para o Brasil, utilizando os
dados tributários disponibilizados pela Receita Federal em
conjunto com a Pesquisa Nacional por Amostragem de Do-
micílios (Pnad), o estudo de Gobetti e Orair aponta que, no
ano de 2013, o quintil mais rico abarcava 96,2% dos ganhos
de capital, enquanto os 10% e os 1% mais ricos detinham,
respectivamente, 91,3% e 67,9% deste quinhão.

Isso quer dizer que, mesmo dentro do grupo daqueles que de-
pendem da renda do capital, a concentração de renda é gritante. Ou
seja, concentra-se nos super-ricos. Assim, segundo Pinheiro, Wal-
tenberg e Kerstenetzky (2017), enquanto o centésimo mais rico da
população acumula 22% da renda, o milésimo concentra 10%.
Outra fonte de manifesta injustiça tributária no Imposto de Ren-
da brasileiro – talvez a maior – seja no que se refere à (não) tributação
sobre os lucros e dividendos ao nível pessoal. No Brasil, atualmente
o lucro é taxado via IRPJ (Imposto de Renda da Pessoa Jurídica) e
CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido). Após a incidência
do imposto, o lucro é distribuído entre os sócios, não incidindo mais
nenhum imposto sobre este lucro. Este favorecimento ao rendimento
do capital se deu na década de 1990, em meio à difusão do modelo
liberal econômico e à ideia de mundialização do capital.
Em atendimento a esse movimento de mundialização do capi-
tal, foi editada a Lei 9.249/1995 – para o ano-exercício de 1996 –,
que considerou isentos os rendimentos de lucros e dividendos, es-
tabelecendo o Brasil, ao lado da Estônia, como os dois únicos países
do mundo em que não se taxa lucros e dividendos. Antes desta lei,
após a distribuição dos lucros, os sócios eram taxados (linearmente)
em 15% sobre a parcela do lucro que recebiam. Tratava-se de uma
tributação ao nível pessoal, posterior à tributação ao nível empre-
sarial. Além disso, esta mesma lei introduziu no Brasil a figura dos
“juros sobre capital próprio” (JSCP), que se constitui numa maneira 119

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 119 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

de distribuir o lucro entre os acionistas, registrando essa operação


como despesa. Assim, este mecanismo constitui numa forma de di-
minuir a base de incidência tributária do lucro líquido das empresas.
Gobetti e Orair (2016) destacam que, desde antes da alteração
legislativa de 1995, a legislação brasileira já era benéfica aos recebe-
dores de dividendos, uma vez que, embora não integrassem a base de
cálculo do IRPF, eles eram tributados exclusivamente na fonte a uma
alíquota inferior àquela aplicada aos salários e aluguéis. A Lei 9.249,
portanto, ao isentar os dividendos – antes tributados a 15% – e ao
criar o JSCP, reduziu por dois canais a tributação do lucro. Essa regra
brasileira alçou o Brasil ao posto de país mais benéfico no que diz res-
peito à tributação do lucro. A despeito de ter sido usada como pretex-
to para atrair capital externo, sob a égide de mundialização do capital,

a literatura empírica também carece de resultados conclusi-


vos que demonstrem que a redução de carga tributária sobre
o capital – derivada da isenção dos dividendos ou da dedução
dos juros sobre capital próprio – obteve êxito em ampliar os
investimentos no país. Ao contrário, os investimentos no país
permaneceram estagnados por mais de uma década desde que
tais medidas tributárias de benefício aos detentores de capital
foram implementadas (GOBETTI e ORAIR, 2016, p. 14).

Como visto, a Lei 9.249, ao isentar os lucros e dividendos,


contribuiu para o aumento, ou pelo menos, para a manutenção das
desigualdades sociais no Brasil. Mas o problema das isenções não se
encerra por aí. Autores acima referidos observam que à medida que
a renda cresce, aumenta também o peso da isenção dos rendimentos,
seja em relação àqueles que recebem lucros e dividendos ou não.
Em grande medida, isto decorre do tratamento legislativo favorável
dado aos rendimentos do capital.
De acordo com Ruscheinsky (2008) na realidade encontra-se
vigente uma disjunção entre continuidade e descontinuidade das in-
justiças sociais, inclusive asseguradas pelas instituições. Igualmente a
frágil conexão entre o combate às desigualdades e a agenda dos di-
reitos constitucionais. Na complexidade brasileira parece fundamental
120 extrapolar a perspectiva econômica, para então acrescentar uma abor-

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 120 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

dagem também política e cultural. Neste sentido, se estabelece um cré-


dito para a compreensão da tragédia na realidade brasileira, onde diu-
turnamente se avaliza uma espantosa persistência das desigualdades.
A observação corrobora com os resultados obtidos por Pi-
nheiro, Waltenberg e Kerstenetzky (2017), segundo os quais, quan-
do se analisam todos os rendimentos, o IRPF apresenta um com-
portamento progressivo nas faixas iniciais de renda, tornando-se
cada vez menos progressiva, até que, no topo, converte-se em re-
gressivo. Fato é que a progressividade tributária atinge somente os
rendimentos do trabalho e em menos da metade dos tributados ex-
clusivamente na fonte, ambos vinculados mais diretamente às remu-
nerações dos trabalhadores e aos benefícios sociais. Por outro lado,
pouco mais da metade da renda do capital tem tributação exclusiva,
de forma linear (neutra) e é esta fonte de renda que concentra a
maior quantidade de isenções.
A quantidade de isenções reduz as alíquotas efetivas para ní-
veis abaixo dos vigentes nos países da OCDE. Segundo Gobetti e
Orair (2016), ama situação paradoxal que acaba acontecendo é que,
pelo fato de as isenções se concentrarem sobretudo nas rendas do
capital, as alíquotas efetivas crescem até determinada faixa de renda
e passam a decrescer no topo da distribuição. Este decréscimo ocor-
re sobretudo a partir do momento em que os rendimentos isentos
e sujeitos à tributação exclusiva se tornam majoritários na compo-
sição da renda dos declarantes – situação que se desenha quando a
renda advinda da propriedade do capital é a predominante. Destarte,

Enquanto a renda média dos 24,4 milhões de declarantes


não recebedores de lucros e dividendos foi de R$ 63,8 mil,
com um imposto devido de R$4,9 mil em média; no restrito
grupo dos 2,1 milhões de beneficiários de dividendos a ren-
da média mais que quadruplicara para R$ 274,3 mil e o im-
posto devido apenas triplicara para R$ 14,9 mil (GOBETTI
e ORAIR, 2016, p. 24).

Os autores concluem, a partir destas observações, que o prin-


cípio da equidade (tanto horizontal quanto vertical) é violado no
Brasil, seguindo a atual lógica de cobrança do imposto de renda. A 121

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 121 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

equidade horizontal é violada a partir do momento em que se veri-


fica que aqueles que têm sua renda composta prioritariamente por
lucros e dividendos possuem alíquotas médias efetivas mais baixas
do que os demais contribuintes com rendimentos semelhantes. “Por
exemplo, as médias de alíquotas dos recebedores de dividendos, que
concentram 60% das isenções, foram de no máximo 6,6% e muito
inferiores àquelas arcadas pelos não recebedores em faixas de ren-
da equivalentes, que chegam a 14,1%” (GOBETTI e ORAIR, 2016,
p. 33). Já a equidade vertical é violada quando se observa que as
alíquotas médias decrescem à medida que os rendimentos crescem
rumo ao topo da distribuição. Segundo estes autores, em média, o
meio milésimo mais rico paga menos impostos, proporcionalmente à
sua renda, do que alguns estratos da classe média brasileira.
Além disso, Piketty, Saez e Zucman (apud GOBETTI, 2015)
entendem que um dos motivos por que se deve tributar o capital,
acompanhando as alíquotas progressivas da renda do trabalho, é o
fato de existir uma fronteira não transparente entre as rendas do
trabalho e as rendas do capital. Em especial, anotam os autores para
aqueles que trabalham de forma autônoma ou têm a possibilidade
de escolher a forma como prestará serviço (seja como pessoa física
ou jurídica). Este fenômeno no Brasil é chamado de “pejotização1”.

O perfil do contribuinte do Imposto de Renda no Brasil

Ante o exposto até aqui, claro está o tratamento privilegiado


dado às rendas oriundas do capital. No entanto, seria apenas esse
grupo de pessoas privilegiado no que diz respeito à incidência do
1 Diz Silva Junior (2017, p. 11) A exigência, por parte dos empregadores, para
que os trabalhadores constituam pessoas jurídicas para a prestação de serviços
é conhecida como pejotização. Esta prática, segundo o autor, é considerada uma
fraude à legislação trabalhista, previdenciária e tributária, cabendo, quando da
sua constatação, haver a desconsideração da pessoa jurídica e a configuração do
vínculo empregatício do trabalhador com o tomador, com fulcro no princípio da
primazia da realidade. ... a edição de uma Lei da Pejotização, em que o princípio
da proteção temperada ou mitigada pudesse ser aplicada. A pejotização é uma
realidade cada vez mais presente e merece uma regulamentação específica do or-
122 denamento jurídico vigente, que discorre um interessante debate sobre o tema,
valendo se da clareza e didática que lhe são peculiares.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 122 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

IRPF no Brasil? Com a finalidade de responder a esta pergunta,


Lettieri (2017) analisa as declarações do ano-calendário de 2014 e
traça um perfil dos contribuintes do imposto de renda. Em seu es-
tudo, estratifica os dados a partir do gênero e Região/Estados dos
contribuintes a fim de verificar eventual tratamento privilegiado.
Ao analisar os dados por gênero, o autor observou que 58%
dos declarantes são homens e 42% são mulheres. Os homens (58%
do total de declarantes) detêm 64% dos rendimentos totais, ao passo
que as mulheres (42% do total de declarantes) concentram os outros
36% de renda. Ou seja, a renda é ligeiramente concentrada nos ho-
mens. Quando se analisa o perfil da renda de acordo com o gênero
do declarante, Lettieri (2017) apresenta dados que atestam a per-
cepção de que a desigualdade de gênero, no que diz respeito à renda,
é real. E que esta estrutura de desigualdade também é potencializa-
da pela forma como está estruturado o sistema tributário nacional.
O autor observou que o rendimento médio anual declarado por mu-
lheres equivale a 79% do rendimento médio declarado por homens.
Mulheres, de fato, em média, têm uma renda menor do que homens.
Embora as mulheres tenham rendimento médio menor do que
os homens, 65% desta renda é composta por rendimentos tributáveis.
Quando os declarantes são homens, todavia, a porcentagem de ren-
dimentos tributáveis sobre o total de rendimentos recebidos cai para
57%. Ainda sobre os rendimentos, tem-se que os tributáveis recebidos
por homens são 1,5 vezes maiores do que os recebidos por mulheres.
Quando se trata de rendimentos isentos e tributados exclusivamente
na fonte, os homens recebem 2,2 vezes mais do que as mulheres.
Esses dados corroboram com os resultados encontrados por
Pinheiro, Waltenberg e Kerstenetzky (2017), que observam uma pre-
sença feminina menor no extrato dos 5% mais ricos, uma vez que é
nesse extrato que se concentram os rendimentos de capital, e é ma-
joritariamente sobre a renda do capital que recaem os rendimentos
isentos e sujeitos a tributação exclusiva na fonte. Outro recorte feito
por Lettieri (2017) em sua pesquisa foi a partir de Regiões/Estados.
E, outra vez, os dados tributários “confirmam o grau de desigualdade
regional existente no Brasil”. Assim, o Distrito Federal foi, em 2014,
a unidade da Federação responsável pelo maior rendimento médio, 123

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 123 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

enquanto, o Maranhão foi o Estado que apresentou o menor rendi-


mento médio (LETTIERI, 2017, p. 125). Já quanto ao tratamento
dado à renda, o Estado de São Paulo é o que possui a menor propor-
ção de rendimentos tributáveis (53%), seguido por Paraná (57%), Rio
Grande do Sul (59%), Santa Catarina (59%), Rio de Janeiro (60%) e
Minas Gerais (62%). Por outro lado, na lista dos Estados cuja propor-
ção de rendimentos tributáveis é maior estão Amapá (84%), Roraima
(81%), Maranhão (77%), Pará (76%) e Amazonas (75%).
A partir da pesquisa de Lettieri (2017), observa-se que, quando
se agrupam estes Estados por Região, os Estados do Sudeste e do Sul
são aqueles em que há menor proporção de rendimentos tributáveis.
Na outra ponta estão os Estados da Região Norte, que concentram as
maiores proporções de rendimentos tributáveis comparadas à renda
total declarada. Em seu estudo, Pinheiro, Waltenberg e Kerstenetzky
(2017) fazem um recorte mais específico: a partir das declarações do
IRPF referentes ao ano-base de 2013, analisam somente o extrato
do vigésimo mais rico da população. Assim, traçam o perfil dos de-
clarantes dos mais altos rendimentos do Brasil, a partir da ocupação
principal, Estado/Região de residência, sexo e faixa etária.
Quanto à ocupação principal, os autores observaram que os
dirigentes de empresas, dirigentes ou administradores de partidos
políticos, dirigentes de organizações patronais e indivíduos que
exercem atividade de caráter personalíssimo (como atletas, cenó-
grafos, decoradores, apresentadores e modelos) são os que têm os
maiores rendimentos médios, os maiores valores de rendimentos
isentos e não tributáveis e as menores alíquotas efetivas e médias
efetivas (PINHEIRO, WALTENBERG e KERSTENETZKY,2017,
p. 280). Quanto ao Estado, tem-se que São Paulo foi o Estado com
o maior número de declarantes inseridos no vigésimo superior de
rendimentos. O Mato Grosso é o Estado em que se concentram os
contribuintes com menor alíquota média efetiva. Por outro lado, o
Amapá é o Estado que possui a maior alíquota efetiva média.
Ao se agrupar os Estados por Regiões, observa-se que as re-
giões Sudeste e Sul possuem rendimentos mais altos e alíquotas efe-
tivas mais baixas. O que já demonstra uma desigualdade. Já Norte
124 e Nordeste possuem rendimentos mais baixos e alíquotas efetivas
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 124 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

mais altas, inversamente proporcional ao Sul e Sudeste. Assim, resta


claro uma desigualdade geográfica. Esta última também apresenta-
da por Lettieri (2017), quando da análise das declarações de renda
referentes ao ano-calendário de 2014, a qual, permanece também
na pesquisa feita por Pinheiro, Waltenberg e Kerstenetzky (2017)
referentes ao ano-calendário do ano anterior.
Onde há os menores rendimentos médios, concentram-se as
alíquotas efetivas e as maiores proporções de rendimentos tribu-
táveis. O inverso também é verdadeiro, onde há os maiores rendi-
mentos médios, concentram-se as menores alíquotas efetivas e as
menores proporções de rendimentos tributáveis, indicando uma dis-
tribuição desigual de renda a nível regional. Em especial, no que diz
respeito à origem do rendimento.
Pinheiro, Waltenberg e Kerstenetzky (2017) observaram que
a idade dos declarantes não constitui um fator relevante de desi-
gualdade na aferição de rendimento médio ou alíquota média efeti-
va. Os autores destacam que, embora as alíquotas pagas por homens
e mulheres sejam parecidas, o rendimento médio masculino é apro-
ximadamente 20% maior que o feminino. Além disso, a presença
feminina representa menos da metade do total de declarantes no
extrato dos 5% mais abastados.
A matriz tributária brasileira poderia se assentar sobre o prin-
cípio da capacidade contributiva. Entretanto, este princípio não coa-
duna com o atual sistema tributário brasileiro que, alicerçado na
incidência de impostos indiretos, tem um efeito regressivo. Mesmo
os impostos que têm a capacidade de serem progressivos, como o
é por excelência o Imposto de Renda, atingem parcialmente esta
finalidade. Sobretudo nos extratos mais ricos da sociedade, em que
se observa efeito regressivo.
Observa-se que a limitação da progressividade decorre da baixa
alíquota máxima do IRPF e, sobretudo, do favorecimento tributário
dado à renda do capital. Este favorecimento foi produto da corrente da
tributação ótima, que ganhou força a partir da década de 1970, a qual
defendia a intervenção mínima do Estado na tributação, atribuindo ao
lado dos gastos a função de distribuição de renda. A pesquisa de Fer-
nandes, Campolina e Silveira (2017) avançou, ao verificar os efeitos da 125

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 125 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

tributação de lucros e dividendos sobre a carga tributária total. Para


isto, os autores, a partir dos cenários simulados, segmentaram a renda
em inicial, disponível, pós-tributação e final.
A renda disponível corresponde à aplicação da tributação
direta (IRPF, INSS, IPVA, IPTU, ITR, ISS sobre serviço pres-
tado e outras deduções – sobre a renda inicial). A renda pós-tri-
butação é estimada ao se aplicar os impostos indiretos – ICMS,
IPI, PIS, Cofins, Cide e ISS. Por fim, a renda final é obtida ao se
imputar os gastos com políticas públicas – traduzidas com gastos
sociais em Saúde e Educação. O gráfico abaixo demonstra como a
renda pode influenciar no índice de GINI, que é o índice utilizado
para aferir a desigualdade:

Tabela 1 - Efeito total da tributação sobre a distribuição da renda, 2008.


Etapa IRPF Original I II
Gini Modificação Gini Modificação Gini Modificação
Renda
0,7022 - 0,7022 - 0,7022 -
inicial
Renda
disponí- 0,6857 -2,35% 0,6816 -2,94% 0,6781 -3,43%
vel
Renda
pós-tri- 0,7049 2,80% 0,7003 2,74% 0,6964 2,70%
butação
Renda
0,6421 -8,90% 0,6374 -8,98% 0,6334 -9,04%
final
Redução
total no -8,55% -9,23% 9,79%
Gini
Fonte: Fernandes, Campolina e Silveira (2017)

De posse dos resultados da pesquisa de Fernandes, Campolina


e Silveira (2017), é interessante observar o efeito redutor da con-
centração de renda quando da aplicação dos impostos diretos. Por
outro lado, fica claro o efeito regressivo dos impostos indiretos, uma
vez que a renda pós-tributação eleva a concentração a um patamar
126 pouco superior ao atingido na renda inicial. Isto demonstra o quão
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 126 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

nefasto pode ser privilegiar impostos indiretos em detrimento dos


diretos, quando se pretende promover igualdade social.
Por fim, a renda disponível pós-tributação revela a importân-
cia dos gastos sociais na redução da concentração de renda. Esse
padrão de comportamento se mantém tanto na situação tributária
real do país quanto nos cenários simulados. Mas o efeito redutor
do índice de Gini na renda final é potencializada nas hipóteses de
tributação dos lucros e dividendos, sobretudo quando estes são sub-
metidos a alíquotas progressivas.
A Lei 9.249/95 representa o corolário desta corrente e foi res-
ponsável por isentar lucros e dividendos e por criar os juros sobre
capital próprio. Esses instrumentos foram responsáveis por limitar
a potencial progressividade do Imposto de Renda no Brasil. Assim,
se por um lado, a enorme desigualdade social e concentração de ren-
da elevada no país constituíam-se elas mesmas em limites à pro-
gressividade tributária; por outro, o próprio ordenamento jurídico
limita a redução da desigualdade e da concentração de renda. Pare-
ce assim, que estamos diante de um sistema que se retroalimenta.
Além disso, observaram-se desigualdades entre os perfis dos con-
tribuintes do IRPF. Constatou-se uma tendência de concentração
de riqueza entre os homens, em detrimento das mulheres; entre as
regiões Sul e Sudeste, em detrimento das regiões Norte e Nordes-
te; e entre os Estados mais ricos da Federação, em detrimento dos
mais pobres. Este mesmo padrão de comportamento permaneceu
no extrato mais elevado de renda, em que predominam as rendas
de capital, em detrimento das rendas do trabalho. Neste extrato, o
Imposto de Renda passa a ser regressivo, em função do tratamento
privilegiado dado aos rendimentos de capital (como as isenções).
É desejável que haja uma mudança de paradigma, a fim de
que o Estado brasileiro adote uma política de fato progressiva no
que diz respeito ao Imposto de Renda. Pois, como se observou nes-
te estudo, é possível discutir distribuição de renda e desigualda-
de social também na ponta da arrecadação. Pinheiro, Waltenberg
e Kerstenetzky (2017, p. 288) apontam como uma das causas do
efeito redutor da progressividade a “alíquota proporcional fixa de
15% incidente sobre rendimentos de ganho de capital de bens e 127

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 127 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

direitos”. O fato de, em 2017, as alíquotas passarem a ser progres-


sivas, pelo advento da Lei 13.259/2016, abriu a possibilidade de
que a tributação venha se tornar mais justa no topo. Trata-se de
um interessante precedente legal.
Este precedente pode inspirar os parlamentares para que
deem prosseguimento à tramitação de Projetos de Lei, já existen-
tes, que revisem a isenção dada aos lucros e dividendos e extirpem
do ordenamento jurídico pátrio a figura dos lucros sobre capital
próprio, ambos previstos na Lei 9.249/95. Além disso, é desejável
uma mudança na matriz tributária brasileira, no sentido de focar
mais nos impostos diretos do que nos indiretos. Toda esta discus-
são corrobora com a visão de Alexandre (2017) que, embora afir-
me ter o Imposto de Renda uma finalidade precipuamente fiscal,
ao instituir alíquotas progressivas, acaba por gerar efeitos sociais,
em especial de distribuição de renda.

Quem ganha “pouco”, nada paga (isenção); quem paga “mui-


to” contribui sob uma alíquota de 27,5%. Em contrapartida,
parte da arrecadação é utilizada para prestar serviços públi-
cos e, em regra, quem usa tais serviços (educação e saúde,
por exemplo) são as pessoas isentas, uma vez que as que
possuem maior renda normalmente têm planos privados
de saúde e pagam por educação particular. Dessa forma, o
IR acaba tendo uma função social extrafiscal embutida: re-
distribuir renda (alguns, mais românticos, chamam-no, por
isso, de imposto Robin Hood – tira dos mais ricos para dar
aos mais pobres) (ALEXANDRE, 2017, p. 43).

Como aponta Gobetti (2017), deve-se buscar por uma polí-


tica tributária economicamente eficiente, politicamente factível e
socialmente aceitável. Ademais, esta política tributária deve ser
sobretudo justa. Entende-se por justiça, sobretudo o cumprimento
de princípios defendidos na Constituição brasileira. Assim, se por
um lado, a Carta Magna defende a dignidade da pessoa humana
como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art.
3º), que se materializa em uma série de direitos sociais previstos
no texto da Carta Magna; por outro lado, o financiamento destes
128
direitos – cuja receita advém majoritariamente da arrecadação de
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 128 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

tributos – deve respeitar, sobretudo, os princípios da capacidade


contributiva e da justiça fiscal.
A existência do Estado Moderno se justifica pelo atendi-
mento ou negociação de interesses divergentes, firmado tacita-
mente no contrato social. Assim, ao não observar os princípios da
capacidade contributiva e da justiça fiscal, quando da aplicação do
Imposto de Renda, o Estado brasileiro não apenas incorre em des-
respeito a princípios defendidos na Carta Magna brasileira, como
também fere um dos fundamentos democráticos de existência do
Estado contemporâneo.

129

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 129 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Referências
ALEXANDRE, R. Direito tributário. Salvador: JusPodivm, 2017.
BRASIL. RECEITA FEDERAL. Grandes números IRPF. Ano ca-
lendário 2017. Brasília, 2019. Disponível em: https://receita.econo-
mia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/
estudos-e-estatisticas/11-08-2014-grandes-numeros-dirpf/relatorio-
-gn-ac-2017.pdf
FERNANDES, R. C.; CAMPOLINA, B.; SILVEIRA, F. G. Impacto
distributivo do imposto de renda no Brasil. In: AFONSO, J. R. et Al.
(Orgs.). Tributação e Desigualdade. Belo Horizonte: Letramento;
Casa do Direito; Rio de Janeiro: FGV Direito, 2017. Pp. 293-337.
GOBETTI, S. W. Tributação da renda do capital e progressividade: o
que fazer?In: AFONSO, J. R. et Al. (Orgs.). Tributação e Desigualda-
de. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito; Rio de Janeiro: FGV
Direito, 2017.Pp. 705-743.
GOBETTI. S. W.; ORAIR, R. O. Progressividade tributária: A agenda
negligenciada, Texto para Discussão, No. 2190, IPEA, Brasília, 2016.
GAIGER, L. I. Da Informalidade à Economia Popular: distinguindo
realidades e conectando abordagens. Ciências Sociais Unisinos, v. 55,
n. 1, pp. 97-110, 2019.
HARADA, K. Direito Financeiro e Tributário. São Paulo: Atlas, 2017.
LEONETTI, C. A. O imposto sobre a renda das pessoas físicas
como instrumento de justiça social no Brasil atual. [Tese de Dou-
torado]. Florianópolis: UFSC, 2002.
LETTIERI, M. Imposto de Renda das pessoas físicas no Brasil: a de-
sigualdade escancarada. In: AFONSO, J. R. et Al. (Orgs.). Tributação
e Desigualdade. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito; Rio de
Janeiro: FGV Direito, 2017. Pp. 107-157.
LUKIC, M. R. Tributação e equidade social: fundamentos constitucio-
nais e precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF). In: AFONSO, J.
R. et Al. (Orgs.). Tributação e Desigualdade. Belo Horizonte: Letra-
mento; Casa do Direito; Rio de Janeiro: FGV Direito, 2017. Pp. 529-543.
NABAIS, J. C. Por um Estado fiscal suportável: estudos de Direito
130 Fiscal. Coimbra: Edições Almedina. 2005.

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 130 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

PINHEIRO, H. H.; WALTENBERG, F.; KERSTENETZKY, C. L. Im-


posto sobre a renda das pessoas físicas: oportunidades para tributar
os rendimentos mais altos no Brasil. In: AFONSO, J. R. et Al. (Orgs.).
Tributação e Desigualdade. Belo Horizonte: Letramento; Casa do
Direito; Rio de Janeiro: FGV Direito, 2017. Pp. 261-291.
RUSCHEINSKY, A. Desigualdades persistentes, direitos e democracia
contemporânea. Ciências Sociais Unisinos, v. 44, n. 1, pp. 49-57, 2008.
SILVA JUNIOR, L. P. Pejotização: O Trabalhador Como Pessoa
Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2017.

131

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 131 06/01/2021 10:44


Livro Aloisio-V4.indd 132 06/01/2021 10:44
Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Sociologia da Educação: contribuições dos clássicos


para compreensão da realidade contemporânea

Maria Denilva de Lima Barbosa

A Sociologia surgiu ao longo do século XIX, em meio a trans-


formações econômicas, políticas e culturais que suscitaram inova-
ções nas relações sociais e uma nova agenda de conflitos. As mu-
danças foram provocadas, em especial, pelo impacto da Revolução
Industrial e da Revolução Francesa. No campo das lutas sociais a
efervescência ultrapassava a principal questão.
Os desdobramentos das relações sociais sob o capitalismo
como modo de produzir ao tornar-se predominante na Europa oci-
dental de alguma forma desestruturou ou inovou a vida cotidiana.
A velocidade dos acontecimentos políticos com a gênese da Revolu-
ção Liberal esteve associada em profundidade variada às inovações
econômicas e tecnológicas. Estas mudanças tanto se referiam aos
fundamentos da vida material, à urbanização, como influenciou as
crenças, as práticas sociais, os princípios morais, religiosos, jurídicos
e filosóficos (QUINTANEIRO et Al., 2003).
As relações cotidianas já não aconteciam de forma linear, nem
tão pouco traduziam uma única racionalidade coerente. E, apesar
das transformações sociais cabe destacar que, essas, não acontece-
ram subitamente, podendo quase serem imperceptíveis para aque-
les que estão imersos nos transtornos. Aos observadores atentos e
perscrutando os fenômenos em curso os pensadores da época, co-
meçaram a tomar ciência de que novos conceitos e mecanismos de
interpretação se faziam imperiosos para distinguir os novos tempos
e novas relações sociais.
Nesse contexto, os modelos explicativos, antes balizados pelas
verdades sagradas ou metafísicas, passaram a perder a validade e
não contribuir para traduzir a complexidade da sociedade moder-
na. De alguma forma o pensamento liberal já vinha inovando no
campo da filosofia política, tentando compreender o significado do 133

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 133 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

poder de Estado e também a gênese de direitos civis. A Sociologia


desponta com um outro rigor de reflexão, ambicionando o patamar
de construção científica, assim intui uma tentativa de explicar ou in-
terpretar o “caos”. Este se apresentava com frequência ou até certo
ponto assustador devido aos novos conflitos que pareciam abalar os
fundamentos da sociedade. Para Castro e Dias (1985, p. 15),

A sociologia do século XIX marca incontestavelmente o mo-


mento da reflexão dos homens sobre eles mesmos, aquele onde
o social como tal é posto em questão, com seu caráter equí-
voco, ora enquanto relação elementar entre os indivíduos, ora
enquanto entidade global. Ela também exprime uma intenção
não radicalmente nova mais original por seu radicalismo e de
um conhecimento científico deveria dar aos homens o controle
de sua sociedade e de sua história assim como a física e a quími-
ca lhes possibilitaram o controle das forças naturais.

Paralelo ao nascimento da Sociologia como ciência e discipli-


na universitária, surge a Sociologia da Educação, propondo, de acor-
do com Viola et Al. (2014, p. 7), as questões que orientam seu legado
histórico e suas preocupações teóricas até a contemporaneidade:

[...] são os seres humanos que criam, preservam e modificam


a sociedade em que vivem e, em decorrência, influenciam
as formas de viver das futuras gerações. As sociedades
sobrevivem a seus criadores, de modo que cada ser humano
é, ao mesmo tempo, produto e produtor da sociedade em que
vive e a deixa de legado para seus descendentes.

Até então, consideravam-se como suficiente e dominante a Edu-


cação familiar, gremial e religiosa. A formação oferecida nos centros
especializados estava limitada a poucas disciplinas – Medicina, Direi-
to, Gramática – e era uma atividade claramente minoritária. As ne-
cessidades tecnológicas advindas em razão das mudanças nas forças
produtivas, bem como as exigências liberais de entender a educação
e o conhecimento como condição da igualdade entre todos os cida-
dãos determinaram a institucionalização, a extensão e a profundidade
134 alcançada pelo aparato escolar. As diferentes respostas as “preocupa-

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 134 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

ções” postas na época, orientaram e orientam as múltiplas concepções


dos estudiosos e teóricos da Sociologia da Educação até os dias atuais.
Embora, com grandes e reconhecidas contribuições, Apple
et Al. (2013), chama atenção para o fato que a Sociologia da Edu-
cação na atualidade é um campo de trabalho variado, confuso, di-
nâmico, um pouco ilusório e invariavelmente conflituoso, em razão
de ser produzida por um grupo diferente e variado de pesquisado-
res, escritores e professores altamente influenciados e dependentes
do mercado. “Não obstante, a Sociologia da Educação continua a
ser marcada por fissuras teóricas, descontinuidades e disputas de
paradigma às vezes amargas” (APPLE et Al., 2013, p. 17). Nesse
sentido, os autores afirmam que a Sociologia da Educação é uma
construção e resulta de lutas ideológicas muito práticas e é marcada
por diferenças em poder e recursos.
Este estudo pretende, portanto, apresentar uma breve discussão
sobre as contribuições dos clássicos da sociologia (Émile Durkheim,
Karl Marx e Max Weber), no âmbito da educação e sua influência
nas concepções da Sociologia nos anos subsequentes, bem como em
alguns estudos desenvolvidos por importantes sociólogos brasileiros.
De acordo com Machado e Albuquerque (2014), historicamente
no Brasil, a Sociologia da Educação teve como pretensão lidar com
as tensões existentes entre educação-poder-transformação, buscando
refletir sobre as diferentes dimensões e desdobramentos que a Edu-
cação propõe: os dilemas éticos, políticos e epistêmicos para além da
pretensa possibilidade de oportunizar a ascensão social.

Émile Durkheim e a Educação (1858-1917)

Émile Durkheim1 foi o precursor nas contribuições da Sociologia


da Educação. O sociólogo francês defendia a Educação como um meio
1 Émile Durkheim foi um dos pensadores que mais contribuiu para a consolidação da So-
ciologia como ciência empírica e para sua instauração no meio acadêmico, tornando-se
o primeiro professor universitário dessa disciplina. Pesquisador metódico e criativo,
deixou um considerável número de herdeiros intelectuais. O sociólogo francês viveu
numa Europa conturbada por guerras e em vias de modernização, e sua produção reflete
a tensão entre valores e instituições que estavam sendo corroídos e formas emergentes cujo 135
perfil ainda não se encontrava totalmente configurado (QUINTANEIRO et Al., 2003).
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 135 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

de preparar cada indivíduo, cada grupo e classe para viver em socieda-


de. Para esse sociólogo, em cada período histórico existe um modelo,
uma forma específica de Educação, que deverá estar apta para construir
o universo moral próprio de cada ator social. Cada ser humano apren-
derá de forma individual, diretamente ligada ao seu tempo e seu lugar
social, a se socializar, desenvolvendo um padrão moral adequado ao lu-
gar que ocupa e ocupará, na divisão do trabalho social (DTS).
Esta divisão do trabalho social não só regula o lugar de cada
indivíduo e de cada grupo, como também permite a construção de
diferentes solidariedades. A ação educativa é a forma de as gerações
adultas prepararem as novas gerações para viver em sociedade de
modo a, conhecendo suas leis e seus códigos, estarem aptas para ne-
las viver conforme os princípios predeterminados pela organização
política e pelo meio moral de cada educando. Educar, então, seria,
para o pensador francês, a forma de moldar as novas gerações para
viver no mundo adulto e reproduzi-lo (VIOLA e PIRES, 2014).
Nesse sentido, o modelo ofereceria as condições para que a
sociedade se perpetuasse desde que a Educação se posicionasse de
forma que a ação exercida pelas gerações adultas sobre gerações
que não se encontravam ainda preparadas para a vida social, tivesse
dois objetivos: o primeiro - uniformizar, visando a integração ao
contexto social, transmitindo valores e atitudes comuns; e o segun-
do - diferenciar, no que se refere a divisão social do trabalho.
Silva (1995), apresenta como desdobramento dessa corrente
o funcionamento da educação durante a guerra fria, utilizada como
um recurso para a competição tecnológica, econômica e militar. As-
sim, em função deste contexto histórico, desenvolveu-se, entre 1972 e
1978, a teoria do capital humano (Schultz, Decker, Denison). Segun-
do esta teoria a educação é considerada como uma forma de investi-
mento, onde o capital humano é representado por recursos humanos.
Desse modo a educação produz o conhecimento técnico e aumenta a
produtividade, exigência do momento econômico da época. Essa teo-
ria enfatiza a função técnica da educação considerando as habilidades
como meio de ascensão na escala social, os trabalhadores são detento-
res do capital quando têm habilidades e conhecimentos.
136 Uma das grandes críticas em relação a essa linha é que a edu-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 136 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

cação se torna a possibilidade de mobilidade social, porém pela me-


ritocracia, onde os mais preparados galgam um maior status. A me-
ritocracia pode ser motivadora para alguns e motivo de frustração
para outros. O acirramento das disputas e desigualdades quando o
“mérito” é direcionado, pré-determinado pelo estigma social para
aqueles de classes mais favorecidas.

Karl Heinrich Marx e a Educação (1818-1883)

Karl Marx2 nunca escreveu expressamente sobre ensino e


educação, entretanto suas referências sobre estes temas aparecem3
ao longo de toda a sua obra, tanto nos escritos de sua juventude
quanto nos de sua maturidade.
Para Marx o ato educativo pode representar tanto a constru-
ção da alienação social, como a possibilidade da formação de uma
consciência emancipadora. Ao contrário de Durkheim, que se posi-
cionava pela manutenção da ordem social, o teórico alemão foi um
crítico da sociedade capitalista de seu tempo e das desigualdades
por ela produzida.
Marx pautava-se nos princípios de que a sociedade é regida
pelos fatores econômicos no que tange a estrutura social e as mu-
danças sociais. Para ele, os modos de produção determinam os tipos
de relações sociais que serão estabelecidas, as formas de condução
das políticas públicas, assim como as ideias em que as classes sociais
sempre estão em luta, já que as classes dominantes querem impor a
sua ideologia.
No sistema educacional inglês do século XIX, a educação era
uma das principais formas de consolidar o pensamento (ideologia)

2 Karl Marx foi um filósofo, sociólogo, historiador, economista, jornalista e revolu-


cionário socialista. Nascido na Prússia, passou grande parte de sua vida em Paris e em
Londres. “Herdeiro do ideário iluminista, Marx acreditava que a razão era não só um
instrumento de apreensão da realidade, mas, também, de construção de uma socieda-
de mais justa, capaz de possibilitar a realização de todo o potencial de perfectibilida-
de existente nos seres humanos. As experiências do desenvolvimento tecnológico e as
revoluções políticas, que tornaram o Setecentos uma época única, inspiraram sua crença
no progresso em direção a um reino de liberdade” (QUINTANEIRO et Al., 2003). 137
3 Marx aborda os temas ensino e educação da perspectiva da classe operária.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 137 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

dominante, produzindo entre os educandos uma falsa consciência


de si mesmos e, em decorrência, aceitando a ideia de que só existe
uma forma de viver e de pensar. O aparato escolar definido pelo
modo de produção capitalista se configurou ideologicamente não só
em função dos componentes explicitamente ideológicos que com-
porta, mas também porque criou e consolidou um marco de cisão
onde a alienação da força de trabalho tornou-se um fato natural.
Nesse sentido, a qualificação da força de trabalho concretizava-se
quando o indivíduo reproduzia o sistema dominante, tanto a nível
ideológico quanto técnico e produtivo, integrando-se e ajustando-se
ao sistema, bem como alcançando o aproveitamento máximo, sem
desperdiçar sua força de trabalho.
Neste contexto, a educação passou a ser vista por Marx como
instrumento para formação e mudança da sociedade, através de uma
educação política dos princípios comunistas, combinando trabalho
produtivo e educação mental dentro da escola. Para ele, a clareza
sobre os pontos que seriam necessários pressionar promoveria a
transformação, trazendo não só a emancipação social, mas também
a emancipação humana.
Para Marx a educação deveria abranger três dimensões fun-
damentais para a vida humana: 1) A educação da mente - com os
conteúdos da formação e educação intelectual; 2) A educação do cor-
po - a educação física; e 3) A educação tecnológica - com os saberes
práticos voltados para a formação do trabalho industrial; que reco-
lhe os princípios gerais e de caráter científico de todo o processo de
produção e, ao mesmo tempo, inicia as crianças e os adolescentes no
manejo de ferramentas elementares dos diversos ramos industriais.
Com esta formação educativa, os trabalhadores deixariam de
estar alienados de si mesmos, podendo formar uma consciência de
classe e pensar uma forma de organização social. Ao mesmo tempo,
Marx propunha que a educação deveria ter caráter universal e a es-
colarização atingir a todas as classes sociais e a todos os indivíduos.
Em O Capital, Marx expõe:

[...] o sistema de fabrico tem como primeiro objetivo fazer


138 germinar a educação do futuro, que relativamente a todas

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 138 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

as crianças acima de certa idade interligará o trabalho pro-


dutivo com a instrução e a ginástica, não só como forma de
aumentar a produção social, mas também como único e ex-
clusivo processo de formar homens completos (1982, p. 508).

Assim, a escolarização deveria construir o ser humano inte-


gral sem discriminação de classe, de modo a colocar à disposição dos
trabalhadores o conhecimento que a humanidade já havia acumulado
até aquele período histórico, que serviria de base para a transforma-
ção social desde que a educação contribuísse para o desmascaramen-
to das relações de dominação e exploração próprias do capitalismo,
tornando cada indivíduo consciente da realidade na qual está inseri-
do (MACHADO, ALBUQUERQUE e VIOLA, 2014).
A teoria de Marx, ao longo das últimas décadas, gerou diversas
interpretações culminando com as teorias denominadas de neomar-
xistas. Entre os primeiros, destaca-se a presença de Antônio Gramsci,
que introduziu uma série importante de novos fatores e analisa pro-
fundamente o tema da educação com relação a um problema sempre
presente, por assim dizer a hegemonia do proletariado.
De acordo com Gramsci (1891-1937), para se pensar as trans-
formações na sociedade ocidental com a ampliação do Estado há que
se reorientar o modo de compreender a estrutura de sociedade em
Marx. Assim, ele vai propor que a superestrutura tem uma certa
autonomia em relação à infraestrutura. O Estado, como parte da
superestrutura é dotado de aparelhos (governo, judiciário e admi-
nistração pública), que tanto correspondem a negociação quanto de
coerção. Os aparelhos repressivos (polícia, prisões, forças armadas)
se conjugam com a convivência com outros aparelhos de produção
ideológica na sociedade (igrejas, escolas, família). Os quais tendem a
consolidar os ideais dominantes por meios aparentemente não coer-
citivos, mas por meio da hegemonia.
Para Gramsci (2006) o domínio de uma classe não é neces-
sariamente consequência das relações econômicas, assim as classes
dominantes só terão a força para controlar o poder se tiverem he-
gemonia ideológica, respaldo intelectual e controle dos meios de
difusão. A hegemonia está sob a base constituída pela educação, já 139

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 139 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

que é pela “elevação cultural” dos trabalhadores que se estabelecerá


o alicerce necessário a consciência de classe e a construção da lide-
rança proletária sob as demais, e não por meio coercitivo, mas por
consenso, por apreensão dos valores de um grupo como coletivos.
Gramsci (2006) tratou a educação de forma ampliada, onde a
formação do sujeito não era exclusiva da escola. Pautava uma escola
unitária, de alcance para além das amarras das classes sociais, mas
por um grande trabalho de ampliação cultural que se desenvolveria
em diferentes espaços, sob ação dos intelectuais, vistos como sujei-
tos capazes de exercer uma ação organizadora na sociedade.
Pierre Bourdieu (2010), revisa os conceitos de Gramsci e
aponta que não é possível uma escola universal capaz de contribuir
para a formação da consciência política das classes trabalhadoras.
Para ele o modelo educativo europeu configurava-se como uma es-
trutura que reproduzia, por meio do sistema de ensino, o modelo
social dominante do período histórico. Ou seja, o modelo de ensi-
no reforça a desigualdade existente entre as classes sociais, fazendo
com que a dominação de classe se reproduzisse de forma contínua.
Ao problematizar os limites de transformação social através
da escola, Bourdieu recolocou em discussão o pensamento de Émile
Durkheim, mas ao contrário dele, Bourdieu observou que a imposi-
ção do conhecimento formal, feita através dos currículos escolares
pela cultura dominante sobre as demais culturas, é um ato de vio-
lência simbólica para impor a reprodução das relações sociais de
dominação, das formas de poder e das normas de funcionamento da
sociedade (VIOLA e PIRES, 2014).
Bourdieu e Passeron nascido na obra “A reprodução” (1970)
afirmam que todos os indivíduos herdam um capital cultural, espe-
cialmente da família, este facilita ou pode até ser obstáculo ao desem-
penho escolar. Os autores pleiteiam que o sistema educacional possui
um certo grau de autonomia relativa em face de outras instituições e
das formas de estratificação social. Por isso a conexão com a estratifi-
cação social por certo não pode ser vista como determinista.
Há também a meritocracia para transpor fronteiras sendo que
o desempenho escolar não está relacionado meramente às origens
140 do espaço social. Particularmente, essa perspectiva de autonomia é
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 140 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

inovadora, na medida em que Bourdieu postula que a escola também


molda comportamentos, reproduz hábitos de classe, além de mani-
pular informações se apresenta sob o manto da aparência de neutra-
lidade. Assim o espaço escolar também pratica uma violência sim-
bólica explícita e implícita, razão pela qual está predominantemente
a serviço dos interesses das elites. “O capital cultural torna-se uma
moeda de troca, a classe média quer adquiri-la e a dominante a tem
para manter o seu status” (GOMES, 2005).

Max Webber e a Educação (1864-1920)

Para Max Weber4 a sociedade resulta das interações entre os


indivíduos e a sociologia, que permitem, em razão do rigor de seus
métodos de pesquisa, a compreensão da ação social como uma ex-
pressão da vida cultural.
Os motivos e as finalidades das ações sociais constituem uma
tipologia idealmente construída (ação social afetiva, ação social tra-
dicional, ação social racional com vistas a meios e ação social racio-
nal com vistas a fins determinados), que, mais do que ser explicada,
necessita ser compreendida. Os dois últimos tipos, as ações racio-
nais, são objetos preferenciais do estudo da sociologia ao exigirem
o processo hermenêutico da busca sistemática de motivações, o que
pressupõe empatia, analogia, reflexões. Weber abre um vasto cami-
nho para a compreensão da educação quando tipifica as formas de
dominação socialmente legitimadas. A dominação, segundo o autor
é autoridade segundo a qual segue o direito adquirido de forjar a
obediência de outrém e desta forma exercer a influência dentro de
um grupo social ou de uma nação. Este poder de mando pode fun-
damentar-se, ou motiva a submissão, seja em tradições e costumes,
sejam eles institucionalizados ou não, seja nas qualidades excepcio-
4 Max Weber sociólogo e jurista alemão, um dos mais importantes intelectuais
do final do século XIX e início do XX, considerado um dos principais fundado-
res, com a sua sociologia histórica ou compreensiva. Dedicou-se a vários cam-
pos de estudos sobre o nexo entre Religião e sociedade, ao poder de Estado, as
formas de dominação. Estão entre suas principais obras “A Ética Protestante e o
Espírito do Capitalismo” e “Economia e Sociedade”. Nesta última trata dos três 141
tipos ideais de dominação legítima ou autoridade legal.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 141 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

nais de determinados indivíduos, por isto merecedor de afeição, seja


devido a interesses e regras estabelecidas racionalmente e como tal
aceitas regras do jogo das relações sociais.
Lugar da tradição que se legitima nas ações de domínio, quer
nas ações provindas de lideranças carismáticas (as que sustentam
nos motivos da emoção e dos sentimentos); de tradição familiar (na
preservação do nome), na continuidade nos postos sociais ocupa-
dos pelos mesmos grupos familiares, na manutenção de costumes
de qualquer origem, mas, inquestionavelmente, hierárquicos e dis-
criminatórios. A forma da dominação legal (onde as leis e os direito
são criadas e modificadas como um estatuto sancionado de acordo
com regras instituídas), sendo a burocracia o mais típico exemplar
desta forma do exercício da dominação.
Mesmo na permanência, o poder de educar fica condicionado
a reproduzir o conhecido; a dominação legal sustenta a possibilidade
de compreensão dos sentidos e os motivos de manter a dominação
por meio de formas racionais. A compreensão sociológica recupera
não só o sentido da realidade, mas também a contradição entre o
descrito e o sentido.
A ideia de estratificação social de Weber é diferente das de ou-
tros por ser pluridimensional. O autor parte de três grandes dimen-
sões relacionadas entre si, sem preponderância de uma pela outra:
os homens são diferenciados por suas habilidades, utilizadas como
ferramentas de trabalho e as diferenças econômicas que levam à for-
mação de classes; o prestígio social é distribuído através de uma
ordem social, que formam grupos, com ou sem status, para os quais o
membro precisa ser aceito; a distribuição de poder, através da orien-
tação de grupo de status que influenciam a ação comum, levam a
criação de partidos, associações, etc.
A ação dos seres humanos é o que leva à interação dos in-
divíduos e, quanto mais distintos são seus interesses, mais com-
plexa se torna a sociedade, ampliando os espaços de conflito que
contrapõem setores sociais e passando a exigir a definição de
regras e de modelos de regulação que tornem racionais, e possí-
veis, a convivência e o funcionamento orgânico de cada um dos
142 componentes do todo.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 142 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

O sistema educacional, segundo o autor, é o modo de preparar


os indivíduos para exercer funções que a sociedade racionalizada e
complexa impõe e, ao mesmo tempo, oferece para determinados ti-
pos de seres humanos. A educação, como uma instituição fundamen-
tal para o funcionamento da sociedade, assume dois tipos ideais: (a)
preparar os educandos para ocupar um lugar na sociedade, estabele-
cendo uma formação moral sólida; (b) transmitir valores universais
e especializados de caráter utilitário. A partir desta última dimen-
são, o sistema educacional deve ser racionalizado e voltado para a
formação de quadros para o funcionamento das normas sociais do
direito formal e os educandos preparados para as funções exigidas
pelo Estado e pelas empresas do sistema econômico (MACHADO,
ALBUQUERQUE e VIOLA, 2014).
Para Weber, ao analisar o papel de educação, os conteúdos
eram vistos como mecanismos de socialização, e de atendimento às
demandas do mercado e o desempenho dos alunos como reflexo de
suas origens familiares, assim como os diplomas são vistos seguindo
esta ordem de status (GOMES, 2005).
No campo da sociologia da educação, as teorias weberianas
contribuem com a localização dos fatores que influenciam e dão
sentido aos modelos de controle dos sistemas educativos ao mesmo
tempo em que reforçam as dimensões da meritocracia, tão fortemen-
te impregnada nas teorias pedagógicas tradicionais. Para esse soció-
logo a educação deveria possibilitar, a cada indivíduo, uma formação
sólida a ponto de permitir a cada um ocupar um lugar social que lhe
permitisse ascensão social e dignidade pessoal. Assim, a pedagogia
do treinamento e da utilidade evitaria, ao mesmo tempo, produzir
aspirações infundadas e preocupações com questões humanistas
como as questões do bem-estar coletivo, as aspirações de liberdade
e as utopias de justiça social inerentes ao pensamento da igualdade.
Os neoweberianos se utilizaram dessa ideia credencialista da
educação, na qual os sistemas educacionais são modelados pelos in-
teresses de prestígio, dominação e refletem o melhor desempenho
daqueles que detêm o poder.
Gomes (2005), afirma que Henry Giroux (1943) e Georges
Snyders (1917- 2011), questionaram essa passividade e trouxeram 143

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 143 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

os conceitos de resistência e de autonomia para a escola, assim como


Martin Carnoy e Henry Levin (1909-1980) negaram a “correspon-
dência” unilateral entre divisões de classe, escola, e trabalho (fun-
ções ocupadas) e sim como uma relação complexa, multidirecional,
cheia de contradições entre conteúdos culturais (alunos e professo-
res), entre gestores e professores (lutas trabalhista), entre currícu-
los livrescos ou ideológicos.
Ainda de acordo com Gomes (2005), mesmo negada, muito se
vê ainda hoje dessa teoria modeladora, que não pode ser mais com-
portada em um mundo pós-moderno, no qual as relações meramen-
te bilaterizadas perderam força, em especial aquelas que colocam em
confronto o tradicional x moderno, pois existem outras categorias
de análise que mesmo representada por minorias, não podem deixar
de ser “vistas”.

Influência Sobre Alguns Educadores Brasileiros

No Brasil, Fernando de Azevedo (1894-1974), até hoje con-


siderado como um dos cardeais da educação brasileira, bebeu dos
postulados de Durkheim para defender o paradigma do consenso5.
Segundo o paradigma do consenso, a sociedade é vista como uma
unidade baseada numa ordem social, caracterizada por um consenso
espontâneo, tendo como preocupação principal os aspectos norma-
tivos e formais de sua estrutura. A educação nessa perspectiva, tem
por função integrar e manter o consumo.
Para Azevedo, a educação é reflexo da sociedade, da forma
pela qual está estruturada e tem um papel socializador e seu ca-
ráter coercitivo é fundamental para a integração social, ao mesmo
tempo em que deve-se conhecer e respeitar as diferenças regionais
do país para atender a cada realidade e por isso signatário do Ma-
nifesto dos Pioneiros6. Sua concepção de educação pautava-se no
5 Segundo o paradigma do consenso, a sociedade é vista como uma unidade ba-
seada numa ordem social, caracterizada por um consenso espontâneo, tendo como
preocupação principal os aspectos normativos e formais de sua estrutura. A edu-
cação nessa perspectiva, tem por função integrar e manter o consumo.
144 6 O “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, datado de 1932, foi escrito
durante o governo de Getúlio Vargas e consolidava a visão de um segmento da
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 144 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

pensamento liberal-democrático da educação, em defesa de uma


escola pública para todos, com o objetivo de alcançar uma socieda-
de igualitária e sem privilégios.
Sua sociologia buscava analisar a realidade a partir da história
do Brasil e nela identificar as formas de pensar dos grupos e classes
sociais brasileiras, as relações e a organização da sociedade, e ques-
tionamentos do modelo de capitalismo dependente que se instalara
no Brasil (MACHADO e ALBUQUERQUE, 2014).
Contemporâneo de Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira
(1900-1970), grande influenciador da Escola Nova, também partici-
pante do Manifesto dos Pioneiros, considerava o processo educacio-
nal dinâmico e não como de ajustamento à sociedade como defendia
Durkheim. Defendia uma escola que pudesse considerar o processo
educacional dinâmico, atender às classes mais populares com fins a
melhorar a sua qualidade de vida, assim como de “estabilizadora so-
cial “, na medida em que transmitia hábitos, valores, princípios etc.
Marx e os neomarxitas influenciaram vários educadores bra-
sileiros, aqui destacam-se: Octavio Ianni (1926-2004), Paulo Reglus
Neves Freire (1921-1997) e Dermeval Saviani, que contribuíram
fortemente para o desenvolvimento crítico da área educacional. Pa-
radoxalmente, estes dois Brasis não se excluem, pelo contrário, ne-
cessitam um do outro para a continuidade das relações intrínsecas.
Sua análise reforça que está na questão social e de suas manifesta-
ções a possibilidade de transformar as distâncias entre os “segmen-
tos” ou camadas sociais (MACHADO e ALBUQUERQUE, 2014)
O segundo autor em destaque é Paulo Freire, um ícone por
sua visão emancipadora da educação e pela facilidade de “tocar”
seus leitores pela forma realista com que escreveu, mesmo sendo
considerado por alguns como utópico. Sofreu influências do mar-
xismo, especialmente quando considerava a educação como um
elite intelectual que, embora com diferentes posições ideológicas, vislumbrava
a possibilidade de interferir na organização da sociedade brasileira do ponto de
vista da educação. Dentre outras reivindicações, defendia uma educação pública,
gratuita e laica. Foi redigido por Fernando de Azevedo, dentre 26 intelectuais,
entre os quais Roldão Lopes de Barros, Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto, Lou-
renço Filho, Antônio F. Almeida Junior, Roquette Pinto, Delgado de Carvalho, 145
Hermes Lima e Cecília Meireles.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 145 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

instrumento de dominação de classes. Tinha na pedagogia liberta-


dora a possibilidade de mudança social.
Para Paulo Freire as sociedades são construções que os seres
humanos realizam cotidianamente nas disputas entre os que domi-
nam e aqueles que lutam por liberdade. Assim pensar a educação
pressupõe a necessidade de um recorte filosófico-antropológico,
e ainda, que se inicie pensando sobre se mesmo e tratando de en-
contrar, na natureza do homem, algo que possa constituir o núcleo
fundamental onde se sustente o processo de educação, tendo em
vista que a formação de um sujeito crítico e autônomo emerge de
uma abordagem histórico-cultural.
Influenciado pelo pensamento social católico, Freire acredi-
tava que a relação do homem com Deus é livre; inspirado também
pelo pragmatismo, vê a educação problematizada e que deve es-
tar voltada para os problemas dos alunos; assim como com fon-
tes existencialistas, acredita no papel ativo do homem, e que uma
educação crítica, baseada no diálogo pode tornar o homem sujeito.
Para ele, todo ato de educação é um ato político (GOMES, 2005).
Com a “Pedagogia do Oprimido” (1975) ele conceitua a cé-
lebre “educação bancária” na qual o professor deposita os con-
teúdos nos alunos; sendo desumanizadora. Freire acredita na
educação libertadora. O teórico, também influenciado por Anísio
Teixeira, defendeu a regionalização do ensino e a descentraliza-
ção da educação.

Considerações Finais

O senso comum, assim como pesquisas empíricas, há muito


revela que o conhecimento é um dos maiores instrumentos de poder.
Na medida em que, quem o detém de forma organizada e sistemati-
zada pode interferir sobre a totalidade da vida social.
Não estando a margem desse processo, a escola onde a pro-
dução e reprodução do saber são socializados, vem sendo utilizada
ideologicamente como instrumento de manutenção da classe domi-
nante, onde deveria ser a chave para melhor compreensão do mundo
146 e da vida em sociedade.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 146 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Sem dúvida nenhuma a Sociologia da Educação é uma ciência


que mudou a forma de pensar e compreender o social, onde as des-
cobertas e postulados científicos dos três clássicos da sociologia não
só influenciaram os modelos de educação de todo o mundo, como
também lançam luz para compreensão da realidade até os tempos
atuais. Porém, é inegável que a globalização, os grandes avanços
tecnológicos e as relações estabelecidas no mundo pós-moderno,
mudou os parâmetros de espaço-tempo, de causalidade, de presença
no mundo, de individualidade, de história ... apresentando-se como
um novo modelo de sociedade e não se deixando compreender com
facilidade, expondo a todos a fragilidade do inserto e do líquido, de-
mandando avanços para a tradução dos acontecimentos e projeções
significativas para a educação.
Cabe aqui uma referência a “Modernidade Líquida”, termo
cunhado pelo filósofo polonês Zygmunt Bauman (2001) para definir
a atual sociedade. O sociólogo analisa e define as relações e compor-
tamentos rápidos e fluidos do mundo contemporâneo, impactados
pelo capitalismo globalizado.
Não é objeto desse ensaio, mas no Brasil observam-se políticas
públicas que não aparentam uma medida para democratizar o ensi-
no e para formação crítica do sujeito emancipado. Como exemplo
cita-se a Lei 13.415/17 que modifica a estrutura do Ensino Médio.
Existem sim medidas para perpetuar o poder hegemônico das clas-
ses dominantes, na medida em que prevê a formação para atender as
necessidades do sistema produtivo, configurando uma relação entre
sistema educacional e mundo do trabalho, prevendo práticas onde a
escola passa a ser formadora de trabalhadores/mão de obra e não
conhecedores do mundo.

[...] a política educacional sofre alterações nas suas orienta-


ções tendendo a responder às demandas crescentes de maior
integração social das populações vulneráveis, ao mesmo tempo
em que deve também formar a força de trabalho apta aos novos
processos produtivos (OLIVEIRA e DUARTE 2005, p. 281).

Ou seja, para atender as demandas do mundo globalizado,


a visão sobre a educação no Brasil assumiu um contorno mais 147

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 147 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

mercantilista, uma presença forte na perspectiva de produção de


recursos com eficácia e eficiência. Para atingir os “objetivos glo-
bais” são criados mecanismos que exigem dos estudantes o desen-
volvimento de competências e habilidades, com rigidez estrema e
avaliações rigorosas dos conhecimentos “válidos”. Preconizando
o protagonismo e a individualização de cada jovem no seu pro-
cesso de formação no contexto escolar (ROSA, 2015; SOUZA e
RAMOS, 2017; SILVA 2015 e 2018).
Para Souza (2018), há uma contradição óbvia entre as novas
possibilidades históricas de acesso à educação e à informação, poten-
cialmente favoráveis à difusão do pensamento reflexivo e autônomo,
e, do outro lado, as forças mobilizadas para que isso jamais aconteça.
Para Santos (2005), educar contra a mercadorização da educação, a
favor e em defesa de formas democráticas e críticas deve ser objetivo
de todos os estudantes, professores e sociedade em geral. Na medida
em que, de forma intencional enfrentem o poder hegemônico nos
espaços das emergências e nas reconstruções do que ele chamou de
“sociologia das ausências”.
A sociologia das ausências e das emergências visa garimpar e
conferir legitimidade a saberes e práticas esquecidos ou invisibiliza-
dos na busca por alternativas emancipatórias latentes e descoloni-
zadoras. A Sociologia das Ausências visa demonstrar que o que não
existe é, na verdade, ativamente produzido como não existente e,
portanto, a transformar objetos impossíveis em possíveis.
Embora os sistemas nacionais modulem os processos de glo-
balização diferentemente e lutas aconteçam, convergências e homo-
geneização de formas e modalidades educacionais, impulsionadas
pelas “lógicas da monocultura7”, são claramente evidentes dentro

7 Para Santos (2005) existem formas específicas de produzir não-existência, que se


corporificam em lógicas de pensamento e de práticas sociais, através das quais o oci-
dente constrói sua presença absoluta. O autor afirma que a monocultura do conhe-
cimento consistiu em atribuir um privilégio absoluto, inicialmente à teologia cristã
e depois à ciência. Essas monocultoras resumem-se da seguinte forma:
a) Lógica da monocultura do saber ou do rigor do saber - atribui valor somente à
ciência moderna como saber válido, não reconhecendo ou não legitimando outros
148 saberes produzidos fora destes espaços.
b) Lógica da monocultura do tempo linear – percebe a história como se tivesse um
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 148 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

e entre contextos. Essas lógicas são muito evidentes nas políticas


educacionais atuais que privilegiam a escolha, a competição, a ad-
ministração do desempenho, a responsabilidade individual e a admi-
nistração do risco.
Buscando inspiração em Gramsci, acredita-se que a ação pe-
dagógica deve ser capaz de ultrapassar os limites do conhecimen-
to formal das disciplinas, constituindo-se a partir de um currículo
humanista, capaz de respeitar os saberes próprios do senso comum
para, a partir dele, universalizar o conhecimento, ampliar a cultura
da população e possibilitar tanto aos indivíduos como aos grupos
e classes sociais uma fase de estudo ou de trabalho profissional na
qual a disciplina e a autonomia moral sejam teoricamente ilimitadas.
Assim como o pensador italiano, defende-se que o acesso à es-
cola deve ser um direito de todos, com um currículo universal e um
mesmo projeto pedagógico voltado para a emancipação, não só in-
dividual, mas de todas as classes e grupos, especialmente os setores
socialmente oprimidos. Assim, o sistema de ensino, formando edu-
candos emancipados e autônomos, contribuiria para a construção de
uma sociedade socialmente mais justa e igualitária.

único sentido linear, como se a cultura sofresse um processo permanente de evolução,


considerando outras culturas como atrasadas ou subdesenvolvidas.
c) Lógica da naturalização das diferenças (classificação social) – interpreta as
relações de força e dominação como se o domínio e poder de uns sobre outros
fosse consequência e não causa da desigualdade social.
d) Lógica da monocultura do universal e do global (escala global) – inferioriza
o local diante do global.
e) Lógica da monocultura dos critérios de produtividade e de eficácia capitalista
(produtivista) – valoriza o lucro dos ciclos produtivos, passando a não existir aqui-
lo que não é produtivo sob a perspectiva capitalista, classificando-o de forma pe-
jorativa como desqualificado profissionalmente, estéril ou preguiçoso. 149

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 149 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Referências
APPLE, M. W; BALL, S. J.; GANDIN, L. A. Sociologia da Educação:
análise internacional. Porto Alegre: Penso, 2013.
BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BOURDIEU, P.; PASSERON, J.-C. A reprodução: elementos para
uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis: Vozes, 2010.

BRASIL. Lei n. 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Institui a Políti-


ca de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tem-
po Integral. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato20152018/2017/lei/L13415.htm>. Acesso em: 26 março de 2018.

CASTRO, A. M.; DIAS, E. Introdução ao Pensamento Sociológico.


Rio de Janeiro: Eldorado Tijuca, 1985. Pp. 13 – 27.
GOMES, C. A. A educação em novas perspectivas sociológicas. São
Paulo: EPU, 2005.

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Os intelectuais, O princípio edu-


cativo, Jornalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
MACHADO, C. L. B; ALBUQUERQUE, P. P. VIOLA, S. E. A. Socio-
logia da Educação: uma ciência da modernidade. In: VIOLA, S. E. A.
(Org.). Sociologia da Educação. Porto Alegre: Editora Unisinos, 2014.

MACHADO, C. L. B.; ALBUQUERQUE, P. P. Sociologia da Educa-


ção no Brasil: notas introdutórias. In: VIOLA, S. E. A. (Org.). Socio-
logia da Educação. Porta Alegre: Editora Unisinos, 2014.
MARX, K. O Capital. São Paulo: Difel, 1982.
OLIVEIRA, D. A.; DUARTE, A. Política educacional como política
social: uma nova regulação da pobreza. Perspectiva, v. 23, n. 02, pp.
279-301, 2005.
QUINTANEIRO, T.; BARBOSA, M. L. O.; OLIVEIRA, M. G. M. Um
Toque de Clássicos: Marx, Durkheim e Weber. Rio de Janeiro:
Guanabara, 2003.
SANTOS, B. S. O Fórum social mundial: manual de uso. São Paulo:
Cortez, 2005.
150

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 150 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

ROSA, I. G. G. F. Temos uma Crise no Currículo Brasileiro: sobre a


BNCC, Geni e o Zepelim e a Cortina de fumaça! Giramundo, v. 2, n. 4,
pp. 15-28, 2015.
SOUZA, J. A Classe Média no Espelho: sua história, seus sonhos e
ilusões, sua realidade. São Paulo: Estação Brasil, 2018.
SOUZA, M. S.; RAMOS, F. K. Educação Física e o mundo do trabalho:
um diálogo com a atual Reforma do Ensino Médio. Motrivivência, v.
29, n. 52, pp. 71-86, 2017.
SILVA, J. A. A Educação na Sociedade Brasileira: consenso ou con-
flito. [Monografia]. Curitiba: UFPR, 1995.
SILVA, M. R. A BNCC da Reforma do Ensino Médio: o resgate de um
empoeirado discurso. Educação em Revista, v. 34, 2018.
VIOLA, S. E. A.; PIRES, T. V. Sociologia Contemporânea: a sociologia
da educação em tempos de transformação. In: VIOLA, S. E. A. (Org.).
Sociologia da Educação, Porto Alegre: Editora Unisinos, 2014.

151

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 151 06/01/2021 10:44


Livro Aloisio-V4.indd 152 06/01/2021 10:44
Livro Aloisio-V4.indd 153 06/01/2021 10:44
Livro Aloisio-V4.indd 154 06/01/2021 10:44
Ciências Sociais em abordagens múltiplas

A noção de crime como fato social e os equívocos


desastrosos do acirramento penal

Giovane Santin
Aloisio Ruscheinsky

Introdução

O presente texto versa sobre o crime enquanto fato social, as


suas consequências nas práticas sociais, bem como sobre a legitimi-
dade do Estado amparado no direito de impor punições. Do ponto
de vista de uma visão dinâmica dos fenômenos sociais e o olhar a
partir de processos sociais, cabe destacar que somente se define algo
como crime mediante a existência de delimitação institucional e so-
cialmente amparada, bem como existe crime mediante um agente,
individual ou coletivo, que o pratique, tanto por uma ação delibera-
da ou não, quanto por se negligenciar, descuidar ou omitir.
Estudantes ou pesquisadores sociais de primeira viagem ficam
intrigados com a expressão “o crime como um fato social normal”.
Pondo-se uma interrogação quanto à origem da expressão quanto
também à disseminação ou abrangência da categoria sociológica. De
forma similar, a questão dos limites do que se considera como crime
efetivamente, está no debate da formulação da legislação, bem como
encontra-se na polêmica das práticas jurídicas e sociais. Adjunto a
isto situa-se a criminalização de categorias sociais, como no caso
jovens negros, de movimentos sociais, tanto quanto de práticas de
contestação e de questionamento da ordem social injusta, excluden-
te, perversa e de violentação. Quais seriam as razões para criminali-
zar setores sociais que se dispõem a romper com o conformismo in-
dividualista e coletivo, demandando reconhecimento e legitimidade
da mobilização dos cidadãos para a efetivação de direitos.
A par do crime, a prática da discriminação de pessoas e de
seus preconceitos, bem como as desigualdades persistentes são tidos
como fatos sociais ou fenômenos relevantes da análise sociológica. 155

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 155 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Em quase todas as discussões acadêmicas e ações políticas permane-


cem na ordem do dia o gigantesco desafio em “tratar desigualmente
os desiguais” ou “tratar diferentemente os diferentes” para estender
a equidade no tratamento e reconhecimento a todos os cidadãos.
As breves observações aqui apresentadas não se propõem a
realizar uma abordagem sistemática ou expor o potencial analítico
dos autores em Ciências Sociais. O texto se divide em duas par-
tes, sendo que inicialmente realizamos uma abordagem do crime a
partir da ótica sociológica de Émile Durkheim, percorrendo alguns
conceitos de suas genuínas contribuições permitindo compreender
a noção de crime como fato social. De outro modo ainda se explora
o significado de imputar castigo aos fatos considerados como crime,
encontrando assim promessas declaradas que não se cumprem no
âmbito do Estado de Direito e, também, que existem realidades que
se cumprem, todavia não são declaradas nos processos.

Émile Durkheim e o Direito Penal: o crime


enquanto fato social

É sabido que o fator determinante para uma nova orienta-


ção dos estudos criminológicos foi o surgimento da Escola Posi-
tivista italiana em um contexto de desdobramentos nas Ciências
Sociais no final do século XIX. O Direito Penal ou a Crimino-
logia se funda como uma abordagem científica devotada com
destaque para o indivíduo delinquente. Isto é, pela via de três
criminologistas ou juristas italianos, aprimora-se a constituição
do conhecimento criminológico moderno e suas contribuições se
entrelaçam em óticas: a) a antropológica com Cesare Lombroso
(1835-1909) (O homem delinquente); b) a sociológica com Enri-
co Ferri (1856-1929) ao enfatizar fatores sociais ao lado da ótica
individual e física, isto é a sociologia criminal); e c) jurídica com
Rafael Garófalo (1852-1934) (Criminologia1).

1 Rafael Garófalo, por sua vez, se destacou pelo seu ceticismo quanto à readaptação
dos criminosos, circunstância que justificava suas posições a favor da pena de morte.
156 Sua preocupação fundamental não era a recuperação social do delinquente, mas sim
demonstrar a incapacitação instaurada ao enfatizar a necessidade de sua eliminação.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 156 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Influenciado por teorias materialistas, positivistas e evolu-


cionistas, Cesare Lombroso destaca a teoria do delinquente nato
com anomalias que caracterizariam um tipo antropológico espe-
cífico. Pelas heranças seria uma espécie de ser atávico, balizado
por estigmas culturais e corporais possíveis de serem identificados
anatomicamente (ALVAREZ, 2002). Ou ainda, dentro da dualida-
de positivista, distingue o homem normal do criminoso a partir
da consideração de algumas características peculiares. Apesar do
reconhecimento posterior do fracasso destas teorias, os estudos
desta escola contribuíram decisivamente para o desenvolvimento
da Sociologia Criminal e deu início a pesquisas diferentes tanto so-
bre as causas do delito quanto sobre o encarceramento no sistema
penitenciário deficitário.
Esta tradição positivista ousa destacar uma suposta aposta em
posicionamentos científicos e assim “rejeita uma definição estrita-
mente legal, ao destacar o determinismo em vez da responsabilidade
individual e ao defender um tratamento científico do criminoso, ten-
do em vista a proteção da sociedade” (ALVAREZ, 2002, p. 678-679).
Ao que tudo indica esta dualidade e proximidade com evolucionismo
de alguma forma marcam a trajetória das abordagens de Durkheim.
A partir desses pensadores surge a importância de Émile
Durkheim para o Direito Penal, em particular as críticas do mes-
mo a algumas das ênfases desta escola criminológica positivista,
como em sua obra “a divisão social do trabalho”, tornando-se um
partidário de uma visão efetivamente sociológica do crime, inclu-
sive com possibilidade de distanciamento de argumentos biológi-
cos de responsabilização.
Todavia, para melhor sustentar os argumentos condizentes,
para Durkheim, em síntese, “o indivíduo acima de tudo é produto da
sociedade” ou ainda a sociedade não emerge dos indivíduos, mas o
inverso pois as relações sociais precedem. Este autor definiu como
objeto básico de sua Sociologia o fato social, que define como “[…]
todos os fenômenos que se dão no interior da sociedade, por menos
que apresentem, com certa generalidade, algum interesse social”
(DURKHEIM, 1999, p. 1). Porém, de uma certa forma a explica-
ção da sociedade requer aprimoramento do olhar do cientista social, 157

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 157 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

uma vez que nem todos os acontecimentos podem ser tidos como
fato social na acepção do autor, pois como Durkheim (1999, p. 1 e 4)
“[…] todo o indivíduo come, bebe, dorme, raciocina, e a sociedade
tem todo o interesse em que essas funções se exerçam regularmen-
te”. Por conseguinte, o objeto sociológico requer a apreensão de re-
gras, procedimentos, estruturas, preceitos morais, pois “[…] só há
fato social quando existe uma organização definida”. A partir destes
princípios fato social se delineia como

[…] toda maneira de fazer, fixado ou não, suscetível de


exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda,
toda maneira de fazer que é geral na extensão de uma socie-
dade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência pró-
pria, independentemente de suas manifestações individuais
(DURKHEIM, 1999, p. 13).

Bem compreendido, efetivamente, os fatos sociais constituem


as regras do jogo das relações sociais, como as normas da vida cole-
tiva, assim pautam a vida dos indivíduos. Propondo-se a instaurar a
objetividade na sua abordagem assevera o seu preceito metodológico
de que os fatos sociais, em relação aos indivíduos assim como ao cien-
tista, são exteriores, objetivos e coercitivos. Nesse contexto, o pensa-
mento de Durkheim é fundamental para compreender que a existên-
cia da criminalidade se reveste de dois postulados: a normalidade e a
funcionalidade. Neste sentido convém atentar para o fato de que

ao analisar o delito, Durkheim afastava-se do positivismo cri-


minológico que considerava que o delito tinha caráter patoló-
gico, visto que para ele o delito é um fenômeno de sociologia
normal [...] negando que podia existir uma natureza crimi-
nosa no ato delitivo e, deste modo, questionando o conceito
de “delito natural” (ANITUA, 2008, p. 444).

A normalidade se dá em razão da inexistência de qualquer ori-


gem de ordem patológica individual ou social, mas sim de um normal
e regular funcionamento de toda ordem social, ou seja, surge inevita-
velmente unido ao desenvolvimento do sistema social e a fenômenos
158 normais da vida cotidiana. O crime seria funcional por não se tratar

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 158 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

de um fenômeno necessariamente nocivo ou prejudicial para a socie-


dade, mas inserido no contexto da própria estabilidade social.
Uma referência à época ou ao contexto parece relevante, pois
ao final do século XIX apareciam tanto o ufanismo com o progres-
so em decorrência a grandes invenções; por outro lado também se
visibilizaram os efeitos colaterais como o problema social com o
qual o Estado Republicano2 vai se ocupar gradualmente (pobreza,
desigualdades, criminalidade, exclusão social). Uma de suas preo-
cupações é contornar os problemas gerados pelo progresso social.
Verifica-se, assim, que o sociólogo francês interpreta o crime como
um fato social que deve ser compreendido como

toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer so-


bre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda maneira
de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao
mesmo tempo, possui uma existência própria, independente de
suas manifestações individuais (DURKHEIM, 1999. p. 13).

No esforço de classificar o crime sob a ótica do fato social nor-


mal o autor sustenta que no ocidente não existe nação desprovida de
delimitações quanto a um senso social da criminalidade. E como tal
reveste-se de certa funcionalidade, sendo que em razão de suas conse-
quências chama-se a público para a coesão e coerção. Sendo assim, a
teoria durkheimiana com a sua perspectiva de identificação do crime
como fato social normal alça a pretensão de um estudo científico a seu
fenômeno e consolida uma compreensão tipicamente antropológica
e sociológica. Existem variações que podem ser destacadas, pois “o
fato social é normal para um tipo social determinado, considerado
numa fase determinada de seu desenvolvimento, quando ele se produz
na média das sociedades dessa espécie, consideradas na fase corres-
pondente de sua evolução” (DURKHEIM, 1999, p. 65). Em outros
2 De fato ao analisar as relações sociais Durkheim se dá conta de processos de
instabilidade no campo da política, da cultura e da economia, com supostas con-
sequências desastrosas para a ordem publica e burguesa na esfera social. Com a
urbanização, surgem famintos, sem teto, desempregados ou os sem lenço nem
documento, sendo indivíduos desagregados que ameaçam a estabilidade social ca-
pitalista. A legitimação do processo da Revolução Francesa mostrava seus limites, 159
cujas razões o autor pretendia explanar.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 159 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

termos os fenômenos sociais se manifestam dentro de uma gama de


particularidades que se diversificam no tempo e no espaço.
O autor em tela reconhece adversidades para delimitar o que
é um fato socialmente normal, e discriminando de outro lado um
fenômeno patológico. Isto se aplica diretamente à temática quando
se propõe a tratar do crime enquanto fato social. Pois,

Classificar o crime entre os fenômenos de sociologia normal


é não apenas dizer que ele é um fenômeno inevitável ainda
que lastimável, devido à incorrigível maldade dos homens; é
afirmar que ele é um fator da saúde pública, uma parte inte-
grante de toda sociedade sadia (DURKHEIM, 1999, p. 65).

O patológico seria um surto social de atos criminosos ou um


índice muito alto, mas não o crime em si mesmo. A pena como forma
de coerção, nos termos do próprio autor, serve como medida para
um retorno à coesão social.
A situação inversa seria justamente a anomia, uma situação
assim se caracterizaria justamente pela insuficiência de regulamen-
tação ou quando os indivíduos passam a desconsiderar as normas e
regras socialmente ancoradas, projetando um mundo de incertezas.
A propósito, ao enfocar a teoria da anomia3 e a existência da atos
considerados como crimes Shecaira (2011, p. 233) afirma que:

O anormal não é a existência do delito, senão um súbito in-


cremento ou decréscimo dos números médios ou das taxas de
criminalidade. Uma sociedade sem crimes é pouco desenvol-
vida, monolítica, imóvel e primitiva. Esse súbito incremento
da criminalidade decorre da anomia, que é um desmorona-
mento das normas vigentes em dada sociedade.

Outrossim, se o crime não tem uma entidade ontológica/pa-


tológica, isso significa que é produto das normas em cada momento
3 Adorno (1998, p. 30) ao referir-se as múltiplas formas de violação de direitos na
sociedade brasileira, assim sentencia “a anomia é uma condição social em que as
normas reguladoras do comportamento das pessoas perderam sua validade. Onde
prevalece a impunidade, a eficácia das normas está em perigo. As normas parecem
160 não mais existir ou, quando invocadas, resultam sem efeito. Tal processo aponta
no sentido da transformação da autoridade legítima em poder arbitrário e cruel”.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 160 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

e tempo determinado. O crime não existe em si mesmo, sempre é


uma criação histórico-social, pois somente será crime aquilo que a
lei define como tal. Por isso, o Direito Penal se torna imprescindível
para legitimar um sistema caracterizado pela seletividade e estig-
matização de seres humanos que serão rotulados como criminosos.
Desta forma, criminoso será todo aquele que deixou de respei-
tar as leis emanadas do campo burocrático do Estado. As condutas
humanas que serão caracterizadas como crime são resultados de um
juízo de valor dos legisladores que definem o bem jurídico a ser tu-
telado pelo direto penal de acordo com os mais diversos interesses.
Conforme Mellim Filho (2010, p. 47) a emergência das normas jurí-
dicas por vezes questiona a vigência do Estado de Direito, pois que
“são fruto de uma elaboração técnica pelo Estado, encarnado na fi-
gura do legislador, a partir de seu próprio desejo, enquanto interes-
se de uma classe, agrupamento ou mesmo de um único indivíduo”.
Nesse aspecto, não haverá apenas uma seleção de condutas hu-
manas que serão consideradas como crime pelo poder constituído, mas
também um tratamento punitivo representado pela escolha da pena a
ser imposta. Ou seja, se é normal que em toda sociedade ocorrem sui-
cídios e que haja crimes, também é normal que as contravenções sejam
punidas de acordo com regras institucionalmente estabelecidas.
Para Durkheim a pena deve ser analisada positivamente como
uma espécie de símbolo para a reafirmação de valores contidos nas
leis com intuito de reforçar os laços entre os indivíduos na forma-
ção da consciência coletiva. Nesse aspecto a função da pena seria a
de manter ou (r)estabelecer a ordem social abalada com a prática do
crime, razão pela qual o castigo estaria direcionado para aqueles que
não praticaram o delito com intuito de prevenção, ou da formação
do “espírito das pessoas honestas”. Todavia há contestações quanto a
este fato com a sensação de que somente uma fração dos crimes per-
petrados seja reconhecida como tal e também julgada, pois conforme
análise de Adorno (1998, p. 23)

A tendência para cima é ainda mais acentuada quando se fala


em assaltos, roubos e estupros. Em trinta anos teria havido um
aumento considerável do número de pessoas que vivem do cri- 161
me, assim como um número crescente de vítimas. Vale dizer:
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 161 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

primeiro, maior número de pessoas está violando as leis penais;


segundo, maior número de pessoas figura como vítimas; tercei-
ro, um universo considerável de comportamentos e bens pro-
tegidos pelas leis penais está cada vez mais vulnerável à ofensa
e ao ataque. Ademais, em função mesmo da prosperidade e do
aumento da circulação da riqueza, novas modalidades de crimes
surgiram, como aquelas relacionados ao tráfico de drogas.

Da mesma forma que o pensamento de Durkheim é inovador


no tocante à teoria do crime enquanto fato social normal na vida
cotidiana – afastando as ideias da escola positivista do criminoso
nato ou do crime como patologia – sua análise sobre a pena também
afasta a função meramente retributiva4 do castigo ao considerar sua
sanção para restabelecer a ordem social abalada pela prática crimi-
nosa. Para Molina e Gomes (2002, p. 353) a análise adotada
por Durkheim contribui para

um novo marco teórico à ideia da legitimação do castigo. A


pena não é examinada sob o enfoque valorativo (seus fins
ideais), senão funcional, dinâmico como qualquer outra insti-
tuição social (...). Se o delito lesiona os sentimentos coletivos
da comunidade, que são tidos como “bons e corretos”, a pena
“simboliza” a necessária reação social: aclara e atualiza exem-
plarmente a vigência efetiva dos valores violados pelo delin-
quente, impedindo que se enfraqueçam; reforça a convicção
coletiva em relação à transcendência desses valores; fomenta
e dissemina os mecanismos de integração e de solidarieda-
de social frente ao infrator e devolve ao cidadão honesto sua
confiança no sistema.

O que se percebe em Durkheim sobre a análise do crime é que


se afasta consideravelmente do pensamento criminológico anterior
ao defini-lo como fato social normal, representando um marco na

4 Azevedo e Cifali (2015, p. 119) atualizando esta referência, embora em aborda-


gem dissonante concluem que “Em que pese o fato de que há um deficit de eficácia
da legislação nas mais diversas áreas, isso não impede que avance a hipertrofia ou
inflação de normas penais, que invadem campos da vida social anteriormente não
162 regulados por sanções penais. O remédio penal é utilizado pelas instâncias de poder
político como resposta para quase todos os tipos de conflitos e problemas sociais”.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 162 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Sociologia Criminal ao romper com as ideias da escola positivista.


No tocante ao castigo, entendemos que seu pensamento foi conser-
vador ao atribuir a pena uma função de reafirmação dos valores so-
ciais representados pelas normas, circunstância que também legiti-
ma a manutenção do status quo. A este respeito, mas a partir de outra
perspectiva epistemológica, Santelli e Brito (2013, p. 70) associam
uma série de fatores em que parece se destacar em termos gerais o
banimento social ou desterro político.

a nova criminologia consegue explicar a quem, de fato, per-


tence o poder de definir crimes e criminosos, quem são os
reais criminalizados nas sociedades atuais e como o sistema
penal se efetiva como instrumento de controle social. Nessa
inovadora perspectiva, “criminoso” não é um indivíduo dife-
rente, anômalo, mas um status social atribuído por quem tem
o poder de definir, status este desigualmente distribuído en-
tre os indivíduos da sociedade; a punição que o direito penal
promove, por sua vez, não tem sua intensidade dosada com
preponderância do critério da gravidade da ação e da trans-
gressão da norma, mas com uma consideração quase absoluta
da posição social do criminalizado.

Diante disso, passamos a expor a crítica consolidada por um


sem número de intelectuais à crença na pena privativa de liberdade
individual como instrumento eficaz no combate da criminalidade e
manutenção da ordem social vigente.

Para além do castigo: entre promessas declaradas que


não se cumprem e realidades que se cumprem,
mas não são declaradas

A crença na lei penal como instrumento eficaz no controle da


criminalidade tem sido destaque desde o século XVIII em certas
hostes acadêmicas e políticas. No caso a teoria centrada na discussão
sobre a coação e dissuasão psicológica de Paul J. A. Von Feuerbach
fundamenta o código do direito penal moderno na Baviera (2013) e
no qual a sanção ou penalização sempre como último recurso e im-
petrada por uma autoridade legítima possui socialmente um caráter 163

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 163 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

preventivo. Embora a realidade tenha demonstrado ao longo dos


anos os equívocos da referida teoria5, é comum os discursos propa-
gados de que a criminalidade poderá ser reduzida pelo rigor das leis
penais ao causar uma intimidação social.
A criminalização de condutas revela a crise de legitimidade
que afeta o direito penal moderno e de suas práticas decorrentes,
mas que não conseguiu cumprir suas promessas (proteção de bens
jurídicos, prevenção da criminalidade etc.). De acordo com Santin
(2006), isto acaba ensejando na visão dos cidadãos a descrença em
face das ações das agências penais tanto quanto aos próprios propó-
sitos da legislação específica. Desta forma, automaticamente, parece
legitimado o discurso dos demandantes que advogam o incremento
da repressão aos outros, aos diferentes, em especial demandando
uma legislação mais rigorosa e encarceramento. Ou seja, estariam
na sociedade civil presentes ou ausentes as conotações de responsa-
bilidade coletiva, de pertencimento ao corpo social.

Na medida em que há escassa responsabilidade cívica entre


os indivíduos que a compõem, esta não é uma sociedade civil
que se organiza para buscar soluções democraticamente. De
tal modo que a teia clientelista, expressiva da dependência
pessoal e do favor, tende a se reproduzir, dificultando a demo-
cracia e o reconhecimento de direitos, criando as condições
para que se recoloque a velha fórmula de, nos momentos de
aperto, solicitar do Estado forte a solução para os problemas,
de atribuir exclusivamente aos políticos e aos governos a res-
ponsabilidade pelas soluções (LAHUERTA, 2001, p. 41).

A perspectiva reconhecida nas Ciências Sociais como a tese do


populismo punitivo refere-se a uma intuição ou imaginário de que a

5 Santos (2010, p. 427) destaca dois defeitos graves da Teoria da Coação Psicoló-
gica: “primeiro, a falta de critério limitador da pena transforma a ameaça pena em
terrorismo estatal – como indica a lei de crimes hediondos, essa infeliz invenção
do legislador brasileiro; segundo, a natureza exemplar da pena como prevenção
geral negativa viola a dignidade humana porque os acusados reais são punidos de
forma exemplar para influenciar a conduta de acusados potenciais – em outras
164 palavras, aumenta-se injustamente o sofrimento dos acusados reais para desesti-
mular o comportamento criminoso de acusados potenciais”.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 164 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

punição rigorosa6 se traduziria em uma certeza de que com tal pro-


cedimento declinaria o volume de crimes. Isto está posto em lugar
de uma responsável e sensata discussão e da conveniência favorável à
adoção de disposições condizentes com a promoção da cidadania. Ao
que tudo indica a fragilidade de políticas sociais em diversas áreas de
inclusão social dificilmente poderão ser combatidas com o advento
de uma legislação penal mais rigorosa. As teses em questão sofreram
duros golpes por parte de pesquisadores. Exatamente por isto, contra
as ilusões manifestas da racionalidade suposta, cabe salientar que

a falência da capacidade de resposta do sistema penal, vítima


de uma evidente sobrecarga de expectativas, e a decorren-
te ilegitimidade que daí decorre, já que não desempenha de
maneira satisfatória as funções de prevenção geral e especial
que o justificam, tem levado os chamados movimentos de lei
e ordem a pedirem sempre mais do mesmo, ou seja: já que o
remédio não funciona, vamos aumentar a dose. O perigo, ob-
viamente, é matar o paciente (AZEVEDO, 2006, p. 11).

Paradoxalmente essa racionalidade repressora ou populismo


punitivista, que se faz presente nas “mãos” dos operadores do direi-
to, quanto nos linchamentos populares, também está na condição de
provocar ou acentuar uma catástrofe social. Sem sombra de dúvida,
o próprio sistema de justiça está em larga defasagem para atender
todas as demandas programadas ou incrementadas. Ou seja, se to-
dos os crimes previstos no Código Penal e na Legislação Especial
fossem rigorosa e efetivamente punidos, na realidade praticamen-
te de alguma forma todos os cidadãos poderiam sob algum ângulo
serem considerados como criminosos. Nesta conjuntura Azevedo e
6 A tal interpretação reagem Saavedra-García (2014, p. 176) “Desafortunada-
mente, esta situación es completamente contraria a lo que sucede en la realidad,
pues las medidas punitivas son tomadas por comités de acción y consejeros po-
líticos, impulsados ​​por el sed de venganza, los intereses electorales y el aprove-
chamiento del estado constante de zozobra en el que se encuentra la ciudadanía.
Por tales razones, reiteradamente se sancionan leyes penales populistas y politi-
zadas que tienen como objetivo larepresión y el ocultamiento de los problemas
sociales, circunstancia que coloca los intereses de unos pocos por encima de los
de la mayoría y que, a su vez, sacrifica la función instrumental del derecho penal 165
para recibir una meramente simbólica”.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 165 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Cifali (2015, p. 119) atestam a complexidade e efeitos adversos da


criminalização e do encarceramento

O aumento das taxas de encarceramento, derivado de uma


demanda punitiva que encontra respaldo no parlamento (cri-
minalização primária) e na atuação dos órgãos de segurança
pública e justiça criminal (criminalização secundária), não
surte o efeito esperado de queda da criminalidade, uma vez
que a atuação do sistema penal é seletiva, atingindo apenas
a base da cadeia criminal, e reunindo nas prisões indivíduos
que, pela sua vulnerabilidade social, são presas fáceis das fac-
ções criminais, que comandam o mercado das ilegalidades
dentro e fora das prisões.

Ora, sendo assim, se apresentam as circunstâncias pelas quais


se demonstra o caráter seletivo, racista, violento e desigual do Di-
reito Penal que pode conduzir à conclusão de que se trata de um
sistema de controle da luta de classes. Os autores apontam as cir-
cunstâncias em que a ampliação da população carcerária está carre-
gada de ambiguidades, entre elas sem a redução da tendência de alta
dos delitos penalizados, bem como a possível expansão da dimensão
antissocial devido ao aliciamento por milícias.
Dessa forma, a real função do “endurecimento” das leis penais
não é a redução dos índices de criminalidade, mas sim a sua cons-
trução social por razões políticas e interesses econômicos. O Direito
Penal se ostenta como matriz teórica de legitimação de um siste-
ma punitivo e de criminalização. Todavia, cabe destacar que este
processo de criminalização não possui uma trajetória retilínea, na
medida em que nas últimas décadas também prosperaram políticas
de prevenção ao delito, a ampliação das alternativas cautelares nos
trâmites judiciais, os processos da prisão de pronto ou preventiva e
a condenação expressa das práticas do uso da tortura imputada por
agentes públicos (AZEVEDO e CIFALI, 2015).
A transformação da assistência social para uma população con-
siderada indesejada se reverte igualmente em forma de controle pu-
nitivo com o instrumento do recrudescimento penal (WACQUANT,
166 2015). Verifica-se que nesta convergência organizacional se adotam

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 166 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

medidas de restrição, corte de orçamentos em políticas públicas, ten-


do como consequências a precarização dos serviços aos cidadãos. O
resultado destas reformas induz à penalização dos insatisfeitos.
O encarceramento sob a ótica aqui posta apresenta-se como
um fato social na acepção de Durkheim. Por outro lado, a situação
caótica do sistema penal brasileiro não pode ser imputada tão so-
mente ao papel desempenhado pelo Poder Legislativo como pro-
dutor de normas inspiradas nas demandas advindas de segmentos
sociais para manter a lei e a ordem. Esta atividade se reporta à cri-
minalização primária tendo como mediação a criação de leis penais
que se referem a determinação proibitiva ou interdição de condutas
e ações aos cidadãos. O referido caos também é uma consequência
de uma maior severidade das agências envolvidas no processo de
criminalização secundária, conforme já aludido acima por Azeve-
do e Cifali (2015), além do fascismo social que está emergente na
lacuna do contrato social da modernidade (SANTOS, 2003; RO-
DRIGUES, 2019), um segmento mais forte se arvora o poder de
veto a respeito da vida e os direitos vitais de segmentos fragmen-
tados e frágeis.
Por sua vez, Wacquant (2001) entende que a onda neolibe-
ral é decisiva para compreender mudanças no direito penal e suas
consequências práticas por meio da construção e, também poste-
riormente, a internacionalização, da razão punitiva. Isto na medida
em que “põe em relevo os laços orgânicos, tanto ideológicos como
práticos, entre o perecimento do setor social do Estado e o desdo-
bramento de seu braço penal” (WACQUANT, 2001, p. 13). Con-
vém atentar para as duas dimensões que o autor está conectando,
como mecanismos concomitantes e contraditórios. Ao discorrer
sobre a miséria das prisões e das prisões da miséria tenta mostrar
que a efetivação de políticas neoliberais em diversas áreas também
se conjuga como o alargamento do encarceramento. Em especial a
ideologia conhecida como tolerância zero, que se espraiou também
em nações latino-americanas, concorre diretamente para endure-
cer a regulamentação dos segmentos empobrecidos ou do mercado
informal de trabalho, bem como insiste em perpetuar uma ordem
social avessa ao bem-estar de todos. 167

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 167 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

A partir de uma abordagem sociológica, que rompe com uma


tradição dualista, no contexto da realidade brasileira do século XXI
se identificam dois movimentos de mudanças simultâneas (WAC-
QUANT, 2015): o incremento de políticas de bem-estar social e a
inovação em políticas penais. Estes são dois passos da mesma engre-
nagem do Estado ou de uma única organização reconhecida como
poder do campo burocrático.

A primeira corresponde à parcela encarregada das funções


sociais (de educação, saúde, trabalho, habitação etc.), direcio-
nadas à parcela da população desprovida de capital econômi-
co e cultural e dependente da proteção e amparo do Estado. A
mão direita, por sua vez, se materializa na função de discipli-
na econômica, que envolve políticas de austeridade, cortes de
orçamento, incentivos fiscais e desregulamentação do merca-
do (GREGORUT, 2020, p. 198).

No âmbito do Poder Judiciário, a adesão às correntes puniti-


vistas resta confirmada pelo posicionamento do Superior Tribunal
de Justiça e também do Supremo Tribunal Federal, especialmente
sobre matérias referentes à execução penal, cuja consciência de
natureza técnica deveria estar voltada para a dilatação do output
e estreitamento do input do sistema. Por exemplo, a execução da
pena aplicada antes do trânsito em julgado de qualquer sentença
condenatória, possibilidade de unificação de penas de crimes pu-
nidos com reclusão e detenção para definição de regime inicial de
cumprimento da sanção imposta etc. Estereótipos e estigmas são
como as funções sociais subjacentes ou latentes. Isto porque o “o
direcionamento da criminalização aos grupos sociais marginaliza-
dos, de fato, tem como efeito, até pelo fato de envolver a aplicação
de sanções estigmatizantes, a consolidação de carreiras crimino-
sas entre essas pessoas que ficam mais expostas ao sistema penal”
(SANTELLI e BRITO, 2013, p. 73).
A tendência conservadora da Magistratura Nacional aderindo
às correntes punitivistas de controle social é mostrada por Carvalho
(2010) ao citar uma investigação sob os auspícios da Associação dos
168 Magistrados Brasileiros entre os anos de 2005 e 2006, onde cerca de

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 168 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

3.000 (três mil) juízes responderam questões relativas, entre outras,


à questão política criminal e constatou-se que

o ambiente extremo de violência que atinge as grandes cidades


brasileiras influencia o comportamento da magistratura. A ca-
tegoria coloca-se como protagonista importante do combate à
criminalidade e anseia pela instituição de formas mais podero-
sas para combatê-la, seja por meio de alterações legislativas ou
da instrumentalização de procedimentos que possam ser apli-
cados no combate ao crime (CARVALHO, 2010. p. 104-105).

Essa repressão judicial também restou comprovada pelos da-


dos divulgados pelo Levantamento Nacional de Informações Pe-
nitenciárias do mês de junho de 2014 demonstravam que 607.731
presos e presas se empilham num sistema que pelo desenho teria
376.669 vagas. Os dados revelam no total uma taxa de ocupação de
161%, números que sinalizavam a gravidade da situação do sistema
prisional brasileiro e as mazelas desse estado de coisas.
No entanto, a divulgação desses números foi insuficiente para
uma reflexão crítica sobre as causas e a afirmação de critérios de
interpretação por parte dos atores estatais que dirigem as agências
que integram o sistema de justiça penal. Arcando com a dimensão
conservadora ou autoritária de parte da esfera institucional, repli-
cando a ansiedade punitiva de setores específicos da sociedade bra-
sileira, amparam-se na crença da redenção pela via da produção de
dor por meio de castigos. Neste sentido, no ano de 2016 o número
de presos e presas no Brasil aumentou para 726.712, sendo que 40%
desse total corresponde a pessoas que ainda não haviam sido julga-
das, ou absolvidas ou condenadas7.
A ótica de restrições ao poder de Estado de Direito para am-
pliar a lógica de mercado desloca igualmente o eixo das políticas de
bem-estar social para uma outra perspectiva que são as políticas que
levam à penalização da pobreza. Mesmo na vigência do Estado alu-

7 Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen, Ju-


nho/2016. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/
infopen-levantamento-nacional-de-informacoes- penitenciarias-2016/relato- 169
rio_2016_22111.pdf.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 169 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

dido quando se debilita o pacto social, se endurece o encarceramento


está posta em questão a reprodução social mesmo com a ampliação
do acesso ao consumo coletivo. O acirramento possui base objetiva
ou imaginária e por isto Azevedo e Cifali (2015, p. 122) aludem a

indicadores na área da segurança, impactada pelo novo cres-


cimento das taxas de homicídio e pela crescente sensação de
insegurança, que dá margem ao recrudescimento dos discur-
sos de lei e ordem, redução da maioridade penal, aumento
de penas e outras medidas vinculadas ao populismo punitivo.

Com a nova gestão da miséria (WACQUANT, 2007; 2015)


verifica-se: tanto a fragilidade de critérios em face da elaboração
ou inovação nas leis penais quanto uma tendência quanto à banali-
zação de prisões cautelares; se incrementa ou reforça a violação de
garantias fundamentais como os direitos sociais e a presunção de
inocência; se aposta que medidas definidas como excepcionais que
vão paulatinamente se tornando práticas rotineiras em nome de um
suposto bem maior afirmado pela lei e garantia da ordem, bem como
o combate persistente à criminalidade que frequentemente consiste
num protesto contra as terríveis desigualdades. A criminalização
e o punitivismo possuem expressões no âmbito institucional e nas
práticas sociais, razão pela qual ao analisar o nexo entre Judiciário,
sociedade e os indígenas no Mato Grosso do Sul, Santelli e Brito
(2013, p. 275) confirmam uma tragédia social e humanitária.

Consegue-se, desse modo, retardar o atendimento à premen-


te necessidade de que sejam demarcadas as terras que antes
habitavam e das quais hoje dependem para a sobrevivência
biológica e cultural de seus povos. Estigmatizando indígenas
a fim de conquistar o apoio social necessário para manter e
aumentar seu poder, não indígenas afetam seu sentimento de
autoestima, dificultam a formação de laços coerentes entre
seus membros, reduzem-lhes as chances de vida, negam-lhes
a dignidade que reconhecem a si, privam-nos de qualquer va-
lor humano. Indígenas, imensamente mais vulneráveis que
não indígenas nesse local, sofrem as mais bárbaras violações
170 aos seus direitos humanos.

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 170 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

A crença nas funções declaradas da pena domina as medidas


legislativas existentes no país ao preverem, entre outras, o endure-
cimento diante de demandas sociais de grupos minoritários e para
o cumprimento das penas como forma de proteção da sociedade,
solução para segurança pública e automaticamente “cumprir o pacto
mudo que opera o traslado da barbárie para o paraíso” (ANDRA-
DE, 2012, p. 135). Diante disso, continua Andrade (2015. p. 84-89)
a afirmar que o sistema penal funciona com uma eficácia invertida
sendo que “do ponto de vista instrumental, é um fracasso, por não
conseguir combater a criminalidade; do ponto de vista das funções
não declaradas, é um sucesso, porque os índices de criminalização
não cessam de se produzir”. O discurso sedutor das funções declara-
das da pena somado aos escudos protetores da tolerância zero, para
justificar a junção da lei à da ordem, levam as pessoas a acreditar
que a severidade das leis funciona o que impede a visibilidade das
barbáries cometidas no aprisionamento brasileiro.
Embora a preocupação com a violência e a segurança pública
sejam legítimas encontram-se também em ação segmentos sociais
para quem é fundamental a luta política para debelar a crença de que a
rigorosidade da lei penal, seja na criação de outros tipos penais ou na
aplicação exacerbada de penas privativas de liberdade, é capaz de pro-
duzir qualquer resultado útil para a redução da criminalidade. Nesta
crítica se põe liberais e defensores dos direitos humanos, cujo empe-
nho “também contribuiu para limitar os arroubos do populismo pu-
nitivo de grupos mais radicais” (AZEVEDO e CIFALI, 2015, p. 111).
Esta é uma referência direta a grupos e segmentos sociais
cuja radicalidade se inscreve no fascismo social, cujas expressões
também soam diversificadas. A partir de diversas publicações de
Boaventura Souza Santos as políticas neoliberais ensejam ou ex-
plicitam modelos fundantes desta ótica do fascismo: o contratual,
o fascismo financeiro, o apartheid social, o Estado paralelo, o pa-
raestatal, o da insegurança.
Assim sendo, a criminalização de condutas serve apenas como
cortina de fumaça para obscurecer problemas políticos, sociais e
econômicos, não produzindo qualquer resultado útil para a redução
da criminalidade, pelo contrário, apenas aumenta o referido índice. 171

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 171 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

A elaboração de leis penais é uma formulação simbólica para obnu-


bilar problemas sociais a partir de suas causas, mas tardiamente, a
partir de suas consequências.
A violência da pena programada pelo poder constituído e ra-
cionalizada pelo saber jurídico tem produzido um verdadeiro ge-
nocídio social pelo grande encarceramento e pelo aprisionamento
cautelar em massa. As promessas legitimadoras desse sistema puni-
tivo têm sido declaradas no sentido de que é capaz de proteger bens
jurídicos através do combate eficaz à criminalidade ao combinar a
retribuição (castigo) e a intimidação (medo), somadas à neutraliza-
ção e ressocialização, reinserção, reeducação, reabilitação e uma in-
finidade de “res” buscadas na execução penal.
Historicamente restou demonstrado que as promessas oficial-
mente declaradas apresentam uma eficácia meramente simbólica por
não serem cumpridas, ou seja, o efeito da prisão no tocante à preven-
ção geral é questionável, sendo possível afirmar que a severidade das
penas não induz à diminuição da quantidade de crimes e o medo do
castigo não impede que um delito seja praticado. Quanto à prevenção
especial, a Criminologia e a Sociologia já demonstraram que a neutra-
lização não “combate” mas “constrói” o criminoso e a criminalidade
e a ressocialização é impossível diante da destruição da personalida-
de e produção de reincidência. A penalização e encarceramento nas
condições em que se encontra no Brasil neste início do século XX,
não cumpre a sua função social pretendida de ressocialização, mas ao
contrário. Este aspecto fica corroborado com a ação e multiplicação
das milícias e organizações criminosas que se formaram também no
interior do sistema prisional e nada parece suficiente para detê-las.

Considerações finais

Concluímos aderindo ao entendimento da crítica criminológi-


ca no sentido de que numa sociedade capitalista a prisão somente é
capaz de promover dor e sofrimento8, sendo incapaz de cumprir suas

8 “De 2009 a 2018, o Ministério da Saúde registrou 80 mil casos de tuberculose


172 e 853 mortes causadas pela doença em pessoas que estão privadas de liberdade....
Há uma epidemia de tuberculose nos presídios, confirma Carla Machado, profes-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 172 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

promessas metafísicas, uma vez que foi criada em consonância com as


exigências de um sistema de acumulação vigente e historicamente uti-
lizado para manter as desigualdades. As teorias relativas justificado-
ras da pena – ao contrário das absolutas que justificam o castigo pela
necessidade de retribuição ao mal causado pelo crime – fundamentam
a sua imposição como forma de prevenção do crime, dividindo-se em
prevenção geral e especial, ambas com viés positivo e negativo.
A prevenção social positiva está amparada no pensamento de
Durkheim ao definir a necessidade da pena como forma de restabe-
lecer a ordem social abalada pela prática do crime. A crítica crimino-
lógica para esta função da pena como privação de liberdade afirma
que esta alcança somente determinados níveis de visibilidade social
ou para aqueles delitos que causam certo alarma social, não inter-
ferindo na cifra oculta da criminalidade, circunstância que reforça
a seletividade do sistema penal e que incide também nos processos
visando a criminalização. No tocante à prevenção especial é sabido
que está direcionada ao desviante e justifica o castigo para inibir que
o criminoso volte a cometer novos crimes e se tornar reincidente.
O viés negativo desta teoria está voltado para a neutralização e
isolamento do cidadão simplesmente pelo fato de que preso, em tese,
não praticará mais crimes. No entanto, o cotidiano demonstra que,
mesmo presas as pessoas continuam cometendo atos ilícitos dentro
dos presídios e dos presídios para fora, utilizando-se de modernos
meios de comunicação. Para a Criminologia o problema das prisões são
as próprias prisões que aviltam, humilham, enxovalham e despertam
no preso seus valores preferencialmente negativos, circunstância que
nos leva a concluir de que as prisões não impedem a contravenção e o
cometimento de crimes. E, em certas circunstâncias, até os promovem.
Notadamente, é sabido que a questão da segurança social em
face das práticas de crimes foi identificada como quesito de alta com-
plexidade. Mais do que se imagina usualmente, pois que se pode ter
em vista a ponderação do sociólogo Emile Durkheim a mais de um

sora do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Federal


de Minas Gerais (UFMG)”. Disponível em https://apublica.org/2020/03/em-
-alerta-por-coronavirus-prisoes-ja-enfrentam-epidemia-de-tuberculose/?utm_ 173
source=Celular&utm_medium=Whatsapp&utm_campaign=Corona_17_03
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 173 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

século: o crime é um fato social normal em qualquer sociedade. Em


outros termos, crime e castigo encontram-se diretamente vinculados
às relações sociais em dado momento da história de uma sociedade.
Apesar de óbvias algumas afirmações, costumam produzir um choque
em especial na visão onde se imagina que há órgãos e instituições com
o pretexto de debelar ou deletar o crime e instaurar a paz e a ordem.
O aprisionamento se apresenta um mecanismo fundamental
para manter a estrutura vertical da sociedade, pois de certo modo
obstrui os protestos contra a iniquidade ao condenar predominan-
temente uma classe social. Igualmente possui como meta colateral
punir estratégias da ascensão social das classes subalternas, na me-
dida em que informa a cada qual estar ciente de seu lugar social. As
práticas no sistema judicial, em termos gerais ou predominantemen-
te, reforçam a teoria da seletividade do sistema penal e, que por sua
vez estão conectadas aos processos de criminalização denunciados
pela teoria do etiquetamento, dificultando a reinserção social. As duas
teorias aludidas em síntese podem ser entendidas como recortes da
mesma problemática, sob ângulos complementares. O percurso da
seletividade mostra a vigência de um perfil preferencial quanto ao
público a ser submetido ao encarceramento. Em outros termos, se
denuncia a filtragem relacionada diretamente às condições do capital
social, econômico e cultural. O mesmo Estado que tem o dever legal
de ofertar estes capitais é o que pune os cidadãos por sua insuficiência.
Por fim, diante dos mecanismos abordados como intento de
manter iniquidades sociais cabe destacar as desigualdades como um
fato social persistente. O texto retoma o debate sobre o fenômeno
das desigualdades como uma construção histórica também a partir da
atuação do Judiciário. Há que compreender que neste campo também
existe uma disjunção entre desigualdades e direitos como continuida-
de e descontinuidade (RUSCHEINSKY, 2008). Apesar dos mecanis-
mos intermediários de deliberação sobre demandas sociais, no campo
jurídico se afiança uma espantosa persistência de múltiplas desigual-
dades. Se os direitos humanos se consolidaram ao longo dos anos
como construção social tensionada por conflitos, o texto apontou um
conjunto de paradoxos que comparecer como explícitos obstáculos ou
174 no mínimo embaraços à democracia em território brasileiro.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 174 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Referências
ADORNO, S. Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na
contemporaneidade. Tempo Social, v. 10, n. 1, pp. 19-47, 1998.
ALVAREZ, M. C. A criminologia no Brasil ou como tratar desigual-
mente os desiguais. Dados, v. 45, n. 4, pp. 677-704, 2002.
ANDRADE, V. P. R. Pelas Mãos da Criminologia: o controle penal
para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
ANDRADE, V. P. R. Qual alternativismo para a brasilidade? Política
Criminal, Crise no Sistema Penal e Alternativas à prisão no Brasil.
Revista de Estudos Criminais, Ano XIV, n. 59, 2015.
ANITUA, G. I. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de
Janeiro: Revan, 2008.
AZEVEDO, R. G. Para Além do Punitivismo: A invenção de novas
alternativas de combate à violência para uma sociedade democrática
e complexa. In: Violência e Controle Social na Contemporaneidade:
Anais do I Ciclo de Estudos e debates sobre violência e controle
social. Porto Alegre: PUCRS, 2006.
AZEVEDO, R. G.; CIFALI, A. C. Política criminal e encarceramen-
to no Brasil nos governos Lula e Dilma: Elementos para um balanço
de uma experiência de governo pós-neoliberal. Civitas – Revista de
Ciências Sociais, v. 15, n. 1, pp. 105-127, 2015.
CARVALHO, S. O papel dos atores do sistema penal na era do
punitivismo: o exemplo privilegiado da aplicação da pena. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2010.
DURKHEIM, É. As regras do método sociológico. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 1999.
GREGORUT, A. S. A sociologia da punição de Loïc Wacquant como
abordagem crítica no campo do direito e desenvolvimento. Dilemas, v.
13, n. 1, pp. 195-211, 2020.
LAHUERTA, M. A democracia difícil: violência e irresponsabilidade
cívica. Estudos de Sociologia, v. 6, n. 10, pp. 35-50, 2001.
MELLIM FILHO, O. Criminalização e Seleção no Sistema Judiciá-
rio Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2010. 175

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 175 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

MOLINA, G.-P.; GOMES, L. F. Criminologia. São Paulo: Revista dos


Tribunais, 2002.
RODRIGUES, F. R. A Crise do Contrato Social da Modernidade, A
Emergência do Fascismo Social e o Lulismo. Multi-Science Journal,
v. 2, n. 1, pp. 43-46, 2019.
RUSCHEINSKY, A. Desigualdades persistentes, direitos e democracia
contemporânea. Ciências Sociais Unisinos, v. 44, n. 1, pp. 49-57, 2008.
SANTIN, G. Mídia e Criminalidade: uma leitura interdisciplinar a
partir de Theodor Adorno. [Dissertação de Mestrado]. Porto Ale-
gre: PUC-RS, 2006.
SANTOS, B. S. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica
de Ciências Sociais, n. 65, pp. 3-76, 2003.
SANTOS, J. C. Direito Penal – Parte Geral. Florianópolis: Conceito
Editorial, 2010.
SAAVEDRA-GARCÍA, J. A.. El derecho penal: de las ideas liberales
a la manipulación electoral. Derecho y Realidad, v. 12, n. 23, pp.
176-180, 2014.
SANTELLI, I. H. S.; BRITO, A. G. Da sociologia do desvio à cri-
minologia crítica: os indígenas de Mato Grosso do Sul como outsi-
ders. Ciências Sociais Unisinos, v. 50, n. 1, pp. 65-76, 2013.
SHECAIRA, S. S. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
WACQUANT, L. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos
Estados Unidos [A onda punitiva]. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
WACQUANT, L. “Towards a Dictatorship over the Poor? Notes on
the Penalization of Poverty in Brazil”. Punishment and Society, v. 5,
n. 2, pp. 197-205, 2015.

176

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 176 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Diálogos entre a lógica da inimizade e o direito


penal: consequências na política criminal brasileira

Carlos Inácio Prates

A lógica da inimizade como um campo


para o debate acadêmico

A lógica da inimizade deriva do fato de se tratar o Outro como


inimigo. Segundo França (2012), a pertinência das reflexões, dos
tratados e dos debates cria uma narrativa da história que aponta
para a inconveniência de sua existência, e ao mesmo tempo com-
prova que a inimizade é uma questão perene. Deste modo, sempre
é possível identificar em todo agrupamento social a existência de
um indivíduo ou de um grupo de pessoas com uma característica
peculiar que os classifica como inimigos (estrangeiro, discrimina-
do, penalizado, marginalizado, outsider). Em sua maioria, estes são
reconhecidos em aldeias, clãs, reinos, nações, que, em decorrência
de crença, poder ou interesses variados, representam uma ameaça a
uma determinada sociedade.
Para este autor, o resgate histórico indica que por imperativos
das distinções sociais, por exigência da segurança do Estado, por
necessidade de sobrevivência do capitalismo ou por imposições de
segurança urbana, é identificada uma categoria de indivíduos pela
qual se canaliza a hostilidade de um grupo social. Portanto, em todos
os períodos, o “inimigo” condicionado à realidade histórica sempre
foi identificável. Assim, resultante das diversas ideologias cunhadas
pelas estruturas sociais e dos diferentes horizontes de projeção das
estruturas políticas, são reconhecidas variações de racionalidade e
do exercício de poder investidos contra ele. Portanto, a intensidade
do combate que lhes foi proporcionado depende do grau da necessi-
dade de expiação do contexto em que estavam inseridos. Para Zaffa-
roni (2012, p. 22), o tronco do inimigo
177

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 177 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

abarcará todos os que ‘incomodam o poder’, os insubordina-


dos, indisciplinados ou simples estrangeiros, que como ‘es-
tranhos’, são desconhecidos e, como todo desconhecido, ins-
piram desconfiança e, por conseguinte, tornam-se suspeitos
por serem potencialmente perigosos.

Então, bastaria a existência do estranho, seja como “estrangei-


ro” ou como “outro”, para ser compreendido como inimigo (FRAN-
ÇA, 2011). Logo, ao não se compreender o estrangeiro, por não ser
possível comunicar-se com ele, visto falar uma língua ininteligível,
não há comunicação possível. Assim, estrangeiros podem ser de-
nominados como bárbaros, devido à língua e costumes ou cultura
incompreensível. Por conseguinte, nas subclassificações desta cate-
goria incluem-se o estrangeiro que é explorado – desde o prisio-
neiro escravizado até o migrante da atualidade. Trata-se sempre de
um estrangeiro vencido, o que gera a necessidade bélica ou econô-
mica, e, portanto, deve ser vigiado porque todo prisioneiro tentará,
enquanto puder e houver oportunidade, se subtrair da sua condi-
ção subordinada. Na atualidade se configura também os migrantes
como ameaça, na medida em que parecem ter sumidas as condições
para torná-lo um explorado, tendo em vista o desemprego estrutu-
ral, como é o caso, por exemplo, da Europa.
Para Zaffaroni (2012), o “inimigo” ou “estranho” nunca desa-
pareceu da realidade operativa do poder punitivo (teoria jurídico-
-penal). Trata-se de um conceito que atravessa a história do direito
ocidental e penetra na modernidade, não apenas no pensamento de
juristas, como também no de certos filósofos e teóricos políticos.
Assim, Zaffaroni (2011) destaca que o “inimigo” é uma construção
tendencialmente estrutural do discurso legitimador do poder puni-
tivo. Zaffaroni (2013, p. 32) se utiliza do discurso da demonologia1
para revelar a estrutura de um instrumento discursivo que propor-
ciona a base para se criar um estado de paranoia coletiva que serve
para aquele que opera o poder punitivo o exerça sem nenhum limite
e contra quem lhe incomoda:

178 1 Cf. KRAMER, H.; SPRENGER, J. O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro:
Rosa dos Tempos, 2009.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 178 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

1. alega-se uma ‘emergência’, como uma ameaça extraordi-


nária que coloca em risco a humanidade, quase toda a hu-
manidade, a nação, o mundo ocidental etc.;
2. o medo da emergência é usado para eliminar qualquer
obstáculo ao poder punitivo que se apresenta como a única
solução para neutralizá-lo;
3. tudo o que se quer opor ou objetar a esse poder é também
um inimigo, um cúmplice ou um “idiota” útil. Por conse-
guinte, vende-se como necessária não somente a elimina-
ção da ameaça, mas também a de todos os que objetam
ou obstaculizam o poder punitivo, em sua pretensa tarefa
salvadora.

A lógica da inimizade em Carl Schmitt

Ao cientista social cabe explicar o como, o onde, o porquê e a


forma como os fenômenos sociais ocorrem em seu tempo e espaço.
Para Schmitt (2009), o político tem suas próprias categorias. Assim,
enquanto no âmbito do moral o critério diferencial é entre “bom”
e “mau”; no estético, é entre “belo” e “feio”; no econômico, “útil” e
“prejudicial” ou “rentável” e “não-rentável”; no político é entre “ami-
go” e “inimigo”. Esta diferenciação tem o propósito de caracterizar
o extremo grau de intensidade de uma união ou separação, de uma
associação ou desassociação. O hostil é precisamente o Outro que de
um modo intenso seja existencialmente estranho, de modo que, no
caso extremo, seja possível ocorrer com ele conflitos que não podem
ser decididos nem através de um sistema de normas pré-estabeleci-
das, nem mediante a intervenção de um terceiro (tertius), não envol-
vido e por isso imparcial. Assim, o caso de conflito extremo só pode
ser resolvido pelos próprios envolvidos entre si, e cada um deles só
pode decidir se o caráter diferente do desconhecido significa a nega-
ção do próprio tipo de existência, e se será repelido ou combatido a
fim de resguardar o tipo de vida próprio e ôntico.
Para Schmitt (2009), inimigo é um conjunto de pessoas em
combate ao menos eventualmente, segundo a possiblidade real e que
se defronta com um conjunto idêntico. Assim, o conceito correspon- 179

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 179 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

de à eventualidade de um combate, evento existente no âmbito do


real e que implica a possibilidade de morte física de pessoas. Trata-
-se do “inimigo público”, pois se refere a um conjunto semelhante de
pessoas, e não ao concorrente, ao infrator ou ao adversário privado,
a quem se odeia por sentimentos de antipatia. Então, para Schmitt
(2009), o verdadeiro inimigo político em relação ao qual é sempre
colocada a possibilidade de guerra2, como negação absoluta do outro
ser ou realização da extrema hostilidade. Portanto, como realização
extrema de inimizade – que é a negação ôntica de um outro ser –
tem que permanecer existente como possibilidade real, na medida
em que o conceito de inimigo conserva seu sentido.
Deste modo, para o autor, a contraposição mais intensa e ex-
trema é a política, e toda dicotomia concreta é tão mais política quan-
to mais ela se aproxima do ponto extremo: o agrupamento do tipo
amigo-inimigo. Logo, todas as representações, palavras e conceitos
políticos têm em vista uma divergência concreta; estão vinculados a
uma situação concreta, cuja última consequência constitui um agru-
pamento típico que se expressa em guerra ou revolução; ou se con-
vertem em abstrações vazias e fantásticas quando desaparece essa
situação. Portanto, palavras como, “república”, “sociedade”, “classe”,
“soberania”, “absolutismo”, “ditadura”, “Estado”, “Estado de Direito”,
“Estado neutro” ou “Estado total”, são incompreensíveis quando não
se sabe quem deve ser, in concreto, atingido, combatido, negado e re-
futado com tal palavra. Em consequência, questões terminológicas
se tornam questões de alta política, e uma palavra ou expressão pode
ser, simultaneamente, reflexo, sinal, distintivo e arma de um conflito.
Porém, a existência política não é tratada somente como guerra san-
grenta, e nem toda ação política é uma ação militar de combate, como
se, ininterruptamente, todo povo fosse colocado constantemente pe-
rante outro povo, diante da alternativa polarizada como se o politica-
mente correto não fosse evitar a guerra.

2 Para Schmitt (2009), “guerra” é um combate armado entre unidades políticas or-
ganizadas, enquanto “guerra civil” é um combate armado no interior de uma unida-
de organizada (que se torna, por isso problemática). O pensamento aqui é de que um
180 povo não poderia guerrear contra si mesmo e uma “guerra civil” significaria somen-
te autodilaceramento e não formação de um novo Estado ou mesmo de um povo.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 180 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Isto é, para Schmitt (2009), a definição de política não é uma


definição belicista nem militarista, nem imperialista, nem pacifista.
Nem tampouco de apresentação da guerra vitoriosa como conti-
nuação da política por outros meios, ou da revolução bem-sucedida
como “ideal social”. A política pressupõe a existência da decisão de
definir o oposto e que possui seus próprios pontos de vista, suas
próprias estratégias e táticas. Claro está para o autor, que de modo
nenhum a guerra é o objetivo, a finalidade e o conteúdo da política,
sendo antes o pressuposto sempre existente como real possibilida-
de, e que determina de forma singular a ação e o pensamento huma-
no, provocando, dessa maneira, um comportamento especificamente
político. Nesse rumo, o caso da guerra é o caso crítico3, o caso ex-
cepcional que tem um significado decisivo e revelador do cerne das
coisas, pois é no combatente real que primeiramente se manifesta a
extrema consequência do agrupamento político.
Por conseguinte, a possibilidade do combate real é apenas
normativa, e a decisão é se este caso está dado ou não. Logo, o fato
desse caso ocorrer apenas excepcionalmente não elimina seu cará-
ter definidor, mas o fundamenta. Isso não significa que a neutra-
lidade não possa ser possível ou politicamente razoável, mas que,
como todo conceito político, estaria subordinada ao pressuposto
de uma possibilidade real de agrupamento de contraposições. Se
só houvesse neutralidade, com isso terminariam eventos bélicos
como também a própria neutralidade, da mesma forma com toda
política. Por isto

um mundo no qual a possibilidade de semelhante combate es-


tivesse completamente eliminada e desaparecida, um planeta
definitivamente pacificado, seria um mundo sem a distinção
entre amigo e inimigo, por conseguinte, um mundo sem polí-
tica (SCHMITT, 2009, p. 37).

3 De acordo com Gonzalez e Lentz (2012, p. 131) “Os tribunais de crimes de


guerra buscavam punir os comandantes e governantes de mais alto escalão pelas
mortes ocorridas no conflito, buscando com isto um efeito simbólico, uma vez que
era impossível processar e punir todos os envolvidos com a guerra nos países ven-
cidos. Na insuficiência do direito internacional vigente, resgataram-se princípios 181
do direito natural para fundamentar as acusações”.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 181 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Para Schmitt (2009) é a partir desta mais extrema possibilidade


que a vida do ser humano adquire sua tensão especificamente políti-
ca. Logo, não interessa para a definição do conceito de político se o
mundo sem política é desejado como estágio ideal, mas, sim, que o
fenômeno político só pode ser compreendido por meio de referência
à possibilidade real dos socialmente contrapostos. Assim, a guerra
como o mais extremo meio político evidencia a possibilidade desta
distinção subjacente a toda representação política, e só tem sentido
enquanto esta distinção estiver realmente na humanidade ou ser real-
mente possível. Para o autor, seria absurdo uma guerra conduzida por
motivos puramente religiosos, morais, jurídicos, econômicos, porque
a partir das contraposições específicas desses âmbitos da vida huma-
na não se pode derivar o agrupamento polarizado. Mas, as contra-
posições religiosas, morais, entre outras, podem aprimorar-se como
contraposições políticas, a ponto de provocar o agrupamento decisivo
de combate entre dois lados. Logo, se ocorrer esse agrupamento de
combate, a contraposição normativa passa a ser não mais a puramente
religiosa, moral ou econômica, mas política. De modo que:

Assim, a questão continua sendo apenas se tal agrupamento


do tipo amigo-inimigo existe ou não como possibilidade real
ou realidade, não importando quais motivos humanos são
fortes o suficiente para suscitá-lo (SCHMITT, 2009, p. 38).

Portanto, só teria força política o que é forte o suficiente para


agrupar os seres humanos em posições contrapostas. Ou seja, se um
motivo se afirma como político, se assume a guerra, mesmo como
eventualidade extrema. Então, para a distinção operada para o co-
nhecimento político, o que unicamente interessa é a possibilidade
real. Se eventos bélicos são, necessariamente, intensos e desumanos,
são porque

‘ultrapassando o âmbito do político’, simultaneamente rebai-


xam o inimigo a categorias morais entre outras, e se veem
forçadas em transformá-los em um monstro desumano, o
qual há de ser não só repelido, como também definitivamente
182 ‘exterminado’ (SCHMITT, 2009, p. 39).

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 182 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Schmitt tinha ciência da ambivalência do seu conceito de ini-


migo, e que se define pela sua capacidade real de possibilitar a exis-
tência do conflito, levada à sua expressão máxima na guerra. A hos-
tilidade se apresenta então como categoria que estrutura o sentido
do político, e que legitima a ação e as relações sociais. A decisão
nomeia o inimigo como ação política e subjacente a qualquer ato bé-
lico – é a partir da decisão do reconhecimento do inimigo interno e
externo que este, enquanto possibilidade resultante da hostilidade,
revela o seu acontecer.

A lógica da inimizade repaginada na ótica


em Giorgio Agamben

Para Agamben (2007), os gregos não possuíam um termo úni-


co para exprimir a palavra “vida”. Assim, serviam-se de dois ter-
mos, semântica e morfologicamente distintos: zoe, que exprimia o
simples fato de viver comum aos seres vivos (animais, homens, deu-
ses) e bios, que indicava a forma ou maneira de viver própria de um
indivíduo ou de um grupo, a vida qualificada, um modo particular
de vida. Consequentemente, “o ingresso da zoe na esfera da pólis, a
politização da vida nua como tal constitui o evento decisivo da mo-
dernidade” (AGAMBEN, 2007, p. 9). Dessa circunstância, somente
uma reflexão que interrogue tematicamente a relação entre a vida
nua e a política poderá fazer sair o político de sua ocultação. Logo,
as análises do modelo jurídico-institucional e do modelo biopolítico
do poder em que a vida é objeto dos cálculos e das previsões do po-
der estatal não podem ser separadas, pois a implicação da vida nua
na esfera política constitui o núcleo originário do poder soberano,
ainda que encoberto.
Enfim, o Estado moderno implica na aparição do vínculo se-
creto que une o poder à vida nua. Esta significa aquilo que deve ser
politizado desde sempre, e que tem, na política ocidental, o privilé-
gio de ser aquilo sobre cuja exclusão se funda a cidade dos homens.
Portanto, a política ocidental é constituída primeiramente através
de uma exclusão/implicação da vida nua. Por conseguinte, para o
autor, a dupla categorial fundamental da política ocidental é aquela 183

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 183 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

da vida nua/existência política, exclusão/inclusão. Logo, se mos-


tra importante analisar a estrutura de exceção, no qual a vida nua
era, ao mesmo tempo, excluída e capturada pelo ordenamento, e que
constituí o fundamento oculto sobre o qual repousa o sistema políti-
co. Assim, o espaço da vida nua, situado originariamente à margem
do ordenamento, vem progressivamente coincidir com o espaço po-
lítico, em que exclusão e inclusão, externo e interno, bios e zoe, di-
reito e fato entram em uma zona de irredutível indistinção, como se
estivessem no campo da exceção: um caso singular que é excluído da
norma geral, uma espécie de exclusão.
O que caracteriza propriamente a exceção, para Agamben
(2007), é que aquilo que foi excluído não está absolutamente fora
da relação com a norma, mas se mantém em relação a ela na forma
da suspensão. Isto é, a norma se aplica a exceção desaplicando-se,
retirando-se desta. Então, a situação, que vem a ser criada na ex-
ceção possui este particular, o de não poder ser definida nem como
uma situação de fato nem como uma situação de direito, mas institui
entre essas um paradoxal limiar de indiferença. Então, para o autor,
o soberano decide a implicação originaria do ser vivente na esfera
do direito e não entre lícito e ilícito. É diferente de Schmitt, com o
qual a soberania se apresenta na forma de uma decisão sobre a exce-
ção: o soberano é aquele no qual o ordenamento jurídico reconhece
o poder de proclamar o Estado de Exceção e de suspender, deste
modo, a validade do ordenamento. Portanto, a chave da captura da
vida pelo direito não será a sanção, mas a culpa (a dívida por um
posicionamento consciente de fins contrários ao ordenamento ju-
rídico). Ou seja, o ser incluído através de uma exclusão, o estar em
relação com algo do qual se foi excluído ou que não se pode assumir
integralmente. Aqui, a culpa não se refere à transgressão, ou seja, à
determinação do lícito e do ilícito, mas a pura vigência da lei, ao seu
simples referir-se a alguma coisa.
Desse modo, para Agamben (2007, p. 34) a “estrutura ‘so-
berana’ da lei, e o seu particular e original ‘vigor’ tem a forma de
um estado de exceção, em que fato e direito são indistinguíveis (e
devem, todavia, ser decididos)”. Por conseguinte, a vida somente
184 pode ser implicada na esfera do direito através da pressuposição da
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 184 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

sua exclusão inclusiva, numa exceção (exceptio). Isto é, existe uma


figura-limite da vida, um limiar em que ela está, simultaneamen-
te, dentro e fora do ordenamento jurídico, e este limiar é o lugar
da soberania. Segundo este autor, a esfera da decisão soberana ao
suspender a lei no Estado de Exceção, e assim implicar nele a vida
nua e matável, é uma esfera limite do agir humano que se mantem
unicamente numa relação de exceção. E, a decisão soberana traça
e renova este limiar de indiferença entre o externo e o interno,
exclusão e inclusão. Assim sendo para Agamben, a soberania não
é um conceito exclusivamente político nem uma categoria exclusi-
vamente jurídica, nem uma potência externa ao direito (Schmitt),
nem a norma suprema do ordenamento jurídico (Kelsen): ela é a
estrutura originaria na qual o Direito se refere à vida e a inclui em
si através da própria suspensão.
Por conseguinte, aquele que foi banido não é simplesmente
posto fora da lei, mas é abandonado por ela, ou seja, exposto e colo-
cado em risco no limiar em que vida e direito, externo e interno, se
confundem. Então, o que foi posto em bando é remetido a própria
separação e, entregue a vontade de quem o abandona, ao mesmo
tempo é excluso e incluso, dispensado e, simultaneamente, captu-
rado. Para Agamben (2007, p. 36): “A relação originaria da lei com
a vida não é a aplicação, mas o Abandono. A potência insuperável
do nómos, a sua originaria “força de lei”, é que ele mantém a vida
em seu bando abandonando-a”. Para Agamben (2007), esta zona de
indiferença, da vida de exilado, indica a relação política originaria
entre concidadão e estrangeiro, pois a externalidade daquele que
está sob o bando é mais íntima do que a estranheza do estrangeiro.
Por isso, destaca que “bandido” significa tanto “excluído”, “banido”
quanto “aberto a todos”, “livre”; e abandono e in bando, em italiano
quer dizer “à mercê de [...]”. Logo, o bando é propriamente a for-
ça, simultaneamente atrativa e repulsiva, que liga os dois polos da
exceção soberana: a vida nua e o poder. E, esta estrutura deve ser
reconhecida nas relações políticas e nos espaços públicos em que se
vive. Deste ponto de vista a respeito da biopolítica e da necropolítica
sentenciam Alvarenga e Junior (2019, p. 218) interpretando que
185

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 185 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Sem seus direitos, o soberano passa a ter total domínio de


suas vidas, tanto para deixá-los morrer como para fazê-los
morrer. Agamben (2004) reflete que tais princípios e funda-
mentos estão baseados em uma lógica de exceção, na qual as
regras legítimas são ignoradas pelo poder soberano, e suas
atitudes estão fora do plano legal.

Consequentemente, o relacionamento jurídico-político origi-


nário é o bando, estrutura formal e material da soberania, porque o
que ele mantém unidos são justamente a vida nua e o poder sobe-
rano. Assim, a constituição da vida nua é o conteúdo primeiro do
poder soberano, a produção da vida nua é a utilidade original da
soberania (poder político). Logo, na origem, se tem a sujeição da
vida a um poder de morte, a sua exposição na relação de abandono.

Não a simples vida natural, mas a vida exposta à morte (a


vida nua ou a vida sacra) é o elemento político originário
[...] Não se poderia dizer de modo mais claro que o funda-
mento primeiro do poder político é uma vida absolutamente
matável, que se politiza através de sua própria matabilidade
(AGAMBEN, 2007, p. 96).

Por conseguinte, para Agamben (2007), o fundamento do po-


der deve ser buscado, sobretudo, na conservação, da parte do so-
berano, de seu direito natural de fazer qualquer coisa em relação a
qualquer um, e que se apresenta como direito de punir. Portanto, do
ponto de vista da soberania, somente a vida nua é autenticamente
política, e não ao que se está acostumado a representar como seu
espaço, em termos de direitos do cidadão, de livre-arbítrio e de con-
trato social. Então, a violência soberana na verdade, não é fundada
sobre um pacto, mas sobre a inclusão exclusiva da vida nua no Es-
tado. E, o referente primeiro e imediato do poder soberano é, neste
sentido, a vida matável. Logo, “é preciso dispensar sem reservas to-
das as representações do ato político originário como um contrato
ou uma convenção, que assinalaria de modo pontual e definido a
passagem da natureza ao Estado (AGAMBEN, 2007, p. 115-116).
Isto é possível porque a relação de bando constituí desde a
186
origem a estrutura própria do poder soberano. De tal modo tem-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 186 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

-se, conforme Badiou (1996, p. 91), que “o Estado não se funda


sobre o vínculo social, que ele exprimiria, mas sobre a des-vincula-
ção, que ele interdita”. Para Agamben (2007), essa des-vinculação
não deve ser entendida como a dissolução de um vínculo preexis-
tente (que poderia ter a forma de um pacto ou contrato). Mas que o
vínculo tem originariamente a forma de uma dissolução ou de uma
exceção, na qual o que é capturado é, ao mesmo tempo, excluído.
Por isso, o vínculo soberano é mais originário que o vínculo da
norma positiva ou do pacto social. Na verdade, é uma dissolução
que implica e produz a vida nua, que, do ponto de vista da sobera-
nia, é o elemento político originário. Enfim, para Agamben (2007,
p. 38), “soberano é o ponto de indiferença entre violência (Bia) e
justiça (Dike), o limiar em que a violência traspassa em direito e
o direito em violência”. Dessa forma, para o autor, a dimensão na
qual o extermínio tem lugar não é nem religião nem direito, mas
biopolítica. Mas, como essas categorias schmittiana e agambianas
dialogam com o direito penal?

O Direito Penal do Inimigo: discussão e controvérsias

Na década de 1980, Günther Jakobs, traçou os primeiros li-


neamentos da teoria do Direito Penal do Inimigo4, retornando ao
seu estudo no final dos anos 1990. Em 2003, assumiu uma postura
inequívoca em sua defesa. Para ele, denomina-se “Direito” o vínculo
entre pessoas que são titulares de direitos e deveres, ao passo que
a relação com um inimigo não se determina pelo Direito, mas pela
coação. Para Jakobs (2012), todo Direito está vinculado à autoriza-
ção para empregar a coação e a coação mais intensa é a do Direito
Penal. E, nesse rumo, até poderia se argumentar que toda a pena e
até toda legítima defesa se dirige contra um inimigo. Então, quando
se pretende que uma norma determine a configuração de uma so-
ciedade é esperada a conduta em conformidade com a norma, e isso

4 Conforme o artigo ‘Criminalización en el estádio prévio a la lesión de un bien-


jurídico’ de 1985, p. 293-298, em que já caracteriza o Direito Penal do Inimigos
como um Direito que otimiza a proteção de bens jurídicos, enquanto o dos cida- 187
dãos otimiza as esferas de liberdade.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 187 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

significa que os cálculos das pessoas pressupõem que os demais se


comportarão de acordo com a norma, sem infringi-la.
Assim, o delito aparece como infração da norma, como deslize
reparável e não como princípio do fim da comunidade ordenada,
pois o ato em si não se dirige contra a permanência do Estado e suas
instituições. Por isso, o Estado Moderno trata o autor de um crime
como uma pessoa que mediante sua conduta tem danificado a vigên-
cia da norma, e que é chamado de modo coativo, como cidadão, para
equilibrar o dano, mediante a pena, mantendo-se a expectativa de-
fraudada pelo autor. Entretanto, nas situações em que a expectativa
de um comportamento pessoal é defraudada de maneira duradoura,
em casos que um indivíduo não admite ser obrigado a entrar em um
estado de cidadania, se diminui a disposição das regras do Direito
Penal em tratar o delinquente como pessoa – ser que tem direitos e
deveres. Isto é, dele participar dos benefícios do conceito de pessoa,
pois ele é considerado um inimigo que tem que ser destruído. Logo,
fica difícil lidar com este delinquente de caráter cotidiano como uma
pessoa que age erroneamente em vez de um indivíduo perigoso. Por
conseguinte, a necessidade de reação frente ao perigo que emana
da conduta reiteradamente contrária à norma, passa a um primeiro
plano, e o legislador elabora uma “legislação de luta”.
Nesses casos, não se trata mais de compensação de um dano
à vigência da norma, mas da eliminação de um perigo, referente
ao estado permanente de ausência de legalidade (status injusto) que
ameaça constantemente. Então, esse é um modo para combater indi-
víduos que de modo decidido tem se afastado do Direito. Seja em seu
comportamento (delitos sexuais), em sua vida econômica (criminali-
dade econômica/relacionada as drogas) ou mediante sua incorpora-
ção a uma organização (terrorismo e outras formas de criminalidade
organizada). Conforme leciona Silva Sánchez (2002, p. 149), é me-
diante “a reincidência, a habitualidade, a delinquência profissional
e, finalmente, a integração em organizações delitivas estruturadas”,
que é produzida a transição do “cidadão” ao “inimigo”. Dessa forma,
para Jakobs (2012, p. 36), o Direito Penal teria dois polos ou tendên-
cias em sua regulação:
188

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 188 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

1. o Direito Penal do cidadão (Biirgerstrafrecht), que lida com


o cidadão que não delinque de modo contumaz e espera
até que se exteriorize sua conduta para reagir, com o fim
de confirmar a estrutura normativa da sociedade. Aqui, se
mantém a vigência da norma e o status de pessoa; e,
2. o Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht), que se refere
ao inimigo, a quem se combate por sua periculosidade, já
que, por princípio, rechaça a legitimidade do ordenamento
jurídico e persegue a destruição dessa ordem. Logo, para
se combater os perigos tem-se a coação física frente ao
inimigo até chegar à guerra.

Assim, com os delinquentes, o Estado pode proceder de dois


modos: pode vê-los como pessoas que delinquem, que tenham co-
metido um erro, ou como indivíduos que devam ser impedidos de
destruir o ordenamento jurídico, mediante coação. Portanto, nem
todo delinquente é um adversário do ordenamento jurídico e só é
pessoa quem oferece uma garantia cognitiva suficiente de um com-
portamento pessoal esperado (“cidadão de bem”), pois toda norma-
tividade para ser real, necessita de um assentimento cognitivo cole-
tivo. Nesse rumo, para Jakobs (2012), tanto as leis quanto a doutrina
jurídica legitimam um tratamento diferenciado cuja punibilidade é
aumentada no âmbito da preparação – da vinculação da pena ao fato
planejado –, e que é interceptado por meio de uma custódia de segu-
rança antecipada antes da materialização do fato previsto (preven-
cionismo). Dessa forma, a pena se dirige à segurança frente a fatos
futuros, como acontece na prisão preventiva e nas autorizações de
medidas de supervisão5, das quais o imputado nada sabe no momen-
to de sua execução, porque as medidas só funcionam enquanto ele
não as conheça. Como corolário, institui-se a delação premiada em
que o inimigo arrependido – disposto a auxiliar o Estado no com-
bate a seus antigos companheiros – facilita o desmantelamento de
5 Por exemplo, medidas preventivas e cautelares como intervenção nas telecomu-
nicações, interceptação telefônicas e WhatsApp, ação controlada para realização da
prisão em flagrante no momento que for capturado o maior número de inimigos, 189
utilização de agentes infiltrados, quebras de sigilo bancário e fiscal (JAKOBS, 2012).
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 189 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

quadrilhas, prisões em massa e recuperação dos proveitos do crime,


bem como recebe benefícios processuais penais. Também, a execu-
ção penal deve ser mais rigorosa na tentativa de emendar o inimigo
e evitar a proliferação de outros. Logo, tem-se um modo do Estado
eliminar direitos de modo juridicamente ordenado.
Para Zaffaroni (2011), a individualização de um ser humano
como “inimigo” causa a negação jurídica da sua condição de pessoa,
característica do tratamento diferenciado que lhe é dado. Conse-
quentemente, a essência do tratamento diferenciado que se atribui
ao inimigo consiste em que o direito lhe nega sua condição de pes-
soa. Trata-se de uma referência a seres humanos que são privados
de certos direitos individuais, motivo pelo qual deixam de ser consi-
derados pessoas. Então, na medida em que se trata um ser humano
como algo meramente perigoso, e, portanto, necessitado de conten-
ção, dele é retirado o seu caráter de pessoa, ainda que certos direitos
(fazer testamento, contrair matrimônio, reconhecer filhos, ser pro-
prietário) lhe sejam reconhecidos. Desse modo, “não é a quantidade
de direitos de que alguém é privado que lhe anula sua condição de
pessoa, mas sim, a própria razão em que essa privação de direitos
se baseia, isto é, quando alguém é privado de algum direito apenas
por ser considerado pura e simplesmente um ‘ente perigoso’” (ZA-
FFARONI, 2011, p. 18). Esta situação representa para este autor, o
debilitamento do Direito Penal liberal de garantias.
Zaffaroni (2011) defende a tese de que o poder punitivo sem-
pre discriminou os seres humanos e lhes conferiu um tratamento
punitivo não correspondente à condição de pessoa quando conside-
rados perigosos ou nocivos. Então são assinalados como inimigos da
sociedade ou “estranhos” e não como pessoas com autonomia ética.
Dessa maneira, lhes são negados o direito de terem suas infrações
sancionadas dentro dos limites das garantias do Direito Internacio-
nal dos Direitos Humanos. Segundo Zaffaroni (2012), todo o Direito
Penal do século XX, na medida em que teoriza admitindo que seres
humanos são perigosos e, por isso devem ser segregados ou elimi-
nados, deixa de considerá-los como pessoas e, sem dizer, os coisifica,
oculta esse fato com racionalizações. Portanto, ao ocultar a admissão
190 da categoria de inimigo no Direito Penal por intermédio das racio-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 190 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

nalizações da doutrina penal, o Estado Liberal faz concessões ao Es-


tado Absoluto. Por conseguinte, a negação dos teóricos ao fenômeno
do endurecimento das legislações penais não se sustenta mais, haja
visto que os pretextos de situações de emergência, invocadoras do
Estado de Exceção, têm-se convertido em exceções constantes, como
ocorreu com a legislação de segurança latino-americana.
Dentro das características do Direito Penal do Inimigo, segun-
do Meliá (2012), estão tanto o enfoque simbólico quanto o ressurgi-
mento do punitivismo (incremento da pena como único instrumento
de controle da criminalidade). O simbólico se refere ao fato de de-
terminados agentes políticos terem o objetivo de dar a impressão de
serem legisladores atentos e decididos e, desse modo, na hora de apro-
var uma legislação, terem como motivação seus efeitos “simbólicos”,
obtidos mediante sua mera promulgação. No entanto, não se trata de
um grupo definido de infrações penais, caracterizadas por sua inapli-
cabilidade (promulgação de normas penais meramente simbólicas),
mas identificado a importância outorgada pelo legislador aos aspec-
tos de comunicação política na aprovação das respectivas normas a
curto prazo. Nessa direção, “o Direito Penal Simbólico não trata só de
identificar um determinado ‘fato’, mas também (ou: sobretudo), um
tipo específico de autor, que é definido não como igual, mas como ou-
tro (MELIÁ, 2012, p. 88). Logo, o simbólico implica na colocação em
cena de uma (auto)representação por parte de determinados agentes
políticos e da sociedade em seu conjunto. Em tais casos, o que se pre-
tende é construir uma determinada identidade social mediante o Di-
reito Penal, e a criminalização funciona como um instrumento criador
parcial de identidades e não de sua confirmação. Todavia, há outros
posicionamentos, tais como existem autores que afirmam

uma impossibilidade da aplicação do direito penal, pelo gran-


de número de envolvidos, bem como pela existência de so-
ciedades divididas entre posições distintas, que tornariam
impossível a convivência e a própria sobrevivência da socie-
dade no caso da tentativa da aplicação de penas a todos os
implicados. O objetivo passa da punição para a reconciliação,
dentro de um campo que passou a ser denominado de justiça
transicional (GONZALEZ e LENTZ, 2012, p. 132) 191

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 191 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Para Meliá (2012, p. 96),

a identificação de um infrator como inimigo por parte do


ordenamento penal, por muito que possa parecer [...] uma
qualificação como “outro”, não é [...] uma identificação como
fonte de perigo, não supõe declará-lo um fenômeno natural a
se neutralizar, mas [...] é um reconhecimento da função nor-
mativa do agente mediante a atribuição da sua perversidade
e da sua demonização.

Por conseguinte, a característica especial das condutas frente às


quais se reclama o “Direito Penal do Inimigo” está em quem afetam
elementos de especial vulnerabilidade na identidade social. Portanto,
“não é somente um determinado fato que está na base da tipificação pe-
nal, mas também outros elementos que sirvam à caracterização do au-
tor como pertencente à categoria dos inimigos” (MELIÁ, 2012, p. 98).
O que está em jogo é que os comportamentos delitivos afetam
os elementos essenciais e especialmente vulneráveis das sociedades em
questão, não no sentido de um risco fático extraordinário para esses
elementos essenciais, mas antes de tudo em um determinado plano sim-
bólico. Isto porque toda a infração criminal supõe a quebra da norma,
entendida como colocação em dúvida da vigência dessa norma e a pena
reage reafirmando sua validade. Desse modo, “o Direito Penal do Ini-
migo não estabiliza normas (prevenção geral positiva), mas demoniza
(igual exclui) a determinados “infratores” (MELIA, 2012, p. 101).
Nesse contexto, os “inimigos” “se caracterizam por produzir
esse rompimento da norma a respeito de configurações sociais es-
timadas essenciais, mas que são ‘especialmente vulneráveis’, mais
além das lesões de bens jurídicos de titularidade individual” (ME-
LIA, 2012, p. 104). Dessa forma, “a função da pena no Direito Penal
do Inimigo “na realidade é algo mais (a construção de uma catego-
ria de representantes humanos do mal)” (MELIA, 2012, p. 106),
e provavelmente tenha que ser vista nessa perspectiva da criação
(artificial) de critérios de identidade entre os excludentes, mediante
a exclusão” (MELIA, 2012, p. 107).
Logo, na perspectiva do processo simbólico, mais do que de
192 defesa frente aos riscos, o elemento decisivo que se produz é uma

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 192 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

exclusão de uma determinada categoria de sujeitos do círculo de


cidadãos. Trata-se, então, de um Direito de Exceção, pois “neste âm-
bito, chamar as coisas por seu nome têm induvidosa importância
e as medidas de exceção deveriam ser identificadas, antes de mais
nada, formalmente como tais” (MELIA, 2012, p. 117).

Efeitos do Direito Penal na política criminal brasileira

Para Batista (1997, p. 126), “a relegitimação cotidiana do


sistema penal e a campanha por sua expansão” é funcional para a
“despolitização ou encobrimento dos conflitos, no empobrecimento
crítico das controvérsias”. Isso porque as categorias penais que defi-
nem o criminoso, abstrai as inserções de classe concretas do sujeito,
para religá-lo, depurado da história, ao ordenamento legal. Tam-
bém, para Cruz Neto et Al (2001, p. 24 e 34), a inclusão de determi-
nadas questões de forma “pontual e isolada, descolada de discussões
acerca das relações estruturais que as originam e ambientam”, faz
com que determinadas atitudes sejam “incentivadas com o objetivo
de encobrir graves distorções sócio-estruturais”:

1. apreende-se os conflitos interpessoais e sociais sob uma óti-


ca de causa/efeito, remetendo sempre a epifenômenos con-
junturais que são transformados no problema em si e per se;
2. desconsidera-se e reifica-se toda gama de relações sociais,
econômicas e políticas que concorrem e manifestam-se na
gênese e no desenvolvimento da situação-problema;
3. recorre-se mecanicamente a um saudosismo que advoga
como tipo ideal de sociedade aquela na qual, supostamen-
te, os dramas de hoje em dia não existiam por causa da
desejável intervenção do Estado.

Segundo Cruz Neto et Al (2001, p. 34), “essa associação con-


duz, via de regra, ao recrudescimento do apelo pela intensificação
da ordem, tradição, autoridade e repressão”, que gera
193

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 193 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

no corpo social um sentimento de mal-estar que minora e


descrê do valor altruísta e solidário do ser humano, numa
situação propícia ao estabelecimento de estereótipos que in-
criminam, culpabilizam e perseguem classes e segmentos po-
pulacionais já previamente marginalizados pelo processo de
acumulação capitalista.

Para Serra (2015, p. 14), a cultura vindicativa “produz e re-


produz de forma incessante a lógica do ‘inimigo’”, em que este é
fabricado pelo “poder punitivo, cuja existência, num certo sentido,
somente se justifica-se por [...] despolitizar os conflitos sociais e
sacralizar o castigo”. Assim, uma “legalidade autoritária”, conside-
rada uma permanência histórica na formação social brasileira e no
cenário político contemporâneo,

produz de forma incessante discursos e práticas, principal-


mente, por parte dos ‘operadores do sistema penal’, que não
só defendem intransigentemente toda essa cultura punitiva,
como também fabricam a cada instante os sujeitos considera-
dos ‘inimigos’ e ‘indignos de vida’ (SERRA, 2015, p. 16).

Não por menos, Zaffaroni (2020) afirma que tudo isso faz par-
te de um projeto de um atual ‘totalitarismo financeiro’, de criar uma
sociedade com 30% de incluídos e 70% de excluídos, em que estes
últimos possuem a incumbência de acreditar que estas circunstân-
cias integram a normalidade da paisagem e do imaginário:

Para isso, cria-se um inimigo comum, que é aquele sujeito


negro, pobre, sujo e sexualmente desordeiro — uma imagem
reforçada pela mídia. E esse inimigo tem a mesma função que
a casta dos excluídos na Índia: os outros acreditam não fazer
parte dessa casta inferior, que pode ter componentes racistas
ou apenas de classe, e acabam aceitando sua condição sem
perceber que são tão pobres e tão excluídos quanto os mem-
bros daquela casta.
A evidência dessa exclusão é situação crítica do sistema pri-
sional países como o Brasil: deteriorado, superlotado e domi-
nado por facções criminosas.
194

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 194 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Considerações finais

Por um lado, para Schmitt (2009), o político se funda na dife-


renciação entre “amigo” e “inimigo”, que tem o propósito de carac-
terizar o extremo grau de intensidade de uma união ou separação,
de uma associação ou desassociação, sendo a contraposição mais in-
tensa e extrema a política. E, assim, a política pressupõe a existência
da decisão política de quem é o “inimigo”, e que enquanto guerra
possui seus próprios pontos de vista, suas próprias estratégias e tá-
ticas. Mas, de modo nenhum, esta última, é o objetivo, a finalidade
e o conteúdo da política, sendo antes o pressuposto sempre exis-
tente como real possibilidade, e que determina de forma singular
a ação e o pensamento humano, provocando um comportamento
especificamente político. Porém, quando ultrapassado o âmbito do
político simultaneamente se rebaixa o inimigo a categorias morais,
ele é transformado em monstro desumano que há de ser repelido e
definitivamente eliminado, ou seja, não se trata mais apenas de um
inimigo que se deve rechaçar a seus limites.
Por outro, para Agamben (2007), a vida nua, matável, de exi-
lado, indica a relação política originária, entre concidadão e estran-
geiro, pois a externalidade daquele que está sob o bando é mais ínti-
ma do que a estranheza do estrangeiro. Assim, na origem, se tem a
sujeição da vida a um poder de morte, a sua exposição na relação de
abandono em que o referente primeiro e imediato do poder soberano
é a vida matável. Aqui, o que soberano decide é a implicação origi-
naria do ser vivente na esfera do direito e não entre lícito e ilícito.
Logo, se o Direito Penal do Inimigo, para Jakobs (2012), pro-
põe um Direito Penal para os cidadãos (pessoa quem oferece uma
garantia cognitiva suficiente de um comportamento pessoal espe-
rado) e outro para os “inimigos” (indivíduos que de modo decidido
tem se afastado do Direito), e o Direito Penal Simbólico, para Meliá
(2012), pretende construir uma determinada identidade social em
que a criminalização funciona como um instrumento criador parcial
de identidades, onde os “inimigos” se caracterizam por produzir o
rompimento da norma a respeito de configurações sociais estimadas
essenciais, tem-se que a função da pena é vista na perspectiva da 195

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 195 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

criação (artificial) de critérios de identidade entre os excludentes,


mediante a exclusão. Isso leva Zaffaroni (2020) a anunciar que tudo
isso faz parte de um projeto de um atual ‘totalitarismo financeiro’,
de criar uma sociedade com 30% de incluídos e 70% de excluídos,
em que os excluídos são levados a acreditar que não estão excluídos,
que esta situação é normal e o melhor que pode acontecer.
Portanto, em alguma medida pode-se dizer que o Direito Pe-
nal é instrumento de exercício do poder soberano, seja para nomear
inimigos (Schmitt) ou produzir exclusão (Agamben). Para realizar
isso, um modo é rebaixar o inimigo a categorias morais, transfor-
mando-o em monstro. O resultado para Batista (1997) é a despoli-
tização ou encobrimento dos conflitos e o empobrecimento crítico
das controvérsias. Isso porque as categorias penais que definem o
criminoso, abstrai as inserções de classe concretas do sujeito, para
religá-lo, depurado da história, ao ordenamento legal. E, para Cruz
Neto et Al (2001), assim se produz o recrudescimento do apelo pela
intensificação da ordem, da tradição, da autoridade e da repressão,
que gera no corpo social um sentimento de mal-estar que minora
e descrê do valor altruísta e solidário do ser humano, pois propícia
o estabelecimento de estereótipos que incriminam, culpabilizam e
perseguem classes e segmentos populacionais já previamente mar-
ginalizados pelo processo de acumulação capitalista.

196

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 196 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Referências
AGAMBEN, G. Hommo Sacer; o poder soberano e a vida nua. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2007.
ALVARENGA, R.; JUNIOR, E. A. Da biopolítica à necropolítica con-
tra os povos indígenas durante a ditadura militar brasileira (1964-
1985). Ciências Sociais Unisinos, v. 55, n. 2, pp. 212-222, 2019.
BADIOU, A. O ser e o evento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed./Ed.
UFRJ, 1996.
BATISTA, N. A violência do Estado e os aparelhos policiais. In: Dis-
cursos Sediciosos. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia,
Ano 2, n. 4, 1997. p. 145–154.
CRUZ NETO, O. et Al. Nem soldados nem inocentes: juventude e
tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2001.
FRANÇA, L. A. Tipo: Inimigo. Curitiba: FAE, 2011.
FRANÇA, L. A. Inimigo ou a inconveniência de existir. Rio de Ja-
neiro: Lumen Juris, 2012.
GONZALEZ, R. S.; LENTZ, R. Qual será a verdade do jeitinho bra-
sileiro? Perspectivas sobre a Comissão Nacional da Verdade do Bra-
sil. Ciências Sociais Unisinos, v. 48, n. 2, pp. 130-138, 2012.
JAKOBS, G. Direito penal do cidadão e direito penal do inimigo. In:
JAKOBS, G.; MELIÁ, M. C. Direito penal do Inimigo: noções e crí-
ticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. Pp. 19-50.
MELIÁ, J. C. Direito penal do Inimigo? In: JAKOBS, G.; MELIÁ, M.
C. Direito penal do Inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livra-
ria do Advogado, 2012. Pp. 51-80.
SCHMITT, C. O conceito do político / Teoria do Partisan. Belo
Horizonte: Del Rey Editora, 2009.
SERRA, C. H. A. Prefácio. In: D’ELIA FILHO, O. Z. Indignos de
vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na
cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015. Pp. 6-10
SILVA SANCHEZ, J.-M. A expansão do direito Penal: aspectos da
política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002. 197

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 197 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

ZAFFARONI, E. R. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Re-


van, 2011.
ZAFFARONI, E. R. A Palavra dos mortos: conferências de criminolo-
gia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012.
ZAFFARONI, E. R. A questão criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2013.
ZAFFARONI, E. R. Vivemos um totalitarismo financeiro em que
tudo é justificado pelo mercado, diz jurista argentino. In: Folha de São
Paulo. 15 mar. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/
mundo/2020/03/vivemos-um-totalitarismo-financeiro-em-que-tudo-
-e-justificado-pelo-mercado-diz-jurista-argentino.shtml. Acesso em 31
mar. 2020.

198

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 198 06/01/2021 10:44


Livro Aloisio-V4.indd 199 06/01/2021 10:44
Livro Aloisio-V4.indd 200 06/01/2021 10:44
Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Memória coletiva e trauma em jovens egressos


de medidas socioeducativas

Analice Brusius
Carlos A. Gadea

Introdução

Este estudo apresenta como tema a trajetória de vida de jo-


vens egressos de medidas socioeducativas. Seu objetivo é analisar
pesquisas sobre a trajetória de jovens egressos de medidas socioe-
ducativas de internação estabelecendo relações com o marco analíti-
co da memória coletiva (HALBWACHS, 2003) e do trauma (CERA-
SO, 2006) cuja pertinência está em considerar o contexto relacional
do jovem em toda a sua diversidade, localizado tanto na dimensão
social, quanto na temporal, pois compreende as vivências do passa-
do como se atualizando no presente. Ao refletir-se sobre o entendi-
mento dos jovens em relação à medida socioeducativa e relacionar
às contribuições de Halbwachs (2003) percebe-se que as marcas tra-
zidas pela institucionalização são sempre mediadas por experiências
dos grupos sociais os quais eles fazem parte e, estas percepções são
sempre referidas a partir do sentido da coletividade.
A presente reflexão teórica inicia trazendo a perspectiva ana-
lítica da memória coletiva (HALBWACHS, 2003). Após é aprofun-
dada a noção da temporalidade (HALBWACHS, 2003) e relacionada
com os estudos sobre os jovens que se envolvem com a violência. As
recordações que são individuais, mas não deixam de ser coletivas
também são analisadas no contexto dos jovens egressos de medidas
socioeducativas. Já a memória histórica é estudada a partir do ad-
vento da institucionalização na modernidade.
Discute-se sobre as vivências passadas dos jovens com a vio-
lência sofrida e atuada que podem tomar a dimensão das experiên-
cias traumáticas. Percebe-se que há também a influência dos traumas
vivenciados pelas gerações anteriores, chamados de pós-memória 201

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 201 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

(HIRSCH, 2008), conforme demonstrado nos estudos sobre os jovens


egressos que relatam sobre o ambiente de violência no qual eles e suas
famílias viveram (PIMENTA, 2014; SECRETARIA DO PLANE-
JAMENTO, GOVERNANÇA E GESTÃO, 2018). A pós-memória
provoca ressonâncias, mesmo quando atravessa de forma imaginativa
seus herdeiros. Demonstra-se que nas situações traumáticas, a pre-
sença de um interlocutor preenche vazios de sentido provocados pelo
trauma (CERASO, 2006) e a formação de novos laços sociais auxilia
na elaboração e redirecionamento do vivido (ASSIS e SOUZA, 1999),
assim como, nas possibilidades encontradas na construção de novos
projetos de vida (COSTA e ASSIS, 2006). Percebe-se que diante dos
elementos teóricos relacionados à memória coletiva e ao trauma exis-
te uma complexidade analítica para se compreender a trajetória dos
jovens egressos de medidas socioeducativas.

A trajetória dos egressos: temporalidade, recordações


e memória histórica

Agora vamos trazer algumas reflexões sobre a trajetória dos


jovens egressos de medidas socioeducativas, enfatizando a sua re-
lação com a temporalidade, as recordações do processo social e a
memória de seus históricos.
As reflexões em relação a memória coletiva nas teorias sociais
são provenientes de corrente de pensamento que emerge a partir de
Durkheim. A partir do século XVI, com o advento da modernidade e
as transformações sociais que ocorreram naquele período, a condição
da individualidade recebe novo status, mas não deixa de ser compreen-
dida em sua interface com coletividade. Para Durkheim, a consciência
coletiva influencia a vida do indivíduo seja de forma mais intensa ou
mais enfraquecida, dependendo dos mecanismos de integração dos
indivíduos na sociedade (SELL, 2012). A consciência coletiva é “um
conjunto de crenças e sentimentos comuns à média dos membros de
uma mesma sociedade, que forma um sistema determinado e que pos-
sui vida própria” (DURKHEIM, 1999, p. 50). Sendo assim, ela consti-
tui-se a partir dos indivíduos reunidos, proporcionando coesão social,
202 mas adquire existência autônoma e independente.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 202 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Ao pensar-se na memória coletiva, acrescenta-se também a di-


mensão temporal junto à concepção de consciência coletiva. Diante
deste cenário, a memória individual não deixa de existir, mas deve
ser compreendida sendo inserida em um contexto coletivo com re-
ferências temporais que estão situadas tanto em dimensões indivi-
duais como também coletivas. A memória é individual e coletiva e “a
rememoração pessoal está situada na encruzilhada das redes de so-
lidariedades múltiplas em que estamos envolvidos” (DUVIGNAUD,
2003, p. 12). Neste contexto, Velho (2013, p. 65) refere que “são
visões retrospectivas e prospectivas que situam o indivíduo, suas
motivações e o significado de suas ações dentro de uma conjuntura
de vida, na sucessão das etapas de sua trajetória”.
O tempo sendo pensado em sua vivência individual e coletiva
permeia todas as experiências de vida. Compreende-se o tempo não
mais como um “meio privilegiado e estável em que se desdobram to-
dos os fenômenos humanos” (DUVIGNAUD, 2003, p. 12) como se
existisse a priori. O tempo vivido coletivamente é resultado de acor-
dos compartilhados relacionados a uma ordem da qual emergem os
costumes e estabelecem-se parâmetros para vida cultural e social. Ele
é impactado pelas vivências de cada um e de cada grupo, ou seja, pelos
acontecimentos que constituem o seu conteúdo. Entretanto, também
percebe-se que por uma necessidade da manutenção da vida social
“quaisquer que sejam as divisões do tempo, os homens se acomodam
bastante bem a elas, pois em geral são tradicionais e, como cada ano,
cada dia se apresenta com a mesma estrutura temporal dos preceden-
tes, como se todos fossem frutos da mesma árvore (HALBWACHS,
2003, p. 114). Esta rotina comum faz com que cada um renuncie um
pouco de sua individualidade e adapte-se a uma rotina e ao mesmo
tempo possibilita e intensifica o relacionamento entre os indivíduos.
Cabe refletir, sobre como se dá o processo no qual estas con-
venções em relação ao tempo vão sendo compreendidas por cada
indivíduo e sociedade ao longo de sua existência. Os jovens, tema
deste estudo, vivem um tempo da vida em que recentemente dei-
xaram a fase da infância para trás. O período de vida da infância e
adolescência, tal qual o conhecemos hoje, especialmente nas socie-
dades ocidentais, foi inventado a partir da modernidade estando 203

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 203 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

em consonância com as mudanças sociais daquele momento que


a partir da valorização da individualidade instituiu práticas de
escolarização e de valorização da família nuclear (ARIÉS, 1981).
A infância é o momento no qual, o tempo individual de vida de
cada ser humano inicia e aprende-se uma série de regras e cos-
tumes coletivos entre os quais, a vivência temporal está inserida.
Este processo continua de maneira acentuada na juventude, visto
que, os jovens ainda necessitam de um processo de ajustamento
experimentado de forma bastante intensa, tendo no seu horizon-
te, uma entrada mais definitiva e inevitável nas tradições. Como
refere Halbwachs (2003, p. 114)

sou obrigado a regular minhas atividades segundo o andar


dos ponteiros de um relógio, segundo o ritmo adotado por
outros e que não leva em conta as minhas preferências, te-
nho de ser avarento com o meu tempo e não perdê-lo nunca,
porque assim comprometeria algumas oportunidades e van-
tagens que me oferece a vida em sociedade.

Embora cada indivíduo apresente suas características indi-


viduais, os jovens, em especial os que vivenciam o ritmo de vida
da atualidade, ainda vivem este processo de adaptação com alguma
instabilidade, necessitando serem ainda auxiliados por outros a ter
esta regulação do tempo. O tempo está intimamente relacionado às
experiências de vida passadas, atuais e futuras. Neste processo, de
acordo com o tempo convencionado, o jovem ainda tem, individual-
mente um passado curto, de poucos anos de vida e um futuro longo
pela frente. Esta é uma marca de individualidade importante a ser
considerada. De acordo com Halbwachs (2003, p. 116) “é próprio
que as durações individuais tenham um conteúdo diferente, embora
a sucessão temporal de seus estados seja mais ou menos rápida de
uma para outra”, sendo assim, “um velho e uma criança que vives-
sem lado a lado e não tivessem nenhum outro meio de medir o tem-
po se não reportando-se às suas impressões da duração e às divisões
que a sua vida interior comporta, não se entenderiam” (HALBWA-
CHS, 2003, p. 117) pois suas percepções seriam diferentes devido a
204 fase da vida em que se encontram.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 204 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Individualmente as percepções em relação ao tempo são dis-


tintas e a fase da vida em que cada um se encontra é um dos as-
pectos que permeia esta impressão e provoca estas compreensões
diferenciadas. Por outro lado, todos devem unir-se para entrar em
acordo em relação ao tempo coletivo, este tempo que é comum a to-
dos, abrindo mão das particularidades das experiências de cada um.
Além disso, é importante compreender que “o tempo não pas-
sa: ele dura, subsiste e é necessário, senão como poderia a memória
retroceder no tempo?” (HALBWACHS, 2003, p. 117). O tempo é
preenchido por meio dos conteúdos que são os acontecimentos e
estes fazem parte da própria vida do indivíduo diretamente, media-
dos por grupos ou fazem parte dela por ser um evento histórico que
influencia a sua vida.

O tempo só é real na medida que tem um conteúdo, ou seja,


na medida em que oferece ao pensamento uma matéria de
acontecimentos. Ele é limitado e relativo, mas tem uma reali-
dade plena (HALBWACHS, 2003, p. 156).

E são as lembranças um tipo de acontecimento que preenche


o tempo, neste sentido Halbwachs (2003, p. 156) refere que o tem-
po “é bastante amplo para oferecer às consciências individuais um
contexto de respaldo suficiente para que estas possam nele dispor e
reencontrar as suas lembranças”.
Ao refletir-se sobre este entendimento em relação aos jovens
que cumpriram medida socioeducativa percebe-se que as suas expe-
riências de vida são sempre mediadas por experiências dos grupos
sociais dos quais eles fazem parte. As percepções do passado são
sempre referidas a partir do sentido da coletividade, aos quadros
sociais da memória (HALBWACHS, 2003). No contexto dos jovens
que se envolveram com delitos, observa-se que não raro a prática da
violência seria uma das únicas formas encontradas de preencher este
tempo com algum acontecimento que fosse significativo que estava
dentro das possibilidades de ação destes jovens por encontrarem-se,
frequentemente, em situações bastante precárias de vida, com seus
direitos de cidadania constantemente violados. Neste caso “o tráfico
205
oferece aos jovens pobres mais do que a promessa do consumo ou
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 205 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

da inclusão no mundo glamoroso dos carros de luxo e das mulheres


encantadoras” (ROLIM, 2016, p. 264). Existe a chance de se viver
histórias marcantes, constituindo lembranças que fornecem sentido
a suas vidas na medida em que “o tráfico dá aos meninos a possibi-
lidade de autoria, do respeito e do poder”; tudo aquilo que o Estado
sequer cogita como elementos de políticas públicas eficientes” (RO-
LIM, 2016, p. 264). Os acontecimentos violentos, neste caso, como
o envolvimento em delitos, preenchem o tempo, fazem-no perdurar.
Estas experiências não são alcançadas de outra forma na esfe-
ra individual e coletiva e tampouco por parte das políticas públicas
oferecidas pelo Estado. Halbwachs (2003) refere que a memória terá
sempre a dimensão coletiva presente. Até mesmo quando não perce-
bemos a presença de indivíduos ou grupos externos ao contexto que
se está inserido, eles estão presentes de uma forma ou outra provocan-
do lembranças e construindo memórias. As lembranças e memórias
dos jovens estarão sempre em relação com objetos externos. “Nossas
lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros,
ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvi-
dos e objetos que somente nós vimos” (HALBWACHS, 2003, p. 30).
Halbwachs (2003, p. 59) ainda compreende que “a recordação
de certas lembranças não depende de nossa vontade”, apesar desta
estar presente também. “A lembrança está ali, fora de nós, talvez
dispersa entre muitos ambientes” (HALBWACHS, 2003, p. 59), ou
seja, o ambiente também influencia a lembrança. “Se a reconhece-
mos quando reaparece inesperadamente, o que reconhecemos são as
forças que a fazem reaparecer e com as quais sempre mantivemos
contato” (HALBWACHS, 2003, p. 59).
Ao pensar-se sobre a institucionalização de jovens e o momen-
to pós-institucionalização, as experiências que permanecem, ou seja,
lembranças que se atualizam no presente, estarão relacionadas a um
contexto social mais amplo e com outras experiências vividas por es-
tes jovens, as quais podem estar relacionadas à sua família, relações
afetivas fora do contexto familiar, território onde vivem, escola, po-
líticas públicas, entre outras. Neste sentido, a percepção trazida por
eles sobre a institucionalização e suas relações, não surge isolada, sen-
206 do transformada dependendo do contexto no qual estará conectada.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 206 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Evangelista (2011) constatou em seu estudo sobre os jovens


egressos de instituições que executavam medida de internação que
o maior envolvimento afetivo dos jovens é com a mãe. A mãe é lem-
brada por eles como sendo aquela que não deseja que eles conti-
nuem com as vivências delitivas. Apesar de que a maioria dos jovens
egressos reincidiu em delitos após a institucionalização, este vín-
culo afetivo com a mãe e o que ela significa manteve-se presente.
Percebe-se que são lembranças trazidas pelos jovens, relacionadas
com suas redes de relacionamento e com suas lembranças da infân-
cia. Considerando-se que recentemente deixaram esta fase da vida
da infância para trás, existem ainda resquícios deste momento no
qual “a criança pensa em comum com as outras pessoas, e que o seu
pensamento se divide entre o fluxo de impressões inteiramente pes-
soais e as diversas correntes do pensamento coletivo” (HALBWA-
CHS, 2003, p. 81). Os jovens compartilham dos anseios maternos,
reconhecem-nos como fazendo parte de um pensamento importante
para suas vidas. Neste sentido, talvez estejam assentados em lem-
branças da infância, anteriores ao envolvimento com os atos infra-
cionais, período da vida no qual a maternagem é realizada de forma
mais intensa. O compartilhamento de memórias ocorre em todas as
fases da vida e pode-se refletir que neste caso além das lembranças
individuais do jovem com a sua mãe, estas podem estar sendo refor-
çadas por outras relações como com os demais jovens que cumpriam
medida socioeducativa que também apresentaram uma valorização
de sua mãe. É possível também que sejam influenciados por expec-
tativas sociais de terem uma boa relação com a mãe ou de que devam
parar de praticar delitos. A própria medida socioeducativa imposta
constitui-se como sendo uma forma de demonstração da reprovabi-
lidade social deste comportamento.
Conforme Halbwachs (2003, p. 98) “para que a memória dos
outros venha assim a reforçar e completar a nossa, como dizíamos, é
preciso que a lembrança desses grupos não deixe de ter uma relação
com os acontecimentos que constituem o meu passado”. Parece que
as vivências com a mãe, a relação que estabelecem com os delitos e
com a medida socioeducativa são lembranças comuns trazidas por
estes jovens que ganham maior significado neste contexto. Sabe-se 207

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 207 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

que “a memória envolve também relações de socialização que podem


ser estabelecidas nas afinidades intergeracionais que se configuram
em diversos espaços de convívio” (MARTINS, 2011, p. 219). Consi-
dera-se as lembranças de uma forma mais ampla, contendo a dimen-
são das relações sociais constituídas e, neste caso, a história da nossa
vida faz parte da história social (HALBWACHS, 2003).
Diferenciar memória social de memória histórica pode auxi-
liar a distinguir formas diferentes de reviver o passado. “Em geral
a história só começa no ponto em que termina a tradição, momento
em que se apaga ou se decompõe a memória social” (HALBWACHS,
2003, p. 101). A memória histórica surge quando determinados as-
pectos em relação ao passado não podem mais ser lembrados pelos
grupos sociais. Conforme refere Halbwachs (2003, p. 105) “à medida
que cada um dos seus membros, especialmente os mais velhos, desa-
parecem ou se isolam, a memória de uma sociedade não para de se
transformar, e o próprio grupo está sempre mudando”. Neste caso
necessita-se de um historiador que resgate de forma mais sistema-
tizada aspectos relacionados ao passado, com linhas de separação
claramente demarcadas para destacar diferentes contextos.
Existem diversos elementos referentes à memória histórica que
estão relacionados ao tema dos jovens egressos de medida socioedu-
cativa de internação. Um deles é o surgimento das prisões, fenômeno
muito bem historicizado em diversas obras de Foucault (1987; 2003)
sendo que para isto o autor retrocede no tempo relatando fatos ocor-
ridos há séculos atrás. Portanto, quem vê atualmente uma institui-
ção na qual os jovens estão privados de liberdade, não sabe de suas
origens a não ser que recorra a memória histórica relacionada a este
fato específico. Foucault (1987) relata as transformações nas formas
de punir ao longo dos tempos e o surgimento das prisões, através de
acontecimentos históricos e demonstra que as prisões teriam surgi-
do sem nenhuma justificativa a nível do comportamento humano. A
prisão “surge no início do século XIX como uma instituição de fato,
quase sem justificação teórica” (FOUCAULT, 2003, p. 84).
Este fato histórico do surgimento das prisões ocasiona uma série
de modificações da sociedade, produzindo consequências e um padrão
208 punitivo para o tratamento de determinados comportamentos ou de
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 208 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

ações que se imagina possam vir a ser praticadas pelos indivíduos. Estas
ações passam a ser mensuradas por especialistas em atestar periculosi-
dade dos indivíduos. Foucault (2003, p. 85) demonstra que a

periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado


pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de
seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva,
mas das virtualidades de comportamento que elas representam.

Estes conhecimentos em relação aos fatos são acessados atra-


vés da memória histórica que diferentemente da memória coletiva
propõe-se a ser objetiva e imparcial, constituída através de elemen-
tos científicos. Apesar de que se sabe que esta cientificidade acaba
não sendo tão imparcial devido a diversos fatores, como por exem-
plo: determinados fatos são mais importantes para dado grupo e
em certas ocasiões e por este motivo eles recebem maior destaque
e serão mais explorados por algum ponto de vista. Em outros ca-
sos alguns acontecimentos podem até deixar de ser historicizados,
quando existe interesse destes não serem relembrados.
Na história não se trata mais de reviver os fatos em “sua rea-
lidade, mas de recolocá-los nos contextos em que a história dispõe
os acontecimentos, contextos estes que permanecem exteriores aos
grupos, e defini-los cotejando uns com os outros” (HALBWACHS,
2003, p. 107). Existe ainda um formato específico de acordo com
o qual a memória histórica é contada formalmente. Neste são en-
fatizadas as transformações sociais e deixados em segundo plano
os momentos de maior estabilidade social. Conforme Halbwachs
(2003, p. 107), “somente assim ela consegue nos proporcionar uma
visão abreviada do passado, juntando em um instante, simbolizan-
do em algumas mudanças bruscas, em alguns avanços dos povos
e dos indivíduos, lentas evoluções coletivas”. A memória histórica
não está presente tacitamente. Ela é construída e acessada pelos in-
divíduos de forma objetiva, fornecendo sentido e significado para
os acontecimentos atuais. Sem ela as lembranças coletivas seriam
constituídas de forma superficial, pois seriam totalmente apagadas
na medida em que o tempo e as gerações passassem.
209

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 209 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Trauma, pós-memória e os jovens egressos


de medidas socioeducativas

Os estudos sobre trauma e sua relação com a memória podem


auxiliar a compreender determinadas situações associadas aos jo-
vens egressos de medidas socioeducativas. A vida destes jovens é
permeada por violências sofridas através das violações de seus direi-
tos desde a infância e também por violências atuadas, como o delito
que o trouxe para institucionalização. As experiências passadas com
a violência podem tomar a dimensão das experiências traumáticas
vividas como um excesso violento de carga emocional e poderão se
constituir como um rompimento brusco com o passado e com as
tramas de sustentação simbólica de suas narrativas.
O surgimento do trauma na trajetória destes jovens pode de-
notar dificuldades de convivência com as lembranças e, consequen-
temente, com todas as relações sociais, espaciais, temporais que as
originam e também com as que surgem a partir das lembranças. “A
questão, nesses casos, é a impossibilidade de termos testemunhos do
passado, uma vez que este não foi vivenciado como experiência, mas
como trauma” (SANTOS, 2013, p. 63). Além disso, pode-se indagar
se a própria institucionalização não acaba somando-se a estas ex-
periências passadas traumáticas obstaculizando ainda mais a cons-
trução de narrativas sobre as experiências vividas. Mesmo diante
da fragilidade das lembranças e testemunhos em relação ao trauma
vivido é possível perceber que o jovem egresso sempre encontra
formas de transmissão de suas vivências. Até mesmo porque, neste
contexto, percebe-se que silenciar ou tornar a repetir a violência
vivida também são formas de discursos que transmitem significa-
dos. A presença de um interlocutor neste processo auxilia no preen-
chimento dos vazios de sentido provocados pelo trauma (CERASO,
2006). A formação de novos laços sociais, quando possibilitada, pode
auxiliar na elaboração e redirecionamento do vivido, criando assim
novas experiências para sua vida. Por este motivo, refletir sobre as
experiências traumáticas e formas de transmissão da experiência
neste contexto torna-se relevante para a compreensão das ações
210 realizadas por estes jovens no período pós-institucionalização.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 210 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

A realidade demonstrada por Evangelista (2011) sobre jovens


egressos da Ceduc/Fundac evidencia que não é muito frequente
existirem oportunidades de elaboração do que foi vivenciado pelos
jovens em suas vidas antes, durante e nem após a sua instituciona-
lização. Na verdade, o pesquisador relata permanecerem as mesmas
condições sociais que os jovens mantinham antes da privação de
liberdade. Neste contexto, foi verificado que os jovens egressos per-
manecem sentindo angústia, insegurança e “isolados – totalmente
sem vínculo com outras redes de relação – e perplexos diante dos
dilemas que precisam superar sem, no entanto, se sentirem instru-
mentalizados e capacitados para enfrentar dificuldades de tais di-
mensões” (EVANGELISTA, 2011, p. 171).
Neste contexto, reduzem-se as chances de elaboração dos
traumas vividos pela fragilidade do ambiente em oferecer interlocu-
tores e novas experiências que possam redirecionar estas vivências
para outros objetos como relacionamentos afetivos, trabalho, lazer,
atividades culturais, entre outras.
Assis (1999) realizou estudo com jovens que estavam cumprin-
do medida socioeducativa privativa de liberdade no Rio de Janeiro e
em Recife e seus irmãos ou primos que não cometeram atos infracio-
nais e buscou identificar os fatores de risco que levam um jovem a ser
infrator e os fatores protetores que agiriam sobre um outro jovem,
que vive no mesmo ambiente familiar e comunitário, conduzindo-o
a não optar por caminhos infracionais. A pesquisadora verificou que
o limite entre ser ou não ser infrator é tênue e pode ser ultrapassado
em qualquer instante mesmo pelos não infratores que têm “de provar
a sua força de vontade e determinação, em um ambiente comunitário
que favorece a opção por meios ilegais e violentos para se obter algo
na vida” (ASSIS, 1999, p. 206 ). Percebeu-se a ausência das redes
sociais de apoio que são consideradas fatores protetivos a entrada
de jovens na vida infracional (ASSIS e SOUZA, 1999, p. 142). Além
disso, “a atuação das instituições básicas, responsáveis pela socializa-
ção, como a família, a escola e a instituição religiosa, passa por sérias
crises no exercício de suas funções sociais” (ASSIS e SOUZA, 1999,
p. 142) o que tem influência significativa em relação as chances de
envolvimento dos jovens com a violência. 211

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 211 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Assis (1999) enfatiza que as condições familiares dos jovens


que se envolveram em delitos e dos seus irmãos ou primos que não
se envolveram é bastante semelhante. No estudo foi percebido que
os jovens que cumpriam medida socioeducativa tinham mais difi-
culdade em reconhecer a violência familiar a que foram expostos na
infância ao passo que os seus irmãos que não se envolveram em deli-
tos são mais críticos em relação a estes acontecimentos procurando
outros modelos de identificação (ASSIS, 1999). Percebe-se que exis-
tem nos jovens provenientes de um contexto familiar semelhante,
memórias e formas de historicização bastante distintas entre os que
cumpriram medida socioeducativa e seus irmãos. A possibilidade de
historicizar a violência sofrida com a presença de um interlocutor
possibilita um maior afastamento de atos de violência.
Os projetos de vida dos adolescentes são fatores protetivos que
estão relacionados às relações intersubjetivas e temporais experien-
ciadas. Sendo assim, “refletir acerca de projeto de vida enquanto fator
de proteção remete à questão da temporalidade e cuidado” (COSTA e
ASSIS, 2006, p. 79). Para Costa e Assis (2006, p. 79) “a lógica do cui-
dado prescinde de uma perspectiva temporal, pois a ideia central que
move um projeto só adquire sentido se tomada a partir de uma dimen-
são temporal definida”. Salientam ainda que “o tempo é a condição de
um projeto, e o projeto é conteúdo que especifica o que é presente,
passado e futuro” (COSTA e ASSIS, 2006, p. 79). Para as autoras “o
período de aplicação da medida deve constituir um momento para
estruturação de projeto de vida” (COSTA e ASSIS, 2006, p. 79).
Existem também situações traumáticas que foram tão devas-
tadoras que necessitam de maior tempo e diversas ações para serem
superadas. O trauma pode ser transmitido como memória de uma
geração para outra, sem que a segunda geração tenha efetivamente
estado presente na situação traumática vivenciada sendo estas lem-
branças chamadas de pós-memória pelo fato do indivíduo não ter
estado presente no momento traumático (HIRSCH, 2008). Segundo
Hirsch (2008), pesquisadora que cunhou o termo “pós-memória”,
ela foi inicialmente estudada como efeito do Holocausto em pro-
duções artísticas dos descendentes dos sobreviventes, mas também
212 ocorre em contextos bastante diversos nos quais é possível refletir
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 212 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

sobre o funcionamento do trauma, memória e atos intergeracionais


de transferência do trauma.
Para Hirsch (2008, p. 106) a pós-memória é “uma estrutura de
transmissão inter e transgeracional de conhecimento e experiência
traumática” (tradução nossa) pode significar continuidade e ruptura
sendo concebida como uma espécie de crítica a lembrança traumáti-
ca (HIRSCH, 2008).
É possível que para os jovens egressos de medidas socioedu-
cativas elementos da pós-memória estejam presentes de diversas
formas. A pós-memória pode auxiliar na compreensão dos efeitos
do contexto de violência urbana vivenciadas nas áreas periféricas
das cidades das quais os jovens são provenientes e que já estava
presente desde gerações anteriores aos jovens. Evangelista (2011)
em seu estudo sobre os jovens egressos de medida socioeducativa de
internação da Ceduc/Fundac se refere a relatos que revelam a vida
sacrificada de pais e filhos por gerações pela violência e pobreza.
Esta realidade sugere a possibilidade de que algumas situações de
pobreza extrema serem traduzidas em violações significativas de
direitos humanos e situações de violência social que atravessaram
gerações nas famílias destes jovens.
Pimenta (2014) em estudo sobre o envolvimento de jovens
com a violência refere os efeitos do não reconhecimento social nes-
tes jovens que encontram na categoria “bandidos” uma forma de
visibilidade social que não foi oferecida suficientemente na esfera fa-
miliar, escolar, acadêmica, no trabalho e ainda sofrem com o estigma
de viverem em bairro violento. Mesmo com a perspectiva de chegar
à idade adulta ameaçada, devido à vulnerabilidade de serem vítimas
de morte violenta (PIMENTA, 2014), ainda é preferível recorrer à
categoria “bandido” a sentir a ausência de reconhecimento social.
Há todo um contexto social transmitido através de gerações
que culmina no envolvimento do jovem em delitos. O estudo reali-
zado com os egressos da FASE das unidades de Porto Alegre mos-
trou que era significativo o histórico de delitos entre os pais destes
jovens sendo em 28% deles o pai tinha histórico de envolvimento em
delitos, em 8% a mãe e em 5% o pai e a mãe apresentavam este histó-
rico (SECRETARIA DO PLANEJAMENTO, GOVERNANÇA E 213

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 213 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

GESTÃO, 2018). Neste sentido, pode-se perceber que a realidade de


envolvimento em delitos e todo o contexto pessoal e social em que
o jovem está inserido inicia-se muitas vezes em gerações anteriores
podendo configurar-se como realidade traumática que foi passada
ao jovem sem que ele ou ela tenha vivenciado e que somam-se às
experiências traumáticas vivenciadas por ele próprio.
Para Hirsch (2008, p. 107), “a conexão da pós-memória com
o passado não é, portanto, mediada pela recordação, mas pelo in-
vestimento imaginativo, projeção e criação” (tradução nossa). Há,
portanto, algo atual do indivíduo que não viveu diretamente estas
experiências que será projetado a estas memórias das gerações an-
teriores que continuarão sendo traumáticas sendo elaboradas de
forma diferente de quem as vivenciou diretamente. Por este motivo,
ele também será invadido por estas experiências que não são suas
diretamente, devendo ceder lugar a elas. Sendo assim,

crescer com memórias hereditárias tão esmagadoras, ser do-


minado por narrativas que precederam o nascimento ou a
consciência de alguém, é arriscar ter suas próprias histórias e
experiências deslocadas, até mesmo evacuadas, pelas de uma
geração anterior” (HIRSCH, 2008, p. 107, tradução nossa).

Neste sentido, não raro, o jovem egresso de medida socioe-


ducativa tem de lidar com os seus traumas juntamente com os de
gerações anteriores, o que requer maiores possibilidades de elabo-
ração deste para que este ciclo possa ser rompido e que o jovem pos-
sa vivenciar suas lembranças e memórias construindo sua história
individual e coletiva.

Considerações finais

Considera-se que as reflexões sobre a memória coletiva e todas


as suas nuances como a vivência do tempo, da individualidade e da
coletividade podem auxiliar na compreensão da trajetória dos jovens
egressos de medidas socioeducativas. A presença da memória históri-
ca oferece um contexto sistematizado e amplo na dimensão temporal
214 e social na qual estes estão inseridos. Já a dimensão do trauma oferece
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 214 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

o entendimento daquilo que escapou a memória coletiva, que ainda


não pode ser simbolizado, sendo proveniente das próprias experiên-
cias dos jovens ou das gerações anteriores, como no caso da pós-me-
mória. Por isto, há uma complexidade necessária para se refletir sobre
a memória coletiva e estabelecer relações possíveis com a trajetória
dos jovens egressos de medidas socioeducativas.

215

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 215 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Referências
ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro:
LTC, 1981.
ASSIS, S. G. Traçando caminhos em uma sociedade violenta: a
vida de jovens infratores e de seus irmãos não-infratores. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz. 1999.
ASSIS, S. G.; SOUZA. E. R. S. Criando Caim e Abel: Pensando a pre-
venção da infração juvenil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 4, n. 3, pp.
131-144, 1999.
CERASO, S. Survirvors’ Tales: Cultural Trauma, Postmemory, and
the Role of the of the Reader in Art Spiegelman’s Visual Narratives.
EnterText, v. 6, n. 3, pp. 204-228, 2006.
COSTA, C. R. B. S. F.; ASSIS, S. G. Fatores Protetivos a Adolescentes
em Conflito com a Lei no Contexto Socioeducativo. Psicologia & So-
ciedade, v. 18, n. 3, pp. 74-81, 2006.
DURKHEIM, É. A divisão do trabalho social. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
DUVIGNAUD, J. Prefácio. In: HALBWACHS, M. A memória coleti-
va. São Paulo: Centauro, 2003, pp. 8-17
EVANGELISTA, D. O. Barreiras da Sobrevivência: angústias e di-
lemas de jovens autores de atos infracionais pós-institucionaliza-
ção. Natal: Editora da UFRN, 2011.
FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro:
Nau, 2003.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis:
Vozes, 1987.
HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.
HIRSCH, M. The Generation of Postmemory. Columbia University.
Poetics Today, v. 29, n. 1, pp. 103-128, 2008.
MARTINS, C. H. S. Juventude e Memória: lembranças de tempos re-
centes. Ciências Socais Unisinos, v. 47, n. 3, pp. 218-277, 2011.
216

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 216 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

PIMENTA, M. M. Masculinidades e Sociabilidades: compreendendo o


envolvimento de jovens com violência e criminalidade. Dilemas, v. 7,
n. 3, pp. 701-730, 2014.
ROLIM, M. A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etio-
logia da violência extrema. Curitiba: Appris, 2016.
SANTOS, M. S. Memória Coletiva, Trauma e Cultura: Um debate.
Revista USP, n. 98 pp. 51-68, 2013.
SECRETARIA DO PLANEJAMENTO, GOVERNANÇA E GES-
TÃO, Secretaria de Desenvolvimento Social, Trabalho, Justiça e Direi-
tos Humanos, Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Gran-
de do Sul. Avaliação de Impacto POD socioeducativo. Porto Alegre:
Secretaria do Planejamento, Governança e Gestão, 2018.
SELL, C. E. Sociologia Clássica: Marx, Durkheim e Weber. Petró-
polis: Vozes, 2012.
VELHO, G. Um antropólogo na cidade: ensaios de antropologia
urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

217

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 217 06/01/2021 10:44


Livro Aloisio-V4.indd 218 06/01/2021 10:44
Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Relações de gênero e a perspectiva de romper


com a dominação e as desigualdades

Gisela Pelegrinelli

Introdução

A incidência do movimento feminista é um fenômeno social-


mente relevante na contemporaneidade e como tal também se torna
somente então uma temática para as investigações da Sociologia de
forma concomitante. As abordagens deste movimento se situam nos
conflitos de gênero que são publicizados de forma simultânea à emer-
gência das mulheres na esfera pública. Na atualidade, efetivamente
já temos disponíveis muitos registros empíricos realizados por meio
de investigações a respeito das relações de gênero e os percalços de
transformações ao longo de poucas décadas. O horizonte desta temá-
tica se desenha associada à dinâmica de movimentos culturais.
O sociólogo Alain Touraine é um dos principais intérpretes da
atualidade e fundamental para os argumentos apresentados no pre-
sente texto. Ele se tornou conhecido a partir da noção da sociedade
pós-industrial, filia-se à Sociologia da Ação e dedicou parte da vasta
obra ao ponto de interesse que tem sido o estudo dos movimentos
sociais, com destaque para a emergência do sujeito. Neste viés o seu
trabalho repercutiu a nível internacional com uma Sociologia basea-
da na produção da sociedade e nos atores coletivos. Ele aborda os
fenômenos sob a ótica de que os atores sociais moldam as relações
sociais a partir de suas próprias lutas sobre a organização da socie-
dade moldando o futuro. Existe uma sinergia entre os mecanismos
estruturais e os sujeitos.
O texto versa sobre quaestões pertinentes às relações de gêne-
ro, em especial sobre a confluência ou o rompimento com as relações
de poder ou dominação vigentes em face de uma sociedade com agra-
vadas desigualdades. O vértice do texto articulada à leitura peculiar
de conflitos sobre um fenômeno cultural que assegura formas histó- 219

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 219 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

ricas de assimetria nas relações interpessoais e coletivas. No cerne da


geração das mudanças históricas localizamos os movimentos sociais
contemporâneos, por meio de uma parcela destes se gesta o mundo
das mulheres. A partir deste enfoque é possível destacar que o objeti-
vo consiste em apresentar as contribuições da Sociologia à compreen-
são das formas tradicionais de dominação, da pluralidade da agenda
emergente por conta dos feminismos. Neste campo, as desigualdades
se apresentam como um obstáculo histórico a superar, mas antes de
tudo a ser um processo reconhecido do ponto de vista da interpreta-
ção. Com isto contribui Ruscheinsky (2008, p. 49) ao apontar que

a disjunção entre desigualdades e direitos como continuidade


e descontinuidade, todavia extrapolando a perspectiva eco-
nômica, ao acrescer a dimensão política e cultural na aborda-
gem. Neste sentido, apesar das políticas sociais e dos meca-
nismos intermediários de decisão, observação da evolução do
coeficiente de Gini, para a realidade brasileira, avaliza uma
espantosa persistência das desigualdades. De um lado, os di-
reitos humanos se consolidaram como construção histórica
por meio de conflitos na democracia, de outro, o texto apon-
ta um conjunto de paradoxos da democracia contemporânea
tentando visualizar os obstáculos e os entraves para a efetiva-
ção almejada dos direitos de cidadania para todos.

As desigualdades e a discriminação estão entre os principais


obstáculos ao avanço da cultura dos direitos humanos, cuja temática
tem uma incidência sobre os estudos de gênero na contemporanei-
dade. É a partir desse contexto que o tópico seguinte apresentará
alguns aspectos acerca da dominação sob o olhar de Max Weber.

A tipologia da dominação em Weber

No cerne da configuração das relações sociais o conceito de


poder não tem forma definida, para a ótica histórico compreensiva
de Weber (2000), pois significa a probabilidade de impor sua von-
tade dentro de uma relação social, mesmo contra toda resistência e
qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade. Ainda segun-
220
do o autor a dominação é um conceito mais preciso, uma vez que é
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 220 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

a legitimação do poder. Ou seja, a instauração desta seria a possibi-


lidade de encontrar obediência para ordens específicas, uma vez que
quem obedece considera a ordem legítima.
Weber (2000) percebe de fato, a dominação legítima assentada
no exercício do poder em uma constelação de interesses econômicos,
políticos ou culturais, como capacidade de estabelecer monopólios,
dominação situada no ápice da autoridade, ou seja, o poder de impor
as suas ordens como lei e, como tal, na probabilidade de outrem
obedecer as suas ordens. Assim se constitui um fenômeno históri-
co peculiar, pois não basta que um indivíduo ambicione dominar o
outro, porque na perspectiva weberiana o outro precisa assimilar a
disposição de obedecer. A dimensão da legitimidade neste interim é
algo fundamental uma vez que ao obedecerem usualmente efetuam
suas ações desta forma na medida em que reconhecem a legitimida-
de das ordens dadas. Por isso, acrescenta que cada tipo de atividade
tradicional, afetiva ou racional compreende um particular tipo de
dominação legítima. Para Weber, os tipos puros seriam três e assim
sintetizados por Wild (2014, s/p):

Dominação Tradicional (onde a autoridade é, pura e sim-


plesmente, suportada pela existência de uma fidelidade tradi-
cional); o governante é o patriarca ou senhor, os dominados
são os súditos e o funcionário é o servidor. O patriarcalismo
é o tipo mais puro desta dominação. Presta-se obediência à
pessoa por respeito, em virtude da tradição de uma dignidade
pessoal que se julga sagrada. Todo o comando se prende in-
trinsecamente a normas tradicionais (não legais) ao meu ver
seria um tipo de “lei moral”. A criação de um novo direito é,
em princípio, impossível, em virtude das normas oriundas da
tradição. Também é classificado, por Weber, como sendo uma
dominação estável, devido à solidez e estabilidade do meio
social, que se acha sob a dependência direta e imediata do
aprofundamento da tradição na consciência coletiva.

Dominação Carismática (onde a autoridade é suportada,


graças a uma devoção afetiva por parte dos dominados). Ela
assenta sobre as “crenças” transmitidas por profetas, sobre
221
o “reconhecimento” que pessoalmente alcançam os heróis e
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 221 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

os demagogos, durante as guerras e revoluções, nas ruas e


nas tribunas, convertendo a fé e o reconhecimento em de-
veres invioláveis que lhes são devidos pelos governados. A
obediência a uma pessoa se dá devido às suas qualidades pes-
soais. Não apresenta nenhum procedimento ordenado para a
nomeação e substituição. Não há carreiras e não é requerida
formação profissional por parte do “portador” do carisma e
de seus ajudantes. Weber coloca que a forma mais pura de
dominação carismática é o caráter autoritário e imperativo.
Contudo, Weber classifica a ótica carismática como sendo
instável, pois nada há que assegure a perpetuidade da devo-
ção afetiva ao dominador, por parte dos dominados.

Dominação Legal (onde qualquer direito pode ser criado e


modificado através de um estatuto sancionado corretamente),
tendo a “burocracia” como sendo o tipo mais puro entre elas.
Os princípios fundamentais da burocracia, segundo o autor
são a Hierarquia Funcional, a Administração baseada em
Documentos, a Demanda pela Aprendizagem Profissional,
as Atribuições são oficializadas e há uma Exigência de todo
o Rendimento do Profissional. A obediência se presta não à
pessoa, em virtude de direito próprio, mas à regra, que se
conhece competente para designar a quem e em que extensão
se há de obedecer. Weber classifica este tipo de dominação
como sendo estável, uma vez que é baseada em normas
que, como foi dito anteriormente, são criadas e modificadas
através de um estatuto sancionado corretamente. Ou seja, o
poder de autoridade é legalmente assegurado.

Na perspectiva tracejada por Weber (2000) pode-se observar


que nas entranhas o poder racional ou legal cunha sua presença nas
relações sociais por sua própria condição de legitimidade e está atinen-
te à noção de competência; por sua vez o poder tradicional engendra
de forma mais contundente o que ordinariamente denomina-se de pri-
vilégio ou posição excepcional entre os demais; o poder carismático
transcende as exigências de provas na vida cotidiana, fazendo emergir
estruturas fluidas dependentes do líder, assim como dilata a sua legi-
timação até as fronteiras lançadas pela missão dos atributos pessoais.
222 De outro modo, ampliando as concepções de poder, usualmente
este parece associado à busca da capacidade para exercer um domí-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 222 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

nio em face de incertezas que influenciam a vida cotidiana e também


o funcionamento das organizações. Abordando autores clássicos po-
de-se citar o estudo de Galbraith (2004), que relata uma “tipificação
do poder como condigno, compensatório e condicionado, com suas
respectivas fontes: a personalidade, a propriedade e a organização”
(CAPPELLE et Al., 2004, p. 7). Enfim, a questão do poder por meio
da legitimidade da dominação integra o “desenvolvimento da socio-
logia weberiana, como um constructo teórico necessário para a com-
preensão do que é racionalidade, modernidade, desencantamento do
mundo e individualismo heroico (SATHLER, 2016, p. 63).
Ademais, a partir dos estudos sobre conflitos como aspecto
inerente às relações sociais, portanto com outro enfoque, destaca-se
“o interesse por conhecer quem detém o poder, de que forma ele é
obtido, e quais configurações apresenta” (CAPPELLE et Al., 2004,
p. 7), bem como se apresenta uma “amostra num universo de muitos
outros estudiosos que têm se aventurado a apreender, definir, expli-
car e interpretar esse tema polêmico e sedutor”. O próximo item, vai
abordar a dominação de gênero.

A dominação de gênero e a sua compreensão sociológica

Atualmente, percebe-se que, apesar das transformações tec-


nológicas e da modernização econômica, os papéis diferenciados
de mulheres e homens transportam cargas históricas. Esta distin-
ção tanto no meio privado, como a família, quanto no meio público,
como o trabalho e as instituições, ainda subsiste sob vários aspec-
tos. Assim, parece fundamental uma reflexão acerca das relações de
poder e as questões de gênero nas organizações, que tanto podem
gerar pontos de adesão e resistência, estender e reforçar assimetrias
de gênero. Os espaços referidos articulam relações que podem ser
vistos como movimentos de negociação, legitimação, contestação ou
protesto e de empreendimentos sociais de acordo com interesses
postos em jogo num cenário de incertezas.
Esse fato constitui um ponto de partida para uma análise a
respeito das perspectivas que discutem os conflitos a propósito das
relações de gênero (FONSECA, 2006), incluindo-se as abordagens 223

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 223 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

feministas de diversos matizes. Estas abordagens têm procurado


compreender a maneira peculiar como o gênero é percebido pelos
indivíduos, bem como as distinções de gênero são construídas no
cotidiano, porém ao mesmo tempo reforçadas e perpetuadas por
meio de relações sociais assimétricas. Mais especificamente, trata-
-se, de acordo com Louro (1996), da focalização dos processos de
formação da feminilidade e da masculinidade. Isto de alguma forma
implica em reconhecer sujeitos femininos e masculinos em espaços
cotidianos ou organizacionais distintos.
Em se tratando de dominação de gênero, embora seja inegável
a diferença biológica entre e homens e mulheres, as Ciências Sociais
entende – a partir da utilização do termo gênero – que a organiza-
ção social é um fator muito mais influente na construção das identi-
dades masculinas e femininas. Dessa forma, gênero tornou-se uma
palavra útil, pois, diferencia a prática sexual dos papeis atribuídos
socialmente a homens e mulheres (SCOTT, 1995). No âmbito dos

debates sobre relações de gênero, a concepção de poder ela-


borada por Foucault remete à interpretação dessas relações
sob a forma de redes tensas e continuamente ativas, em que
não se possibilita a posse do poder, mas somente a capacidade
de exercê-lo em múltiplas instâncias e intensidades diversas
(LOURO, 1996). Dessa forma, o poder passa a ter seus efei-
tos vinculados a manobras, técnicas, táticas e mecanismos,
tendo implicações sobre as ações dos sujeitos que o exercem
(CAPPELLE et Al., 2004, p. 8).

A partir das relações de gênero se considera também que domi-


nação seja um conceito polissêmico e como tal a sua utilidade para a
análise do presente tema pode ser examinada. De acordo com a teoria
weberiana, pode-se apontar que nas relações entre homens e mulheres,
na maioria das vezes, as características do tipo tradicional parecem
mais pertinentes. Esta se torna legitimada pela crença cotidiana das
tradições ou costumes vigentes. Apesar disso, em alguns momentos
históricos, a dominação masculina foi amparada por bases racionais e
legais (WEBER, 1991). De acordo com Cappelle et Al (2004, p. 10) a
224 teoria sociológica possui a respectiva contribuição, por isto

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 224 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Retornando ao conceito de habitus, Bourdieu (1996) de-


monstra que a dominação masculina está instituída, por um
lado, nas coisas, como em divisões espaciais entre homens e
mulheres e divisões de instrumentos, e, por outro lado, no
pensamento, sob a forma de princípios de visão, de divisão e
de classificação, e de taxionomias. Por esse motivo, o autor
considera essa forma de dominação arraigada, com um efeito
simbólico que permeia tanto divisões objetivas como estru-
turas mentais. Assim, o universo masculino tem conseguido
se impor sob a forma de evidências, ou seja, do “isto é assim”,
entretanto, tem sido questionado por contestações feministas
que agem no sentido de romper com tais evidências. Essas
contestações evidenciam disputas de relações de forças que se
expressam no campo estruturado pelo pensamento e explici-
tam que a tomada de consciência e questionamento funcio-
nam como formas de resistência indispensáveis para desen-
cadear processos de transformação nas relações de gênero.

A masculinidade, construída socialmente nos homens, possui


um elemento chave que é a relação de poder que existe entre eles e
as mulheres. O poder não é algo que uma pessoa ou um grupo pos-
sua e sim uma relação que se estabelece entre dois polos. Para que a
relação de poder seja efetivada, é necessário que exista um meio que
a conduza, que pode ser ideológico, econômico ou coercitivo (força)
(BOBBIO, MATTEUCI e PASQUINO, 2000).

Os movimentos sociais segundo Alain Touraine

A trajetória intelectual de Touraine foi construída ao longo


de décadas com desdobramentos ou passagens de fases, de acordo
com temáticas e perspectivas teóricas, talvez também como opções
políticas. O percurso de estende de acordo com Ramos (2013, p. 13)

da sociedade industrial - cujo centro estava no movimento ope-


rário - para a sociedade da globalização e da informação, para
usar os termos nos quais o autor trata de dois momentos distin-
tos da sociedade capitalista moderna. Nesse período de transi-
ção, marcado por guerras, sua trajetória intelectual foi dedicada
à Sociologia da Ação e ao pensamento antifuncionalista. 225

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 225 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

O ponto de interesse vital da sua carreira tem sido o estudo


dos movimentos sociais e é a partir desta referência que se visita
parte da sua produção acadêmica. Em destaque também, o papel das
mulheres inseridas nos movimentos sociais, os fenômenos transfor-
madores ligados ao que Touraine denominou “Mundo das Mulhe-
res”, as relações de gênero em contextos sócio-políticos e culturais
e o aporte analítico de Max Weber sobre dominação. A partir de
Weber se coloca como paradoxal o nexo entre liberdade e direitos
humanos, razão pela qual Sathler (2016, p. 63-68) apostam na com-
plexidade das mudanças sociais.

Interessante observar a visão weberiana de como a liberda-


de de consciência no Ocidente, parte do desencantamento do
mundo e princípio para o individualismo heroico, nasce do
embate permanente entre a dominação política e a dominação
hierocrática. E como os direitos humanos encontram aí sua
pequena seiva para tentar florescer e chegar ao debate mun-
dial. Elucidativo, para não dizer premonitório.

Apresenta-se também o avanço nas condições de vida, na au-


tonomia e liberdade das mulheres, bem como na superação das
situações de violência e desigualdade nas quais se inseriam a partir
da efetivação da cultura dos direitos humanos. É indiscutível que
a luta das mulheres pelo fim da discriminação e pela igualdade
de gênero transformou a realidade estratificada da sociedade em
muitos países assim como no Brasil. Entre os desafios podemos
apontar, conforme Ruscheinsky, Treis e Lopes (2018, p. 170) po-
de-se destacar algumas tendências

A dominação cultural secular e o desprezo aos atributos espe-


cificamente femininos, entre outros múltiplos aspectos, funda-
mentam a reparação e o reconhecimento do Estado, de forma
particular pelas políticas públicas. Dentro do campo em deba-
te o gênero não é concebido como um predicado imanente dos
corpos, mas acima de tudo o conjunto de efeitos produzidos
nos próprios corpos, as identidades socialmente referenciadas
e as relações sociais. Desta forma, entre os desafios postos
226 para o presente texto está a abordagem das políticas não a
partir de um discurso sobre as mulheres e a reprodução dos
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 226 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

valores vigentes, que soam como um obstáculo à cidadania ou


um abafamento de direitos. As políticas públicas possuem uma
função prioritária de redistribuição e nas últimas décadas a
questão de igualdade se destaca orientada para a redução das
desigualdades econômicas, políticas e culturais.

Efetivamente, se repõe a questão das permanências e das mu-


danças e de que forma elas se situam no tempo e no espaço. Em
outros termos, paradoxalmente permanece um nexo entre ruptura e
continuidade, por isto a relevância da visão histórica do movimento
e dos conflitos em curso. Atualmente, percebe-se que em qualquer
discussão sobre movimentos sociais não escapa o questionamento
recorrente: afinal, qual o significado histórico dos movimentos so-
ciais numa sociedade assimétrica?
Os Movimentos Sociais, diante das diversidades de correntes
sociológicas, apresentam-se de forma hegemônica no âmbito da ação
social coletiva. Em certo sentido, nas divergências interpretativas da
fundamentação teórica, podem ser destacadas na literatura da história
das ideias sociais duas visões antagônicas: a irracional e a racional. Ou
seja, onde autores privilegiam uma ou outra destas ênfases ao grifar
as ações coletivas Dentro da primeira podem ser citadas as visões de
Gabriel Tarde e Ortega y Gasset, já para a segunda visão, Marx, Dur-
kheim e Weber (BOBBIO, MATTEUCI e PASQUINO, 2000).
Conforme aponta Touraine (2002), para se compreender os
movimentos sociais, para além de refletir em crenças e valores uni-
versais na ação social coletiva, torna-se fundamental pensar nas ba-
ses sociais nas quais os movimentos se expressam. Pelo exposto,
cada fração da sociedade ou base social teria como circunstância um
contexto histórico (ou historicidades) no qual, assim como também
apontava Marx, estaria explícito a um dilema entre classes, campo
das relações sociais, ficando preso aos modelos políticos, sociais e
culturais. Assim, os movimentos sociais podem romper os dilemas
já apresentados pela base social geradora por si só da contradição
entre as classes, tornando-se uma ferramenta relevante para a ação
com fins de intervenção e mudança daquela mesma base.
A teoria de Touraine (2002) apresenta um pensamento singular
227
quanto aos movimentos sociais passando a dar ênfase à base social
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 227 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

em oposição aos valores e às crenças (MALFATTI, 2017). O autor


aponta uma diferença entre as noções de “ação social” que está anco-
rada no retorno do ator ao cenário e a compreensão expressa é mais
estritamente referente ao impulso por engendrar mudanças sociocul-
turais. Segundo o autor, para que um movimento social se mantenha
visibilizado, é necessário que tenha indivíduos agregados de tal forma
que simbolizem uma contestação à sociedade do presente. Ademais,
a permanência ou influência de um movimento sobre algum aspecto
relevante algumas características fundamentais deverão ser observá-
veis, como por exemplo os indivíduos partilhando certa identidade.
A partir deste contexto, Touraine (2002) aponta que os mo-
vimentos sociais se caracterizam em três características inerentes e
fundamentais: i) princípio de identidade: um compromisso ou em-
patia pelos demais e com quem luta por uma agenda? ii) princípio
de oposição: com identificação dos obstáculos às suas reivindicações
encarnado por quem é o adversário no cenário político e cultural; iii)
princípio de totalidade: a formulação de um projeto com um conjun-
to de metas e direitos e pelos quais vale a pena lutar em consonância
com os outros. Quando os três princípios estão agregados temos a
consistência de um movimento social e que como tal gera e expressa
uma consciência coletiva que se faz ação política. Analisando os per-
cursos das últimas décadas do século XX, Touraine (1991) confirma
os percalços para se conferir a existência de algum movimento his-
tórico que corresponda à sua definição e características.
Nesse sentido, a ideia de sujeito de Touraine é instigante no
sentido de compreender a composição dos atores coletivos, todavia,
sua articulação é assegurada a partir da noção de redes. Entende-
-se, então, que os movimentos sociais não se resumem à luta de um
indivíduo que deseja ser beneficiado. Pautados por abordagem de
Touraine (2011), Goss e Prudencio (2004, p. 82) enunciam entrela-
çamentos e assim

passam a existir como atores que, naquele determinado con-


texto de interesses e oportunidades, estão conectados. A ideia
de redes permite extrapolar a exigência de delimitação do
228 raio de ação dos atores sociais. Em vez da busca da conver-
gência de interesses nos projetos dos atores sociais isolada-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 228 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

mente, a ação coletiva contemporânea requer que o olhar se


volte para os pontos nos quais as diferenças se tocam. Em
outras palavras, como se formam movimentos sociais nos nós
das redes em que se constituem as ações coletivas. Isso signi-
fica afirmar que diante da diversidade de atores sociais já não
é mais possível falar de um movimento social sem considerar
sua articulação numa rede de movimentos sociais.

Percebe-se que após os estudos apresentados por Touraine se


voltou para a revalorização da categoria do sujeito, se reportando à
questão da mulher. Touraine (2011), aponta que as categorias so-
ciais que se mantiveram em situação de exclusão socioeconômica e
inferioridade na proporção de prestígio social, como tem sido his-
toricamente a categoria “mulher”, têm gerado movimentos sociais
para se libertarem. Importante resguardar avanços e retrocessos,
ou as nuances da história dos fenômenos sociais. Por esta razão é
importante averiguar e

saber se a convergência entre os atuais movimentos sociais,


que lidam com os chamados novos direitos e, nesta linha, com
dimensões da cidadania contemporânea, pode ou não criar um
novo sujeito, capaz de gerar transformações significativas e
não apenas pontuais na sociedade contemporânea, ou se tende
a ser, ao contrário, apenas mais uma forma fragmentada, paté-
tica e quase inócua de crítica social (TASCHNER, 2010, p. 51).

Quando este ator, voltado para si, agindo de si para a cole-


tividade, torna-se agente de mudança ou de contenção, torna-se,
também, Sujeito do processo. É um ator Sujeito. Todavia, para que
tal possa se realizar é necessário seguir o primeiro pressuposto da
sociedade: a dinamicidade (MALFATTI, 2017). Essas categorias so-
ciais são parte das tensões na sociedade ocidental, mas também são
fontes de dinamismo, além de serem, como no caso das mulheres,
as “atrizes principais” de um novo e possível modo de recomposição
de relações sociais. No próximo item será tratado esse fenômeno
transformador de nossos tempos atuais, a qual Touraine denominou
“Mundo das Mulheres”.
229

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 229 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

A diferença que faz o Mundo das Mulheres

Para Touraine (2011), as mulheres, por terem vivido a domi-


nação em suas experiências, poderão vir a ter ações mais gerais, de
recomposição de todas as suas memórias individuais e coletivas. O
mesmo autor acredita que

as lutas feministas, como outras, trazem novas aspirações e


ainda, uma nova representação que as mulheres têm de si e do
seu lugar na vida social. Percebe-se a necessidade de demons-
trar em primeiro lugar que a impotência, a falsa consciência
e a total dependência são afinações totalmente desmentidas
pelos próprios fatos. Ao “nada se pode fazer” o autor enfatiza
que é preciso conferir, sobretudo, escutar em vez de se falar
em seu nome” (TOURAINE, 2007 [Sinopse do livro]).

Tal como fez com outras temáticas, para conhecer o pensa-


mento e a experiência vivida, Touraine foi a campo e após um es-
tudo iniciado em 2004 com dezenas de entrevistas, individuais e
coletivas, incluindo muçulmanas, o resultado exposto é que elas se
definem como mulheres e não como vítimas, mesmo quando sofrem
injustiças. Estas protagonizam trajetórias de poder por meio do
movimento feminista, ao destacar a luta pela igualdade e diferença
acreditam dar um destaque ao Outro – histórica, social e politica-
mente. Touraine, com sua autoridade intelectual afirma:

[...] um novo dinamismo só poderá surgir a partir de uma


ação que consiga recompor o que o modelo ocidental separou,
superando todas as polarizações. Esta ação já é evidente, por
exemplo, nos movimentos ecológicos e nos que lutam contra
a globalização. Mas as mulheres é que são e serão as atrizes
principais desta ação, já que foram constituídas como catego-
ria inferior pela dominação masculina e desenvolvem, para
além de sua própria libertação, uma ação mais geral de re-
composição de todas as experiências individuais e coletivas
(TOURAINE, 2011, p. 242).

Esta representação de si encontra-se, num contexto mais com-


230 plexo, nas mulheres muçulmanas às quais foi destinado um estudo
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 230 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

particular. Com estes estudos, Touraine demonstra a necessidade de


quebrar a discussão do tipo “nada se pode fazer” e contribuir para a
descoberta enquanto atrizes sociais revelando os seus objetivos, os
conflitos em que estão implicadas e a sua vontade de serem os sujeitos
da sua própria existência. É a feminilidade, consciente e assumida,
que está em causa e que é a razão de ser e de estar nas relações sociais
e no mundo. Este trabalho prima por “[...] contribuir na redescoberta
das mulheres como atrizes sociais – em revelando seus objetivos, os
conflitos nos quais estão implicadas e a vontade de ser ‘sujeitos’ de
suas próprias existências” (TOURAINE, 2002, p. 37).
O objetivo fundamental na vida – diz Touraine, baseado nos
testemunhos recolhidos – é o de se construírem enquanto mulheres.
É a sua opção, consciente, livre. E essa construção feminina passa,
na maior parte dos casos, pela sexualidade. Este o campo vital onde
elas podem vencer ou fracassar em sua feminilidade assumida.
Elas como sujeitos de sua experiência, de acordo com Tourai-
ne (2011), não querem suprimir as mulheres. Querem apenas sê-lo,
femininas sempre. É a palavra de sujeitos de narrativas e de um
discurso sobre si mesmas contra o discurso sobre as suas condições
sociais. O mesmo autor “assevera que as mulheres foram e ainda têm
sido retratadas e compreendidas, em muitos estudos, como seres in-
feriores, cuja feminilidade é construída socialmente, caracterizada
por termos que revelam a dominação masculina superior às catego-
rias de gênero” (ZAFALON, 2014, p. 7).
E a autora continua ressaltando que “dialogando com Bour-
dieu , o autor reconhece que a construção da própria dimensão do
1

eu feminino passa pela injunção das regras que advém dos enca-
deamentos da dominação masculina” (ZAFALON, 2014, p. 7). Para
Touraine (2011) tais contingências vêm, historicamente, impondo
obstáculos para que as mulheres pudessem conviver com a devida
autonomia para configurar a sua existência e suas respectivas trans-
1 Pierre Bourdieu: sociólogo francês, de origem campesina, filósofo de formação.
Desenvolveu, ao longo de sua vida, diversos trabalhos abordando a questão da do-
minação e é um dos autores mais lidos, em todo o mundo, nos campos da antropolo-
gia e sociologia, cuja contribuição alcança as mais variadas áreas do conhecimento
humano, discutindo em sua obra temas como educação, cultura, literatura, arte, mí- 231
dia, linguística e política. Também escreveu muito sobre a Sociologia da Sociologia.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 231 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

formações (TOURAINE, 2011). Para qualquer grupo de feministas


parece tratar-se, acima de tudo e para além mesmo do tempo atual,
da luta pela igualdade ao mesmo tempo em que vem para afirmar a
diferença. A mulher nesta ótica quer ser definida na relação consigo
mesma, com suas peculiaridades e não em referência aos papéis so-
ciais e às conexões com o mundo dos homens.
Outro núcleo de pesquisadoras/es questiona a própria cate-
goria “mulher” como um referencial social adequado. Isto porque
encontra-se vigente um modelo heterossexual que as domina nas
suas representações e as situa socialmente a partir de um papel su-
bordinado a uma ordem alheia (TOURAINE, 2011). Diante disto,
a ênfase fundamental consiste em libertar as mulheres das amarras
culturais e de interpretação da realidade. Para as suas pretensões
o autor entende que convém suplantar com a oposição usual entre
homem e mulher. Ora, com isso, soa como lógica a destruição da
categoria “mulher”, construída a partir da longeva e cultural domi-
nação masculina, nada mais que uma relação heterossexual imposta.
O autor indaga que, na realidade, nada permite afirmar que a
mulher é uma categoria definida por uma série de atributos; o mes-
mo vale para o homem. Existe uma grande diversidade de tipos
masculinos e femininos e a identificação do homem à autoridade é
não apenas uma construção cultural assim como está longe de cor-
responder à realidade.
Entretanto, Bourdieu (1999) acredita que não se deve despre-
zar o fato de a construção dos gêneros envolver o corpo, apesar da
ênfase no caráter social das diferenças entre homens e mulheres.
Nessa perspectiva, o autor defende a existência de um processo con-
tínuo e histórico de reprodução, cujas práticas e estratégias deter-
minam a construção social dos corpos. Esse trabalho coletivo de
socialização do biológico simultâneo ao de biologização do social
– perpetuado por indivíduos e instituições – resulta em aparências
biológicas reais incutidas nos corpos e mentes que mascaram a arbi-
trária divisão dos gêneros nas sociedades.
A categoria social denominada de “mulher” foi construída num
contexto de dominação masculina e serve sobretudo, atualmente, para
232 reforçá-la. De sorte que esta para se libertar desta histórica e profun-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 232 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

da dominação precisa reinventar a sua denominação, deixando de se


definir como mulher. Afirma Touraine (2011, p. 79) “Não avançamos
para uma sociedade de igualdade entre homens e mulheres; nem mais
para uma sociedade andrógena; nós já entramos numa cultura (e, por-
tanto, numa vida social) orientada pelas mulheres; nós já entramos
numa sociedade de mulheres”. Objeções e sarcasmos à parte,

os homens têm o poder e o dinheiro, mas as mulheres já têm


o sentido das situações vividas e a capacidade de formulá-
-los. Em outras palavras, é reivindicando uma sexualidade
que seja independente das funções de reprodução e de ma-
ternidade que as mulheres se constituem verdadeiramente
num movimento social e avançam cada vez mais – mais lon-
ge do que pela luta pela igualdade e contra a discriminação
(SILVA, 2010, p. 57).

Desigualdades, discriminação e avanços com a cultura


dos direitos humanos

Apesar das históricas reviravoltas no horizonte legal e um leque


de conquistas, um simples olhar sobre o noticiário cotidiano atestará
que persistem as desigualdades de gênero, com as formas propositais
de discriminação e violência, como os níveis altos de feminicídio. As
persistentes desigualdades aludidas se localizam no mercado, seja de
salários e de carreiras, nas instituições, na vida privada e nas formas
associativas da sociedade civil. As experiências educativas em curso
questionam o progresso real, ou melhor, a permanência de um fosso
entre o real, o legal e o ambicionado. “Embora se perceba um avanço
significativo na postura da mulher no contexto sociocultural, ainda
existe um desequilíbrio nas relações de gênero, levando muitas mu-
lheres à subjugação” (ZAFALON, 2014, p. 17).
Nesse contexto, no qual as conquistas caminham a passos
lentos para vencer a consistência da violência, da discriminação no
ambiente profissional, nas desigualdades e disparidades salariais, na
articulação da oposição para engendrar perdas concretas ou amea-
ças aos direitos das mulheres, de acordo com Botelho (2016), é fun-
damental retomar a Declaração Universal dos Direitos Humanos 233

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 233 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

como momento oportuno de reflexão e de (re)construção de ações


de proteção aos mesmos.
É preciso também lembrar que as ameaças e o desrespeito
aos direitos humanos e às conquistas das mulheres não acontecem
sem resistências e sem luta. Nos primórdios do século XXI talvez
seja mais adequado reportar-se aos feminismos, pois as peculia-
ridades se traduzem em movimentos conjugados no plural. Esta
diversidade e pluralidade possibilita um alcance amplificado de
demandas e conquistas de expressão social e cultural em grande
medida em decorrência do acesso às tecnologias de informação e
comunicação. Outro fator a ser considerado é o aumento da escola-
ridade, que proporciona maiores estudos a uma grande quantidade
de jovens e meninas, mulheres negras e indígenas e de diferentes
orientações sexuais. São muitos os feminismos, pois expressam
também a diversidade das mulheres.

Na verdade, vive-se uma época de transição e de reformula-


ção de novos valores em relação ao gênero em que a própria
noção do que representa um companheiro ou uma compa-
nheira ideal ainda não possui um quadro de referência espe-
cífico, como há alguns anos (CAPPELLE et Al., 2004, p. 13).

As ações em prol da identidade feminina, da autonomia, da


independência financeira por meio da atividade profissional também
engendram mais vulnerabilidade e conflitos. Isto é, independência
profissional ainda não se conjuga automaticamente com reconhe-
cimento, pois há que convencer os parceiros a endossar mudanças
culturais. Apesar de tais atributos construírem degraus para uma
projeção social, o preconceito pode estar sendo aprofundado ou re-
novado, ainda que de forma velada, demarcando a existência de uma
hierarquia em face das posições distintas para masculino e para o
feminino, cuja perspectiva é demonstrada pela diferença de remune-
ração pela mesma função. A relação assimétrica entre os gêneros se
caracteriza como poder e sua legitimação está sustentada nas rela-
ções sociais. Os atributos distintos, uns mais nobres que outros, as-
sinala o processo de dominação como um recurso persistente. Essa
234 assimetria acima de tudo calcada pela tradição, pois não obedece
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 234 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

a racionalidade da sociedade capitalista modernizada. Outrossim,


circunscreve-se neste particular uma naturalização de um fenômeno
eminentemente histórico e social.
Se de um lado, existe a precaução em reconhecer os avanços dos
direitos das mulheres, em especial no ocidente, de outro as sombras
ainda subsistem quanto a permanências de um passado que insiste em
fazer-se presente. Neste sentido, Gadea (2005, p. 140) ao referir-se
à teoria dos movimentos sociais insiste no abandono de um a priori
ideológico da inexorável mudança social ligada a uma utopia e dese-
nhando um ponto de chegada como um destino implacável.

Isso está compreendido na suposição de que a emergência


atual de movimentos sociais carrega a experiência históri-
ca, discursiva e política de expressões mobilizatórias de dé-
cadas passadas. Os diversos dispositivos da crítica social e
a emancipação, materializados nas demandas das mulheres,
dos homossexuais, dos negros, dos indígenas, dos jovens, dos
ecologistas e ambientalistas, das diferentes “comunidades
identitárias”, parecem conviver como metáforas das nossas
sociabilidades presentes.

Do ponto de vista das ciências sociais, o que há tanto em re-


lação à masculinidade quanto à feminilidade constituem dimensões
que são socialmente construídas. Os atributos de masculinidade,
por conta de uma construção cultural e histórica, são normalmente
entendidos como uma metáfora do exercício do poder econômico
ou político. Todavia, importante ressaltar que no âmbito legislativo
e das políticas públicas, aconteceram avanços significativos, que se
acentuam a partir dos anos 2000, quando são criados órgãos go-
vernamentais destinados a gerir políticas para mulheres e convoca-
das Conferências de Políticas para as Mulheres (BOTELHO, 2016;
RUSCHEINSKY, TREIS e LOPES, 2018). Para além das ações afir-
mativas, permanecem as paradoxais questões sobre temáticas diver-
sificadas e que usualmente se referem a direitos difusos.

Desconstruir o gênero é, em suma, questionar os atributos


que formaram, durante séculos, a constituição do masculino
e do feminino, atribuindo à mulher sujeito a potencialidade 235

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 235 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

de maximizar o seu valor, negando a opressão social e se-


xual, não aceitando a representação social que lhe é imposta
(ZAFALON, 2014, p. 18).

Sob esta lógica recorra-se novamente ao enfoque de Touraine


(2011, p. 219). E,

[...] a noção de gênero é feita para ser destruída, para ser


desconstruída, dizem elas [as feministas], já que as categorias
empregadas para descrever as mulheres são outros tantos
instrumentos para impor a estas mulheres o monopólio
da relação heterossexual, cuja eminência se deve a posição
central ocupada pelos homens na função social de reprodução
e de filiação.

A propósito do que asseveram Weber, Touraine e Bourdieu


torna-se oportuno atentar para o tipo de abordagem e os respecti-
vos pontos cruciais considerados e desta forma verificar qual tipo de
dominação eventualmente predomina nos espaços e tempos (insti-
tuição de ensino, lazer, trabalho, família, igreja etc.). Portanto, todas
as organizações sociais na medida em que reverberam mecanismos
de poder geram formas de legitimidade quanto ao dom do mando.
Os sujeitos podem acercar-se de melhorarias na convivência caso
haja a criação de mecanismos de adequação ou de mudança para
relações sociais mais equitativas.
Por fim, a emergência de um senso crítico com relação à ges-
tação das bases da legitimidade quanto às relações de dominação
possibilita outras vias para o desenvolvimento sem que lhes freiem o
crescimento pessoal e profissional. Ademais, fazendo a análise con-
textual da cidadania na interface com os direitos na esfera pública,
não se pode ignorar os avanços no âmbito cultural, legal e político
da inclusão das mulheres como detentoras de direitos e de cidadãs.
Contudo, ainda restam as reflexões acerca da igualdade de gênero
na esfera pública, ou nas práticas sociais, para além do reconheci-
mento pelo aparato jurídico.
Reconhecemos que estão vigentes políticas públicas instituí-
236 das e que de forma privilegiada ou predominantemente se dirigem
às mulheres (RUSCHEINSKY; TREIS e LOPES, 2018). Uma de-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 236 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

las é a política conhecida como a Lei Maria da Penha de proteção


contra as questões de violência. Agora, outras, imediatamente são
políticas implementadas em torno do direito da mulher de ir e
vir, de trabalhar, de ter os filhos cuidados, da saúde garantida. As
lacunas estão postas e expostas, o que se traduz na existência dos
reforços a estas políticas. Com a defesa dos Direitos Individuais
e fundamentais se asseguram os direitos das mulheres no Brasil,
como o reconhecimento à diferença e à igualdade. Pela primeira
vez os direitos individuais e os sociais têm em vista a garantia de
direitos em face de realidades vividas pelas mulheres, historica-
mente em situações de desigualdades múltiplas.

237

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 237 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Referências
BOBBIO, N.; MATTEUCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de Políti-
ca. Brasília: UnB, 2000.
BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1999.
BOTELHO, A. (Org.). Essencial Sociologia. São Paulo: Penguin
Classics/Companhia das Letras, 2016.
CAPPELLE, M. C. A. et Al. Uma análise da dinâmica do poder e das rela-
ções de gênero no espaço organizacional. RAE, v. 3, n. 2, pp. 01-17, 2004.
FONSECA, R. M. G. S. (Org.). Mulher e cidadania na nova ordem
social. São Paulo: Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de
Gênero (NEMGE/USP), 2006.
GADEA, C. A. Breves contribuições da crítica pós-moderna para a
análise dos movimentos sociais. Ciências Sociais Unisinos, v. 41, n.
3, pp. 137-142, 2005.
GALBRAITH, J. K. Anatomia do poder. São Paulo: Pioneira, 2004.
GOSS, K. P.; PRUDENCIO, K. O conceito de movimentos sociais revi-
sitado. Em Tese, v. 1, n. 2, pp. 75-91, 2004.
LOURO, G. L. Nas redes do conceito de gênero. In: LOPES, M. J.; ME-
YER, D. E.; WALDOW, V. R. Gênero e Saúde. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1997.
MALFATTI, S. A. Os movimentos sociais em Alain Touraine. Revista
Estudos Filosóficos, n. 6, pp. 217-228, 2017.
RAMOS, R. A. Sujeito e modernidade na perspectiva de Alain
Touraine. [Dissertação de Mestrado]. São Paulo: USP, 2013.
RUSCHEINSKY, A. Desigualdades persistentes, direitos e democracia
contemporânea. Ciências Sociais Unisinos, v. 44, n. 1, pp. 49-57, 2008.
RUSCHEINSKY, A.; TREIS, M.; LOPES, D. S. B. Desafios e tendên-
cias das políticas públicas para as mulheres como questão estratégica
no Brasil: um olhar a partir do sul do país. In: MAZUERA-ARIAS, R.;
ALBORNOZ-ARIAS et Al. (Orgs.). Mujer, emprendimiento y em-
pleabilidad: una mirada interdisciplinaria. Barranquilla: Ediciones
238 Universidad Simón Bolívar, 2018. Pp. 167-204.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 238 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

SATHLER, L. Hierocracia e inovação, dinâmica do conceito na Sociologia


da Dominação. Ciências Sociais Unisinos, v. 52, n. 1, pp. 63-68, 2016.
SCOTT, J. W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educa-
ção & Realidade, v. 20, n. 2, pp. 71-99, 1995.
SILVA, E. W. Sociologia da violência. Ijuí: Editora Unijuí, 2010.
TASCHNER, G. Cultura do consumo, cidadania e movimentos so-
ciais. Ciências Sociais Unisinos, v. 46, n. 1, pp. 47-52, 2010.
TOURAINE, A. Anais do seminário ‘O Retorno do Ator: Movimen-
tos Sociais em Perspectiva’. França/Brasil. Faculdade de Educação,
USP, 1991.
TOURAINE, A. Os movimentos sociais. In: FORACCHI, M. M.;
MARTINS, J. S. Sociologia e Sociedade. Rio de Janeiro: Livros Téc-
nicos e Científicos Editora, 2002. Pp. 335-362.
TOURAINE, A. O mundo das mulheres. Petrópolis: Vozes, 2007.
TOURAINE, A. Um novo paradigma: para compreender o mundo
de hoje. Petrópolis: Vozes, 2011.
WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia
compreensiva. Brasília: Ed. UnB, 2000. [2 volumes].
WEBER, M. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Guana-
bara, 1991.
WILD, B. Os tipos de dominação segundo Max Weber. Brasil Escola.
2014. Disponível em: http://www.brasilescola.com.
ZAFALON, M. A identidade feminina à sombra da dominação mas-
culina: uma leitura de camarão no jantar, de Sonia Coutinho. Revista
Letras, v.16, n. 19, pp. 1-19, 2014.

239

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 239 06/01/2021 10:44


Livro Aloisio-V4.indd 240 06/01/2021 10:44
Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Quilombos: da identidade para emancipação pela via


da teoria da luta por reconhecimento

Clarissa Bottega

Introdução

O presente texto se propõe a investigar as questões ligadas à


identidade e as capacidades de serem estabelecidos graus de autono-
mia do quilombo Mata Cavalo1 em face dos diversos vínculos com a
sociedade, especialmente quanto às políticas públicas de inclusão e
exercício de cidadania. Para tanto a conexão do quilombo com um
espaço vital herdado de seus antepassados passa, necessariamente,
pelo reconhecimento individual e social, a consequente sobrevivên-
cia material e simbólica e a demanda por um território para a devida
independência e emancipação.
No presente artigo nos propomos a analisar, especificamente,
sob uma base teórica, a relação do reconhecimento individual e so-
cial do quilombo e sua possível emancipação tendo como base inicial
a teoria do reconhecimento de Axel Honneth (2003) apresentada
em sua obra “Luta por Reconhecimento: A Gramática Moral dos
Conflitos Sociais”, na qual busca-se um referencial teórico e analí-
tico para o exame proposto, já que a referida obra é um divisor de
águas nessa seara.
Por consequência da luta pelo reconhecimento e para o exer-
cício de direitos, traçaremos um caminho para a descrição das pos-
síveis capacitações mediadas por políticas públicas específicas para
essas “sociedades plurais” ou “formações sociais específicas”. Em ra-
zão de suas diversidades, seus encantos e conflitos, “faz-se necessá-

1 “A comunidade quilombola de Mata Cavalo encontra-se localizada, no Esta-


do de Mato Grosso, às margens da BR-MT 060, no município de Nossa Senho-
ra do Livramento, situado a 50 quilômetros da capital Cuiabá”. Disponível em:
<http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=mt-comunidade-quilombola-
-de-mata-cavalo-apesar-da-conquista-da-titulacao-ainda-expulsa-e-sob-ameacas 241
>. Acesso em: 02/08/2020.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 241 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

rio que o Direito e o discurso jurídico incorporem o dissenso como


princípio democrático” (LOPES, 2009).
O conceito de emancipação a ser trabalhado no presente texto
será aquele compreendido nos exatos termos propostos por Boa-
ventura de Souza Santos (1991) quando afirma em seus estudos que
esta passa pelo respeito à subjetividade e pelo exercício efetivo da ci-
dadania, com acesso à leis e direitos específicos aos indivíduos a que
se propõem, pois a “emancipação por que se luta visa transformar o
quotidiano das vítimas da opressão aqui e agora e não num futuro
longínquo” (SANTOS, 1991).
Não trataremos no presente ensaio dos conceitos de identida-
de, autonomia e território em contraposição ao conceito de socie-
dade, na acepção das Ciências Sociais. O foco neste momento será
nas questões que envolvem a luta pelo reconhecimento individual e
social como meio pelo qual se busca o exercício de subjetividade de
tal forma que se possa projetar mecanismos de emancipação e exer-
cício efetivo da cidadania (SANTOS, 1991).

Luta por reconhecimento

Na esteira de interpretação das Ciências Sociais e da construção


acadêmica cabe salientar que na compreensão de Axel Honneth (2003)
para que mais direitos e democracia sejam conquistados a palavra de
ordem é “reconhecimento” público. Em outros termos, é reconhecer
o outro como sujeito detentor de direitos iguais a qualquer outro su-
jeito na sociedade, como bem pontua Santos (1991) a identificação da
cidadania e subjetividade para o exercício efetivo da emancipação.
Honneth (2003) entende que a partir do reconhecimento so-
cial, atravessando os três estágios do reconhecimento, surgem mais
lutas por mais direitos e mais democracia e porque não mais eman-
cipação e mais autonomia ao sujeito e ao grupo, especialmente quan-
do estamos diante de comunidades tão específicas como o caso dos
quilombolas onde a sociedade e o Estado têm um déficit histórico e
social. Algumas tecnologias, inclusive, podem tornar-se aliadas no
encalço aos direitos de cidadania ainda em relação à denúncias de
242 abusos por outros atores sociais,
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 242 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

os usos de tecnologias de registro audiovisuais nas camadas


populares permitem aos sujeitos objetivarem-se nas mani-
festações .... A análise dessas referências considera duas po-
tencialidades de objetivação: a que resulta de projeções dos
sujeitos sobre bens e objetos, desvelada desde os processos
de interação estabelecidos nos eventos religiosos, e outra
sobre os sentidos projetados pelos bens e objetos, que ex-
trapolam seus valores relacionais ao deslocar as mediações
que operam para objetivações em outra ordem de intera-
ções, ou produzirem hibridismos entre ordens de interações
distintas (LOPES, SILVA e SOUZA, 2013, p. 145).

Os autores fazem, desta forma, uma referência expressa às me-


diações e mecanismos de tradução, ao lado de lembranças, memórias,
mitos e ritos. Devemos esclarecer que Honneth (2003) ao trabalhar
com a questão da aquisição de direitos e democracia, fundamenta sua
análise na questão específica do reconhecimento social contrapondo-
-se, ao menos em tese, à análise da redistribuição defendida por Nancy
Fraser (2002). Enquanto Honneth está mais voltado ao plano norma-
tivo dos conflitos sociais, Fraser se situa num plano mais voltado à
Justiça e a distribuição de bens e direitos, entretanto, não será objeto
do presente artigo a análise da tese da redistribuição2. Esta polêmica
distribuição-reconhecimento também é objeto de consideração por
Pinto (2008) ao discorrer sobre a aplicabilidade das propostas elabo-
radas em outros territórios para explicar casos brasileiros.
A decisão de discutir o reconhecimento social fora do campo
da redistribuição é embasada em alguns fatos históricos e sociais
da vida de Honneth (2003), em princípio porque ele é considerado
parte da terceira geração da Escola de Frankfurt, sendo discípulo
de Habermas. Honneth (2003) discute a questão do reconhecimento
justamente pelo desrespeito existente num contexto hipotético de
justiça e equidade, sendo que esta justiça não está mais de olhos
voltados para a distribuição social, mas sim, dentro do contexto da
busca e proteção da dignidade humana.

2 Para maiores informações sobre a teoria da redistribuição consulte: FRASER,


N. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. 243
Revista Crítica das Ciências Sociais, n. 63, pp. 7-20, 2002.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 243 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Honneth (2003) trabalha a questão do conflito social através


da cultura para se alcançar o reconhecimento, tendo como pano de
fundo os processos culturais mais entranhados nas relações sociais.
Portanto, são processos identitários quando se apresentam contra a
hegemonia instaurada, na busca por direitos e acesso a bens e recur-
sos públicos. Neste sentido, adquirem nitidamente conteúdo políti-
co, social e econômico.
Assim, fica visível que o quilombo como historicamente se
compreendeu num reduto de resistência, se transforma, agora,
num reduto de lutas, não só pelo seu passado marcado pela his-
tória escravocrata, discriminatória e racista, como também, pelo
resgate de sua negritude, seus antepassados e sua dignidade no
presente e para o futuro.
Honneth (2003) trabalha a questão da depreciação do valor
social nas formas de autorrealização e a luta por reconhecimento se
daria através dos processos de reação ao desrespeito às origens, his-
tória, cultura e maneiras de se portar e comportar socialmente, com
a marginalização e a desconsideração dos direitos de todos aqueles
que não se encaixam nos padrões esperados, sendo uma luta contra
a aniquilação da individualidade. De acordo com o autor somente
com a luta o reconhecimento social se irá fazer com que o indivíduo
seja, novamente, incluído na dignidade esperada, porque as formas
de reconhecimento “sempre estão vinculadas a tipos de desrespeitos
cuja experiência pode motivar em termos práticos os sujeitos para a
emancipação” (MELO, 2014, p. 18).
É fato que a negritude passou e ainda passa por constran-
gimentos e esquecimentos, especialmente identificado quando em
períodos de nossa história passada e presente pessoas negras alisa-
vam o cabelo, usavam lentes de contato coloridas ou, em uma tenta-
tiva de integração à sociedade faziam “tratamentos de saúde” para
o branqueamento da pele ou realizavam outras alterações estéticas.
Assim, o ponto de encontro para Honneth (2003) no que se
refere aos conflitos sociais é apresentado na tipologia das formas
de reconhecimento, relacionadas no sentido do amor (próprio), do
Direito (individualidade) e da estima social (comunidade) e as con-
244 sequentes formas de desrespeito de cada uma dessas tipologias. O
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 244 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

que deve ficar claro para a análise da luta por reconhecimento na


análise de Honneth (2003) é a lógica dos conflitos que se originam
ou de uma experiência social de humilhações e desrespeitos ou até
mesmo de uma violação da identidade pessoal ou coletiva.
Neste anseio de restabelecimento da ordem e da dignidade se
situa o empreendimento do Conselho Nacional dos Direitos Huma-
nos3 por meio do relatório das violações de direitos contra grupos
sociais quilombolas, da comissão permanente dos direitos dos povos
indígenas, dos povos e comunidades tradicionais, de populações afe-
tadas por grandes empreendimentos e dos trabalhadores e trabalha-
doras rurais envolvidos em conflitos fundiários.
Estas perspectivas serão capazes de conduzir a toda uma mo-
bilização política individual ou coletiva para que sejam restabeleci-
das ou reconstruídas as relações de reconhecimento mútuo (cidada-
nia) ou ainda que sejam ampliadas a outro nível de convivência com
relacionamentos tensos ou consensuais com outros atores sociais.

Obstáculos e avanços: hora da virada!

A luta – árdua – pelo reconhecimento social fez com que uma


grande parcela de negros, aqui incluídos os quilombolas, assumis-
se sua negritude, com orgulho de sua origem, história, cultura,
passado, presente e futuro, assumindo seus cabelos, seu tom de
pele e seu importante papel na sociedade. Nesta luta pela dignida-
de, entretanto, tal situação não foi suficiente para que os negros
fossem integrados à sociedade de forma a exercer seus direitos
com igualdade e cidadania4.

3 Confira-se Conselho Nacional dos Direitos Humanos – Brasília: Conselho Na-


cional dos Direitos Humanos; 2018. Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/
pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselho-nacional-de-direitos-
-humanos-cndh/RelatorioGTQuilombola_finalaprovado_comrevisodamesadire-
tora.pdf/view> Acesso em: 02/04/2020.
4 Para mais informações sobre a vulnerabilidade econômica e social da
população negra consulte o estudo do IBGE sobre “Desigualdades Sociais por
Cor ou Raça no Brasil” disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas/
sociais/populacao/25844-desigualdades-sociais-por-cor-ou-raca.html?edi- 245
cao=25845&t=sobre>. Acesso em 06/04/2020.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 245 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

A transformação do significado individual dos quilombolas e


sua respectiva identidade com o reforço de suas origens e cultura
encontra fundamento na teoria de Honneth (2003), uma vez que
para ele a luta pelo reconhecimento individual ou coletivo só en-
contra eco nas experiências de desrespeito. Essas experiências de
desrespeito e esquecimento são nítidas no caso específico da análise
que se propõe em relação aos quilombolas que passaram décadas
buscando seu reconhecimento em razão de discriminações e viola-
ções de direitos sofridas através de atos e atitudes da sociedade e
do poder público demonstradas através, por exemplo, da demora
em reconhecer a importância histórica e cultural do quilombo e de
seus membros e efetivar políticas públicas nesse campo. Estas cir-
cunstâncias são mais adequadamente compreendidas por meio das
formas como os indivíduos também se empenham para corroborar
as questões em discussão. Por isto Lopes et Al (2011, p. 208) en-
fatizam a urgência de “analisar a dinâmica desses agenciamentos,
evidenciando a importância do patrimônio cultural para a afirmação
da estima social da cidade e da sua população”. Essa busca pelo re-
conhecimento através da luta social

[...] trata-se do processo prático no qual as experiências


individuais de desrespeito são interpretadas como expe-
riências cruciais típicas de um grupo inteiro, de forma que
elas podem influir, como motivos diretores da ação, na exi-
gência coletiva por relações ampliadas de reconhecimento
(HONNETH, 2003, p. 257).

É de conhecimento no campo dos estudos acadêmicos e em


parte no âmbito da burocracia do Estado que o segmento da po-
pulação negra, como um todo ou em parte, passou, e talvez ainda
passe por vicissitudes que só os próprios podem relatar. Todavia,
quem sabe com menos impacto em decorrência da incansável luta,
superando diversas dificuldades, especialmente, no que se refere ao
“muro da branquitude”, para ter acesso a bens, direitos, educação,
trabalho e seu lugar de livre expressão de suas tradições.
O sofrimento com o racismo estrutural e a discriminação são
246 impostos em diferentes espaços sociais, inclusive espaços públicos.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 246 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

De acordo com a teoria da luta por reconhecimento é possível ve-


rificar que o ponto de partida para a construção das identidades
e a busca por direitos e cidadania está nitidamente embasada em
experiências vitais. Neste sentido o desrespeito e outras cargas de
negatividade pelas quais a comunidade negra e quilombola sofrem
podem ser traduzidos em mediação para demandas coletivas.
Este fato encontra-se diretamente vinculado às formas ma-
teriais e simbólicas de reprodução da vida, que por sua vez tam-
bém requerem a ressignificação das referências de saberes e dos
afazeres. Nesta experiência, todos os agrupamentos humanos se
utilizam de práticas sociotécnicas, porquanto estes se tornam pre-
sentes na vida, para cujo sucesso precisam estar dispostos a apren-
der e exercer ofícios.

As dinâmicas sociotécnicas são significativas neste contex-


to não apenas porque envolvem atividades produtivas para
a manutenção material dos grupos locais, mas porque impli-
cam relações sociais, políticas, sociocosmológicas e de reco-
nhecimento identitário que incidem nos pleitos dos quilom-
bolas na reivindicação de direitos culturais, identitários e
territoriais. Nesse sentido, o reconhecimento é atravessado
por processos sociais e de relações étnicas com efeitos polí-
ticos (ROMERO, 2014, p. 288)

É nesse ponto do fazer a própria história que a teoria de Hon-


neth (2003) se aplica na defesa dos interesses sociopolíticos e da
própria diversidade cultural. Isto é, a construção de sua identidade,
a sua autonomia deliberativa sobre o território é também singular
no que tange ao quilombo Mata Cavalo. Assim como outras popu-
lações quilombolas também passaram por humilhações, abrindo um
enorme vazio na compreensão de si mesmo, de sua identidade e de
sua história. Assim sendo, a dimensão da preservação da cultura
possui singular importância quando falamos especificamente da po-
pulação quilombola.
Esse quadro deixa clara a relevância do reconhecimento polí-
tico e social da negritude pelo déficit público que o Estado e a pró-
pria sociedade têm para com essa parcela da população. Entre estas 247

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 247 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

dimensões encontra-se justamente a negativa no respeito aos seus


costumes, passado, cultura e diversidade, demonstrando a falta de
alteridade no Poder Público nesse campo específico.
Neste aspecto se conforma um aprendizado quanto à diversi-
dade cultural, ao patrimônio que comporta um peculiar segmento
negro encrustado num território do agronegócio, bem como a for-
ma com que se solidifica o uso da biodiversidade (LOPES e TOTA-
RO, 2016). Neste interim, a luta por reconhecimento é o caminho
para a valoração desse passado negro e uma tentativa de instaura-
ção de sua dignidade com o respeito às diferenças e a concessão de
acesso a essa população ao exercício da cidadania.

Reconhecimento político

Nas tragédias e histórias se conjugam anos de luta das co-


munidades quilombolas, seja pelo acesso uma terra para usufruto,
seja pelo seu direito da posse comunitária ou individual. Este é um
processo histórico que remete a uma trajetória de décadas envolven-
do aniquilamento pelo processo de ocupação territorial, bem como
múltiplas resistências. Conforme asseguram Schmitt, Turatti e Car-
valho (2002, p. 129)

[...] novas definições sobre comunidades de quilombo,


elaboradas a partir da necessidade de reconhecimento ofi-
cial destas para que lhes seja assegurado o direito consti-
tucional de propriedade sobre suas terras. Discute-se aqui
o abandono de uma visão cristalizada pela historiografia
clássica baseada no isolamento dos quilombos, bem como
de sua formação única por meio das fugas, em prol de um
conceito ampliado que alça o território e a identidade - es-
pecialmente ligados à resistência – à condição de elementos
fundamentais na determinação destes agrupamentos sociais
denominados remanescentes de quilombo.

Assim é que devemos, agora, nos debruçar brevemente sobre


o conceito de “remanescentes de quilombolas” criado pelo Poder Pú-
blico para compreendermos um pouco da luta por reconhecimento
248
travada pelas comunidades quilombolas frente às políticas públicas.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 248 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

A atenção será dada para o conceito de “remanescentes” conforme


previsto na legislação atual, já que o enfoque está voltado para a
emancipação do quilombo através do exercício efetivo dos direitos
decorrentes da cidadania.
A definição da condição de “remanescente de quilombo ou qui-
lombolas”, conforme prevê o art. 685 do ADCT (Brasil, 2019), foi alvo
de diversas discussões e significações, sendo até hoje motivo de inú-
meros embates conceituais, dificultando, portanto, o reconhecimen-
to e a independência dos quilombos, ou, como quer Santos (1991), a
emancipação do quilombo como consequência de seu reconhecimento.
Neste estudo, então, trataremos de “remanescentes de quilom-
bos” conforme prevê o art. 2º da Portaria nº 98/2007 da Fundação
Cultural dos Palmares, vejamos a construção do conceito:

Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilom-


bos os grupos étnicos raciais, segundo critérios de auto-atri-
buição, com trajetória histórica própria, dotados de relações
territoriais específicas, com presunção de ancestralidade ne-
gra relacionada com formas de resistência à opressão históri-
ca sofrida (PALMARES, 2007).

Pela Portaria nº 98/2007 da referida Fundação é possível, por-


tanto, o reconhecimento de uma comunidade como remanescentes
de quilombolas6 através de sua autoatribuição. Importa que a maio-
ria de seus membros, mesmo não sendo a totalidade dos membros,
se reconheçam como tal. Todavia, como quilombolas, apenas o re-
conhecimento através da autoatribuição parece muito simples para
destacar um pequeno núcleo populacional com o reconhecimento
público pelo sistema de Justiça, uma vez que dele decorrem direi-

5 Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocu-
pando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emi-
tir-lhes os títulos respectivos.
6 Nas ciências sociais comunidade e sociedade são dois tipos de organização e de
conduta sociais distintos. Ao se reportar à comunidade entende-se a existência
de “ricas e significativas concepções comunitárias sobre a reciprocidade, a ajuda
mútua, o parentesco, os critérios de distância social, o saudável e o doentio, a me-
dicina popular, a religião e a morte e até o dinheiro, foram identificadas e descritas 249
cientificamente” (Martins, 2020, p. 3).
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 249 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

tos, bem como o uso livre da biodiversidade no território autônomo


como essenciais para a sobrevivência.
Portanto entre a auto atribuição quilombola e o efetivo exercí-
cio de direitos decorrentes da cidadania através do reconhecimento
e da emancipação existiu um longo percurso de lutas até o dia 1º de
fevereiro de 2019, quanto foi publicada a decisão final da ADIN7 nº
3.239 onde referida ação, em julgamento desde o ano de 2012, foi,
finalmente, julgada improcedente pela maioria dos ministros do Su-
premo Tribunal Federal8.
O manejo dessa ação tinha como objetivo específico a declaração
de inconstitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003 que regulamen-
tou o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das
comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Dispo-
sições Constitucionais Transitórias, o fundamento da ação eram ques-
tões meramente formais que se referiam à observância do princípio da
legalidade e da reserva de lei, ou seja, a alegação principal era a discus-
são de quem teria a competência para apresentação de projeto que te-
nha como objetivo a questão da regulamentação do art. 68 do ADCT.
A grande questão objeto da referida ADIN era justamente
como seria a definição e delimitação de comunidade quilombola (re-
manescentes), bem como o estabelecimento das garantias do acesso
e usufruto da terra tida como de seus antepassados. Muitas das si-
tuações embaraçosas foram desburocratizadas através da previsão
do decreto acerca da “autoatribuição quilombola” conforme previsto
no artigo 2º do referido Decreto onde consta que:

Art. 2o  Consideram-se remanescentes das comunidades dos


quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-ra-
ciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória
histórica própria, dotados de relações territoriais específicas,
com presunção de ancestralidade negra relacionada com a
resistência à opressão histórica sofrida.  

7 Ação Direta de Inconstitucionalidade (Supremo Tribunal Federal).


8 Para maiores informações sobre o andamento da ADIN nº 3.239 (número único:
250 0002247-26.2004.1.00.0000). Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/proces-
sos/detalhe.asp?incidente=2227157>. Acesso em 02/04/2020.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 250 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

§ 1o  Para os fins deste Decreto, a caracterização dos re-


manescentes das comunidades dos quilombos será ates-
tada mediante autodefinição da própria comunidade.
§ 2o  São terras ocupadas por remanescentes das co-
munidades dos quilombos as utilizadas para a garantia
de sua reprodução física, social, econômica e cultural.
§ 3o  Para a medição e demarcação das terras, serão
levados em consideração critérios de territorialidade
indicados pelos remanescentes das comunidades dos
quilombos, sendo facultado à comunidade interessada
apresentar as peças técnicas para a instrução procedi-
mental. (BRASIL, 2003)

O objeto do decreto, como diz em sua apresentação, é a re-


gulamentação do procedimento para identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por rema-
nescentes de antepassados de que trata o art. 68 do Ato das Dis-
posições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de
1988, ou seja, o objetivo final era dar eficácia ao previsto no texto
constitucional de 1988.
Então vejamos, o art. 68 do ADCT da Constituição Federal de
1988 só foi efetivamente visto pelo Poder Público nos idos dos anos
2000, com a promulgação do Decreto nº 4.887/2003, existindo um
vácuo de proteção quilombola de aproximadamente 15 (quinze) anos,
apenas e tão somente quando nos referimos ao período de tempo en-
tre a Constituição Federal de 1988 e o Decreto nº 4.887/2003 que
procurou dar efetividade ao previsto no art. 68 do ADCT já referido.
Nesse período entre a promulgação do art. 68 do ADCT e a
promulgação do Decreto nº 4.887/2003 temos um verdadeiro vazio
jurídico em relação à proteção e ao reconhecimento dos quilombos
como parte importante da história nacional, uma vez que o art. 68
do ADCT foi compreendido pelo sistema de Justiça como não au-
toaplicável, ou seja, não poderia ser implementado de imediato, de-
pendendo de regulamentação por parte do poder público.
Desde o início da década de 1990 foram diversas as tentativas
de aplicação efetiva do referido dispositivo previsto no texto cons-
titucional sem êxito, pois a alegação era sempre da necessidade de 251
regulamentação do texto por lei infraconstitucional.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 251 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Essas discussões foram permeadas por diversos interesses


conflitantes, tanto de grupos políticos, quanto da bancada ruralis-
ta, INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária),
ANCRQ (Articulação Nacional das Comunidades Remanescentes
de Quilombos), MPF (Ministério Público Federal), FCP (Fundação
Cultural Palmares), IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambien-
te e dos Recursos Naturais) no que se refere à titulação das áreas
quilombolas, justamente pelo alto valor no mercado imobiliário, que
estava às voltas na discussão nacional em relação à regularização
fundiária (SANTOS, 2014).
Inicia-se, então, uma verdadeira guerra para se definir quem
seria o órgão responsável pela aplicação do art. 68 do ADCT, com
disputas acirradas, especialmente, entre o INCRA e a FCP, bem
como com a edição de diversas portarias e decretos que tornou o
assunto ainda mais complexo e difícil (SANTOS, 2014). E assim se
foram aproximadamente 15 (quinze) anos de lutas para a comuni-
dade quilombola no que se refere ao seu reconhecimento público e
com o direito à titulação das terras sobre as quais detinham a posse,
período de conflitos fundiários e incertezas. Em termos gerais estes
percalços que duraram décadas de sofrimento, ou de tentativa de
aniquilamento, foram apontados já em 2002 por Schmitt, Turatti e
Carvalho (2002, p. 134)

[...] é a partir dessa posição historicamente desfavorável no


que diz respeito às relações de poder, que comunidades qui-
lombolas vêm lutando pelo direito de serem agentes de sua
própria história. Em tal situação de desigualdade, os grupos
minoritários passam a valorar positivamente seus traços cul-
turais diacríticos e suas relações coletivas como forma de
ajustar-se às pressões sofridas, e é neste contexto social que
constroem sua relação com a terra, tornando-a um território
impregnado de significações relacionadas à resistência cul-
tural. Não é qualquer terra, mas a terra na qual mantiveram
alguma autonomia cultural, social e, consequentemente, a
autoestima. Siglia Dória salienta que a identidade de grupos
rurais negros se constrói sempre numa correlação profunda
com o seu território e é precisamente esta relação que cria e
252 informa o seu direito à terra.

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 252 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Nessa seara de um leque de negociações socioculturais surge,


após mais de 15 (quinze) anos de lutas, o Decreto nº 4.887/2003 que
tem como descrição em seu preâmbulo: “Regulamenta o procedi-
mento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação
e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades
dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Cons-
titucionais Transitórias” (BRASIL, 2003).
O Decreto de 2003 em sua redação atende às questões da
luta por reconhecimento, regulamentando diversos pontos impor-
tantes para o reconhecimento quilombola (art. 2º), traz o aspecto
procedimental para o acesso a titulação das áreas (art. 7º e seguin-
tes) e define competências (art. 3º), dessa forma se traduz em um
mecanismo prático, inovador e garantidor dos direitos quilombo-
las, que unificou todas as demais orientações e determinações que
constavam em portarias e decretos diversos.
Entretanto, por diversos motivos, dentre os quais os inte-
resses de latifundiários, bem como o problema do orçamento pú-
blico para efetivação do acesso à terra ou a garantia jurídica pelos
quilombolas, o decreto de 20 de novembro de 2003 foi impugnado
através da ADIN nº 3.239, já referida, de 25 de junho de 2004, ten-
do sido definitivamente julgada pelo sistema de justiça brasileiro
apenas em 1º de fevereiro de 2019, ou seja, novamente, quase 15
(quinze) anos depois de apresentada a ADIN junto ao Supremo
Tribunal Federal, ação ainda não transitada em julgado, ou seja,
ainda não temos a decisão definitiva (sem cabimento de recurso).
Temos, então, durante mais 15 (quinze) anos, agora dos
anos de 2003 até o ano de 2019 mais um período de incertezas,
dúvidas e conflitos, porém, nesse transcurso do tempo o Decreto
produziu todos os efeitos desejados uma vez que a ADIN não
obteve liminar para suspender os efeitos da legislação promul-
gada, assim a Fundação Cultural Palmares (FCP) e os demais
órgãos envolvidos iniciaram seus trabalhos conforme consta na
legislação, tanto é que o quilombo Mata Cavalo foi certificado
pela FCP no ano de 20079.
9 Informação disponível em: <http://www.palmares.gov.br/sites/mapa/crqs-es- 253
tados/crqs-mt-21022020.pdf>. Acesso em 02/04/2020.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 253 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

O Decreto nº 4.887/2003 concede aos quilombos mais auto-


nomia e responsabilidade, pois transfere para os próprios sujeitos a
questão da autodefinição como quilombolas. Em outros termos, agora
a própria comunidade se responsabiliza pela definição de suas carac-
terísticas, centrando a atenção nos processos pelos quais emergem o
próprio grupo, sua identificação, origens e história partilhada, trans-
formando o grupo em protagonista de seus próprios destinos10.
Com a comunidade identificada e certificada certamente have-
rá nas mãos do grupo mais poder de ação política e social, podendo
se organizar para a cobrança de direitos e políticas públicas voltadas
ao atendimento de demandas quilombolas, especialmente o cumpri-
mento efetivo do exercício da cidadania. Caso não fossem as árduas
lutas travadas pela comunidade negra, e no caso aqui específico as
lutas das comunidades quilombolas, pelo seu passado e reconheci-
mento, provavelmente não se teriam destacado os atores socioesta-
tais. E certamente ainda no âmbito teórico das políticas públicas se
discutiria em tese os direitos, enquanto o seu território, cultura, his-
tória e identidades estariam sendo esvaídas e esquecidas. Na própria
ementa do julgamento da ADIN nº 3.239 do STF ficou estampada
que a questão da luta pelo reconhecimento, travada por muitas mãos
e recursos, é importante e reflete o intento da democracia, vejamos:

6. O compromisso do Constituinte com a construção de uma


sociedade livre, justa e solidária e com a redução das desi-
gualdades sociais (art. 3º, I e III, da CF) conduz, no tocante
ao reconhecimento da propriedade das terras ocupadas pelos
remanescentes das comunidades dos quilombos, à conver-
gência das dimensões da luta pelo reconhecimento – expres-
sa no fator de determinação da identidade distintiva de grupo

10 Para compreender a envergadura desta decisão histórica a afirmação de Mar-


tins (2020, p. 3) é ilustrativa: “Um sociólogo alemão do século XIX, Ferdinand
Tönnies, autor de um livro que tem justamente o título de Comunidade e Socie-
dade, muito antes de uma corrente da sociologia, equivocadamente, polarizar os
conceitos e os empobrecer, já havia sublinhado que a comunidade é o substrato
persistente da sociabilidade humana e que o societário lhe é sobreposição inau-
têntica e frágil. São as estruturas sociais profundas da comunidade que servem
254 como referência regeneradora e até inovadora de sociabilidade onde a anomia e as
rupturas comprometem as ações autoprotetivas a sociedade”.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 254 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

étnico-cultural – e da demanda por justiça socioeconômica,


de caráter redistributivo – compreendida no fator de medição
e demarcação das terras (STF, 2019).

Assim, vê-se claramente que a teoria da luta por reconheci-


mento de Honneth (2003), quando afirma que a luta decorre de si-
tuações de desrespeito, está aqui em plena conformidade e alinha-
mento com a luta quilombola por reconhecimento especialmente
quando a decisão final da ADIN destaca o fator de determinação
da identidade distintiva do grupo étnico-cultural. A decisão quan-
do identifica a demanda por justiça socioeconômica de caráter re-
distributivo no fato de medição e demarcação do espaço territorial
usufruído também se fundamenta no conceito de redistribuição tão
relevante para Nancy Fraser (2002, p. 11), pois atende a abordagem
bifocal da justiça.

A abordagem que proponho requer que se olhe para a justiça


de modo bifocal, usando duas lentes diferentes simultanea-
mente. Vista por uma das lentes, a justiça é uma questão de
distribuição justa; vista pela outra, é uma questão de reco-
nhecimento recíproco. Cada uma das lentes foca um aspecto
importante da justiça social, mas nenhuma por si só basta. A
compreensão plena só se torna possível quando se sobrepõem
as duas lentes. Quando tal acontece, a justiça surge como um
conceito que liga as duas dimensões do ordenamento social
– a dimensão da distribuição e a dimensão do reconhecimento.

Nesse contexto, fica clara que a decisão proferida na ADIN


3.239, apesar de atrasada no tempo conforme destacamos acima,
está em conformidade com a teoria da luta por reconhecimento de
Honneth (2003) sendo mola propulsora de inúmeros outros atos e
demandas das comunidades quilombolas para sua consolidação em
sua subjetividade, identidade e diversidade na construção de suas
capacidades de deliberação sobre seu destino.

255

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 255 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Reconhecimento para emancipação

Tanto se discorreu no presente texto acerca da luta por reco-


nhecimento de segmentos singulares, agora abordaremos um pouco
sobre a motivação para que no âmbito das Ciências Sociais esta te-
mática atingisse tamanho destaque. Podemos dizer, analisando toda a
história cultural e de luta, que não é objeto das comunidades quilom-
bolas o reconhecimento apenas sob o viés identitário ou étnico-racial.
A diversidade das demandas está embasada, por óbvio, em
questões mais complexas ligadas a políticas públicas de proteção e
fortalecimento das relações cotidianas. Na consecução e exercício da
cidadania sucede uma trajetória na qual emergem a ótica de apro-
priação das condições de produção material e imaterial da vida, ou
seja, a autonomia quilombola.
Santos (1991) propõe uma nova ordem da democracia e uma
nova teoria da emancipação em conformidade com as necessidades
da sociedade contemporânea, diríamos em conformidade com os an-
seios que também incluem as comunidades quilombolas. É fato que
há uma dívida social em relação a segmentos sociais étnicos alijados
pelo processo civilizatório: comunidades quilombolas, assim como
em relação aos grupos indígenas brasileiros. Porém, atualmente,
a questão está mais além do que simplesmente reconhecer o qui-
lombola como tal e ofertar a segurança jurídica teórica e social ao
grupo. As novas demandas giram em torno do respeito à cultura, à
subjetividade, ao exercício da cidadania e à diversidade. Essa relação
entre reconhecimento e emancipação passa pelas condições do exer-
cício da cidadania e da subjetividade quando

Ao consistir em direitos e deveres, a cidadania enriquece a


subjetividade e abre-lhe novos horizontes de auto-realização,
mas, por outro lado, ao fazê-lo por via de direitos e deveres
gerais e abstratos que reduzem a individualidade ao que nela
há de universal, transforma os sujeitos em unidades iguais e
intercambiáveis [...] (SANTOS, 1991, p. 141).

Ou seja, ainda que haja o reconhecimento dos quilombos via


256 sistema de Justiça em todos os seus direitos previstos em lei, na mo-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 256 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

dernidade, o que se pretende com o reconhecimento é mais do que


simplesmente uma tutela específica de segurança do Estado para
com essa parcela da população. O que se pretende é o reconhecimen-
to global de sua identidade, costumes, história e tudo o que se liga às
relações sociais no cotidiano, que ambiciona agir como protagonista
na defesa dos interesses do grupo em sua riqueza e diversidade e
não como parte integrante e igual a todos os outros membros do
país ou da nação. Deste ponto de vista Lopes e Totaro (2016, p. 196)
discutem o aprendizado a partir de

[...] uma abordagem relacional entre as concepções de biodi-


versidade e de diversidade cultural, no horizonte de experiên-
cias comunitárias de produção de bens identitários operantes
em processos de pré-patrimonialização cultural ... reconhe-
cer as percepções de alteridade constitutivas das experiências
reveladas pela via ecológica, assim como seus agenciamentos
situacionais e discursivos. A exposição de tais agenciamentos
considera, por sua vez, que os mesmos são condicionados ou
mediados por dispositivos e canais mercantis ou institucio-
nais das políticas culturais e ambientais, como arranjos emer-
gentes de biodiversidade.

Os autores nos ensinam a riqueza do trânsito entre termos


tão diversos como patrimônio, identidade, cultura, espaço, biodiver-
sidade, discursividade e mercadoria. O exercício da cidadania parece
de alguma forma em suspensão quando se trata da população qui-
lombola, por mais que se consiga um entrelaçamento admirável dos
termos citados. A atribuição do Estado de Direito é, em tese, tratar
a todos em igualdade de condições e oportunidades, porém o que
sabemos é uma inverdade histórica em nosso país quando tratamos
de relações étnicas ligadas aos negros, especificamente em nosso
estudo as comunidades quilombolas. Santos (1991), em resposta à
complexidade de questões da modernidade tardia, conclui que a ci-
dadania (efetivo exercício de direitos civis e sociais) sem subjetivida-
de (individualidade) conduz à normalidade e, portanto, é uma forma
moderna de dominação.
No caso da modernidade, as lutas por reconhecimento são con-
257
duzidas pelo processo constante de emancipação social e política, com
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 257 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

o reconhecimento da diversidade e do respeito às tradições, cultura e


história, sendo essencial a reverência à individualidade e subjetivida-
de do grupo e de seus membros, não recomendável, portanto, a ten-
tativa de universalização da cultura e, respectivamente, dos direitos.
Dito isto fica claro que “a emancipação por que lutam não é
política, mas antes pessoal, social e cultural” (SANTOS, 1991). E tal
poderá ser alcançada por meio de reivindicações por reconhecimen-
to discutidas por Honneth (2003) no caso em destaque justamente
pela sua história de luta, na qual encontram-se em tensionamento,
tanto o descrédito, como as alianças com outros atores sociais.

Discussão sobre o caso Mata Cavalo

Como se viu no decorrer do presente texto, o que se busca


fundamento é o reconhecimento da comunidade quilombola em sua
ancestralidade, passado e presente, com respeito à diversidade e à
identidade étnico-racial. Para a compreensão da questão específica
está enredado o uso assegurado do território como um solo benfa-
zejo ou espaço vital e as tradições que manejam a biodiversidade.
De outro lado, a dívida social e política que o Estado Nacional
tem com o grupo desemboca na formulação, ainda, de políticas pú-
blicas afirmativas para o desenvolvimento com a consequente eman-
cipação e o exercício da cidadania. Estas ações afirmativas e positi-
vas fortalecem o protagonismo para acesso às práticas políticas em
conformidade com suas demandas e a sua história11. A par desse
arcabouço teórico, um novo olhar sobre Mata Cavalo poderá ser lan-
çado com a delimitação dos conceitos de território na conformação
de uma identidade. A relevância do território para os quilombolas e
a sua conceptualização é destacada por Guedes (2018, p. 201):

Temos ainda o território associado a uma instituição, ou ao


produto de uma luta política, ou ao objeto de uma reivindi-
cação perante o Estado. É esse o sentido que está em jogo

11 Martins (2020, p. 3) reporta-se a visão distinta em convivência tensionada:


“Disseminou-se o rótulo de exclusão social para indicar que só estão incluídos
258 e são “normais” os integrados na sociedade de consumo, da compra e da venda.
Tudo tem preço, até a alma e a salvação. Há religiões especializadas nisso”.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 258 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

quando falamos, por exemplo, nos pleitos deste ou daquele


povo ou comunidade, diante do Incra ou da Funai, para a de-
marcação de tal ou qual território. Por fim, e de modo ainda
mais próximo ao assunto tratado aqui, argumento que o ter-
ritório vem se tornando cada vez mais um conceito ou termo
adequado para que certos cientistas sociais possam evocar ou
descrever um modo de vida particular – sobretudo quando o
que está em jogo são povos, grupos ou comunidades ameaça-
dos ou afetados por frentes ou projetos de desenvolvimento.

Desta maneira, se tenta compreender de que modo um con-


junto de valores são potencializados pelo grupo social em termos de
(auto)reconhecimento identitário. A posse do território e as ativida-
des sobre o respectivo espaço são imprescindíveis para que o grupo
trilhe um caminho que deságue no consequente desenvolvimento de
capacidades no âmbito político, cultural e social.
Veja-se que a auto atribuição12 foi recentemente assentada pelo
sistema de Justiça como constitucionalmente legítima, pois a adoção
da autoatribuição como critério de determinação da identidade qui-
lombola, além de consistir em método autorizado pela Antropologia
contemporânea, cumpre adequadamente a tarefa de trazer à luz os
destinatários do art. 68 do ADCT (STF, ADIN 3.239, 2019).

Considerações finais

A ideia inicial do presente texto consistiu em tentar com-


preender como essa relação entre a posse assegurada da terra em
conjugação com certas tradições étnicas flui para o fortalecimento
(ou não) dos laços identitários. A discussão conceitual é de relevân-
cia, bem como a consideração da diversidade de denominações, con-
forme asseguram Schmitt, Turatti e Carvalho (2002, p. 131)

Dentro de uma visão ampliada, que considera as diver-


sas origens e histórias destes grupos, uma denominação
também possível para estes agrupamentos identificados
como remanescentes de quilombo seria a de «terras de pre-
to», ou «território negro», tal como é utilizada por vários
259
12 Medida idêntica adotada nos últimos censos realizados pelo IBGE.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 259 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

autores, que enfatizam a sua condição de coletividades cam-


ponesa, definida pelo compartilhamento de um território e
de uma identidade.

Neste mesmo patamar pode-se examinar a autonomia e in-


dependência do grupo e se existe um possível protagonismo po-
lítico e social. Ou seja, se os habitantes de território passam, de
acordo com a ótica de Honneth (2003) pela individualidade (amor),
pelo senso de comunidade (estima social) e pelo Direito (cidada-
nia), como passos fundamentais para alcançar o reconhecimento, a
autonomia e a emancipação.
A luta por reconhecimento passa pela construção permanen-
te de sua identidade com recurso à história: memória do passado
racista e escravocrata, cultura negra e africana, religião, gastrono-
mia, música, costumes, agricultura, dentre outros. Estes são alguns
requisitos para assegurar alimento à subjetividade e consequente-
mente uma diuturna capacitação para a manutenção do grupo de
forma autônoma em face da demanda por seus direitos de cidadania.
Estamos diante de questões específicas das relações sociais e
seus movimentos quando nos perguntamos como esses atores so-
ciais se identificam e se apresentam à sociedade na luta por seus
Direitos. Isto não só em relação à terra, conforme art. 68 do ADCT
(BRASIL, 1998), mas também pelo seu reconhecimento, protagonis-
mo político e social, autonomia e independência. Conforme previsto
nos Decretos nº 4.887/2003 e 6.040/2007 (BRASIL, 2003/2007)
somos presenteados conforme Lopes et Al (2011) com sua cultura,
religiosidade, artesanato, festas, vestimentas e modos de se relacio-
nar ou resolver conflitos.
Para compreender a luta por reconhecimento da comunidade
quilombola em seus anseios culturais, sociais e políticos por meio da
construção permanente de uma identidade quilombola não se pode
descuidar dos fortes vínculos com as tradições e o vínculo intensivo
com todos os elementos do território que ocupam. Dar condições
para que os membros do grupo possam exercer sua cidadania, ga-
rantindo a emancipação individual e comunitária, significa reconhe-
260 cer a diversidade democrática do país, assegurando às sociedades

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 260 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

plurais, o efetivo exercício dos direitos decorrentes da cidadania. No


caso da comunidade quilombola Mata Cavalo trata-se do reconhe-
cimento social e autonomia sobre o território, porquanto Honneth
(2003, p. 207) ao tratar destas questões denomina-as de “estima so-
cial” por isto asseverou que

[...] quanto mais os movimentos sociais conseguem chamar


a atenção da esfera pública para a importância negligenciada
das propriedades e das capacidades representadas por eles de
modo coletivo, tanto mais existe para eles a possibilidade de
elevar na sociedade o valor social ou, mais precisamente, a
reputação de seus membros.

No caso dos quilombos há uma dívida histórica de anos de


racismo, preconceito e discriminação (ponto nevrálgico da luta por
reconhecimento), sem contar os anos de escravidão e invisibilidade
cultural e política. Do ponto de vista ético e da perspectiva de de-
mocratização que requer a inclusão dos negros em nosso país, deve
o Poder Público por meio da educação das relações étnico-raciais
descortinar ações para que a luta por reconhecimento possa ser a
mais rápida e eficaz possível.
Nesse sentido, o desenho de ações afirmativas visa minimizar
os efeitos adversos, com o inevitável reconhecimento mútuo, tam-
bém, da importância do negro e de sua história junto ao desenvolvi-
mento do país e de relações sociais de equidade.

261

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 261 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Brasília, DF: Presidência da República, 1998.
BRASIL. Decreto n. 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta
o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demar-
cação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades
dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucio-
nais Transitórias. Brasília, DF: Presidência da República, 2003.
BRASIL. Decreto n. 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Institui a
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comu-
nidades Tradicionais. Brasília, DF: Presidência da República, 2007.
FRASER, N. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhe-
cimento e participação. Revista Crítica das Ciências Sociais, n. 63,
pp. 07-20, 2002.
FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Portaria nº 98, de 26 de
novembro de 2007. Disponível em: <http://www.palmares.gov.br/
wp-content/uploads/2010/11/legis21.pdf>. Acesso em: 02/08/2019.
HONNETH, A. Luta por Reconhecimento: A Gramática Moral
dos Conflitos Sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.
GUEDES, A. D. Da terra ao território: notas para uma sociologia da
crítica ao desenvolvimento. In: LIMA, A. C. S. et Al. (Orgs.). A antro-
pologia e a esfera pública no Brasil. Rio de Janeiro: Editora e-papers,
2018. Pp. 197-217.
LOPES, J. R.; TOTARO, P. O aprendizado da diversidade cultural e a
patrimonialização da biodiversidade. Ciências Sociais Unisinos, v. 52,
n. 2, pp. 196-204, 2016.
LOPES, J. R.; SILVA, A. L.; SOUZA, R. T. As memórias do que aconte-
ceu: religiosidade, tecnologias e traduções nos meios populares. Ciên-
cias Sociais Unisinos, v. 49, n. 2, pp. 145-154, 2013.
LOPES, J. R.; et Al. O Divino, o patrimônio e a cidade: uma análise de
modulações culturais provocadas por eventos críticos. Ciências So-
ciais Unisinos, v. 47, n. 3, pp. 208-217, 2011.
LOPES, J. R. Direito das minorias e direito à diferenciação. Cadernos
262 IHU Ideias, São Leopoldo, 2009.

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 262 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

MARTINS, J. S. A irrupção comunitária. Jornal Valor Econômico, Eu&


Fim de Semana, Ano 20, nº 1.009, São Paulo, 09 de abril de 2020, p. 3
MELO, R. Da teoria à práxis? Axel Honneth e as lutas por reconheci-
mento na teoria politiza contemporânea. Revista Brasileira de Ciên-
cia Política, n. 15. pp. 17-36, 2014.
PINTO, C. R. J. Nota sobre a controvérsia Fraser-Honneth informada
pelo cenário brasileiro. Lua Nova, n. 74, pp. 35-58, 2008.
ROMERO, F. L. Fazer artesanato para fazer a roça: práticas sociotécni-
cas na Comunidade Quilombola da Serra das Viúvas. Ciências Sociais
Unisinos, v. 50, n. 3, p. 281-292, 2014.
SANTOS, B. S. Subjectividade, cidadania e emancipação. Revista Crí-
tica de Ciências Sociais, n. 32, pp. 135-191, 1991.
SANTOS, S. R. Comunidades Quilombolas: as lutas por reconheci-
mento de direitos na esfera pública brasileira. Porto Alegre: EDI-
PUCRS, 2014.
SCHMITT, A.; TURATTI, M. C. M.; CARVALHO, M. C. P. A atua-
lização do conceito de quilombo: identidade e território nas definições
teóricas. Ambiente e Sociedade, n. 10, pp. 129-136, 2002.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconsti-
tucionalidade. ADIN 3.239/2004. Relator Ministro Cezar Pelu-
so. DJ 1º/02/2019. Votação por maioria. Disponível em: <http://
www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=A-
DIN&s1=3239&processo=3239> Acesso em: 05/08/2019.

263

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 263 06/01/2021 10:44


Livro Aloisio-V4.indd 264 06/01/2021 10:44
Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Indústria cultural da magreza: as vivências


de sujeitos em situação de obesidade

Claudia Regina Felicetti Lordani


Marília Veríssimo Veronese

Introdução

As representações sobre o corpo e suas formas podem ser


compreendidas e interpretadas sob diferentes perspectivas, a de-
pender dos interesses que as cercam e do período histórico-cultural
analisado. Nesta corrente, para as Ciências Sociais, compreender o
modo pelo qual a sociedade se relaciona com o corpo é uma questão
fundamental na medida em que ele é concebido como uma potencia-
lidade elaborada pela cultura e ativada pelas relações sociais e é por
meio da mediação da corporeidade que são tecidas as tramas da vida
cotidiana. Deste modo, conceituações sobre os corpos também se
constroem e se alteram, à medida que as sociedades se transformam.
Em meio a essa evolução societária, é possível infletir que
o sucesso alcançado pela indústria cultural da magreza é decor-
rente, em boa medida, do papel centralizador do discurso médico-
-científico sobre a corporeidade: a partir da evolução do conheci-
mento científico – que se utiliza, em grande medida, da dicotomia
anormalidade/(doença) versus normalidade/(saúde) – pode-se con-
ceituar inúmeros males que afligem o corpo e, consequentemente,
traçar o ‘tratamento adequado’ para eles. A obesidade é emblemá-
tica neste sentido; através das ‘leis universais’, como o Índice de
Massa Corporal (IMC), diagnosticam-se sujeitos como normais/
magros e anormais/obesos, utilizando-se denominações de saudá-
vel e doente, respectivamente. Com isso, a medicalização da vida se
aprimora diariamente, em velocidade similar ao aumento do con-
trole e vigilância sobre o corpo e dos produtos/procedimentos co-
merciais desenvolvidos para ele pela indústria cultural da magreza
baseados no discurso médico-científico. 265

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 265 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Prova disto, contemporaneamente, é a preocupação narcísica


com a aparência física e a saúde (em muitos casos, nesta ordem de
importância) tornando-se central na vida de indivíduos subjetiva-
dos pelos sentidos que associam magreza/beleza/saúde/sucesso na
vida. A lógica do culto ao corpo magro e saudável, aprimorado pelo
discurso médico-científico que profere suas ‘verdades explicativas’,
é impulsionada, sobremaneira, por esta indústria cultural da ma-
greza. Seu principal veículo, as mídias de massa, legitimam, natura-
lizam e pulverizam estas ‘verdades’, tornando-se, portanto, pilares
estruturantes da prática do culto ao corpo: a mídia, por mediar a
difusão da temática, a mantém presente na vida cotidiana, levando
ao/à expectador/a os ‘lançamentos’, as descobertas ‘tecnológicas e
científicas’, ditando e incorporando tendências, hábitos e estilos de
vida e; a indústria cultural da magreza, por garantir a materialidade
da tendência de comportamento que, como todo perfil comporta-
mental e/ou simbólico – só existe se existirem objetos e produtos
consumíveis. O grande desafio, contudo, é analisar como chegam
estas informações e como são absorvidas pelo público em geral, em
especial pelos sujeitos em situação de obesidade.
Tal análise, portanto, faz-se necessária já que esse processo
contribui, sobremaneira, para a estigmatização dos sujeitos que
não se enquadram no tipo ideal de beleza corporal preconizados
por tais discursos, aprofundando a dicotomia magreza (inclusão)/
obesidade (exclusão).
Embora a sociedade contemporânea pareça estar mais aten-
ta às causas humanitárias, preocupada com consumo racional, selos
verdes e materiais biodegradáveis ela está, simultaneamente, au-
mentando suas despesas destinadas a atrair o olhar do outro por
meio da intensa recusa da gordura – lipofobia – levando a banali-
zação dos procedimentos estéticos, ou seja, aderindo à naturaliza-
ção da medicalização da vida. Assim, nesta medicalização de tudo,
traduzida pelo império das logomarcas, pela produção/consumo
do supérfluo e do descartável, pela era da imagem e da idolatria
(LIPOVETSKY, 2007; BAUDRILLARD, 2008; BAUMAN, 2008;
LE BRETON, 2011), a sociedade encara o corpo, em boa medida,
266 enquanto um artefato modulável, maleável, cujas ‘peças’ podem ser
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 266 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

substituídas ou aprimoradas. Instigada, cotidianamente, pelos dis-


cursos hegemônicos que internalizam nas pessoas a necessidade
desse aprimoramento. Nessa linha, o corpo deve ser belo, magro e
saudável. Porém, na escala de ‘evolução societária’, ‘só’ isso já não
basta para os “consumidores profissionais” (LIPOVETSKY, 2007):
deve-se prevenir, desviar o curso de doenças, prever o futuro, mudar
comportamentos em relação às condutas de risco, dar provas de boa
‘observância’: um redobrado controle e vigilância sobre o corpo por
meio das tecnologias, sobretudo médicas.
Assim, supervalorizando a magreza, transforma-se automa-
ticamente a gordura em um símbolo de falência moral; e o obeso,
mais do que apresentar um peso socialmente inadequado, passa a
carregar uma marca moral indesejável. Ou seja, um estigma, na me-
dida em que as pessoas atribuem juízos de valor pejorativos a essa
condição, causando-lhe prejuízos inimagináveis, sobretudo, pela de-
terioração de sua identidade social.
Segundo Deleuze (1992), a análise da “sociedade de contro-
le” auxilia a pensar em como o processo de regulação ininterrupta e
‘naturalizada’ transcende a vida das pessoas de uma maneira geral,
atingindo fortemente aquelas em situação de obesidade. Tal regula-
ção, protagonizada pelo discurso médico-científico e estimulada pela
indústria cultural da magreza, legitima o corpo gordo como um cor-
po marcado pela falência moral, e que, portanto, deve ser corrigido,
alterado e aperfeiçoado (MATTOS, 2007). As consequências dessa
‘regulação’ incluem a estigmatização de formatos corporais diferentes
do padrão hegemônico, em especial, o corpo obeso, aprofundando a
dicotomia magreza como inclusão e obesidade como exclusão.
Neste interim, torna-se pertinente compreender o processo
de constituição das representações e as vivências de sujeitos em si-
tuação de obesidade, frente aos apelos da indústria cultural da ma-
greza, identificando os diferentes discursos que afetam, positiva e
negativamente, suas dinâmicas de interações sociais. Para respon-
der a tais objetivos, participaram da pesquisa 20 sujeitos adultos,
de ambos os sexos, que apresentavam obesidade, considerada pelo
discurso médico como grave, diagnosticada pelo Índice de Massa
Corporal (IMC) >40kg/m2, (WHO, 2000) em atendimento interdis- 267

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 267 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

ciplinar no Serviço de Obesidade e Cirurgia Bariátrica do Hospital


Universitário do Oeste do Paraná (SOCB-HUOP/UNIOESTE) lo-
calizado no município de Cascavel, oeste do Estado do Paraná.
Como categoria qualitativa de investigação, na pesquisa ori-
ginal, optou-se por utilizar a Teoria das Representações Sociais
(MOSCOVICI, 2010) – embora esse enfoque específico não seja o
foco deste ensaio – que coloca em tela a relação entre o saber médico,
a indústria cultural da magreza e as vivências dos sujeitos obesos.
Os dados foram coletados por meio de Grupos Focais e Entre-
vistas em Profundidade. O número de sujeitos para a entrevista foi
definido pelo processo conhecido como amostragem por saturação
ou princípio da exaustão de conteúdo. (FONTANELLA; RICAS e
TURATO, 2008). Já o grupo focal foi constituído a partir do con-
vite prévio da pesquisadora aos participantes em um momento ce-
dido pela equipe do SOCB-HUOP/UNIOESTE durante a reunião
mensal. Após a permissão formal dos sujeitos, todas as falas foram
gravadas com o auxílio de gravador portátil a fim de permitir a
transcrição literal e maximizar a fidedignidade na exposição das fa-
las. A partir das transcrições, o tratamento dos dados qualitativos
foi realizado por meio da técnica de análise de conteúdo temática,
segundo proposta de Laurence Bardin (2011).
A codificação consistiu em dar um código a cada sujeito en-
trevistado e a cada um dos participantes do grupo focal para fins de
preservação do anonimato e apresentação dos fragmentos de dis-
curso na apresentação dos resultados. Desta forma, adotou-se as le-
tras E – de entrevistado, seguido por um algarismo arábico e G para
os participantes do grupo focal também seguido por um algarismo
arábico. Este trabalho recebeu o parecer favorável do Comitê de Éti-
ca em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná (UNIOESTE) (CEP n° 1.180.202).

Apresentação e discussão dos principais resultados

A ‘indústria cultural’, termo baseado em Baptista (2001 apud


ALMEIDA et Al., 2006, p. 791) pode ser entendida como um “instru-
268 mento de pressão da sociedade sobre o indivíduo através da utilização
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 268 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

de elementos culturais” que se tornam acessíveis pelo cinema, televi-


são e por outros meios de comunicação de massa. Esses são utilizados
como “formas de cooptarem os indivíduos para uma atuação de acor-
do com os interesses e as necessidades do modo de produção, fazendo
a lógica industrial prevalecer”. Neste ensaio, além dos elementos cul-
turais, o termo engloba, ainda, à rede alimentícia, dita para a vida sau-
dável e, às indústrias farmacêutica/médica/estética. Ambas, apoiadas
pela mídia se utilizam desta obsessão atual pela construção da aparên-
cia corporal ideal para conquistarem progressivamente mais adeptos
e, com isso, abarrotarem (ainda mais) seus cofres.
Acredita-se que a mídia, por sua extensão, formatação, poder
de penetração e circulação dos mais variados discursos, constitui-se
em um dos principais meios de difusão e legitimação do culto ao
corpo magro como tendência de comportamento (CASTRO, 2007).
É uma relevante instância produtora de subjetividades, consideran-
do o constante processo de redefinição do self na cultura contempo-
rânea, implicando na (re)construção diária dos modos e estilos de
vida. Contudo, eventualmente, os receptores das mensagens con-
seguem discernir, criticamente, a qualidade duvidosa, especialmen-
te das propagandas comerciais de produtos para emagrecer. Nesta
corrente, questionados sobre as propagandas de produtos para o
corpo, a opinião de grande parte dos/as entrevistados/as revelou
certa dúvida quanto à credibilidade das informações transmitidas:

[...] Tem umas propagandas que a gente vê que são menti-


rosas, que são mais para vender produto do que para ajudar
as pessoas. Mas eu não me incomodo porque eu sei que não é
para mim (E3).

Eu vejo como uma ilusão! Que aquilo ali é só para vender


produtos! (G1).

Eu acho que é mentira, mas também não dou muita impor-


tância para isso (E5).

Eu acho que não resolve nada, porque, assim, se você vai com-
prar uma coisa, por exemplo, um shake, aí você tem que tomar
no café da manhã, no almoço e na janta, claro que emagrece 269

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 269 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

porque você para de comer para tomar o shake. Se você fecha


a boca e reaprende a comer você também pode emagrecer!
Não tem nada a ver com a marca que você está tomando (G8).

Analisando os depoimentos acima, é possível inferir que, ape-


sar de não consumirem tais produtos, por acreditarem que as ‘pro-
messas’ divulgadas são falsas, há certa dúvida entre a real ação e/
ou benefício do produto/serviço divulgado, o que pode despertar
em algum momento de suas vidas (a depender da intensidade de
estímulos publicitários) a vontade de experimentá-los.
E este é o grande nó da questão: até que ponto é possível de-
fender-se das estratégias de indução ao consumo? Uma vez que os
principais artifícios utilizados nas mensagens publicitárias expres-
sam felicidade, vitalidade, disposição, saúde física e mental, com ca-
racterísticas atribuídas ao produto de superioridade, credibilidade,
confiança, alta qualidade, inovação e benefícios à saúde. Para com-
plementar, utilizam-se de personalidades da mídia (felizes, magras e
belas) conferindo sua legitimidade. Em suma, o prazer, a satisfação
e a saúde como álibis do incentivo ao consumo.
É fato que a indústria cultural da magreza, apoiada pela mídia, é
regulada pela economia de mercado: cosméticos, fármacos e produtos
alimentícios em geral, produtos que afirmam aquilo que “pode e deve”
funcionar, como um medicamento ou um bem maior para a saúde. Des-
se modo, conforme analisam Sant’Anna (2002) e Vigarello (2006), in-
veste-se no controle e estimulação dos corpos, além dos valores socie-
tários discriminatórios e elitistas: assim como ricos seriam melhores
que pobres, magros seriam melhores que gordos (ORTEGA, 2003).
Para Castro (2007), essa obsessão pela construção da aparên-
cia surge como resposta à instabilidade, fragmentação e efemeridade
que marcam a vida social dos sujeitos, o que ajuda a compreender a
centralidade assumida pelo culto ao corpo na cultura contemporânea.
Daí a dimensão cultural da propaganda/publicidade: ela mobiliza o
imaginário coletivo e reconstrói saberes e crenças, legitimados social-
mente. Isso significa que a publicidade recorre às normas sociais inte-
riorizadas pelos sujeitos, normas aceitas pelo grupo e que apresentam
270 instruções de comportamentos esperados (LYSARDO-DIAS, 2007).

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 270 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Assim, quando se defronta com a publicidade de produtos re-


lacionados ao corpo, à saúde e beleza, como medicamentos, alimen-
tos, vestuário, cosméticos, serviços e outros, pode-se incutir uma
relação entre esses elementos, que necessita ser analisada à luz de
parâmetros éticos que levem em conta o direito à informação ade-
quada e à saúde (incluindo os riscos), permitindo uma maior aproxi-
mação de ações que possibilitem minimizar os perigos advindos do
consumo induzido de forma indiscriminada.
Alguns participantes, diante do insistente apelo, deixaram-se
seduzir pelos jogos da mídia e publicidade, conforme demonstra o
relato: Eu acho que são enganosas. Eu já tentei essas dietas que
saem, tentei fazer, mas não adianta, eu sei que eu vou me iludir com
uma coisa que eu não vou conseguir. Mas eu não fico triste não (E7).
Em se tratando de propagandas de suplementos alimentares,
são inúmeros os exemplos de que estes produtos são associados à
imagem de artistas e atletas famosos (magros, belos e felizes), impri-
mindo ao alimento o status de milagroso. Em tais situações, exime o
consumidor da culpa pelo consumo do produto, pois o alimento con-
tribuiria para a boa forma física, além de ser saboroso. Em alguns
casos, sugere-se ao consumidor a substituição de refeições (naturais)
pelo produto (manipulados industrialmente), com a justificativa de
que refeições ‘hipercalóricas’ são impeditivas para aqueles que alme-
jam tornarem-se parecidos com as personalidades da mídia.
Este último exemplo pode gerar, entre outros agravos, a dis-
torção por parte do consumidor quanto à função cultural, simbóli-
ca e social que a alimentação exerce (LUZ, 2012; MONTANARI,
2008) ao substituir os componentes socioculturais da comida e da
comensalidade (POLLAN, 2008) por um fenômeno puramente ra-
cional, ao minimizar o ato de se alimentar a um ato de ingerir nu-
trientes, em um processo mecânico, individualista e medicalizado
(VIANA et Al., 2017; CAMARGO Jr, 2013).
Como se não fosse suficiente, grande parte da mídia faz uso,
ainda, de aparatos tecnológicos para tentar ludibriar o ‘cliente em
potencial’, ao editar a imagem dos/as atores/atrizes em programas
computacionais, reparando as ‘imperfeições’ dos corpos e acentuan-
do outros atributos. Neste quesito, a mídia não poupa esforços: por 271

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 271 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

meio da inteligência artificial e das ‘mãos virtuais’ não apenas as


silhuetas corporais são ‘afinadas’, como também os programas de
edição computadorizada maquiam, aumentam a musculatura, bron-
zeiam a pele, apagam as rugas, tingem cabelos, alongam traços,
branqueiam dentes ou recriam sorrisos. Tudo dotado de um poder
de transformação para garantir a ‘estética ideal’ (SOKOLOSKI,
2010). Fato que, por vezes, coloca em dúvida a real naturalidade da-
quela pessoa, como refere o depoimento a seguir: Esses dias a gente
folheou uma revista, aqueles corpinhos, aquelas roupas, eu sei que
vai cair bem nela, mas será que ela está mesmo com aquele corpo,
será que não é tudo coisa de computador? (E7).
Sokoloski (2010, Sp.) demonstra que a “ditadura do corpo per-
feito” passa a ser mostrada, em boa medida, na linguagem desses
softwares, ou seja, produto de mercado. Entra, assim a era do “corpo
digitalizado”. Corpos e rostos que seduzem, esculpidos com o cuida-
do da máquina inteligente, o programa de edição de imagens Pho-
toshop. Esse mágico “doutor”, sem diploma de papel, mas que rouba
a cena em favor do imaginário humano; dá cores e constrói contor-
nos, produzindo um encantamento visual e, talvez, distanciando o
sujeito da percepção realista sobre os corpos.
Lemos (2008, p. 17) relaciona este ‘poder’ a um momento his-
tórico que vem determinar um comportamento cultural em que as
novas tecnologias parecem caminhar para uma forma de onipre-
sença, misturando-se de maneira radical e quase imperceptível ao
ambiente cultural, através do “devir micro (tornar-se invisível) e
do devir estético (tornar-se belo)”. Esses processos são endossados
pelo saber médico, pois verbos como esculpir, modelar e transfor-
mar são, originalmente, utilizados pela ciência médica, porém sob
o pretexto de saúde, bem-estar e, em última instância, de felicidade
(mesmo que paradoxal).
Assim, as imagens (mais do que os textos e falas) têm um pa-
pel novo e central na cultura de consumo. Para Baudrillard (1997,
p. 61), a concentração, a densidade, a abrangência da produção de
imagens na sociedade contemporânea nos empurra para uma socie-
dade qualitativamente nova, denominada por ele, “o mundo simu-
272 lacional”, no qual se aboliu a distinção entre realidade e imagem,
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 272 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

estetizando-se a vida cotidiana. Tudo se transforma em espetáculo


que, para o autor, não é um conjunto de imagens, mas uma relação
entre pessoas, mediada por imagens.
O magro como ‘representante’ da obesidade – ou do que ela
deveria ser, sua negação, portanto –, foi outra categoria temática
emergente da perspectiva dos/as entrevistados/as. Trouxeram a
questão de como a mídia lida com a dicotomia magreza/obesidade,
uma vez que apresenta, em sua maioria, pessoas magras, com corpos
enquadrados no modelo socialmente aceitável de beleza, em seus
programas e comerciais em geral:

Eu fico pensando o porquê de eles não colocarem um gordi-


nho para fazer a propaganda. Eles não fazem isso! Eles colo-
cam aquelas modelos magras porque são bonitas. Mas eu não
corro atrás dessas coisas de remédio porque eu sou contra to-
mar medicação. Para falar a verdade, eu tenho medo de tomar
uma medicação e depois ela prejudicar a minha saúde. Você
vai tomar um remédio que nem sabe direito para que é que
serve só porque tem uma modelo dizendo que é bom? (E2).

Colocam uma magrinha para falar de peso! (E8).

Não tem como não afetar, né? [...] às vezes tem uma propa-
ganda, de uma (pausa breve, tentando lembrar), uma cinta ou
propaganda de um medicamento para emagrecer, e eles colo-
cam uma pessoa de corpo perfeito. Por que eles não colocam
uma pessoa obesa? [...] eles vendem um produto que nem
eles consomem e que eles sabem que não faz efeito. Então, é
complicado (E4).

Nas imagens midiáticas dos corpos ‘publicitários’, os padrões


de beleza são tão imperiosamente obedecidos que, por mais que
variem as personagens fotografadas, nas imagens, todos os corpos
continuam parecidos esteticamente, por causa das semelhanças físi-
cas dos corpos representados. Assim, o que se apresenta na imagem,
segundo Santaella (2004), é o corpo homogeneizado como lugar de
produção de signo.
Corroborando com a afirmação, Sant’Anna (2001, p. 70) pon-
273
tua que “a multiplicação de imagens sobre corpos saudáveis e sem-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 273 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

pre belos é mais rápida do que a produção do real de saúde”, e que


esta maratona rumo à juventude/beleza alcança, indistintamente,
jovens e idosos das mais diversas classes sociais, “mas estes não
conseguem ver o pódio, porque se trata de uma corrida infinita”.
O interessante disto, complementa Etcoff (1999) é que, apesar das
pessoas terem consciência dos riscos que a saúde possa sofrer, ainda
assim, esse padrão estético de magreza é o desejado por muitos/as.
Com isso, o carrossel da indústria cultural da magreza completa o
círculo, pois o mercado expande à medida que seus consumidores se
encontram insatisfeitos e seguem buscando a satisfação.
Como forma de manter a estimulação, estes tais ‘estereótipos’
(das top models) são tão comuns na mídia que chegam ao ponto de
se tornarem, praticamente, naturalizados no cotidiano das redes
sociais. Não somente as marcas ‘consagradas’ utilizam de tais es-
tratégias de marketing como, também, a publicidade local de várias
cidades do globo terrestre (CASTRO, 2015) contribuindo, de certa
maneira, para construção da memória individual e coletiva dos habi-
tantes da cidade e do fortalecimento do estigma da diferença.
O estudo de Freitas et Al (2019) conclui que o modelo de
governamentalidade neoliberal utiliza-se da lipofobia (hor-
ror à gordura) como política social, para o disciplinamento do
corpo, no qual o corpo-capital torna-se espaço de dominação
e o consumo ganha uma dimensão mais complexa, já que o “bem”
comprado adere-se ao corpo, criando novas cadeias de produção de
valor para o capital.
Exemplo disso é o mercado de procedimentos estéticos. O
Brasil lidera o ranking mundial de cirurgias plásticas entre adoles-
centes, mesmo havendo uma orientação contrária a procedimentos
meramente estéticos realizados em menores de idade. Segundo ma-
téria da revista Época (BORGES, 2019), próteses de silicone são co-
locadas em meninas que se sentem mal com a aparência ou formato
de seus seios, além de outros procedimentos estéticos.
A indústria cultural da magreza e a mídia, portanto, podem
ainda representar mais que linguagem ou tecnologia que transmite
ideologia; trata-se de importantes instrumentos de direcionamento
274 ou de criação de subjetividade nos sujeitos, interferindo, em boa me-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 274 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

dida, na forma de ver, interpretar e de se mostrar ao mundo (ou se


esconder/ser escondido).
Assim, a mídia vai articulando imagens e discursos que dialo-
gam com diferentes domínios da produção humana e que participam
da rede intertextual que caracteriza a vida social. Desta forma, na
perspectiva de Bakhtin (1997), a produção cultural se baseia em re-
presentações que circulam na sociedade e que, de alguma forma, es-
tão relacionadas ao imaginário de uma época. Sob esse viés da inter-
discursividade, todo discurso é compreendido como resultado de um
movimento de articulação de outros discursos que lhe são anteriores,
discursos sociais atravessados por dizeres coletivamente instituídos.
E é nesta perspectiva que se destacou o depoimento a seguir.
Nota-se, por parte deste/a participante que, embora confirme a des-
valorização e quase nula participação de personagens ‘fora do es-
tereótipo idealizado’ nas peças publicitárias, ela é necessária para o
envolvimento emocional dos interlocutores:

Há uma desvalorização da pessoa obesa, por mais que tenha


hoje (obesos em propagandas) porque a publicidade acaba
sendo pressionada a colocar (o obeso) em destaque [...] por-
que você não trabalha só pra gente magra, você trabalha pra
todos os tipos de pessoas, gordas, baixas, altas, negras, então
o mercado publicitário tenta inserir essas pessoas no contex-
to desses novos produtos, só que ainda acho muito pequeno e
também inadequado (E7).

A apropriação desses ‘outros’ discursos e materiais visuais


procura criar, conforme Lysardo-Dias (2007), uma identificação en-
tre os interlocutores: quanto mais conhecida for a referência lin-
guística ou icônica, maior a garantia de reconhecimento dela e, con-
sequentemente, mais eficaz será o procedimento de incorporação
daquele discurso, em termos de captação e persuasão do público a
que se dirige. As referências serão mais eficientes à medida que fo-
rem mais familiares, pois o reconhecimento se dará de maneira mais
rápida por demandar menor esforço cognitivo.
Então, por este argumento, o “inclusivo” tende a aparecer em
(algumas) peças publicitárias, afinal, as corporações que anunciam nas 275

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 275 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

mídias têm a necessidade de buscar/ ampliar cada vez mais sua au-
diência – da qual dependem para sobreviver em um mercado extre-
mamente competitivo. A entrada de modelos ‘não convencionais’ pode
levar a uma atualização das tradições ou pode, ainda, favorecer o esta-
belecimento de novos padrões de pensamento e de conduta, alterando
o estereótipo que, neste momento, atuaria como “elemento polifuncio-
nal” (LYSARDO-DIAS, 2007, p. 28-29). Ele tanto favorece a percep-
ção do conhecimento que é proposto em termos informacionais, quan-
to apresenta uma ‘leitura’ já assimilada do real, além de aproximar os
sujeitos interlocutores que se sentem familiarizados por partilharem,
de antemão, a mesma visão de mundo ou valores comuns.
Outra justificativa no que tange o rompimento e a subversão
de certos estereótipos pela mídia, seria uma estratégia utilizada para
captar o público alvo através do estranhamento que chama a atenção
pela presença do inusitado, pelo choque causado por aquilo que foge
às expectativas impostas pelos padrões vigentes, um rompimento
dos automatismos culturais. Dessa maneira, a reprodução que ga-
rante a existência do estereótipo é substituída pela sua descons-
trução; em outros termos, a imagem já consagrada e amplamente
difundida é reformulada, dando origem a uma descaracterização do
convencional, que não perde alguns de seus traços sob pena de não
ser reconhecido. Trata-se de um caso de heterogeneidade discursiva
porque a publicidade estabelece um diálogo entre um dizer conven-
cional e consensual e o novo dizer que ela propõe, que é fruto da
subversão do primeiro.
De uma forma ou de outra, para Lysardo-Dias (2007, p. 30),
a mídia “se serve de estereótipos cuja eficácia depende da maneira
como são mobilizados e do poder de sedução que exercem junto ao
público a que ela se destina”. Se, para muitos, a mídia representa
um poder paralelo, capaz de transgredir estereótipos e auxiliar na
polinização da diversidade, a publicidade poderia reforçar essa tese,
ao promover mensagens capazes de questionar a ordem vigente.
Entretanto, sabe-se que, em larga medida, o compromisso maior da
publicidade é com o lucro que ela pode proporcionar ao anunciante,
por meio da ampliação de sua audiência, garantindo o poder argu-
276 mentativo e persuasivo de sua mensagem para incrementar o con-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 276 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

sumo de produtos e serviços. Este princípio é o fundamental, vindo


antes das questões éticas, sempre o anunciante podendo usar o fala-
cioso argumento de que as pessoas são, afinal, livres para consumir
o que quiserem e ele nada tem a ver com eventuais consequências
negativas das práticas publicitárias.
Por outro lado, na perspectiva de Rachel Moreno (2008), essa
aparente aceitação da diversidade pela mídia, seja de modelos ou
de pensamento, ocorre à duras penas: sem que haja um espaço para
demonstrar o que a diversidade realmente significa, ela vai sendo
neutralizada no mesmo processo de diluição das outras informa-
ções. Para transgredir, a publicidade deveria assumir uma dimensão
cultural inovadora passível de gerar um impacto e incidir sobre os
sujeitos, através da proposição de algo que contesta um paradig-
ma já estabelecido. Desta forma, a familiaridade de um discurso já
incorporado seria substituída por uma nova representação que de-
manda mudança nas normas de percepção do indivíduo.
Mas, para Lysardo-Dias (2007), essa transgressão pode ficar
restrita a um determinado nível, sem que haja a proposta de uma sub-
versão efetiva de valores e comportamentos. Nesse caso, segundo a
autora, haveria apenas um redirecionamento das informações mobi-
lizadas, sem que os ‘sistemas padronizados’ fossem alterados. Arti-
manhas propositais que incitam os níveis de consumo a aumentarem.
Para alguns sujeitos deste estudo, a publicidade de produtos e
serviços para o corpo desencadeou, em alguma medida, um sentimen-
to de frustração por despertar a vontade de comprar o que, na ocasião,
não se podia: Muitas vezes eu fico triste porque eu não tenho dinheiro
para eu tentar, para eu comprar aquilo, para eu tentar ver se dá certo.
A parte financeira sempre me cortou... eu queria fazer aquilo, mas não
tinha dinheiro; uma academia, não tinha dinheiro (E9).
Segundo Guattari (1990), as novas formas de produção da vida
– impulsionadas pelas rápidas transformações ‘técnico-científicas’ e
pelos avanços dos meios de comunicação – contribuem, sobrema-
neira, para o esfacelamento das subjetividades, engendrando formas
cada vez mais expropriadas do sujeito através do ritmo frenético,
imposto pelo modo de vida do capitalismo globalizado: ‘precisa-se
de tudo isso para viver bem’! 277

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 277 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Em muitos casos, o hiperconsumo não ocorre simplesmente


pela conquista do objeto em si, mas “superconsome-se o espetácu-
lo hiperbólico” da felicidade das celebridades aguçando a imaginação
dos espectadores, rumo a também conquistarem sensações similares,
por vezes ilusórias, mas sempre passageiras (LIPOVETSKY, 2007, p.
312). Como afirma Bauman (2008, p. 23), o “fetichismo da subjetivi-
dade nas mercadorias oculta a realidade comodificada da sociedade de
consumidores”. Afinal, quem não quer encarnar a plenitude da vida?1
Este aumento exacerbado pelo culto a o corpo também ten-
de a ocorrer porque situações antes consideradas normais de serem
enfrentadas durante a vida estão sendo, majoritariamente, tratadas e
‘solucionadas’ pela medicina e indústria cultural da magreza. Busca-
-se os últimos tratamentos de emagrecimento, o novo ácido capaz de
retardar o envelhecimento, a cirurgia capaz de transformar o corpo
em obra de arte – encontrada em revistas e passarelas da moda.
Assim, o corpo vem, cada vez mais sendo medicalizado e tra-
tado por sua não aceitação enquanto um processo natural, de contí-
nua mudança. Desta forma, as pessoas tendem a ir se rendendo aos
discursos hegemônicos tornando o corpo um objeto aperfeiçoável,
esquecendo o seu caráter temporal e histórico (DANTAS, 2011). É a
nova economia em favor da produção de imagens, símbolos e arran-
jos, por intermédio, especialmente, do controle que exerce sobre a
publicidade e as sondagens, alienando, massificando e normalizando
o modelo global (VASCONCELOS; SUDI, I. e SUDI, N., 2004).
No caso do depoimento transcrito acima, percebeu-se a forte
influência da mídia sobre o sujeito da pesquisa no tocante às pos-
sibilidades de ‘soluções de que precisaria’ para o seu problema de
excesso: seja pelo produto não comprado – pois gostaria de tê-lo
experimentado; pela academia em que não se inscreveu – como se
apenas o local físico da academia fosse suficiente para motivá-la.
Segundo o/a entrevistado/a, sua fragilidade financeira o/a
1 Ampliando os comentários de Bauman, Lipovetsky (2007, p. 313) chama a aten-
ção para outro foco: a superexposição das imagens da felicidade na qual a mídia
exibe, cotidianamente, por meio de seus personagens fazendo brilhar os modelos
da vida feliz, tornando “mais belos os mais belos e mais desejáveis os mais desejá-
278 veis”. Neste caso, o foco deixa de ser a mercadoria e torna-se a cobiça pela luxuosa
cenografia e pela felicidade.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 278 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

impede de alcançar tais objetivos. Observou-se uma tendência à cul-


pabilização por seu ‘estado’, fato que o/a fez absorver (novamente)
o problema como sendo exclusivamente seu, cujo culpado de estar
nesta situação (de excesso de peso) e ‘fazer nada’ acerca disso foi a
privação de recursos. A indução deste sentimento pelos bombar-
deios constantes dos impulsos motivacionais ‘milagrosos’ provoca-
dos pela mídia não entra como fator causador da culpa.
Hamburger (1964) discorre sobre a relação praticamente pro-
posital entre propaganda e frustração. É no contínuo apelo, visando
despertar necessidades, que a propaganda frustra. Segundo a auto-
ra, os sujeitos são expostos continuamente, a todo o tipo de apelo:
seus motivos fisiológicos e sociais são exaustivamente explorados e
os produtos oferecidos, em grande parte, ilusórios, obsoletos ou vo-
láteis em um curto espaço de tempo. Assim, satisfação e insatisfação
vão se sucedendo e novos sentimentos sendo produzidos e experi-
mentados (HELLER e FEHÉR, 1998) numa roda gigante embalada
por uma “felicidade paradoxal” (LIPOVETSKY, 2007, p. 17).
Desta forma, a frustração – intencionalmente provocada, torna
os sujeitos permanentemente insatisfeitos e sempre “fora de equilí-
brio”, desejando/necessitando substituir alguma coisa por outra mais
nova e diferente. Algumas dessas necessidades podem ser satisfeitas,
mas não todas; além do que, a propaganda está sempre presente para
suscitar novas necessidades derivadas. É o poder da indústria cultural
da magreza exercido sobre o sujeito. Os meios se utilizam das repre-
sentações e símbolos enquanto a substância “sobre as quais ações são
definidas” (GUARESCHI e JOVCHELOVITCH, 1995, p. 20).
Abordando especificamente os sujeitos em situação de obesi-
dade, objeto de reflexão em nível empírico, observou-se mais acen-
tuadamente essa dialética entre satisfação e insatisfação e, portan-
to, frustração. Pois, além da ‘necessidade’ de aquisição dos bens
materiais e serviços, houve também a vital necessidade de ‘possuir’
a beleza corporal idealizada, associada (utopicamente) aos valores
de saúde e juventude.
Deste modo, Goffman (1988, p. 56) demonstra que a negação e
insatisfação com o próprio corpo traduz um mal-estar interiorizado
de “uma ruptura entre si e o que se exige de si”, revelando insatisfa- 279

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 279 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

ções permanentes, uma tradução da opressão social que surge mes-


mo quando apenas o indivíduo e o espelho estão em cena.
Na esteira dessa discussão, Felicetti Lordani, Ruscheinsky e
Veronese (2017, p. 219) em alusão ao desejo socialmente expandido
da aquisição de ‘tudo’ pela sociedade do consumo, comentam que as
“demandas da ordem do impossível – como um corpo magro e ‘sara-
do’ para todos –, são transformadas quase em ‘deveres’, passando as
pessoas a ‘precisarem’ delas com urgência”, transformando, de ma-
neira habilidosa, o supérfluo em necessidade vital para a existência
e permanência nessa mesma sociedade, de acordo com as categorias
sociais. Assim, conforme os autores:

[...] se constrói a sociedade pelo molde da insaciabilidade,


da constante insatisfação, em que uma necessidade prelimi-
narmente satisfeita gera automaticamente outra necessidade,
criando, assim, um ciclo vicioso inesgotável e inimaginável
de necessidades na busca utópica pela satisfação plena, pelo
atendimento das demandas, pela suposta inadequação de seus
corpos (FELICETTI LORDANI; RUSCHEINSKY e VE-
RONESE, 2017, p. 219).

Baudrillard (1997, p. 78) procura explicar quão preocupante é


esta “ausência do sujeito” na tomada de decisões. O autor alega estar
se vivendo na supremacia dos objetos, em um mundo onde o que
importa são as aparências. Neste “império das aparências”, a cultura
da passagem faz com que as coisas desapareçam facilmente, mas “os
verdadeiros desaparecidos são os milhões de telespectadores que es-
peram ser arrancados da inexistência”.
Nesta perspectiva, a serviço da vaidade e da atitude de per-
tencimento, vive-se uma “servidão voluntária”, numa sociedade que
institui normas de beleza e seduz pelas constantes novidades que
brotam no mercado. Há na ditadura das imagens uma ditadura irô-
nica que também promove um “gozo estético perverso” (BAUDRIL-
LARD, 1991, p. 153). Na mesma corrente, Bauman (2008) comenta
que a publicidade (e suas estratégias) vende não somente produtos
que ‘suprem as necessidades individuais’, mas também, promovem
280 posições sociais e felicidade.

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 280 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Outro ponto da discussão que merece ser mencionado trata-


-se do fomento da frustração pela mídia: num país desigual como o
Brasil (e tantos outros países ‘subdesenvolvidos’), em que grande
parte da população ainda precisa de praticamente tudo, em termos
de saúde, educação, saneamento básico, segurança e qualidade de
vida, a constante incitação da propaganda contribui para incutir nos
sujeitos o desejo de adquirir os símbolos de conforto e progresso.
Mas quando esses símbolos são negados à maior parte da população,
o que se cria, para muitos grupos sociais, é uma consciência mais
nítida das diferenças de classe e da injustiça social na distribuição
da riqueza (HAMBURGER, 1964), portanto, outra possível fonte
de frustração e, por que não mencionar o estigma?

Considerações finais

Ouvir o relato dos sujeitos através das entrevistas e do grupo


focal foi uma maneira de escutar a voz e sentir o que sentem essas
pessoas, uma maneira de refletir criticamente sobre a ação discrimi-
natória e estigmatizante do olhar da sociedade diante da obesidade.
Os depoimentos dos sujeitos demonstraram que, a todo o momen-
to da vida cotidiana, são pressionados por inúmeras mensagens e
ações, diretas e indiretas, de internalização da magreza enquanto
o padrão cultural de corpo, de modo a sentirem-se inapropriadas,
marginalizadas e, mesmo, excluídas do mundo social.
Além disso, esse sistema de valores proposto pela indústria
cultural da magreza no imaginário social esbarra, initerruptamente,
na realidade dos sujeitos, de modo a criar uma situação de conflito
interno entre o que se imagina ser, o que se vê no espelho e através
dos outros. Suas identidades e subjetividades estão permanente-
mente sendo degradadas, desvalorizadas.
O processo de regulação ininterrupta e ‘naturalizada’ trans-
cendeu, em boa medida, a vida dos sujeitos em situação de obesidade
participantes deste estudo. Houve nesses discursos uma tentativa
de (re)formulação teórica sobre as normas biológicas, desconside-
rando-se as diferenças estéticas como diferenças socioculturais. A
força desta naturalização refletiu, ainda, na forma como os sujeitos 281

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 281 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

se reconhecem. A imagem corporal, para eles, é a que se destaca


frente às demais características – e isso refletiu, em boa medida,
em sua própria unidade geral: um pseudo mundo à parte, objeto de
frustração; pois quando o sujeito percebe que pertence a uma cate-
goria socialmente desvalorizada, pode antecipar a desvalorização e a
discriminação, sem que elas ocorram efetivamente, realçando o sen-
timento de vergonha. Esse sentimento leva o indivíduo a rever suas
conceituações a respeito de si mesmo, podendo desqualificar-se e
incorporar o estigma, trazendo-o para si. Cria-se, assim, um círculo
vicioso, em que a internalização do estigma conduz à diminuição
da autoestima e, por vezes, à auto rejeição, prejudicando as relações
sociais e, consequentemente, reforçando o isolamento.
As dietas, os exercícios, produtos emagrecedores, medica-
mentos, cirurgias e muitas outras soluções para os males do cor-
po (a infinidade de outras supostas ‘soluções’ afinal, o arsenal é
inventado, reinventado e lançado no mercado diariamente) estão
aí, disponíveis para todos, segundo os discursos. A mídia oferece
diariamente produtos que solucionarão os problemas do corpo (e
da alma), como se fossem ‘pílulas da felicidade’, afinal, o garoto/a-
-propaganda (magro/a, belo/a e feliz) comprova isso.
Mas, apesar de ‘tudo isso’, o ganho de peso e os centímetros a
mais na cintura revelariam o pouco esforço individual dos ‘obesos’.
Mesmo diante de um ambiente obesogênico – onde a indústria da
magreza e a indústria da obesidade são aliadas, a obesidade é vista
definitivamente, como um problema individual. Estes argumentos
demonstram a forte interligação dos discursos hegemônicos com
a violência, pois o modo como agem sobre a vida dos sujeitos com
obesidade tem graves consequências psicossociais.
À guisa de conclusão, esperamos ter contribuído com a críti-
ca da lipofobia e com uma forma mais justa de tratar a questão da
obesidade, considerando a diversidade humana em termos de for-
matos corporais. Acreditamos que se deve evitar que a intervenção
médica na obesidade siga determinações fixadas de disciplinamen-
to. Maior criatividade e leveza, além da crítica ao instituído, po-
dem alçar as práticas dos profissionais da saúde a patamares mais
282 éticos e mais eficazes.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 282 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Referências
ALMEIDA, A. C. N. et Al. Corpo, estética e obesidade: reflexões ba-
seadas no paradigma da indústria cultural. Estudos, v. 33, n. 9/10, pp.
789-812, 2006.
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2011.
BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições
70, 2008.
BAUDRILLARD, J. Tela Total: mito, ironias do virtual e da ima-
gem. Porto Alegre: Sulina, 1997.
BAUDRILLARD, J. Simulacros e simulações. Lisboa: Relógio d’
Água, 1991.
BAUMAN, Z. Vida para consumo: a transformação das pessoas em
mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BORGES, H. Brasil lidera o ranking de cirurgia plástica entre adoles-
centes. In: Revista Época, Sp., 2019. Disponível em: https://epoca.
globo.com/brasil-lidera-ranking-de-cirurgia-plastica-entre-adoles-
centes-23651891. Acesso em 26 out. 2019.
CAMARGO Jr., K. R. Medicalização, farmacologização e imperialismo
sanitário. Cadernos de Saúde Pública, v. 29, n. 5, pp. 844-846, 2013.
CASTRO, A. L. Culto ao corpo e sociedade: mídia, estilos de vida e
cultura de consumo. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2007.
CASTRO, G. G. S. O envelhecimento na retórica do consumo: pu-
blicidade e idadismo no Brasil e Reino Unido. Brasília, 2015.
DANTAS, J. B. Um ensaio sobre o culto ao corpo na contemporaneida-
de. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v. 11, n. 3, pp. 898-912, 2011.
DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: DE-
LEUZE, G. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Editora 34,
1992. Pp. 219-232.
ETCOFF, N. A lei do mais belo: a ciência da beleza. Rio de Janeiro:
Objetiva, 1999. 283

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 283 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

FELICETTI LORDANI, C. R. F.; RUSCHEINSKY, A.; VERONESE,


M. V. O sujeito em situação de obesidade: (re)construção das possibi-
lidades de satisfação em uma sociedade insatisfeita. In: ALVES, F. L.;
BARROS, E. P.; GADEA, C. A. [Orgs.]. Ciências sociais e socieda-
de: políticas e práticas sociais na contemporaneidade. São Leopol-
do: Trajetos Editorial, 2017. Pp. 209-229.
FONTANELLA, B. J. B.; RICAS, J.; TURATO, E. R. Amostragem por
saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas.
Cadernos de Saúde Pública, v. 24, n.1, pp. 17-27, 2008.
FREITAS, R. G. et Al. Lipofobia, disciplinamento do corpo e produ-
ção de valor. Conexões: Educação Física, Esporte e Saúde, v. 17,
pp. 01-17, 2019.
GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade
deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 1988.
GUARESCHI, P.; JOVCHELOVITCH, S. Textos em representações
sociais. Petrópolis: Vozes, 1995.
GUATTARI, F. As três ecologias. São Paulo: Papirus, 1990.
HAMBURGER, P. L. A propaganda como elemento de frustra-
ção. RAE, v. 4, n. 10, pp. 55-68, 1964.
HELLER, A.; FEHÉR, F. Da satisfação numa sociedade insatisfeita.
In: HELLER, A.; FEHÉR, F. A Condição Política Pós-Moderna.
Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1998. Pp. 27-67.
LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis:
Vozes, 2011.
LEMOS, A. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura con-
temporânea. Porto Alegre: Sulina, 2008.
LIPOVETSKY, G. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade
de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
LUZ, M. T. Natural, racional, social: razão médica e racionalidade
científica moderna. Rio de Janeiro: Hucitec, 2012.
LYSARDO-DIAS, D. A Construção e a desconstrução de estereótipos
pela publicidade brasileira. Stockholm Review of Latin American
284 Studies, n. 2, pp. 25-35, 2007

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 284 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

MATTOS, R. S. Sou gordo, sou anormal? Arquivos em Movimento,


v.3, n.2, pp.153-174, 2007.
MONTANARI, M. Comida como cultura. São Paulo: Editora Se-
nac, 2008.
MORENO, R. A beleza impossível: mulher, mídia e consumo. São
Paulo: Ágora, 2008.
MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicolo-
gia social. Petrópolis: Vozes, 2010.
ORTEGA, F. Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentida-
des. Cadernos de Saúde Coletiva, v. 11, n. 1, pp. 59-77, 2003.
POLLAN, M. Em defesa da comida, um manifesto. Rio de Janeiro:
Intrínseca; 2008.
SANT´ANNA, D. B. Transformações do corpo: controle de si e uso
dos prazeres. In: RAGO, M.; ORLANDI, L. B. L.; VEIGA-NETO, A. Imagens
de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. =Rio de Janeiro:
DP&A, 2002. Pp. 99-110.
SANT´ANNA, D. B. Corpos de passagem: ensaios sobre a subjeti-
vidade contemporânea. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.
SANTAELLA, L. Corpo e comunicação: sintoma da cultura. São
Paulo: Paulus, 2004.
SOKOLOSKI, M. E. Do pó de arroz ao photoshop. Razón y Palabra, v.
15, n. 74, Sp., 2010.
VASCONCELOS, N. A.; SUDI, I; SIDI, N. Um peso na alma: o corpo
gordo e a mídia. Revista mal-estar e subjetividade, v. 4, n. 1, pp.
65-93, 2004.
VIANA, M. R. et Al. A racionalidade nutricional e sua influência na me-
dicalização da comida no Brasil. Ciências & Saúde Coletiva, v. 22, n. 2,
pp. 447-456, 2017.
VIGARELLO, G. História da beleza. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO) (Switzerland). Obe-
sity: preventing and managing the global epidemic. Report of a
World Health Organization Consultation. [Geneva]: WHO, 2000.
WHO Obesity Technical Report Series, n. 284. 285

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 285 06/01/2021 10:44


Livro Aloisio-V4.indd 286 06/01/2021 10:44
Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Política de ações afirmativas: cotas para negros em


instituições de ensino superior

Márcio Pereira Dias

Se, no fim das contas, a pergunta é se as faculdades


e universidades mais exigentes tiveram êxito na for-
mação de um grande número de alunos pertencen-
tes a grupos minoritários, que já alcançaram consi-
derável êxito e parecem ter probabilidade de, com o
tempo, vir a ocupar cargos de liderança em toda a
sociedade, não temos dificuldade para responder à
pergunta (DWORKIN, 2005, p. 551).

Introdução

No presente estudo, elegi a análise do tema: as cotas raciais em


instituições de ensino superior, enquanto política de ações afirmativas
raciais, pela razão de ser essa uma das questões mais debatidas mun-
dialmente uma vez que em diversos países há políticas afirmativas que
visam à efetivação material do princípio da igualdade. Partindo deste
preâmbulo, urge ser efetivado em nosso país o princípio da igualdade
a fim de que sejam corrigidas as graves distorções sociais existentes,
fato esse inaceitável para uma sociedade que se descreve como livre,
justa e solidária. Visto que no Estado Democrático de Direito há um
caminho: o da inclusão dos excluídos, pois somente assim consegui-
remos romper a difícil barreira do preconceito e da ignorância. Para
tanto, devem as garantias constitucionais da liberdade e da igualdade
serem concretizadas como fundamento do fundamento.
A Constituição Federal de 1988 determina que a pobreza e
a marginalização sejam erradicadas e que sejam reduzidas as de-
sigualdades sociais, bem como que se deve promover o bem de to-
dos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor e quaisquer outras
formas de discriminação. Há diversos dispositivos protetores das
pessoas portadoras de deficiências, dos índios, dos idosos, das mu-
287
lheres, das crianças e dos adolescentes, dos desempregados, enfim,
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 287 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

dos grupos de pessoas que necessitam do auxílio do Estado. Assim


exposto, vê-se que diante das profundas desigualdades fáticas en-
tre os grupos deve o Estado adotar políticas de combate a tal caos.
Dentre essas situações, trazemos como objeto de nosso estudo os
preconceitos sofridos pelas pessoas de cor negra. De acordo com
López e Santos (2016, p. 2) há urgência e relevância para

abordar as ações afirmativas de uma maneira ampla e diver-


sificada, apontando tanto o papel desempenhado pelos movi-
mentos negros no desenvolvimento de uma agenda pública
de defesa e discussão destas políticas, quanto os efeitos des-
sas políticas na diminuição das desigualdades raciais e/ou no
reconhecimento da diversidade étnico-racial. Referimos às
ações afirmativas como políticas públicas que se destinam a
corrigir uma história de desigualdades e desvantagens vin-
culada aos efeitos do racismo sofrida por segmentos negros
e indígenas da população. O que motiva essas políticas é a
ideia de que essas desigualdades tendem a se perpetuar caso o
Estado continue utilizando os mesmos princípios considera-
dos universalistas (mas que, na prática, favorecem só a alguns
setores da sociedade) com que vem operando até agora na
distribuição de recursos e oportunidades para as populações
que contam com uma história secular de discriminação

Partindo desse pressuposto, considerando-se as estatísticas


oficiais no que diz respeito ao acesso ao ensino público superior,
verificou-se que a proporção de alunos de cor negra é significativa-
mente menor se comparada à quantidade de alunos na cor branca
– uma vez que no Brasil os mais pobres e os menos alfabetizados são
os negros, sendo essas, consequentemente, as pessoas com as me-
nores oportunidades na vida, mesmo que em maior número. Logo,
não se reflete no ensino público superior a proporcionalidade popu-
lacional existente na sociedade. Foi então, diante dessa realidade,
que algumas instituições criaram reservas de vagas para pessoas de
cor negra, de modo a aumentar o seu percentual no corpo discente.
Posto isso, a indagação que nos trouxe a discutir o tema é:
seriam as cotas raciais “a solução”? Para tanto, torna-se necessário
288 conhecer acerca das ações afirmativas. O problema se localiza na

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 288 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

nova concepção de que a necessidade de resolver tensões entre prin-


cípios colidentes torna frequente o recurso ao princípio da igualda-
de material na esfera judicial. E a busca da legitimidade para essas
decisões impulsiona o desenvolvimento de diversas teorias da argu-
mentação, ora como considerações de natureza moral, ou relaciona-
das ao campo empírico subjacente às normas (WALDRON, 2003).

A discriminação como um processo social e histórico

Todas as manifestações práticas de discriminação têm origem


em preconceitos e desencadeiam um desastroso efeito: a exclusão.
Praticadas de maneira sutil ou evidente, constituem um ato ilegal
e deixam marcas psicológicas profundas em suas vítimas. Afetam a
autoestima da pessoa e do grupo ao qual ela pertence, dado à força
com que os estereótipos se integram à própria identidade dos indi-
víduos. Sobre a discriminação, Santos, em “Ação afirmativa e mérito
individual”, nos cita uma situação que muito bem retrata o processo
de inferiorização sofrido pelo negro desde sua infância.

Pode-se citar como exemplo dessas consequências graves o


que ocorreu numa escola pública municipal, em Hortolândia,
interior do Estado de São Paulo, em 24.09.1997. Por não en-
tender o que a professora estava dizendo, uma aluna negra,
de 9 anos, resolveu chamá-la usando a expressão tia. A edu-
cadora que estava substituindo a professora responsável pela
turma respondeu da seguinte maneira: Olhe para a minha cor
e para a sua. Veja se posso ser sua tia (SANTOS, 2005, p. 29).

Diante de fatos como este, perguntamo-nos por que a mesma


sociedade que identifica quem é negro para efeitos discriminatórios
não transforma essa fácil identificação discriminatória em uma con-
sequente seleção dos beneficiários para uma ação afirmativa?
Nesse sentido, as palavras de Carvalho em “Inclusão étnica e
racial no Brasil”, demonstram a análise dos reflexos na autoestima
da população negra causados pelo sistema de reserva de vagas e an-
teveem que a disputa por elas tenderá a crescer, demonstrando que
o negro brasileiro, além do estresse social, realmente sofre também 289

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 289 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

do estresse racial, sendo o negro pobre muito mais prejudicado do


que o branco pobre. De acordo com Carvalho (2005, p. 48) ao ana-
lisar a temática da inclusão étnica e racial, exemplificando com a
questão do acesso ao curso universitário.

O mais provável é que a abertura de cotas atue positivamente


sobre a autoestima da população negra e o contingente de
candidatos negros cresça consideravelmente. Estudantes ne-
gros também de outros estados na nação, que até agora tem
se intimidado diante da elitização do nosso vestibular, tenta-
rão suas chances através do sistema de cotas

A Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as


formas de discriminação racial, aprovada pelas Nações Unidas, defi-
niu o vocábulo “discriminação”, como:

Qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência basea-


da em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica
que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o
reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de di-
reitos humanos e liberdades fundamentais nos campos polí-
tico, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo
da vida pública.

Kaufmann, verificando a dupla discriminação sofrida pelos


negros no Brasil, com o objetivo de realizar a diferença entre a dis-
criminação norte-americana, registra que lá a causa exclusiva da
discriminação é a cor: “Há fortes indícios de que, pelo menos, dois
fatores concorrem para a exclusão do negro brasileiro: a cor e a
classe econômica desfavorável” (KAUFMANN, 2007, p. 225). Na
mesma perspectiva, Piscitelli (2009, p. 37), em “O Estado como pro-
motor de ações afirmativas e a política de cotas para o acesso dos
negros à Universidade” afirma que:

no Brasil, temos bons instrumentos para punir a discriminação


racial direta, iniciando pelo próprio texto constitucional e se-
guindo na legislação ordinária; contudo, tal combate não é o su-
ficiente, pois envolto em uma neutralidade por parte do Estado,
290 devendo este, de forma positiva, promover medidas de diferen-

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 290 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

ciação de tais grupos alijados da sociedade, visando a aproximá-


-los de uma equalização fática, em respeito à igualdade material.

A discriminação direta é associada à deliberada e expressa in-


tenção de segregar, causando prejuízo a uma parcela da população.
Nessa modalidade, verificar a inconstitucionalidade da conduta é
relativamente simples, pois fere o princípio formal da igualdade. De
outra banda, a discriminação indireta concretiza-se na adoção de
práticas ditas neutras e não intencionais de prejudicialidade a de-
terminados segmentos sociais. Sua inconstitucionalidade exige um
esforço hermenêutico abrangente e proporcional da Constituição.

A Igualdade Formal e a Igualdade Material

O conceito de igualdade acompanhou a evolução dos direi-


tos fundamentais, tanto que na Declaração Universal dos Direitos
do Homem e do Cidadão a igualdade era concebida em seu aspecto
meramente formal. Isso porque era pressuposto que as condições
fáticas entre cidadãos eram de equidade. Contudo, os movimentos
econômicos e sociais dos séculos XVIII e XIX reforçaram a desi-
gualdade fática entre os homens, a ponto de chegarmos à indagação
trazida por Comparato (1996, p. 77)

O reconhecimento incontestável, nos dias que correm, de


que os homens nascem iguais, em dignidades e direitos, mas
vivem, frequentemente, em situações da mais escandalosa
desigualdade quanto ás condições socioeconômicas básicas
(educação, saúde, habitação, trabalho, previdência), não esta-
ria a indicar que o velho princípio da isonomia acabou sendo
superado na prática?

A partir dessa compreensão, evoluímos para a conceituação da


igualdade em seu sentido material. Dworkin (2005, p. 3) volta a de-
fender a necessidade de tratamento desigual entre as pessoas para que
possamos chegar à verdadeira igualdade, a material: “Existe uma di-
ferença entre dar um tratamento igualitário às pessoas com relação a
uma ou outra mercadoria ou oportunidade, e tratá-las como iguais”. 291

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 291 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Com isso, reconhecem-se as desigualdades fáticas entre os destinatários


das normas. No entanto, não poderá existir a criação de distinções indi-
vidualizadas, a não ser em categorias de cidadãos, sob pena de cairmos
na dimensão do arbítrio ou do privilégio. Diferenciar, para corrigir as
diferenças existentes, sim. Discriminar, com base em caráter despro-
porcional, não. Na mesma trilha, Hesse (1998, p. 330), preconiza:

A igualdade material não consiste em um tratamento sem


distinção de todos em todas as relações. Senão, só aquilo que
é igual deve ser tratado igualmente. O princípio da igualda-
de proíbe uma regulação desigual de fatos iguais; caos iguais
servem encontrar regra igual. A questão é: quais fatos são
iguais e, por isso, não devem ser regulados desigualmente.

A doutrina espanhola, traz igualmente entendimento similar


(LUÑO, 1997, p. 229):

Es más, laigualdad entendida mecanicamente y aplicada de


modo uniforme, como um critério formal y abstracto, podria
degenerar em uma sucesión de desigualdades reales. De ahi
que laconcepción de laigualdad em um Estado de Derecho de
uma sociedade pluralista y democrática no pueda prescindir
de las exigências concretas de la realidade social para discer-
nilas y valorarlas em su especifica peculiaridade.

A distinção entre os conceitos de igualdade formal e material


bem retratam o ambiente econômico-social de determinados mo-
mentos na história, ou seja, da igualdade formal dever-se-ia esperar
o combate aos privilégios de resquícios de um antigo regime; da
igualdade material, espera-se a intervenção do Estado para a redu-
ção das desigualdades fáticas.

As ações afirmativas no campo étnico racial

Preliminarmente, pontuamos que as definições sobre o conceito


de ações afirmativas gravitam em torno de ideias de intervenção es-
tatal, políticas públicas, inclusão social e igualdade material. Segundo
292 a lição de Rios, em “O princípio da igualdade e o direito da antidiscri-

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 292 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

minação” a origem do termo “Ação afirmativa” deve-se ao Presiden-


te norte-americano John Kennedy que através da Ordem Executiva
1961, criou um comitê para estudar atitudes que o Estado deveria im-
plementar com o objetivo de promover a igualdade e a oportunidade
de emprego (RIOS, 2005). Em continuidade às ações afirmativas do
presidente JFK, informa o autor que o Presidente americano Lyndon
Johnson, em 1965, anunciou medidas específicas para a promoção da
inclusão social do negro, dentre elas, a preferência para o preenchi-
mento de vagas em cargos públicos. Com o mesmo objetivo, o relató-
rio de desenvolvimento humano das Nações Unidas, do ano de 2004,
recomendou no âmbito dos direitos humanos, que os Estados progra-
massem políticas que promovam a inclusão de diferenças culturais
para se tornarem mais inclusivos. Nesse sentido, o estudo de Feres
Júnior e Zoninsis (2006, p. 11) pondera que é:

A multiplicidade de valores culturais, visões religiosas de


mundo, compromissos morais, concepções sobre a vida dig-
na, enfim, isso que designamos por pluralismo, a configura
de tal maneira que não resta alternativa senão buscar o con-
senso em meio da heterogeneidade, do conflito e da diferença.

Não obstante consideráveis medidas históricas, a política de


cotas como espécie do gênero “ação afirmativa” tem encontrado
muita resistência. A principal crítica contrária é a de que as cotas
não refletem a real situação de disparidade de determinado grupo
no conjunto da sociedade. Sendo assim,

A implementação de políticas de ação afirmativa para estudan-


tes negros nas universidades públicas brasileiras gerou um in-
tenso debate em diversos campos sociais. As discussões sobre
essas políticas mobilizaram não somente atores organizados
da sociedade civil brasileira como também a intelligentsia na-
cional. Em paralelo ao debate instalado na mídia a partir de
2002, iniciou-se uma disputa acadêmica em torno do tema. En-
tender o porquê dessa disputa entre os intelectuais brasileiros
[...] analisam se as principais proposições apresentadas por
cientistas sociais, mais precisamente, representantes da antro-
pologia e da sociologia (GOSS, 2009, p. 114). 293

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 293 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

No exemplo brasileiro, ainda que política de curto prazo, im-


põe-se a necessidade da adoção da política de cotas para acesso dos
negros ao ensino superior público e gratuito dada a situação de real
exclusão que este grupo é submetido. Efetivamente as circunstân-
cias conturbadas da iniciativa de ações afirmativas são relevantes
obterem um destaque. Isto é o que realiza (GOSS, 2009, p. 114) ao
destacar um debate e as respectivas práticas que se confrontam de
uma forma quase atroz.

Constatam-se, pelo menos, duas posições bem demarcadas a


respeito do tema: os intelectuais contrários e aqueles que se
posicionam favoravelmente às políticas de ação afirmativa. O
primeiro grupo desenvolve argumentos de oposição às ações
afirmativas e postula uma retórica denominada de conserva-
dora, o segundo defende as políticas e adota uma retórica pro-
gressista. Os argumentos propostos por esses dois conjuntos
de intelectuais são analisados a partir de uma tipologia criada
por Hirschman (1992), que delimita três teses da retórica con-
servadora. Essas teses foram elaboradas por intelectuais, mui-
tos deles cientistas sociais, em diferentes épocas, e constituem
políticas avaliadas como progressistas e/ou reformistas: a tese
da perversidade, a da futilidade e a de ameaça. Para cada tese
da retórica conservadora, o autor elabora contrapartidas pro-
gressistas, originando, dessa forma, pares que se contrapõem
e se complementam. É possível concluir que as duas retóricas
em embate refletem posturas diferenciadas dos intelectuais em
relação à ciência e à política. Além disso, os partidários das
duas retóricas partilham de concepções diversas sobre concei-
tos importantes utilizados nas ciências sociais brasileiras, es-
pecialmente o de raça e o de mestiçagem. Tanto a vinculação
dos intelectuais com a ciência e com a política, quanto as matri-
zes teóricas que usam para explicar a nação incidem sobre seus
posicionamentos relativos à implantação de ações afirmativas
para estudantes negros no Brasil.

Fato comprovado por todos os dados estatísticos (PETRU-


CELLI, 2012), dos quais um elemento fundamental para análise do
tema é o registro que cerca de 47% da população brasileira é repre-
294 sentada pelos negros, e dos quais, no entanto, somente 2% fazem

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 294 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

parte do público universitário. Para tanto, merece registro, para a


melhor compreensão do preconceito ocultado, a expressão “teto de
vidro”, trazida pelo jornal Wall Street, em 1986, sobre importante
fenômeno da economia americana. “Teto de vidro” é um termo que
descreve com muita precisão as barreiras invisíveis encontradas por
pessoas oriundas de minorias para ascenderem ao topo da hierar-
quia das empresas (PIZA, 2000, p. 99). As lutas políticas dos negros,
muito além das ações afirmativas, possuem uma longa e conturbada
trajetória na sociedade brasileira. Isto é o que atestam Silva, Jacino
e Silva (2019, p. 1)

A presença de negros em espaços valorizados na sociedade


brasileira é caracterizada por sua sub-representação. Esse as-
pecto foi historicamente hegemônico nos projetos de nação
gestados no país. Apesar disso, a população negra produziu
instituições e ações contra-hegemônicas em momentos e em
épocas diferentes. Argumentamos que as ações afirmativas
para negros no Brasil aparecem como uma dessas perspectivas
contra-hegemônicas no recente cenário político brasileiro.

Tais movimentos ao longo da história se consolidam em “teto”


que se visualiza de forma contundente na sociedade brasileira. Pis-
citelli (2009, p. 76) nos exibe alguns números que evidenciam a ex-
clusão do negro no grupo “decisor” brasileiro:

a) Dos 620 Procuradores da República, apenas 07 são negros.


b) No Poder Judiciário, dos 77 Ministros dos tribunais supe-
riores, apenas 02 negros;
c) Associação dos Juízes Federais, dos 970 juízes, os negros
só 5% dos cargos;
d) Não há nenhum ministro negro no STJ, e apenas um no
STF;
e) No Ministério Público do Trabalho, dos 465 procuradores,
apenas 07 são negros;
f) Na Câmara dos Deputados, de 513 Deputados Federais,
apenas 20 são negros;
g) No Senado, apenas 2 dos então 81 Senadores são negros;
h) Dos cerca de 1.000 Diplomatas, menos de 10 deles são negros.
295

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 295 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Diante dos dados apresentados, não há como conjecturar que


os brancos e os negros tenham as mesmas chances na sociedade
brasileira, ainda que ambos estejam em situação de pobreza. Posto
isso, voltemos à ideia da igualdade material, pela qual o conceito
de ações afirmativas foi consolidando seu espaço no cenário mun-
dial. Foi a partir dos Estados Unidos da América que as ações afir-
mativas tiveram projeção internacional. No entanto, nem sempre a
Suprema Corte foi favorável à adoção de ações afirmativas, muito
pelo contrário, sequer a igualdade formal era assegurada aos negros
(CRUZ, 2003, p. 163).
Historicamente, nem mesmo o Legislativo Americano teve
participação relevante na formulação de políticas públicas de inclu-
são. Foram alguns casos judiciais, os responsáveis pela construção e
consolidação das políticas das ações afirmativas nos Estados Unidos.
Para efeito exemplificativo, discorreremos sobre o Caso Brown v.
Boardof Educatios (347 U.S. 483, 1954): Neste caso, foi dado início
ao que se denomina ativismo judicial norte-americano em prol das
ações afirmativas. Somente em 1969, no caso Alexander v. Homes
Country Boardof Education (395 U.S. 19, 1969), foi determinado
que também nas escolas privadas fosse banida qualquer discrimina-
ção segregatória em relação aos negros.
Apesar disso, torna-se importante destacar o papel daquela
sociedade, sendo fundamental expor também o papel do Estado
Americano, uma vez que, na maioria dos casos, as ações afirmativas
são impostas em face da resistência oposta por segmentos sociais
conservadores. Nesse sentido, o papel do Executivo acabou tornan-
do-se decisivo na experiência americana. A título exemplificativo,
destacamos o Decreto Executivo 11.246/65, emanado pelo Presi-
dente Lindon Johnson, que condiciona a celebração de contratos ad-
ministrativos com a União à admissão de percentuais razoáveis de
minorias (CRUZ, 2003, p. 189).
A Suprema Corte Americana, como técnica de análise da dis-
criminação efetiva, tem adotado a teoria do impacto desproporcio-
nal. Consiste ela em critérios estatísticos para provar que os gran-
des números podem ocultar a discriminação racial. Nas palavras de
296 Cruz, com a verificação de tal técnica, chegamos ao reconhecimento
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 296 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

da existência da discriminação indireta. No Brasil, essa técnica ain-


da não foi adotada. Assim, somente a discriminação direta (inten-
cional) permite, por enquanto, ao cidadão que sofre de preconceito
obter compensação. Acerca do estudo, Dworkin (2005, p. 551), ao
analisar a educação superior norte-americana pondera:

Se, no fim das contas, a pergunta é se as faculdades e uni-


versidades mais exigentes tiveram êxito na formação de um
grande número de alunos pertencentes a grupos minoritá-
rios, que já alcançaram considerável êxito e parecem ter pro-
babilidade de, com o tempo, vir a ocupar cargos de liderança
em toda a sociedade, não temos dificuldade para responder à
pergunta. Com certeza [...]. No geral, concluímos que as fa-
culdades e universidades academicamente exigentes tiveram
muito êxito no usa das políticas de admissão sensíveis à raça
para promover metas educacionais importantes para todos.

Na África do Sul, país em que as ações afirmativas se aplicam


à grande maioria da população, o conteúdo da igualdade na Consti-
tuição sul-africana é de caráter afirmativo, a saber:

Igualdade inclui total e igual aproveitamento de direitos e


liberdades. Promover a conquista da igualdade, legislativa-
mente e em outros termos designada para proteger pessoas,
ou grupos de pessoas que estão em desvantagem por serem
injustamente discriminadas. [Tradução Livre].

No oriente, a Índia foi o primeiro país a adotar o sistema de


cotas raciais, previstas já em sua Constituição de 1949. Aplicada até
hoje, a política de cotas no ensino superior indiano vem trazendo re-
sultados efetivos. No Brasil, os defensores da política afirmativa de
cotas raciais apresentam argumentos e fundamentos éticos, socioló-
gicos, antropológicos, históricos e econômicos. Segundo o Ministro
Joaquim Barbosa (GOMES, 2001, p. 44): as políticas afirmativas,
também intituladas de “ações afirmativas” ou “discriminação posi-
tiva”, são uma renúncia explícita à suposta neutralidade estatal em
matéria de oportunidade e de empregos”. Para o Ministro, as ações
afirmativas podem ser definidas como: 297

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 297 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter


compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vis-
tas ao combate à discriminação racial, de gênero e de ori-
gem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes
da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a
concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens
fundamentais como a educação e o emprego.

Portanto, vê-se que as ações afirmativas têm por objeto indu-


zir transformações de ordem cultural, social, pedagógica e psicoló-
gica, aptas a subtrair do imaginário coletivo a ideia de supremacia e
de subordinação do homem em relação à mulher e de uma raça em
relação à outra (GOMES, 2001, p. 44).
Diante do fato inconteste de que é reduzida a quantidade de
pessoas de cor negra nas universidades públicas brasileiras, a Univer-
sidade de Brasília (UnB) e a Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS), estabeleceram, em suas políticas de ingresso, reserva
de vagas para candidatos da cor negra. De uma forma aguda Grisa e
Caprara (2016, p. 172) examinam as políticas de ações afirmativas no
ensino superior público (UFRGS) na ótica dos gestores institucionais

Os resultados apontam um frágil acompanhamento da exe-


cução dessa política pública; salvo exceções, os gestores não
dominam pormenores legais e históricos ligados às cotas e
demonstram certo distanciamento no que tange ao compro-
misso político com seu êxito. Evidencia-se grande variedade
de concepções acerca de pautas ligadas às cotas, como racis-
mo e função social da universidade. Uma disputa por hege-
monia política se verifica nos espaços de gestão, ao mesmo
tempo em que visões de cunho elitista são identificadas. Por
fim, nota-se que alguns cargos estratégicos estão ocupados
por pessoas que veem legitimidade nas demandas de demo-
cratização da universidade e de reconhecimento de determi-
nados grupos sociais.

Em suma, ao constatarem o problema social, aplicaram a medi-


da, fundamentando sua política universitária nos princípios constitu-
cionais do pleno acesso à educação, na busca do emprego, no combate
298 às desigualdades sociais, no combate ao racismo, na dignidade hu-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 298 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

mana, na erradicação da pobreza, na fraternidade, na igualdade e no


pluralismo. Na esteira do mencionado anteriormente, não podemos
passar à margem de importante elemento trazido por Godoy (2010,
p. 64), em “Direito & utopia em Roberto Mangabeira Unger”:

E a advertência é firme, por parte de Mangabeira, há máculas e


problemas com a educação de fundo clássico. É que a educação
se torna emblema da elite e da diferença social. A cultura clás-
sica poderia enfraquecer a fé na reconstrução baseada na revol-
va, por conta do cânon que é fechado nos limites de sua própria
vitalidade. Percebe-se historiografia rebelde, no sentido de que
a diversidade que podemos construir no futuro é muito mais
importante do que a diversidade que herdamos do passado.
Para Mangabeira, o ensino precisa ser democratizado. Creches
e escolas públicas precisam funcionar em tempo integral. Não
há prioridade maior. Trata-se de garantir às crianças um man-
to protetor. Pobres e talentosos seriam identificados. Esforço
nacional seria canalizado para o desenvolvimento de modelo
de ensino capacitador. O ensino público seria resgatado.

A política de cotas como exercício


dos direitos constitucionais

No Brasil, acerca do papel do Estado como promotor de ações


afirmativas, a Constituição Federal ordena como objetivo fundante de
nossa democracia: “promover o bem de todos, sem preconceitos de ori-
gem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”
(BRASIL, 1988, Art. 3º, Inc. IV). Posto isso, temos de nos reportar
aos princípios constitucionais aludidos acima, colocando a política de
cotas como exercício constitucional, pois se os negros são a maioria
da população mais pobre, torna-se evidente que a reserva de cotas tem
fiança constitucional ao almejar reduzir as desigualdades sociais. De
acordo com López e Santos (2016, p. 2) há uma pluralidade de ações
afirmativas, cada qual delas com sua peculiaridade e relevância

Na atualidade, entre as políticas de ação afirmativa imple-


mentadas no Brasil há: políticas de acesso e permanência
de estudantes negros nas universidades; a aplicação de con- 299
teúdos de história e cultura afro-brasileira e africana, assim
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 299 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

como práticas de educação antirracista nas instituições de


Ensino Básico (Lei Federal 10639/03); a reserva de vagas
para negros em diferentes nichos do mercado de trabalho
e concursos públicos; o reconhecimento étnico e a regula-
rização fundiária de comunidades negras rurais e urbanas
remanescentes de quilombos, a Política Nacional de Saúde
Integral da População Negra. Este conjunto de políticas pú-
blicas resultam de processos complexos de negociações, ar-
ticulações e formulações feitas pelos movimentos negros e
outros atores sociais com agências governamentais e estatais
ao longo dos últimos anos.

A visão principiológica da CF/88 vincula o Estado brasilei-


ro a concretizar políticas públicas para que a igualdade material en-
tre brancos e negros prevaleça, inclusive no acesso ao ensino supe-
rior público e gratuito. Mas é certo que existem e existirão conflitos
entre os direitos individuais e as políticas públicas, questão esta que
é clarificada por Dworkin (2005, p. 349):

Sem dúvida, não há nada de paradoxal na ideia de que o direi-


to de um indivíduo à igual proteção pode às vezes entrar em
conflito com uma política social desejável sob outros aspec-
tos, inclusive aquela que tem por objetivo tornar a sociedade
mais igual em termos gerais.

Por esse pressuposto, deduz-se que a existência de um nú-


mero proporcional de alunos de cor negra igualmente traria um
forte apelo simbólico, pois plantaria nas demais pessoas negras a
real possibilidade de alcançar o que antes era inalcançável, ou seja,
um espaço no ensino superior público gratuito. As ações afirmativas
instituídas por meio das cotas para acesso ao ensino superior podem
ser compreendidas dentro do processo de individualização e dife-
renciação. Por isto Gadea (2013, p. 275) entende que

os processos sociais que estariam determinando essas even-


tuais transformações se referem a uma experiência negra
marcada por uma clara dualidade: por um lado, o que se pode
entender como uma aproximação crescente a múltiplos con-
300 textos sociais e culturais de referência e, pelo outro, a uma

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 300 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

diferenciação social geradora de uma experiência da individua-


lidade e da negritude muito particular. Se bem que os dispo-
sitivos de exclusão por critérios raciais possam persistir no
jogo da vida social, as dinâmicas que envolvem esses dispo-
sitivos historicamente existentes têm se tornado mais com-
plexas e diversas, à medida que o espaço da negritude tem se
aproximado de espaços sociais antes muito distantes.

Para tal pretendida realidade, o princípio da dignidade hu-


mana deve ser utilizado como base norteadora à aplicação dos direi-
tos fundamentais, pois decorre a todos, cabendo ao intérprete à apli-
cação da regra da proporcionalidade entre os direitos fundamentais
em debate, pois, segundo Sarmento: “O princípio da dignidade da
pessoa humana nutre e perpassa todos os direitos fundamentais que,
em maior ou menor medida, podem ser considerados como concre-
tização ou exteriorizações suas” (SARMENTO, 2004, p. 113).
Dessa forma, a política de cotas raciais torna-se adequada
na medida em que traz a academia um contingente maior da po-
pulação negra, e acolhe a regra da proporcionalidade, na medida
em que a maioria das vagas ainda estará aberta à disputa coletiva,
não eliminando as formas tradicionais de concorrência. Ao des-
crever a educação superior nos Estados Unidos, Godoy (2010, p.
83), lembra que existem vagas para minorias por força das ações
afirmativas (affirmativeactions).
No Brasil, contudo, para se tornar efetiva e verdadeira a de-
mocracia racial, um dos caminhos a ser percorrido é o da instrução
das pessoas negras, de modo a prepará-las para que, com igualda-
de de condições e oportunidades, possam concorrer aos melhores
postos profissionais; fato que elevaria o sentimento e dignidade de
todos, pois o grupo deixaria de ocupar espaços menores e se veria
ocupando funções até então praticamente inatingíveis.
Desse modo, defende-se que não é apenas possível, mas, so-
bretudo, indispensável à luz do ideal democrático, aplicar os princí-
pios constitucionais sob as premissas de um positivismo restaurado
pelas conquistas sociais. O que situa a discricionariedade envolvida
na tarefa de atuação da Constituição no plano estritamente dogmá-
tico e submetendo, tanto o legislador, ao concretizar na lei mandos 301

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 301 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

constitucionais, quanto o juiz, ao escolher entre díspares possibili-


dades exegéticas, às reivindicações do Estado de Democrático de
Direito (RAMOS, 2010).
Por outro lado, os contrários à política das cotas raciais, dentre
outros fortes argumentos, defendem que as cotas são “perfumarias”
que não atacam o verdadeiro problema; problema que repousaria na
falta de educação de qualidade para todo o brasileiro, ou seja, enten-
dem que a causa não é a “cor”, mas a péssima educação oferecida pelo
Estado. Acreditam que o modelo norte americano para redução de
problemas raciais não pode ser “importado” pois, no Brasil, diferen-
temente do modelo racial estadunidense, não houve um preconceito
institucionalizado com leis segregacionistas. Afirmam que mesmo
nos Estados Unidos a Suprema Corte decidiu pela inconstituciona-
lidade do uso do critério racial como único elemento discriminató-
rio. Em resumo, fundamentam que diante de um problema de raízes
históricas tão complexas as cotas não seriam o remédio adequado.
Desse modo, temos aqui uma questão de dosagem, imprescin-
dível à tarefa de concretização da justiça social e a observância dos
limites decorrentes da apropriada interpretação do texto Constitu-
cional que se pretende ver transformado em realidade.

Propondo a expansão de oportunidades: desde o projeto


ao retorno social

O processo de privatização das empresas estatais e dos serviços


públicos, em geral, e os cortes consideráveis nos gastos públicos, foi
uma característica que marcou, com muito detalhe, a ascensão das po-
líticas neoliberais1 que o Brasil passou a vivenciar na década de 1990, e
volta a experimentar no governo de extrema direita, a partir de 2019.
Na medida em que o Estado passou a comprometer-se, ou assim pen-
sava-se que ocorria, com a desregulação e flexibilização, bem como

1 Dias et Al (2007, p. 444) corrobora esta perspectiva ao afirmar que “a adoção


de políticas sociais de caráter neoliberal afetou, sobremaneira, a agenda da demo-
cracia nos países do Terceiro Mundo face ao agravamento dos problemas sociais
302 caracterizados pela extrema pobreza, doenças, analfabetismo, decadência regional
e urbana, desemprego e narcotráfico”.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 302 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

a desoneração fiscal em nome do desenvolvimento, deixou de prota-


gonizar sua responsabilidade pela efetividade de ações e políticas que
levassem a nação ao sólido desenvolvimento econômico e social.
No âmbito populacional, o Governo ocupou-se pela redefini-
ção do que chamou de gasto social federal, representativo de um
fundo destinado a investimentos, no curto ou médio prazo, das con-
dições de vida da população de uma forma geral. Desde uma ver-
tente abrangente de abordagem, a definição ampla de gasto social
abrange tanto as atividades do setor público especificamente, como
todas as outras que são cumpridas pelo setor privado da economia.
Muitos campos de observação pautaram tais gastos, e os recursos
buscavam alcançar a materialização de ações que buscavam otimizar
programas sociais, ambientais, iniciativas culturais, o alavancamen-
to da qualidade na educação, entre outros.
Num período denominado de ênfase neoliberal, o Estado pas-
sou a desempenhar uma função de aspecto mais restritivo dos bens
sociais, ademais de buscar garantir a ordem interna, por exemplo,
com alargamento da política de encarceramento, e a segurança co-
mercial externa. Por este caminho, o Estado, num nítido exercício
de transferência de responsabilidade, delegava à iniciativa privada o
incremento das atividades congêneres com o controle do mercado.
Neste caminho, pode-se dizer que nos anos que antecederam
a 2003, as universidades estatais foram vítimas de uma desarticula-
ção, como causa de uma série de políticas de austeridade, que arro-
charam salários e minimizaram a quantidade de investimentos no
setor educacional universitário. Tal fato parece ascender o cenário e
vir a se repetir no presente momento. Não há, assim, de omitir-se a
percepção de que o Governo de centro-esquerda conseguiu eleger-
-se sustentando bandeiras e programa sociais de enfoque redistribu-
tivo (MANCEBO, 2004). De um modo muito peculiar, em relação à
educação superior, prometia democratizar o acesso e a permanência.
Esta iniciativa, sem qualquer dúvida, se mostrava pertinente, tendo
em vista a centralização e o controle de todos os níveis de educação.
Vem de longa data que atores sociais demonstram uma dis-
posição favorável à descentralização da execução do serviço edu-
cacional, o aumento da qualidade do ensino fundamental e médio, 303

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 303 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

a implementação de novos recursos pedagógicos, tecnológicos e fi-


nanceiros. Ademais, é possível observar que democratização, insti-
tuindo mecanismos de participação, contraditoriamente pode agra-
var múltiplos conflitos na área educacional, envolvendo questões
pertinentes ao transporte escolar, à organização curricular, a trans-
ferências, ao sistema de matrículas, à mobilização de pessoal, aos di-
reitos sociais e trabalhistas, à previdência pública. A morosidade ou
ausência de solução pode acabar, de uma ou de outra forma, gerando
consequências sobre o desempenho dos estudantes.
De outra forma, revelava-se inevitável uma medida que promo-
vesse a ampliação do período de duração da educação básica, o que se
almejava para conformar uma melhor interação com o ambiente edu-
cacional. Esta medida, muito embora reconhecida pedagogicamente,
dependia de um interesse e de uma atuação política para o investimen-
to dos recursos adequados ao alargamento da escolarização. É neste
sentido que o planejamento governamental tinha em pauta, e definida
sua compreensão de que a democratização do acesso e a permanência
na escola ultrapassa o binômio qualidade e quantidade.
O esforço deliberado pela universalização do acesso ao Sis-
tema de Ensino ainda não corresponde à educação de qualidade2.
“O debate sobre a qualidade da educação, entre outras coisas, faz
emergir uma temática relativa à educação em direitos humanos: a
questão da diversidade” (DIAS et Al., 2007, p. 445). Não se pode
desmerecer o entendimento real de que a qualidade para poucos é
privilégio, e o projeto democrático entende a educação como um
direito de dimensões universais. Neste sentido, o Estado de Direito
brasileiro possui uma dívida social de longa data visando tanto er-
radicar o analfabetismo quanto alargar as oportunidades do ensino
superior, cujas metas apresentam-se complexas, para além de apon-
tar de conquistas e retrocessos. Dias et Al (2007, p. 443) afirma
2 De acordo com Corbucci et Al (2017, p. 74) a questão é complexa, pois que
“a melhoria da qualidade do ensino superior privado sugere, por sua vez, uma
situação dilemática. Se, de um lado, esta deve ser perseguida, de outro, ao ser
alcançada, pode implicar a exclusão de parcela considerável de seu público-alvo,
em virtude de uma provável elevação dos custos decorrentes deste aumento da
304 qualidade da oferta. Portanto, o baixo poder aquisitivo de sua clientela-alvo passa
a ser fator limitante da melhoria da qualidade dos serviços prestados”.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 304 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Não podemos esquecer que, no Brasil, a educação tem a mar-


ca histórica da exclusão, consubstanciada pela enorme desi-
gualdade social que grassa no país, desde a época de sua colo-
nização até os dias atuais. Contemporaneamente, em função
do chamado novo ordenamento econômico e social do capital
internacional, o quadro de desigualdades sociais tem-se apro-
fundado, produzindo uma complexa rede de relações sociais
e políticas, expressão do processo de dominação e exploração
econômica vivenciados pelos brasileiros.

Desta forma a agenda governamental tenta traduzir o propó-


sito de não poupar empenho e investimento para o desenvolvimento
de programas de ações afirmativas e de renda mínima, direcionadas
ao reconhecimento, à geração de empregos e ao aumento da renda.
Assim, protagoniza, para tanto, as possibilidades das famílias de tra-
balhadores e mesmo desempregados encaminharem seus filhos às es-
colas, e sucessivamente às universidades, com perspectivas de lá per-
manecerem até à conclusão de seus estudos. Desse mesmo modo, se
promoveu um complexo e amplo debate nacional sobre a constituição
e implantação de políticas de outras ações afirmativas na educação.
O PROUNI se apresenta com uma nítida dimensão de uma
política de ações afirmativas, porquanto a maioria dos estudantes
das universidades estatais é majoritariamente da etnia branca. Tam-
bém os dados da PNAD (2016) apontam que os brancos corres-
pondiam a 49,7% da população, enquanto os negros representavam
49,5%, porém estes últimos não se encontram igualmente no ensino
de universidades de ensino gratuito. Todavia,

em relação à composição étnica dos bolsistas do PROUNI, ve-


rifica-se que 47,2% dos bolsistas são brancos, enquanto negros
e pardos correspondem a 44,6% do total. Portanto, a distribui-
ção de bolsas guarda certa equivalência com a composição da
população brasileira (CORBUCCI et Al., 2017, p. 62).

Para fortalecer esta estratégia, os agentes estatais à frente do


processo ocuparam-se de enaltecer a questão da qualidade social da
educação, a qual relacionava diretamente com graus de excelência
previstos para a oferta da educação escolar e de outras modalidades 305

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 305 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

formativas. Neste núcleo, encontrava-se o PROUNI, uma proposta


emblemática que traz na sua essência o efetivo intuito de:

[...] democratizar o acesso da população de baixa renda ao


ensino superior, pois, enquanto os alunos do ensino funda-
mental e médio estão majoritariamente matriculados em
instituições públicas de ensino, o mesmo não acontece com
os alunos matriculados no ensino superior, em que apenas
30% dos jovens universitários tem acesso ao ensino gratuito
(BRASIL, 2004, p. 5).

O programa, assim, elevava o significado da inclusão social,


servindo esta de mecanismo que aproximava os cidadãos brasileiros
dos debates e questionamentos dos distintos problemas nacionais,
buscando refletir e implementar soluções coletivas exequíveis e im-
periosas à resolução dos desconfortos individuais e da coletividade.
O governo então se preocupou com programas que impulsionassem
as pretensões de bem-estar, e com elas a educação superior. Estabe-
leceu as estratégias para a normatização de universidades estatais
e à regulação do relacionamento do MEC com as IES de natureza
privada. Visando este objetivo, o órgão governamental ocupou-se de
reformas que pareciam imprescindíveis, o que se efetivou, de acordo
com Mancebo (2004, p. 75-76), “através de debates e audiências com
entidades, além de haver criado um grupo do próprio Ministério com
o objetivo de identificar as convergências e divergências nas propos-
tas já formuladas por diversas entidades em seus fóruns próprios”.
Diz-se, com isto, que em suma as iniciativas levadas a efeito
compreendem, além do PROUNI, a oferta de cotas para estudantes de
escolas públicas, e subcotas para alunos negros e indígenas, a presta-
ção do ENEM, a criação de novas universidades federais, ampliação e
criação de institutos tecnológicos federais e a destinação dos recursos
da loteria federal para subsidiar o FIES, além das bolsas permanên-
cia para os estudantes menos providos economicamente conseguirem
permanecer no ensino superior. Para Silva et Al (2008, p. 228)

O PROUNI deve ser considerado como um importante pro-


306 grama de ações afirmativas voltado para a população negra
na educação superior privada. Isto se deve ao fato de constar
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 306 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

nos seus dispositivos normativos a exigência de que o núme-


ro de bolsas oferecidas atenda ao critério de proporcionali-
dade racial. De acordo com a regra, os alunos negros devem
preencher, necessariamente, um percentual de vagas equiva-
lente ao percentual de presença negra na UF em que se in-
serem as IES. Em decorrência de tal dispositivo, o programa
tem permitido uma inserção real dos estudantes negros no
ensino privado brasileiro.

Em seu bojo, as inovações mostravam-se consideravelmente


amplas, pois refletem diversos ângulos relacionados com a educação
superior, tratava-se, pois, do papel das IES no cenário de formação,
a autonomia das universidades, o financiamento educacional, o aces-
so e a retenção dos estudantes, a gestão e a estrutura da educação
superior, o sistema de avaliação de um modo global, ademais a efe-
tividade da complexidade de conteúdos e estruturas de diferentes
graduações. Essas dimensões podem ser merecedoras de tratamen-
to amplo e orgânico (MANCEBO, 2004).
Relativamente à avaliação, o Projeto de Lei do PROUNI,
também, firma um pacto pela qualidade do ensino, pois as ins-
tituições privadas que desejarem aderir ao programa devem ter
desempenho suficiente no novo modelo de avaliação do ensino su-
perior (SINAES), além do fato de que os alunos, em virtude de
um tratamento tributário mais isonômico, poderem escolher seu
curso, menos pelo preço e mais pela qualidade do bem oferecido
(BRASIL, 2004, p. 6). Vista esta situação, pode-se destacar dois
parâmetros de conformação preconizados:

O primeiro deles foi a avaliação da educação superior, por


certo, uma das pautas mais polêmicas ao longo de 2003, no
campo da educação superior. A avaliação constituiu-se no
carro-chefe das políticas educacionais no governo de Fernan-
do Henrique Cardoso, e qualquer tentativa de mudança nas
regras de avaliação implicava o aparecimento de críticas vei-
culadas, generosamente, pela grande imprensa, especialmen-
te quando se tratava do Exame Nacional de Cursos.
O segundo tema que se antecipou à agenda da Reforma Uni-
versitária é o [...] acesso à educação superior, concretizado 307
no programa governamental denominado “Universidade
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 307 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

para Todos”. Para tanto, partiremos da hipótese de que a


implantação do PROUNI – sigla adotada para o programa
– aprofundará o preocupante quadro de privatização do siste-
ma de educação superior no País (MANCEBO, 2004, p. 77).

Neste contexto, o PROUNI busca promover o acesso à educa-


ção superior com a redução dos gastos públicos por parte do gover-
no. Seu propósito era alcançar as metas traçadas pelo Plano Nacio-
nal de Educação, aumentando a proporção de jovens na faixa de 18 a
24 anos que frequentam os corredores das entidades universitárias
em 30%, até o passado ano de 2010 e, assim “responder ao aumento
da demanda por acesso à educação superior”, derivada do crescente
número de jovens que conclui o Ensino Médio.

Ocorre que o número de matrículas no ensino médio pratica-


mente dobrou, de 5,7 milhões para 9,8 milhões entre 1998 e
2002, conforme dados do Censo da Educação Básica do INEP/
MEC, sendo que o número de matrículas na 3ª série do ensino
médio, de 1.274.933 em 1996, chegou a 2.239.544 em 2002.
A consequência direta destes dados é o aumento da demanda
pelo ensino superior. Por outro lado, nesse mesmo período,
houve uma enorme expansão da rede privada de ensino supe-
rior. Das 1637 instituições de ensino superior contabilizadas
no Brasil em 2002, de acordo com o censo do INEP/MEC,
1442 são privadas e 195 são públicas, totalizando uma ofer-
ta de vagas de 1.773.087. Não obstante, 37,5% das vagas em
instituições privadas, o que corresponde a aproximadamente
meio milhão, estão ociosas (BRASIL, 2004, p. 5).

Para tanto, vale-se da “ociosidade do ensino superior privado


(35% das vagas em 2002 e 42% em 2003, segundo o Censo do Inep)”
(CATANI e GILIOLI, 2005, p. 5). Ao relevar-se o fator privatização,
convém afirmar uma análise, mesmo que breve, sobre a atuação do
Estado em relação ao financiamento dos serviços educacionais.

O texto mais exemplar desta radiografia foi o polêmico estudo


divulgado pelo Ministério da Fazenda, em 13 de novembro,
intitulado “Gasto social do governo central: 2001 e 2002”, que
308 indica um roteiro para ampla reforma do gasto social no Brasil,

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 308 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

no qual o modelo de financiamento das instituições públicas de


ensino superior é apresentado como um grande “obstáculo” às
metas sociais do governo [...] (MANCEBO, 2004, p. 78).

É importante frisar que, em sua previsão original, o PROUNI,


ao incentivar que as IES privadas oferecessem uma bolsa de estudo
para cada 09 alunos regulares, se chegaria à perspectiva de que, com
isto, uma quantidade de estudantes de baixa renda, originária da rede
pública do ensino básico, teriam a oportunidade de transpor a consi-
derável barreira que aqueles que terminavam o Ensino Médio enfren-
tavam para realizarem o sonho de cursarem o ensino superior. Pois,

Além disso, se a elevação do padrão educacional de uma popu-


lação não for suficiente, como medida isolada, para se alcan-
çar maiores níveis de desenvolvimento, é certo que, criadas
as demais condições, ela é medida indiscutivelmente forçosa
para que tal ideal seja atingido (BRASIL, 2004, p. 5).

Considerações Finais

Pela avaliação até então realizada, chega-se à conclusão que


os defensores das políticas de cotas raciais extraem do texto cons-
titucional mandamentos e ordens que viabilizam ações afirmativas
favoráveis às pessoas de cor negra, em face das injustiças históricas
sofridas pelo grupo. Diante disso, defendemos a aplicação das políti-
cas de cotas para o acesso dos negros ao ensino superior público no
Brasil em face da atenção a igualdade material e da realização plena
do princípio da dignidade humana.
É inegável, portanto, que o Poder Judiciário intervenha para
corrigir as desigualdades, e para proteger aqueles que são excluí-
dos economicamente da sociedade e, consequentemente do acesso
ao conhecimento e ao ensino superior, no caso a grande maioria das
pessoas da cor negra. Não podemos esperar que ocorra a tão neces-
sária melhoria nos ensinos fundamental e médio para agirmos. Este
tempo pode ser por demasiado lento. Dworkin (2005, p. 145) ao
referir-se ao modelo norte-americano, afirma que lá: “os julgadores
terão agido, não só como juízes que permitiram a continuidade de 309

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 309 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

uma iniciativa educacional essencial, mas também como professores


que ajudaram a explicar à nação o verdadeiro e duradouro preço,
para todos, de um passado racista”.
Portanto, de acordo com esta medida, nos certificaríamos de
que as políticas de ações afirmativas no campo étnico-racial ofere-
ceriam as condições adequadas para que os grupos minoritários
tenham acesso aos espaços de poder por força do mérito, sendo o
caminho para a inclusão dos afrodescendentes, pois é manifesta a
existência do racismo em nossa sociedade e a consequente situação
de desigualdade, uma vez que as políticas públicas de caráter uni-
versal não têm condições de combater as desigualdades.
E neste sentido, diante de todo o exposto, encerro trazendo a
citação de Carvalho: “Muitos adversários das cotas alegam que elas
destruirão a concorrência que caracteriza o mundo acadêmico; na
verdade, serão as cotas que permitirão uma verdadeira concorrência
que ainda não temos (2005, p. 50).

310

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 310 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Referências
BRASIL. Medida Provisória nº 213, de 10 de setembro de 2004.
Institui o Programa Universidade para Todos - PROUNI, regula a
atuação de entidades beneficentes de assistência social no ensino supe-
rior, e dá outras providências, 2004.
CARVALHO, J. J. Inclusão étnica e racial no Brasil: a questão das
cotas no ensino superior. São Paulo: Atlas, 2005.
CATANI, A. M.; GILIOLI, R. S. P. O Prouni na encruzilhada: en-
tre a cidadania e a privatização. Linhas críticas, v. 11, n. 20, pp.
55-68, 2005.
COMPARATO, F. K. Igualdades, Desigualdades. Revista Trimestral
de Direito Público. São Paulo: Malheiros, 1996.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Brasília: DF, 1988.
CORBUCCI, P. R. et Al. Vinte anos da Constituição federal de 1988:
avanços e desafios na educação brasileira. In: IPEA. Políticas sociais:
acompanhamento e análise, v. 2, 2017.
CRUZ, Á. R. S. O direito à diferença: as ações afirmativas como
mecanismo de inclusão social de mulheres, negros, homossexuais
e pessoas portadoras de deficiências. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
DIAS, A. A.; et Al. Da educação como direito humano aos direitos hu-
manos como princípio educativo. In: SILVEIRA, R. M. G. (Org.). Edu-
cação em direitos humanos: fundamentos teórico-metodológicos.
João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2007. Pp. 441-456.
DWORKIN, R. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualda-
de. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
FERES JÚNIOR, J.; ZONINSIS, J. (Orgs.). Ação afirmativa e uni-
versidade: experiências nacionais comparadas. Brasília: UnB, 2006.
GADEA, C. A. O espaço da negritude e o reverso da africanidade: crí-
tica sobre as relações raciais contemporâneas. Caderno CRH, v. 26, n.
69, pp. 563-579, 2013.
GODOY, A. S. G. Direito e Utopia em Roberto Mangabeira Unger:
Democracia Radical, Imaginação Institucional e Esperança como
Razão. São Paulo: QuartierLatin, 2010. 311

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 311 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

GOMES, J. B. B. Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da


Igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
GOSS, K. P. Retóricas em disputa: o debate intelectual sobre as polí-
ticas de ação afirmativa para estudantes negros no Brasil. Ciências
Sociais Unisinos, v. 45, n. 2, pp. 114-124, 2009.
GRISA, G. D.; CAPRARA, B. M. As políticas de ações afirmativas no
ensino superior sob a ótica dos gestores: o caso da Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul. Ciências Sociais Unisinos, v. 52, n. 2, pp.
172-181, 2016.
HESSE, K. Elementos de direito constitucional da República Fe-
deral da Alemanha. Porto Alegre: SAFE, 1998.
KAUFMANN, R. F. M. Ações afirmativas à brasileira: necessidade
ou mito? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
LÓPEZ, L. C.; SANTOS, M. A. O. Ações afirmativas, movimentos ne-
gros e os caminhos da promoção da igualdade racial. Ciências Sociais
Unisinos, v. 52, n. 2, 2016.
LUÑO, A.-E. P. Teoria del derecho. Uma concepción de la expe-
riência jurídica. Madrid: Tecnos S/A, 1997.
MANCEBO, D. “Universidade para Todos”: a privatização em questão.
Pro-Posições, v. 15, n. 3, pp. 75-90, 2004.
PETRUCELLI, J. L. Mapa do ensino superior brasileiro. Rio de Ja-
neiro: políticas da cor/LPP/UERJ. (Série Ensaios e Pesquisas 1), 2012.
PISCITELLI, R. M. O Estado como promotor de ações afirmati-
vas e a política de cotas para o acesso dos negros à Universidade.
Curitiba: Juruá, 2009.
PIZA, E. O teto de vidro ou o céu não é o limite. In. BENTO, M. A. S.;
et Al. Ação afirmativa e diversidade no trabalho: desafios e possi-
bilidades. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.
PNAD. Pesquisa nacional por amostra de domicílios: síntese de indica-
dores 2016 / IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento. Rio de
Janeiro: IBGE, 2016.
RAMOS, E. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo:
312 Saraiva, 2010.

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 312 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

RIOS, R. R. O princípio da igualdade e o direito da antidiscrimina-


ção: discriminação direta, discriminação indireta e as ações afir-
mativas no direito constitucional estadunidense. [Tese de Douto-
rado]. Porto Alegre: UFRGS, 2005.
SANTOS, S. A. Ação afirmativa e mérito individual. In: OLIVEIRA,
I.; et Al. Negro e Educação – Identidade negra – pesquisas sobre o
negro e a educação no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 2005.
SARMENTO, D. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2004.
SILVA, J. C.; et A. Igualdade racial. Brasília: Editora IPEA, 2008.
SILVA, M. M.; JACINO, R.; SILVA, S. J. Da contra-hegemonia política
às políticas contra-hegemônicas: as ações afirmativas para negros na so-
ciedade brasileira. Ciências Sociais Unisinos, v. 55, n. 1, pp. 1-11, 2019.
WALDRON, J. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.

313

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 313 06/01/2021 10:44


Livro Aloisio-V4.indd 314 06/01/2021 10:44
Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Identidades e sociabilidades: questão de gênero

Vânia Marquez Saraiva

Introdução

O propósito do presente estudo é apresentar alguns debates


que surgiram nas Ciências Sociais acerca das teorias de identidade
e de gênero, principalmente as práticas sociais relativas à vida co-
tidiana. As dinâmicas de interação e sociabilidade contextualizam
as lógicas identitárias operantes nos processos de pertencimento
social, de desfiliação e de exclusão de grupos e indivíduos.
A luta para se estabelecer uma identidade possui tanto ele-
mentos de alento, quanto de obstáculos. Porém, as mulheres, por
meio de muitas lutas, conseguiram estabelecer a sua identidade, mas
para teorizar gênero exige-se uma análise, ou seja, exige-se fazer
uma conexão entre a história passada e a prática histórica presente
(SCOTT, 1995). A tarefa de contextualizar o significado do processo
de constituição de identidade não é tarefa fácil uma vez que existem
formas contínuas e descontínuas de estabelecer a sua conceituação.
Na atualidade, travam-se debates sobre a problemática da
questão de gênero, razão pela qual a discussão dos problemas, no
intuito de amenizá-los, constitui tema de interesse comum a todos
os povos, razão pela qual urge a investigação das teorias existentes
e sua aplicabilidade para compreender o presente. Logo, deve-se es-
tabelecer questionamentos sob várias óticas a fim de se obter uma
visão acerca deste tema complexo.
Para tanto, merece ser analisada a questão do que se tem dis-
cutido sobre os problemas de gênero, bem como as suas intercor-
rências, tais como as formas simbólicas de construção do mundo.
Também, serão tratadas as questões de desconstrução de identida-
de, inclusive quanto às mudanças dos papéis de dominação e sub-
missão e/ou resistência das mulheres ao poder masculino. Assim, 315

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 315 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

consequentemente, serão tratadas as mudanças nos padrões tradi-


cionais masculinos e seus reflexos na construção da identidade de
gênero, dentre outros aspectos quanto à composição do universo
pluralizado das relações de gênero.
Utilizando os parâmetros das teorias sociais, pretende-se com
o presente estudo lançar-se uma reflexão sobre o tratamento dado
quanto ao debate da questão conflitiva que envolve a temática gêne-
ro. Nesse viés, o presente estudo se utilizará os ensinamentos de di-
versas autoras, tais como: Judith Buttler (2003, 2004, 2014), Donna
Haraway (2004), Heleieth Saffioti (1987), Joan Scott (1995), dentre
outros nomes. Assim são examinadas obras que tratam dos contor-
nos da noção de gênero e seus reflexos no cotidiano das lutas sociais
a partir dos movimentos feministas. Também serão estudadas as te-
ses sobre os desafios da masculinidade e as relações de gênero entre
as fronteiras de masculinidades e feminilidades, dentre outros que
tratam dessas questões.
O caminho a ser utilizado será o de traçar-se a evolução do fe-
minismo, para em seguida averiguar-se as questões das mudanças de
paradigmas, bem como seu atual papel. Para, então, se tratar do corpus
conceitual sobre gênero, concluindo-se que o conceito não está con-
solidado, uma vez que sempre há mudanças. Portanto, ainda está em
construção o corpus conceitual sobre gênero, pois os problemas não se
esgotam, mas se renovam e reinventam. Por fim, após traçar as linhas
teóricas e as noções de um corpus conceitual sobre gênero, se fará algu-
mas considerações sobre as concepções acerca das relações de gênero.

Evolução do feminismo

As chamadas “sociedades tradicionais” se fixaram com hábitos


mais duradores ou padronizados, porém também continham os seus
conflitos de gênero. Por mais longevas também sofrem mudanças
gradativas, ainda que desta forma atestem a sua dinâmica histórica.
No final do segundo milênio da nossa era, entretanto, ocorreu uma
mudança substancial, principalmente em relação aos movimentos
sociais e culturais, tais como o liberalismo, os direitos humanos, o
316 feminismo e o ambientalismo.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 316 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

A trajetória do movimento de mulheres e o feminismo tive-


ram um momento inercial como ancoradouro em torno do contexto
do movimento de igualdade no ambiente de trabalho e no movi-
mento sufragista, com o qual se buscou estender o direito de votar
às mulheres. Neste ínterim, se agrega também assim outras reivin-
dicações como acesso à educação, reconhecimento político, saúde,
procriação e melhores condições no trabalho.
Em um segundo momento, no fim dos anos 1960 e meados da
década de 1970, a luta pela emancipação feminina, através do movi-
mento feminista, foi pouco a pouco rompendo barreiras – principal-
mente com o estopim da revolução estudantil de maio de 1968 na
França. Instaura-se uma conexão com a demanda por reconhecimen-
to, de se compreender e explicar a subordinação social e a invisibilida-
de política a que as mulheres tinham sido historicamente submetidas.
A proeminência do patriarcalismo dominava a sociedade an-
drocêntrica – centrada no poder masculino. Nas palavras de Saffioti,
(1987, p. 50)

o patriarcado não se resume a um sistema de dominação,


modelado pela ideologia machista. Mais do que isto, ele é
também um sistema de exploração. Enquanto a dominação
pode, para efeitos de análise, ser situada essencialmente nos
campos político e ideológico, a exploração diz respeito dire-
tamente ao terreno econômico.

A lenta conscientização das mulheres levava, evidentemente,


à discussão da invisibilidade e da histórica subordinação das mulhe-
res, o que acabou, consequentemente, provocando uma crise na fa-
mília patriarcal. Nas palavras de Castells (1999) na década de 1960
o movimento feminista, após a emancipação das mulheres, aos pou-
cos foi rompendo com a proeminência do patriarcalismo.
As feministas na década de 1970 começaram a se referir a “gê-
nero” como uma forma de se construírem socialmente, e com obje-
tivo de conter a discriminação contra as mulheres, mesmo que por
décadas tenham formulado as questões com pouca fundamentação
lógica. As mulheres não eram consideradas iguais aos homens ao
longo do debate sobre igualdade política na modernidade, daí terem 317

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 317 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

sido excluídas devido à sua diferença sexual. Várias teorias foram


cunhadas no intuito de explicar as causas da opressão das mulheres,
e os mecanismos que possibilitam a reprodução dessa opressão.
Os direitos humanos das mulheres tiveram alcance em nível
internacional com o reconhecimento de promoção e proteção de seus
direitos a partir da Carta das Nações Unidas (1945), em São Francis-
co, e da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), sendo
que a partir da carta de 1945 sobressai a Convenção sobre a Elimina-
ção de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW
– denominada posteriormente por Convenção da Mulher), de 1979.
A Convenção da Mulher, além de dispor sobre os princípios,
também dispõe sobre um amplo programa de ação para as mulheres,
sendo que no plano político os seus signatários se comprometeram
a empreender esforços para garantir o direito ao voto, à eleição ou
à indicação a cargos políticos, bem como a adotarem medidas para
acelerar a igualdade entre homens e mulheres. Diante de tais posi-
ções, documentos importantes tiveram seus reflexos em conferên-
cias mundiais sobre mulheres, a exemplo das Estratégias de Nairóbi
(1985) e da Plataforma de Ação de Beijing (1995).
A partir da década de 1980 emergem as teorias críticas à se-
gunda onda, que teve início na década de 1960 e que tratava do fim
da discriminação e de uma completa igualdade entre os sexos, iden-
tificando o problema das desigualdades como a união de problemas
culturais e políticos, encorajando as mulheres a serem politizadas e
a combateram as estruturas sexistas. Assim, a categoria unificadora
“mulher” se transforma na categoria “gênero”, demarcando frontei-
ras de classe, raça, sexualidade e localidade, com teorias de gênero,
ou denominadas também por “pós-feminismo”.
Várias são as perspectivas teóricas e práticas alicerçadas pelas
demandas feministas, ainda hoje existentes, que tentam dar visibilida-
de à realidade da estrutura de poder nas diversas sociedades que re-
produzem a discriminação ou a exclusão das mulheres dos diferentes
âmbitos da sociedade. Neste sentido, para Woodward (2014, p. 10),

Observe a frequência com que a identidade nacional é marca-


318 da pelo gênero. No nosso exemplo, as identidades nacionais

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 318 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

produzidas são masculinas e estão ligadas a concepções mili-


taristas de masculinidade. As mulheres não fazem parte desse
cenário, embora existam, obviamente, outras posições nacio-
nais e étnicas que acomodam as mulheres. Os homens tendem
a construir posições-de-sujeito para as mulheres tomando a si
próprios como ponto de referência. A única menção a mulhe-
res, neste caso, é às “garotas” que eles “namoravam”, ou me-
lhor, que foram “namoradas” no passado, antes do surgimento
do conflito. As mulheres são os significantes de uma identidade
masculina partilhada, mas agora fragmentada e reconstruída,
formando identidades nacionais distintas, opostas.

O feminismo acabou desenvolvendo uma visão intelectual e po-


lítica sobre a realidade manifesta da existência de um sistema social
no qual os homens ocupam uma posição social hegemônica e as mu-
lheres uma posição subordinada. Portanto, traçar as linhas teóricas e
as noções de um corpus conceitual sobre gênero é de suma importân-
cia para revelar a posição social de desvantagem das mulheres.

As fronteiras de masculinidade

Na metade do século XX até o início do século XXI, as diver-


sidades dos gêneros ganham destaque, sobretudo porque no enten-
der de Sérgio Gomes Silva (2006), o sexo masculino entrou em crise
identitária devido aos reflexos dos movimentos feministas que mar-
caram a década de 60. De acordo com as circunstâncias inclusive
adaptações linguísticas podem se fazer necessárias para adequar-se
às conquistas dos direitos feministas.
Com a aparição dos homossexuais conflitando-se com o con-
ceito cultural de – “homem” com a – “feminilização do masculino”
– após os movimentos femininos, autores como Banditer (1993), Al-
meida (1996), Dorais (1994), Ceccarelli (1997) e Silva (2006) tratam
do problema de crise da identidade. Os referidos autores demons-
tram através dos contextos históricos as mudanças que fizeram do
indivíduo moderno um sujeito. Assim, entendem que o indivíduo
passa por uma instabilidade no mundo social, fazendo surgir iden-
tidades fragmentadas, levando a uma nova concepção de “sujeito”. 319

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 319 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

As mulheres na sociedade contemporânea passaram a ocupar


espaços que afetaram substancialmente a organização da família, tan-
to na vida pública, como na vida privada, esse fato refletiu na própria
construção identitária, logo, gerou reflexos na questão identitária
masculina contemporânea. Alguns homens, diante das mudanças do
papel da mulher na sociedade contemporânea, tiveram que cultivar a
sua masculinidade e virilidade. Isso os fez construir para si uma sé-
rie de papéis e traços representativos de uma condição masculina no
intuito de reserva de espaço social (SILVA, 2000). O autor esclarece:

Os homens passariam a reivindicar uma nova qualidade no


espaço social, redefinindo a si mesmo, não mais como um ma-
cho inveterado, onde sua virilidade estaria intocada. O novo
homem agora admite sua fraqueza, sua fragilidade; o corpo
já não servia para impor uma condição masculina. A sensi-
bilidade feminina também passaria a fazer parte das novas
subjetividades masculinas. A forma de vestir, de falar, de se
comportar, ao não mais se sustentariam por si só. Até mes-
mo uma possível quantidade de feminilidade já passava a ser
admitida pelos homens. Mas nem sempre esse novo conjunto
de características masculinas contemporâneas conseguiu di-
zer da verdadeira identidade masculina. Ela não conseguiria
descrever a todos os homens, promovendo, com isso, a atual
crise de identidade masculina (SILVA, 2000, p. 13).

Neste sentido, Paulo Roberto Ceccarelli (1997) entende que a


masculinidade é construída através de rituais próprios a cada cultura
e que “adquirir” masculinidade implica o risco de perdê-la, até porque
há um caminho para construí-la em um espaço político e social. A
concepção de “masculino” é genérica e não universal, pois depende da
sociedade em que está inserida, ou seja, não é unívoca. Connell e Mes-
serschmid (2013) afirmam que em todos os grupos sociais existem
a masculinidade hegemônica1 e as masculinidades subordinadas. A
construção da masculinidade percorre um longo caminho até tornar-se

1 Connel e Messerschmid (2013) entendem que “masculinidade hegemônica” é


uma configuração de gênero que incorpora a resposta atual aceita para o proble-
320 ma da legitimidade do patriarcado, garantindo a posição dominante dos homens
e a subordinação das mulheres.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 320 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

a de “homem”, e é um processo contínuo, frágil e disputado, pois este é


socialmente cobrado, e no entender de Almeida (1996), deve o tempo
todo evitar posturas não másculas, como também fornecer provas de
sua posição. Outra forma de construção ocorre durante as conversas
masculinas sobre sexo, a relação entre os sexos e a sexualidade, e há a
ideia de que são naturalmente carregados de pulsão sexual, onde se cria
um modelo altamente hierarquizador, no qual, no entender de Nader e
Caminoti (2014, p. 5): “feminiza-se aquele que se quer humilhar e van-
gloria-se a masculinidade daquele que se deseja elogiar”.
No caso do homem, há que se compreender que a norma social
é construída, e existem propostas para um novo modelo de mascu-
linidade que estaria baseado na capacidade e possibilidade desse de-
monstrar seus sentimentos; já no campo da sexualidade, a possibili-
dade de falhas no intercurso sexual seria compreensível, bem como
identidades sexuais alternativas, como a homossexual, a bissexual
e a transexual, as quais fariam parte das subjetividades masculinas
contemporâneas. Para Silva (2006, p. 8),

a nossa liberdade identitária de escolha intersubjetiva, ou seja,


de acreditarmos que podemos ser realmente aquilo que que-
remos ser, talvez seja essa uma saída mais rápida no encontro
com as nossas singularidades, construídas e desconstruídas
a cada tempo, sem divisão, sem abismos entre o normal e o
doentio, entre o certo e o errado, e sem fazer da anormalidade
ou patologia parteira dos nossos sofrimentos identitários.

Deste diálogo de desconstrução do modelo que definia a mas-


culinidade, surgiram outras categorias na busca de sua nova identi-
dade, sem detrimento de outros grupos; o que pode delinear diálogos
sem que sejam marcados pelas peias do machismo. As mudanças nos
papéis femininos e masculinos contribuem para que os novos mode-
los de masculinidades sejam pautados na sensibilidade, companhei-
rismo e afetividade, apesar da forma e vivência da masculinidade ser
diferente em cada sociedade, e em cada época, os espaços devem ser
conquistados, pois já permitem uma melhor flexibilidade. Na ver-
dade, os modelos de comportamento são transmitidos de geração a
geração, e são internalizados e disseminados inconscientemente de 321

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 321 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

forma que os tomamos por naturais, e os padrões de comportamento


masculinos que criam preconceitos e discriminações.

Contextualizando o conceito de gênero

Na construção social dos gêneros, a diferença de gênero era a


diferença de sexo posta no biológico, e inicialmente acentuavam-se,
nos estudos feministas, o poder heterossexual masculino ou insti-
tucional e a forma de imposição de subordinação por parte das mu-
lheres. Desde os primórdios dos registros históricos se encontra o
discurso da inferioridade das mulheres; discurso que foi construído
sobre a base de uma ontologia em que a diferença sexual é definida
como “inferioridade feminina” e “superioridade masculina”.
Os anos de 1980 foram marcados pelo discurso político-institu-
cional sobre gênero nas Nações Unidas face ao reconhecimento desses
obstáculos de ordem cultural e social que impediam o usufruto dos di-
reitos humanos por parte das mulheres, pois o neoconservador negava
a especificidade coletiva da condição da mulher, ou confundiam como
interesses das mulheres. O conceito gênero estava envolvido, portanto,
num conflito ideológico (SCOTT, 1995), uma disputa para definir o sig-
nificado dos próprios termos de referência, criando um campo de lutas e
de disputas complexas e, por vezes, contraditórias. Para Scott (1995), a
controvérsia instalou-se entre seus defensores da definição estritamen-
te “biológica” do gênero e os defensores de uma definição mais social,
dando lugar a uma declaração que pretendia esclarecer o significado
do termo. Está coadunando com o pensamento de Buttler (2003, p. 59)
de que “o termo está aberto a intervenções e re-significações. Mesmo
quando o gênero parece cristalizar-se em suas formas mais reificadas”.
A distinção entre sexo e gênero acabou não sendo dirimida,
pois apesar do texto da Plataforma de Ação que viria a ser aprovada
na Conferência Mundial Sobre a Mulher, em Pequim, ao se referir
à mulher, só se encontram referências ao gênero quando a palavra
“sexo” parecia adequada. Nesse sentido, a diferença torna-se perti-
nente porque as confusões nas palavras, conforme menciona Amân-
cio (2003), confinam a análise das diferenças baseadas no sexo aos
322 domínios da realidade social onde a pertença sexual está presente.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 322 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

O feminismo está empenhado tanto em torno da demanda por


igualdade, quanto por instaurar o direito à diferença. O conceito de
diferença é polêmico, uma vez que a diferença de gênero é entendida
como negativa e inferior. Portanto, o feminismo lhe dá um senti-
do diferente, pois reivindica o conceito e centra-se precisamente na
diferença sexual. Assim, estabelece um programa de liberação da
mulher para que encontre sua verdadeira identidade.
As abordagens feministas pós-estruturalistas (SCOTT, 1995) se
afastam daquelas vertentes que tratam o corpo como entidade biológi-
ca universal e ressignificam o conceito de gênero com abordagens que
enfocam a centralidade da linguagem para teorizá-lo como um cons-
truto sociocultural e linguístico, produto e efeito de relação de poder.
Segundo Buttler (2014), gênero, além de ser um “fator” ou
“dimensão” da análise também é, para os cientistas sociais, aplicado
a pessoas reais como uma “marca” de diferença biológica, linguística
e/ou cultural. Diante desta questão, as identidades adquirem sen-
tido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais
elas são representadas. Com frequência a forma de pensar se ba-
seia em oposições binárias, ou também expressas como dicotômicas,
tais como natureza/cultura e sexo/gênero, ao mesmo tempo está
presente um estreito vínculo a relações de poder. Neste sentido, de
acordo com Woodward (2014, p. 54):

Os sistemas classificatórios por meio dos quais o significado é


produzido dependem de sistemas sociais e simbólicos. As per-
cepções e a compreensão da mais material das necessidades são
construídas por meio de sistemas simbólicos, os quais distin-
guem o sagrado do profano, o limpo do sujo e o cru do cozido.
Os sistemas classificatórios são, assim, construídos, sempre, em
torno da diferença e das formas pelas quais as diferenças são
marcadas. Nossa discussão procurou teorizar as formas pelas
quais os sistemas simbólicos e sociais atuam para produzir iden-
tidades, isto é, para produzir posições que podem ser assumidas,
enfatizando as dimensões sociais e simbólicas da identidade.

Nas palavras de Stuart Hall (1997), a representação atua para


classificar o mundo e as relações no seu interior. Como a identidade é
323
relacional, ela é marcada pela diferença, portanto, por um lado há ne-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 323 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

gação sobre a existência de qualquer similaridade, daí ela é sustentada


pela exclusão, mas é marcada por símbolos, podendo a sua construção
ser tanto simbólica quanto social. Os homens tendem a construir posi-
ções de sujeito para as mulheres tomando a si próprios como ponto de
referência. Para Woodward (2014, p. 10), “as mulheres são os signifi-
cantes de uma identidade masculina partilhada, mas agora fragmenta-
da e reconstruída, formando identidades nacionais distintas, opostas”.
Sob a forma de oposições binárias, para alguns é que se marca
a diferença, mas, para outros, os termos em oposição recebem uma
importância diferencial, de forma que um dos elementos da dicoto-
mia é sempre mais valorizado ou mais forte que outro. Para as femi-
nistas Simone de Beauvoir e Luce Irigaray, é por meio desse dualis-
mo que as mulheres são construídas como “outras”, de forma que as
mulheres são apenas aquilo que os homens não são. Irigaray (1985)
utiliza o exemplo da sexualidade para argumentar que as mulheres
e os homens têm sexualidades diferentes, mas não opostas.
As feministas questionam o processo de significação uma vez
que a produção da identidade de gênero afirma contraditoriamente
privilégio ao masculino. Isto faz com que as mulheres se adentras-
sem ao longo do século XX ao campo simbólico de forma negativa,
ou seja como não homens. Veja que no português a tradução “De-
claração Universal dos Direitos do Homem”, sem uma adequação
linguística que contemple a ambos. Para Hall (2014, p. 103),

no discurso da crítica feminista e da crítica cultural influenciadas


pela psicanálise têm-se destacado os processos inconscientes de
formação da subjetividade, colocando-se em questão, assim as
concepções racionalistas de sujeito. As perspectivas que teori-
zam o pós-modernismo têm celebrado, por sua vez, a existência
de um “eu” inevitavelmente performativo. Tem-se delineado, em
suma, no contexto da crítica antiessencialista das concepções ét-
nicas, raciais e nacionais da identidade cultural e da “política da
localização”, algumas das concepções teóricas mais imaginativas
e radicais sobre a questão da subjetividade e da identidade.

A cultura define as diferenças de gênero. O conceito de iden-


324 tidade de gênero serve para uma distinção entre natureza e cultura.

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 324 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

A bióloga e historiadora da ciência Donna Haraway (2004, p. 220)


em “gênero para um dicionário marxista, a política sexual de uma
palavra” afirma que

Marx e Engels teorizaram a relação econômica de propriedade


como a base da opressão das mulheres no casamento, de modo
que a subordinação das mulheres pudesse ser examinada em
termos das relações capitalistas de classe, mas não em termos
de uma política sexual específica entre homens e mulheres.

A maior parte dos trabalhos sobre gênero aborda a perspec-


tiva feminina, embora trate de mulheres e de homens. Adriana Pis-
citelli (2009, p. 147) faz a distinção entre masculino e feminino uma
vez que não se esgota os sentidos do gênero, devendo-se pensar em

como as construções de masculinidade e feminilidade são cria-


das na articulação com outras diferenças, de raça, classe social,
nacionalidade, idade; e como essas noções se embaralham e
misturam no corpo de todas as pessoas, inclusive aquelas que,
como intersexos, travestis e transexuais, não se deixam classi-
ficar de maneira linear como apenas homens e mulheres.

Entretanto, Buttler (2003) chama atenção ao risco do discur-


so restritivo de gênero ao insistir no binarismo homem/mulher, pois
assim se reduz a possibilidade de pensar na alteração de uma ação re-
guladora de poder. Nesse sentido, deve-se levar em conta a existência
travestis e transexuais que hibridizam em seus corpos contornos e
características consideradas femininas e masculinas; e, portanto, não
podem ser classificados nem como homens nem como mulheres.
Nesse contexto da dimensão entre as relações de poder que
atravessam o aspecto relacional e performativo do conceito de gênero
Gomes (2008) acredita que os modelos de gênero se constroem em
uma perspectiva relacional, sendo que o que é visto culturalmente
pelo masculino só faz sentido a partir do feminino, e vice-versa, ape-
sar dessa simbolização atravessar vários pares relacionais tais como
homem-homem, mulher-mulher, e homem-mulher, que expressam
padrões de masculinidade e feminilidade. Buttler (2004, p. 16) en-
tende que “diferença sexual é o lugar onde a questão concernente 325

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 325 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

à relação do biológico com o cultural é colocada e recolocada, onde


é preciso e pode ser colocada, mas onde não pode, a rigor, ser res-
pondida”. Como gênero é uma construção social, e atualmente em
alguns países existem mais identidades sexuais do que o feminino
e o masculino, como transexuais, travesti, pessoas com suas perfor-
mances reconhecidas e assumidas, nessa condição são aceitas legal-
mente e obtidas mediante tecnologia.

Considerações finais

Ao procurar revisar a literatura sobre as contribuições teóricas


de autores que abordam os principais debates acerca das questões de
gênero. E, ao avaliar com base nessas teorias as tendências e os con-
textos dos significados, bem como se constroem os papéis dos referi-
dos significados culturais para essas diferenças. Observamos que nos
pensamentos expressos, na contemporaneidade, as diferenças sexuais
são hierarquizadas dentro de uma maneira de pensar engessada e dual.
Ao adentrar-se na problemática dos conceitos, teorias, e com-
preensões das condições sob as quais a transformação social de gê-
nero é possível, aponta-se para a necessidade de se tirar a venda
dos olhos e chamar atenção para a questão da admissão de novos
paradigmas. Chama atenção de que todos os mecanismos sobre as
noções de masculino e feminino podem se desconstruir e desnatu-
ralizar, e assim, desenvolve-se um olhar cauteloso sobre o discurso.
Nesse sentido confirma-se a citação de Scott (1995) quando argu-
menta que é necessário desconstruir os vícios do pensamento oci-
dental e relativizar as definições de masculino e feminino, buscando
principalmente um novo olhar sobre os símbolos e as linguagens.
Por fim, reconhecer que o posicionamento das mulheres quan-
to a sua própria condição, delas e de outras no tocante à raça/et-
nia ou de classe possui características heterogêneas. As lutas so-
ciais contra a opressão se inserem ou clamam para entrar no debate
a questão da sociedade de classes. Ao mesmo tempo as demandas
aliam igualdade de condições sociais e reconhecimento à diferença.

326

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 326 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Referências
ALMEIDA, M. I. M. Masculino/Feminino: tensão insolúvel. Rio de
Janeiro: Rocco, 1996.
AMÂNCIO, L. O gênero no discurso das ciências sociais. Análise so-
cial, v. 38, n. 168, pp. 687-714, 2003.
BANDITER, E. XY: sobre a identidade masculina. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1993.
BUTTLER, J. Regulações de gênero. Cadernos Pagu, n. 42, pp. 249-
274, 2014.
BUTTLER, J. Undoing Gender. N.Y: Routledge, 2004.
BUTTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CASTELLS, M. Fim de milênio. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
CECARELLI, P. R. A Construção da Masculinidade. Percurso: Revis-
ta de Psicanálise, n. 19, pp. 49-56, 1997.
CONNELL, R. W.; MESSERSCHMID, J. W. Masculinidade hege-
mônica: repensando o conceito. Estudos feministas, v. 21, n. 1, pp.
241-282, 2013.
DORAIS, M. O homem desamparado. São Paulo: Loyola, 1994.
GOMES, R. Sexualidade masculina, gênero e saúde. Rio de Janeiro:
FIOCRUZ, 2008.
HALL, S. Quem Precisa de identidade? In: SILVA, T. T. (Org.). Iden-
tidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis:
Vozes, 2014. Pp. 103-133.
HALL, S. The work of representation. In: HALL, S. (Org.). Represen-
tation: cultural representations and signifying practices. Londres:
Sage/The Open University, 1997.
HARAWAY, D. “Gênero” para um dicionário marxista, a política se-
xual de uma palavra. Cadernos Pagu, n. 22, pp. 201-246, 2004.
327

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 327 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

IRIGARAY, L. This Sex Which Is Note One. Ithaca, Nova York:


Cornell University Press, 1985.
NADER, M. B.; CAMINOTI, J. M. Gênero e poder: a construção da
masculinidade e o exercício do poder masculino na esfera domés-
tica. 2014. Disponível em: htpp://vww.encontro2014.rj.anpuh.org/
resources/anais/28/1400262820_arquivo-generoepoderaconstrução-
dasnasculinidadeeoexerciciodopoder
PISCITELLI, A. Gênero: a história de um conceito. In: ALMEIDA, H.
B.; SZWAKO, J. E. Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis&Ver-
tecchia, 2009. Pp. 116-148.
SAFFIOTI, H. I. B. O Poder do Macho. São Paulo: Moderna, 1987.
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação
& Realidade, v. 20, n. 2, pp. 5-22, 1995.
SILVA, S. G. A Crise da Masculinidade: uma crítica a identidade de
gênero e à literatura masculinista. In: Instituto de Medicina Social
– Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.
SILVA, S. G. Masculinidade na história: a construção cultural da dife-
rença entre os sexos. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 20, n. 3, pp.
8-15, 2000.
WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e
conceitual. In: SILVA, T. T. (Org.). Identidade e diferença: a pers-
pectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2014. Pp. 7-72.

328

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 328 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Reflexões sobre Raça, Racismo e Negritude no Brasil

Jamil Amorim de Queiróz


Carlos A. Gadea

Os estudos culturais e sociais recentes têm sido protagonistas


de uma série de interessantes discussões em torno de temas como
o racismo e o antirracismo, as identidades coletivas e as diferenças
culturais. Seus repertórios analíticos e implicações teóricas manifes-
taram inegáveis conexões com problemas políticos e culturais con-
cretos, relacionados, frequentemente, com as chamadas políticas de
reconhecimento, o multiculturalismo e a democracia. No geral, têm
sido as formas de interpretação do racismo em sociedades particu-
lares o centro das atenções, assim como a análise e a descrição de
diferentes estratégias político-culturais que têm sido impulsionadas
para poder “superar-se” práticas sociais discriminatórias.
O interesse por reavaliar a presumível problemática do racismo
e do antirracismo revela, aqui, o seguinte interesse: apresentar as li-
nhas de interpretação sobre as noções de raça e racismo por parte de
algumas visões analíticas desenvolvidas no contexto brasileiro, bem
como compreender em que medida o cenário das desigualdades, dos
preconceitos e das discriminações raciais, enraizadas historicamente
na vida social, têm efetivamente adquirido novos contornos, sem que,
necessariamente, tenham se superado as velhas amarras. Considera-
-se que ao introduzir uma breve discussão entrelaçando as noções de
racismo com a de negritude, pode-se assumir a necessidade de es-
tabelecer novas discussões em torno do atual significado político e
cultural da identidade negra e das próprias relações raciais.

Raça e racismo

Como temática de análise, a raça assume uma importância


fundamental na Sociologia Brasileira, na tentativa de compreender 329

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 329 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

e explicar o fenômeno da desigualdade social e, fundamentalmente,


racial. Raça é um termo abrangente que muitos estudiosos prefe-
ririam não ter utilizado, mas pela frequência da sua utilização em
diferentes situações, tornou-se sempre protagonista principal nas
discussões acadêmicas e políticas ao longo da história, nos períodos
Colonial, Monárquico, Imperial e Republicano e, de forma proemi-
nente, nos iniciais debates acadêmicos do século XIX.
Schwarcz (1993) teria contribuído com essa discussão teórica
na sua obra intitulada “O espetáculo das raças”, objetivando o estu-
do do período de 1870 a 1930, quando as ideias sobre raça e racismo
teriam chegado ao Brasil no momento do “nascimento” dos centros
de estudos brasileiros, momento do alvorecer acadêmico influencia-
do pelos pensamentos europeus (de acordo com algumas teorias)
como o positivismo, o evolucionismo, o determinismo etc. As teorias
“deterministas” consideravam que a sociedade brasileira estava fa-
dada ao fracasso por conta da existência de “raças inferiores”, quer
dizer, de um grupo populacional que não estaria em sintonia com
os preceitos “científicos” considerados válidos desde estas perspec-
tivas teóricas. Por outro lado, as teorias de corte “positivistas” pro-
porcionariam progresso e evolução da sociedade brasileira. Essas
visões contraditórias tornaram-se o impulso para o surgimento de
certa “originalidade” no pensamento nos centros de estudos brasi-
leiros, em um contexto que raça e cor são entendidas como atributos
socialmente elaborados e tratados como critérios classificatórios e
princípios de seleção racial e social.
Essa conjuntura acadêmica começa a ser retratada nas dife-
renças regionais (Rio de Janeiro, São Paulo, Recife) acerca do pen-
samento sobre raça e racismo, percebidas com o término da Guerra
do Paraguai em 1870, acompanhada com a preocupação com a cons-
trução de um novo regime político, a conservação de uma hierarquia
social escravista e uma pequena classe social urbana. Com essas in-
quietações aguçadas funda-se, por exemplo, o Partido Republicano,
realiza-se a promulgação da Lei do Ventre Livre e a estruturação
dos centros, institutos, museus, as faculdades de Direito e de Medi-
cina, com o objetivo de alcançar o pensamento “genuíno” brasilei-
330 ro. Nesses centros, o tema raça foi assunto recorrente e motivo de
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 330 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

acaloradas discussões, onde os atores foram chamados de homens de


sciencia, que procuraram dar guarida às teorias do momento para
analisar a sociedade e indicar uma direção a ser tomada. Esses pen-
sadores, da elite brasileira, eram literários, médicos pesquisadores
que se “incumbiram” de compreender o significado e o sentido do
Brasil enquanto nação e espaço cultural particular, valendo-se, como
eixo de debate, da pauta sobre a “miscigenação cultural” nos estudos
do problema racial para poderem-se demonstrar os problemas e de-
senhar as soluções a esses problemas na sociedade brasileira.
Mesmo considerando um cenário sombrio sobre a temática do
racismo, Telles (2003) enfatiza que o Brasil teria se notabilizado por
sustentar a crença da “democracia racial” e pela apologia da mestiça-
gem: o Brasil seria um país que incluía os negros e, ao mesmo tempo,
as relações raciais gozariam de harmonia e careceriam de conflitos
sérios. Telles, justamente, teria colocado em xeque a crença da de-
mocracia racial e ignorado o fenômeno da mestiçagem, argumentan-
do que o Brasil se caracterizou, historicamente, pela exclusão racial.
Enfim, para a perspectiva clássica, haveria pouco ou nenhum racismo
no Brasil; e, em outro sentido, o racismo seria generalizado. Telles
(2003) analisa que mesmo com os argumentos da harmonização das
relações raciais no Brasil, devido a miscigenação, essa questão foi de-
safiada por estudiosos, que procuraram demonstrar que as relações
raciais no país são caracterizadas não pela inclusão, mas pela exclu-
são, e que os brancos e brancas brasileiras continuam a ser privilegia-
dos(as), além de possuírem uma parte desproporcional da riqueza e
do poder. Dados estatísticos assim o demonstrariam. Esse desenho se
concretizou por conta da divisão de duas gerações de pesquisadores
na história da pesquisa sobre relações raciais no Brasil. A primeira
geração sustentava a tese da “democracia racial”, da convivência sem
conflitos demasiadamente marcantes, advinda da produção de Gilber-
to Freyre (1998) que entendia as relações raciais harmônicas e com
poucos conflitos. A segunda geração desafiava a teoria da democracia
racial, localizada na Universidade de São Paulo (USP), na área de So-
ciologia, tendo como maior referência Florestan Fernandes (1972),
que entendeu as relações raciais sim era carregada de conflitos, de-
nunciando o racismo no Brasil. 331

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 331 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Outro aspecto analítico apresentado é a análise integrada das


relações raciais brasileiras, onde procede com relato mais abrangen-
te e integrado do tema no Brasil, não “privilegiando” a miscigenação
nem os conflitos raciais, proporcionando uma discussão do ponto de
vista estatístico e procurando entender a aplicabilidade dos dados
na vida das pessoas. Além disso, comparam os modelos da temática
norte-americana e brasileiro, pauta que normalmente os estudiosos
possuem o “dever” de estarem atentos. “O Brasil e os Estados Uni-
dos são os dois países do Hemisfério Ocidental, tanto em tamanho,
quanto em suas populações de origem africana” (TELLES, 2003, p.
27). Essas verdades estatísticas fundamentaram tanto as crenças so-
bre as relações entre negros e brancos no Brasil quanto as análises
sociológicas sobre o tema. O estudo apresentado com suas particu-
laridades encontra uma oxigenação menor na exposição detalhada
da formação nacional e dando maior ênfase na visão macrossocioló-
gica sobre as políticas de Estado para minimizar ou maximizar as
lutas antirracistas dos movimentos sociais negros.
Neste sentido, Telles (2003) destaca uma necessária revisão
das discussões sobre as relações raciais brasileiras e a necessária
inserção de políticas de ações afirmativas, baseadas nos estudos pro-
venientes da UNESCO dos últimos tempos, em que as desigualda-
des entre brancos e negros no acesso a bens materiais, educativos,
simbólicos e sociais se tornou uma realidade inquestionável. A par-
tir de então, retoma a direção dos resultados dos órgãos oficiais que
compartilha com a sociedade brasileira sobre escolaridade, renda,
trabalho etc., que levam aos índices das desigualdades entre negros
e brancos, desenhando uma reflexão de raça e de racismo que termi-
na conduzindo à suposta determinação da hierarquia socioeconômi-
ca do Brasil para a sua explicação.
Por outro lado, Paixão (2014) reflete em uma direção mui-
to semelhante, apontando alguns períodos históricos com relação
à produção intelectual sobre as relações raciais. O primeiro período
seria o demarcado pelo debate entre Nina Rodrigues e Sílvio Ro-
mero, enfocado sobre o tema da mestiçagem social e o branquea-
mento do povo brasileiro e seus efeitos sobre a sociedade do Brasil.
332 O segundo momento do debate sobre relações raciais no Brasil foi
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 332 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

marcado pela tradição culturalista, fundamentada pelos argumen-


tos do sociólogo Gilberto Freyre e pelos estudos do médico Arthur
Ramos, ambos demarcados pelo que compreendiam como “caráter
harmonioso” do padrão brasileiro de relacionamentos raciais. Outra
importante contribuição para reforçar a democracia racial foi o am-
biente acadêmico norte-americano, ligado à tradição da Escola de
Chicago, de grande influência na cena acadêmica no país.
Um terceiro momento foi inaugurado pelos estudos de Flores-
tan Fernandes, iniciado por estudos financiados pela Organização das
Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) sobre os
contatos entre pretos e brancos no Brasil, no embalo de uma agenda
internacional acerca das relações raciais em diferentes países. Este
teria sido seguido por outros pesquisadores importantes, que pare-
ceram deixar de ler ou interpretar as relações raciais pelo enfoque de
uma pretensa harmonia racial, classificando-a como um mito.
O quarto momento ou período dos estudos sobre as relações ra-
ciais no Brasil foi marcado pelo intensivo uso de demarcadores demo-
gráficos para a fundamentação das pesquisas, o uso de estatísticas e as
pesquisas comparativas e de caráter quantitativas, inauguradas pela
tradição dos sociólogos da Universidade de São Paulo (USP). Diante
disso, Paixão sinaliza que o enredo do país, em suas várias dimensões,
abraçou um modelo de desenvolvimento socioeconômico que natu-
ralizaria a convergência das linhas de cor e de classe, levando o con-
tingente portador das marcas raciais negras a irem desaparecendo
progressivamente e, com isso, livrar o país de um legado bárbaro.
Esse modelo, diz o autor, encontra-se no Brasil desde o final
do império, e quem teria colocado o tema do subdesenvolvimento,
do atraso e das mazelas sociais dentro de sua chave racial teria sido a
própria elite pensante do país. Por outro lado, pode-se considerar que
o país, derivado de um modelo de desenvolvimento concentracionista,
abriga um grave problema reportado às desigualdades sociais, que
afeta a maioria dos brasileiros e brasileiras. Essa soma de reflexões
traz trágicas lembranças das sequelas do racismo, sendo talvez pos-
sível forjar um amplo consenso social para condenar essas ideologias
e práticas para o estabelecimento de um novo marco de sociedade,
baseado no princípio do respeito e da valorização da diversidade. 333

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 333 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Como vimos, a problemática apresentada pela população negra


se tem consolidado a partir da constatação de que a denominada “de-
mocracia racial” (AZEVEDO, 1975) deu sustento ideológico e polí-
tico à inexistência de “barreiras de cor” e de segregações raciais na
configuração da moderna nação brasileira. Como já havia observado
Florestan Fernandes (1972), os setores favorecidos economicamente
pela dinamização do desenvolvimento capitalista iam dar as costas
ao drama humano dos descendentes dos ex-escravos e ignorariam
as implicações negativas da falta de integração da sociedade nacional
ao nível das relações raciais. Sendo assim, tanto a tonalidade da pele
quanto outras formas figuradas da linguagem “naturalizaram” gran-
des desigualdades sociais e legitimaram práticas discriminatórias que,
aos poucos, foram comprometendo a autoimagem brasileira de demo-
cracia racial (GUIMARÃES, 2005, p. 40).
Não obstante, a partir dos anos de 1950, e no âmbito da Fren-
te Negro Brasileira, foi possível, por exemplo, uma articulação mo-
bilizatória que colocava o racismo como problemática iniludível na
discussão sobre a cultura nacional. A suposta “discriminação racial”
nos diferentes espaços de sociabilidade provocou estratégias que
veiculariam uma “valorização do legado afro-brasileiro” e uma ênfa-
se na importância desse grupo populacional na formação econômica
e cultural do país. Sem dúvida, este gesto pareceria contestar o cha-
mado “racismo científico”, muito presente e divulgado como doutri-
na ou ideologia em fins do século XIX e começos do XX, segundo
o qual existiriam raças cujas características biológicas ou físicas
corresponderiam a capacidades psicológicas e intelectuais, simulta-
neamente coletivas e válidas para cada indivíduo (WIEVIORKA,
2006). Assim, pode-se afirmar, como primeira constatação, que esses
primeiros “movimentos anti-racistas” iniciados nos anos de 1950,
assim como o denominado “racismo científico”, enquadravam-se em
situações de conflito surgidas de lógicas de discriminação sociais
baseadas numa série de preceitos ideológicos herdeiros do positi-
vismo filosófico e do evolucionismo social, baluartes do projeto da
modernidade brasileira. De todas as maneiras, as primeiras mobili-
zações também pareciam criticar a série de mecanismos institucio-
334 nais que permitiriam manter os negros em situação de inferioridade
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 334 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

social, sem que se tornasse necessário que os preconceitos racistas


se manifestassem, e sem ser necessária uma ideologia racista para
legitimar a exclusão e a discriminação.
Posteriormente, no contexto dos movimentos pela demo-
cratização política surge, em fins dos anos de 1970, o Movimento
Negro Unificado. Este movimento procuraria dar uma nova pers-
pectiva ao tratamento das desigualdades raciais no Brasil, muitas
vezes amparado em estudos que demonstravam o caráter racista da
desigualdade social. Para o Movimento Negro Unificado, a consta-
tação do “caráter negro da desigualdade” no Brasil converter-se-ia
em fundamento político válido para levar adiante uma luta social
que associava demandas culturais com a luta por uma igualdade de
oportunidades. De fato, o que nos anos de 1980 e 1990 desenhava-se
no horizonte das lutas antirracistas no Brasil era uma constatação
política de grande peso: que não unicamente os que ocupam os es-
tratos sociais inferiores são fundamentalmente os negros, senão que
a desigualdade aludida é persistente. Ao compararem-se diferentes
gerações de brancos e de negros, um branco teria maiores possi-
bilidades de ascensão social que um negro, inclusive quando pais
de ambos apresentam níveis socioeconômicos parecidos (COSTA,
2002). Esta constatação, dentre outras, seria a que, fundamental-
mente, derrubaria qualquer pretensão por considerar a “democracia
racial” o modelo funcional na configuração da moderna nação bra-
sileira. Se o caráter individualista da “ascensão social” era coerente
com o projeto da “democracia racial”, pode-se observar que as con-
dições de existência da população negra não comportaram a “lógi-
ca igualitarista” pretendida pelo projeto de nação. Enquanto para
alguns as condições materiais de existência poderiam ser melho-
radas num esquema emanado desse projeto de “democracia racial”,
podendo-se, dessa forma, anular eventuais desigualdades herdadas,
pode-se perceber que a negação de uma identidade particular e a
desigualdade aludida estão relacionadas a fatores mais subjetivos,
próprios da questão racial: o preconceito, o estigma e a impossibili-
dade de uma construção discursiva própria.
Outra perspectiva interessante seria a de Munanga (1998)
para quem o racismo é um fenômeno que tem uma história conhe- 335

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 335 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

cida e inventariada, cujo lugar de origem é reconhecido em um fe-


nômeno ligado à história da cultura e da civilização ocidental no
espaço temporal do século XVIII e XIX. Do ponto de vista de uma
ideologia, o racismo não é um fenômeno universal, pois tem uma
história conhecida e situada na civilização ocidental. Munanga en-
fatiza que a ideologia racista é um sistema perceptivo essencialista,
fundamentado no curioso sincretismo do fato sociológico com o fato
biológico. Nessa argumentação, pode-se dizer que se não existe bio-
logização das diferenças sociais, não há racismo, no sentido estri-
to da palavra; portanto, o racismo pode se apresentar sob diversas
maneiras, muitas das vezes seguindo lógicas radicalmente opostas,
como por exemplo, racismo de exploração ou racismo de extermí-
nio. Nesse aspecto, as ações antirracistas, por vezes, só podem vis-
lumbrar os preconceitos raciais quando forem verbalizados, decla-
rados e até mesmo proclamados.
As formas de preconceito podem levar a várias formas de dis-
criminação, por exemplo, discriminação socioeconômica, de cultura.
Possuem diversas maneiras de se expressar – violência física, re-
jeição, tratamento desigual, entre outras. A discriminação pode ser
comparada a segregação para aumentar as desvantagens do grupo
discriminado. Nesse contexto, o racismo torna-se uma crença que
movimenta a existência das raças hierarquizadas entre o físico e o
intelecto, o físico e o cultural. O racista cria a raça no sentido so-
ciológico; isto é, no imaginário do racista não se trata de, exclusiva-
mente, um grupo “inferior” definido pelos traços físicos. No Brasil
a segregação se entrecruza o critério de raça com o de classe social,
contrariamente à segregação institucionalizada pelas leis que exis-
tiram na África do Sul e nos Estados Unidos, por exemplo.
O modelo anticolonialista clássico do racismo supõe que a tese
da desigualdade entre as raças tem como função dominante legitimar
um processo de exploração. O racismo seria essencialmente a arti-
culação de uma exploração econômica, implicando uma dominação
política e uma legitimação ideológica. Nessa perspectiva o precon-
ceito de raça é colocado como uma atitude social. Mesmo com esses
argumentos Munanga (1998) questiona como a perspectiva de luta
336 de classes consegue explicar manifestações racistas contra os judeus,
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 336 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

bem como o conceito de raça é de origem cultural, mesmo se ele serve


aos fins extremamente políticos no seio da luta de classes. Assim, é o
aspecto cultural que, no fim das contas, é o aspecto mais importante.
Dentre as críticas existentes às discussões sobre relações ra-
ciais aos intelectuais brasileiros, pela postura elitista e distancia-
mento dos negros brasileiros, está Guerreiro Ramos (1957), cujas
ideias apontavam para a existência de uma “patologia social do
branco”, onde os negros eram levados a negar sua condição estética.
Segundo o autor, essa elite analisava a cultura negra como se fosse
estrangeira, como se os problemas raciais que a população negra
sofria não fizesse parte das relações raciais brasileiras, como se a
questão não fosse nacional, com envolvimento de todos os brasilei-
ros, inclusive os brancos. A percepção foi de que o racismo era uma
invenção ou uma importação temática dos Estados Unidos ou da
África do Sul. Nessa discussão Guerreiro Ramos distingue algumas
categorias: negro-vida e negro-tema – nesse sentido, portanto, exis-
te o tema do negro e existe a vida do negro. Neste sentido, Ramos
(1957, p. 171) coloca que:

O negro-tema é uma coisa examinada, olhada, vista, ora


como ser mumificado, ora como ser curioso, ou de qualquer
modo como um risco, um traço da realidade nacional que cha-
ma atenção.

O negro-vida é, entretanto, algo que não se deixa imobilizar;


é despistador, proteico, multiforme, do qual, na verdade, não
se pode dar visão definitiva, pois é hoje o que não era ontem
e será amanhã o que não é hoje.

Nestas afirmações, possibilita-se uma leitura sobre as relações


raciais e para uma política negra de cunho humanista, pois qualquer
forma de classificação e identificação do homem seria uma maneira
de desumanização. Essa reflexão elabora o caráter de defesa do ser
humano e, em especial, do negro, como ser dinâmico e também in-
decifrável. Nessas proposições da vida ou realidade efetiva, o negro
deve assumir o seu destino, reconstruir a si mesmo nesse enfren-
tamento das particularidades da sociedade brasileira. Diante desse 337

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 337 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

sintético quadro crítico exposto por Guerreiro Ramos é possível ob-


servar uma carga de complexidade sobre as relações raciais, mesmo
rompendo com visões clássicas do negro que “impõe” estereótipos
e que, no contraponto, perde de vista a dimensão significante da
negritude no país. Essa complexidade possui um viés de dificuldade
da discussão científica na busca de um conceito de patologia social,
onde o autor se refere à concepção sociológica do que pode ser con-
siderado “normal” ou “patológico” levando-se em conta que o autor
utilizou os estudos de Durkheim, refletindo sobre os conceitos como
variáveis contextualizadas em uma mesma sociedade, considerando
os períodos de uma transformação social.
De maneira semelhante, alguns estudos recentes sobre as pró-
prias dinâmicas sociais discriminatórias advertem que o racismo
contemporâneo não parece seguir explorando o simples “distancia-
mento” ou “estranhamento” entre as pessoas, e sim a “proximidade”
e o temor dos indivíduos de tornarem-se, presumivelmente, cada vez
“mais iguais”. Assim o constata Wieviorka (2006), ao afirmar que o
suposto “novo racismo” parece constituir-se com base em processos
de “diferenciação social”, sugerindo que é o próprio temor pela dife-
rença cultural o que traz por consequência estratégias de segregação,
de estigma e de marginalização. Desta maneira, a discriminação e o
racismo contemporâneo se materializam na suspeita de que os indiví-
duos ou grupos culturais se apresentam cada vez “mais iguais”: iguais
em direitos, em oportunidades concretas, em circulação e visibilidade,
em capacidades discursivas e pressão política. Isto em absoluto supõe
o esquecimento eventual de estratégias ainda vigentes de estigmati-
zação e de segregação, da própria presença do racismo na atualidade.
Do que se trata é de um racismo que opera em base a específicos
contextos e situações sociais, que atua a partir de novas ideologias
individualistas e competitivas na sociedade. Um exemplo pode estar
no que Andrews (1998) destaca ao estudar as mudanças no mundo
do trabalho da população negra da cidade de São Paulo. Menciona,
por exemplo, que a situação de “mais liberdade” gerada pelas mudan-
ças modernizadoras na economia a partir dos anos de 1950 e 1960
levou a uma competição aberta entre a população branca e os negra,
338 uma competição de grande intensidade, ao perceber, os primeiros, que
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 338 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

àqueles espaços por eles definidos a priori como próprios na escala


social e laboral estariam agora em visível risco. Em linhas gerais, a
ascensão social estaria delimitando novas estratégias racistas e novas
reações antirracistas, considerando-se, desta forma, que é a percepção
de vulnerabilidade e os riscos próprios dos espaços sociais atuais uma
das fontes do “novo racismo”.
A partir desse diagnóstico, e como bem menciona Guimarães
(2005, p. 51), qualquer análise sobre o racismo no Brasil não pode
negligenciar as particularidades de três grandes processos históri-
cos: primeiramente, as que fazem referência ao processo de formação
da nação; em segundo lugar, as que resultam do “intercruzamento”
ideológico e discursivo da ideia de “raça” com outros conceitos de
hierarquia social (classe, status, gênero) e, por último, as que acom-
panharam as transformações econômicas, sociais e regionais. Em
tese, estes processos históricos estariam confirmando “a diferencia-
ção entre tipos de racismo (que) só pode ser estabelecida através da
análise de sua formação histórica particular (GUIMARÃES, 2005,
p. 37). Neste sentido, se a ideia de racismo só existe a partir de uma
realidade histórica específica e, desta maneira, com relação a outras
formas sociais existentes, interessa saber quais seriam as “condições
concretas” que tornam a esta forma de diferenciação social algo so-
cialmente pertinente na atualidade.
O importante a ser destacado é que o racismo, se bem pode
conservar certas características gerais, adquire significação numa
determinada prática social histórica e espacialmente contextualizada
(HALL, 2003). Isto não quer dizer que preconceitos e atitudes racistas
não pareçam depender, de forma direta, da existência prévia de uma
ideologia ou doutrina racista, já que um indivíduo “só pode ter cor e
ser classificado num grupo de cor se existir uma ideologia em que a
cor das pessoas tenha algum significado” (GUIMARÃES, 2005, 47).
Não obstante, presume-se que esta “ideologia” sofre uma mutação e
deslocamento considerável ao inserir-se na especificidade histórica dos
(e nos) contextos e entornos em que entra em cena. O “local do racis-
mo” estaria determinado por situações de conflito e manifestações de
instabilidade constantes, explicando-se como simples “espaço narrati-
vo” usado instrumentalmente por certos grupos sociais ou indivíduos 339

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 339 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

em função de uma suposta posição numa determinada ordem de “re-


lações raciais pré-existentes”. Por isso, não é possível, por exemplo,
considerar que os “sentimentos de superioridade” racial se produziram
unicamente durante o regime escravocrata, senão que se deve com-
preender que este regime só gerou uma forma particular de racismo1.
O uso sociológico da categoria “raça” se fundiu com as estraté-
gias políticas (e pedagógicas) antirracistas do movimento social ne-
gro, assim como das diversas organizações sociais e comunitárias que
compartilhavam o diagnóstico da existência das desigualdades sociais
como causadas, em grande medida, pelas adscrições raciais (COSTA,
2006). Esta política da negritude pareceria sustentar-se, de forma ge-
ral, na ideia de que se os próprios “negros consideram que as raças
não existem, (acabariam) também por achar que eles não existem in-
tegralmente como pessoas, posto que é assim que são, em parte, per-
cebidos e classificados por outros” (GUIMARÃES, 2005, p. 67). Quer
dizer, que o combate ao racismo passou a ser efetivado racializando a
sociedade, já que a ideia de “raça” é a que continua a diferenciar e pri-
vilegiar as oportunidades de vida das pessoas (GUIMARÃES, 2005).
Para os chamados estudos das desigualdades raciais, ou os “estudos
raciais” (COSTA, 2006), em que desigualdades socioeconômicas po-
dem ser explicadas por variáveis como cor ou “raça”, este gesto ana-
lítico teve como objetivo, por um lado, pautar politicamente uma luta
contra as segregações e discriminações raciais e, por outro lado, uma
luta pela recuperação da autoestima negra, algo que o movimento
negro passa a assumir a partir de um “discurso racialista”2. Ressusci-
ta-se a ideia de “raça” como estratégia de luta ao mito da “democracia
racial”, numa atitude que ao supor racializar a sociedade acredita-se na
visibilidade deliberada de situações de conflito construídas em torno
das desigualdades e discriminações raciais.

1 Apreciação análoga ao que Hall (2003, 335) afirma: “[...] que tipo de momento
é este para se colocar a questão da cultura popular negra? Esses momentos são
sempre conjunturais. Eles têm sua especificidade histórica; e embora sempre exi-
bam semelhanças e continuidades com outros momentos, eles nunca são o mesmo
momento. E a combinação do que é semelhante com o que é diferente define não so-
mente a especificidade do momento, mas também a especificidade da questão [...]”.
340 2 “Racialista no sentido de evocar o carisma da raça negra e de visar a formação
de uma identidade racial negra” (GUIMARÃES, 2005, p. 227).
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 340 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Mas em que consiste esta “estratégia” específica de racialização


da sociedade? Sem dúvida, a percepção racializada de si mesmo e do
outro passou pela “reconstrução da negritude a partir da rica herança
africana – a cultura afro-brasileira do candomblé, da capoeira, dos
afoxés, etc. – mas também da apropriação do legado cultural e políti-
co do ‘Atlântico Negro’” (GUIMARÃES, 2005, p. 61). Um “discurso
racialista de autodefesa” desta característica era o único possível de
poder recuperar um sentimento de dignidade abalado e, desta for-
ma, exercitar um “ressurgimento étnico” amparado na ideia de “uma
terra” a ser recuperada através da memória (GUIMARÃES, 2005).
Assim, a noção de africanidade se define por um potencial político de
dupla direção: por um lado, como narrativa geradora de um “grupo
de pertença” e, pelo outro, como discursividade demarcadora de uma
ação política e estratégica a ser empreendida. Os negros, desta forma,
estariam em condições práticas de desenvolver estratégias antirra-
cistas, de mapear cenários de conflito social e estabelecer pautas polí-
ticas de acordo ao seu auto-reconhecimento como herdeiros de uma
“descendência comum”. Esse “pertencimento” tornar-se-ia chave para
atuar com referência a outros grupos socialmente existentes.
Outra maneira de compreender este processo de racialização da
sociedade provém da suposta existência de um eventual vínculo entre
“a comunidade” e a “pertença racial”; sugerindo-se que a categoria
“raça” não poderia existir sem ter-se consciência dela e, assim, que a
própria “pertença comunitária” seria traduzível, de certa forma, em
alguns fenômenos históricos que resultaram em processos sociais de
“guetização”. O “gueto”, termo derivado dos estudos da denominada
Escola de Chicago (COULON, 1995; WIRTH, 2002), parece ter um
significado histórico e um alcance sociológico que, justamente, permi-
tiria compreender alguns dos processos de exclusão social. Loïc Wa-
cquant (2005; 2004; 1996) assim o considerou, ao definir o processo
de “guetização” da população negra como um processo histórico de
exclusão pelo critério da raça: o “gueto” é uma formação sócio-espa-
cial uniforme delimitada por critérios raciais ou culturais e baseado
no afastamento forçado de uma população negativamente tipificada.
O “gueto” seria “uma formação étnico-racial que reúne as quatro prin-
cipais ‘formas elementares’ de dominação racial – o preconceito, a dis- 341

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 341 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

criminação, a segregação e a violência excludente” (WACQUANT,


1996, p. 148). Como é notório, tem sido a herança da Sociologia de
Chicago o que permitiu a Wacquant sugerir a associação entre um
processo de “exclusão social forçado” e o estabelecimento de princí-
pios de organização social que respondem a estratégias singulares de
sobrevivência material e simbólica. Quer dizer que a uma profunda
segregação sócio-espacial correspondem princípios ordenadores de
uma realidade sociocultural que os próprios indivíduos negros elabo-
ram dentro dos seus enclaves territoriais.
Se o “gueto” é uma forma organizacional elaborada sob o cri-
tério racial e uma resposta a uma “segregação estrutural”, o negro
se apresenta salvaguardado por uma série de dispositivos institucio-
nais e de solidariedade típicos do “ideal comunitário” (TÖNNIES,
2002). Não obstante, ele foi adquirindo, com o passar das gerações,
significados e sentidos muito diferentes. Aquela evidente “âncora de
negritude” geradora de um específico espaço da negritude, e paradig-
mática da experiência negra norte-americana, pareceu ir tomando
novas formas. Por exemplo, o “gueto”3 passa a adquirir um caráter
estigmatizador com relação aos seus integrantes, tratando-se de um
fenômeno que conjuga os aspectos espaciais e raciais.
Assim, os “afro-americanos” “acumulam o capital simbólico
negativo atribuído à cor e à consignação a um território específi-
co, reservado e interior, ele próprio desvalorizado por ser o repo-
sitório dos elementos da classe mais baixa da sociedade e por ser
uma reserva racial” (WACQUANT, 2005, p. 148). O que se pretende
afirmar é que um espaço de contenção de valores sociais concretos
como pode ser o “gueto” não comporta as novas dinâmicas indivi-
duais e coletivas de acesso a bens tanto materiais quanto simbóli-
cos. Por um lado, apresenta-se uma plausível intolerância subjetiva
à própria noção de pertença a um espaço sócio-espacial considerado
“inferior” e denotativo de imobilidade social institucionalizada. Pelo

3 Para os argumentos a seguir, interessa defini-lo como sendo não simplesmente


“uma entidade espacial, nem mesmo um mero conjunto de famílias pobres, preso na
estrutura inferior da estrutura de classes: é sua qualidade singular de formação racial
342 que dá origem a uma teia de associações materiais e simbólicas entre cor, lugar e uma
série de outras características cujo valor social é negativo” (Wacquant, 2005, 147).
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 342 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

outro, e de forma fundamental, o pertencimento a uma determina-


da classe social e a adscrição racial já não parecem funcionar como
projeto de realização pessoal ou coletiva, continuamente renovado e
reconfirmado na vida diária. Se o “coletivismo” foi “a primeira opção
de estratégia para aqueles situados na ponta receptora da individua-
lização, mas incapazes de se auto-afirmar enquanto indivíduos se
limitados aos seus próprios recursos individuais” (BAUMAN, 2001,
p. 42), tudo indica que os integrantes daqueles espaços sociais es-
tigmatizados tendem cada vez mais a adotar estratégias altamente
individualizadas, voltadas para realizações individuais.
Desta maneira, pode-se dizer que, por exemplo, para muitos dos
jovens negros dos centros urbanos atuais, o que os distingue é preci-
samente um processo de individualização4 e diferenciação social que
parece contradizer os espaços típicos de afirmação pessoal e coletiva
pré-constituídos. Tanto os “afro-americanos”, os migrantes haitianos e
os “dominicanos” de Miami, bem como aqueles jovens negros do Par-
que da Redenção da cidade de Porto Alegre (apesar das evidentes dife-
renças de contexto e situações vividas) parecem dar testemunho desse
contemporâneo desenho cultural sobre as formas das sociabilidades.

Negritude e Identidade

No clássico livro de Zilá Bernd intitulado “O que é Negritu-


de”, a autora se propõe “refletir sobre os movimentos de tomada de
consciência de ser negro [...], rastreando as formas que adquiriu em
nosso país esse processo de conscientização que ficou conhecido pelo
nome de negritude” (BERND, 1988, p. 9). Para a autora, o “movimen-
to da negritude” teria dado início a partir da “crise de identidade”,
crise entendida como o resultado de uma perversa internalização das
ideologias racistas, dos preconceitos, por parte, inclusive, da própria
população negra. Assim, a negritude teria surgido da resistência e

4 Faz-se referência à “formação da individualidade” segundo Simmel (1977), em


que a individualidade cresce na medida em que se amplia o círculo social em torno
ao indivíduo (p. 742) e, ao aumentar a individualização (e assim, a repulsão dos
elementos do grupo) surgirá uma tendência centrífuga que servirá de ponte para 343
outro grupo (p. 743).
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 343 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

oposição aos estereótipos “introjetados” na sociedade acerca do indi-


viduo negro e a sua vida em sociedade. Enquanto posição intelectual,
assumia-se a negritude como “denominação negativamente conotada
para reverter-lhe o sentido, permitindo assim que a partir de então as
comunidades negras passassem a ostentá-lo com orgulho e não mais
com vergonha ou revolta (BERND, 1988, p. 17). Tendo nas suas ori-
gens as reflexões do escritor norte-americano William Edwards Du
Bois, o “movimento da negritude” se materializa na “tomada de cons-
ciência de ser negro”, pretendendo fazer reviver a autoconsciência do
negro americano, “propondo não uma volta à África, mas uma redefi-
nição do papel do negro em solo norte-americano” (BERND, 1988, p.
23). O objetivo de fundo seria denunciar a situação de discriminação
e de opressão econômica da população negra no país, transcendendo
as fronteiras, e impulsionando um processo de identificação racial que
não se esgotasse a realidades nacionais.
Desta maneira, o “movimento da negritude” se entende como
uma atitude de tomada de consciência de uma situação de discrimi-
nação, algo próprio ao “momento pontual de trajetória da constru-
ção de uma identidade negra”. Para Bernd (1988) a negritude se
condensaria no desenvolvimento dos “valores negros” no interior do
“combate político”, ou seja, na medida em que se torna eixo agluti-
nador para o posterior exercício político de uma identidade particu-
lar num contexto de opressão. E quais seriam os principais “lucros”
do movimento? Para a autora, o reconhecimento e a aceitação do
fato de “ser negro” e a revalorização da herança africana; a descons-
trução de um discurso que consagrava a supremacia racial branca;
o início de um processo de construção de uma autoimagem positi-
va, e uma atitude “proativa” para se desvencilharem da condição de
“objeto”, tornando-se “sujeitos” da própria história. O “movimento
da negritude” pretendia originar na população negra capacidades
políticas de ação a partir de uma racialização da sua individualidade,
tratando-se de um gesto que inseriria o negro em combate com as
ideologias, instituições e valores próprios da sociedade moderna.
A identidade negra teria sido “diluída” por ter estado vivendo
sempre em situação de “sobrevivência”. É neste contexto que a “cons-
344 ciência do oprimido” economicamente e discriminado culturalmente
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 344 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

toma forma na “militância negra”, em cuja base está o diagnóstico da


perda de identidade e da necessidade de recuperar “a própria histó-
ria” e, por consequência, da busca simbólica de uma África idealizada
(MUNANGA, 2009, p. 13). Por outro lado, a negritude se associa
a uma “personalidade cultural” própria, destacando-se uma diferen-
ça com o “mundo branco” baseada no “condicionamento histórico do
negro e de suas estruturas sociais comunitárias”, e não por alguma
explicação ancorada em diferenças biológicas (MUNANGA, 2009).
“Afinal, o que significam a negritude e a identidade para as bases po-
pulares negras e para a militância do movimento negro?”, pergun-
ta-se Munanga (2009, p. 14). Como já se mencionou anteriormente,
a negritude e a “militância negra” procuraram pautar politicamente
uma luta contra as segregações e discriminações raciais e, ao mesmo
tempo, enfatizar uma luta pela recuperação da autoestima negra, algo
que será exercido apelando a uma série de recursos culturais e histó-
ricos que desembocam no continente africano:

Poetas, romancistas, etnólogos, filósofos, historiadores etc.,


quiseram restituir à África o orgulho de seu passado, afirmar
o valor de suas culturas, rejeitar uma assimilação que teria
sufocado a sua personalidade (MUNANGA, 2009, p. 52).

Trata-se de um “esforço” intelectual e político de uma iden-


tidade que celebra a “personalidade coletiva”, visando o retorno às
raízes do negro como condição de um futuro diferente da redução
presente (MUNANGA, 2009, p. 53). Em definitivo, e como bem des-
taca Munanga (MUNANGA, 2009, p. 53), “a negritude aparece aqui
como uma operação de desintoxicação semântica e de constituição
de um novo lugar de inteligibilidade da relação consigo, com os ou-
tros e com o mundo”.
O “movimento da negritude” tem sido por demais influente no
contexto das sociedades culturalmente heterogêneas e com traços
evidentes de segregação étnico-raciais. Mas a partir de que compo-
nentes discursivos, retóricos e políticos adquiriu a sua forma? A ne-
gritude resultou numa “metanarrativa” acerca do que é próprio do
negro? Interessante recordar que seu pano de fundo é a constatação
345
da “crise de identidade” negra, o qual poderia se questionar: qual se-
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 345 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

ria a “identidade própria” como para saber-se que ela “está em crise”?
Qual seria a definição a priori sobre “o negro” que não se observa e
que, em definitivo, sente-se como ausência, falta ou perda? Não se
trata de um “artifício” a procura de um “corpo negro” que já teria
uma definição prévia acerca da sua forma e conteúdo? O que significa
“ser negro”? Não é imaginável poder definir “corpos individuais” que
estão em relação recíproca a partir de ingredientes que precederiam
à própria relação social. Se a individualização é um jogo de diferen-
ciação social, a premissa filosófica pragmática não cogitaria assumir
como válida uma sentença que estabeleça propriedades intrínsecas
(essências) à individualidade. Certamente, a busca de uma “história
própria” não é uma atitude ingênua e sabe-se que sua materialização
está na idealização de uma África de múltiplos significados: reduto
de riqueza cultural, de emotividade, de contato com a natureza, de
valentia etc. Os “valores negros africanos” se relacionam com a “exal-
tação” de um suposto passado que procura reverter à narrativa do
colonizador, quer dizer, que procura substituir a “grandeza branca”
(e a sua civilização) pela “grandeza negra”. Imagens de “guerreiros
negros” em peças de arte substituem a de “brancos colonizadores”
na tentativa de dar-lhe uma virada à história e delinear um “destino”
histórico como “metanarrativa” explicativa do presente.
Negritude, então, como aquilo próprio de um “passado ances-
tral”, e que se assume, inevitavelmente, “na comunidade”. Trata-se,
por conseguinte, de uma recuperação que apela a uma forma de so-
ciabilidade e a um conjunto de valorações (éticas, religiosas, estéti-
cas) que ressignificam a coletividade, o “estar junto”, a incorporação
da população negra a um “grupo de pertença” que a liga de uma
maneira clara ao “ser negro”. Mas, é desta maneira que, na atuali-
dade, pode-se entender a negritude? Assim é como experimentam
muitos jovens seu espaço da negritude? Ancestralidade, África, co-
munidade: são termos que remetem, de alguma maneira, ao atual
“corpo negro”? Continua sendo a “comunidade” significativa para
a vida prática da população negra? Certamente, os postulados do
“movimento da negritude” têm sido digeridos culturalmente não
só pela população negra, mas também por aqueles que não se (auto)
346 reconhecem como fazendo parte desse grupo étnico-racial.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 346 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Música e arte, moda e comportamentos sociais, tal qual desdo-


bramentos desse “espírito” político e cultural, já foram amplamen-
te “assimilados”, podendo-se afirmar que já “estão entre nós” como
repertório cultural inquestionável nas nossas interações cotidianas.
Mas, persiste em “potência” como aquilo que se nutriu do “binaris-
mo” étnico-racial, com seu conteúdo ético ancorado na idealização
de um passado no continente africano? Talvez aquilo que se com-
preende como “o negro”, na sua significação contemporânea, chame
a atenção para uma negritude que se nutria da própria estrutura
“binária” do pensamento do Ocidente “branco”. Aí radica uma ob-
servação interessante da negritude tal qual vista, qual seja, que não
consegue transcender o “binarismo” constitutivo da própria ideo-
logia de “superioridade” (auto)imposta de Ocidente. Olhando-se no
espelho de Ocidente (sinônimo de “branquitude”), a negritude só
parece olhar a si mesma com olhos “brancos”. Procurando particula-
ridade, terminaria achando as “regras do jogo” do “mundo branco”
para reverte-las e fazê-las funcionar ao seu favor. Certamente, o de-
safio das lutas antirracistas continua em aberto.

Considerações finais

Rediscutir as noções de raça, racismo e negritude é uma tarefa


intelectual importante, na medida em que as mudanças sociais e cul-
turais parecem impor necessárias reavaliações e releituras atentas e
abertas a novas perspectivas. O exposto aqui não tratou, em absolu-
to, de negar ou relativizar a existência de “sentimentos de superio-
ridade” baseados em relações sociais de dominação, assim como da
existência de “estratégias de inferiorização” ligadas à afirmação de
desigualdades raciais. Fora isso, o que de certa forma estaria em de-
bate é uma reconsideração das noções de racismo e de antirracismo
como construções culturalmente surgidas de situações de conflito
que cada vez se apresentam mais diversificadas. Por isso, são insu-
ficientes, ou simplesmente parciais, aquelas explicações centradas
no privilégio da variável econômica ou racial, de maneira exclusiva,
para compreender as múltiplas lógicas de discriminação social. Se
alguns dos debates clássicos destacam a eventual formalização de 347

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 347 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

relações sociais sob o signo da “raça” e a consequente institucio-


nalização do racismo como prática social, o que atualmente parece
estar em jogo é um processo de individualização e diferenciação so-
cial (SIMMEL, 1977) que estaria contribuindo à desestabilização
de uma negritude elaborada a partir de uma estratégia política (e
pedagógica) associada a uma já clássica noção de africanidade.
Isto tem suas vinculações, em grande medida, com a cons-
tatação de que aquele período de uma “política negra” associada à
“política da luta comunitária” parece ter ingressado em uma pro-
funda recessão (HALL, 2003), sem que isso se traduza na falsa ideia
de uma suposta deflação militante das ações coletivas motivada por
esses processos de individualização e diferenciação social.
Trata-se de contemplar a possibilidade de que certas dinâmi-
cas sociais atuais possam sugerir algumas mudanças significativas
nas próprias dinâmicas discriminatórias e racistas, no antirracismo
e, fundamentalmente, na identidade negra. Pense-se, por exemplo,
e com referência ao Brasil, nas interações sociais surgidas (e as
consequentes) do contato com as novas políticas sociais que foram
implementadas com relação à redução da pobreza e o combate ao
racismo, assim como nas discussões que se originam como conse-
quência dos conflitos sociais suscitados por ter-se levado adiante
políticas de affirmatives action ou programas de inclusão social em
universidades públicas. Pense-se, também, nas interações cotidianas
que pressupõem a existência de regras sociais e um marco jurídico
de criminalização de práticas discriminatórias e, inclusive, naquelas
que se traduzem na visibilidade comunicacional de indivíduos ne-
gros nos meios de comunicação. Também, obviamente, nos renova-
dos desafios na elaboração de estratégias de sobrevivência material
e simbólica que, na atualidade, muitos empreendem em situações de
continua segregação sócio-espacial.
É com referência a isto que, justamente, torna-se possível vi-
sualizar que muitos indivíduos negros parecem estar expandindo os
cenários de interações e as redes de comunicação sociais, dando lugar
a certas modificações no contexto que realizam as suas escolhas, ela-
boram os seus projetos e constroem suas identificações sociais. Desta
348 maneira, afirma-se, seguindo uma linha de pensamento simmeliano,
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 348 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

que o indivíduo negro pareceria “sair reforçado” desse contato com a


diversidade e a multiplicidade de interações sociais e, longe de consi-
derar que uma eventual fragmentação das experiências conduza a uma
perda ou dissolução de seus supostos “grupos de pertença” e de sua
própria individualidade, esta multiplicação das experiências e de afi-
liações a grupos reforça, paradoxalmente, o caráter propriamente in-
dividual da sua vivencia enquanto indivíduos negros (GADEA, 2013).
Neste sentido, o objetivo aqui foi contribuir e dar sequência
a um debate que não pode se esgotar na simples consolidação de
um campo de reflexão teórico ou analítico que entende as relações
raciais descoladas das diferentes realidades sociais em constante
mudança. Racismo e antirracismo são noções que dialogam com si-
tuações sociais que não são sempre as mesmas e que sugerem indi-
víduos e identidades culturais em processos de reconstituição per-
manente. É só observar as mudanças no âmbito da cultura, e como,
neste espaço, os modelos de sociabilidades também são modificados,
atingindo estruturas sociais e raciais historicamente consolidadas.

349

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 349 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Referências
ANDREWS, G. R. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988).
Bauru: Edusc,1998.
AZEVEDO, T. Democracia racial. Ideologia e realidade. Petrópolis:
Vozes, 1975.
BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BERND, Z. O que é negritude? São Paulo: Brasiliense, 1988.
COSTA, S. “Formas e dilemas do antirracismo no Brasil”. In: SILVA, J.;
SANTOS, M.; RODRIGUES, I. (Orgs.). Crítica contemporânea. São
Paulo: Annablume, 2002.
COSTA, S. Dois Atlânticos. Teoria social, antirracismo, cosmopo-
litismo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.
COULON, A. La etnometodología. Madrid: Ed. Cátedra, 1995.
FREYRE. G. Casa grande & Senzala: formação da família brasileira
sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1998.
FERNANDES, F. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Ed.
Difusão Europeia do Livro, 1972.
GADEA, C. A. Negritude e pós-africanidade: críticas das relações
raciais contemporâneas. Porto Alegre: Sulina, 2013.
GUIMARÃES, A. S. A. Racismo e antirracismo no Brasil. São Pau-
lo: Editora 34, 2005.
HALL, S. Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Ho-
rizonte. Ed. UFMG, 2003.
MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade
nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1998.
MUNANGA, K. Negritude: usos e sentidos. Belo Horizonte: Autên-
tica, 2009.
PAIXÃO, M. A lenda da modernidade encantada: por uma crítica
ao pensamento social brasileiro sobre relações raciais e projeto de
350
Estado-Nação. Curitiba: CRV, 2014.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 350 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

RAMOS, A. G. Patologia social do “branco” brasileiro. In: RAMOS,


A. G. A introdução crítica a Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro:
Andes, 1957.
SIMMEL, G. Sociologia. Madrid: Ed. Revista de Occidente, 1977.
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições
e questão racial no Brasil 91870-1930). São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
TELLES, E. E. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva socio-
lógica. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford, 2003.
TÖNNIES, F. Community and society, USA: Dover Publications, 2002.
WACQUANT, L. Os condenados da cidade. Rio de Janeiro: Revan, 2005.
WACQUANT, L. “Que é gueto? Construindo um conceito sociológi-
co”. Sociologia Política, n. 23, pp.155-164, 2004.
WACQUANT, L. “Três premissas perniciosas no estudo do gueto nor-
te-americano”. Mana, v. 2, n. 2 pp. 145-161, 1996.
WIEVIORKA, M. Em que mundo viveremos? São Paulo: Perspec-
tiva, 2006.
WIRTH, L. “El gueto”. In: TERRÉN, E. (Ed.), Razas en conflicto:
perspectivas sociológicas. Barcelona: Anthropos, 2002.

351

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 351 06/01/2021 10:44


Livro Aloisio-V4.indd 352 06/01/2021 10:44
Livro Aloisio-V4.indd 353 06/01/2021 10:44
Livro Aloisio-V4.indd 354 06/01/2021 10:44
Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Sobre os Autores

Aloisio Ruscheinsky: Sociólogo, Mestre em Ciências Sociais pela


PUC-SP e Doutor em Sociologia pela USP. Professor titular do PPG
Ciências Sociais da Unisinos. Pós-doutorado pela Universidad Autô-
noma de Barcelona. Líder do Grupo de Pesquisa Sociedade e Ambien-
te: atores, conflitos e políticas ambientais. Experiência de pesquisa na
área de Sociologia, com ênfase em meio ambiente, políticas públicas e
conflitos socioambientais, nos temas: atores sociais, riscos ambientais,
desigualdades, conflito social e políticas públicas.

Ângela Diniz Linhares Vieira: Doutoranda em Ciências Sociais


pela Unisinos; Mestre em Direito Agroambiental pela UFMT. Gra-
duada em Direito pela UFG. Atualmente, é docente do Instituto
Cuiabá de Ensino e Cultura (ICEC) e advogada especializada em
Advocacia Social e Ambiental, integrante da Comissão de Direito
do Idoso da Seccional Mato Grosso.

Analice Brusius: Doutoranda em Ciências Sociais pela Unisinos.


Mestre em Ciências Sociais pela Unisinos e Graduada em Psicologia
pela mesma universidade. Trabalha como psicóloga na Fundação
de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (FASERS)
e como coordenadora do curso de Psicologia da Faculdade IENH.

Bruno Lima Teixeira: Graduado em Ciência Política UnB. Gra-


duando em Direito (Processus-DF) e Servidor do Tribunal de Jus-
tiça do Distrito Federal. Pesquisa as relações sociais, direitos, desi-
gualdades sociais, de gênero e cor.

Carlos Inácio Prates: Bacharel em Psicologia e Direito. Mestre em


Saúde Pública (FIOCRUZ). Doutor em Ciências Sociais pela Uni-
sinos. Advogado da União, lotado na Procuradoria-Geral da União.
Professor da UniPROJEÇÃO (2005/2014), UniPLAN (2015/2016)
e Faculdades LS (2017/2018). Coautor do livro Direito Achado na
355
Rua: Concepção e Prática.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 355 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Carlos A. Gadea: Graduado em História pelo Instituto de Pro-


fessores Artigas, Uruguai. Mestre e Doutor em Sociologia Políti-
ca pela UFSC. Realizou pós-doutorado na Universidade de Miami,
nos EUA, e foi professor visitante na Universidade de Leipzig, na
Alemanha e na Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Univer-
sidade Nacional Autônoma do México. Pesquisador e docente no
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos.

Clarissa Bottega: Doutoranda em Ciências Sociais pela Unisinos.


Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coim-
bra – Portugal. Bacharel em Direito pela Universidade de Cuiabá
(UNIC). Membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/MT
no triênio 2005/2009 e 2013/2015. Membro do Instituto Brasileiro
de Direito de Família (IBDFAM). Membro do Instituto dos Advo-
gados Mato-grossenses (IAMAT).

Claudia Regina Felicetti Lordani: Bacharel em Nutrição pela


Universidade Paranaense. Mestre em Saúde Coletiva pela UEL e
Doutora em Ciências Sociais pela Unisinos. Atua nos temas: dieto-
terapia, pacientes críticos, obesidade grave, terapia nutricional en-
teral e parenteral e epidemiologia.

Debora Maria Victória de Barros: Graduada em Ciências Sociais


pela PUC-RS e em Psicologia pela Unisinos. Mestre em Estudos
Culturais pela Universidade Luterana do Brasil e Doutora em Ciên-
cias Sociais pela Unisinos. Atua nos temas: desenvolvimento de
equipes, treinamento e repasse de metodologia, vivência para pe-
quenos grupos, para docentes e compartilhamento de experiências.

Gisela Pelegrinelli: Doutoranda em Ciências Sociais pela Uni-


sinos. Mestre em Ciências Sociais pela mesma universidade. Têm
bacharelado em Administração e Licenciatura em Educação Física
pela UCB. Atua na Educação Superior com ênfase em Gestão Edu-
cacional e Acadêmica. Docente na FGV online e no UDF – Centro
Universitário. Gestora na educação superior no UDF. Avaliadora de
356 cursos de graduação pelo MEC/INEP.
Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 356 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Giovane Santin: Doutorando em Ciências Sociais da Unisinos.


Mestre em Ciências Criminais (PUC-RS). Graduado em Direito
pela Unisinos. É professor de Criminologia, Direito Penal e Pro-
cesso Penal da UFMT. Coordenador do Curso de Especialização
em Direito Penal e Processo Penal da UFMT. Coordenador Esta-
dual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e
Advogado Criminalista.

Jamil Amorim de Queiróz: Doutorando em Ciências Sociais da


Unisinos. Mestre em Educação – Movimentos Sociais e Educação
(UFMT). Componente do Movimento Coletivo Negro Universitá-
rio (UFMT). Professor da Faculdade Integrada de Cuiabá; terapeu-
ta educacional – Escola Estadual da Polícia Militar. Voluntário na
área de assistência social espírita no Abrigo Bom Jesus de Cuiabá.

Licemar Vieira Melo: Graduada em Comunicação Social: Jor-


nalismo pela Universidade de Passo Fundo e Mestre em Ciências
Sociais pela Unisinos. Doutoranda em Ciências Sociais pela mes-
ma Universidade. Concentra discussões nas áreas de: Comunica-
ção, Sociologia e Ciência Política. Trabalhou como docente em
várias Universidades.

Luíza Cristina de Castro Faria: Graduada em Direito pelo Cen-


tro Universitário de Brasília. Mestre em Direito das Relações
Internacionais no ICPD - UniCEUB. Doutoranda em Ciências
Sociais da Unisinos. Advogada. Professora da Faculdade Proces-
sus e UniCEUB. Pesquisadora na área de Direito e Economia e
áreas afins.

Márcio Pereira Dias: Doutor em Ciências Sociais pela Unisinos.


Mestre em Direitos Sociais e Políticas Públicas. Bacharel em Direi-
to. Diretor Executivo da União Brasileira de Educação Católica –
UBEC. Conselheiro da FAPDF. Conselheiro do IBGC. Avaliador de
cursos de graduação e de IES pelo Ministério da Educação - MEC/
INEP. Professor Universitário.
357

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 357 06/01/2021 10:44


Ciências Sociais em abordagens múltiplas

Maria Denilva de Lima Barbosa: Psicóloga com Mestrado em


Psicologia pela Universidade de Brasília. Doutoranda em Ciências
Sociais da Unisinos. Membro do Grupo de Pesquisa: Currículo e In-
terdisciplinaridade na Formação Docente – CNPq do Centro Uni-
versitário Projeção. Exerce a função de Assessora Pedagógica da
Educação Básica no Grupo Projeção.

Marília Veríssimo Veronese: Graduada em Psicologia pela PUC-


-RS. Mestre e Doutora em Psicologia Social pela mesma universida-
de. Docente titular na Unisinos e pesquisadora associada do grupo
de Economia Solidária e Cooperativa (ECOSOL). Pesquisa princi-
palmente nos seguintes temas: economia solidária, autogestão, tra-
balho, saúde, saúde mental, contemporaneidade e subjetividades.

Marines Rute de Oliveira: Doutora em Ciências Sociais pela


Unisinos, Mestre em Gestão e Desenvolvimento Regional pela
Unioeste, Bacharel em Ciências Econômicas pela mesma univer-
sidade. É agente administrativo Universitário da Unioeste e tem
interesse nos seguintes temas: desenvolvimento regional, sociolo-
gia rural e agroenergia.

Vânia Marquez Saraiva: Graduada em Direito pelo Centro de


Ensino Unificado de Brasília. Mestre em Desenvolvimento Sus-
tentável pela Universidade de Brasília. Doutoranda em Ciências
Sociais da Unisinos. É advogada. Tem experiência na área de Di-
reito, com ênfase em Direito Privado. Coordenadora do Curso de
Direito da LS Faculdade.

358

Aloisio Ruscheinsky - Organizador

Livro Aloisio-V4.indd 358 06/01/2021 10:44


Livro Aloisio-V4.indd 359 06/01/2021 10:44
Livro Aloisio-V4.indd 360 06/01/2021 10:44

Você também pode gostar