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População de Rua: políticas públicas,

práticas e vivências

PATRICE SCHUCH
IVALDO GEHLEN
SIMONE RITTA DOS SANTOS
(ORGANIZADORES)
Copyright © Editora CirKula LTDA, 2017.
1° edição - 2017

Revisão, Normatização e Edição: Mauro Meirelles


Diagramação e Projeto Gráfico: Mauro Meirelles
Revisão Ortográfica: Mônica Eliseu Duarte
Editor: Mauro Meirelles
Capa: Luciana Hoppe
Imagens da Capa: Gabriela Hoppe
Impressão: Copiart
Tiragem: 2000 exemplares.

Todos os direitos reservados a Editora CirKula LTDA. A reprodução não autorizada des-
ta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais (Lei 9.610/98).

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População de Rua: políticas públicas,
práticas e vivências

PATRICE SCHUCH
IVALDO GEHLEN
SIMONE RITTA DOS SANTOS
(ORGANIZADORES)

2017
CONSELHO EDITORIAL

César Alessandro Sagrillo Figueiredo


José Rogério Lopes
Jussara Reis Prá
Luciana Hoppe
Mauro Meirelles

CONSELHO CIENTÍFICO

Alejandro Frigerio (Argentina) - Doutor em Antropologia pela Universi-


dade da Califórnia, Pesquisador do CONICET e Professor da Universidade
Católica Argentina.
André Corten (Canadá) - Doutor em Sciences Politiques et Sociales pela
Universidade de Louvain e Professor de Ciência Política da Universidade de
Quebec em Montreal (UQAM).
André Luiz da Silva (Brasil) - Doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e professor do Programa de Pós-Gradua-
ção em Desenvolvimento Humano da Universidade de Taubaté.
Antonio David Cattani (Brasil) - Doutor pela Universidade de Paris I -
Panthéon-Sorbonne, Pós-Doutor pela Ecole de Hautes Etudes en Sciences
Sociales e Professor Titular de Sociologia da UFRGS.
Arnaud Sales (Canadá) - Doutor d’État pela Universidade de Paris VII e Pro-
fessor Titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Montreal.
Cíntia Inês Boll (Brasil) - Doutora em Educação e professora no Departa-
mento de Estudos Especializados na Faculdade de Educação da UFRGS.
Daniel Gustavo Mocelin (Brasil) - Doutor em Sociologia e Professor Ad-
junto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Dominique Maingueneau (França) - Doutor em Linguística e Professor na
Universidade de Paris IV Paris-Sorbonne.
Estela Maris Giordani (Brasil) - Doutora em Educação, Professora Asso-
ciada da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e pesquisadora da
Antonio Meneghetti Faculdade (AMF).
Hilario Wynarczyk (Argentina) - Doutor em Sociologia e Professor Titular
da Universidade Nacional de San Martín (UNSAM).
José Rogério Lopes (Brasil) - Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e Professor Titular II do PPG em Ciên-
cias Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Ileizi Luciana Fiorelli Silva (Brasil) - Doutora em Sociologia pela FFLCH-
USP e professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Leandro Raizer (Brasil) - Doutor em Sociologia e Professor da Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Luís Fernando Santos Corrêa da Silva (Brasil) - Doutor em Sociologia pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Professor do Programa de Pós-
Graduação Interdisciplinar Ciências Humanas da UFFS.
Lygia Costa (Brasil) - Pós-doutora pelo Instituto de Pesquisa e Planejamen-
to Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, IPPUR/
UFRJ e professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Em-
presas (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Maria Regina Momesso (Brasil) - Doutora em Letras e Linguística e Pro-
fessora da Universidade do Estado de São Paulo (UNESP).
Marie Jane Soares Carvalho (Brasil) - Doutora em Educação, Pós-Doutora
pela UNED/Madrid e Professora Associada da UFRGS.
Mauro Meirelles (Brasil) - Doutor em Antropologia Social e Pesquisador liga-
do ao Laboratório Virtual e Interativo de Ciências Sociais (LAVIECS/UFRGS).
Simone L. Sperhacke (Brasil) - Doutoranda em Design pela UFRGS. Mes-
tre em Design e Tecnologia e graduada em Desenho Industrial.
Silvio Roberto Taffarel (Brasil) - Doutor em Engenharia e professor do
Programa de Pós-Graduação em Avaliação de Impactos Ambientais em Mi-
neração do Unilasalle.
Stefania Capone (França) – Doutora em Etnologia pela Universidade de
Paris X- Nanterre e Professora da Universidade de Paris X-Nanterre.
Thiago Ingrassia Pereira (Brasil) - Doutor em Educação e Professor do
Programa de Pós-Graduação Profissional em Educação da UFFS.
Wrana Panizzi (Brasil) - Doutora em Urbanisme et Amenagement pela Uni-
versite de Paris XII (Paris-Val-de-Marne) e em Science Sociale pela Univer-
sité Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) e, também, Professora Titular da Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul.
Zilá Bernd (Brasil) - Doutora em Letras e Professora do Mestrado em Me-
mória Social e Bens Culturais do Unilasalle.
Sumário

11 ApreSentAção
Marta Borba Silva

13 políticAS públicAS, práticAS e vivênciAS dAS populAçõeS


em SituAção de ruA em porto Alegre: umA introdução

pArte i - eStudoS

17 dinâmicAS, eStrAtégiAS e mundo dA populAção em


SituAção de ruA de porto Alegre
Ivaldo Gehlen, Patrice Schuch, Alexandre Silva Virgínio,
Melissa de Mattos Pimenta, Mauro Meirelles

45 equipAmentoS, ServiçoS e viSõeS Sobre políticAS públicAS


pArA peSSoAS AdultAS em SituAção de ruA em porto Alegre:
entre o cuidAdo e A violênciA
Patrice Schuch, Ivaldo Gehlen, Heloísa Helena Salvatti Paim,
Tiago Martinelli

77 populAção AdultA em SituAção de ruA em porto Alegre:


umA SínteSe
Patrice Schuch, Ivaldo Gehlen, Alexandre Silva Virgínio,
Melissa de Mattos Pimenta, Mauro Meirelles

91 deSAfioS metodológicoS Ao eStudAr A populAção em


SituAção de ruA
Ivaldo Gehlen, Mauro Meirelles, Patrice Schuch
pArte ii - políticAS e experiênciAS inStitucionAiS

109 peSquiSA e intervenção SociAl nA políticA de ASSiStênciA


SociAl em porto Alegre: A SituAção de ruA como
fenômeno A Ser problemAtizAdo
Aline Espindola Dornelles, Rejane Margarete Scherolt Pizzato,
Simone Ritta dos Santos

131 A proteção integrAl no SuAS e Acolhimento


inStitucionAl pArA fAmíliAS
Cleber Candido de Deus, Márcia Santos de Almeida Knorr,
Rejane Margarete Scherolt Pizzato

143 experiênciAS dA Ação nA ruA: dA AbordAgem Ao encontro


Ana Letícia Fontanive, Aline Sardin Padilla de Oliveira,
Charline Pereira dos Santos, Daiana Santos,
Daniela Bianchi, Daniela Canabarro, Daniela Soares,
Diogo Santos, Fernando Oliveira Júnior, Giane Silveira,
Jorge Gomes de Oliveira, Kizzy Assunção, Lirene Finkler,
Lisiane do Carmo, Marcos Cabral Borges,
Maria Dornelles de Araújo Ribeiro, Mateus Freitas Cunda,
Milena Cassal Pereira, Pablo Gonçalves,
Roberta da Silva Gomes, Saulo Vieira

157 o retorno doS inviSíveiS A cenA públicA A pArtir dA


AtuAção do centro pop 1
Carlos André da Rosa Bittencourt

169 um olhAr Sobre o Acolhimento inStitucionAl A populAção


em SituAção de ruA em porto Alegre
Lirene Finkler, Mateus Freitas Cunda,
Cleber Candido de Deus
pArte iii - lutAS políticAS

183 “A lutA é conStAnte”: do movimento AquArelA dA


populAção de ruA Ao movimento nAcionAl dA populAção
de ruA do rio grAnde do Sul
Richard de Campos, Edson de Campos,
Carlos Henrique da Silva, José Luiz Straubichen,
Alexandre Portuguez, Cícero Adão Gomes,
Veridiana Farias Machado, Margarete Vieira

199 “A gente mudou A hiStóriA”: experiênciAS e olhAreS


do JornAl bocA de ruA
Por seus Integrantes e Colaboradores

pArte iv - perSpectivAS

213 violênciA contrA A populAção em SituAção de ruA em


porto Alegre: conSiderAçõeS Sobre AS formAS
inStitucionAiS e SimbólicAS de opreSSão cotidiAnA
Melissa de Mattos Pimenta, José Vicente Tavares dos Santos

229 populAção em SituAção de ruA e imAginário eScolAr:


memóriAS dA AntieducAção
Alexandre Silva Virgínio, Ivaldo Gehlen,
Melissa de Mattos Pimenta, Patrice Schuch, Mauro Meirelles

261 doS morAdoreS de ruA AoS Sem domicílio fixo:


contrASteS brASil e frAnçA
Claudia Turra-Magni

279 A legibilidAde como geStão e inScrição políticA de


populAçõeS: notAS etnográficAS Sobre A políticA pArA
peSSoAS em SituAção de ruA no brASil
Patrice Schuch
309 Sobre oS AutoreS

315 Sobre o Projeto e A PeSquiSA


APRESENTAÇÃO

Pesquisar implica a busca constante da indagação e da descoberta


da realidade. Significa realizar uma aproximação permanente a essa
realidade, articulando a teoria e os dados empíricos a partir da inten-
cionalidade imprimida ao tema conforme o interesse da pesquisa e seus
significados.
O tema população em situação de rua encontra visibilidade há
vários anos nas pautas da política de assistência social em Porto Ale-
gre. Além de executar uma rede de serviços destinadas às pessoas em
situação de rua, a Fundação de Assistência Social e Cidadania, órgão
gestor da política de assistência social no município, também se apro-
xima dessa parcela de sujeitos por meio de estudos de pesquisa que
revelam seus perfis.
Os estudos têm por objetivo identificar, por meio de censo, os
perfis desse universo pesquisado (crianças, adolescentes e adultos em
situação de rua) bem como o seu modo de vida. Entende-se que a pes-
quisa permite um avanço, significa ampliar as possibilidades de com-
preensão da práxis, no intuito de construir uma teoria social que ob-
jetive o compromisso com a transformação social. Tarefa fundamental
no aperfeiçoamento e no significado da política pública comprometida
com seus usuários na busca da efetividade de direitos sociais.
A FASC buscou essa parceria, por meio de Edital Público, e esta-
beleceu com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas (Departamentos de Sociologia e de
Antropologia) um contrato para a realização de dois estudos: estudo
quantitativo (censo) da população adulta e de crianças e adolescentes; e,
estudo qualitativo sobre a população adulta, serviços e trabalhadores,

11
com visitas etnográficas a serviços destinados à população adulta em
situação de rua em POA.
Os estudos foram executados pela Universidade e acompanha-
dos pela FASC, por meio da coordenação da Vigilância Socioassisten-
cial com a parceria das áreas técnica, de recursos humanos e jurídica.
Compuseram também essa Comissão, representantes do Movimento
Nacional da População em Situação de Rua e do Jornal Boca de Rua.
Esse olhar conjunto enriquece o debate e aprofunda as questões que
se apresentam no processo de pesquisa. O trabalho, por meio das di-
versas instâncias que nele se constituem (curso de extensão, pesquisa
qualitativa com trabalhadores, pesquisa quantitativa e qualitativa com
a população em situação de rua), sempre contou com a participação de
diversos segmentos tanto da Universidade, da gestão e seus trabalha-
dores quanto da população usuária.
Os resultados obtidos nesse trabalho se traduzem no presente
livro, o qual também conta em seus artigos a representatividade dessa
bela relação interdisciplinar já apontada anteriormente.
Acredito que tais contribuições são essenciais no processo de re-
flexões, análises, proposições e aperfeiçoamentos necessários na conti-
nuidade da oferta da rede de serviços que se apresenta para as pessoas
em situação de rua em Porto Alegre.
Consolidar o Sistema Único de Assistência Social, como políti-
ca pública garantidora de direitos, significa não somente proporcionar
serviços e orçamento para efetivá-los, mas principalmente reconhecer
seu público e suas demandas com a devida visibilidade que ele tem e
com as diversas expressões que ele traz, por meio de sua própria voz.
Aí sim a pesquisa encontra relevância para a política pública.

Marta Borba Silva


Diretora Técnica da FASC
20 de Novembro de 2016

12
POLÍTICAS PÚBLICAS, PRÁTICAS E VIVÊNCIAS
DAS POPULAÇÕES EM SITUAÇÃO DE RUA EM
PORTO ALEGRE: UMA INTRODUÇÃO

Num mundo cada vez mais desigual e individualista em que as


pessoas somente se preocupam com o seus problemas e com aquilo
que diretamente lhe diz respeito, sem com isso considerar o direito do
outro, ganha destaque estudos que se ocupam de grupos e populações
humanas tidas como marginais ou invisíveis socialmente. Contudo, di-
ferentemente dos antropólogos clássicos – que iam a terras distantes
encontrar essas populações para realizar seus estudos – nós, aqui, não
precisamos ir muito longe. Pois, parafraseando o que uma vez escreveu
Muhammad Yunus em seu livro “O banqueiro dos pobres”, bastou que,
para isso, olhássemos pela nossa janela, que saíssemos de casa e olhás-
semos para as ruas.
Pois, a população de rua, temática com a qual nos ocupamos aqui,
não está longe de nós – e convivemos com ela diariamente no vai-e-
-vem das grandes, pequenas e médias cidades de nosso país. Cidades de
um país marcado pela desigualdade, pela violência, pela vulnerabilida-
de social e pelos diferentes graus de acesso que as pessoas possuem a
diferentes serviços e direitos básicos. Como é o caso do estudo aqui em
voga que tem como objeto as populações que, hoje, vivem em situação
de rua em Porto Alegre.
Contudo, a temática da população em situação de rua não é algo
novo, mas seu estudo, sim, é recente e somente começou a ganhar visi-
bilidade há alguns anos atrás impulsionados pela necessidade de pro-
posição de políticas públicas para atendimento as suas demandas.
Neste sentido, a Fundação de Assistência Social e Cidadania, ór-
gão gestor da política de assistência social no município através de
parcerias estratégicas com universidades têm levado a cabo estudos e

13
pesquisas que buscam traçar uma perfil dessas populações que vivem
em situação de rua. E, sim, nos referimos aqui a populações, no plural
– e os dados mostram isso – por entender que existem entre as pessoas
em situação de rua, trajetórias bastante diversas que implicam em di-
ferentes percepções acerca do Estado, das Políticas de Assistência, dos
Serviços destinados a essa população etc.
Mas não só, pois no decorrer do estudo também constatou-se
que existe entre essas populações diferentes narrativas, histórias e mo-
tivações que os levaram a tomar a rua como seu território, como sua
casa. As razões para isso são muitas e compreender essa realidade, seu
modo de vida – e saber quem são, onde estão, o que fazem – torna-se
fundamental para que se possa pensar e produzir políticas públicas a
essas populações que cada vez mais ganham volume em nossas cidades.
Ganhando assim, maior efetividade.
Desta feita, tem-se que compreender as características sociocul-
turais, os modos de inserção urbana e as relações com as políticas pú-
blicas das pessoas que se configuram como em “situação de rua” na
cidade de Porto Alegre, ressaltando a diversidade de composição tor-
na-se um desafio imenso.
Também não foi fácil reunir num mesmo grupo de trabalho aca-
dêmicos, militantes, sujeitos em situação de rua e profissionais traba-
lhadores da política frente à multiplicidade de olhares sobre o tema,
coadunando os objetivos da pesquisa com os interesses e as informa-
ções que buscavam o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), a
Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) – financiadores
da pesquisa – e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, através
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – sob a coordenação dos
professores Ivaldo Gehlen e Patrice Schuch – executores da pesquisa.
Professores esses que, junto com a FASC, capitanearam a reali-
zação de três estudos diferentes que, entre si, encontram-se interco-
nectados, a saber: a) o censo e o estudo das características sociais e as
relações com as políticas públicas das pessoas em situação de rua na
cidade de Porto Alegre; b) a análise das estruturas e modos de fun-
cionamento de instituições de assistência social na cidade destinadas a
esse público e, por fim, c) a pesquisa acerca dos desafios e expectativas

14
dos profissionais de atendimento acerca de seu trabalho e das políticas
na área, através do projeto intitulado “Pesquisa Quanti-Qualitativa da
População adulta e de crianças e adolescentes em situação de rua da
cidade de Porto Alegre”, levada a cabo durante o ano de 2016.
Dito isto, tem-se que a coletânea de artigos que aqui reunimos
tem como objetivo trazer ao grande público um conjunto de textos
que exploram os dados da referida pesquisa e versam sobre um certo
conjunto de temáticas relacionadas à população de rua que – nos dias
atuais e tendo como pano de fundo o atual cenário nacional – importa
considerar com vistas a se alargar os debates que, hoje, tem sido feitos
acerca das populações em situação de rua em Porto Alegre.

Porto Alegre, 5 de dezembro de 2017.


Mauro Meirelles
Editor

15
DINÂMICAS, ESTRATÉGIAS E MUNDO DA
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA
DE PORTO ALEGRE

ivAldo Gehlen
PAtrice Schuch
AlexAndre SilvA virGínio
MeliSSA de MAttoS PiMentA
MAuro MeirelleS

Contexto e razões do estudo

A população em situação de rua está presente na maioria das


grandes e médias cidades do mundo, desde a séculos e em alguns luga-
res a milênio, sendo identificada por nomes que variam com o tempo e
com as culturas. Nesta perspectiva a construção e as discussões sobre a
sociedade na qual vivemos, em suas múltiplas facetas e nas dimensões
da justiça social e dos direitos humanos necessariamente deve incor-
porar esse universo com toda sua complexidade e com seus desafios.
Os diagnósticos recentes mostram que, no Brasil em geral, e em
Porto Alegre, em particular, essa população está crescendo demografi-
camente e organizativamente, demonstrando crescente consciência de
sua condição e de seus direitos. Certamente este crescimento multifa-
cetário tem correlação com a sociedade como um todo, suas dinâmicas
e, no Brasil, apresenta correlação com o paradigma capitalista neoli-
beral, com as mudanças socioculturais decorrentes das transformações
globais que atravessamos contemporaneamente e com mudanças de
paradigmas nas políticas públicas e sociais que crescentemente se vol-
tam para universos sociais historicamente ignorados ou sequer reco-
nhecidos em sua existência.
Em Porto Alegre, desde 1992 há preocupação do poder público
municipal em formular políticas para essa população, através de suas
Secretarias, coordenadas pela Fundação de Assistência Social e Cida-

17
dania (FASC), a partir da qual, construiu-se uma rede de atendimento
a partir da Iª Conferência Municipal de Assistência Social (1994) e da
Nacional (1995). A partir de então são tomadas iniciativas para conhe-
cer de forma sistemática a população em situação de rua. Em 1995, a
partir de uma parceria da FASC com Faculdade de Serviço Social da
PUCRS, foi realizada a primeira contagem censitária dessa população
na cidade de Porto Alegre. Na ocasião foi contabilizada uma população
de 222 pessoas nessa condição.
Entre necessidades e percalços, houve vácuo na produção de co-
nhecimentos e de informações sobre este universo entranhado na so-
ciedade portoalegrense. Em 2004 realizou-se um Censo e amostra em
profundidade, pelo Instituto de Filosofia e Ciência Humanas (IFCH)
da UFRGS, com contrato com a FASC, através de entrevistas estrutu-
radas e semi-estruturadas com crianças e adolescentes em situação de
rua em seis cidades da região Metropolitana: Viamão, Alvorada, Gra-
vataí, Cachoeirinha, Canoas e Porto Alegre. Foram contabilizados nes-
sas cidades, 825 crianças e adolescentes nessa situação dos quais, 637
encontravam-se em Porto Alegre (ver Tabela I). O conceito usado foi
o do ECA (Estatuto da Criança e Adolescente), ou seja, até 12 anos é
criança e daí aos 18 é adolescente).
Em 2007/8 foram realizados quatro estudos de populações de
Porto Alegre, na época denominadas de em situação de vulnerabilidade
social: Censo das Crianças e Adolescentes em situação de rua; Censo e
Mundo dos Adultos e situação de rua de Porto Alegre, Quilombolas de
Porto Alegre e Indígenas de Porto Alegre. Resultou, além dos relatórios
disponíveis na FASC, num livro intitulado: “Diversidade e Proteção So-
cial: Estudos quanti-qualitativos das populações de Porto Alegre”.
Os resultados demográficos mostraram uma forte diminuição da
população de crianças e adolescentes de modo que foram cadastradas
383 crianças e adolescentes em situação de rua, pouco mais da metade
do censo anterior. Em grande parte, isso resulta das políticas dos mu-
nicípios da GRANPAl e em parte de políticas específicas do Ministério
de Desenvolvimento Social e da Assistência Social da Prefeitura de
Porto Alegre. O Censo, pioneiro pela metodologia, contabilizou 1203
adultos em situação de rua e entrevistou 382, em profundidade (ques-

18
tionário com mais de 70 questões e mais de 200 informações de cada
entrevistado), cerca de um terço. Em 2011 a FASC decidiu fazer um
novo Censo da População Adulta, com o objetivo de se certificar de in-
formações necessárias para definição de políticas específicas para esta
população. Foram cadastrados 1347 adultos, Pouco menos de 150 a
mais do que menos de quatro anos antes.
Em 2015 a FASC decidiu realizar novo Censo e Mundo de crian-
ças e adolescentes e de adultos em situação de rua na cidade. O IFCH
(UFRGS) foi selecionado para realizar estes dois estudos articulados
com dois outros relativos às Instituições e aos Técnicos desse universo
social. Estes estão em outro texto.
As pesquisas foram realizadas em 2016, e o relatório final somen-
te foi finalizado em março de 2017. O longo percurso é uma amostra da
complexidade deste tipo de estudo, pouco ou raramente praticado no
Brasil. A grande maioria das cidades não possuem estudos, sequer de
diagnóstico deste universo social. O próprio MDS discrimina por ta-
manho demográfico as cidades, revelando forte discriminação. Popula-
ção em situação de rua é diferente segundo população da cidade? Para
o MDS é. Cidades com menos de 200 mil habitantes são discriminadas
em relação a estas políticas. O resultado é a pressão local para emigrar
os que vivem nessa situação para as cidades que recebem apoio federal.
Concentração, sem solução.
O resultado de ambos os universos, foram bastante surpreenden-
tes demograficamente. O resultado dos adultos surpreendeu também
pela territorialidade, pelas dinâmicas organizativas e pelas posições
que assumem frente à sociedade portoalegrense em relação à eles.
Neste texto, apresentamos uma análise dos principais resultados.
Os dados expressos em tabelas estão disponíveis no site da FASC. Essa
população é considerada vulnerável ou em situação de risco, porém são
conceitos a serem repensados, no sentido de que esta classificação basea-
da em pressupostos estabelecidos externamente à ela, emerge em sua
origem carregada de preconceitos, que justificariam algumas políticas
ou posturas. Pode remeter ao assistencialismo, mantenedor da condição.
Uma caracterização simplificada dessa população é composta por
jovens e adultos, homens e mulheres, idosos, desempregados, pessoas

19
com sofrimento psíquico, migrantes, dependentes químicos, pessoas
com deficiência, sem convivência familiar permanente ou com vínculos
familiares fragilizados, famílias monoparentais e famílias ampliadas,
sem residência fixa ou expulsas de suas comunidades pelo tráfico ou
pela violência.

Crianças e adolescentes: um significativo resultado


das políticas públicas

O conceito “crianças e adolescentes em situação de rua” passou


a fazer parte do vocabulário público nos primeiros anos desse século
21, representando a diversidade desse universo e as experiências que
dão sentidos e usos do espaço que ocupam das e nas ruas. Até então
muitos termos eram utilizados para identificar esse universo, conforme
desenvolvido por Magni et Al. (2008). Conceito que se legitimou como
identificação, quase identidade, para consubstanciar o pertencimento
dessa população complexa que ocupa a rua de jeitos e formas variados
em caráter também diverso pela situação transitória ou intermitente-
mente ou permanente.

Além disso, o termo expressa uma consideração de que as crianças


e adolescentes em situação de rua não apenas moram ou sobrevi-
vem na rua, mas constituem formas de organização social e signifi-
cados particulares para seus atos, criativamente adquirindo conhe-
cimentos, novas formas de relacionamentos sociais e geração de
renda. A potencial situacionalidade dessa experiência abre brechas
para se pensar outras formas de vinculação social como família e
comunidade, deslocando a centralidade do espaço social e simbóli-
co da “rua” para outras possibilidades de pertencimento, como por
exemplo, familiares e comunitárias (GEHLEN et Al., 2016).

Essas formas de pertencimento ao universo rua, estão enfraque-


cidas, como resultado positivo de políticas públicas e sociais implemen-
tadas, sobretudo, a partir do início do século sob responsabilidade da
administração pública local, representada pela FASC, confirmando a
tese da eficácia da ação do Estado no resgate e garantias de direitos

20
humanos, em relação a estes universos de cidadãos de baixo reconheci-
mento social, e de forte visibilidade pelas características específicas de
seu modo de vida.
A pesquisa consistiu no cadastramento censitário, cujo campo
foi realizado entre os dias 8 de setembro de 2016 e 10 de outubro de
2016. O estudo do modo de vida projetado, se inviabilizou em razão
da baixa representatividade dessa população em Porto Alegre. Foram
cadastradas 27 Crianças e adolescentes em situação de rua na cidade,
no período investigado, utilizando-se a mesma metodologia de campo
aplicada aos adultos, ou seja as equipes de entrevistadores abordavam
concomitantemente adultos, crianças e adolescentes. Observando-se
no decorrer da realização do campo, resultado aquém do previamente
esperado, reforçou-se a preocupação, o monitoramento e a participação
dos facilitadores (representantes da população adulta em situação de
rua na pesquisa) para garantir o cadastramento da totalidade.
A primeira tabela mostra a situação encontrada em 2004, in-
cluindo outros cinco municípios da Região Metropolitana, revelando-
-se a quase inexistência de referência local, no sentido do município de
origem, em parte explicado por Porto Alegre e Canoas serem na época
as duas cidades com políticas específicas.
Em 2008 foram cadastradas 383. Diminuição em parte atribuída
às políticas municipais, de organizar serviços de assistência social local
para essas pessoas de modo que. neste ano, já se mostrava que as polí-
ticas estavam gerando impactos positivos.
Em 2016 foram cadastradas 27 crianças e adolescentes em situa-
ção de rua, em Porto Alegre. Dessas, 48,1% responderam as informa-
ções solicitadas e 51,9% foram respondidos por outras pessoas princi-
palmente pela pessoa que se apresentou como mãe ou por amigo. De
uma maneira geral tem-se que, estes, tendem a se concentra no Centro
Histórico de Porto Alegre (14 dos 27) e no bairro Floresta (com 6) nas
proximidades da Estação Rodoviária. Os demais se dispersam. Predo-
mina entre estes, o gênero masculino com cerca de 60%. Lembrando
que entre os adultos o gênero masculino representa quase 85%.

21
TABELA I – Cidade de procedência e cidade onde passam maior
parte do tempo.
De e estão em
Cidade Geral De e estão em
Porto Alegre

Freq % Freq % Freq %


Alvorada 58 7,1 47 7,4 11 5,9
Canoas 68 8,2 7 1,1 61 32,4

Cachoeirinha 21 2,5 6 ,9 15 8,0

Esteio 18 2,2 --- --- 18 9,6


Gravataí 21 2,5 5 0,8 16 8,5

Porto Alegre 502 60,9 499 78,3 3 1,6

Viamão 99 12,1 41 6,4 58 30,9


Outras 25 2,9 19 3,2 6 3,2
Não
13 1,6 13 2,0 --- ---
respondeu
Total 825 100 637 100 188 100
Fonte: Perfil / mundo das crianças e adolescentes em situação de rua GRANPAL,
agosto 2004.

TABELA II – Sexo das crianças e adolescentes censados, 2008 e 2016.


Sexo cadastrado Ano pesquisa
2007/8 2016
Freq % Freq %
Masculino 270 70,5 16 59,3
Feminino 113 29,5 11 40,7
Total 383 100 27 100
Fonte: Censo das crianças e adolescentes em Situação de Rua de Porto Alegre,
2007/2008 e 2016.

Chama a atenção no que se refere à idade, a presença de cerca de


53,8% de crianças de até 6 anos e de adolescentes de 13 a 17 anos, de
38,6%. Mostrando haver concentração nos extremos do estrato. O lo-
cal de nascimento mostra concentração na cidade de Porto Alegre. Em

22
2004 cerca da metade desse universo não era de Porto Alegre, inclusive
boa parte não tinha referência de pertencimento a Porto Alegre, mas à
cidades vizinhas. Em 2008 esse perfil mudou muito e a grande maioria
se sentia partícipe da cidadania de Porto Alegre, embora percentual
significativo tivesse nascido em outras cidades. Em relação ao local de
nascimento mantém-se alto o índice de nascidos em Porto Alegre ou
região metropolitana e diminui-se o número de migrantes.
As crianças e adolescentes em idade escolar, ou seja maiores de
seis anos, estão nas escolas. Porém as menores de seis, não frequentam
instituições escolares ou creches, e correspondem à metade das que
estão na rua.
Em relação à religião, os declarantes informaram que a maioria
absoluta (68,2%) não tem religião, os demais se dispersam equitati-
vamente entre católicos e pentecostais e minoritariamente. alguns se
definem como espíritas. Entre os adultos também verificou-se um cres-
cente não identificar-se com uma religião. Contudo, o não ter religião
não quer dizer que não acreditem na existência de um ser que se iden-
tifique com Deus.
O local onde passam a noite ou dormem confirma a tendência,
verificada no estudo de 2008, de procurarem locais protegidos. Perce-
be-se que crianças e adolescentes que ainda permanecem na condição
de “rua” vivem situações que contradizem o ECA e a intencionalidade
das políticas. Sobre o lugar no qual passa o tempo de acordado, cerca da
metade informou que passa em locais adequados ou estruturados para
acolhê-los (Centro POP, EPA, Casas convivência), e a outra metade
passa pelas ruas e/ou em locais não estruturados para acolhê-los.
Segundo informações da FASC, cabe destacar as mudanças ocor-
ridas na rede de atendimento da política de assistência social em Por-
to Alegre, a partir da aprovação da Política Nacional de Assistência
Social em 2004, culminando com a implantação do Sistema Único de
Assistência Social – SUAS. A FASC, gestora da política no município,
buscando adequar-se as orientações da política reordenou sua rede de
proteção social básica e especial e a estrutura de gestão.
Na rede de proteção social básica houve a ampliação da cobertura
do atendimento a população de crianças e adolescentes na faixa etária

23
dos 0 aos 17 anos por meio do Serviço de Convivência e Fortalecimen-
to de Vínculos – SCFV e do atendimento as famílias nos 22 CRAS e 37
Serviços de Atendimento a Família – SAF. Na rede de Proteção Social
Especial de Média Complexidade houve a implantação de 9 CREAS
com a oferta do PAEFI, do Serviço de Acompanhamento de Medidas
Socioeducativas e do Serviço de Abordagem Social para a população
adulta e de crianças e adolescentes em situação de rua e suas famílias.
A abordagem das crianças e adolescentes é realizada através de
equipes contratadas por meio do convênio Ação Rua, assinado em mar-
ço de 2007. Na rede de Proteção Social Especial de Alta complexidade
em 2006 houve o reordenamento da rede sócio-assistencial dos servi-
ços de acolhimento institucional para crianças e adolescentes através
da abertura de novas vagas por meio da implantação de (05) cinco Ca-
sas Lares. Em 2008 implantou-se 12 Abrigos Residenciais Municipais
dos quais, 02 Abrigos para adolescentes do sexo masculino, totalizando
a abertura de 92 vagas na rede própria.
A partir de 2010 foram abertas novas vagas até o primeiro semes-
tre de 2015. Embora a medida de acolhimento institucional de crian-
ças e adolescentes se constitua de caráter excepcional, priorizando-se
sua permanência junto à família e comunidade, a existência de uma
retaguarda de acolhimento é fundamental para garantia da proteção
integral dos sujeitos.
Diante desse conjunto de mudanças compreende-se a redução do
número de crianças e adolescentes em situação de rua, tendo em vista
que parte significativa dessa população se encontra inserida na rede de
atendimento da política de assistência social municipal.

Perfil. Cidadania e Identidade da População Adulta em situação


de rua em Porto Alegre

A realização do estudo foi do Instituto de Filosofia e Ciências


Humanas da UFRGS, através de contrato com a FASC (Fundação de
Assistência Social e Cidadania) da prefeitura de Porto Alegre. Reali-
zou-se detalhada preparação com formação para os técnicos da pre-
feitura, para os estudantes que participaram do estudo e para repre-

24
sentantes da população em situação de rua, principalmente lideranças
do MNPR/RS (Movimento Nacional da População de Rua, seção RS)
e pela organização Boca de Rua, que publica um jornal com o mesmo
nome. A participação desses representantes foi fundamental para os
resultados obtidos e também para validação social do estudo.
Através de reuniões conjuntas de todos os envolvidos, deta-
lhou-se as demandas e expectativas, construiu-se os instrumentos e
realizou-se o mapeamento prévio à realização do campo (cadastros e
entrevistas). Seis equipes de campo compostas por um facilitador (nes-
te caso, um representante da população de rua), um supervisor e três
entrevistadores percorreram durante 30 dias os locais identificados ou
informados, sendo que no Centro Histórico e nos bairros próximos
(Floresta, Bom Fim e Cidade Baixa) foram feitos pelos menos três per-
cursos para cadastro e entrevistas em dias e horários diferentes em
cada local. Em bairros como Menino Deus, Santana e Navegantes, pelo
menos duas vezes. Nos demais bairros, uma ida ou duas, quando neces-
sário, de uma equipe.

Características gerais

O estudo censitário da população adulta de rua na cidade de Por-


to Alegre, realizado entre 8 de setembro e 10 de outubro de 2016,
perfazendo rotinas de trabalho de campo que abarcaram percursos
previamente mapeados pelas ruas em turnos manhã, tarde e noite. To-
dos os locais mapeados, ou seja, marcados como potencialmente sendo
acolhedor de pessoas nessa condição, foram visitados por equipes de
campo. Equipes constituídas de cinco pessoas, três entrevistadores, um
supervisor e um facilitador.
Foram identificadas 2.115 pessoas vivendo nessa condição em
Porto Alegre, sendo 1758, com informações cadastrais censadas. Os
demais 357 foram contabilizados, porque encontrados com registro de
local, horário, e algumas características sempre que acessíveis. Através
de métodos de controle informacional eliminou-se repetições e casos
não comprovados de estarem na condição de rua. Inclui-se neste total
os que se recusaram a dar entrevista e os que no momento da aborda-

25
gem apresentavam condições alteradas e/ou não estavam em condição
de responder a entrevista.
Dos 1785 censados selecionou-se uma amostra de 467 – aproxi-
madamente 26% – para responderem uma entrevista em profundida-
de, a fim de se obter informações sobre hábitos cotidianos, identidades
sociais e étnicas, condições socioeconômicos e culturais, estratégicas
de sobrevivência, de trabalho e de renda, formas de sociabilidade, re-
presentações sociais, relações e avaliações das instituições e suas prin-
cipais demandas. Para esta amostragem, manteve-se na medida do pos-
sível a representatividade por gênero, por escolaridade e por idade. A
alta amostra, garantiu confiabilidade das informações.
Em relação ao total da população em situação de rua em Porto
Alegre, verifica-se que ela significa ao redor de 0,14 % do total, dentro
da margem de expectativa para as grandes cidades brasileiras (entre
0,1% e 0,15%). Em comparação com o último censo realizado na cidade
em 2011 (FASC, 2012), que abarcava a mesma metodologia de pesqui-
sa, esse número representa um acréscimo de 57%. Efetivamente houve
crescimento real dessa população e, em pequena medida, um aperfei-
çoamento metodológico, de mapeamento. Este crescimento contribui
com impacto na visibilidade e traz desafios importantes para as políti-
cas públicas e sociais. O crescimento está acompanhado de várias mu-
danças, sobretudo, territoriais e de comportamentais dessa população,
identificados.
A distribuição ou ocupação territorial na cidade aponta para no-
vas tendências, em especial, de descentralização e de afirmação de sua
presença em alguns bairros, mais distantes do Centro Histórico, como
a Restinga e o Sarandi. Também se verifica aglomeramento em locais
mais protegidos, ou seja, menor dispersão entre eles, talvez por razões
ligadas à segurança, sobrevivência e estratégias de luta. Como espera-
do a forte concentração continua no Centro Histórico (40%) e bairros
próximos ao Centro Histórico. Na sequência os bairros Floresta, Me-
nino Deus, Cidade Baixa e Navegantes, conforme mostra a tabela III.

26
TABELA III – Bairro onde foi realizada a entrevista.
Bairro 2007 2011 2016
Freq % Freq % freq %
Agronomia --- --- 4 0,3 3 0,2
Anchieta --- --- 4 0,3 --- ---
Azenha 71 5,9 47 3,5 83 4,7
Bela Vista /Boa Vista --- --- 2 0,2 --- ---
Bom Fim 49 4,1 59 4,4 34 1,9
Bom Jesus 47 3,9 45 3,3 25 1,4
Camaquã / Cavalhada --- --- 7 0,5 --- ---

Centro histórico 277 23,0 368 27,3 598 39,7


Floresta 70 5,8 --- --- 211 12,0
Chacara das Pedras --- --- 3 0,2 --- ----

Cidade Baixa 111 9,2 67 5,0 98 5,6

Cristo Redentor 4 0,3 12 0,9 6 0.3


Cristal --- --- 13 1,0 --- ---
Cruzeiro 5 0,4 13 1,0 --- ---
Farroupilha 40 3,3 10 0,7 34 1,9
Floresta 191 15,9 134 10,0 211 12,0
Glória --- --- --- --- 13 0.7
Higienópolis 2 0,2 1 0,1 --- ---
Hípica 1 0,1 1 0,1 --- ---
Humaitá --- --- --- --- 6 0,3
IAPI --- --- 4 0,3 -- ---
Independência 11 0,9 2 0,1 13 0.7
Intercap 2 0,2 6 0,4 --- ---
Ipanema 9 0,7 7 0,5 10 0,6
Jardim Botânico 22 1,8 11 0,8 8 0,5
Jardim Itu 2 0,2 6 0,4 --- ---
Jardim do Salso --- --- --- --- 3 0,2

27
Jardim Ipiranga/ Sabará --- --- 2 0,1 3 0.2

Jardim Lindóia 4 0,3 5 0,3 17 1,0

Jardim Planalto 2 0,2 1 0,1 --- ---

Jardim Leopoldina --- --- 28 2,1 --- ---


Lami --- --- --- --- 1 0,1
Lomba do Pinheiro --- --- 1 0,1 6 0,3

Mário Quintana --- --- 1 0,1 --- ---


Medianeira --- --- 4 0,3 3 0,2
Menino Deus 141 11,7 104 7,7 131 7,5
Minuano --- --- 1 0,1 --- ---
Moinhos de Vento 1 0,1 21 1,6 --- ---
Navegantes 34 2,8 102 7,6 102 5,8
Nonoai --- --- 2 0,1 5 0,3
Parque dos Maias 4 0,3 --- --- --- ---
Partenon 2 0,2 18 1,3 14 0,8
Passo da Areia 6 0,5 10 0,7 21 1,2

Passo das Pedras --- --- 5 0,4 --- ---

Petrópolis / Alto Petrópolis 5 0,4 6 0,4 1 0,1

Porto Seco --- --- 2 0,1 --- ---


Praia de Belas 4 0,3 53 3,9 51 2,9

Protásio Alves --- --- 2 0,1 --- ---


Restinga 4 0,3 6 0,5 22 1,3
Rio Branco --- --- 14 1,0 4 0,2
Rubem Berta 2 0,2 6 0,4 20 1,1

Santa Cecília --- --- --- --- 4 0,2

28
Santa Tereza --- --- 4 0,3 1 0,1
Santana 11 0,9 62 4,7 60 3,4
Santo Antônio --- --- 2 0,1 --- ---
São Geraldo 38 3,2 23 1,7 5 0,3
São João 6 0,5 3 0,2 4 0,2
São Sebastião --- --- 1 0,1 --- ---
São José 1 0,1 --- --- 4 0,2
Sarandi 2 0,2 11 0,8 5 0,3
Teresópolis 7 0,6 5 0,4 5 0,3
Três Figueiras --- --- 2 0,1 --- ---
Tristeza 6 0,5 6 0,4 2 0,1
Vila Ipiranga --- --- 2 0,1 6 0,3
Vila Jardim --- --- 3 0,2 --- ---
Vila Nova --- --- --- --- 10 0,6
Não informado 9 0,7 3 0,2
Total 1203 100 1347 100 1758 100
Fonte: Pesquisa Perfil e Mundo dos Adultos em Situação de Rua de Porto Alegre,
2007 e Cadastro dos Adultos em Situação de Rua de Porto Alegre, 2011 E 2016.

O perfil populacional revelado pelos dados de campo, aponta que


essa população na cidade de Porto Alegre é majoritariamente masculi-
na (85,5%). Na Comparação com o estudo anterior a expectativa de que
a representatividade da população feminina, na época 18,2%, atualmen-
te 13,8%, não se concretizou. A redução no crescimento do percentual
de mulheres mostrou também forte diminuição para 10,5% o aumento
desse universo, enquanto o masculino cresceu 52,7%. Isto pode indicar
bons resultado de políticas específicas para este segmento.
Os que nasceram em Porto Alegre ou na região metropolitana
(59,1%), são maioria e seu crescimento de cerca de sete por cento, mostra
que ela se reproduz crescentemente na cidade. Dos que não nasceram em
Porto Alegre, aufere-se que a mobilidade territorial se realizou principal-
mente na direção do interior do Estado (32%) para capital. Há também um
percentual imigrado de outros estados e alguns poucos de outros países.
Leve-se em consideração que 51,1% vive na cidade há mais de 20 anos.

29
O estudo mostrou também haver um envelhecimento da popula-
ção de rua nesses últimos anos, pelo aumento dos maiores de 35 anos
(61,4%), eram menos de 50% em 2008 e, consequente, uma diminuição
no número dos mais jovens.
Em sua maioria, possuem o ensino fundamental incompleto
(57,4%), porém no geral o perfil de escolaridade é semelhante ao das
populações pobres da cidade, alguns possuem curso universitário. A
identificação através da posse de documentos importantes, como Iden-
tidade (65,4%), CPF (61,4%) e Certidão de nascimento (61,3%) aumen-
tou nestes últimos anos. Pois, cada vez mais é necessário estar docu-
mentado para aceder a serviços e/ou a algum tipo de benefício social.
O pertencimento étnico foi obtido por resposta aberta e a agre-
gação posterior mostrou que se autodeclararam negros (24,5%) e par-
dos, (12,4%), ou seja, 36,9% dessa população, ao passo que os autode-
clarados brancos são 34,3% do total.
A participação em organizações e o conhecimento de representa-
ções da PopRua melhorou bastante, especialmente do Movimento Na-
cional de População de Rua e do Jornal Boca de Rua.

Trabalho, Renda e Formação Profissional

A população de rua de Porto Alegre majoritariamente exerce al-


guma atividade que lhe atribui legitimidade social de pertencimento à
cidade. Entre as principais atividades, reconhecidas socialmente como
trabalho, por eles citadas, estão: a reciclagem (23,9%), a jardinagem
(14%) e a lavação, o cuidado de carros, a flanelinha (12,8). Essas ativi-
dades no geral correspondem à sua principal renda.
De modo geral, boa parte (42,5%) sustenta ter alguma forma-
ção profissional. Alguns afirmaram, possuir mais de uma qualificação.
A maioria (57.5%), porém, afirmou não ter no seu currículo nenhuma
qualificação específica, o que indica uma demanda a ser observada, aci-
ma de tudo se levarmos em conta sua relação com as oportunidades de
trabalho e renda.

30
Tabela IV – Principal atividade ocupacional destinada à sobrevivência
Rendimento mensal* Freq %
Catador mats recicláveis/
106 23,9
reciclagem
Jardinagem 62 14,0
Lava/guarda carros/flanelinha 57 12,8
Pede/achaca 44 9,9
Faz programa/prostituição 39 8,8
Construção civil/pedreiro/pintor 28 6,3
Vendedor de rua 25 5,7
Bico/biscate 22 5,0
Limpeza/faxina 14 3,1
Nada 14 3,1
Distribui panfletos 12 2,7
Artesanato 5 1,1
Carga e descarga 5 1,1
Outro 11 2,5
Total 413 100
Fonte: Pesquisa Perfil e o Mundo dos Adultos em Situação de Rua de Porto Alegre,
2016 (N=413).

Como resultante, quase todos possuem alguma renda, mesmo


baixa para os indicadores da cidade de Porto Alegre, mas que ajuda a
garantir soluções, alternativas e sobrevivências em geral na rua. Mais
de um terço (38,2%) percebe até meio salário mínimo e cerca de um
terço (31,6%), um salário mínimo, perfazendo um total de 69,8% que
recebem até um salário mínimo. Alguns sustentam, como revela a tabe-
la, que alcançam renda superior a três salários mínimos. Considerando
o bolsa família como referência, constata-se que a maioria da população
desse universo possui renda superior à que serve de referência ao bolsa
família, pois trata-se, neste caso, de renda individual, não familiar. Essa
renda é gasta no cotidiano, quase não há poupança ou investimento
patrimonial.

31
Tabela IV – Rendimento mensal em Salários Mínimos (SM).
Rendimento mensal* Freq %
Até 1/2 SM (Até R$ 440,00) 146 38,2

De mais de ½ a 01SM (De R$ 441,00 a R$ 880,00) 121 31,6

De mais de 01 a 1 ½ SM (De R$ 881,00 a R$1,320,00) 62 16,2

De mais de 1 ½ a 02 SM (De R$ 1.321,00 a R$ 1.760,00) 28 7,3

De mais de 02 a 03 SM ( De R$ 1.761,00 a R$ 2.640,00) 22 5,7

De mais de 03 a 04 SM (De R$ 2.641,00 a R$ 3.520,00) 2 0,5

Mais de 04 SM (Mais de R$ 3.520,00) 2 0,5

Total 451 100


Fonte: Pesquisa Perfil e Mundo dos Adultos em Situação de Rua de Porto Alegre,
2016 (N=451).
*Salário Mínimo considerado de R$ 880,00 em vigor no Brasil, em setembro de 2016.

A população se autorepresenta afirmativamente em relação à


identificação com uma profissão, sendo 81,4% os que afirmam possuí-
rem profissão, embora somente cerca de 42% afirmam possuir quali-
ficação, como curso, treinamento etc. Este percentual não oscilou se
considerarmos os percentuais da pesquisa de 2007/08.

Ida à rua e as relações familiares

De um modo geral, um quarto (25,2%) da população investigada


está há menos de 1 ano na rua. Por outro lado, agregando os dados
daqueles que estão há mais de 5 anos na rua, temos quase a metade da
população (47,8%), o que revela uma permanência na situação de rua
de mais longo prazo. Comparando os dados de 2016 com as pesquisas
anteriores, vê-se uma tendência de cronicidade da situação de rua, com
crescimento dos percentuais de tempo em faixas temporais de mais de
10 anos aumentando em cerca de 10% entre os que estão na rua a mais
de 10 anos.

32
TABELA V – Tempo em que vivem em situação de rua, Porto Alegre.
2008, 2011 e 2016.
Tempo em que está na rua 2007-8 2011 2016

% % %
Há menos de 1 ano 29,3 22,5 25,3
De 1 a 5 anos 28,3 29,7 26,9
De 5 a 10 anos 18,4 17,8 18,6
De 10 a 20 anos 14,1 16,2 19,3
Mais de 20 anos 5,6 10,0 9,9
NS/NR 4,3 3,8 ---
Total 100 100 100
Fonte: Pesquisa Perfil e Mundo dos Adultos em situação de Rua de Porto Alegre,
2007 (N=?), 2011 (N=1347) e 2016 (N=1516).

Os motivos para a ida para a rua são muitos diversos. Desde os


relacionados à instabilidade afetiva e econômica, a violência familiar,
ao uso de álcool/drogas (24%), e outras situações diversas, gerando
impactos pessoais. Se considerarmos que as “separações e decepções
amorosas”, os “maus tratos na família”, “não se sentir bem com a fa-
mília”, a “morte de algum familiar”, o “envolvimento da família com
o tráfico de drogas” e o “uso de drogas ou o alcoolismo na família de
origem” são situações que envolvem pessoas próximas e/ou do núcleo
familiar de origem, verificamos que 32,5% das motivações explicitadas
envolveram questões de conflitos de ordem familiar.
Neste sentido, a revelação do envolvimento com drogas e/ou ál-
cool e à decisão de preservar a família em relação aos danos e conflitos
que a dependência aponta para a necessidade de pesquisas futuras para
investigar de forma apropriada as correlações existentes entre variá-
veis tais como: instabilidade familiar, problemas com dependências e
violência.

33
TABELA VI – Motivações para terem ido para a rua
Por que / como veio para a rua Freq %

Uso de drogas/ Alcoolismo próprio 112 24,9

Conflitos e/ou maus tratos na família (violência) 56 12,5

Separação/decepção amorosa 45 10,0


Desemprego 40 8,9

Por causa da morte de algum familiar 33 7,4

Não tem família / não se sente bem na família 26 5,8

Perda da moradia 23 5,1


Porque gosta / opção 23 5,1
Expulsão de casa 14 3,1

Uso de drogas/Alcoolismo na família de origem 13 2,9

Endividamento/falta de dinheiro 10 2,3

Sofre ameaças / jurado na comunidade 9 2,0

Saída do Sistema Penitenciário (Prisões) 7 1,6

Porque estava doente 5 1,1

Porque a família está envolvida com o tráfico 4 0,9

Saída da FASE/FEBEM 1 0,2


Outro 28 6,2
Total 449 100
Fonte: Pesquisa Perfil e o Mundo dos Adultos em Situação de Rua de Porto Alegre,
2016. (N=449)

Mais de 75% informou não ter outro familiar na rua, revelando


fraco vínculo familiar ou anterior ao estar na rua, entre eles. As rela-
ções com familiares, mostra-se cada vez mais tênue. Aumentou signi-
ficativamente o percentual (de 24,5% em 2008 para 39,9% em 2016)
daqueles que não mantêm nenhum contato com a família há mais de
5 anos. Em relação ao relacionamento marital na rua, menos de um

34
quarto tem companheiro(a) fixo(a), percentual bastante semelhante ao
estudo anterior. As mulheres assumem mais a vida do tipo conjugal,
possivelmente por proteção. No que se refere à existência de prole, 76%
declarou ter filhos, dos quais, menos de um terço nasceu quando estava
na rua. Seus filhos não vivem na rua.

Condições de permanência na rua

A maior parte da população estudada dorme cotidianamente e


prioritariamente em lugares de risco e improvisados e com forte expo-
sição ao ambiente natural (52,1%). A opção por dormir em lugares ins-
titucionalizados variou pouco entre uma pesquisa e outra, mostrando a
pouca eficácia dessa política. Os espaços institucionalizados para pernoi-
tar são usados por pouco mais de um terço (38,8%) dos entrevistados.
Constata-se tendência pequena a aumentar o uso de serviços e
equipamentos oferecidos a eles, permanecendo no entanto seu baixo
uso. Não obstante, mais da metade (52,1%) ainda dorme cotidianamen-
te e prioritariamente em lugares de risco e improvisados e com forte
exposição ao ambiente natural. É relevante o fato de que esses espaços
desprotegidos também aparecem com frequência relativamente eleva-
da como segunda opção para dormir (28,1%).
Disto, conclui-se que mais de 60% da população adulta de rua em
Porto Alegre pode ser caracterizada como “moradora de rua”, já que este
é um indicador central. As recentes estratégias que estão adotando como
construção de barracas para abrigo noturno, aglomeração em locais me-
nos desprotegidos, entre outros, não indica mudança desta condição e
pode, inclusive, estar apontando para uma busca de diminuição de riscos,
tão somente. Isto porque o que mais chama atenção em relação às carac-
terísticas negativas da situação de rua, mais do que a discriminação e a
estigmatização, é a sensação de estar vulnerável à violência.

Do cotidiano e uso das instituições

As companhias diárias na rua, mostram fraca constituição de


vínculos entre eles. Menos da metade (44,1%) informou que passam o

35
tempo que não está trabalhando ou ocupado com atividades e obriga-
ções formais, com parceiros de rua, colegas de trabalho e amigos em
geral. Inclui-se os cerca de 9,5% que passam em espaços institucionais,
de acolhida. Os demais passam perambulando, em praças, casas ou ter-
renos desocupados. Quase por consequência, as necessidades íntimas
e de higiene corresponde aos dados de locais que frequentam, para
40,1%, essas necessidades são realizadas em instituições de acolhida,
sejam albergues, abrigos, Centro Pop ou Caps. Banheiros e chuveiros
públicos, são utilizados por cerca de 22%.
A alimentação, de maneira geral, atende à demanda e mostrou
crescimento do uso do Restaurante Popular (48,8%), e cerca de 40%
afirmou alimentar-se em locais de distribuição de refeições, chamados
de “sopão”. Demais locais como entidades filantrópicas, igrejas, centros
espíritas, terreiros etc. são bastante frequentados por quase metade da
PopRua. A mesma pessoa por vezes frequenta mais de um desses locais
em dias ou turnos diferentes, por isso supera os cem por cento. Os de-
mais, cerca de um quarto dessa população se alimentam do que ganham
em residências, estabelecimentos comerciais, especialmente restauran-
tes, ou compram. A compra não necessariamente é o principal acesso,
no geral é complementar. Nota-se um aumento da importância e da
confiança nos equipamentos e instituições que ofertam alimentação.
A saúde representa crescente preocupação e aumentam os relatos
de doenças da população de rua de Porto Alegre, especialmente às as-
sociadas ao uso de álcool e de drogas. A melhoria da informação sobre
adoecimento e/ou problemas de saúde fez com que se preocupem mais
e se diagnostiquem melhor. A tipologia de doenças ou problemas em
relação à saúde permanece mais ou menos inalterada, o que se alterou
razoavelmente foi a percepção de incidências no sentido de um claro
agravamento das condições de saúde. O agravamento maior por eles
percebido refere-se à dependência química/álcool, que passou de 40,1%
em 2008 para 49,6% em 2011 e 58,1% em 2016. O segundo maior pro-
blema de saúde ressaltado, se refere ao dentes ou saúde bucal (47,8%)
apresentando pequena diminuição. Na sequência, aparece o que gene-
ricamente foi denominado de dores no corpo (43,7%), que manteve um
percentual semelhante ao observado em 2011.

36
A violência se constitui num dos mais graves problemas para a
população de rua de Porto Alegre. Mais da metade (60,6%) respondeu
já ter vivenciado situação de violência, incluindo os 47,5% que viven-
ciaram essa situação mais de uma vez. Considerando a violência sim-
bólica, cerca de 45% já foi expulso de algum lugar, desse percentual
36,5% foi de locais ou órgãos públicos, como ruas, calçadas, praças,
parques, marquises e até mesmo hospitais e postos de saúde. Em esta-
belecimentos comerciais, incluindo bancos, 21,1% afirma que já sofreu
discriminação.
No geral eles percebem que sua presença é indesejada e recebem
tratamentos negativos como por exemplo, com desconfiança (82,4%)
e com medo (80,7%) dos entrevistados. O preconceito foi apontado
por 79,4%, mostrando que essa população tem perfeita consciência do
ambiente social em que vivem, produzindo a falta de respeito, esta,
apontada por mais da metade dos entrevistados como sendo uma con-
sequência do preconceito. Para eles, a pior consequência destas consta-
tações de negativização de suas vidas é a sensação de vulnerabilidade,
sobretudo, frente à violência.
Os dados da pesquisa também apontam para uma maior percep-
ção de adoecimento e de problemas de saúde, em relação às anteriores
em quase todas as categorias, à exceção das doenças de pele, que dimi-
nuíram pela metade e as cardíacas, que se mantiveram estáveis. O uso
ou consumo de produtos que podem ser prejudiciais à saúde se mantém
elevado, especialmente o cigarro consumido por 51,8% todos os dias,
seguido por bebidas alcóolicas, consumidas diariamente por 24,6% e
por 36,9% não cotidianamente. As drogas ilícitas mais consumidas são
maconha e crack. O aumento na percepção de doenças, sugere a preo-
cupação e possivelmente inovações nas políticas públicas.

Dinâmicas novas e políticas convencionais

Algumas especificidades da população de rua de Porto Alegre re-


metem à conclusões a respeito das dinâmicas recentes e questionadoras.
Metade dessa população afirmou ter nascido em Porto Alegre, quase
10% maior que em 2007. Houve diminuição do percentual de população

37
feminina de cerca de 20% para cerca de 14% em 2016. O tempo de mo-
radia em Porto Alegre aumentou, e o tempo que está na rua, também.
O tempo de rua é muito importante para políticas de deman-
das, pois quanto maior este tempo, maior o vínculo que estabelecem no
sentido de construírem condições e artimanhas de sobrevivência e de
segurança. Em alguns anos, perde-se vínculos, sobretudo com seu meio
de origem e mudam-se hábitos e vínculos. Com o tempo, aprendem as
artimanhas desse modo de vida e se ajustam a elas, e passam a reivin-
dicar a partir dessa condição.
Os contatos com familiares ou com as pessoas de convivência no
período anterior à rua se alongam Mais de um terço (37%), há mais de
10 anos não tem nenhum contato dessa natureza. Não se pode transpor
o conceito dominante, de origem cristã, de família. Em Porto Alegre,
há algumas experiências de criação de vínculos societários entre eles,
com compromisso, que chamam de comunidade. Incipientes ainda, mas
podem estar apontando perspectivas interessantes.
Há situações de riscos que a situação de rua agrega ao cotidia-
no. Por estarem em condições de desabrigo corporal e sofrerem pre-
conceito social cotidianamente, os riscos e desafios que enfrentam são
proporcionais. Afetam, por exemplo, de forma impactante a saúde tan-
to corporal quanto mental. A confissão generalizada de medo de não
acordar ou de morrer como que do nada, de não poder utilizar deter-
minados espaços ou meios (transporte, praças, áreas de lazer), o alto
índice de fumantes, de consumo de álcool ou de drogas, manifesta essas
condições ou sensações de risco constante.
Refinando melhor a análise, constata-se que a opção por dormir
em lugares institucionalizados ou protegidos variou pouco nos últimos
oito anos. Os Albergues têm maior procura. É provável que o peque-
no incremento da utilização dos albergues como dormitório, possa ter
relação com a diminuição do uso de abrigos. Não obstante, mais da
metade ainda dorme cotidianamente e prioritariamente em lugares de
risco e improvisados e com forte exposição ao ambiente natural. É rele-
vante o fato de que esses espaços desprotegidos também aparecem com
frequência relativamente elevada como segunda opção. Deste modo,
conclui-se que, à semelhança com os resultados de estudos anteriores,

38
cerca de 60% da população estudada pode ser caracterizada como “mo-
radora de rua”. Pois, a cidade de Porto Alegre possui atrativos para
essa população, como recursos de sobrevivência e renda (classe média
que usa seus serviços como segurança, guarda de carros, limpeza, cole-
ta de material reciclável etc.) que dá sustentabilidade e reprodução de
boa parte dessa população

Encruzilhada e futuro complexos

O perfil etário da população de rua adulta de Porto Alegre apre-


senta tendência ao envelhecimento e se mostra bastante diversificada
no que se refere a sua origem étnica e ao seu pertencimento religioso.
Predomina o pertencimento católico e alto índice de ateus. No que se
refere a escolaridade dessa população tem-se que 70% declara possuir
Ensino Fundamental incompleto ou ser analfabeto, percentual esse, se-
melhante ao observado entre as populações de baixa renda da cidade.
De uma amenizar geral, a maioria obtém algum rendimento pessoal
(cerca de 70% até um Salário Mínimo) e cerca de um terço recebe be-
nefícios sociais públicos, como bolsa família, no caso remetido à filhos
que não vivem na rua.
Mais da metade dorme em lugar desprotegido (praças/parques,
marquises, pontes etc.) de forma regular. Cerca de 10% também dorme
nestes locais intermitentemente, o que significa que, para cerca de 60%,
as políticas de acolhimento e proteção não surtem o efeito esperado. O
local de dormida é fundamental para caracterizar a condição de estar
na rua, pois caracterizaria o conceito de morador de rua, propriamente.
Além da exposição aos riscos de segurança e para a saúde.
As políticas de alimentação e de vestuário, de maneira geral es-
tão atendendo às demandas, sendo estas, aparentemente as únicas que
atendem de maneira satisfatória, na perspectiva desse população. Em
relação às políticas que se referem a saúde e bem estar, à segurança,
ocupação do tempo livre, o estudo mostrou situação crítica, inclusive
de piora nos últimos anos, na percepção desses usuários. Atender a
essas demandas permanece sendo um dos principais desafios para a
sociedade e para a administração de Porto Alegre.

39
Em linhas gerais tem-se que os dados apresentados mostram uma
dinâmica de vida marcada pelo reconhecimento da situação de subalter-
nidade e de falta de reconhecimento social. Embora haja, de um lado,
maior visibilidade política e numérica da população em situação de rua
na cidade, o que se percebe através das percepções trazidas pelas pessoas
estudadas é uma intensificação de estigmas e atribuições negativas.
O uso de serviços oferecidos para esta população continua mar-
cando o cotidiano de escassa parte da população estudada, o que cons-
titui um desafio para as políticas públicas. E, neste sentido, reconhecer
a existência social das pessoas em situação de rua pode ser admitir que
o rumo das políticas talvez não seja aquele da simples tentativa de sua
supressão através de políticas assistencialistas ou de controle social
punitivo, mas atenção e, sobretudo, transformação dos complexos pro-
cessos sociais que as configuram, na sua dramaticidade e luta cotidiana.
É importante registrar que o sucesso obtido tanto nesta última
pesquisa quanto nas anteriores deveu-se em boa medida por estarem
pautadas em três princípios fundamentais, rigorosamente respeitados,
a saber: a confiança, a responsabilidade e a idoneidade/honestidade.
Confiança na equipe com quem se trabalha, o que exige postura
vigilante de transparência, evitando constrangimentos, estimulando a
liberdade e o engajamento de todos com os resultados e, portanto com
o processo. Responsabilidade de todos os participantes no que se refere
às tarefas e compromissos. Ser honestos e idôneos para com todos os
envolvidos na pesquisa de modo que, inspire confiança e confiabilidade
nos resultados convencendo o informante da importância da sua parti-
cipação, para si próprios.
A experiência da UFRGS nestes últimos 14 anos de parcerias
e estudos desse universo social, para além do desafio metodológico –
“coisa para louco”, se ouvia lá no começo –, é gratificante observar
que seus resultados mobilizam boa parte da cidade, tanto os meios de
comunicação, quanto as instituições e a população em geral. Apesar de
numericamente pouco expressivo, cerca de 0,0012%, da população da
cidade, esta, ocupa um lugar territorial físico e simbólico, importante.
Não há quem não tenha vivido alguma experiência, contato, conversa,
observação de soslaio ou em forma de desafio, observando seus cachor-

40
ros bem cuidados e fiéis aos donos, trocado algo, parado diante do noti-
ciário para ouvir sobre eles, lido uma reportagem ou artigo acadêmico,
lamentado a violência gratuita sobre algum deles etc. A presença diu-
turna de uma quase negação da existência provoca desacomodações e
desperta na população sentimentos humanos.
Perceber e mostrar com dados e informações o grau e a profun-
didade do pertencimento deles à cidade, o compromisso com a preser-
vação ambiental que lhes dá abrigo e sombra, com a coleta dos resíduos
recicláveis que produzimos, com a crescente consciência coletiva de
uma identidade em construção e de um desafio cotidiano que se expres-
sam através de suas precárias condições, que os mantêm vivos, alguns
por mais de 30 anos na rua, desafiando essa precariedade.
Disto decorre que, tais estudos estudos estão cada vez mais sen-
do utilizados por essa população que, através de suas organizações, de
mediadores e/ou instituições que atuam junto à eles, por jornalistas,
políticos e pessoas do direito institucional para posicionar-se e por ve-
zes proporem iniciativas e/ou questionamentos sobre esse tema.
É fato que as populações em situação de rua estão presentes em
quase todas as sociedades, de forma generalizada na América Latina,
nos Estados Unidos e em alguns países da Europa ocidental, dentre
outros. Em muitos países como o Brasil, estão presentes em espaços
não citadinos ou rurais, como os trecheiros, andarilhos e biscateiros.
Contudo, há, no Brasil, uma tendência a se observar uma maior con-
centração destes nas regiões metropolitanas, onde há maior disponi-
bilidade de recursos garantidores de sobrevivência, de invisibilidade
ou anonimato. No Brasil, o Ministério do Desenvolvimento Social e
Agrário – MDS contempla com apoio a políticas para essa população
às cidades com mais de 200 mil habitantes. Um arbítrio inexplicável,
discriminatório, pois burla a isonomia de tratamento entre cidadãos
que vivem as mesmas condições.
Todavia, a questão central que permanece reside em se oferecer
políticas de bem-estar e compensatórias, para garantia de seus direitos
de cidadania, sem impor, a estes, uma condição civilizatória. Valorizar
as experiências e perscrutar suas demandas, por mais simples que se-
jam, como, por exemplo, banheiros abertos 24 horas, acesso fácil a água

41
potável, acesso fácil aos serviços de saúde, políticas de estímulo a ren-
da, entre muitas iniciativas que emergem no debate com eles mesmos,
são apenas alguns dos caminhos a partir dos quais pode-se construir
um novo paradigma em relação a essas populações e as políticas a ela
correlatas. Disto, conclui-se que:

Reconhecer a existência social de crianças e adolescentes em


situação de rua em Porto Alegre, por todos, como cidadãos que
integram nosso cotidiano e devam usufruir dos direitos e das
condições saudáveis de vida permanece como tarefa comum, de
todos nós, além das responsabilidades das instituições. [Pois]
A responsabilização não pode ficar adstrita aos órgãos públicos
ou instituições que prestam serviços formalmente para essa
população (FASC, 2016).

E, neste sentido, tem-se que a superação de políticas assistencia-


listas, objeto de esforços nas últimas três décadas em Porto Alegre, não
pode esmorecer e ser substituída por métodos de controle social puni-
tivos ou restritivos, mas devem consolidar-se em cultura da cidade para
acompanhar suas demandas e as transformações dos complexos proces-
sos sociais que as configuram, na sua dramaticidade e luta cotidiana.

42
Referências

FASC. Relatório Final de Pesquisa: Cadastro de Adultos em Situa-


ção de Rua de Porto Alegre/RS. Porto Alegre: FASC, 2012.

FASC. Relatório Final de Pesquisa: Cadastro de Adultos em Situa-


ção de Rua de Porto Alegre/RS. Porto Alegre: FASC, 2012. In: http://
www2.portoalegre.rs.gov.br/fasc/default.php?pg=2&p_secao=120

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Rela-


tório final da pesquisa: Cadastro de Adultos em Situação de Rua
e Estudo do Mundo da População Adulta em Situação de Rua de
Porto Alegre. Porto Alegre, 2008 (Mimeo).

GEHLEN, I.; SCHUCH, P.; PIMENTA, M. M.; VIRGÍNIO, A. S.;


MEIRELLES, M. Relatório quanti qualitativo, contendo o Cadas-
tro censitário e o Modo de vida cotidiana da População Adulta em
Situação de Rua de Porto Alegre. IFCH/UFRGS – FASC, 2016, In:
http://www2.portoalegre.rs.gov.br/fasc/default.php?p_secao=120

GEHLEN, I.; SCHUCH, P.; PIMENTA, M. M.; VIRGÍNIO, A. S. Ca-


dastro de crianças e adolescentes em situação de rua de Porto
Alegre. Relatório pesquisa UFRGS-FASC. Porto Alegre, 2016a (em:
http://www2.portoalegre.rs.gov.br/fasc/default.php?p_secao=120b)

GEHLEN, I.; SILVA, S. R.; BORBA, M. (Orgs.). Diversidade e Proteção So-


cial: estudos quanti-qualitativos das populações de Porto Alegre: afro-
-brasileiros; crianças, adolescentes e adultos em situação de rua; coleti-
vos indígenas; remanescentes de quilombos. Porto Alegre, Century, 2008.

MAGNI, C. T.; SCHUCH, P.; GEHLEN, I.; DICKEL, I. K. Crianças


e adolescentes em situação de rua em Porto Alegre. In: GEHLEN, I.;
SILVA, M. B.; SANTOS, S. R. (Orgs.). Diversidade e Proteção So-
cial: Estudos quanti-qualitativos das populações de Porto Alegre.
Porto Alegre: Century, 2008. Pp. 71-92.

43
EQUIPAMENTOS, SERVIÇOS E VISÕES SOBRE
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA PESSOAS ADULTAS
EM SITUAÇÃO DE RUA EM PORTO ALEGRE:
ENTRE O CUIDADO E A VIOLÊNCIA
PAtrice Schuch
ivAldo Gehlen
heloíSA helenA SAlvAtti PAiM
tiAGo MArtinelli

Os que mais utilizam os albergues, agora, no momento, sem ser as


pessoas que são velhas, e as pessoas que não são daqui de Porto Ale-
gre, e esse pessoal que trabalha na Cootravipa. Esses acessam bem
mais, está entendendo? Não que quem está na rua não possa. Os que
estão na rua eles não acessam as casas porque eles são, como o cara
falou, humilhados. Por isso que eles estão na rua. E lá é horário para
tudo. Tem que calar a boca, tem que tirar o boné, tem que fazer o que
eles querem e na rua não. Se tu tiver parado numa fila para pegar
uma fichinha para entrar no albergue já tem calar a boca, se tu falar
tu é suspenso. Aí tu tem que ficar numa fila, aí de repente o cara tem
o dia todo. Tu não pode sentar tem que ficar em pé esperando a tua
ficha. Tem que ficar em pé na fila até subir para a hora do banho.
Então o que acontece? Por que eu vou ir lá no albergue, ficar lá no
albergue sendo que eu posso ficar aqui na Borges? Onde vão trazer a
comida, ninguém vai me tirar o boné, ninguém vai pedir nada, eu vou
no Harmonia tomar um banho.

(Pessoa em situação de rua, narrativa realizada


em Grupo Focal)

A fala-epígrafe deste texto expõe críticas contundentes aos pro-


cedimentos de institucionalização em abrigos, segundo a perspectiva
de uma pessoa em situação de rua em Porto Alegre, participante do
Boca de Rua. A narrativa expõe um processo em voga que, segundo os
usuários dos serviços, mas também segundo trabalhadores e gestores
da área, se refere à transformação do perfil de usuários de abrigos e de

45
processos seletivos intensos para ingresso das pessoas nesses serviços.
Também assinala a existência de regramentos para sua habitação e,
em última instância, destaca a preferência pela vida na rua, frente às
configurações do atendimento nos abrigos.
A colocação em evidência dessa narrativa não tem a intenção de
afirmar a ineficácia das estruturas de atendimento à população de rua,
mas de instigar a curiosidade sobre como funcionam e se estruturam.
Não é novidade a crítica aos regramentos institucionais, feitas pelas pes-
soas em situação de rua, às instituições de abrigo e albergue na cidade
que é, inclusive, um dos principais motivos de sua não utilização. Entre-
tanto, pouco se sabe acerca dos serviços destinados à população de rua na
cidade, para além dessas críticas. Também, a perspectiva dos trabalhado-
res e profissionais da área, seus desafios, estruturas de trabalho e visões
sobre políticas públicas é algo invisível à discussão sobre a configuração
dessas políticas, assim como também é a perspectiva das próprias pes-
soas atingidas, como se fossem elementos acessórios ou desimportantes,
ao invés de constitutivos de seu modo de existência e funcionamento.
Este texto irá apresentar alguns dados que colocam em evidência
esses aspectos pouco visíveis dos modos de gestão da população de rua
em Porto Alegre: de um lado, as “infraestruturas” dos serviços de abri-
go e de albergue destinados a esse público e, de outro lado, a perspec-
tiva das pessoas envolvidas, seja na condição de trabalhadores, seja na
condição de usuários dos serviços, sobre as políticas públicas da área.
Dito isto, tem-se que esse estudo faz parte dos resultados da pes-
quisa mais abrangente intitulada: “Pesquisa Quanti-Qualitativa da Po-
pulação adulta e de crianças e adolescentes em situação de rua da cidade
de Porto Alegre” (UFRGS, 2016), realizado sob a coordenação dos pro-
fessores Ivaldo Gehlen e Patrice Schuch. O projeto maior foi composto
também pela pesquisa quantitativa, responsável pelo censo e quantifica-
ção de dados acerca das características socioculturais da população em
situação de rua, bem como pelos dados acerca dos modos de inserção
urbana e das relações com as políticas públicas (UFRGS, 2016).
A pesquisa qualitativa ora apresentada foi dividida três partes
(UFRGS, 2017): a) estudo dos equipamentos, realizado através de “visitas
etnográficas” nos abrigos e albergues para população adulta em situação

46
de rua em Porto Alegre, nos Centros Pop e nos CREAS e CRAS da região
centro de Porto Alegre; b) estudo das percepções e expectativas de tra-
balhadores e público beneficiário, acerca das políticas públicas para popu-
lação de rua, realizado através de “grupos focais”; e, c) acompanhamento
de eventos e fóruns de discussão sobre as políticas (reuniões, seminários
e grupos de trabalho destinados à formação e execução das políticas para
pessoas adultas em situação de rua na cidade de Porto Alegre).
As atividades de pesquisa foram planejadas para alcançar um ob-
jetivo geral mais amplo: conhecer as estruturas e modos de funciona-
mento das principais instituições tipificadas como de assistência social
de atendimento à população de rua adulta em Porto Alegre, bem como
os desafios e as expectativas quanto ao atendimento na percepção de
trabalhadores e público atendido, na interface com a formulação das
políticas e seu modo de funcionamento. As ações da pesquisa qualitati-
va foram realizadas no período de março a novembro de 2016, por uma
equipe de pesquisadores que conjugou pesquisadores e professores das
áreas da Antropologia, Sociologia e Serviço Social, estudantes de pós-
-graduação em Antropologia e em Sociologia e estudantes de gradua-
ção em Ciências Sociais1.
O estudo dos equipamentos realizado através das “visitas etno-
gráficas” ocorreu entre junho e novembro de 2016 e ao todo foram
considerados 16 (dezesseis) equipamentos/serviços. Os serviços foram
visitados em ao menos 2 (dois) turnos (com exceção de um equipa-
mento e do CREAS E CRAS) e, no geral, duas vezes, sendo que cada
encontro teve duração em torno de 2 a 3 horas. A pesquisa das per-
cepções e vivências de trabalhadores e usuários dos serviços sobre as
políticas na área foi realizado através de “grupos focais”, realizados nos
1 A equipe da pesquisa qualitativa foi composta por Patrice Schuch (professora do De-
partamento de Antropologia), Alexandre Virgínio (professor do Departamento de So-
ciologia), Heloísa Helena Salvatti Paim (antropóloga contratada), Dayana Mezzonato
Machado (mestranda em Desenvolvimento Rural na UFRGS) e Caroline Silveira Sar-
mento (graduanda em Ciências Sociais na UFRGS). As visitas etnográficas foram rea-
lizadas por duplas de pesquisadores que contaram com a supervisão de Patrice Schu-
ch e Heloísa Paim, com a participação dos pesquisadores: Caroline Silveira Sarmento,
Dayana Mezzonato e Alexandre Virgínio. Os grupos focais foram desenvolvidos por
Melissa Pimenta e Tiago Martinelli, sendo que a sua execução foi coordenada por Tia-
go Martinelli, com a participação de Bruno Guilhermano Fernandes (graduando em
Ciências Sociais). O acompanhamento etnográfico dos eventos e fóruns de discussão
sobre as políticas para população de rua foi realizado por Heloísa Salvatti Paim.

47
dias 28, 29 e 30 de setembro e no dia 05 de outubro. Houve a realiza-
ção de 4 (quatro) grupos focais, que tiveram a seguinte composição: 1)
Trabalhadores de abrigos, albergues e república; 2) Trabalhadores dos
Centros POP, Consultório na Rua e EPA; 3) Trabalhadores do CRAS,
CREAS e Ação Rua; e, 4) Pessoas em situação de rua que utilizam os
serviços públicos destinados a esse público, em Porto Alegre.
O trabalho de campo junto aos fóruns institucionais ocorreu en-
tre março e outubro de 2016.

Notas sobre “Etnografia Pública”

A execução da pesquisa qualitativa foi realizada em um cenário


que privilegiou os diálogos estabelecidos com trabalhadores da Fun-
dação de Assistência Social e Cidadania (FASC) e com integrantes do
Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), em diferentes
momentos. A proposta da pesquisa respondeu a um edital lançado pela
FASC, ainda em 2015. Após aprovação do projeto inicial, constituiu-se
um coletivo responsável pelo acompanhamento interinstitucional da
pesquisa, intitulado “grupo de acompanhamento da pesquisa”, compos-
to por pesquisadores da UFRGS (sociologia, antropologia e serviço
social), por trabalhadores da FASC (de representantes de diferentes se-
tores: proteção básica, especial, recursos humanos, vigilância sócio-as-
sistencial, direção técnica, entre outros) e de representantes das pes-
soas em situação de rua (MNPR e Boca de Rua). A pesquisa, portanto,
contou com a colaboração de um conjunto de debates no qual se faziam
presentes pessoas que ocupam posições distintas em relação à proble-
mática geral da pesquisa, engajando e implicando muitas pessoas em
seu processo de realização.
É neste sentido que a execução da pesquisa se inspirou na propos-
ta de uma “etnografia pública”, nos moldes descritos pelo antropólogo
Didier Fassin (2013), mas que encontra eco importante nas colocações
de João Biehl e sua insistência no potencial da antropologia de ser uma
“força mobilizadora no mundo” (BIEHL, 2013: 371). Embora com di-
ferentes nuances que não cabe neste momento, Biehl e Fassin evocam a
impossibilidade da etnografia sem a produção de um “público”.

48
Para Biehl (2013), a prática antropológica solicita um terceiro, um
leitor, uma comunidade de algum tipo, que não é reduzida aos persona-
gens ou ao escritor, mas que manifestará e levará adiante, portanto, o pró-
prio potencial da antropologia em ser uma força mobilizadora no mundo.
Para Fassin (2013), por sua vez, esse potencial deveria, inclusive, ser exer-
citado em maior potência a partir do que chama de “etnografia pública”:

A expressão refere-se simplesmente ao princípio de trazer para


vários públicos - além dos círculos acadêmicos – as conclusões
de uma etnografia analisada à luz do pensamento crítico, de
modo que estes resultados possam ser apreendidos, apropriados,
debatidos, contestados e utilizados. Presume-se que tal conversa
entre o etnógrafo e seus públicos gera uma circulação de co-
nhecimento, reflexão e ação suscetível de contribuir para uma
transformação do modo como o mundo é representado e expe-
rienciado (FASSIN, 2013: 628).

Seria, portanto, na análise da etnografia analisada à luz do pensa-


mento crítico e na sua apreensão, contestação e utilização, bem como na
circulação de conhecimento, reflexão e ação que evoca, a residência do
potencial transformador da antropologia e de sua própria politização.
Para Fassin (2013), a produção de uma “etnografia pública” implicaria
dois processos: de “popularização”, que tem a ver com modos criativos
e estilos de comunicação dirigidos a públicos variados (incluindo-se o
acadêmico), e de “politização”, referente exatamente à proposição de
mudança e com o potencial de impactar as políticas.
Entretanto, como já colocado em Schuch (2016; 2017), a expe-
riência dessa pesquisa e de outras realizadas na interface entre acadê-
micos, gestores de instituições governamentais e não governamentais
e militantes sociais, faz pensar na necessidade de adicionarmos mais
um sentido de “público”, que Fassin (2013) parece deixar intocável: o
de realizar a pesquisa publicamente. Os dois elementos enfatizados da
composição de etnografia pública – a publicação e a politização – pa-
recem ser sempre pensados mais como resultados da pesquisa antro-
pológica do que processos que a acompanham. Considerada apenas a
partir do viés dos resultados, o sentido de uma pesquisa “pública” não

49
permite algo oxigenador e vital ao trabalho antropológico: seu próprio
repensar no processo de sua realização, a interlocução – que pode ser
bastante tensa, por vezes – com aqueles que estamos estudando.
No caso da pesquisa acerca das estruturas de atendimento à popu-
lação de rua e das visões e perspectivas dos trabalhadores e pessoas que
usufruem desses serviços, houve debates bastante tensos acerca do estu-
do, uma vez que poucas vezes pessoas com tão distintas posições sociais
se encontraram para configurar uma pesquisa. Tais debates permitiram
a formação de “alianças provisórias” produtivas para a realização da pes-
quisa e para a configuração de relações mais transversais em um domínio
de relações bastante hierarquizado na entidade contratante da pesquisa e
fornecedora dos serviços de assistência social na cidade.
Nas reuniões do “grupo de acompanhamento da pesquisa”, o estu-
do quantitativo assumiu centralidade nos debates, tendo em vista que as
repercussões políticas desse tipo de estudo ganham maior visibilidade e
repercussão na sociedade como um todo (ver SCHUCH, neste volume).
Nesse espaço de interlocuções, os debates entre os participantes produ-
ziram o compromisso de que não haveria publicação de resultados de lo-
calização das pessoas em situação de rua para além das grandes regiões
de diferenciação de locais provenientes do Orçamento Participativo, uma
vez que foi reconhecido o perigo de apropriação de dados pelas forças
repressivas do Estado. Esta foi uma importante conquista do movimen-
to social que, em acordo com os pesquisadores da UFRGS, assinalou a
possibilidade de um uso repressivo dos dados do estudo.
Já para a pesquisa qualitativa, esses diálogos contribuíram no
delineamento de questões e identificação de espaços institucionais e
pessoas a serem contatadas, além de ter permitido aproximações com
temas significativos como as formas de organização institucional e ló-
gicas especificas de trabalho. De forma geral, gestores, pesquisadores
e pessoas relacionadas ao movimento social celebraram a possibilida-
de das próprias estruturas de atendimento de abrigo e albergue, bem
como das formas de governo da população de rua, se tornarem mais
visíveis publicamente através do estudo.
Também, a visibilidade das perspectivas dos trabalhadores da
área, conjugada com o refinamento das expectativas do próprio público

50
atendido, foram considerados avanços nas propostas de pesquisa, uma
vez que deslocam a ênfase nos estudos censitários ou de constituição de
perfil dos atendidos para abarcar também as mediações institucionais
e as vivências das pessoas que constituem as políticas públicas. Essa
é, certamente, uma das contribuições fundamentais da antropologia
no estudo das políticas públicas: para saber como funcionam as políti-
cas, precisamos saber como são formuladas – muitas vezes de maneira
ambígua e disputada –, recebidas e experimentadas pelas pessoas que
são afetadas por essas, em conjugação com as técnicas, estratégias e
procedimentos de governo que lhes dão vida (BIEHL, 2013; BIEHL e
PETRYNA, 2013; GUPTA, 2012, SHORE, 2010).

As “Infraestruturas” Cotidianas e as Vivências das Pessoas


na Análise das Políticas Públicas

É nossa expectativa que a pesquisa ora apresentada possa pos-


sibilitar o avanço nos processos de visibilidade e produção de direitos
para as pessoas em situação de rua na cidade de Porto Alegre. Para
tanto, consideramos essencial o conhecimento das características so-
cioculturais das pessoas colocadas nessa situação social – que traba-
lhamos através do estudo quantitativo –, bem como da conformação de
políticas e de práticas cotidianas para seu atendimento e da percepção
de como tais práticas e políticas são percebidas pelas pessoas afetadas
mais diretamente, os trabalhadores dos serviços de assistência e o pú-
blico atendido.
Como já escrevemos anteriormente (SCHUCH et Al., 2008;
SCHUCH e GEHLEN, 2012), perspectivas essencialistas dirigidas a
esse grupo populacional ainda persistem, seja na subtração de direitos
ora conquistados, seja nas ameaças que as pessoas em situação de rua
sofrem exatamente por utilizarem as ruas como lugar de existência
social. A presença de tais posturas justifica a ênfase no conhecimento
e visibilidade das formas de existência social e de agência política das
pessoas em situação de rua, assim como a possibilidade de fornecimen-
to de dados acerca dos serviços de assistência social que lhes são desti-
nados, para eventual aperfeiçoamento e transformação.

51
Em trabalho anterior (SCHUCH e GEHLEN 2012), nossa hi-
pótese foi de que certa tendência à essencialização da situação de rua
como uma problemática social está associada a uma correlação entre di-
nâmicas que conjugam duas fortes perspectivas sobre o assunto: àquela
pautada pela visão de que estar na rua é um problema que requer inter-
venções e práticas de governo determinadas a suprimir tal fenômeno
a partir da simples retirada das pessoas da rua e àquela pautada num
diagnóstico de causalidades macroestruturais, que subentende as pes-
soas em situação de rua como os sujeitos da “falta”.
Embora trabalhem com perspectivas de causalidades diferencia-
das – a primeira através da individualização da questão e a segunda
através de seu deslocamento para a esfera macroestrutural, ambas as
abordagens retiram a complexidade da agência dos sujeitos, tornando
a rua um espaço ontológico da exclusão por excelência e/ou entendido
unicamente a partir da lógica das necessidades de sobrevivência. Como
já argumentamos, uma visão complexa da situação de rua requer o di-
mensionamento tanto das multicausalidades que estão na origem desse
fenômeno, entre as quais devem ser incluídas visões de mundo e práti-
cas de sujeitos realizadas na imersão em processos sociais e históricos,
mas também tecnologias de governo específicas – meios destinados a
consecução de determinados fins, tais como projetos de governo, téc-
nicas e formas de atendimento, expertises e modos de gestão (FOU-
CAULT, 1979 e FONSECA et Al., 2016).
Esse caráter relacional entre determinadas visões de mundo e
práticas de sujeitos e modos de sua gestão muitas vezes fica encober-
to ou menosprezado nos esforços de intervenção sobre o assunto e
mesmo nas pesquisas sobre o tema, cujo interesse principal tem sido a
construção de perfis populacionais ou mesmo a busca por causalidades
para a situação de rua. O que se enfatiza, nesses casos, são atributos
individualizados e não as variadas mediações institucionais, históricas
e políticas, que engendram a construção dessa população como uma
problemática social (DE LUCCA, 2007). Ao reconhecimento de que a
rua é também um espaço de produção de relações sociais e simbólicas,
associa-se o nosso entendimento de que o estudo das técnicas e formas
em que o governo da população de rua ganha vida é essencial para a

52
compreensão da complexidade da experiência da rua como forma de
vida e como uma problemática para o engajamento de profissionais,
militantes e pessoas atendidas nesta área das políticas públicas.
Nesse sentido, nos adicionamos à perspectiva analítica que leva
em conta as tecnologias de poder no estudo dos fenômenos sociais
(FONSECA et Al., 2016) e que credita importância à análise dos pro-
cedimentos cotidianos e práticas burocráticas de governo, isto é, às
suas “infraestruturas” (GUPTA, 2014). Ao mesmo tempo, conjugamos
à análise a perspectiva que compreende as políticas públicas como ati-
vidades socioculturais profundamente imersas em processos históri-
cos, políticos e culturais; é nesse sentido que o seu estudo deve levar
em conta as experiências das pessoas e suas interpretações acerca das
políticas que por vezes estão em conflito e muitas vezes são bastante
disputadas (SHORE, 2010).
Sendo assim, acreditamos que a análise contígua das grandes
narrativas soberanas de produção de direitos – em que a população de
rua no Brasil aparece progressivamente como um agente de destaque
e visibilidade nacional a partir da década de 2000 (PIZZATO, 2012
e SCHUCH, neste volume) – com as operações práticas do governo
diário das pessoas em situação de rua e com as vivências dos atores
que estão implicados em sua conformação e recepção torna o cenário
das políticas públicas para esse público bastante ambíguo, marcado por
dinâmicas complexas e contíguas de proteção e violência.

Equipamentos de Assistência Social para População


de Rua em Porto Alegre

Para fins de organização deste capítulo, apresentaremos as con-


tribuições das atividades que compuseram a pesquisa qualitativa se-
paradamente – visitas etnográficas e grupos focais – entendendo que
a atividade de participação em eventos e fóruns de debates contribuiu
transversalmente ao adensamento analítico dos dados recolhidos nas
atividades de pesquisa.
No que se refere ao estudo dos serviços de assistência social, o
objetivo mais específico foi de compreender a estrutura heterogênea

53
e os modos de funcionamento das instituições tipificadas como de as-
sistência social na cidade de Porto Alegre. Neste caso, a metodolo-
gia privilegiou o que chamamos de “visitas etnográficas”, que tiveram
como foco central os equipamentos de acolhimento (abrigos, albergues,
república, casa lar) e alguns serviços, que prestam atendimentos diver-
sos a população adulta em situação de rua, desde aqueles em que há
solicitação de documentação, benefícios assistenciais até os que possi-
bilitam atividades de higiene, alimentação, convivência, entre outros
(Centros Pop, Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos
– SCFV, CREAS e CRAS). Nesse segundo caso, priorizaram-se aqueles
equipamentos situados na região central da cidade, por ser uma área
reconhecida como de grande concentração das pessoas em situação de
rua. Foram incluídos os equipamentos que estão sob a responsabilidade
da FASC, seja enquanto executora direta, seja pelos convênios.
As visitas etnográficas consistiram na articulação de duas téc-
nicas de pesquisa: entrevistas e, em alguns casos, observações partici-
pantes. As visitas foram acompanhadas de um roteiro semiestruturado
para a caracterização geral do equipamento (a quem se destina, crité-
rios de ingresso, exigências para permanência, atividades principais),
recursos disponíveis (humanos, infraestrutura, financeiros e materiais),
bem como aspectos da rotina institucional. As entrevistas foram rea-
lizadas com os coordenadores e/ou com pessoas indicadas por eles.
Ao final, participaram das entrevistas pessoas que ocupam diferentes
funções nas instituições, como diretores, técnicos (assistentes sociais,
psicólogos, pedagogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros), moni-
tores e assistentes administrativos. A maior parte das entrevistas foi
gravada, com autorização dos participantes, garantindo-se o uso da
gravação apenas para a equipe de pesquisa. Além disso, os pesquisado-
res mantiveram diários de campo para registro das visitas.
Já as situações a serem observadas foram combinadas entre os
entrevistados e as pesquisadoras. Assim, conforme o equipamento, ob-
servaram-se as rotinas de entrada nos serviços, refeições, atividades
coletivas e assembleias. Foram momentos profícuos para visualizar ro-
tinas institucionais, modos de atuação de trabalhadores, relações entre
trabalhadores e usuários, relações entre os usuários.

54
Após a primeira sistematização do material produzido através
das visitas etnográficas, identificou-se que as informações relativas aos
critérios de ingresso dos usuários eram pouco claras para os pesqui-
sados nos equipamentos, na medida em que seriam responsabilidade
do Núcleo de Acolhimento da FASC. Diante disso, foram realizados
dois encontros no Núcleo de Acolhimento, setor da FASC, responsável
pelo gerenciamento dessas atividades, para conversar com trabalha-
dores que ali atuam. No projeto, foi proposto que, após a realização
das visitas etnográficas, seriam selecionados um ou dois equipamentos
para realização de observações mais sistemáticas nesses serviços. Em
reunião da comissão de acompanhamento da pesquisa foi definido que
essas seriam feitas junto à República e ao Albergue Municipal.

Quadro 1: Equipamentos Pesquisados e Datas das Visitas Etno-


gráficas
Nome do serviço Dias das Visitas
Abrigo Bom Jesus 21/06/16; 28/06/16
Abrigo Marlene 13/06/16; 11/07/16
Abrigo para Famílias 13/06 /16manhã; 13/06/16 tarde
Albergue Dias da Cruz 16/06/16; 29/06/16
Albergue Felipe Diel 29/06/16; 25/07/16
Albergue Municipal 22/06/16; 06/07/16; 14/07/16; 30/11/16
Casa Lilás 21/09/16 manhã; 21/09/16 tarde
Casal Lar do Idoso 21/11/16
Centro Pop 1 17/08/16; 05/09/16; 15/09/16
Centro Pop 2 18/08/16; 23/08/16; 28/08/16; 02/09/16
CRAS Centro 24/11/16
CREAS Centro 22/11/16
Lar Emanuel 24/06/16: 19/07/16
Núcleo de Acolhimento 27/09/16; 28/09/16
República Juntos 16/06/16; 18/06/16; 08/09/16; 10/09/16;
13/09/16; 21/09/16; 25/09/16; 19/10/16
Serviço de Convivência e 19/05/16; 01/07/16; 29/07/16
Fortalecimento de Vínculos

55
Recursos Humanos, Tipos e Concepções dos Serviços

A rede dos principais equipamentos destinados à população adulta


em situação de rua em Porto Alegre é muito heterogênea. Interessa sa-
lientar três características: a primeira se refere à coexistência de serviços
governamentais e conveniados com diferentes entidades não governa-
mentais. A segunda concerne à descentralização dos serviços em diferen-
tes regiões do município, executadas por equipes vinculadas a distintas
entidades. Por fim, a diferenciação dos serviços quanto as suas finalidades
(abordagem, serviço de convivência, núcleo de acolhimento, serviços de
abrigamento, serviço de albergamento). Com isso, destaca-se a heteroge-
neidade no modo de organização e execução das ações sócio-assistenciais
na cidade, que legalmente estão sobre a responsabilidade da FASC, no que
se refere à gestão, monitoramento, supervisão e avaliação.
A pesquisa apontou que existem uma série de tensões em tor-
no das formas de atendimento realizadas, que vão desde um questio-
namento em torno da finalidade do trabalho – amparo ou proteção
de direitos – até as próprias formas de contratação de funcionários,
configurando um ambiente de trabalho em que interagem funcionários
celetistas e terceirizados. Há, a percepção de um processo de precari-
zação funcional, marcada pelo crescente uso de serviços terceirizados
que afetam o cotidiano de trabalho de várias formas: impossibilidade de
seleção funcional com perfil específico para trabalho com população de
rua, transitoriedade das equipes, heterogeneidade das empresas con-
tratadas convivendo em um mesmo espaço e ausência de qualificações
profissionais destinadas aos funcionários terceirizados. De outro lado,
há uma intensa percepção de mudanças institucionais relacionadas ao
ingresso de pessoas adoecidas e idosas, que implica uma reconfigura-
ção das necessidades e modos de gestão da população nos abrigos.

Amparo ou Proteção de Direitos?

O gestor de um albergue conveniado, por exemplo, explica com


satisfação que há trabalhadores de muitos anos no albergue. Cita o
caso de uma trabalhadora da cozinha que é ex-usuária do albergue e já

56
trabalha há 8 anos naquele. O gestor também refere, orgulhoso, a exis-
tência de muitos voluntários, o que é, inclusive, condição para o pleno
funcionamento do albergue. Ao falar de sua satisfação em realizar a
inserção profissional das pessoas albergadas, refere:

O albergue não sustenta ladrão ou vagabundo, aqui é um lugar


de amparo. O tempo máximo de permanência é 15 dias, 30 dias
para quem está trabalhando. Aí depois tem que ficar 90 dias fora.
Há parcerias com Opus, Zaffari, lugares de reciclagem. Estimo
que retiramos umas 10 pessoas da rua por ano, através dessas
colocações profissionais (Gestor de Albergue Conveniado).

Por outro lado, a gestora de um abrigo conveniado, ao falar do


modo de seleção dos trabalhadores do serviço, afirma que não aceita
voluntários, uma vez que aquele é um espaço de proteção de direitos e
não de ajuda:
Nem todos conseguem trabalhar aqui. Tem que ter perfil. Eu
faço uma conversa com a pessoa, olho no olho, tenho feeling. O
perfil que falo é de poder compreender que aqui é um espaço de
proteção de direitos. Não trabalho com voluntários (Gestora de
Abrigo Conveniado).

Embora os dois equipamentos sejam parte da rede conveniada,


são muito distintos quanto à forma de compreensão da vinculação das
pessoas ao serviço, que podem ser relacionadas às diferenças de enten-
dimento do próprio objetivo do serviço: “amparo”, citado por gestor
do albergue, e “proteção de direitos”, como destacado pela gestora do
abrigo. Entretanto, há semelhanças, entre esses equipamentos, nas crí-
ticas dirigidas à FASC quanto à forma de entendimento do sentido de
“convênio” e “parceria”, considerando a FASC rígida em suas conside-
rações de rubricas de gastos e interferências em visitas avaliativas do
serviço. Sobre isso, explica a gestora do abrigo:

Nós temos uma discussão com a FASC que é política. Nós temos
uma posição política de que é pública e deveria ser provida pelo
Estado. No momento em que o Estado não pode prover tudo,
então precisa respeitar a parceria. Ai entra o tratamento conos-
co. Para convênios há muitas regras. Há muita diferença entre

57
quem está aqui e quem recebe a prestação de contas. Nós não
podemos comprar uma medicação para um usuário. Mas quem
compra? (Gestora de Abrigo).

A Terceirização das Atividades Funcionais e seus Reflexos

Outro tipo de diferenciação vivenciada, neste caso, nos equipa-


mentos próprios, diz respeito ao processo de terceirização das ativida-
des de trabalho desenvolvidas nos abrigos e albergues, o que faz com
que convivam, em um mesmo serviço, profissionais com vinculações
patronais distintas, remunerações diferenciadas até mesmo para a mes-
ma atividade e processos de capacitação funcional bastante desiguais.
Foi consenso entre os profissionais dos equipamentos da rede própria
a referência às dificuldades de gestão de unidades com até mesmo 5
(cinco) distintas empresas terceirizadas – como referido por dois abri-
gos da rede própria da FASC. A referência à constante rotatividade de
trabalhadores e, fundamentalmente, a impossibilidade de seleção fun-
cional são configurações que são percebidas como dificuldades para a
gestão institucional. Disse a gestora de um abrigo da rede própria:

[...] a terceirização em si causa um processo instável de traba-


lho, volátil. A gente tem que fazer do limão uma limonada. Ao
mesmo tempo em que tem este processo de oxigenação, temos
funcionários de 21 anos de FASC” (...) Não tem como prever o
que a empresa terceirizada vai enviar. Sei que eles pedem o ensi-
no médio. Às vezes chega pessoas aqui que não têm noção do que
é um abrigo. Teve funcionário que fugiu... literalmente (Gestora
de Abrigo da Rede Própria).

A profissional refere que, embora não possam selecionar os fun-


cionários, o abrigo pode negar a contratação de algum indicado. Im-
portante destacar que, na mesma lógica em que a utilização de pessoas
voluntárias no atendimento dos serviços conduz aos sentidos mais am-
plos da compreensão do próprio papel institucional dos equipamentos,
as narrativas sobre os processos de seleção de trabalhadores também
revelam concepções interessantes acerca do público atendido. Reti-

58
rando-se os equipamentos da rede própria para os quais a contratação
de funcionários terceirizados é realizada sem qualquer referência ou
capacitação funcional específica para o serviço, é possível perceber a
constante referência às dificuldades em contratação de pessoal, as quais
destacam certas características do público atendido e também nos dão
pistas interessantes acerca das suas especificidades.

A Reconfiguração de Público nos Equipamentos: saúde


ou assistência social?

Importa considerar também certa recorrência na atribuição de


um perfil de trabalhador que cada vez mais deveria ter qualificações
próximas aos profissionais da saúde, justamente pelo perfil dos usuá-
rios atendidos. O exemplo de um abrigo conveniado é paradigmático:
embora o cargo contratado seja de monitoria, é pré-requisito para a
contratação neste cargo a formação em técnico em enfermagem. A ges-
tora de um abrigo da rede própria da FASC, por sua vez, relaciona as
mudanças que o ingresso crescente de pessoas adoecidas na rede de
abrigo e albergue ocasiona, tanto em termos de maior tempo de per-
manência, como na promoção de novas necessidades:

Estamos recebendo usuários cada vez mais debilitados, por con-


ta da insuficiência do nosso serviço de saúde. Idealmente, as pes-
soas deveriam ficar no abrigo por 1, 2 anos. Mas temos usuários
que ficam mais do que isso, tem usuários muito debilitados que
precisam de mais tempo. Como delimitar isso? (Gestora de Abri-
go da Rede Própria da FASC).

Para os interlocutores de outro abrigo da rede própria, a caracte-


rística principal da mudança percebida no seu próprio serviço refere-se
justamente a presença de usuários com importantes problemas de saú-
de, tanto do ponto de vista “físico”, quanto “mental”, que exigem cui-
dados específicos no âmbito da saúde. Eles identificam modificações na
metodologia de trabalho, nas regras internas em função das caracterís-
ticas atuais das pessoas que usam o serviço; entretanto, tais mudanças
são vistas como contrariando os propósitos institucionais e sem uma

59
adequada reestruturação da instituição do ponto de vista das condições
físicas e de capacitação dos recursos humanos.
Em relação ao cotidiano de trabalho, contam que houve mudanças
nas regras para se adaptar aos atuais abrigados. Por exemplo, uma pro-
fissional menciona que antes havia uma regra de que os quartos eram
fechados as 8:30h da manhã, para que as pessoas não permanecessem ali.
No entanto, tendo em vista as presenças de pessoas adoecidas e idosas
essa norma foi abolida, uma vez que geraria conflitos administrar regu-
lações distintas. Um dos profissionais desse abrigo aponta que, diante do
“perfil” dos atuais moradores dessa entidade, é preciso pensar o “desliga-
mento dos usuários” de outra forma. Em suas palavras:

Uma das coisas que eu quero falar é do desligamento... a falta do


apoio de saúde, que é essa rede da saída para essas pessoas como
que eu te falei [...]. Nós temos uma lista de pessoas para resi-
dencial terapêutico, mas elas continuam aqui. Diria que é sem
propósito elas estarem aqui, porque a nossa parte já foi feita, mas
só está na manutenção, está na espera quando tiver para onde ir.
Esse é o estrangulamento da saúde com a assistência. Para nós
é um nó, não vai abrir vaga, não tem onde colocar. A gente não
tem varinha de condão (Profissional de Abrigo da Rede Própria).

A identificação das novas demandas e as alterações decorrentes


delas geram debates nos serviços e os trabalhadores se veem diante de
dilemas de difícil solução. Isso pode ser visualizado em relação a ques-
tão da organização das camas. Tendo em vista que há beliches nos ser-
viços, as vagas nos serviços são diferenciadas entre “camas superiores”
e “camas inferiores”. Essa distinção é feita em nome de evitar riscos aos
usuários, isto é, considera-se que determinados usuários não podem
ocupar as camas superiores em função de alguns critérios, por exemplo,
aqueles que fazem uso de certas medicações, os que têm convulsões, os
que fizeram uso de álcool ou outras drogas (caso de um albergue da
rede própria) ou os idosos debilitados.
Para além das modificações na própria tipologia das vagas, há
também a identificação, pelos trabalhadores, de mudanças em relação
ao tempo de permanência das pessoas nos equipamentos. Uma profis-

60
sional de abrigo da rede própria da FASC há mais de 10 anos conta que,
quando chegou à instituição, havia mais trânsito de pessoas, as razões
para ingressar no albergue eram mais pontuais (por exemplo, diz a
profissional: um alcoolista que estava tentando se manter afastado do
uso de bebida, alguém que teve seus documentos perdidos e não que-
ria estar na rua sem eles). Hoje, a profissional salienta que o tempo de
permanência nas instituições de abrigo é alto, pois, segundo ela, leva-se
um tempo para conseguir ter acesso a rede de saúde, seja CAPS, seja
CAIS Mental. Posteriormente, o tempo dos tratamentos para depen-
dência química e álcool não são curtos, fazendo com que a permanência
se amplie. Também nos casos de solicitação dos benefícios assistenciais
ou aposentadorias, refere a funcionária, o tempo não costuma ser curto.

Modos de Acolhimento e Recepção das Pessoas

Outra dimensão analítica ressaltada durante as visitas etnográfi-


cas refere-se aos modos de acolhimento e recepção das pessoas. Diante
do número limitado de vagas, são criados meios de organizar a entrada
das pessoas nos serviços:

1. categorias prioritárias de atendimento: mulheres, idosos e


adoecidos têm prioridade nas filas de atendimento, para o in-
gresso nas instituições anterior às demais pessoas;

2. reserva de vagas: casos considerados excepcionais, em que,


fundamentalmente, pessoas trabalhadoras podem perma-
necer mais tempo em abrigos e albergues do que o tempo
padrão definido para o acolhimento. Nesse caso, pode haver
também flexibilidades nos horários de ingresso e saída das
instituições, bem como nos horários de alimentação. Há tam-
bém os casos de atendimento de saúde, os quais flexibilizam
os períodos e regimentos de cronogramas de atividades, den-
tro de abrigos e albergues;

3. filas para entrada e distribuição de fichas;

61
4. rotatividade de ingresso: a qual se destina a regular o uso
regular do mesmo serviço, fazendo que haja uma circulação
de usuários pela rede de abrigos e albergues, visando apro-
veitamento das vagas por números maiores de usuários. Essa
política evidencia uma aposta na transitoriedade da situação
de rua que, percebe-se, tem limites importantes para o acolhi-
mento de pessoas com longa permanência na situação de rua
que, por outro lado, é uma parte importante da consideração
do perfil da “população em situação de rua”;

5. cadastramento e exigência de documentação de identificação


oficial: essas exigências visam, de um lado, estimular a docu-
mentação dos usuários e, de outro lado, coibir a entrada de
“desconhecidos” e de pessoas potencialmente “perigosas”;

6. guarda volumes: os quais têm uma função de armazenamen-


to de objetos, mas também de evitação da entrada de objetos
“perigosos” no cotidiano de abrigos e albergues, como facas e
objetos de valor, que podem gerar roubos e conflitos internos;

7. revista corporal: a qual, associada com outras práticas, como


a colocação de porta anti-metais, também visa evitar a entra-
da de objetos perigosos nas instituições.

Salienta-se que os modos de acolhimento e procedimentos para


recepção de pessoas informam não apenas sobre a diferencial organi-
zação do atendimento de forma a permitir o maior aproveitamento das
vagas, mas também acerca da percepção sobre as pessoas em situação
de rua que é constituinte da organização dos serviços. Neste caso, duas
conclusões são possíveis: a primeira, referente à forma de organiza-
ção dos equipamentos, que privilegia o foco no indivíduo em situação
de rua, não em famílias ou outros coletivos possíveis. Há apenas um
equipamento destinado às famílias e outro equipamento que permite
o ingresso de mães com filhos. Nesses dois casos a centralidade não é
da família, mas o determinante na entrada é a centralidade da criança.

62
Essa forma de organização é importante de ser refletida, uma vez que
a orientação das políticas mais gerais de assistência social é de valori-
zar a família; nos serviços de abrigo e albergue, ao contrário, ela não é
institucionalmente estimulada e, ao contrário, em algumas situações as
instituições trabalham para o seu desfazer no cotidiano, uma vez que
não dispõem de estruturas de acolhimento às famílias.
Em segundo lugar, ressalta-se uma percepção sobre situação de
rua que, muitas vezes, é construída de forma a se contrapor com outras
problemáticas, como a da migração, da procura do trabalho e a situa-
ção de saúde. Há também distinção entre “população de rua”, que está
associada à longa permanência na rua, e um público mais transitório
que utiliza também os serviços disponíveis. Em todo o caso, há uma
percepção de que a ausência de lar ou o fato de não estar domiciliado
não constitui a “situação de rua”, muitas vezes constituída como uma
situação de desvinculação de laços sociais, familiares e de trabalho.

Regras e Modos de Funcionamento Coletivo


dos Equipamentos

No que se refere às regras e modos de funcionamento coletivo


nos equipamentos, percebe-se uma existência heterogênea de regula-
ções e regramentos, estabelecidos localmente pelas instituições e, in-
clusive, formalizadas de forma escrita em manuais de procedimentos.
Tais regras são justificadas tanto em termos de uma garantia de boa
organização coletiva do atendimento, quanto vistas como fundamen-
tais para o auto crescimento pessoal das pessoas atendidas.
Nesse âmbito, chama atenção a existência de modos de disciplina
em que a própria suspensão ao uso do serviço é a forma disciplinar.
Essa dinâmica pode impedir que, na prática, haja o acesso aos serviços
previstos legalmente no campo da assistência à população de rua.
Os discursos indubitavelmente recorrentes são os que enfatizam
a importância do estabelecimento de regras que rompam com práticas
e relações que são consideradas comuns ao “mundo da rua” para que os
serviços possam cumprir suas atribuições em condições definidas como
adequadas. Como afirma um trabalhador:

63
E principalmente se há uma lei, alguma coisa em relação a lá
fora, não digo de todos, mas de uma parte, que [...] é calcada na
‘lei do mais forte’, que isso não entre pra cá. Isso tem que estar
bem claro para eles. Esse espaço é um espaço de convívio. Pois
se tu tiveres essas relações de poder, afeta e dai (Profissional de
Albergue da Rede Própria).

A partir da observação das relações cotidianas no espaço insti-


tucional, os entrevistados ficam atentos a situações nas quais algumas
pessoas podem utilizar métodos intimidatórios para obter vantagens
sobre outros, algo considerado comum nas experiências das pessoas
em situação de rua. Diante disso, alguns serviços criam regras específi-
cas para tentar evitá-las. Em um albergue da rede própria da FASC, foi
estabelecida que, durante as refeições, um usuário não pode entregar o
seu alimento para outro e, no dormitório, cada pessoa tem direito a no
máximo 3 cobertores, para evitar situações em que as pessoas possam
ser coagidas a cederem seus cobertores. Em um abrigo da rede própria
da FASC, não é possível a permanência de cartões financeiros ou obje-
tos de valor dentro dos quartos, para se evitar roubos e conflitos inter-
nos. A impossibilidade de entrar nas instituições como alimentos, pre-
sente em alguns serviços, também é justificada de tal forma a impedir
atritos. Em suma, algumas regras visam impedir que relações de poder
e hierarquias externas se atualizem no âmbito das instituições. Em al-
guma medida, essa precaução também se estende a impossibilidade de
entrar com os objetos pessoais, que devem ficar no guarda-volumes.
Em todos os serviços foi mencionada a proibição de agressões ver-
bais ou físicas como forma de resolução de conflitos no âmbito institucio-
nal, seja entre usuários, seja em relação aos trabalhadores, como indicado
anteriormente pela preocupação da entrada de facas ou outros objetos
cortantes. Quando há descumprimento dessas regras são previstas sus-
pensões, que giram em torno de 90 dias, na maioria dos serviços. Esse
modo de regulação das condutas através do impedimento do próprio
acesso aos serviços é muito significativo e recorrente nos equipamentos.
Em várias instituições, há regras claras e procedimentos de dis-
ciplina estabelecidos e escritos em manuais dos serviços, os quais va-
riam de acordo com a natureza dos atos cometidos. Tais regras são

64
decididas localmente, com maior ou menor participação dos usuários,
e existem para além de qualquer tipo de regulação em sua constituição
e generalização, por parte da FASC ou mesmo de amparo nas próprias
políticas mais amplas de oferecimento de serviços de assistência social
de abrigo e de albergue, embora sejam justificadas, segundo os traba-
lhadores, em nome do coletivo. Como disse uma profissional vinculada
a um abrigo conveniado trabalhadora, tais medidas: “não são punições,
mas procedimentos disciplinares que visam possibilitar a convivência
no coletivo” (profissional de um abrigo conveniado).
Outro tema que é objeto de regulações se refere aos usuários
estarem alcoolizados ou sobre efeitos de substâncias consideradas ilí-
citas para o ingresso nos serviços. Conforme as informações coletadas,
nenhum serviço permite o uso de álcool e drogas ilícitas dentro dos
equipamentos. Muitos serviços explicitamente não aceitam o ingresso
de pessoas com sinais de terem feito uso dessas substâncias, embora
haja um albergue municipal que é reconhecido por permitir o ingresso
em tal situação.
Diferentes dos albergues que funcionam à noite e tem como fun-
ção primordial garantir o alojamento, os Centros Pops são serviços
diurnos nos quais são disponibilizados diferentes recursos que podem
ser utilizados pelos usuários conforme seus interesses, como banho,
lavagem de roupas e alimentação. Além das proibições de agressões,
uso de drogas mencionadas antes, nos Centros Pops não é permitido
dormir, tendo em vista que pretende propiciar o atendimento de neces-
sidades mínimas, mas também estimular processos de “autonomia” e
“superação da situação de rua”. Segundo os entrevistados, as dificulda-
des e inseguranças de dormir na rua faz com que alguns vejam nesse
local a possibilidade de descansar de forma mais protegida. Frente a
isso, o cumprimento dessa regra exige muita atenção dos educadores.
Observa-se, desta forma, a tentativa de marcar a presença de regras
como algo generalizado em espaços coletivos. Entretanto, é importante
frisar que as regras são pensadas, pelos trabalhadores, em sua dimensão
pedagógica. As regras são vistas como importantes para o funcionamen-
to da instituição, mas também são percebidas como uma dimensão para a
própria valorização do serviço e de sua finalidade; a existência de regras

65
relacionadas ao autocuidado, como os horários de banho e seu eventual
caráter compulsório, bem como de regras relacionadas à limpeza de es-
paços utilizados pelos usuários, como quartos e banheiros, podem tam-
bém ser atribuídas a essa razão pedagógica das regras. Neste caso, há
um encontro importante entre o autocuidado e crescimento pessoal e a
colaboração para a gestão coletiva dos equipamentos.

Desafios Institucionais

No que diz respeito aos desafios institucionais, destacam-se àque-


les referentes à: a) configuração da própria rede de atendimento, tais
como as demandas de assistência à saúde, à saúde mental, às políticas
de habitação e qualificação profissional de usuários e trabalhadores; b)
às estruturas internas dos equipamentos, como aquela referida pelas
configurações de quadro de funcionários, horários de atendimento dos
serviços, falta de equipamentos, inexistência de espaços para determi-
nados públicos (transexuais e pessoas com deficiência); e, c) às caracte-
rísticas do público atendimento (histórias familiares que se refletiriam
em baixa autoestima, população adoecida e/ou idosos, com histórico de
uso de crack e mais “arredia” aos serviços etc.).
Salienta-se que, se os profissionais foram profícuos para a colo-
cação de desafios institucionais, também há uma valorização do aten-
dimento prestado que se evidencia em respostas com valorações muito
positivas quanto ao trabalho desenvolvido. Veja-se, por exemplo, as
falas da gestora de um abrigo da rede própria da FASC:

Aqui é um espaço de acolhimento, cuidado, afeto e reconstrução


de vida. Isso funciona muito bem. Aqui é um espaço de afeto. Eu já
trabalhei em espaços pouco receptivos onde tudo era novinho, mas
as pessoas não ficavam. Os usuários pedem para vir para cá. Aqui
as pessoas se olham, a nossa arquitetura permite que as pessoas se
olhem, todos os dias. O afeto é maior, as relações de cuidado são2.

É possível destacar, neste âmbito, tanto as respostas que acionam


valorizações de certos aspectos singulares das instituições – a preser-
2 Na citação, o nome do abrigo referido pela pesquisada foi substituída pela palavra
“aqui”, para não identificação do serviço, como acordado durante a pesquisa.

66
vação da autonomia, a cozinha acolhedora, a “maternagem” etc. – quan-
to o próprio acolhimento institucional e o consequente oferecimento de
comida, vestuário e local de pernoite já é visto como o cumprimento da
missão do equipamento. Nesta direção, o ingresso e a permanência em
instituições de abrigo e de albergue é contrastada com a realidade das
ruas. A gestora de um abrigo da rede própria aponta as dificuldades da
vida na rua, quando coloca que: “A maior questão é a da sobrevivência.
Tem a questão de saúde e a questão de não terem as condições mínimas
de dignidade humana”. Em razão dessa situação apontada, de despos-
sessão de dignidade, a oportunidade de receber comida, alimentos e um
local temporário para dormir se reveste de grande importância.

Percepções e Expectativas de Trabalhadores e Público Atendido


acerca das Políticas Públicas para População de Rua

Os desafios institucionais percebidos nas atividades das visitas et-


nográficas, foram consenso também entre os profissionais pesquisados
através dos Grupos Focais, cuja realização teve como objetivo investigar
as percepções dos profissionais sobre o perfil das pessoas em situação
de rua e expectativas quanto à formulação e implementação de políticas
públicas na área, assim como de um grupo de usuários das políticas.
Foi definido, em conjunto com o “grupo de acompanhamento à
pesquisa”, a realização de quatro grupos focais, de modo a contar com a
heterogeneidade dos principais serviços que compõem a rede de atendi-
mento à população de rua em Porto Alegre. Os grupos tiveram a seguin-
te composição3: 1) Trabalhadores de abrigos, albergues e república, que
contou com a participação de 08 integrantes dos serviços; 2) Trabalha-
dores dos Centros POP, Consultório na Rua e EPA, em que participaram
08 integrantes dos serviços, dentre estes Assistentes Sociais, Médico,
Psicólogos, Educador Social e Professor; 3) Trabalhadores do CRAS,
CREAS e Ação Rua, grupo que foi realizado com 12 integrantes dos ser-
3 A cada início de atividade os participantes foram consultados sobre a gravação do
grupo focal e então foi realizado o registro oral do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido para Grupos Focais. Este registro compõe-se do nome, cargo ou função,
onde trabalha e há quanto tempo trabalha. Foram utilizados roteiros semiestrutura-
dos durante a realização do grupo focal.

67
viços, dentre estes Assistentes Sociais, Psicólogos, Educadores Sociais; e,
4) Pessoas em situação de rua que utilizam os serviços públicos destina-
dos a esse público, em Porto Alegre, grupo que teve 4 participantes liga-
dos ao Movimento da População em Situação de Rua e ao Boca de Rua.
A análise dos grupos focais evidencia que, com relação aos pro-
fissionais dos serviços de abrigo, albergue e república, nota-se a preo-
cupação com a precarização dos recursos humanos e a absorção de
uma população com algum tipo de problema de saúde, destacando-se a
questão da saúde mental e da saúde do idoso, que foram já destacados
também nas visitas etnográficas.
Os trabalhadores acentuaram as dificuldades de se trabalhar em
equipamentos e serviços para população de rua que talvez estejam pro-
jetados atendendo uma imagem de população de rua como aquela ex-
clusivamente definida como “sem abrigo”, mas que, na prática, atendem
populações que possuem heterogeneidades de situações de saúde e de
idade que exigem um conjunto de especializações de estruturas e de
funções por parte dos equipamentos, como camas e banheiros adequa-
dos, além de infraestrutura de recursos humanos e de redes de serviço.
Como finalidades associadas ao desenvolvimento do trabalho,
tem-se o estímulo à “autonomia” e à “organização”, de um lado, e a pró-
pria acolhida e os cuidados de saúde, de outro lado, sendo ressaltados
por esses trabalhadores. Desta forma, em termos de concepção sobre
o seu próprio papel, os trabalhadores de abrigos, albergues e república
evidenciaram, sobretudo, duas principais atribuições: a) o estímulo aos
processos de conquista da “organização” e da “autonomia”; e, b) a aco-
lhida e os cuidados de saúde.
Para os trabalhadores de CRAS, CREAS e Ação Rua, há clareza
dos papéis institucionais dos serviços, mas uma percepção de indefini-
ção de funções na prática, uma vez que há impossibilidades reais de que
os serviços contem com a “retaguarda” necessária para sua boa efeti-
vação, isto é, uma rede de serviços para encaminhamentos na área de
assistência social e políticas mais amplas. Foram acentuadas as críticas
a uma ampliação das equipes de abordagem sem uma retaguarda insti-
tucional para tanto, bem como demandada uma maior descentralização
de serviços em Porto Alegre.

68
Essa condição de trabalho em que se é obrigado a “abordar” e
“orientar” pessoas para busca de seus direitos de acolhida institucional,
de saúde e de documentação e cidadania, sem possibilidades de acesso
a tais recursos pela população atendida, foi percebida como extrema-
mente frustrante pelos trabalhadores, impossibilitados de realizarem
encaminhamentos para além do “abraço”, como expressaram. Há gene-
ralizada percepção de que apenas o “abraço” não basta e que é preciso
contar com uma rede de proteção eficiente
Pode-se salientar também o debate em torno das especificidades
dos serviços de “ponta” e sua percebida invisibilidade institucional, o
que de certa forma permite evocar certa equiparação entre precarie-
dades – dos serviços oferecidos à população de rua (percebida pelos
trabalhadores) e precariedade das condições de trabalho para profissio-
nais que atendem tal população. Esta precarização apareceu, no grupo
focal, nas manifestações de crítica a processos de burocratização que
engessam o trabalho das equipes, mas, sobretudo, na falta de recursos
de infraestrutura para o trabalho, como internet, salas e espaços apro-
priados de trabalho, carro e relações com outros âmbitos de proteção,
como saúde, educação, habitação e inserção profissional, para além da-
quele relacionado à assistência social.
Há, por fim, uma percepção dos trabalhadores acerca da condi-
ção de oferecimento de serviços que realizam que, de forma crítica,
aproxima tal oferecimento de recursos e serviços como mecanismos de
produção da violência estatal. Esta associação, relacionada às já referi-
das visões de frustração profissional pela falta de retaguarda, evidencia
uma produção de sentidos sobre a sua própria atuação profissional bas-
tante singular, na medida em que oscila entre proteção e violação de
direitos, dadas as condições estruturais em que o trabalho é realizado.
Com relação aos trabalhadores do Consultório na Rua, EPA e
Centros POP, foi mais uma vez acentuada a deficiência dos serviços
de saúde, especialmente referentes à saúde mental, e também foi con-
sensual a maior necessidade de trabalho em redes de atendimento, vis-
tas como bastante precárias, atualmente. Como condições de trabalho
marcantes para estes profissionais está a percepção de uma redução da
problemática da população de rua à uma questão de assistência social

69
e, de outro lado, a crescente utilização das instituições de assistência
social por populações que deveriam, na perspectiva dos trabalhadores,
estar atendidas por serviços de saúde. Essa situação conduz a uma sen-
sação de acréscimo de demandas, sem um correspondente inter-rela-
cionamento com outros âmbitos da rede de proteção, como habitação,
saúde e educação.
Apareceu também uma percepção de precarização dos serviços,
dada não apenas pelas estruturas físicas e de recursos humanos defi-
cientes, mas, sobretudo, pela falta de opções de encaminhamento para
políticas mais amplas que conduzam a uma problematização da situa-
ção de rua das pessoas atendidas. Essa redução de possibilidades de
encaminhamento para opões de programas e políticas mais amplas do
que aquelas da assistência social conduzem a percepção de um círculo
de dependência do usuário em relação à assistência social que é per-
cebida como produzida pela própria estruturação dos serviços. Esta
percepção é relevante, uma vez que conduz a problematizar a própria
produção da dependência assistencial pelo Estado, através de sua for-
ma de estruturação em políticas e programas.
Por fim, o grupo focal com pessoas em situação de rua apontou
grande similaridade das temáticas abordadas tanto nas visitas etnográ-
ficas, quanto nos grupos focais com trabalhadores. Com relação às expe-
riências institucionais, as pessoas em situação de rua, participantes dos
grupos focais, acentuaram a complexidade da existência de prioridades
de atendimento a certas categorias, principalmente idosos e adoecidos e
o quanto isso impede o acesso de outros públicos às instituições.
Os pesquisados assinalaram que essas dificuldades de acesso aos ser-
viços produzem uma espécie de ciclo de dependência das instituições de
assistência social, dadas por uma precarização das instituições em termos
de formas de atendimento interno, mas também de capacidades de enca-
minhamentos a outras políticas, para além daquelas referentes à assistên-
cia social. Esta menção ao ciclo de dependência institucional foi marcante
também nas falas daqueles que assinalaram a precarização dos serviços de
assistência social na cidade, associada a uma espécie de “labirinto”.
Como disse um participante do grupo focal: “Eles botam o cara,
na real, num labirinto, porque só tem um final, que é procurar eles

70
novamente”. Isto porque tais instituições não conseguiriam constituir
relações com outras políticas mais amplas para que fosse possível a
constituição de laços de trabalho e geração de renda, de educação e de
habitação que permitissem a não dependência da assistência social.
De forma mais ampla, foram trazidos como importantes a visão
reativa de moradores de Porto Alegre com relação às pessoas em situa-
ção de rua e, também, a falta de equipamentos públicos como banhei-
ros, que possibilitem melhorias nas condições de vida das pessoas em
situação de rua. Políticas assistenciais de mais longo prazo também fo-
ram referidas, de forma a permitir a estabilização laboral e de moradia.
Como demandas de melhorias no atendimento tem-se que essas
poderiam ser distinguidas, a partir das falas dos usuários, em termos de:

1. ampliação e melhoria na rede de serviços e políticas para pes-


soas em situação de rua, em que se destacam as sugestões de
criação de um espaço de “passagem” que permitisse o uso por
pessoas em situação de rua que precisariam de um local para
depositar roupas e outros pertences e que precisem de um
local para higienização, sem necessariamente tornarem-se
institucionalizados, ampliação de vagas de abrigo, albergue
e Centros POP em outras regiões da cidade, que não aquelas
mais centrais; e,

2. qualificação de funcionários, com melhoria na oferta de ser-


viços de saúde dentro das instituições e maior conhecimento
das especificidades de vida da população de rua e da composi-
ção da rede de atendimento.

É possível destacar, para concluir, que para o caso dos grupos fo-
cais realizados entre pessoas em situação de rua, uma grande similari-
dade entre as demandas das pessoas em situação de rua com as deman-
das dos funcionários participantes dos grupos focais, como também foi
possível de se perceber nos relatos da própria configuração da rede de
atendimento, como as peculiaridades dos ingressos via prioridades, a
percepção de uma dificuldade de trabalho em redes e escassez de po-

71
líticas mais amplas de educação, saúde, habitação e geração de renda.
Trata-se de destacar o quanto, então, as problemáticas vivenciadas no
cotidiano do atendimento afetam tanto os trabalhadores quanto usuá-
rios dos serviços.

Considerações finais: as dinâmicas contíguas


de proteção e violação de direitos

Como vimos, os dados da pesquisa mostram um cenário de pro-


fundas transformações nas instituições de abrigo e de albergue, as
quais têm a ver com o crescimento da visibilidade da população de rua
no contexto político e social e uma transformação no chamado “per-
fil” de atendidos. Essa modificação relaciona-se com um incremento de
demandas pela institucionalização de pessoas com problemas de saúde
e de pessoas idosas e migrantes, realizada em um cenário de terceiri-
zação progressiva dos serviços e sem uma efetiva transformação dos
aparatos de atendimento e procedimentos técnicos de gestão dessa po-
pulação, nas instituições.
Por outro lado, a vivência dos trabalhadores e dos beneficiários
das políticas mostra a necessidade de seleção constante de acessos aos
serviços, que é vivida e percebida, tanto por gestores e trabalhadores
como pelo público atendido, como parte de um processo de isolamento
das políticas de assistência social das demais políticas.
Como se percebe, as pessoas afetadas – gestores, trabalhadores e
público atendido – produzem práticas efetivas de luta por inclusão social
e cidadania das pessoas em situação de rua, mas também experienciam
mecanismos de gestão dessa população em que é marcante a seletividade
do acesso aos serviços, a escassez de recursos, a existência de regramen-
tos institucionais formalizados, mas invisíveis ao controle externo e a
aposta na provisoriedade e individualidade da situação de rua.
Inseridos e participantes em tal cenário, as pessoas afetadas (ges-
tores, profissionais e público atendido) vivenciam tal processo como
marcado por dinâmicas tensas que associam proteção e violação de di-
reitos, práticas simultâneas de cuidado e de violência. Trata-se isso,
pois, de uma problemática vivenciada no cotidiano do atendimento que

72
afeta igualmente, embora de formas diferenciadas, tanto trabalhadores
quanto usuários dos serviços, o que revela a importância de uma refle-
xão e atenção por parte do poder público.
Ao associar as infraestruturas cotidianas do governo da popu-
lação de rua nos equipamentos de assistência social de Porto Alegre,
com as visões, saberes, tensões e expectativas sobre as políticas públi-
cas nessa área de atores envolvidos em sua produção, implementação
e utilização, essa pesquisa é um passo nessa direção, pois permitiu dar
visibilidade a um cenário marcado por dinâmicas complexas e, mais do
que isso, contíguas, de proteção e violência.

73
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Rela-


tório Final da Pesquisa Quantitativa. Porto Alegre, 2016 (Mimeo).

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Relató-


rio Final da Pesquisa Qualitativa. Porto Alegre, 2016 (Mimeo).

75
POPULAÇÃO ADULTA EM SITUAÇÃO DE RUA EM
PORTO ALEGRE: UMA SÍNTESE

PAtrice Schuch
ivAldo Gehlen
AlexAndre SilvA virGínio
MeliSSA de MAttoS PiMentA
MAuro MeirelleS

Apresentação

A pesquisa quali-quantitativa visou compreender as caracterís-


ticas socioculturais, os modos de inserção urbana e as relações com as
políticas públicas das pessoas que se configuram como em “situação de
rua” na cidade de Porto Alegre, a partir de uma pesquisa quantitativa.
Tal pesquisa privilegiou um estudo de tipo censitário, que cadastrou os
adultos em situação de rua na cidade entre os dias de 08 de setembro
de 2016 e 10 de outubro de 2016. Foram encontrados 2115 adultos em
situação de rua na cidade, no período investigado; desses, 1758 aceita-
ram participar da pesquisa e tiveram seus dados cadastrados.
A diferença entre esses números refere-se às pessoas apenas con-
tadas para fins de contabilização da população, mas por diversos mo-
tivos – pela recusa de participação no estudo, pela impossibilidade de
responder à pesquisa devido a alterações psicológicas e/ou comporta-
mentais ou pelo fato de estarem dormindo – não puderam responder
ao cadastro. A pesquisa também trabalhou simultaneamente com uma
amostra quantitativa da população investigada, que perfez o total de
467 pessoas. A amostra possibilitou compreender em maior detalhe
as condições de vida das pessoas em situação de rua, suas práticas co-
tidianas, seus modos de inserção urbana, suas condições de saúde, o
modo como lidam com a violência, suas expectativas para o futuro e as
relações destes com as políticas públicas.

77
O estudo amostral e censitário segue a metodologia de pesquisas
anteriores realizadas sobre o assunto em Porto Alegre: a pesquisa de
2007, que contou também com o estudo amostral sobre as característi-
cas de vida da população de rua na cidade (UFRGS, 2008) e a pesquisa
de 2011, quando foi realizado somente o censo da população adulta em
Porto Alegre (FASC, 2012). A pesquisa censitária e amostral de 2016 é
parte de um estudo mais amplo, que abarcou também as características
dos equipamentos de abrigo e albergue para a população adulta em si-
tuação de rua e as expectativas e desafios dos trabalhadores da rede de
atendimento à população adulta em situação de rua em Porto Alegre,
finalizado em março de 2017.

O universo da pesquisa

Definiu-se como pessoas a serem pesquisadas durante o período


do estudo, todos os adultos que se encontrassem em abrigos e alber-
gues destinados ao acolhimento e/ou ao abrigo temporário, intermi-
tente ou definitivamente, assim como aqueles que se encontrassem em
atividades de perambulação/circulação pelas ruas e/ou que dissessem
fazer da rua seu local de existência e habitação, mesmo que tempora-
riamente. Assim, o universo de pesquisa conjugou uma diversidade de
fatores, entre os quais se destacam:

1. os modos de utilização do espaço da rua ou de territórios


subvertidos em sua utilização (casas abandonadas, viadutos,
parques etc.) – em habitação, perambulação, permanência ou
outra forma de existência social, mesmo que situacional;

2. o uso dos serviços destinados ao acolhimento de pessoas que


necessitem de abrigo temporário, intermitente ou definitiva-
mente; e,

3. a aparência e a cultura material dos pesquisados.

78
Do método

Para realização da pesquisa em tela foram seguidos os seguintes


procedimentos metodológicos:

1. A constituição de “Grupo de Acompanhamento”, que acompa-


nhou a organização e execução da pesquisa e reuniu os pesqui-
sadores da UFRGS, profissionais da Prefeitura de Porto Ale-
gre, um representante do Movimento Nacional da População
de Rua (MNPR) e um representante do Jornal Boca de Rua;

2. A constituição das equipes do trabalho de campo: participa-


ram da pesquisa de campo dois coordenadores do trabalho de
campo, ambos professores do Departamento de Sociologia da
UFRGS, 7 facilitadores de campo (seis pessoas em situação
de rua e um profissional da intervenção social), 6 supervi-
sores das equipes de campo (estudantes de graduação e de
pós-graduação da UFRGS) e 22 entrevistadores (estudantes
de graduação e de pós-graduação da UFRGS);

3. A realização de curso de extensão intitulado “População em


Situação de Rua: Lutas, Políticas e Desafios para as Políti-
cas Públicas”, realizado pelo Departamento de Sociologia e o
Departamento de Antropologia da UFRGS, que reuniu estu-
dantes, pessoas em situação de rua e profissionais da Prefei-
tura de Porto Alegre;

4. A elaboração dos instrumentos de pesquisa, que foram cons-


truídos tomando por base os instrumentos já elaborados, tes-
tados e utilizados nas pesquisas de 2007-8 e 2011 (UFRGS,
2008 e FASC, 2012) e também com base nas discussões do
“Grupo de Acompanhamento” e no curso de extensão.

Especificamente, para realização da presente pesquisa foram uti-


lizados os seguintes instrumentos utilizados:

79
1. O Cadastro dos Adultos em Situação de Rua de Porto Ale-
gre: contemplando dados da entrevista (data e local da entre-
vista, horário, turno em que foi aplicado, bem como dados do
entrevistador e do supervisor), dados do entrevistado (nome,
apelido, data de nascimento, nome da mãe e idade) e 10 per-
guntas (informações demográficas e hábitos do cotidiano do
entrevistado).

2. O Questionário Amostral: contemplando dados da entre-


vista (data e local da entrevista, horário, turno em que foi
aplicado, bem como dados do entrevistador e do supervisor),
dados do entrevistado (nome, apelido, data de nascimento,
nome da mãe e idade) e 67 perguntas, nas quais foram incluí-
das: informações demográficas, hábitos do cotidiano, renda e
trabalho, relações familiares, saúde, sexualidade, violência e
relação com instituições, perspectivas de futuro.

3. O Mapeamento do Campo: realizado a partir do mapea-


mento da distribuição da população em situação de rua pelo
espaço urbano de Porto Alegre, e que foi objeto do Censo e
Mundo, foi realizado com base no cruzamento de informa-
ções obtidas junto à FASC, aos facilitadores (representantes
do universo social estudado), durante o trabalho de campo, e
visitas de reconhecimento do campo realizadas pela equipe de
pesquisa, particularmente nos bairros mais distantes do cen-
tro de Porto Alegre. As informações fornecidas pela FASC
foram complementadas por registros dos estudos anteriores
e atualizadas pelas equipes de abordagem social da popula-
ção adulta em situação de rua, durante reuniões previamente
agendadas com as coordenações das equipes.

Quanto aos procedimentos de trabalho, a equipe de pesquisa res-


ponsável pelo mapeamento elaborou cópias do mapa da planta urbana
do município de Porto Alegre, divididas segundo as regiões do Orça-
mento Participativo e revisou, junto com os coordenadores e técnicos

80
de cada equipe de abordagem social da FASC, os locais onde pessoas
em situação de rua organizaram estruturas de moradia, faziam uso do
espaço público para pernoite, os locais utilizados para a realização de
atividades de trabalho e de circulação, bem como locais de distribuição
de alimentos, pesagem e de materiais recicláveis recolhidos e vendidos.
Essas informações foram revistas e, como já referido, posterior-
mente, atualizadas pelos facilitadores, que orientaram as saídas a cam-
po, com base na sua experiência e conhecimento, bem como suas redes
de sociabilidade. Também foram complementadas pelas próprias pes-
soas em situação de rua entrevistadas, que indicaram onde as equipes
poderiam encontrar outras pessoas em situação de rua nas proximi-
dades. Finalmente, foram integradas ao mapeamento as informações
fornecidas por moradores, comerciantes, lideranças locais, coordena-
dores de instituições conveniadas e outros prestadores de serviços que
atuavam junto a essa população, obtidas durante as visitas de reconhe-
cimento nos bairros.

A participação das Pessoas em Situação de Rua na Pesquisa

A participação das pessoas em situação de rua se deu através de


diversas formas:

1. Como participantes do “Grupo de Acompanhamento” da pes-


quisa, que contou com a representação do Jornal Boca de Rua
e do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR);

2. Como facilitadores de campo, isto é, pessoas que acompanha-


vam as equipes de pesquisa nos locais de aplicação do ques-
tionário, para auxiliar no acesso aos entrevistados; e,

3. Como palestrantes e participantes no curso de extensão pro-


movido pelo Departamento de Sociologia e o Departamento
de Antropologia da UFRGS, intitulado “População em Situ-
ação de Rua: Lutas, Políticas e Desafios para as Políticas Pú-
blicas”, cujo eixo central foi a discussão dos elementos antro-

81
pológicos, políticos e históricos da problemática das pessoas
em situação de rua.

Cronograma das Aplicações

A realização do campo teve início no dia 8/09/2016, pelas ins-


tituições que acolhem parcela desta população em turnos agendados
com as respectivas direções. Na sequência, durante duas semanas, as
seis equipes percorreram as ruas da região central, previamente pro-
gramadas através de reunião conjunta entre supervisores de campo, fa-
cilitadores e equipe técnica da pesquisa. Os locais apontados como mais
relevantes foram visitados pelo menos três vezes em horários diversos
e geralmente por equipes diferentes.
Nas duas semanas finais da pesquisa de campo (encerrada no dia
10 de outubro de 2016), as equipes foram deslocadas para as demais
regiões do OP, seguindo os roteiros de campo previamente construídos
pela equipe técnica de pesquisa. Ao final do trabalho foi realizada uma
reunião com a coordenação da pesquisa, com a equipe técnica, super-
visores de campo e entrevistadores, durante a qual foram definidos os
locais que precisavam ser revisitados.
A finalização do trabalho de campo se realizou no dia 10 de outu-
bro de 2016. Como previsto, a região de maior concentração de pessoas
pesquisadas foi o Centro (39,7%), Floresta (12%), Menino Deus (7%), o
que totaliza o percentual de 58,7% dos pesquisados.

Caracterizações gerais da população estudada

O estudo censitário da população de rua na cidade de Porto Ale-


gre, realizado entre 08 de setembro e 10 de outubro de 2016, perfez
rotinas de trabalho de campo que abarcaram turnos diversos de estudo
(manhã, tarde e noite) e percorrendo toda a capital, apontou a existên-
cia de 2115 pessoas adultas em situação de rua. Em comparação com
o último censo sobre o assunto realizado na cidade, datado de 2011
(FASC, 2012), que abarcava a mesma metodologia de pesquisa, esse

82
número representa um acréscimo de 57% de pessoas. Este crescimento
aponta para uma maior visibilidade dessas pessoas na cidade e traz
desafios importantes para as políticas públicas de sua gestão. Foram
dados importantes:

Perfil demográfico

O perfil populacional possível de ser constituído pelos dados de


campo aponta que a população de rua na cidade de Porto Alegre é
majoritariamente masculina (85,5%), nasceu em Porto Alegre ou na
região metropolitana da cidade (59,1%) e que, em geral, tem mais de
35 anos (61,4%). Em sua maioria, estes, possuem o ensino fundamental
incompleto (57,4%).
Os autodeclarados negros (24,5%) e pardos (12,4%) consti-
tuem 36,9% da população, ao passo que os autodeclarados brancos
são 34,3% dos casos. Das análises dos que não nasceram em Porto
Alegre, é possível indicar a existência de mobilidade territorial re-
alizada principalmente na direção do interior do estado para capital
e a consolidação da moradia em Porto Alegre entre grande parte da
população adulta em situação de rua, na medida em que 51,1% vive na
cidade há mais de 20 anos.

Trabalho, Renda e Formação profissional

As atividades de trabalho mais citadas entre os entrevistados


foram a reciclagem (23,9%), jardinagem (14%) e lavação de carros/
flanelinha (12,8). Possuem renda até meio salário mínimo (38,2%) e um
salário mínimo (31,6%), o que perfaz um total acumulado de 69,8% da
população estudada recebendo até um salário mínimo.
De modo geral, uma boa parte da população (42,5%) sustenta
ter alguma formação profissional. Alguns dos entrevistados afirma-
ram, inclusive, possuir mais de um curso de qualificação. Pelo contrá-
rio, 57,5% afirmou não ter frequentado nenhum curso de qualificação,
o que indica uma demanda a ser observada, acima de tudo se levarmos
em conta sua relação com as oportunidades de trabalho e renda.

83
No mais, tem-se que a população se auto-representa afirmativa-
mente em relação à identificação com uma profissão, sendo 81,4% os
que afirmam possuírem profissão. Este percentual não oscilou se con-
siderarmos os percentuais da pesquisa de 2007.

Relações familiares

Mais de 70% (75,1%) destaca não ter outro familiar em situação de


rua, embora relatem a presença de filhos em 75,9% dos casos. Aumen-
tou significativamente o percentual daqueles que não têm contato com
a família há mais de 5 anos, passando de 24,5% em 2007-8 para 39,9%
na atual pesquisa. Em 2016, aqueles que disseram ter companheiro(a)
fixo(a) representam 22,4%, menos de 5 pontos percentuais em relação
à pesquisa de 2007-8. Há uma diferenciação de gênero importante, pois
59,5% do total de mulheres assumiu ter companheiro(a) fixo(a) na atua-
lidade. Do total de homens, somente 15,0% encontra-se nesta condição.
No que se refere à existência de prole, em 2007-8, 29,1% afirma-
ram não ter filhos, enquanto 70,2% declararam tê-los. Em 2016 esta
relação alterou-se em favor daqueles que manifestaram ter filhos. Eles
são hoje 75,9% da população, contra 24,1% que sustentaram não ter
filhos. Destes, apenas 27,3% nasceram quando o respondente se encon-
trava em situação de rua.

Tempo e Motivo de ida para a rua

De uma maneira geral, tem-se que 25,2% da população investiga-


da está há menos de 1 ano na rua. Por outro lado, agregando os dados
daqueles que estão há mais de 5 anos na rua, temos quase a metade da
população (47,8%), o que revela uma permanência na situação de rua
de mais longo prazo. Comparando aos dados de 2016 com as pesquisas
anteriores, vê-se uma tendência de cronicidade da situação de rua, com
crescimento dos percentuais de tempo em faixas temporais de mais de
10 anos de rua. Na pesquisa de 2007-8, o percentual de pessoas com
mais de 10 anos de rua era de 19,1%; este percentual representa, hoje,
29,2% da população investigada.

84
Os principais motivos para a ida para a rua foram aqueles relacio-
nados ao uso de álcool/drogas (24%), motivo mais citado, e situações
diversas relacionadas à instabilidade familiar (32,5%). Se considerar-
mos que as “separações e decepções amorosas”, os “maus tratos na fa-
mília”, “não se sentir bem com a família”, a “morte de algum familiar”, o
“envolvimento da família com o tráfico de drogas” e o “uso de drogas ou
o alcoolismo na família de origem” são situações que envolvem pessoas
próximas e/ou do núcleo familiar de origem, verificamos que 32,5%
das motivações explicitadas pelos entrevistados para terem ido para a
rua envolveram questões e conflitos familiares.

Pernoite

A maior parte da população estudada dorme cotidianamente e prio-


ritariamente em lugares de risco e improvisados e com forte exposição ao
ambiente natural (52,1%). A opção por dormir em lugares institucionali-
zados variou pouco entre uma pesquisa e outra. Em 2007-8, os percentu-
ais foram de 35,8% em primeiro lugar e 16,9% em segundo lugar. Naquela
oportunidade a paragem era preferencialmente em albergues (18,9% e
6,7%), abrigos, hotéis ou pensões – em geral pagos pela prefeitura – (9,3%
e 5,9%), casa própria ou de parentes e amigos (7,6% e 4,3%).
Na atualidade, o uso dos espaços institucionalizados para pernoitar
é a primeira opção para 38,8% dos entrevistados e segunda para 22,7%.
Neste âmbito, os albergues foram objeto de maior procura pela popula-
ção, tanto na primeira quanto na segunda opção (23,7% e 10,3%). Existe
uma tendência pequena à intensificação do uso de serviços, que também
se verifica dentre os equipamentos de pernoite disponíveis à população,
mantendo-se o padrão preferencial da maior parte da população que não
os utiliza. Enquanto que, em 2007-8, 39,3 %, da amostragem afirmava
frequentar albergues, este percentual chega a 49,0% em 2016.
Entretanto, quando solicitados sobre o local onde dormem com
mais frequência, apenas 23,3% apontaram os albergues, mesmo que
este número seja superior aquele revelado pela pesquisa anterior, qual
seja, 18,9%. Inversamente, os abrigos registraram uma queda em sua
procura e utilização. No passado recente, 32,2 % dizia servir-se de abri-

85
gos e agora somente 28,8% assume isto. Em acréscimo, enquanto que
no final da década passada 6,1% indicavam os abrigos como primeira
alternativa este percentual, na atualidade, corresponde somente à 4,0%
dos entrevistados.

Cotidiano e Uso de instituições

Grande parte dos que responderam ao questionário sobre com


quem passam a maior parte do tempo na rua revelou que a maioria
(44,1%) sustenta estar com parceiros de rua, colegas de trabalho e ami-
gos em geral. Ao se analisar onde passam a maior parte do tempo quan-
do estão acordados, os equipamentos institucionais foram apontados, em
por apenas 9,5% dos entrevistados, como primeira opção. Saliente-se que
esses equipamentos são espaços de acolhida e não de trabalho remune-
rado, o que contrasta com a resposta de 17,8% dos entrevistados que
disseram trabalhar, pedir nas esquinas ou atividades afins, priorizando a
atividade exercida em detrimento do local onde a exercem – o que indica
também o caráter informal e itinerante dessas atividades.
Dentre os serviços/locais de uso diurno, o Centro POP é buscado
com frequência por 43,8% dos entrevistados, enquanto 56,2% não fa-
zem uso deste serviço. Menos da metade da população estudada (40,1%)
afirma fazer a suas necessidades íntimas em instituições assistenciais
previstas especialmente para a sua acolhida, sejam albergues, abrigos,
Centro Pop ou Caps. Banheiros e chuveiros públicos previstos para essas
finalidades, sem serem destinados exclusivamente para esse segmento
da população, constituem a segunda resposta mais assinalada (22,5 %).
Com relação ao uso de serviços, pode-se perceber um ligeiro
crescimento no uso dos serviços, caso consideremos os dados coleta-
dos em 2007-8. É o caso do Restaurante Popular, que atendia 46,9 % do
universo em questão e que os dados atuais apontam para 48,8%, ainda
que mais da metade, 51,2%, afirme não frequentá-lo. Outro local de
distribuição de comida é o Sopão Ramiro d’Ávila, usado por 30,4 % dos
entrevistados na pesquisa anterior e agora por 39,8%, embora 60,2%
siga não fazendo uso dessa entidade tradicional da cidade. Centros re-
ligiosos que prestam assistência à população em situação de rua, como

86
igrejas, centros espíritas e/ou terreiros, são buscados por 48,9% contra
42,7% dos informantes em 2007, além do que, 51,1% do total disse não
recorrer a seus préstimos na atualidade. Em consequência, nota-se um
crescimento da importância destes estabelecimentos; não obstante, es-
ses diversos conjuntos de serviços permanecem como não sendo aces-
sados por grande parte da população adulta em situação de rua.

Locais de alimentação: Os dados coletados na atualidade indicam


que 52% dos informantes recorrem a alguma organização pública ou
particular, leiga ou religiosa, destinada para a distribuição de comida
junto a pessoas necessitadas. Em seguida, com 24,9% de incidência, é
mencionada a comida que ganham das pessoas (pedido em residências,
estabelecimentos comerciais ou cozinhas) como recurso principal para
saciar a fome. O percentual de 16,2 % das respostas indica a compra de
alimentos com seus próprios recursos e/ou em troca de trabalho. Doze
pessoas (2,9 %) apresentaram outras formas de obter comida. Saliente-
-se que, em comparação com a pesquisa de 2007-8, houve um aumen-
to da procura pelo restaurante popular cuja frequência, que foi 13,1%
naquele estudo, alcança 22,0% em 2016. Inversamente, o percentual
de população que depende do resultado do que ganham das pessoas
diminuiu. No intervalo entre uma pesquisa e outra este índice diminuiu
dez pontos percentuais. Isto pode sinalizar, ademais, uma diminuição
da solidariedade espontânea para como esta população.

Saúde: Apontou-se também na pesquisa um crescimento do relato de


doenças e/ou problemas de saúde associadas ao uso de álcool e drogas
e um crescimento da informação sobre adoecimento e/ou problemas
de saúde que pode informar a necessidade de maior investimento pú-
blico nesta área. Em comparação com os resultados das pesquisas an-
teriores, destacamos que não houve diferença em relação à tipologia de
doenças ou problemas que os entrevistados(as) disseram possuir, mas
uma percepção de agravamento significativo no percentual da doen-
ça ou problema que atinge a grande maioria da população investiga-
da: a “dependência química/álcool”, que abrangeu em 2016 o total de
58,1% de respostas positivas. Em 2007-8 esta variável recebeu 40,1%

87
das respostas positivas e em 2011 o percentual de 49,6% de respostas
positivas. Em segundo lugar foi ressaltado o “problemas nos dentes”,
com 47,8% de respostas “sim” e, em terceiro lugar, aparecem as “dores
no corpo”, com 43,7%, que se mantiveram relativamente estáveis na
comparação entre os dados de 2011 e 2016, mas que aumentaram tam-
bém em relação aos dados de 2007-8. Estes dados apontam para uma
maior percepção de adoecimento e de posse de problemas de saúde, em
relação às pesquisas anteriores. Esta interpretação é corroborada pelo
aumento da percepção de doenças ou problemas de saúde em quase
todas as categorias investigadas, à exceção das doenças de pele, que
diminuíram percentualmente quase 50% em comparação com os dados
de 2007-8 e de doenças cardíacas, que se mantiveram estáveis desde a
pesquisa de 2007-8.

Uso de produtos prejudiciais à saúde: Com relação à questão sobre


o uso de produtos que podem ser prejudiciais à saúde, o produto mais
utilizado foi o cigarro, consumido por 51,8% dos entrevistados todos
os dias e 13,7% de vez em quando. Em seguida, as bebidas alcóolicas,
consumidas todos os idas por 24,6% e de vez em quando por 36,9% dos
entrevistados, respectivamente. Entre as drogas ilícitas mais consumi-
das estão a maconha e o crack.

Participação política: Mais de 60% da população estudada afirmam


possuir documentos importantes como Carteira de Identidade (65,4%),
CPF (61,4%) e Certidão de nascimento (61,3%). Há um crescimento na
posse de documentação, provavelmente relacionada à maior inserção
dessa população em benefícios sociais. 34,2% afirmar receber o Bolsa
Família. A participação e conhecimento do Jornal Boca de Rua e do
Movimento Nacional de População de Rua mostrou-se significativo.

Violência: Quando questionados se alguma vez foram vítimas de al-


gum tipo de violência, a grande maioria dos entrevistados (60,6%) res-
pondeu positivamente, sendo que 47,5% sofreu violência mais de uma
vez em sua vida. Cerca de 45% dos entrevistados afirmaram já terem
sido expulsos de algum lugar, sendo que 36,5% se referiam a locais e

88
órgãos públicos, como ruas, calçadas, praças, parques, marquises e até
mesmo hospitais e postos de saúde. Em seguida, figuram os estabeleci-
mentos comerciais, incluindo bancos (21,1%). Com relação à percepção
do modo de tratamento da população da cidade de Porto Alegre, os tra-
tamentos negativos foram consideravelmente mais frequentes que os
tratamentos positivos. As categorias “com desconfiança” e “com medo”
foram indicadas por 82,4% e 80,7%, respectivamente, dos entrevista-
dos. O preconceito em relação a essa população também é bastante
elevado, aparecendo em 79,4% das respostas positivas. Mais da metade,
51,8%, afirmou serem tratados “sem respeito”.

Considerações Finais

Os dados apresentados mostram uma dinâmica de vida marcada


pelo reconhecimento da situação de subalternidade e de falta de reco-
nhecimento social. Embora haja, de um lado, maior visibilidade política
e numérica da população em situação de rua na cidade, o que se percebe
através das percepções trazidas pelas pessoas estudadas é uma inten-
sificação de estigmas e atribuições negativas. O uso de serviços ofere-
cidos para esta população continua marcando o cotidiano de escassa
parte da população estudada, o que constitui um desafio para as políti-
cas públicas. Como escrevemos anteriormente, reconhecer a existência
social das pessoas em situação de rua pode ser admitir que o rumo das
políticas talvez não seja aquele da simples tentativa de sua supressão
através de políticas assistencialistas ou de controle social punitivo, mas
atenção e, sobretudo, transformação dos complexos processos sociais
que as configuram, na sua dramaticidade e luta cotidiana.

89
Referências

FASC. Relatório Final de Pesquisa: Cadastro de Adultos em Situa-


ção de Rua de Porto Alegre/RS. Porto Alegre: FASC, 2012 (Mimeo).

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, Rela-


tório final da pesquisa: Cadastro de Adultos em Situação de Rua
e Estudo do Mundo da População Adulta em Situação de Rua de
Porto Alegre. Porto Alegre, 2008 (Mimeo).

90
DESAFIOS METODOLÓGICOS AO ESTUDAR
A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA

ivAldo Gehlen
MAuro MeirelleS
PAtrice Schuch

O presente texto tem como finalidade explorar e apontar algu-


mas particularidades metodológicas que envolvem o estudo da popu-
lação em situação de rua. População essa tida como particular e que
guarda certa similitude com outros estudos na sociologia e na antro-
pologia de populações nômades, migrantes sazonais entre outras que,
no geral, tem em comum um baixo reconhecimento de cidadania e,
portanto, usufruem de forma limitada senão sofrida dos serviços e di-
reitos de cidadãos.
Estas populações mantêm no território no qual se movem física
e culturalmente, relações relativamente frágeis e dissonantes na inte-
ração com o outro em condições similares e relações de dependência
ou de estranhamento com o outro que não compartilha seu território,
seu “modus vivendi” (MARTINS, 1997). As reflexões aqui presentes se
assentam, para além de estudos com outros segmentos sociais, sobre-
tudo, em experiências metodológicas através de estudos realizados nos
últimos 15 anos com pessoas em situação de rua na cidade de Porto
Alegre. O estudo realizado em 2016, denominado de “estudo quanti-
-qualitativo da população em situação de rua em Porto Alegre”, por
demanda da FASC é a principal referência. Esse estudo incorpora ex-
periências anteriores, desde 2004, pelo IFCH (UFRGS), sempre em
parceria com a FASC e, portanto, este artigo acumula toda essa traje-
tória metodológica.
Nesse sentido, tanto a construção do projeto de estudo e sua
execução, quanto os procedimentos utilizados, se legitimaram ante-
riormente. A primeira delas constituída por cadastro tipo censitário
e estudo do mundo das crianças e adolescentes em situação de Rua de

91
Porto Alegre e de outras seis cidades da Região Metropolitana, através
de entrevistas estruturadas (questionário), em 2014, no contexto do
Projeto GRANPAL. Estudo pioneiro, no que se refere à abrangência
e profundidade e por consequência como experiência teórica e meto-
dológica. A segunda, no segundo semestre de 2007 e início de 2008,
refez o cadastro de crianças e adolescentes de Porto Alegre e incluiu o
cadastramento censitário e o mundo cotidiano da população adulta em
situação de rua da cidade. Realizada pela mesma unidade da UFRGS
e com repetição de alguns pesquisadores, apropriou-se tanto de ins-
trumentos quanto procedimentos empíricos já utilizados na pesquisa
anterior da anterior. A terceira precursora foi o Censo da população
adulta em dezembro de 2011, executado pela FASC com consultoria de
professores do IFCH/UFRGS.
Estas experiências proporcionaram a criação e testagem de me-
todologias e instrumentos que se procuram evidenciar neste texto. O
aqui denominado de “mundo” dessa população corresponde ao modus
vivendi expresso em práticas e experiências, permeado de mobilidades
territoriais, onde inclui-se o social e o cultural, e também de rupturas,
que no dia a dia marcam as vidas dos que vivem nessa condição. Esta
condição de rua é resultado de processos históricos complexos, mul-
ticausais, incluindo subjetividades, seu início, muitas vezes, resulta de
ruptura(s) nas dimensões afetiva, profissional, social, familiar e, outras
vezes, é promovido por imponderáveis relativos à saúde ou à dependên-
cia de produtos diversos, como álcool, remédios ou drogas.
Capturar esta realidade na sua importância quantitativa, diag-
nóstica, necessária para definir políticas específicas e na sua importân-
cia pessoal e existencial, que expresse qualidades, constitui muitas ve-
zes dilemas metodológicos. Além do caráter de nomadismo (MAGNI,
2006), alguns apresentam características de hábitos cotidianos indivi-
dualizados e de vida solitária. Levando em conta tais características,
optou-se por uma amostragem relativamente alta para os padrões de
estudos acadêmicos, ou seja, ao invés de 30%, na pesquisa de 2016,
utilizou-se uma amostragem de cerca de 25% compensada por um uni-
verso total maior em mais de 50% da população em relação a pesquisa
anterior. A amostragem alta foi para compensar dificuldades pelo ca-

92
ráter nômade, pela inviabilidade de alguns selecionados responderem
as perguntas do questionário e pela indefinição do universo antes da
ida à campo. Além disso a dispersão de respostas em algumas questões
é bastante significativa de modo que, uma amostra maior acaba por
compensar eventuais desvios.
A experiência de pesquisar um universo social marcado pela in-
visibilidade e vulnerabilidade na cidade de Porto Alegre vai além dos
registros formais em banco de dados e relatórios. Significados e repre-
sentações são registrados nas experiências e narrativas de quem vive
o processo em qualquer dos lados. A aproximação, desconstrução de
preconceitos sociais e a ambivalência na relação entre sujeitos díspa-
res, até então distantes, embora muitas vezes vivendo próximos e se
encontrando anonimamente nas perambulações pelas ruas, uns para
ir e vir, outros porque essa é sua condição cotidiana, é resultado estra-
tégico para os pesquisadores e participantes da pesquisa. Do lado dos
que fazem da rua sua “casa” e/ou nela circulam e habitam socialmente,
estes, se sentem partícipes da cidadania que esse encontro desvela. Do
lado daqueles que realizam a pesquisa, ao explicar as razões do estudo
tem-se que, estes, ao irem de encontro a uma abertura e aceitação por
parte do universo social estudado, informando-lhe por que está sendo
entrevistado e a finalidade do estudo, acabam por viver um processo de
estranhamento que lhe enseja um compromisso ético e pedagógico que
inspira responsabilidade de modo que, tanto nós quanto eles não pas-
samos incólumes por essa vivência e experiência singular que a própria
metodologia da pesquisa nos impõe.
Contudo, a devolução, através da entrega/apresentação dos re-
sultados, tem se mostrado de suma importância na medida em que
instrumentaliza tantos os geradores, quanto os executores, quanto os
beneficiários de políticas e enseja a realização de estudos posteriores.
Mas, também propicia o autoconhecimento, levando a que tanto a po-
pulação em situação de rua quanto os trabalhadores que atuam junto a
eles e/ou ainda, os próprios pesquisadores, salientado nas avaliações, a
se reconhecerem melhor no mundo e na sociedade em que vivem.

93
A pesquisa/estudo das populações em situação de rua:
uma breve digressão

É recente a incorporação do universo social da população em si-


tuação de rua nos estudos acadêmicos e mesmo nos diagnósticos para
fins de formulação de políticas de atendimento e de inclusão social no
Brasil. Já se observa resultados positivos desses estudos, na formulação
de políticas e na criação e implementação de programas específicos,
especialmente no que se refere ao universo infanto-juvenil, em Porto
Alegre e no Brasil em geral, segundo relatos. As informações quanti-
tativas possibilitam avaliar e monitorar a abrangência e as mudanças
provocadas pelas ações proativas. Já as informações qualitativas possi-
bilitam compreender melhor o seu modo de vida e, portanto, construir
com eles estratégias de médio e longo prazo com vistas a que possamos
qualificar cada vez mais a prática profissional daqueles que, direta ou
indiretamente, atuam junto a esse segmento específico da população.
Essas mudanças resultam de três “movimentos”, estreitamente
vinculados ao processo de produção de conhecimento e à maneira ou
metodologia para isto.
Um, se origina do Estado enquanto ente público responsável
primeiro pela superação das desigualdades e da discriminação social.
Uma vez que, aos poucos é possível conhecer melhor o universo, mas
também se apropriar de metodologias geradoras de informações, sis-
tematizações e análise, possibilitando o aperfeiçoamento e o monitora-
mento das políticas e iniciativas. Nos estudos que servem de referência
aqui, houve forte preocupação de integrar os entes públicos envolvidos,
através da inclusão de seus técnicos no processo de estudo e no próprio
estudo em si. Contudo, até hoje a população em situação de rua não foi
recenseada nacionalmente, embora essa tenha presença marcante nas
cidades, esta, não “existe” demograficamente. E, neste sentido, Por-
to Alegre tem sido pioneira no estudo aprofundado da população em
situação de rua de modo que, aos poucos, se produzem programas e
projetos sintonizados com a realidade. Mas, ainda assim há um percur-
so significativo a ser desenvolvido neste âmbito, sobretudo a partir da
produção de pesquisas mais atentas à heterogeneidade deste universo.

94
O segundo movimento é o dos próprios atores sociais (popula-
ção em situação de rua) que aos poucos se organizam e se mobilizam
para produzirem e lutarem por reinvindicações específicas. Estão or-
ganizados inclusive nacionalmente e parte das políticas atuais resul-
ta dessa organização. Com apoio de técnicos e de organizações geram
informações e as difundem, de forma relativamente sistemática. Em
Porto Alegre, há várias experiências, as quais contam geralmente com
a participação de instituições com qualificação de apoiá-los metodolo-
gicamente, dentre essas instituições citam-se os centros universitários.
O terceiro movimento é da sociedade civil, que informada e aler-
tada pelos resultados de estudos e de debates, aos poucos desconstrói
olhares preconceituosos, quando não estigmatizados, e incorpora-os
como cidadãos. Isto altera também o reconhecimento e o respeito a
um “novo lugar” desse segmento social no uso dos recursos da cidade
e no acesso aos serviços. O reconhecimento de pertencimento à mesma
cidade que nós – no caso os outros em relação a eles – predispõe a que
se passe a compatibilizar os recursos, a reconhecê-los como detentores
de direitos humanos inalienáveis. Com isto, há a possibilidade de uma
maior aceitação da população – e mesmo do poder público – da inver-
são de investimentos em estrutura, serviços e espaços físicos e simbóli-
cos que os dignifiquem, reconhecendo-se as inúmeras tarefas que estes
desempenham no espaço urbano.
Todos esses movimentos permitem aperfeiçoar a metodologia
das pesquisas, com a constatação de mudanças bastante significativas
da quantidade de pessoas em situação de rua. Entre os mais jovens,
aparece uma forte diminuição em menos de uma década e entre os de
mais idade aparece o contrário. No caso da população infanto-juvenil
da População de Rua de Porto Alegre, a diminuição representou sua
quase extinção. Foram encontradas 27 pessoas menores de 18 anos.
Certamente deve-se aos três movimentos acima explicitados, sobretu-
do, às políticas de sucesso. A pesquisa foi o melhor instrumento para
mostrar isto, conforme atestam os relatórios e depoimentos. O mesmo
parece aplicar-se para os adultos-jovens, ou seja, menores de 30 anos, e
para as mulheres em que a pesquisa mostrou com clareza a tendência
à diminuição proporcional em relação aos homens na rua, no censo de

95
2016. Esta diminuição também é atribuída principalmente às políticas
específicas.
Entre os mais idosos há um acréscimo real, tanto em número
quanto pela maior permanência na rua, nos estratos mais altos de ida-
de. E, neste sentido, sugere-se a realização de estudos continuados
de modo a que se possa melhorar o atendimento a essa população e
a compreender os motivos que os levam a continuar nessa condição?
Certamente, também resultou em parte do aperfeiçoamento metodoló-
gico do mapeamento, realizado com informações mais precisas e abran-
gentes dos serviços da FASC e com informações da população através
de reuniões e de técnicas aplicadas pelos entrevistadores. Certamente
contribuiu o refinamento conceitual que disciplinou e orientou os olha-
res dos pesquisadores/entrevistadores, facilitando o encontro e a visi-
bilidade de uma parte que não era reconhecida ou não era conhecida.
Outro desafio para garantir rigor metodológico é identificar ou
absorver a complexa mobilidade social, tanto de chegada ou ingresso e
saída da condição “de rua”, quanto de construção de prestígio, status e
identidades na rua, processos com os quais, os pesquisadores não estão
familiarizados. Há, nesse caso, a necessidade de uma retroalimentação
que induza mudanças de olhares e de comportamentos. A constatação
da heterogeneidade desse universo gera como desafio a aprimoramen-
to das metodologias existentes e a utilização de outros métodos de co-
nhecê-los e também deles se reconhecerem. A constatação de melhora
no auto e hetero reconhecimento por parte da População de Rua, os
instrumentaliza para organizar suas pautas e suas demandas, inclusive
com apoio nos resultados dos estudos. Os dados de identificação, mos-
tram claramente que o conjunto da População de Rua, mutatis mutantis,
reproduz a sociedade geral na qual se insere.
No estudo realizado em 2004 teve-se uma preocupação bastante
acentuada com os riscos de entronizar-se nesse universo, tanto do pon-
to de vista da possível ineficácia metodológica, pela não receptividade
ou pela falsificação de informações, quanto do ponto de vista de pos-
síveis ameaças à integridade dos pesquisadores, pois, era experiência
inédita no Brasil, sobretudo, no que tange a sua amplitude e profundi-
dade. Nas pesquisas subsequentes foi melhor trabalhado e maturado,

96
diminuindo ansiedade e insegurança. Em 2016 acresceu-se, porém, um
ingrediente a complicar, no que se refere à sensação de segurança tanto
dos pesquisadores, quanto dos pesquisados, decorrente do momento
político de Porto Alegre e do País. Houve maior recusa em participar
da pesquisa por conta do mal-estar em relação à mudanças políticas –
período do impeachment e eleitoral municipal – e por conta da sensação
de insegurança na cidade que obrigou o governo do Estado e demandar
a presença da Força Nacional de Segurança. No entanto nenhum inci-
dente relevante aconteceu na relação com a População de Rua.
Tal atitude era parte de uma cultura de referência negativa que,
sempre impregnou esse campo de estudo, mas que, a partir de um for-
te exercício de vigilância epistemológica, trabalhado cognitivamente,
tanto na etapa de planejar e de organizar a pesquisa, sobretudo o cam-
po, quanto na fase de coletar dados através de entrevistas. Em que o
contato é presencial. Constatou-se que tal postura foi fundamental para
o êxito desta etapa, garantindo a receptividade, acolhimento e disponi-
bilidade para colaborar.
Outra estratégia metodológica que se mostrou eficiente foi a
criação de espaços e momentos de interação, através da participação de
pessoas representativa da População de Rua em atividades e reuniões
relacionadas aos estudos. Em 2016 a participação deu-se em todas as
etapas da pesquisa, da adequação do Projeto, à elaboração dos instru-
mentos, da realização do campo, até o encerramento com a apresenta-
ção/devolução dos resultados. Foi decisivo para legitimação do proces-
so e dos resultados junto ao universo estudado. Para além de elogios
pela identificação dos dados e análises com a realidade, passaram a uti-
lizar os resultados para fortificarem suas demandas e discussões no
interior de suas formas associativas.

Responsabilidade proativa do processo metodológico

O estudo se constitui em uma ação do Plano Municipal de En-


frentamento à Situação de Rua, para reconhecer a diversidade de situa-
ções podendo, com isso, atualizar e desmistificar os diferentes números
circulantes na mídia de pessoas adultas nessa situação. Contudo, é im-

97
portante lembrar que uma das principais dificuldades, neste processo,
foi a própria definição conceitual daquilo que seria entendido e com-
preendido no decorrer do estudo como “pessoas em situação de rua”.
Como foi possível notar a partir da análise de diversas pesquisas reali-
zadas no Brasil sobre essa problemática, não há unidade conceitual que
embase os estudos. Isso impossibilita contagem precisas no país. Para
evitar disparidade, em Porto Alegre, os estudos realizados desde 2004,
utilizam basicamente a mesma definição conceitual.
Assim, definiu-se que fariam parte do universo do estudo, todas
as pessoas que se encontrassem em abrigos e albergues destinados ao
acolhimento e/ou abrigo temporário, intermitente ou definitivamente,
bem como aquelas que se encontrassem em atividades de perambula-
ção/circulação pelas ruas e/ou que dissessem fazer da rua seu local de
existência e habitação, mesmo que temporariamente. Assim, o univer-
so de pesquisa conjugou uma diversidade de fatores, entre os quais se
destacaram:

1. os modos de utilização do espaço da rua ou de territórios


subvertidos em sua utilização (casas abandonadas, viadutos,
parques, etc.) – habitação, perambulação, permanência ou ou-
tra forma de existência social, mesmo que situacional;

2. o uso dos serviços destinados ao acolhimento de pessoas que


necessitem de abrigo temporário, intermitente ou definitiva-
mente; e,

3. a aparência e cultura material dos pesquisados.

Tendo em vista a procura de uma definição mais ampla das pes-


soas em “situação de rua” para além da utilização da rua como dormi-
tório – numa aproximação com o entendimento do habitar a rua como
uma forma de inserção urbana – as pesquisas não se restringiram ao
período noturno. Pois, isto poderia não se coadunar com as práticas co-
tidianas de muitas pessoas colocadas nessa situação social, isto é, com
seu modo de ocupação do espaço e com o uso de concepções do tempo

98
(MAGNI, 1994; KASPER, 2006). A rua aparece, nesse sentido, como
um espaço de relações sociais e simbólicas, as quais não se reduzem
a um significado puramente pragmático de resposta a fins específicos
(trabalho, dormitório etc.) e/ou respondem puramente a necessidades
básicas de vida.
Tal como apontado anteriormente (UFRGS, 2008), estudos de
contagem e cadastramento de populações, quando não partem somente
de uma auto-atribuição dos pesquisados, devem redobrar sua atenção
no esclarecimento de tais aspectos, uma vez que trabalham com um
conjunto de atributos que são construídos para a construção de uma
“população” que, necessariamente, não se reconhece como tal. Nesse
caso, as categorias de classificação que definem o grupo de pessoas a
ser potencialmente estudado se reflete diretamente nos dados apre-
sentados ou perfil a ser construído sobre a população pesquisada. O
mesmo é válido para a apresentação da metodologia de pesquisa utili-
zada, que se relaciona diretamente com o resultado a ser alcançado e,
nos casos de contagem e/ou cadastro de populações – em que a super
e/ou subestimativa pode ter graves efeitos políticos e sociais – requer
cuidado esmerado.

Metodologia da estruturação e execução da pesquisa

Vários aspectos precisam ser observados ao se planejar um estu-


do de populações e/ou temas que não tão tradicionais na academia ou
nas instituições geradoras e difusoras de conhecimento. Além da cla-
reza do foco e dos objetivos, é fundamental definir os conceitos que lhe
dão suporte. Os conceitos definem a metodologia e as técnicas do estu-
do e orientam decisivamente as análises dos dados e informações. Esta
etapa tem se constituído no momento mais importante do processo,
tanto pela contribuição para o debate e para a formulação de políticas
e programas quanto pela centralidade na definição do universo social e
na operacionalização do estudo. Uma vez que, é a partir dos conceitos
que se define também o que se chama unidade de análise, ou seja, qual
a referência básica a ser considerada para interpretar os dados empíri-
cos. Por exemplo, no estudo de quilombolas, geralmente a unidade de

99
análise é a família, em relação à população de rua é o indivíduo, mesmo
que se agregue a outras redes, essas, não tem co-referência na tomada
de decisão cotidiana destes.
Outro aspecto importante reside também na definição de quem
vai realizar a pesquisa, quem é responsável pelo que, definindo-se as-
sim certa hierarquia de reponsabilidades, com previsão do tempo ne-
cessário em horas/dias/semanas/meses para executar o todo e cada
parte. Todos os participantes precisam ter claro as suas funções, ta-
refas e o cronograma. No caso de haver remuneração, essa, também
precisa estar definida com clareza antes mesmo de qualificar para a
função/tarefas aqueles que a cumprirão. Junto às equipes de execução
atuam os monitores, os que avaliam se o estudo está andando conforme
a demanda, em aspectos de mérito e técnicos.
O organograma segue modelo semelhante nos diversos estudos:
coordenação geral por um ou dois profissionais com formação e ex-
periência em estudos empíricos de natureza semelhante, uma equipe
técnica que acompanha a coordenação na maioria das decisões e é res-
ponsável pela concepção, planejamento e execução do estudo, inclu-
sive do mapeamento e do relatório final, os quais, têm também como
atribuição a função de apoiar a divulgação dos resultados para fora das
instituições específicas, no caso, além da Prefeitura, junto à mídia. Esta
atividade de divulgação junto com a instituição demandante, no caso
a FASC, é importante para esclarecer, tanto questões metodológicas
quanto de análise e o significado dos dados e informações. Essa equipe
técnica também identifica e engaja consultores, em geral um de apoio
metodológico, no caso estatístico, um de apoio à discussão conceitual e
um de apoio pedagógico.
A parte operativa da execução especialmente a realização do ma-
peamento, da coleta de dados, de informações e a sistematização dos
dados, ficam à cargo de dois ou três profissionais denominados de apoio
técnico. Para o mapeamento, são utilizadas informações escritas e orais
da FASC e de outras fontes, dentre elas os estudos anteriores e os pro-
fissionais que têm atividades junto à esta população e as informações
coletadas diretamente com a População de Rua. Uma equipe especial-
mente constituída faz a revisão crítica dos questionários após preen-

100
chimento, e realiza a digitação sob a supervisão da Equipe Técnica e a
de apoio técnico.
Uma equipe de seis supervisores de campo, um para cada equipe
de três entrevistadores, constituiu o elo fundamental entre a coorde-
nação e População de Rua para a realização dos cadastros e das entre-
vistas, seguindo e fazendo cumprir rigorosamente as informações do
manual e as orientações da coordenação. A maioria dos supervisores
nesses estudos foram de estudantes, preferencialmente de pós-gradua-
ção da área de humanas. A maioria dos entrevistadores eram estudan-
tes de graduação.
O número de equipes depende do cronograma e do tipo de estudo.
Se for cadastramento censitário, a produtividade por turno/entrevista-
dor é praticamente o dobro da que inclua entrevistas em profundidade
ou amostral. Pode-se diminuir a duração do tempo, aumentando o nú-
mero de equipes. Estratégia adotada em 2016, em razão do calendário
e que demorou o mesmo que em 2007-8, ou seja, um mês.
Os entrevistadores foram selecionados entre estudantes de gra-
duação e de pós-graduação da Universidade. Como já assinalado, for-
mam equipes de três com um Supervisor e atuam em conjunto. Desne-
cessário referir que o treinamento, com teste de campo e o manual são
absolutamente essenciais para padronização da realização de coleta e
para a qualidade dos dados e informações.
Crescentemente se verificou a fundamental presença de pessoas
que vivem a condição da rua e, por isso, conhecem bem esse universo
da cidade. Participaram do Curso de Extensão que aconteceu no decor-
rer da pesquisa e seis deles foram selecionados para a função de facili-
tadores, ou seja. Apoiadores para o mapeamento e para acompanhar as
equipes de campo facilitando o acesso às pessoas para cadastramento
e entrevistas. Não participaram diretamente das entrevistas, mas loca-
lizaram locais e condições de chegada e de realização dos cadastros e
das entrevistas.
Para se realizar o campo é necessário previamente construir os
instrumentos, com maior participação possível: dos serviços públicos,
dos técnicos que executam as políticas, dos estudantes que irão à campo,
da equipe de pesquisadores e dos representantes da População de Rua.

101
Estas parcerias, garantem a qualidade dos instrumentos e, portanto, dos
dados coletados para respondam aos objetivos e expectativas de saberes.
Nesse sentido, no decorrer das quatro pesquisas realizadas, a experiên-
cia mostrou que quanto mais participativa esta etapa, mais ajustado e
melhor será o atendimento dos interesses dos diversos grupos que com-
põem essa população pois, isto, implica em negociação, no aproveitamen-
to de experiências pessoais de indivíduos que a compõem e, também, de
especialistas que têm seu labor ligado à referida população.
Em relação ao monitoramento de todo o processo, foi constituído
um grupo de trabalho gestor da pesquisa, composto por técnicos da
FASC, coordenação por parte da UFRGS, às vezes toda a equipe técni-
ca participava e representantes da População de Rua. A FASC delegou
uma profissional da entidade como representante junto à equipe técni-
ca, que acompanhou diuturnamente o processo e monitorou o cumpri-
mento do Projeto.
A pesquisa de 2016, portanto, se caracterizou como um estudo
quali-quanti que seguiu os moldes da pesquisa realizada em 2007/2008
uma vez que, buscou-se explorar alguns elementos fundamentais sobre
as dinâmicas de vida dessa população e sua relação com o aparato téc-
nico-burocrático-institucional, ligado a FASC. Os dados quantitativos
extraídos do instrumento foram agrupados em banco de dados espe-
cífico utilizando-se o software Statistics Package Social Science (SPSS),
programa estatístico especial para a área de Ciências Sociais, através do
qual também foram processados.
As equipes de campo, incluindo-se supervisores, entrevistadores e
facilitadores, foram treinadas a esclarecer os entrevistados dos objetivos
e finalidades da pesquisa, se identificando através de crachás e, se neces-
sário, apresentar documento, instruindo a pessoa abordada do direito de
participar voluntariamente da pesquisa. O Cadastro, porém, tinha ca-
ráter de compulsoriedade e, no caso de negativa ou incapacidade, eram
contabilizados, com descrição sumária no instrumento de dados como
local, sexo, turno e dia da semana. Sempre que possível o entrevistador
obtinha as informações de alguém próximo ou amigo da pessoa.

102
Estratégias operativas do campo

Conforme acima referido, a realização do campo contou com os


pesquisadores, todos professores da UFRGS, com uma equipe de Secre-
taria sediada nas dependências da Universidade. A execução do campo,
conforme descrito acima, foi realizada por seis equipes formadas cada
uma delas por um supervisor de campo, que participou das reuniões de
mapeamento e definições de roteiros diários, recebia e devolvia junto à
Secretaria os registros do campo e controlava as despesas de passagem
e de alimentação. Ao supervisor cabia a responsabilidade pelo cumpri-
mento de metas e garantir percursos em todos os locais mapeados ou
levantados durante os percursos. Também definia quem deveria ser
entrevistado segundo critérios da amostragem. Coube também ao Su-
pervisor efetuar o registro dos turnos trabalhados por cada entrevista-
dor e facilitador. A remuneração de todos os que realizaram o campo,
exceto a equipe de técnica, foi por turno trabalhado combinado com o
cumprimento mínimo de metas. A intermediação por parte dos facili-
tadores foi fundamental para a presença das equipes nos territórios,
especialmente aqueles controlados por grupos ou facções.
Os percursos dos entrevistadores, foi regido por um cronograma
diário, elaborado com antecedência, em reuniões semanais, com base
nas informações da FASC, de estudos anteriores, e em informações da
População de Rua através dos facilitadores e dos entrevistados. Os des-
locamentos das equipes até o roteiro previsto para o dia, foram realiza-
dos a pé, na região central, de ônibus, nos bairros próximos ao Centro
da cidade e de automóvel, nos bairros mais distantes.
As recusas em responder aos entrevistadores se deram especial-
mente por aqueles que estavam trabalhando no momento da abordagem,
haviam consumido e estavam sob efeito de drogas ou álcool, por pessoas
que não queriam se expor e também por alguns foragidos. Essas pessoas
que se recusaram a responder, foram contadas, anotando-se o horário, o
local, o sexo, a idade provável e a cor/raça da pessoa, sempre que possível.
Isto para fins de controle de repetição de contagem. Essas informações
não foram utilizadas para análise dos resultados, sem prejuízo para o es-
tudo, pois estatisticamente a probabilidade de indução a erro é remota.

103
Entretanto, os relatos trazidos durante o processo de planejamen-
to e também do trabalho de campo, pelos representantes da População
de Rua, informaram um cenário bastante hostil na rua, difícil para a
realização da pesquisa. Os facilitadores alertavam constantemente para
os conflitos, perigos e violências na rua, ao que se somava a presença
da Força de Segurança Nacional no policiamento de Porto Alegre, no
período do estudo, como fatores de possível hostilidade da população
de rua com as equipes de pesquisa. Estes relatos contribuíram para um
ambiente de receios, por parte dos estudantes, principalmente antes do
início do trabalho de campo. Felizmente estas expectativas não se veri-
ficaram no decorrer do campo, que ocorreu sem incidente que mereça
registro. Normalmente os entrevistados manifestaram interesse pela
pesquisa e respeito aos entrevistadores.
A realização do campo ou coleta de dados primários junto às
populações “nômades” ou dispersas sobre às quais pouco se conhece
em seus hábitos territoriais e de ocupação de espaço, exige um esforço
particular de mapeamento prévio, identificando os principais pontos e
turnos de concentração. Optou-se por realizar as entrevistas primeira-
mente com os albergados, públicos ou conveniados. Este contato serviu
também para divulgar o estudo, seus objetivos e finalidades entre o
universo social estudado.
As entrevistas nas ruas da cidade de Porto Alegre foram precedidas
por levantamento que constatou forte concentração no centro da cidade e
em ruas ou bairros adjacentes. A segunda maior concentração, nos eixos
formados por avenidas que iniciam na região central e destinam-se ao Sul,
Leste e Norte da cidade. Porto Alegre não tem Oeste habitado pois é o
Rio Guaíba e o centro fica numa ponta de terra que avança pelo rio. Daí a
decisão de realizar a tarefa na região central em primeiro lugar, utilizan-
do-se de todas as equipes aí, de forma coordenada e repetindo itinerários
em dias, horários e equipes diferentes. A continuidade foi nos bairros pró-
ximos ao Centro e ao longo dos eixos correspondentes às principais ave-
nidas do centro para a periferia. Por último os bairros distantes do centro,
em que se havia identificado presença dessa população.
Diariamente registrava-se o nome dos entrevistados e das res-
pectivas mães para, de posse destas listas se evitar duplicidade. Mesmo

104
assim ocorreram muitos casos, especialmente entre os não cadastros,
os quais, após análises comparativas, foram eliminados.
A última etapa do campo constitui-se um retorno a vários luga-
res considerados estratégicos, para verificar, numa espécie de monito-
ramento, se havia pessoas que não haviam sido entrevistadas. Reunião
com os entrevistadores e supervisores, que livremente expressaram
suas impressões e avaliações, encerrou esta fase de campo.
Sintetizando o processo de estudo relativo ao cadastro e mundo
da População de Rua de Porto Alegre, saliente-se alguns procedimentos
estratégicos utilizados e que garantiram o sucesso do estudo, são eles:

1. A realização de um curso de extensão de 40h intitulado “Po-


pulação em Situação de Rua: Lutas, Políticas e Desafios para
as Políticas Públicas”, no decorrer da pesquisa, com maior
concentração antes de sua execução, sob responsabilidade da
pela Equipe Técnica e do IFCH/UFRGS que reuniu estu-
dantes, pessoas em situação de rua e profissionais da Prefei-
tura de Porto Alegre, num total aproximado de 80 pessoas.

2. A elaboração de um formulário de cadastro censitário e de um


questionário para as entrevistas em profundidade, amostral,
contemplando todos os indicadores apontados previamente
como sendo importantes de se obter dados quantitativos e
qualitativos, foi a principal tarefa preparatória ao campo pro-
priamente dito.

3. A realização do mapeamento prévio da distribuição dessa po-


pulação na cidade. Para isto, a equipe responsável pelo ma-
peamento, utilizou um mapa da planta urbana do município
de Porto Alegre, dividido segundo as regiões do Orçamento
Participativo. Revisou com os coordenadores e técnicos das
equipes de abordagem social da FASC, os locais onde pessoas
em situação de rua organizaram estruturas de moradia, fa-
ziam uso do espaço público para pernoite, os locais utilizados
para a realização de atividades de trabalho e de circulação,

105
bem como locais de distribuição de alimentos, pesagem e co-
letas para reciclagem, entre outras informações. Tais infor-
mações foram checadas e complementadas pelos facilitadores,
com base na sua experiência, seu conhecimento e suas redes
de sociabilidade. Também foram checadas e complementadas
pelos entrevistadores, por informações que recebiam dos en-
trevistados. Finalmente, foram integradas ao mapeamento,
informações fornecidas por moradores nos bairros, por co-
merciantes, lideranças locais, coordenadores de instituições
conveniadas com a FASC e outros prestadores de serviços
que atuavam junto a essa população, obtidas durante as visi-
tas de reconhecimento nos bairros.

Da difusão e razões de sucesso do estudo

A difusão dos resultados é sempre esperada com alguma ansie-


dade pelas instituições, especialmente Secretarias e órgãos da Prefei-
tura Municipal e por parte de setores da mídia, pela População de Rua,
dentre outros, de modo que, a difusão dos dados buscou ser sempre
feita de modo objetivo, planejado e com bastante cuidado e acuidade.
A responsabilidade da difusão é da demandante, no caso a FASC, com
a participação dos pesquisadores da Universidade, especialmente dos
membros da equipe técnica e consultorias. No período subsequente há
sempre demanda de participação em debates, de entrevistas, de exposi-
ção dos resultados para entidades etc. Normalmente os pesquisadores
da Universidade tem participado desses eventos, com o apoio da De-
mandante FASC.

Dificuldades encontradas ao estudar as populações


que estão em situação de rua

A pesquisa realizada visou compreender as características socio-


culturais, os modos de inserção urbana e as relações com as políticas
públicas, das pessoas que se configuram como em situação de rua na
cidade de Porto Alegre. No estudo da População de Rua de Porto Ale-

106
gre, optou-se pelos conceitos do Estatuto do Idoso e pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) para estabelecer faixas etárias, pelos
conceitos relativos a esse universo social adotados pelo Ministério do
Desenvolvimento Social e Agrário (MDS). Definiu-se como perten-
centes ao universo estudado, todos os adultos que se encontrassem em
abrigos e albergues destinados ao acolhimento e/ou ao abrigo tempo-
rário, intermitente ou definitivamente, assim como aqueles que se en-
contrassem em atividades de perambulação/circulação pelas ruas e/ou
que dissessem fazer da rua seu local de existência e habitação, mesmo
que temporariamente.
Outros desafios metodológicos são: o mapeamento prévio à ida
a campo, decisivo para precisão da abordagem e para eficiência dos re-
cursos humanos e financeiros; a qualificação e treinamento de todos
os envolvidos; a difusão aos que serão entrevistados da pesquisa e sua
finalidade; o controle para evitar repetições ou ausências e, por fim,
cuidados na análise, os dados nem sempre podem ser tratados analiti-
camente da mesma forma que os relativos a outros universos sociais.
O aspecto mais importante para o sucesso em estudos de popula-
ção de natureza heterogênea, dispersa territorialmente, nômade e sem
endereço, é construir um ambiente de confiança entre todos, deman-
dante, executante e beneficiários, com objetivos e metodologia claros
para dar legitimidade aos procedimentos e aos resultados.
Concluindo, cabe lembrar que o uso de instrumentos metodológi-
cos adequados é sempre um fator decisivo para se alcançar os objetivos
propostos em qualquer pesquisa e que, o rigor científico é a pedra basilar
de qualquer estudo – seja esse acadêmico ou não – quando se necessita
de dados para se projetar estratégias de mudanças e/ou a promoção de
políticas voltadas a uma população específica que, no presente estudo,
são aqueles que hoje vivem em situação de rua em Porto Alegre.

107
Referências

FASC. Relatório Final de Pesquisa: Cadastro de Adultos em Situa-


ção de Rua de Porto Alegre/RS. Porto Alegre: FASC, 2012. [Mimeo].

KASPER, C. P. Habitar a Rua. [Tese de Doutorado]. UNICAMP, 2006.

MAGNI, C. T. Nomadismo urbano: uma etnografia sobre mora-


dores de rua em Porto Alegre. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006.

MARTINS, J. S. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do


humanos. São Paulo, Hucitec, 1997

UFRGS. Relatório final da pesquisa: Cadastro de Adultos em Si-


tuação de Rua e Estudo do Mundo da População Adulta em Situ-
ação de Rua de Porto Alegre. Porto Alegre: FASC, 2008. [Mimeo].

108
PESQUISA E INTERVENÇÃO SOCIAL NA POLÍTICA
DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM PORTO ALEGRE: A
SITUAÇÃO DE RUA COMO FENÔMENO
A SER PROBLEMATIZADO

Aline eSPindolA dornelleS


rejAne MArGArete Scherolt PizzAto
SiMone rittA doS SAntoS

Introdução

As últimas três décadas foram marcadas por mudanças signifi-


cativas no campo da política pública de assistência social desde sua
inclusão como política de seguridade social na Constituição Federal. A
partir da década de noventa a política de assistência social passou por
um intenso processo de regulação com a aprovação da Lei Orgânica de
Assistência Social – LOAS (1993), da Política Nacional de Assistência
Social – PNAS (2004), do Sistema Único de Assistência Social – SUAS
(2005), da Tipificação dos Serviços Socioassistenciais e de um amplo
conjunto de legislações – CNAS (2009)1 que tiveram papel importante
na sua estruturação. O contexto atual, contudo, é de incerteza quanto
a garantia das conquistas na cobertura da proteção social. Constata-se
o avanço da ideologia neoliberal na retirada de direitos trabalhistas e
previdenciários anunciando um cenário preocupante no campo da se-
guridade social para a população brasileira.
A implantação da Política de Assistência Social em Porto Ale-
gre iniciou em 1994, quando a Prefeitura Municipal por meio da Fun-
dação de Educação Social e Comunitária – FESC2 assumiu a gestão
desta política na cidade. A implantação da política exigiu a realização
1 Política da Criança e do Adolescente, da Pessoa com Deficiência, do Idoso, contra a
violência de gênero, Política Nacional para a população em situação de rua.
2 A Fundação passou a denominar-se FASC – Fundação de Assistência Social e
Cidadania, através da Lei 8509, de junho de 2000.

109
de concursos públicos, estruturação da gestão e dos serviços socioas-
sistenciais3.
A implantação dos serviços ocorrida na década de noventa e início
dos anos dois mil foi reordenada a partir de 2010, com a aprovação do
SUAS em 2005, e da Tipificação Nacional dos Serviços Socioassisten-
ciais, em 2009. As demandas da população em situação de rua, organi-
zadas nacionalmente, a partir do Movimento Nacional da População em
Situação de Rua, foram inseridas no Decreto nº 7053 de 23 de dezembro
de 2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de
Rua e o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da
política em âmbito municipal e estadual. E, neste sentido,

O documento é considerado um avanço por acolher expressões e


vontades de vários sujeitos que compartilham o mundo da rua, seja
ele por sua inserção profissional ou mesmo protagonista dessas vi-
vências, portanto, momento sócio-histórico importante que demar-
ca a luta pela não violação de direitos (MACHADO, 2012, p. 70).

Concomitante ao processo de regulação instituíram-se mudan-


ças sociais, políticas e econômicas no país. A população em situação de
3 Em relação ao acolhimento institucional, apresentamos o histórico de implantação
da rede de serviços na década de 1990 até 2001. O Abrigo Municipal Bom Jesus foi
implantado em 1987 como Albergue e administrado pela Secretaria Municipal da
Saúde até 1993; em 1994 sua gestão passa para a FESC e em 1997 é reordenado e
passa a funcionar como um Abrigo (AMBJ). O Albergue Municipal, criado em 2000,
com a parceria do Governo do Estado, iniciou como Casa de Inverno oferecendo
albergagem durante o período de inverno; em outubro de 2001 foi implantado em
caráter permanente de atendimento. Nesta mesma década, foram estabelecidos
convênios com o Albergue Felipe Diehl e Dias da Cruz. O Abrivivência, foi implantado
em 1995, como abrigo e casa de convivência para a população adulta em situação de
rua. Em 1996 é criado o Serviço de Abordagem Social, executado no mesmo espaço, o
qual em 1997 é reordenado e passa a ser chamado de Atendimento Social de Rua. Em
2001 o Abrivivência é reordenado em Abrigo Municipal Marlene e, em outro espaço,
é aberta Casa de Convivência, executada junto com o ASR. Para o atendimento de
criança e adolescente, cria-se a Casa de Passagem, em 1994, para crianças de 07 a 12
anos vítimas de violência intrafamiliar; em 1995 é reordenado o Abrigo Municipal
Ingá Britta, para atendimento a adolescentes em situação de rua, do sexo masculino,
de 14 a 18 anos, com vínculos familiares rompidos; nessa década é constituído o
serviço de educação social de rua, para abordagem de criança e adolescentes em
situação de rua; em 2000 é implantada a Casa de Acolhimento para crianças de 07 a
12 anos, e adolescentes de 14 a 18 anos do sexo feminino, em situação de rua; em 2001
é implantada a Casa de Acolhimento Noturno, para adolescentes de 14 a 18 anos em
situação de rua. Ao longo da primeira década dos anos 2000, alguns desses serviços
passam a ser reordenados.

110
rua organizou-se politicamente, houve uma ampliação e diversificação
dos trabalhadores no SUAS, ocorreram mudanças na gestão munici-
pal e federal. Nesse cenário complexo e multifacetado de formulação
da política de atendimento observou-se uma preocupação por parte da
instituição, assim como dos trabalhadores, na realização de estudos e
pesquisas sobre a situação de rua. A problematização desta questão
surgia pela necessidade de refletir sobre os processos de intervenção e
produção do conhecimento. A contratação das universidades objetiva-
va estabelecer um rigor conceitual e metodológico, tendo em vista os
vários atores inseridos no contexto. Pois, como afirma Shore:

A compreensão das políticas públicas implica estudá-las a partir


das instituições, dos funcionários que as formulam, dos contex-
tos institucionais e socioculturais mais amplos, das regras do
jogo que orientam a conduta dos formuladores de políticas, pois
a maneira de entendê-las depende do próprio entendimento do
que estamos propondo-nos a discutir (2010, p. 36).

Havia por parte dos atores institucionais a preocupação que


o processo de pesquisa de fato contribuísse para o conhecimento do
tema, na medida em que se abriam serviços e definiam-se metodolo-
gias de atendimento. Esse entendimento, pautava-se na crença que a
formulação das políticas públicas pode contribuir para ampliar o “co-
nhecimento sobre a intervenção e as lógicas culturais que impulsionam
a ação dos sujeitos” (SHORE, 2010, p. 36), na medida em que a propo-
sição de uma política de atendimento incide na vida da população e dos
trabalhadores que compõem a rede de serviços.
Frente a este conjunto de questões o texto que se apresenta tem
por objetivo analisar a política de atendimento à população em situa-
ção de rua na cidade de Porto Alegre, no período de 1994 a 2011. Está
estruturado da seguinte maneira: em um primeiro momento, um le-
vantamento documental das pesquisas realizadas na instituição desde
a década de 1990, seus objetivos e principais resultados, em seguida, o
campo de intervenção dos serviços da Política de Assistência Social, na
cidade; e, encerra-se com as considerações finais.

111
A trajetória das pesquisas na Instituição

O levantamento de documentos mostra que a instituição desde a


década de 1990 pautou-se pela organização e sistematização de infor-
mações sobre a população em situação de rua. Somente na década de
1990, foram realizados três estudos (1994, 1995, 1996) executados ou
contratados pela instituição, buscando identificar, quantificar e conhe-
cer o modo de vida da população em situação de rua da cidade, tanto de
crianças e adolescentes como adultos e famílias.
O primeiro estudo, realizado em 1994 pelos trabalhadores da
instituição, identificou por meio de um levantamento 229 crianças e
adolescentes pedintes nas sinaleiras, denominado: “Perfil dos meninos
e meninas pedintes nas sinaleiras de Porto Alegre”. O estudo tinha
por objetivo conhecer o perfil das crianças e adolescentes e quantificá-
-los de modo a estabelecer políticas de atendimento. O perfil do grupo
estudado naquele período mostrava que as crianças e adolescentes se
encontravam nas ruas, trabalhando junto com os pais. As mulheres e as
crianças se localizavam nas sinaleiras em áreas de grande movimenta-
ção para pedir dinheiro e obter ganhos. Além desse trabalho, as crian-
ças intermediavam suas atividades de ajuda com a família por meio da
lavação de carros e catação. As atividades eram exercidas, em sua maio-
ria, com a presença dos adultos da família, especialmente a mulher e
outros adultos do bairro em que moravam, nas regiões mais pobres da
cidade. O estudo iniciou o processo de descentralização do atendimen-
to à família na cidade, por meio da criação do Núcleo de Apoio Sócio
Familiar – NASF, em 1996. O NASF era o programa responsável pelo
atendimento social com transferência de renda às famílias com crianças
e adolescentes em situação de rua, de forma descentralizada na cidade4.
Em 1995, a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul – PUCRS, através da Faculdade de Serviço Social, foi contrata-
4 O atendimento as famílias iniciou com o Projeto Sinal Verde, em 1994, que atendia
famílias com crianças e/ou adolescentes em situação de mendicância. Em 1996,
passou a denominar-se NASF – Núcleo de Apoio Sócio Familiar, cujas famílias
atendidas, recebiam mensalmente uma cesta básica. Em 1997, o programa reordena
novamente para Programa Família, Apoio e Proteção, que se caracterizava pela
transferência de renda as famílias, por um período máximo de 18 meses. O programa
era executado em nove centros regionais, 12 módulos descentralizados e 18 entidades
não governamentais até o ano 2000.

112
da para realizar uma pesquisa quanti-qualitativa com a população em
situação de rua da cidade, intitulada “A Realidade do morador de rua
de Porto Alegre/RS5”, que identificou 222 indivíduos, na sua maioria
homens (77%), com idade entre 36 a 45 anos (31,9%) e 29 a 35 anos
(20,3%). A maioria da população se encontrava na região central da
cidade, trabalhando como guardadores e/ou lavadores de carro, convi-
vendo o período na rua com o grupo de amigos e demais companhei-
ros de rua (55,4%) ou sozinho (28%). Os motivos para morar na rua
como espaço de moradia foram problemas de relacionamento familiar
(28,8%) e a dependência de álcool e drogas (22,5%). Com relação à
avaliação da população sobre os serviços existentes na cidade, consta-
ta-se que 56,3% acessava os serviços, enquanto 43,7% não os acessava.
O Albergue (40,1%) e o Sopão (37,8%) foram os serviços mais citados
pela população. Dessa população usuária dos serviços, 40,1% os ava-
liavam como bom, 25,2% como ruim e 34,7% disseram não ter opinião
(PUCRS, 1996)6.
O período da pesquisa realizada pela PUCRS marca o início da
construção de uma política direcionada à população adulta em situa-
ção de rua na cidade, por parte da gestão municipal. Fica explícito no
relatório uma preocupação com o processo de abordagem social a esse
segmento da população. Na ocasião, já aconteciam atendimentos pon-
tuais a pessoas que ocupavam o espaço da rua, a partir de solicitações
de transeuntes ao poder público. A instituição FESC defendia que as
abordagens fossem “realizadas por estudantes de serviço social, melhor
qualificados para este fim e suas expectativas com relação ao estudo
e encaminhamento de alternativas para subsídio de políticas sociais”
(PUCRS, 1995, p. 17). Em 1996, inicia-se sistematicamente a aborda-
gem de rua com uma assistente social e estagiários do Serviço Social.
Alguns encontros com a população adulta em situação de rua daquele
período e o poder público aconteceram, e buscaram, pensar os serviços
e a metodologia de atendimento. Em 1996, a Faculdade de Serviço So-
cial foi novamente contratada para realizar o estudo “Meninos e meni-
5 Cabe destacar que a pesquisa considerou como grupo etário pessoas com idade a
partir de 14 anos.
6 Foi realizada uma pesquisa quantiqualitativa, porém a documentação existente na
instituição conta apenas com um relatório com dados quantitativos.

113
nas em situação de rua – quem são? Qual seu modo de vida?”, que na
época identificou 197 crianças e adolescentes.
Em 1999, a pesquisa intitulada: “Condições Sociais e de Saúde
Mental de Moradores de Rua Adultos”, realizada através do Núcleo de
Estudos e Pesquisas Sobre População de Rua – NESPRUA do Hospital
de Clínicas de Porto Alegre em parceria com a FASC, contabilizou 207
pessoas em situação de rua, na cidade.
A partir de 2000, foram realizados novos estudos e pesquisas
(2002, 2004, 2008, 2011) com o mesmo tema. Em 2002, a instituição
realizou um levantamento identificando 625 crianças e adolescentes7
em situação de rua.
Em 2004, a instituição contratou a Universidade Federal do Rio
Grande do Sul – Laboratório de Observação Social/LABORS para rea-
lização de um estudo intitulado “Perfis e mundo das crianças e adoles-
centes em situação de rua na grande Porto Alegre”. O censo identificou
um universo total de 825 crianças e adolescentes na capital e demais ci-
dades, sendo 637 crianças e adolescentes em situação de rua em POA e
188 nas demais cidades da região metropolitana. O censo mostrou um
perfil com predominância de indivíduos do sexo masculino acima dos
6 anos, estando a maioria (64,4%) na faixa dos 12 aos 18 anos (incom-
pletos). Dentre os principais motivos apontados pelo grupo pesquisado
para ingressar na “vida da rua” são em ordem decrescente: ajudar a
família (48%), porque gosta ou por opção (19,4%) e como fuga de maus
tratos na família (6,9%). Quanto aos lugares para dormir, a casa ou fa-
mília (por eles identificada) é o mais usual para dormir (77,8%) seguido
pelos mocós (11,7%) e abrigos (7,7%). O local de dormir revela uma
7 “O termo ‘crianças e adolescentes em situação de rua’ tomou conta do vocabulário
público nos anos 2000. Esse termo está, atualmente, legitimado como uma
classificação instituída acerca de uma população plural que pode estar ocupando a rua
de uma variedade de jeitos e formas, permanente, transitória ou intermitentemente.
Além disso, o termo expressa uma consideração de que as crianças e adolescentes em
situação de rua não apenas moram ou sobrevivem na rua, mas constituem formas de
organização social e significados particulares para seus atos, criativamente adquirindo
conhecimentos, novas formas de relacionamentos sociais e geração de renda. A
potencial situacionalidade dessa experiência abre brechas para se pensar outras
formas de vinculação social como família e comunidade, deslocando a centralidade
do espaço social e simbólico da “rua” para outras possibilidades de pertencimento,
como por exemplo, familiares e comunitárias. Essas formas de pertencimento podem
estar circunstancialmente enfraquecidas, dando uma complexidade especial para a
experiência de crianças e adolescentes em situação de rua” (UFRGS, 2008, p. 17).

114
vinculação com a família ou ambiente familiar percentualmente alto.
Cerca de um quinto da população pesquisada participava de programas
de atendimento, sendo maior em Porto Alegre (21,7%) e menos nas
demais cidades (15,3%). Chama a atenção que 76,6% nunca participou
de atividades socioeducativas. Os programas mais indicados pela popu-
lação pesquisada foram o Acolhimento Noturno/Lar Dom Bosco/Casa
da Harmonia (21,7%) e o Programa de Atenção Integral a Criança e
ao Adolescente em Situação de Rua – PAICA-RUA (10,9%) (UFRGS/
LABORS, 2004).
Em 2007/2008, a UFRGS foi novamente contratada para reali-
zação de pesquisa quanti-qualitativa: “Cadastro e Estudo do Mundo da
População Adulta em Situação de Rua de Porto Alegre/RS” sobre a po-
pulação em situação de rua (crianças, adolescentes e adultos), incluin-
do, além deste, estudos sobre: grupos afro-brasileiros, comunidades
quilombolas e povos indígenas. Foi realizado um Censo com a popu-
lação de crianças e adolescentes com o objetivo de recensear e mapear
os locais de utilização por parte deste público na cidade e uma pesquisa
com a população adulta que tinha como finalidade, além de realizar o
censo, também conhecer as especificidades da formação antropológica
desta população, identificando seus dados étnicos, socioeconômicos e
culturais, estratégias de trabalho e geração de renda, formas de socia-
bilidade, identidade e representações sociais, formas de relação com
instituições e demandas para as políticas públicas.
Foram encontradas 383 crianças e adolescentes especialmente
na região central da cidade, preponderantemente do sexo masculino
(70,5%), entre os 12 e 17 anos (49,5%), uma prevalência de adolescen-
tes, procedentes das regiões Centro (20,4%), Centro Sul (12,6%), Lom-
ba do Pinheiro (12%) e Partenon (11,9%), alto percentual fora da escola
(24,5%), a maioria (31,9%) encontrava-se junto com outros jovens e
crianças em situação de rua, enquanto 26% estavam junto com outros
adultos, jovens e crianças em situação de rua e mais 15,1% estavam
com outros adultos em situação de rua. Um percentual ainda menor
encontrava-se com a família, abarcando 5,7% das situações.
Em relação à população adulta, foram entrevistadas 356 pessoas
dentro dos abrigos/albergues e 847 nas ruas e logradouros da cidade,

115
totalizando 1203 pessoas em sua maioria na região central da cida-
de (Centro, Floresta, Menino Deus, Cidade Baixa e Azenha). Destes
81,8% eram do sexo masculino e 18,2% feminino, com uma relativa
concentração etária nas faixas mais jovens da população cadastrada.
Cerca de 60% dessa população dormia cotidianamente e prioritaria-
mente em lugares de risco e improvisados e com forte exposição ao
ambiente natural. Foi relativamente baixo o número de pessoas que
dormiam em lugares institucionalizados, 35,8% em primeiro lugar e
16,9% em segundo lugar. Esses lugares eram preferencialmente: al-
bergues (18,9% e 6,7%), abrigos, hotéis ou pensões – em geral pagos
pela prefeitura – (9,3% e 5,9%), casa própria ou de parentes e amigos
(7,6% e 4,3%). Os declarados naturais de Porto Alegre ou da região
metropolitana perfez 52%, os migrantes de outras cidades contabili-
zou 35% e 28% sempre moraram na cidade. A grande maioria do seg-
mento populacional (86,4% da amostragem) explicitou ou deu indícios
que confirmam a ideia de afastamento, ruptura ou desagregação dos
elos familiares e/ou conjugais, seja por fatores objetivos ou relacionais
(MAGNI et al, 2012).
O estudo qualitativo com a população adulta em situação de rua
mostrou que a relação com os cidadãos da cidade eram permeadas pela
discriminação e desigualdade social. O grupo compartilhava um sen-
timento de despertencimento da “sociedade” e de não reconhecimento
social por parte da população. A sociedade estabelecia uma relação am-
bígua com o grupo, pois ao mesmo tempo em que eram desrespeitados
e discriminados, também haviam ações de apoio por meio de doações
diversas orientadas por valores cristãos.
A rede de atendimento era pouco utilizada pelo grupo estudado
em virtude das normas e regras internas das instituições, pois gera-
vam uma sensação de “aprisionamento”. A relação com as instituições
era difícil, conturbada e perpassava a discriminação e o preconceito. A
relação com a Brigada Militar era especialmente tensa, com discrimi-
nação social e outras formas de violências até mesmo agressões físicas
e insultos morais.
Em 2011, a FASC realizou um novo Cadastro Censitário intitu-
lado “Cadastro da População Adulta em situação de rua na cidade de

116
Porto Alegre”, por meio de sua equipe técnica, e contou, também, com
a contratação de profissionais consultores qualificados para o processo
de análise e interpretação dos dados. Os dados já existentes, do extinto
Serviço de Atendimento Social de Rua (ASR), assim como os apresen-
tados pelas equipes de abordagem social descentralizada, pelos CREAS
a partir de 2011, possibilitou o mapeamento na cidade, dos pontos de
maior concentração de pessoas em situação de rua. Também contribuí-
ram para o mapeamento da pesquisa um grupo de pessoas em situação
de rua – pesquisadores sociais – representantes dos serviços da rede de
atendimento, de Fóruns e Movimentos Sociais de pessoas em situação
de rua de Porto Alegre, que foram acompanhadas pela FASC e por con-
sultoria contratada ao longo dos meses de abril a dezembro de 2011.
O resultado do censo identificou 1347 pessoas em situação de rua na
cidade no período. Desse total, 345 pessoas foram entrevistadas dentro
dos serviços, e 1002 nas ruas e logradouros da cidade localizados em
sua maior parte na região central da cidade (45%) distribuída entre os
bairros Centro (27,3%), Floresta (10%) e Menino Deus (7,7%). No que
se refere a sua distribuição por sexo, tem-se que 81,7% eram do sexo
masculino e 17,1% do feminino. O restante não declarou.

A distribuição por faixa etária mostrou uma dispersão ou distri-


buição dos pesquisados, principalmente entre 25 e 59 anos. Em
relação ao estudo anterior, percebe-se uma diminuição na faixa
menor idade, ou seja, dos 18 anos 24 anos, e aumento significativo
(duplicando) na faixa dos idosos, 60 anos ou mais (DORNELLES
et al, 2012, p. 47).

O estudo chama a atenção para a diminuição do número de ado-


lescentes nas ruas, mas adverte para o processo de envelhecimento da
população, decorrentes do aumento da expectativa de vida da população
em geral. O estudo mostra que 60% da população dorme em locais de
risco ou desprotegidos, como calçadas, praças ou parques (39,3%); os de-
mais se recolhem embaixo de pontes ou viadutos, em casas abandonadas
e outros locais, em lugares ou ambientes desabrigados. Entre os que se
protegem em albergues, abrigos e hotéis/pensões, soma-se o percentil de
28,3%. Os lugares em que passam a maior parte do tempo durante o dia

117
são os espaços públicos, em geral abertos, com pouca proteção. Conside-
rando praças, ruas, calçadas e locais semelhantes, são aproximadamente
60% os que aí passam a maior parte do tempo, apontado como primeiro
lugar; como segundo lugar, esses mesmos espaços foram apontados por
cerca de 30%, porém, mais de um terço (37,1%) não respondeu.
As Casas de Convivência e os Abrigos aparecem nas escolhas em
segundo e terceiro lugar como preferência para passar o dia, com um per-
centual relativamente alto, comparando-se com os demais locais (17,9%).
Em relação a 2007, percebem-se algumas alterações, sem que se possa
constatar alguma tendência por busca de locais mais protegidos. As pra-
ças e os parques que acolhiam 31,9% em 2007, agora, acolhem 21%.

O perambular pelas ruas aumentou de 17,5% para 30,1% nes-


se período. Esse dado pode estar revelando maiores controles
e coerções à permanência da população estudada em praças e
parques, deslocando-os para espaços ainda menos seguros e de
maior risco, que são as ruas. Os serviços de atendimento ofe-
recidos pela política de assistência social, por meio da FASC,
permanecem estáveis na comparação entre os dois estudos, em
percentuais (DORNELLES et al, 2012, p. 50).

Em relação aos novos serviços ofertados pela Política de Assis-


tência Social, como os CRAS – Centro de Referência de Assistência
Social, e CREAS – Centros de Referência Especializado em Assistên-
cia Social, a pesquisa revela que: apenas 23% da população investigada
referiu já ter acessado o CRAS, e 26% ter acessado o CREAS. As Ca-
sas de Convivência, serviços que já existiam, foram mencionados por
56,1% dos entrevistados (DORNELLES et al, 2012).
Ao analisarmos o percurso dos estudos realizados pela FASC
desde 1994, a partir da análise documental, se observam mudanças
importantes no perfil da população adulta e de crianças e adolescen-
tes, mas também mudanças metodológicas na forma de realização das
pesquisas. O uso do conceito “população em situação de rua”8, utilizado
8 A definição conceitual que orientou os estudos desde 2004 fundamenta-se em uma
perspectiva que compreende que a representação social sobre as pessoas em situação
de rua deve romper com determinismos contrários a visão essencialista sobre as
pessoas colocadas nessa situação social, como sua oposição a qualquer determinismo
na explicação desse fenômeno (DORNELLES et al, 2012).

118
nos estudos desenvolvidos pela UFRGS a partir de 2004, permitiu es-
tabelecer análises comparativas entre eles. As pesquisas realizadas com
a população formada por crianças e adolescentes mostram a presença
das famílias e a questão do trabalho como um elemento importante na
condição de rua. Por outro lado, as pesquisas com a população adulta
revelam alterações etárias no perfil do grupo, indicando seu processo
de envelhecimento, embora o grupo seja formado em sua maioria, por
homens adultos. Sua relação com os serviços ocorre de forma reduzida,
pois apenas 28% acessa a rede de serviços.
Cabe questionar os fatores que levam a esse dado. Os dados ins-
titucionais mostram que, a cobertura dos serviços é insuficiente para a
demanda. Conforme demonstrado no último censo de 2011, havia 1347
indivíduos em situação de rua e uma capacidade de atendimento de 613
vagas em 20169. Porém, outros motivos concorrem para isso, desde o
regramento para acesso aos serviços, as relações que estabelecem na
cidade, as forças coercitivas da ação policial, às próprias escolhas dos
sujeitos em não acessar a rede.
As pesquisas demonstram que a população em situação de rua da
cidade é heterogênea, tem um modo de vida complexo, permeado por
tensões, conflitos, violência, preconceito e estigmatização.
A normatização e regras existentes na rede de serviços, muitas
vezes acabam sendo critérios de exclusão ou impeditivos para o ingresso
nos mesmos. Parte da população que não acessa os serviços e permanece
nas ruas, perfaz um universo importante que estabelece suas relações
com uma ampla gama de instituições públicas, privadas, religiosas e de
pessoas que lhes garantem condições de alimentação e abrigo.
Os serviços das políticas de saúde, habitação, educação, transporte,
cultura, lazer, trabalho e renda, esporte, entre outras, apresentam frequen-
temente dificuldades em dialogar com a população em situação de rua, no
sentido de ofertar políticas e atendimentos que acolham este segmento
da população, permitindo seu acesso e participação nos serviços. Estas
questões impõem desafios complexos na obtenção dos direitos sociais da

9 O comparativo da taxa de crescimento em relação ao número de metas para


população adulta no serviço de acolhimento institucional (albergue) da rede própria
e conveniada foi de 109% entre 2003, quando havia 170 metas, e 2014, quando havia
355 metas (PMPA/FASC, junho de 2015).

119
população em situação de rua, bem como, na articulação das políticas pelo
poder público. A respeito da intersetorialidade e do reconhecimento do
modo de vida da população em situação de rua “a recente Política Na-
cional para Inclusão Social da População em Situação de Rua aponta e
orienta ações que devem ser efetivadas no âmbito das diversas políticas
não restringindo só a Assistência Social” (PIZZATO, 2011, p. 82).
No cotidiano do trabalho e dos atendimentos realizados pelos ser-
viços da rede socioassistencial, muitas vezes, competências e responsabi-
lidades das demais políticas são atribuídas à Assistência Social.
A pesquisa permite ampliar nossa aproximação com o universo so-
cial da população em situação de rua, contribuindo para o estabelecimento
de relações menos hierarquizadas e, também, identificando as percepções
da população sobre os serviços ofertados. As dificuldades intersetoriais da
Assistência Social com a população em situação de rua e a pequena utiliza-
ção dos serviços, identificados nos estudos de 2008 e 2011, demonstram
entraves e dificuldades ainda existentes no acolhimento a esta população,
questão importante e que merece aprofundamento. No próximo item,
contextualiza-se a política de atendimento do município e o cotidiano do
atendimento por meio dos serviços e dos trabalhadores.

A política de atendimento na cidade de Porto Alegre

O processo de regulação da Política de Assistência Social iniciado


após sua inclusão no tripé da seguridade social, assegurada na Consti-
tuição Federal de 1988, acentuou-se a partir de 2003. As políticas de
transferência de renda (tal como o Programa Bolsa Família) e os investi-
mentos na rede de serviços socioassistenciais por meio da estruturação e
organização dos mesmos e do processo de educação permanente dos tra-
balhadores, marcou o processo de implantação do SUAS de 2003 a 2016.
Em Porto Alegre, o reordenamento dos serviços iniciou em 200910
trazendo um impacto importante na política de atendimento da cidade
com a implantação da rede de serviços de Proteção Social Básica e Espe-
cial. Na rede de proteção social básica foram implantados os 22 CRAS,
reordenado o Serviço de Apoio Sócio Educativo – SASE para o Serviço
10 Porto Alegre aderiu ao SUAS em 2005 e, a partir de 2009, implantou o SUAS,
reordenando a rede de serviços socioassistenciais e implantando novos serviços.

120
de Convivência e Fortalecimento de Vínculos – SCFV e o antigo Núcleo
de Apoio Sócio Familiar foi reordenado pelo Programa de Atenção In-
tegral a Família – PAIF e o Serviço de Atendimento a Família – SAF11.
Na rede de Proteção Social Especial de média complexidade fo-
ram implantados 02 Centros Dia do Idoso (2002-2012), 09 CREAS
(2009) e reordenado as 02 Casas de Convivência em dois Centros Pop
(2012 e 2014). Em 2007 houve um incremento importante nas equi-
pes de abordagem para crianças e adolescentes com a contratação de
equipes de trabalhadores pertencentes a entidades da sociedade civil.
Em 2011, foi descentralizado o Serviço de Abordagem Social para as
regiões junto aos 09 CREAS da cidade e, em 2015, as equipes de abor-
dagem para a população adulta foram ampliadas, possibilitando uma
qualificação desse atendimento em Porto Alegre.
Na rede de Proteção Social Especial de alta complexidade foi rea-
lizado o reordenamento dos serviços de acolhimento para crianças e
adolescentes já existentes e conveniados, além da abertura de novas
vagas através da implantação de serviços nas modalidades Casa Lar e
Abrigo Institucional. De 2010 a 2016, a rede se ampliou e atualmente
conta com um total de 832 vagas. Cabe destacar que a maior parte das
vagas são executadas em parceria com a rede conveniada.
A rede de acolhimento para a população adulta em situação de
rua, no período de 1994 a 2009 criou vagas na rede de albergues, hotéis
e abrigos. A partir de 2009 essa rede foi reordenada com estruturas
menores em termos de número de acolhidos e um maior grau de espe-
cialização em termos de vulnerabilidades e riscos, tais como mulheres
vítimas de violência (Casa Lilás, 2010), famílias (Abrigo de Família,
2012), jovens e adultos egressos da rede de acolhimento com maior
autonomia (República, 2013), idosos em situação de rua (Casa Lar do
Idoso, 2015). Conta em 2016 com um total de 227 vagas para adultos
em situação de rua, entre serviços próprios e conveniados, além de va-
gas para Instituições de Longa Permanência para Idosos – ILPI.
Estes serviços são ofertados por meio de equipamentos municipais
ou por entidades não governamentais conveniadas com a instituição. O
campo da intervenção é formado por gestores governamentais, dirigen-
11 O PAIF é ofertado nos 22 CRAS e o SAF é ofertado por meio de 37 Núcleos de
Atendimento a Família.

121
tes das entidades da sociedade civil, movimentos sociais, trabalhadores12
e usuários. Essa configuração do campo da Assistência Social no mu-
nicípio, mostra-se heterogênea não apenas no formato das instituições
que ofertam os serviços, uma vez que muitas delas tem caráter religioso,
filantrópico ou laico. Mas também, quanto aos trabalhadores e suas dife-
rentes categorias profissionais, relações de trabalho, concepção da polí-
tica e entendimentos sobre a intervenção social. Embora os serviços na
Política de Assistência Social estejam tipificados, ou seja, devem obede-
cer a uma estrutura padrão definida pela política pública, ainda assim,
essas concepções são objeto de disputa entre os diferentes atores.
Os trabalhadores da Assistência Social também sofreram um impac-
to importante no processo de formulação da política de atendimento na
cidade. Foi diversificado o número de profissionais que atuam na política,
inicialmente formada em sua grande maioria, por profissionais do Servi-
ço Social. A partir de 2000 ampliam-se as categorias profissionais, para
o campo da psicologia, do direito e da pedagogia, entre outras. Embora
essa ampliação das categorias profissionais tenha permitido desenvolver
um caráter multidisciplinar, as condições de trabalho têm se constituído
de forma precária, com vínculos trabalhistas diversos, ocasionando baixa
qualificação, rotatividade, dificuldade no trabalho em equipe e insegurança
nas relações de trabalho. Ao mesmo tempo, os trabalhadores têm se orga-
nizado por meio das lutas sindicais e de categoria (Conselhos de Classe,
Fórum Municipal e Estadual de Trabalhadores da Assistência Social etc.).
A população usuária dos serviços tem assento no Conselho Mu-
nicipal de Assistência Social – CMAS junto com as entidades da socie-
dade civil. Com relação a situação de rua o tema é objeto de discussão e
acompanhamento tanto por parte dos Conselhos e Fóruns da Criança
e do Adolescente na cidade, quanto pelo CMAS. A população adulta
em situação de rua tem se organizado por meio do Jornal Boca de Rua,
do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, do Comitê
Municipal de Acompanhamento e Monitoramento das Políticas para
População em Situação de Rua (Comitê Pop Rua), e outros fóruns.

12 Os trabalhadores da Política de Assistência Social são formados, em sua grande


maioria, por profissionais de nível superior de diferentes campos do conhecimento
como: Serviço Social, Psicologia, Pedagogia, Ciências Sociais, entre outros, e, educadores
sociais com cargo de nível médio, mas em sua maioria com formação superior.

122
A visibilidade na região central de Porto Alegre, nos últimos anos,
de um crescente número de pessoas adultas em situação de rua, ocupando
o espaço público, calçadas, mocós, praças, viadutos, terrenos baldios, espa-
ços sob viadutos e pontes passou a imprimir ao poder público, tanto por
parte da população em geral como da mídia, providências e ampliação dos
serviços públicos no atendimento a esse segmento populacional da cidade.
Em 2014, a prefeitura municipal de Porto Alegre assinou Termo
de Adesão à Política Nacional para População em Situação de Rua. O
Decreto Municipal, nº 19.087 de 22 de julho de 2015, instituiu o Co-
mitê Municipal Intersetorial de Monitoramento e Acompanhamento
à Política para População em Situação de Rua13, sob a coordenação da
Secretaria Municipal de Direitos Humanos e não mais da Assistência
Social, conforme orientação da Política Nacional. Em 2015 foi apresen-
tado pelo governo municipal novo Plano de Atenção Pop Rua, para ser
executado de forma intersetorial nos anos de 2015-2016, com ênfase
na região central da cidade. Dentre as ações previstas estão algumas
não realizadas no plano anterior (2011-2014)14.

13 Órgão colegiado e paritário composto por dezoito representantes, sendo nove(9)


do governo e nove(9) representantes da sociedade civil e do Movimento Nacional
da População em Situação de Rua. Dentre as secretarias estão: Secretaria Municipal
de Direitos Humanos (SMDH), Fundação de Assistência Social e Cidadania
(FASC), Secretaria Municipal de Educação (SMED), Secretaria Municipal de Saúde
(SMS), Secretaria Municipal de Segurança (SMSEG), Departamento Municipal
de Habitação(DEMHAB), Secretaria Municipal de Trabalho e Emprego (SMTE),
Secretaria Municipal de Esportes (SME) e Secretaria Municipal de Cultura( SMC).
14 Ações para a FASC: Ampliação das metas de acolhimento em albergues na
Operação Inverno; das equipes de abordagem social nas nove regiões dos CREAS;
Implantação de um novo albergue com 90 metas; Serviço de hospedagem (150
diárias/mês); SCFV para à população adulta em situação de Rua, na região central
da cidade; mais um abrigo de Famílias; mais duas Repúblicas; Aumento do valor
destinado a compra de passagens; reordenamento do albergue municipal; reforma
do abrigo Bom Jesus; Nova edição do projeto Facilitadores Sociais; Realização de
nova Pesquisa sobre a população em situação de Rua; Para a Secretaria de Saúde:
Implantação do CAPS AD Centro, equipe de Redução de Danos; Consultório
na Rua da Restinga; Complementação das equipes dos consultórios na rua do
Centro; Inclusão de Acompanhantes Terapêuticos junto a equipe do CAPS 2-
Centro, de saúde mental; Leitos de Longa Permanência; Implantação de Unidades
de Acolhimento, pós internação, em tratamento para dependência química; Ações
para habitação: aluguel social, com 50 metas/mês; inclusão de 3% da população
nos empreendimentos habitacionais construídos na cidade, no Programa Minha
Casa Minha Vida; Implantação de núcleo de inclusão produtiva; Criação de cotas nas
terceirizadas, contratadas pela prefeitura; implementação de espaços de Higiene na
cidade (banheiros públicos); cozinhas comunitárias e Restaurante Popular.

123
Nesse contexto cabe mencionar a gestão municipal e os interes-
ses locais e o cenário nacional no processo de financiamento das ações.
Do ponto de vista do município, houve mudanças de gestão, de 1994 a
2004 a prefeitura foi governada pelo Partido dos Trabalhadores – PT,
de 2005 a 2012 pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro –
PMDB e de 2013 a 2016 pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT.
No âmbito nacional, a administração manteve-se de 2003 a 2016 com o
PT. Essa configuração traz implicações na gestão das políticas públi-
cas, pois dependem do cofinanciamento municipal, estadual e federal.
Destaca-se o frágil papel do governo do estado do RS no cofinancia-
mento da Política de Assistência Social.
A seguir tecemos as considerações finais tendo como pano de
fundo as pesquisas realizadas e a trajetória de formulação da política
de atendimento na cidade.

Considerações Finais

A escrita do presente texto permitiu uma análise sobre a cons-


tituição da Política de Atendimento e Assistência Social à população
em situação de rua na cidade de Porto Alegre. Por meio da leitura dos
documentos e pesquisas realizados ao longo dos últimos vinte anos,
foi possível percorrer a trajetória da população em situação de rua na
cidade e suas múltiplas expressões em termos quantitativos, do perfil
heterogêneo e modo de vida, mas também das demais políticas e dos
serviços socioassistenciais.
A análise realizada buscou iluminar os diversos fatores implicados
no processo de formulação da política nesse período, dentre os quais se
destacam os marcos regulatórios tais como: o SUAS, a Tipificação Na-
cional dos Serviços Socioassistenciais, a Política Nacional da População
em Situação de Rua, e no município, o Plano Municipal de Enfrenta-
mento a Situação de Rua; Comitê Municipal Intersetorial de Monito-
ramento e Acompanhamento à Política para População em Situação de
Rua; o Plano de Atenção à População em Situação de rua – 2015/2016.
Além deste, a constituição da rede de atendimento com ênfase no pro-
cesso de precarização dos serviços em termos de estruturas físicas e das

124
condições de trabalho dos profissionais da política, assim como, colocou
em evidência, a ampliação da rede conveniada e a redução dos serviços
próprios que sofreram um processo de desgaste ao longo dos últimos
anos. Observa-se ainda, a organização das pessoas em situação de rua,
enquanto movimento social, na disputa pelo direito à cidade.
Nesse contexto, a instituição buscou subsidiar-se por meio da
pesquisa do tema situação de rua, o que também teve impacto na for-
mulação da política de atendimento. A FASC conta atualmente com
um acervo importante de informações sobre a população em situação
de rua, em termos censitários, modo de vida e relação com o poder
público.
Neste sentido, tem-se que a pesquisa da realidade social no cam-
po da Assistência Social contribuiu para refletir sobre o cotidiano dos
serviços e do atendimento à população com distanciamento. Instigan-
do-nos a pensar sobre o “outro”, ultrapassando visões essencialistas
e homogêneas da população por meio do reconhecimento das suas
diferenças e singularidades. Entende-se, contudo, que os estudos rea-
lizados foram pouco aprofundados pelos trabalhadores, pelas demais
políticas setoriais, pelo movimento social, usuários dos serviços e so-
ciedade como um todo.
Essa reflexão é importante, pois marca a finalização da oitava pes-
quisa contratada sobre o tema, sendo que em parceria com a UFRGS,
desde 2004. Nesse ano, foi contratado um censo para a população como
um todo, ou seja, para crianças, adolescentes, adultos e famílias e um
estudo qualitativo da população adulta, dos serviços e dos trabalhado-
res. O acompanhamento do processo da pesquisa, realizado no período
de março a dezembro de 2016, foi feito através de uma Comissão com-
posta por representantes dos trabalhadores, dos movimentos sociais
da população em situação de rua e universidade15.
15 A Comissão foi coordenada pela Assessoria de Vigilância Socioassistencial –
Simone Ritta dos Santos. Demais membros da Comissão: Miriam Thomaz, também
da Assessoria de Vigilância Socioassistencial; Lirene Finkler e Mateus Cunda, pela
Coordenação de Proteção Social Especial; Aline Rocha da Silva, da Proteção Social
Básica; Aline Dornelles, da Coordenação de Recursos Humanos; Rogério Ferreira,
da Assessoria Jurídica e Rejane M. S. Pizzato , da Assessoria da Direção Técnica da
FASC. Do movimento das pessoas em situação de rua contamos com representação
do Movimento Nacional da População em Situação de Rua e do Jornal Boca de Rua,
e também com representantes da Universidade.

125
Com relação à política de atendimento convém salientar que a
análise dos documentos mostrou que a década de noventa marca a cons-
tituição da Política de Assistência Social enquanto direito social na cida-
de de Porto Alegre, instituindo serviços especializados para a população
em situação de rua (albergues, serviço de abordagem social, inserção em
atividade produtiva, cursos profissionalizantes com incentivo a econo-
mia solidária, inclusão em casas de emergência, casa de convivência,
abrigos) e na década seguinte com o advento da implantação do SUAS
foram reordenados alguns e abertas novas modalidades de serviços. A
política de atendimento à população adulta em situação de rua na cidade
mostra inicialmente, que a cobertura é insuficiente para a quantidade de
pessoas identificadas pelos censos, seja o de 2008, seja o de 2011. Desde
1994, na rede de serviços de crianças e adolescentes, identifica-se um
crescimento, embora os estudos tenham apontado a redução das crian-
ças e adolescentes em situação de rua no período.
Os fatores que podem ter contribuído para o fato são vários, des-
de a implantação do SUAS que aposta em um processo de especializa-
ção dos serviços em unidades menores conforme as vulnerabilidades e
riscos da população, na retração dos investimentos junto a população
adulta, na pressão exercida pelo poder judiciário, no caso das crianças e
adolescentes, que torna possível a abertura de novas vagas.
Os serviços apontam, ainda, que há uma redução na capacida-
de de atendimento por parte dos trabalhadores, devido a mudança do
perfil da população atendida em termos de adoecimento (acamados, de-
pendentes), do uso de substâncias psicoativas, do envelhecimento e da
agudização da violência urbana.
Associado à precarização das estruturas físicas dos serviços, de-
vido aos poucos investimentos, assiste-se a um cenário de tensões e
conflitos permanentes nos serviços, com reflexo nos usuários e tam-
bém nos trabalhadores, que tem registrado uma ampliação no adoeci-
mento por meio de afastamentos com licenças de saúde.
Essa multiplicidade de questões repercute no processo de formu-
lação da política de atendimento, refletindo um campo perpassado por
múltiplos interesses e atores sociais, que contribuem e interferem no
processo de constituição da política de modo que, o reconhecimento da

126
multiplicidade de questões do campo da Assistência Social na cidade
exige uma permanente reflexão sobre a realidade social em sua dina-
micidade por meio da pesquisa, da discussão, do diálogo com o outro
em sua diversidade.

127
Referências

DORNELLES, A. E.; SILVA, M. B.; GEHLEN, I.; SCHUCH, P. O Re-


trato censitário da população adulta em situação de rua em Porto Ale-
gre. In: DORNELLES, A. E.; OBST, J.; SILVA, M. B. (Orgs.). A rua
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mundo da população adulta em situação de rua de Porto Alegre/
RS. Porto Alegre, junho de 2008.

129
A PROTEÇÃO INTEGRAL NO SUAS E
ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL
PARA FAMÍLIAS

cleber cAndido de deuS


MárciA SAntoS de AlMeidA Knorr
rejAne MArGArete Scherolt PizzAto

Introdução

O presente texto se propõe a relatar o atendimento social reali-


zado no Serviço de Acolhimento Institucional para Famílias1, Abrigo
de Famílias I, que compõe a rede de serviços de acolhimento institu-
cional da Proteção Social Especial, da Fundação de Assistência Social
e Cidadania (FASC), em Porto Alegre.
A implantação do abrigo se deu em 2012 com o atendimento a
núcleos familiares em situação de vulnerabilidade social e/ou risco so-
cial em unidade de pequeno porte, com características residenciais, no
intuito de garantir o acolhimento de famílias nas suas diversas com-
posições.
A experiência construída até então, motivou a construção desse
texto que apresenta aspectos conceituais e metodológicos implicados
no processo de trabalho dessa modalidade de acolhimento, assim como,
dados quanti-qualitativos sobre as famílias acolhidas, no período com-
preendido entre fevereiro de 2012 e outubro de 2016.
Ao final, se propõe algumas considerações a respeito desse es-
tudo, na perspectiva de contribuir com reflexões sobre o acolhimento
institucional de famílias em situação de vulnerabilidade e/ou risco so-
cial em Porto Alegre.
1 Segundo a Tipificação do MDS, os Serviços de Acolhimento Institucional se des-
tinam a famílias e/ou indivíduos com vínculos familiares rompidos ou fragilizados, a
fim de garantir proteção integral. Pela resolução, o atendimento nesse tipo de serviço
deve ser personalizado, realizado em pequenos grupos e favorecer o convívio familiar
e comunitário, bem como a utilização dos equipamentos e serviços disponíveis na
comunidade local.

131
Preceitos legais e trajetória

O artigo 203 da Constituição Federal de 1988 dispõe que: “A as-


sistência social será prestada a quem dela necessitar, independente de
contribuição à seguridade social”. Nesse mesmo artigo consta como
um dos objetivos, a proteção à família, à maternidade, à infância e a ve-
lhice. Segundo Pereira (2006, p. 26), “desde a crise econômica mundial
dos fins dos anos 1970, a família vem sendo redescoberta como um
importante agente privado de proteção social”. É atribuída à família a
reprodução da vida material e social de seus componentes ao mesmo
tempo em que incide nessa, o cotidiano da desproteção social, ou seja,
sua exposição aos processos de vulnerabilidades e riscos sociais decor-
rentes da desigualdade social, marco da sociedade capitalista.
Em Porto Alegre, a Fundação de Assistência Social e Cidadania
– FASC é responsável pela execução da política de assistência social na
cidade e a partir de 2005 inicia o processo de avaliação institucional
para a implantação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS
na Proteção Social Especial – PSE, e entre 2009 e 2011, trabalhou no
reordenamento de sua rede existente, conforme previsto na Tipificação
Nacional de Serviços Socioassistenciais2. Assim, em 2011 foi implan-
tado o SUAS no Município, através do Decreto nº 17.256 de 05 de
setembro de 2011. Em 2013 foi aprovado o Regimento Geral e Novo
Organograma da FASC, através do Decreto 18.198 de 1º de fevereiro
de 2013 (FASC, 2016).
O Estado na condução das políticas sociais tem a matricialidade
sociofamiliar como diretriz principal. Sendo assim, o SUAS percebe
e orienta a família na centralidade dos serviços, programas, projetos
e benefícios ofertados. Conforme Pereira (2006, p. 26), atualmente há
“um amplo arco de políticas, articuladoras de um expressivo contin-
gente de atores e recursos, contemplando a família”.
A implantação, em Porto Alegre, de uma nova modalidade de
acolhimento institucional, orientada na Tipificação Nacional de servi-
ços, destinada às famílias que, mediante uma avaliação técnica, neces-
2 Resolução N° 109 do Conselho Nacional de Assistência Social, de 11 de novembro
de 2009, que organiza em âmbito Nacional os serviços socioassistenciais do Sistema
Único de Assistência Social - SUAS por níveis de complexidade.

132
sitam de uma proteção integral do Estado, constituiu-se em 2012, no
Abrigo de Famílias. Espaço destinado a acolher quatro núcleos fami-
liares, onde além da proteção terão seus hábitos de vida e necessidades
básicas atendidas. Algumas dificuldades de convivência e escolhas, co-
tidianamente monitorados e avaliados por agentes estatais. Neste es-
paço, são realizadas intervenções diárias de acordo com as regras de
convivência estabelecidas anteriormente pelo próprio grupo, que são
retomadas sempre que necessário, pois muitas vezes são esquecidas ou
simplesmente desrespeitadas.
Em geral, há dificuldade na compreensão de certa limitação da
liberdade na relação com o outro no que tange aos direitos e deveres
de cada indivíduo, ou seja, onde há prejuízo de outrem, a liberdade é
discutível. A vida privada na verdade não é totalmente privada como
se estivesse em moradia própria. E, neste sentido, cabe ao Estado, re-
presentado pela equipe de trabalho, exercer o controle. Controle esse
realizado pela equipe e que busca, ao mesmo tempo em que traz a essa
população a proteção do Estado, também, desenvolver um trabalho que
potencialize o exercício da autonomia e da emancipação.
Em função disso, tem-se que para Mioto (2006, p. 45) o surgi-
mento do Estado, contemporâneo ao nascimento da família moderna,
não significou apenas a separação de esfera, mas também o estabeleci-
mento de uma relação até hoje conflituosa e contraditória. Pois, como
escreve a referida autora, tem-se que a construção histórica da relação
Estado/Família foi sempre permeada pela ideologia de que as famílias,
independente de suas condições objetivas de vida e das próprias vicis-
situdes da convivência familiar, devem ser capazes de proteger e cuidar
de seus membros. Crença essa tida como um dos pilares da construção
dos processos de assistência às famílias e que permitiu ao Estado es-
tabelecer uma distinção entre famílias capazes e incapazes, segundo
Mioto (2006).
Neste sentido, tem-se que os vínculos relacionais de afetividade,
proteção e socialização da família são consequentemente afetados por
este contexto vivido, impondo muitas vezes sua reconfiguração. À fa-
mília e seus integrantes, muitas vezes recai a responsabilização pelo
seu estado de pobreza material e fragilização de seus vínculos relacio-

133
nais, desconectada das causas estruturais da organização societária e
sua reprodução social na medida em que, como escreve Pereira (2006,
p. 26-27):
A família como toda e qualquer instituição social, deve ser en-
carada como uma unidade simultaneamente forte e fraca. Forte,
porque ela é de fato um locus privilegiado de solidariedades, no
qual os indivíduos podem encontrar refúgios contra o desam-
paro e a insegurança da existência. Forte, ainda, porque é nela
que se dá, de regra, a reprodução humana, a socialização das
crianças e a transmissão de ensinamentos que perduram pela
vida inteira das pessoas. Mas ela também é frágil, pelo fato de
não estar livre de despotismos, violências, desencontros e ruptu-
ras. Tais rupturas, por sua vez, podem gerar inseguranças, mas
também podem abrir portas para a emancipação e bem-estar de
indivíduos historicamente oprimidos no seio da família, como
mulheres, crianças, jovens, idosos.
Portanto, tem-se que a instituição social “família” passa por mo-
dificações inerentes ao processo de organização da sociedade capitalis-
ta que ao mesmo tempo em que fragiliza a sua função protetiva, atribui
a ela a responsabilidade pela sua manutenção.
Indo nesta direção, e para além do atendimento das necessidades
básicas, o serviço de acolhimento para famílias objetiva problematizar
a situação de exclusão social e total ausência de direitos sociais bási-
cos, de bens e serviços demandados de modo que, o trabalho social
desenvolvido com as famílias deve sempre se pautar na reflexão quan-
to à função das políticas públicas enquanto responsáveis pela provisão
das necessidades de educação, trabalho, moradia, dentre outras, assim
como, da situação de violência intrafamiliar, dentre as vulnerabilidades
sociais, e das possibilidades de superação de forma autônoma e eman-
cipatória.
Pois, antes da cidade contar com um serviço de acolhimento es-
pecífico para famílias, estas eram acolhidas em espaços comuns à po-
pulação adulta em situação de vulnerabilidade e/ou risco social. E, a
circulação em área comum de famílias e indivíduos tornava mais susce-
tíveis as crianças e adolescentes a situações de risco, tendo em alguns
momentos seus direitos violados no espaço que deveria ser de proteção.

134
No Abrigo de Famílias3, os critérios para ingresso compreendem:
a existência de vagas; o encaminhamento pelo Núcleo de Acolhimento
da Proteção Social Especial; a família estar em situação de risco e/ou
vulnerabilidade social; os pais e/ou responsáveis terem acima de 18
anos; estar em condições clínicas, no momento do ingresso, não possuir
dependência dos cuidados de enfermagem para hábitos de vida diária;
não apresentar sinais e sintomas de alguma doença que seja de risco
iminente de vida. O serviço acolhe a família na sua diversidade. Não há
restrição na composição de parentalidade, gênero, idade e orientação
sexual.
A metodologia de trabalho compreende a realização de acolhi-
mentos, atendimentos individuais ou em grupo, acompanhamentos, as-
sembleias, reuniões de equipe, atividades recreativas e oficinas, assim
como outras estratégias de intervenção tais como: ensaios fotográficos,
chás de fraldas, passeios, celebrações, batismos e qualquer outra ativi-
dade que de forma subjetiva contribua no processo de acompanhamen-
to. As regras de convivência são construídas em conjunto com as fa-
mílias acolhidas e são, aprovadas, em assembleias. Estas regras sofrem
alterações com o cotidiano do acolhimento que também se altera de
acordo com o conjunto das famílias acolhidas e a realidade social.
O processo de trabalho do Abrigo de Famílias foi construído tec-
nicamente de forma interdisciplinar, contando inicialmente com téc-
nicos do Serviço Social e da Terapia Ocupacional. Profissionais estes
que compõem uma equipe técnica fortalecida e atuante na garantia dos
direitos individuais fundamentais e sociais das famílias acolhidas. Pro-
cesso esse que prioriza, essencialmente, a construção de um espaço per-
3 O Abrigo de Famílias funciona em uma casa locada no bairro Santana, localizado na
região central de Porto Alegre e com privilegiada localização no acesso a equipamen-
tos urbanos e serviços públicos de saúde, educação, transporte, lazer, esporte, etc. O
serviço tem capacidade para atender quatro famílias, tendo como meta 20 indivíduos.
A casa possui quatro quartos, dois banheiros para as famílias, refeitório, cozinha,
lavanderia, brinquedoteca, área externa e duas salas para o serviço de atendimento e
administrativo. O projeto técnico prevê um quadro recursos humanos composto por:
1 Coordenador, 1 Assistente Administrativo, 10 Educadores sociais, 1 Oficineiro, 1
Técnico Social Assistente Social,1 Técnico de enfermagem, 1 Auxiliar de serviços
gerais, 2 Cozinheiras e 2 Vigilantes. Atualmente a equipe de trabalho é composta
por Coordenador, Assistente de Coordenação, 2 Técnicos Sociais, 1 Enfermeira,1
Técnico de Nutrição, 13 Educadores Sociais, 2 Cozinheiras, 3 Auxiliares de Serviços
Gerais, 2 Vigilantes, 2 Porteiros, 1 Motorista, além de contar com a Supervisão de 1
Assistente Social e 1 Nutricionista.

135
manente de discussão e elaboração de um plano de trabalho em equipe
num formato, deveras, inovador. E, neste sentido, o trabalho social se
constitui como o próprio veículo viabilizador da participação coletiva e
democrática das famílias na construção de um espaço de garantia de di-
reitos, de deveres e de um plano emancipatório, através da valorização
da escuta qualificada e do diálogo, bem como, da construção conjunta
de um Plano de Acompanhamento Familiar.
Assim, a proteção integral no acolhimento para núcleos familia-
res possibilita a cada componente familiar ser visto enquanto sujeito
de direitos em todos os seus aspectos. Para tanto, são assegurados os
direitos da mulher, da criança e do adolescente previstos em lei espe-
cífica, como a Lei Maria da Penha, o Estatuto da Criança e do Adoles-
cente, entre outras. Dessa forma, o trabalho social com famílias requer
sempre uma articulação intersetorial no atendimento às diversas ne-
cessidades e demandas postas pelos diferentes núcleos familiares e seus
membros.
Para tanto, parcerias são buscadas através da rede existente, por
meio de contatos com organizações governamentais e não governa-
mentais. As governamentais, através das políticas públicas existentes,
serviços, programas e benefícios da própria política de Assistência So-
cial, os serviços de saúde pública, programas de habitação, educação e
trabalho. Pois, a possibilidade de acesso dessas famílias a essas políticas
possibilita a superação das condições de vulnerabilidade que as leva-
ram ao acolhimento.

O processo de acolhimento institucional para famílias

O trabalho social no acolhimento para famílias busca além do


atendimento às necessidades básicas das famílias e seus componentes,
garantir os direitos individuais e sociais, ultrapassando as questões
objetivas e preocupando-se também com as questões subjetivas dos
sujeitos implicados. Existe um cuidado com os indivíduos de cada nú-
cleo familiar. Mesmo antes do nascimento é incentivada a realização
de pré-natal, e após o nascimento, as consultas pediátricas, o incentivo
à amamentação, e assim, a assistência em todas as fases da infância

136
até a fase adulta. É realizada constante avaliação das necessidades da
criança e do adolescente, da inclusão à educação infantil, a atividades
esportivas, artísticas, de fortalecimento de vínculos com a frequência
em atividades extraclasse, a inserção ao ensino regular, em projetos
como o de preparação para o mundo do trabalho, o Pró Jovem, Jovem
Aprendiz etc. E, neste sentido, o Serviço conta os educadores sociais na
viabilização destes encaminhamentos.
Sendo assim, tem-se então que o serviço de acolhimento no Abri-
go de Famílias serve como um suporte importante num momento em
que a família deixa de contar com a estrutura material e emocional
com a qual contava. Além disto, são feitos contatos com ONGs para
que, estas, possam prestar atendimentos de saúde, como psicoterapia
individual, de casal e de família com gratuidade.
Os núcleos familiares apresentam questões de saúde extrema-
mente específicas e complexas, como o sofrimento psíquico em comor-
bidade com situações de dependência química de modo que, neste caso,
a equipe de trabalho precisa encaminhar e acompanhar estes indiví-
duos, que muitas vezes apresentam diagnósticos graves, aos serviços
de saúde, além de mediar às situações de conflitos presentes nas re-
lações familiares. Acompanhamento técnico este que é compartilhado
com a equipe de referência da região de origem da família e com a rede
ampliada intersetorial ligada aos Conselhos de Saúde, de Direito e Tu-
telar.
Dito isto, tem-se que de fevereiro de 2012 a outubro de 2016,
40 famílias ingressaram no serviço, sendo que três delas tiveram um
reingresso cada, porém as mulheres ingressaram sem os companhei-
ros. Do total de famílias acolhidas 13 eram compostas por mãe e filhos,
uma composta por pai e filho e 26 famílias por casal com filhos, sendo
um homo-afetivo.
Através dos dados percebe-se as transformações da configuração
familiar que, segundo Sodré (2014, p. 72), denota que “a família nuclear
foi substituída pelo modelo “solto”, flexível, sem ordem, sem laços en-
tre consanguíneos, questionando a centralidade do patriarca, com lon-
gevidade estendida e, muitas vezes, pautada por valores de consumo
e acostumada à intervenção do Estado em seus hábitos mais domés-

137
ticos”. Nesse período de quatro anos os núcleos familiares acolhidos
apresentam composições diversas, o que nos reporta a diversidade des-
ta instituição social na atualidade.
Nesse mesmo período, 152 pessoas foram acolhidas, 88 do sexo
feminino e 64 do sexo masculino, sendo destes 65 pais ou responsáveis
e 87 filhos. A média de filhos das famílias acolhidas é de 2,17, sendo
que sete nasceram enquanto a família estava acolhida. O período médio
de abrigagem das famílias que já foram desligadas foi de cinco meses.
Do total de famílias acolhidas, 18 foram encaminhadas pelos Centros de
Referência de Assistência Social (CRAS), 5 pelos Centros de Referência
Especializado de Assistência Social (CREAS), 6 por outros Serviços de
Acolhimento Institucional, 5 pelos Conselhos Tutelares, 4 pelos Centros
POP e outras duas pela Delegacia da Mulher e Albergue Dias da Cruz.
Considerando a principal motivação que levou as famílias a se-
rem acolhidas identificou-se que: 21 delas estavam em situação de rua
e, neste sentido, tem-se que a ausência de recursos materiais/habita-
ção e/ou a expulsão da moradia pelo tráfico, se constituiu no motivo
de acolhimento destas no caso de, pelo menos, 6 famílias. Outrossim,
tem-se também que a maioria dos casos de acolhimento motivados pela
situação de rua foram de mulheres gestantes ou que haviam dado à luz
recentemente. Dessa forma, percebe-se que, por si só, a situação de rua
não se constitui como critério para o encaminhamento de uma família
para o acolhimento institucional, pois na avaliação dos técnicos nesses
casos a proteção da infância foi um fator relevante.

A presença do Estado na família, através das mais diferentes for-


mas de intervenção, não possui apenas uma face, ou uma inten-
ção. Pois, ao mesmo tempo que defende as crianças da violência
doméstica, impõe a família normas socialmente definidas. Ao de-
fender a família pode descuidar dos direitos individuais. Enfim,
ao fornecer recursos e sustentação às famílias se colocam em
movimento estratégias de controle (MIOTO, 2006, p. 45).

Assim como as expressões da questão social, múltiplas são as


vulnerabilidades que resultam na avaliação de que uma família deve ser
acolhida. Embora no gráfico abaixo sejam elencadas somente as prin-

138
cipais motivações, fatores como a fragilização dos vínculos familiares e
comunitários, o desemprego e a baixa escolaridade são comuns em to-
dos os casos analisados. Em grande parte, o uso abusivo de substâncias
psicoativas por um ou mais membros, também constitui-se num fator
que é levado em conta na avaliação dos técnicos.

Gráfico 1 – Motivo que levou a família a ingressar no serviço de aco-


lhimento institucional.

No Abrigo de Famílias, todo o acompanhamento realizado visa


o processo de desligamento, a partir do momento em que são reverti-
das gradativamente as vulnerabilidades que levaram ao acolhimento
da família. Dessa forma, em cada situação apresentada é discutida a
necessidade de articulação com os serviços da rede. No cotidiano de
trabalho com as famílias o processo de desligamento também compre-
ende a busca de residência, mobiliário, transporte para mudança, além
da referência/contra-referência, geralmente em uma nova região da
cidade.

139
Gráfico 2 – Motivo que levou a saída da família do serviço de acolhi-
mento institucional

Quando quantificamos os motivos que levaram ao desligamento


das 37 famílias que já haviam passado pelo serviço até outubro de 2016
percebe-se que 20 delas cumpriram o plano de intervenção construído
em conjunto com a equipe, 17 foram desligadas por evasão, mudança e/
ou desistência do plano/acolhimento, entre outros. E, por fim, tem-se
que nos casos considerados como interrupção de plano, estão incluídas
situações de descumprimento das regras de convivência.

Considerações Finais

Quando o abrigo iniciou suas atividades em 2012, a equipe do


serviço apresentou dificuldades no desenvolvimento do processo me-
todológico de intervenção com as famílias, já que tal modalidade de
acolhimento representava algo novo para os trabalhadores, assim como
um desafio diante da complexidade inerente a este acompanhamento.
O serviço foi aberto com um quadro deficitário de educadores sociais e
sem a formação necessária para este trabalho.

140
As intervenções junto às famílias partiam muito mais de con-
cepções pessoais dos trabalhadores de como estas deveriam agir ou se
portar, sendo a forma que estas criavam os filhos o principal motivador
para determinar a “incapacidade” da família em manter a função prote-
tiva, atribuindo juízos de valor as mesmas.
No decorrer do processo de trabalho foi possível, através prin-
cipalmente das reuniões de equipe, travar discussões a respeito das
questões implicadas no processo de acompanhamento, nos objetivos
do trabalho, nas atividades a serem desenvolvidas no cotidiano, assim
como, nas atribuições da equipe e do papel de cada setor da equipe
multidisciplinar.
É possível perceber na trajetória do acolhimento modificações nos
procedimentos metodológicos do acompanhamento cotidiano. Suspen-
sões frequentes, manejos inadequados, posicionamentos a partir de expe-
riências e vivências pessoais estão sendo superadas à medida que são re-
tomadas e rediscutidas tendo em vista a realidade das famílias atendidas.
A falta de condições objetivas e subjetivas para a proteção e o cui-
dado de seus membros deixou de ser um fator de culpabilização, para se
tornar um objeto da intervenção de todos os profissionais comprometi-
dos com o acompanhamento das famílias acolhidas. Dessa forma, novas
possibilidades de intervenção buscam valorizar e fortalecer os vínculos
e as potencialidades dos núcleos familiares.
Hoje é possível avaliar que os entraves para a superação da situ-
ação de acolhimento das famílias se devem a questões macroestrutu-
rais, como a garantia das demais políticas públicas principalmente no
cumprimento do direito à moradia e de questões de ordem subjetiva,
principalmente, no que se refere a questões que envolvem condições
de saúde biopsicossociais, ou mesmo de aspectos mais complexos neu-
ro-cognitivo-emocionais. Quanto às questões macroestruturais tem-se
que as famílias dependem das políticas públicas existentes. E quanto
às questões de ordem subjetiva, estas, dependem essencialmente das
condições de saúde e de recursos internos para a conscientização, pos-
sibilidade de reflexão, elaboração, construção e cumprimento de um
plano ou projeto de vida, que são vencidas respeitando o momento de
vida na qual o sujeito se encontra.

141
Referências

BRASIL. Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais.Re-


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142
EXPERIÊNCIAS DA AÇÃO NA RUA: DA
ABORDAGEM AO ENCONTRO

AnA letíciA FontAnive, Aline SArdin PAdillA de oliveirA,


chArline PereirA doS SAntoS, dAiAnA SAntoS,
dAnielA biAnchi, dAnielA cAnAbArro, dAnielA SoAreS,
dioGo SAntoS, FernAndo oliveirA júnior, GiAne SilveirA,
jorGe GoMeS de oliveirA, Kizzy ASSunção, lirene FinKler,
liSiAne do cArMo, MArcoS cAbrAl borGeS,
MAriA dornelleS de ArAújo ribeiro, MAteuS FreitAS cundA,
MilenA cASSAl PereirA, PAblo GonçAlveS,
robertA dA SilvA GoMeS, SAulo vieirA

De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta mara-


vilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas.

Ítalo Calvino, As cidades invisíveis

Introdução

Este texto se constitui em um escrito de autoria coletiva dos


trabalhadores do Serviço de Abordagem Social na cidade de Porto Ale-
gre. Neste sentido, tem-se que o trabalho de abordagem, atendimento,
acompanhamento, de encontro com as pessoas em situação de rua pela
Política de Assistência Social na cidade de Porto Alegre data da déca-
da de 1990 (Serviço de Educação Social de Rua - SESRUA, dirigido a
crianças e adolescentes e Atendimento Social de Rua - ASR, dirigido
a adultos e famílias). Esses serviços eram realizados através de equipe
própria, abrangendo toda a cidade. Assim, antes mesmo da formaliza-
ção do SUAS, Porto Alegre já desenvolvia serviços de referência para
a população em situação de rua.
Com a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, o
trabalho com a rua ficou situado no Serviço Especializado de Abor-

143
dagem Social, com a finalidade de “assegurar trabalho social de abor-
dagem e busca ativa que identifique, nos territórios, a incidência de
trabalho infantil, exploração sexual de crianças e adolescentes, situa-
ção de rua, dentre outras” (BRASIL, 2009, p. 31). A Resolução nº 9
do Conselho Nacional de Assistência Social, de 18 de abril de 2013,
dispõe que este serviço pode ser ofertado ou pelos Centros de Referên-
cia Especializados de Assistência Social (CREAS), ou pelos Centros de
Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua (CENTRO
POP) ou por Unidade Específica referenciada ao CREAS.
Porto Alegre já realizava o Serviço de Abordagem Social, no re-
corte geracional de crianças e adolescentes e suas famílias, desde o ano
de 2007, através de convênio com um conjunto de entidades da socie-
dade civil, sob o projeto conhecido como Ação Rua.
No ano de 2016, este convênio foi ampliado também para a popu-
lação adulta e idosa em situação de rua, com a contratação de equipes
específicas para esse trabalho. O Serviço de Abordagem Social que vi-
nha sendo executado diretamente pelos CREAS (no período de 2011 a
2015), passa então a ser realizado a partir de convênio com organiza-
ções da sociedade civil, tendo caráter público e não estatal, e estando as
equipes referenciadas aos nove CREAS da cidade.
O relato que segue refere-se à experiência de trabalho dessas no-
vas equipes, ao longo do ano de 2016, no contato com as pessoas que
habitam as ruas de Porto Alegre, problematizando a posição interven-
tora da “Abordagem Social”, identificando potências e fragilidades do
trabalho cotidiano com essa população.
O texto está organizado de modo a desvelar a paisagem em que
ocorrem os encontros, (des)encontros, vivências e violências que per-
passam o trabalho na rua, excertos de relatos e experiências são trazi-
dos e constroem uma reflexão sobre o cotidiano das equipes do Serviço
de Abordagem Social.

144
A paisagem

O inesperado acontece
Uma paisagem em cada olhar,
Um olhar em cada paisagem.
Um caminho que nada tem
Destino brilho de que tudo lá existe.
As flores...
Os pássaros...
Os Estados…
O tráfego com seus ensaiados movimentos
O tráfico e seus engasgados sentimentos
A lomba... (Suas curvas)
Na subida ofegante
Descida Confortante
De baixo admira-se as montanhas
Em cima, sou mais um dentre outros seres e suas façanhas.

Pablo Gonçalves

Escrever sobre o encontro com a população adulta em situação


de rua exige um olhar destituído de fluxos, encaminhamentos, limites
impostos nos diferentes territórios da cidade, além das ausências e res-
ponsabilidades do Estado. Independente do nosso trabalho, essas pes-
soas em situação de rua já vivenciavam o processo de invisibilidade aos
olhos da sociedade, sendo a Abordagem Social uma estratégia vincula-
da à Política de Assistência Social que articularia os demais recursos de
outras políticas e/ou programas e projetos desenvolvidos por ONGs e
sociedade civil, para olhar e interferir nesse processo de invisibilidade.
Em parte, essa experiência nos mostra a importância/necessida-
de de algo/alguém que nomeie o desconhecido, o até então invisível,
para que, este, possa ser conhecido e reconhecido pelo imaginário so-
cial, atribuindo a condição de existência e também de direitos.
Eis um ponto a destacar que serve de pano de fundo para diver-
sos processos presentes no trabalho com a população em situação de
rua: a contradição de quem é reconhecido na relação com aquele que
não é ou não está reconhecido na sua história de vida, ou, dito de outra

145
maneira, que tangenciam os valores e exigências do modelo de socie-
dade capitalista.
Historicamente as relações desiguais de poder e autoridade mar-
cam os processos de exclusão e marginalidade, fortalecendo assim
o discurso criado a partir dessas relações. Não há pretensão aqui de
abordar esses processos históricos, mas sim, no decorrer deste texto,
localizar algumas destas relações e quem produz esses discursos de
identidade e diferença.
A possibilidade do trabalho com essa população, que na sua
maioria não são atravessados pelos deveres e papéis do Estado, nos
desacomoda, pois para além do trabalho de transformação da realidade,
somos em alguma medida, atravessados por conteúdos de exclusão e
preconceitos manifestos ou ocultos nas diferenças políticas ou agentes
desses serviços.
Dentro desse contexto, estão também inseridas outras estraté-
gias de produção de cuidado e proteção social, buscando no diálogo
com os serviços obter uma maior qualidade de vida. Essas pessoas cos-
tumam se organizar em associações de bairros, clubes de mães e comu-
nidades afins, com intuito de suprir a presença do Estado no que tange
aos serviços públicos e espaços para o lazer. A rua é ressignificada,
diferenciando os entendimentos do que é cada lugar pelos habitantes
destes espaços, traçando novos roteiros em seus percursos sensoriais,
modificando os sentidos das redes usuais da cidade.
Aqueles que, por algum motivo, não estão inseridos nos grupos
instituídos pelo atual modelo de sociedade, acabam vivendo à margem
dela. É o caso de muitas pessoas que estão em situação de rua, que per-
tencem a algum território e tem neste sua identidade e pertencimento.
Têm suas redes de convívio formais e informais e buscam seu espaço
em meio a essa disputa de poder.
Estar na rua é um direito de todos (LEFEBVRE, 2001), mas é
preciso que esse direito seja acompanhado com o mínimo de respaldo
por parte dos gestores e atores envolvidos na mobilidade urbana e, em
geral, nas políticas públicas. É preciso reconhecer os diversos proces-
sos de exclusão enfrentados pela população em situação de rua, por
meio de indicadores sociais, censos, cartografias, mapeamento da área,

146
ou seja, diferentes dispositivos e mecanismos para que se possa iden-
tificar quem são as pessoas em situação de rua, onde elas costumam
ficar, como se relacionam com a comunidade, com os serviços públicos
e estabelecimentos privados, quais as formas de acesso aos programas
assistenciais, quais são as dificuldades que apresentam, quais os recur-
sos comunitários disponíveis e que parcerias intersetoriais e interinsti-
tucionais podem ser firmadas.
Entendemos que sob o conceito “Pessoa em Situação de Rua” en-
globa-se um conjunto de experiências e de formas de ser/estar na rua.
Trabalhar no marco de uma política de inclusão social direcionada para
este recorte populacional requer frisar a complexidade do fenômeno e
reconhecer o processo de exclusão social que sobrepõe estruturas de
dominação de classe, raça e gênero. Algo que, torna fundamental o re-
conhecimento desta multiplicidade de vivências por parte das equipes
de abordagem social no encontro com esse outro/outra.
Assim, ao longo do texto, dialogamos com os termos “aborda-
gem”, “usuário”, “pessoa em situação de rua”, “casos”, de modo a evi-
denciar, por outro lado, a dimensão dessa escrita partindo da ideia do
encontro com as pessoas que habitam a rua, suas histórias de vida, o
cenário da cidade, a paisagem que acompanha.

O Encontro

Não havíamos marcado hora, não havíamos marcado


lugar. E, na infinita possibilidade de lugares, na infini-
ta possibilidade de tempos, nossos tempos e nossos lugares
coincidiram. E deu-se o encontro.
Rubem Alves

Que encontros são estes e em que momentos ocorrem? A palavra


“Encontro” não é identificada nas bibliografias “técnicas” e norteado-
ras da Política de Assistência Social. O mais próximo deste conceito,
proposto neste texto e em construção, seria o acompanhamento, mas
por que não utilizamos este último? Pretende-se explicar como a troca
da expressão atendimento/abordagem social por encontro pode aproximar

147
a realidade da prática com as pessoas que estão residindo e/ou moran-
do na rua.
Os desafios enfrentados diariamente pelos trabalhadores são
atravessados pela escassez de recursos de infraestrutura, precarização
de outras políticas públicas, equipes reduzidas e a resistência por parte
da sociedade em romper os modelos já cristalizados de viver e/ou ex-
perienciar o espaço da rua. No momento em que entramos em contato
com os testemunhos destes trabalhadores, percebe-se a contradição e
mesmo certa perversidade do discurso que lança essas equipes para
esse campo de atuação. Mesmo ao entrar em contato com estas e outras
dificuldades, resistências e outros atravessamentos, esses trabalhadores
permanecem diariamente buscando no espaço da rua… o encontro.
A palavra acompanhamento traz consigo alguns significados, mas o
conceito mais próximo, encontrado em dicionário de língua portuguesa,
remete à “assistência ou supervisão dada por profissional (psicólogo, pe-
dagogo, fonoaudiólogo, assistente social, educador social etc.) a alguém
que esteve sob seus cuidados ou orientação”. Nesse significado, encontra-
mos algumas palavras chave que convidam à problematização e quebra de
paradigma. O ato de dar assistência ou supervisão demonstra a relação de
poder destes profissionais para com as pessoas que são automaticamente
instituídas num lugar de cuidado e/ou orientação. Conforme mencionado
anteriormente, fica evidente não somente a relação de poder, mas a vir-
tualidade ou ficção destes acompanhamentos. No momento que são cons-
truídos os planos de acompanhamento, mesmo que sejam compostos pelo
discurso da co-participação das pessoas, operam numa virtualidade e/ou
ficção que não existe. O desenvolvimento desse acompanhamento sofrerá
diversos atravessamentos que envolvem os trabalhadores, a relação com a
comunidade, o Estado, diferentes políticas públicas, entre outros fatores.
Alguns profissionais acreditam que estão apropriados desta virtualidade,
mas que devem operar de alguma forma para que o trabalho seja realiza-
do. Reconhecemos e acreditamos nesta justificativa por estarmos cientes
da rotina e contexto da prática. Entretanto, é exatamente essa justificati-
va que possibilita o rompimento do diálogo.
Ao inserir o diálogo, o convidamos a repensar esta palavra e a
buscar o genuíno que se perdeu. Este diálogo genuíno busca procurar a

148
verdade e fomentar o conhecimento sem preconceitos, mas que envolve
duas pessoas ou mais. É complicado falarmos de “verdade”, mas pode-
mos subverter este conceito para que seja a “verdade do sujeito”. A ver-
dade que é sustentada pelo desejo do sujeito, mas que precisa da escuta
do outro para existir. Essa escuta só ocorre no momento do encontro.
Ao tomarmos o conceito de encontro para desenhar a discus-
são sobre o que seria o trabalho das equipes de abordagem social, co-
locamos os atores deste processo em um mesmo patamar, buscando
desconstruir o processo de hierarquização na prática da Abordagem
Social. Muitas vezes, na cena de trabalho, os trabalhadores são toma-
dos (ou se colocam) como detentores do saber sobre o sujeito que está
em situação de rua. No encontro, esses atores são tomados na mesma
posição sobre a cena, amplia-se o olhar para dois sujeitos (ou mais) que
ali se encontram.
A ótica do trabalhador que se lança no trabalho da Abordagem So-
cial deve sempre estar atenta para uma visão além do discurso “norma-
tizado”. No trabalho na rua, o vínculo se torna potente quando o traba-
lhador lança mão do dispositivo da escuta, que vai além da “mediação na
garantia de direitos”. Percebemos a potência transformadora do trabalho
quando nos despimos desse discurso e nos deixamos ser levados pelo
encontro e pelo percurso desses sujeitos, testemunhamos suas histórias
e apostamos que ali há um desejo de vida, não de norma social.
O diálogo, o lugar de fala na cena do encontro, deve ser uma
costura entre a história e os desejos da pessoa em situação de rua e as
ferramentas que o trabalhador dispõe para escutá-lo, tecendo outras
possibilidades de caminhos a serem trilhados em conjunto. A impor-
tância do “trabalhador da rua” neste encontro é potencializar o sujeito
de desejos, direitos, deveres, evidenciar seus percursos e desestabilizar
as relações de poder vivenciadas na rua.
Ressaltamos que a intervenção na direção do sistema de garantia
de direitos e acesso às políticas públicas é essencial para o trabalho,
mas aqui provocamos um olhar além. Pontuamos a potência do tra-
balho no invisível, na inutilidade, no que não pode ser quantificado. A
abordagem social muitas vezes se desdobra no acompanhamento da-
quele sujeito pela cidade, pelos serviços. O ato de caminhar, para De

149
Certeau (1998) é um processo de apropriação do sistema topográfico
pelo pedestre. Ao caminhar, mesmo por espaços proibidos, como por
exemplo, um muro que o impede de seguir, o caminhante inventa e des-
loca as possibilidades de uma ordem espacial. O usuário da cidade em
seus passos exploratórios no dia-a-dia “faz outras coisas com a mesma
coisa e ultrapassa os limites que as determinações do objeto fixam para
seu uso” (CERTEAU, 1998, p. 178).
Podemos pensar que no trajeto até a Unidade Básica de Saúde mais
próxima o mais importante desta ação é garantir o acesso do cidadão ao
atendimento de saúde. Este pode ser um dos objetivos. Mas há outros,
que se identificam no trajeto, na caminhada, na passagem pelos muros,
pelos olhares da cidade, ao percorrer este trajeto que parece ser por outra
cidade, aquela que só habitamos quando estamos acompanhando, quando
estamos juntos às pessoas em situação de rua. Aí encontram-se grandes
potências do trabalho: o encontro, o diálogo, o percurso.

De encontros, (des)encontros, vivências e violências:


retalhos de relatos e experiências

Através da aventura de escrever um texto com muitas mãos, per-


cebemos que alguns elementos atravessam nossa prática em todos os
territórios de Porto Alegre, da Zona Norte ao Extremo Sul. Difícil
elencar um único eixo como base para escrita e, portanto, iniciamos
a árdua missão de encontrar um “entre” que desse conta dos nossos
anseios e, principalmente, que retratasse o trabalho das equipes do Ser-
viço de Abordagem Social de Rua - Ação Rua.
Nos encontros que realizamos para dialogar e construir essa es-
crita coletiva percebemos que, se fotografássemos a situação de rua
em Porto Alegre, as pessoas ali retratadas seriam majoritariamente
negras. Reconhecendo essa característica inerente aos territórios de
Porto Alegre, afirmamos que o trabalho com as pessoas em situação
de rua é cotidianamente permeado por outros dois elementos: a saúde
mental e a violência.
Cabe ressaltar que esses elementos estão essencialmente conec-
tados. Impossível falar sobre exclusão social sem falar na questão ra-

150
cial, na violência com que essa exclusão acontece e no sofrimento psí-
quico que isso acarreta.

A Cor da Rua

Propomos uma breve reflexão sobre o perfil da população de rua,


mais especificamente, sobre a cor da rua. Nesse sentido, na Política
Nacional para a População em Situação de Rua (BRASIL, 2009), está
instituída uma definição para esse público:

Considera-se população em situação de rua o grupo populacional


heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos
familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de mora-
dia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as
áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma
temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento
para pernoite temporário ou como moradia provisória.

Dentro dessa definição, há vários termos que poderiam ser apro-


fundados, mas selecionamos aqui a expressão: “grupo populacional hete-
rogêneo”, com ênfase na questão da heterogeneidade; em outras palavras,
que não pode ser definido sob uma mesma característica. Portanto, cha-
mamos à reflexão: o que se esconde detrás dessa heterogeneidade?
Durante os primeiros meses de atuação do Serviço de Aborda-
gem Social pelo convênio com as Organizações da Sociedade Civil no
município de Porto Alegre, realizamos o mapeamento das regiões para
traçar um primeiro diagnóstico sobre o território. O instrumento uti-
lizado contém os quesitos raça/cor, faixa etária, sexo, entre outros. É
importante mencionar que o quesito raça/cor não foi auto declarativo.
Verificamos que parte significativa das pessoas encontradas em situa-
ção de rua são homens negros ou pardos.
Durante um acompanhamento de um usuário até um dos alber-
gues da cidade, enquanto aguardávamos na fila organizada por ordem
de chegada para o acesso, bastou um simples olhar para constatar que
quase a totalidade de provavelmente 80 ou 100 homens eram negros
ou pardos. A falta de política pública da assistência social voltada para a

151
população negra em situação de rua deixa à margem as especificidades
que surgem dessa característica.
A Assistência Social como Política Pública tem como um de seus
objetivos a defesa da dignidade de minorias excluídas historicamente,
como no caso da população negra. Porém, percebemos a ausência de
programas ou projetos que unifiquem os recortes de população negra
e situação de rua. E, neste sentido, questionamos: Quais as consequên-
cias disto?

A Loucura

Existe uma ideia construída socialmente da loucura como um


outro radical, diferente, permanentemente marginalizado. “Loucura” e
“rua”, historicamente estão de mãos dadas, e os “loucos”, os “anormais”,
permanentemente estigmatizados. E hoje? Será que é diferente?
A primeira vez que vimos o “amigão”, estava chovendo e fazia
muito frio. Encontrava-se embaixo de uma marquise enrolado num
cobertor molhado, os dedos enrugados, o cabelo úmido, o rosto pinta-
do de batom vermelho, bebendo cachaça. Logo que nos aproximamos
sentimos o forte cheiro de álcool e urina. Na troca de olhares combina-
mos, implicitamente, numa linguagem construída na caminhada e par-
ceria com os colegas, que deveríamos ser muito cuidadosos em nossa
intervenção, mas, mesmo assim, ante essa situação, não conseguimos
conter-nos de sugerir alguns encaminhamentos respaldados na nossa
própria visão de mundo, nos nossos próprios sentires.
Como estava muito frio, a primeira sugestão foi um lugar para
passar a noite: albergue, estava molhado; segunda sugestão: alguma
estratégia para secar-se e trocar de roupa – banho no Centro Pop. Ne-
nhuma das duas foi aceita. Percebemos que o único efeito dessa “manei-
ra de chegar” era afastar-nos, então, uma vez superada a primeira fase
do estranhamento, partimos para a troca de ideias.
Ele nos relatou um pouco da sua história, numa fala não linear,
cheia de idas e voltas, de não ditos, de fixações em ideias. Aqui apresen-
tou-se o primeiro desafio desse encontro: tentar compreender uma “ou-
tra lógica” para conseguir fazer uso de nossos principais instrumentos

152
de trabalho: a escuta sensível, a palavra, o diálogo baseado no respeito
da biografia do sujeito, refletindo sempre sobre nossos próprios posi-
cionamentos e interpretações, vigilando nossas próprias ideias precon-
cebidas. Trabalhar a partir do vínculo, construindo pontes, mediações,
catalisando desejos.
O trabalho das equipes de abordagem social, pautado na educa-
ção popular, é desafiador por si só num contexto social que não acolhe
as diferenças. Mas, quando as equipes vão ao encontro destes tipos
de situações mais “complexas” (por não encontrar outra palavra), os/
as trabalhadores/as se veem diante de um desafio ainda maior, que
os interpela e os deixa em conflito. A própria subjetividade dos/das
trabalhadores/as é desafiada, desacomodada. Como lidar com as sensa-
ções e sentimentos que provoca o fato de observar o sofrimento físico e
psíquico de uma pessoa que, à primeira vista, não teria as ferramentas
internas e as habilidades sociais consideradas “normais” (no sentido de
estar dentro da norma, do que é esperado/demandado) para lidar com
a vida? Como propor ações que saiam do encaminhamento básico que
é comumente sugerido para este tipo de situação (a internação com-
pulsória)? Como trabalhar com os parceiros da rede, especialmente da
área da saúde, para convidá-los a desacomodar-se e pensar conjunta-
mente estratégias de atendimento mais comunitárias e inclusivas?
No caso que estamos falando, construímos uma parceria muito
interessante com a Unidade de Saúde que o nosso “amigão” acessou em
algumas ocasiões, mas ainda não conseguimos dialogar e muito menos
estabelecer uma parceria com a saúde mental. Em tempos de desmani-
comialização, muitas vezes, os próprios equipamentos de atendimento
descentralizado acabam seguindo a lógica manicomial, colocando em
gavetas as pessoas e não conseguindo enxergar o todo.
Nesse contexto, os desafios apresentados são de índole diversa,
os pessoais/subjetivos de cada trabalhador/a, de conciliar o trabalho
desde a pedagogia social, ao mesmo tempo em que se percebe o serviço
como um dispositivo de clínica ampliada e de mediação para a garantia
de direitos, e os interinstitucionais e de co-responsabilização de outras
políticas públicas, para construir intersetorialmente o atendimento
para essas pessoas.

153
Violências de Estado

O processo de violência com a população em situação de rua pode


ser analisado por diferentes perspectivas, pelo não reconhecimento
como sujeitos sociais e suas necessidades específicas, pela falta de polí-
ticas públicas permanentes de atendimento a essa população, pela não
garantia de direitos básicos como saúde, educação, segurança, habita-
ção e assistência.
A não garantia dos direitos da população em situação de rua mar-
ginaliza, culpabiliza e agrava a situação de vulnerabilidade social em
que se encontram. Quando o sujeito não consegue acessar uma consul-
ta, uma vaga em albergue, realizar um acompanhamento sistemático
de saúde mental, quando o Estado negligencia a garantia de direitos, é
mais uma violência que a pessoa em situação de rua sofre.
Ao mesmo tempo, a rua não deve ser vista somente como lugar
de circulação entre espaços privados, uma espécie de limbo entre situa-
ções reconhecidas, mas como espaço em si, tão abarcador e produtor
de realidades como qualquer outro. Estar na rua é ocupá-la, não como
violação do espaço limpo e vazio. É preciso desconstruir a bipolaridade
ontológica entre normal e anormal colocada para as pessoas em situa-
ção de rua, considerando a produção e reprodução de identidades so-
ciais dentro mesmo do que Gregori (2000) conceitua como circulação
entre espaços e papéis sociais.
Segundo Foucault (2008), o Estado também opera intervenções
sobre as populações com objetivo controlar o risco, mantendo assim um
funcionamento social aceitável para um determinado sistema social, no
caso atual podemos pensar que esse “funcionamento social aceitável”
seria aquele que garanta a reprodução do capital e a manutenção dos
privilégios de uma elite. A questão seria: como manter um fenômeno
“indesejado” – dentro de um ideal de sociedade – nos limites que sejam
social e economicamente aceitáveis?
Neste sentido podemos pensar que todas as políticas sociais têm
um viés de gerenciamento do risco, uma função de controle, mesmo
que no papel as fundamentações dos programas e serviços se pautem
na garantia de direitos. Tal lógica é, muitas vezes, constatada por nós,

154
trabalhadores do Serviço de Abordagem Social, quando chegam de-
mandas de “higienização social”, por vezes partindo do poder público,
mas também dos cidadãos. Isto que gera sofrimento pelo fato de enxer-
gar-nos dentro de uma aparente contradição. Aparente contradição a
nossos olhos, pois temos que lembrar que, mesmo na ausência destas
demandas “pontuais”, o próprio serviço tem uma faceta de controle e
gestão do “risco”. É necessário que as equipes possam refletir sobre
esta questão para trabalhar em prol da construção de práticas de resis-
tência que permitam subverter, em alguma medida, este viés normati-
zador e controlador.

Considerações Finais

O campo de trabalho do Serviço de Abordagem Social possui


dimensões que apenas se visibilizam no encontro com a população que
vive nas ruas de Porto Alegre. Dimensões que vão para além dos tex-
tos tipificados ou das resoluções protocolares sobre o trabalho.
Mais que isso, objetivamos trazer para o centro da discussão o
momento do encontro com a pessoa da rua, identificando as redes de
cuidado e proteção que se estabelecem independente da ação de uma
política pública; mas, sobretudo, visibilizando as formas de exclusão e
estigmas que atrelam o sujeito a uma posição marginalizada, manten-
do as violências perpetradas pelo Estado em sua relação com as vidas
desviantes da norma.

155
Referências

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome;


Conselho Nacional de Assistência Social; Conferência Nacional de As-
sistência Social, VII. Tipificação Nacional dos Serviços Socioassis-
tenciais – Resolução nº 109 de 2009.

BRASIL. Casa Civil. Decreto Nº 7053 de 23 de dezembro de 2009.


Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu
Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento e dá ou-
tras providências. Diário Oficial da União de 24 de dezembro de 2009.

CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1998.

FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População. Curso


dado no Collège de France (1977-1978). Ed. Martins Fontes, São
Paulo, 2008.

GREGORI, M. F. Viração: Experiências de meninos nas ruas. São


Paulo: Companhia das Letras, 2000.

LEFEBVRE. H. Direito a cidade. São Paulo: Centauro, 2001.

156
O RETORNO DOS INVISÍVEIS A CENA PÚBLICA A
PARTIR DA ATUAÇÃO DO CENTRO POP 1

cArloS André dA roSA bittencourt

Introdução

A população em situação de rua tem como característica a circu-


lação em diversos territórios da cidade. No entanto, percebe-se o não
pertencimento destes atores sociais a nenhum local específico. Ape-
sar de estarem presentes em todos os espaços, permanecem invisíveis
para os demais segmentos sociais, uma vez que, como escreve Bourdieu
(1997 p. 164) “os que não possuem capital são mantidos à distância,
seja física, seja simbolicamente, dos bens socialmente mais raros e con-
denados a estar ao lado das pessoas ou dos bens mais indesejáveis e
menos raros” de modo que “a falta de capital intensifica a experiência
da finitude: ela prende a um lugar”.
A constatação da invisibilidade dessa população é um dos temas
trabalhados no Centro Pop 1 que, por meio de atividades diversas, bus-
ca integrar essa população. Neste sentido, o Centro Pop 1 define-se
como um serviço ofertado para as pessoas adultas, idosas e famílias que
utilizam as ruas como espaço de moradia ou sobrevivência, a fim de
servir de referência aos usuários, possibilitar atendimento e atividades
de convivência com vistas a oportunizar a esse segmento da população
a possibilidade de repensar seus projetos de vida e permitir que, estes,
se tornem protagonistas de sua própria história. É assegurado a essa
população um acompanhamento especializado através de atividades di-
recionadas ao desenvolvimento de sociabilidades e ao fortalecimento
e/ou construção de novos vínculos interpessoais e/ou familiares.
Dado o exposto, no presente texto buscamos demonstrar como
as atividades coletivas desenvolvidas pela Equipe de Trabalho do Cen-
tro de Referência Especializado para a População em Situação de Rua –
Centro Pop 1 – favorecem ações que buscam legitimar o protagonismo

157
desses atores sociais em atividades que estão previstas e abertas para a
participação da sociedade porto-alegrense, mas que no entanto discri-
minam e excluem este público.

O trabalho desenvolvido no Centro Pop 1

No Centro Pop 1 trabalha-se no intuito de contribuir para res-


taurar e preservar a integridade e a autonomia da população em situa-
ção de rua, operando-se conjuntamente com a rede de proteção social
e demais políticas públicas, bem como o Sistema de Garantia de Direi-
tos. Neste, incentiva-se a participação e mobilização social com vistas
a desenvolver processos críticos de enfrentamento coletivo da situação
vivenciada e, a partir disto, permitir a reinserção familiar e/ou comu-
nitária dessa população.
A metodologia de atendimento parte do reconhecimento da po-
pulação em situação de rua como sujeito de direitos, em processo his-
tórico, que necessita de uma ação pautada no estabelecimento de víncu-
los, configurando o acolhimento. No Centro Pop 1, os usuários podem
permanecer no espaço durante todo o horário de funcionamento e par-
ticipar de atividades grupais, oficinas socioeducativas, de terapia ocu-
pacional, de cultura, assembleias, oficina de vídeo, debate, entre outros.
Trabalho este que desenvolve de forma interdisciplinar, onde, to-
dos fazem a acolhida, o atendimento e o acompanhamento dos usuários.
Pois,
A interdisciplinaridade representa uma tentativa de interpretação
global da existência humana; apresenta-se como remédio para a
fragmentação das disciplinas deixadas pelas especialidades, porém
com uma atitude que impede o estabelecimento da supremacia de
certa ciência em detrimento de outras. No dia a dia ela se manifes-
ta na integração e reciprocidade dos conhecimentos das diversas
áreas e no esforço em reconstruir a unidade do paciente que nos
apresenta fragilizado no seu corpo, nas suas relações pessoais e
sociais, na sua emoção [...] ( FOSP, 1997, p. 23)

Outros serviços oferecidos são as oficinas definidas conforme a


necessidade do serviço, as quais, ocorrem nos turnos de atendimento

158
do Centro Pop 1. Neste sentido, busca-se a partir das demandas dos
usuários, desenvolver atividades coletivas lúdicas e educativas que pro-
blematizem a sua condição de vida e que possam oferecer a essa popu-
lação subsídios que lhes permitam intervir em sua própria realidade.
A finalidade é fortalecer a sua autonomia, sua inserção social e cultu-
ral na cidade, para que se reconheçam enquanto sujeitos de direitos
além de possibilitar o acesso aos espaços culturais da cidade de modo
a ressignificar esses espaços e as relações institucionais que nestes se
desenvolvem.
A participação nas atividades desenvolvidas são formas de aco-
lher que contribuem para que os usuários se sintam membros de um
coletivo e fortaleçam seus vínculos de pertencimento. Representam
ainda importante recurso para trocas de experiências, discussão so-
bre as situações vivenciadas e apoio mútuo. Nessa direção as oficinas e
atividades coletivas de convívio e socialização podem contribuir para
a reflexão, a ampliação de conhecimentos, o desenvolvimento de ha-
bilidades e potencialidades que facilitem e consolidem o processo de
inserção social dessa população.

A busca da visibilidade: um relato a partir de experiências

A ideia das atividades externas parte da construção coletiva dos


saberes da Equipe de Trabalho, junto com os usuários que participam
das atividades, que são desenvolvidas ao longo do ano, de acordo com
o perfil do público atendido. O almoço no Piquete foi lançado pelo ofi-
cineiro de música e o Bloco Carnavalesco surgiu dos usuários a partir
da apresentação do Bloco do Areal da Baronesa em uma das atividades
da Semana da Consciência Negra.
Neste sentido, aqui, busca-se trazer um breve relato das ativida-
des que foram desenvolvidas pelo Centro Pop 1 com vistas a se colo-
car em evidência a importância desse trabalho e o quão positivo essas
iniciativas têm sido no seio dessa população e daqueles que, destas,
participam.

159
Atividade Cultural da Semana Farroupilha

Para a atividade na Semana Farroupilha, foi discutida na Reunião


de Equipe a ideia de levar os usuários para almoçar num dos Piquetes
visto que estes atores sociais são retirados do Parque Harmonia, local
que utilizam como moradia ao longo do ano, para a montagem dos
galpões. Foi feito contato com alguns Centros de Tradições Gaúchas,
na figura dos Patrões que são os Presidentes destas Sociedades, que
buscam divulgar as tradições e o folclore da cultura gaúcha e ao defi-
nir-se o local, se estabeleceu uma data, comunicada aos usuários com
antecedência, para melhor organização conforme interesse.
A atividade realizada contou com a participação de todos os fun-
cionários e usuários do Centro Pop 1 que, neste dia, desenvolveram
suas atividades no turno da manhã. Foi feita uma organização com a
Nutrição, pois todos os itens utilizados para o preparo e organização
do almoço no Piquete foram os mesmos que seriam usados para a ela-
boração do almoço no próprio Centro Pop. Essa organização prévia se
fez necessária para que os alimentos estivessem adequados ao cardápio
campeiro, como por exemplo, a carne bovina para o preparo do arroz
de carreteiro.
Uma parte da Equipe se deslocou para o Parque Harmonia com
antecedência, levando o material para a organização das mesas como
pratos e talheres. A funcionária da cozinha foi responsável pelo preparo
da refeição, contando com o auxílio de colegas que se dispuseram a essa
função. Pois, no momento da chegada dos usuários ao Piquete tudo
deveria estar organizado e pronto para atendê-los.
O transporte até o Parque Harmonia se deu com o veículo pró-
prio do Centro Pop 1 e os usuários foram chegando em grupos, acom-
panhados de funcionários da Equipe. Houve uma recepção feita pelo
pessoal do Piquete, inclusive o Patrão. Quando o grupo estava com-
pleto foi servido o almoço para todos os implicados na atividade, de
uma forma integrada, onde usuários, membros da Equipe e membros
do Piquete permaneceram em interação, sentados lado a lado, conver-
sando e relatando fatos de suas vidas. Nesse momento, alguns usuá-
rios verbalizaram experiências relacionadas à Cultura Tradicionalista

160
em suas vidas, pois são oriundos de cidades em que o tradicionalismo
gaúcho é presente. Outros relataram suas experiências no trabalho em
sítios e fazendas, locais muito ligados à vida campeira, principalmente
em época de colheitas, como forma de conseguir renda.
Após o almoço foi organizada uma roda de conversa onde o Pa-
trão explicou a Cultura Tradicionalista, expôs sobre a Guerra dos
Farrapos e sobre a importância da Semana Farroupilha, onde, há uma
congregação entre os piquetes de diversas regiões como forma de ce-
lebrar, cultuar e preservar estes costumes e tradições. Houve também
abertura para que os presentes se colocassem e surgiram as mais diver-
sas formas de manifestação através de relatos, de danças, de músicas e
da declamação de poesias.

Imagem 1 - Visita ao Piquete na Semana Farroupilha.

O objetivo dessa atividade foi reverter a lógica mencionada por


Bourdieu quando esse destaca que “a reunião num mesmo lugar de
uma população homogênea na despossessão tem também como efeito
redobrar a despossessão, principalmente em matéria de cultura e de
prática cultural” (1997, p.166).

161
Destaca-se aqui, ainda, a possibilidade dada a estes usuários de
se colocarem como protagonistas, valorizando suas vivências e abrindo
espaço para que esses pudessem trocar experiências com outras pes-
soas que estão para além de suas relações de convívio mais imediatas,
sentindo-se pertencentes àquele espaço e cultura. Desta forma, eviden-
cia-se o sujeito de direito, que neste momento encontra-se em situação
de rua, o que não exclui seus saberes e potencialidades.

Atividade Cultural Carnaval de Rua

O Bloco Carnavalesco “Peregrinos do Samba” surgiu a partir de


uma apresentação do Bloco Carnavalesco Areal da Baronesa, composto
por pessoas que residem nas proximidades do Centro Pop 1, numa área
denominada Quilombo do Areal da Baronesa. Durante os trabalhos da
Semana da Consciência Negra de 2012, os usuários assistiram à apre-
sentação deste Bloco, podendo interagir com seus integrantes, dançan-
do, cantando e tocando na bateria.
E, a partir dessa experiência, sugeriram a criação de um Bloco
Carnavalesco do Centro Pop 1. A proposta foi acolhida pelo Oficineiro
de Música que levou para a Reunião de Equipe, sendo aceita pelo grupo
de trabalho de modo que, passamos a planejar como seria executada a
criação de um Bloco Carnavalesco formado por usuários e funcionários
e o modo como se daria a divulgação desta intenção nas atividades co-
letivas realizadas no Centro Pop 1.
Demonstrado interesse pelos usuários em dar seguimento ao
Projeto, começamos a ensaiar músicas de Carnaval montando um re-
pertório. Durante as Oficinas de Música alguns usuários passaram a
ter orientações de como tocar os instrumentos necessários para a bate-
ria, tanto dos Oficineiros, quanto de outros usuários que já tinham este
conhecimento. Outros, que demonstravam aptidão ou interesse pelo
canto, ensaiavam as letras das canções que buscávamos pela internet.
Além disso, houve as Oficinas de confecção de adereços, fantasias e
máscaras.
Organizou-se, assim, um Desfile pelas calçadas do bairro, saindo
da frente do Centro Pop 1, na rua Álvaro Alberto da Motta e Silva,

162
passando pela Avenida Getúlio Vargas e retornando pela Avenida Éri-
co Veríssimo, contando com a atenção e participação de alguns tran-
seuntes e abrindo os festejos de Momo de 2013, já que aconteceu na
sexta-feira à tarde, antecedendo o feriado de Carnaval.

Imagem 2 - Oficina de confecção de máscaras

Imagem 3 - Desfile pelas ruas próximas ao Centro Pop 1

163
Para o ano de 2014, a organização foi diferente, pois com a re-
percussão da atividade do ano anterior, fomos chamados pelo Gabinete
da Fundação de Assistência Social e Cidadania – FASC – que havia
sido convidada para levar um Bloco Carnavalesco para se apresentar
no Carnaval de Rua da Cidade Baixa. Sabendo de nosso Projeto, su-
geriram que o mesmo fosse ampliado, com a participação dos demais
Serviços que atendem a população adulta em situação de rua e que
demonstrassem interesse em compor esta parceria.
Foi feito contato com os Serviços da Rede Própria e o grupo de
trabalho foi formado pelo Centro Pop 1, Centro Pop 2, Abrigo Marlene
e Abrigo Bom Jesus. Participamos de diversas reuniões que buscaram
planejar e organizar a apresentação do Bloco e, no decorrer destas reu-
niões, cada Serviço elencou sugestões de nomes para o Bloco. O nome
escolhido através de votação com os usuários foi “Peregrinos do Samba”.
Posterior a isto foi criado um logotipo que representasse a popu-
lação adulta em situação de rua, que foi impresso em camisetas que ser-
viram como parte das fantasias para a apresentação. Além disso, foram
utilizados guarda-chuvas, símbolo da FASC, como adereços, estilizados
pelos usuários do Abrigo Bom Jesus e máscaras confeccionadas pelos
usuários do Centro Pop 1 e do Abrigo Marlene. O Centro Pop 2, pro-
duziu o estandarte utilizado no desfile.
Também foram realizados vários encontros entre os Serviços,
visando à vinculação, a interação e a integração dos usuários dos di-
ferentes Setores. Ensaiava-se o canto e o toque da bateria buscando
uma harmonia entre esses elementos. Em alguns momentos, os ensaios
eram reforçados pelo Bloco Carnavalesco do Areal da Baronesa que
também compôs a apresentação.
No dia 15 de março, todos se reuniram no Centro Pop 1, onde fo-
ram distribuídos lanches, camisetas e adereços. Depois se deslocaram,
alguns a pé e outros com os veículos dos Equipamentos para o Lar-
go Zumbi dos Palmares, onde, os “Peregrinos do Samba” fizeram sua
passagem à frente da comunidade que ali se encontrava para assistir o
Bloco passar.

164
Imagem 4 - Apresentação do Bloco Peregrinos do Samba no Carnaval
da Cidade Baixa

Durante todo o processo, mas especialmente no dia da apresen-


tação, os usuários demonstravam motivação e alegria por estarem in-
seridos neste processo cultural da cidade, onde estão acostumados a
circular de forma “invisível” como guardadores de carros ou catadores
de latinhas. Neste sentido, como enfatiza Azevedo, tem-se que

Nas sociedades desenvolvidas as alavancas mais eficientes de dis-


tinção são as posses de capital econômico e de capital cultural.
Logo, os sujeitos ocuparão espaços mais próximos quanto mais
similar for a quantidade e a espécie de capitais que detiverem,

165
em contrapartida, os agentes estarão mais distantes no campo
social quanto mais díspar for o volume e tipo de capitais. Assim,
pode-se dizer que a riqueza econômica (capital econômico) e a
cultura acumulada (capital cultural) geram internalizações de
disposições (habitus) que diferenciam os espaços a serem ocupa-
dos pelos homens (2003, sp.).

Mais uma vez foi possível perceber a importância de criarmos


ações que possibilitem o protagonismo desta população. Pois, dando
visibilidade a estes atores sociais proporcionamos um sentimento de
pertencimento ao espaço e à cultura que perpassa aquele território,
mas que usualmente segrega este segmento social.

Considerações Finais

A segregação espacial é o resultado da exclusão social gerada


pelo capitalismo periférico, que em muitas situações é agravado pelas
políticas públicas do Estado, através de um modelo de gestão urba-
na e programas insuficientes para atender as necessidades da maioria
da população. Estes instrumentos promovem a segregação espacial e
dificultam o acesso de alguns segmentos da população aos serviços e
infraestrutura básicos, no caso das camadas sociais mais carentes.
A expressão segregação pode ser empregada, aqui, no sentido de
que há uma separação forçada e institucionalizada de um determina-
do grupo por motivos étnicos, econômicos, culturais, espaciais etc. de
modo que, dessa forma, a elite intelectualizada pensa a formatação do
espaço urbano, produz suas residências, seus locais de lazer e trabalho,
enfim toda a estrutura urbana, voltada principalmente para os seus in-
teresses próprios. Pois, é fato, como escreve Bourdieu (1990, p. 74) que,

As representações do mundo social assim constituídas, que clas-


sificam a realidade e atribuem valores, no caso, ao espaço, à ci-
dade, à rua, aos bairros, aos habitantes da urbe, não é neutra,
nem reflexa ou puramente objetiva, mas implica atribuições de
sentidos em consonância com relações sociais e de poder.

166
Razão essa pela qual a existência histórica da população em situ-
ação de rua deve ser considerada na construção e nas discussões acerca
da nossa sociedade, especificamente falando, na busca de uma socie-
dade justa e de direitos. Pois, essa parcela da população vem sofrendo
diretamente as consequências de um mundo globalizado, regido pelos
princípios do referencial neoliberal, sendo assim excludente em todos
os sentidos – econômico, político, cultural e social – de modo que, a ex-
clusão social está dada e se faz presente, intrinsecamente, no modo de
produção da vida social, nas relações de trabalho e entre pessoas, que
cotidianamente vivemos .
As reflexões de Bourdieu, neste sentido, contribuem para o en-
tendimento deste processo de segregação sócio-espacial, em especial,
quando este destaca que:

A capacidade de dominar o espaço, sobretudo apropriando-se


(material ou simbolicamente) de bens raros (públicos ou priva-
dos) que se encontram distribuídos, depende do capital que se
possui. O capital permite manter à distância as pessoas e as coi-
sas indesejáveis ao mesmo tempo que aproximar-se de pessoas e
coisas desejáveis [...] (1997, p. 163).

Portanto, é necessário que a sociedade perceba que a população


em situação de rua é formada por sujeitos sociais, dignos de respeito e
que utilizam os espaços da rua como estratégia de sobrevivência, exis-
tência e moradia. População esta, que reflete subjetivamente a lógi-
ca perversa do sistema capitalista que produz e reproduz mecanismos
para manter a concentração de renda, miséria, violência e desigualda-
des, ou seja, a acumulação do capital.

167
Referências

AZEVEDO, M. L. N. Espaço Social, Campo Social, Habitus e Concei-


to de Classe Social em Pierre Bourdie. In Revista Espaço Acadêmi-
co, Internet, 2003 – Disponível em // www.espacoacademico.com.br .
Acesso em: 02/10/16

BOURDIEU, P. A Miséria do Mundo. Petrópolis: Vozes, 1997.

______. Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.

FASC – Fundação de Assistência Social e Cidadania. Projeto Técnico


Centro Pop. Porto Alegre, 2012.

FOSP – Fundação Oncocentro de São Paulo. Serviço Social em On-


cologia. Comitê de Serviço Social em Oncologia. São Paulo, 1997.

168
UM OLHAR SOBRE O ACOLHIMENTO
INSTITUCIONAL A POPULAÇÃO
EM SITUAÇÃO DE RUA EM
PORTO ALEGRE
lirene FinKler
MAteuS FreitAS cundA
cleber cAndido de deuS

Introdução

O presente texto apresenta algumas reflexões sobre a questão do


acolhimento institucional a partir da perspectiva do Núcleo de Acolhi-
mento da Proteção Social Especial/FASC. Esse núcleo é o responsável
por gerenciar as solicitações de acolhimento institucional, recebendo
e encaminhando estas demandas para as vagas da rede de acolhimento
própria e conveniada, para todos os grupos etários.
O texto está organizado inicialmente em uma breve contextuali-
zação quanto à forma como está organizado o Núcleo de Acolhimento
no contexto da Proteção Social Especial - PSE. A seguir, são apresen-
tadas as modalidades de acolhimento institucional e serviços existen-
tes em Porto Alegre, na perspectiva da população adulta em situação
de rua. Por fim, é apresentada uma leitura das solicitações de acolhi-
mento do ano de 2016, problematizando-se as duas principais funções
do Núcleo de Acolhimento: reconhecer a demanda e gerenciar / arti-
cular / matriciar os casos.
No final de 2015 a FASC reestruturou sua área técnica, reunindo
sob uma mesma coordenação de Proteção Social Especial - PSE os servi-
ços de Média e Alta Complexidades. Mais do que uma reorganização de
gestão, tal iniciativa teve como objetivo principal promover maior inte-
gração técnica do acolhimento institucional com o conjunto dos serviços
de Proteção Básica e Especial de Média Complexidade, já reordenados

169
desde 2010 em Porto Alegre. Assim, todo o sistema da Política de Assis-
tência Social local, próprio e conveniado, é desafiado a se reorganizar de
modo a incluir as especificidades do acolhimento institucional, com suas
diversas modalidades e públicos atendidos, nos processos de trabalho e
de gestão já constituídos na perspectiva do território.
Tal reorganização sistêmica é atravessada por diversos fatores, um
dos quais é o fato de que as unidades de acolhimento institucional não
estão regionalizadas, acolhem demandas de toda a cidade, enquanto os
demais serviços atuam a partir de um modo de gestão baseado no territó-
rio. Os espaços de gestão constituídos territorialmente, tais como comi-
tês gestores, reuniões de referência e contra-referência, reuniões de rede,
micro-redes, fóruns regionais diversos, ainda não estão ajustados em seu
formato para incorporar os tempos e ritmos dos serviços de acolhimento.
Como forma de gestão da demanda, a PSE tem buscado organi-
zar seus processos de trabalho na perspectiva de um Núcleo Porta de
Entrada, composto por três equipes com atribuições interligadas:

1. Núcleo de Processos - responsável por acolher as demandas que che-


gam da rede interinstitucional através de ofícios e processos diver-
sos - MP, Juizados, Disque 100;

2. Central de Abordagem - responsável por receber, gerenciar e repas-


sar para o Serviço de Abordagem Social dos CREAS as solicitações
de abordagem advindas da comunidade e da rede de proteção;

3. Núcleo de Acolhimento - responsável por mediar as demandas para


acolhimento institucional para os Serviços de Acolhimento Institu-
cional próprios e conveniados.

Ainda que o Núcleo Porta de Entrada trabalhe com todos os gru-


pos etários, iremos focar no presente texto a gestão do Núcleo de Aco-
lhimento relacionada à população adulta em situação de rua.
A reestruturação da PSE repercutiu na proposta então vigen-
te de Núcleo de Acolhimento. Instaurado com o Plano Municipal de
Enfrentamento à Situação de Rua (PMPA, 2011), o Núcleo teria como

170
objetivo ser uma “central de recebimento, encaminhamento e monito-
ramento das demandas de acolhimento institucional da rede de Prote-
ção Especial de Alta Complexidade, de crianças, adolescentes, adultos
e idosos”. O fomento à alimentação de fluxos contínuos de informação
e interação entre os componentes da rede sócio-assistencial deve ser
fortalecido pelo órgão gestor da Política de Assistência Social.
Assim, compondo o modo de gestão da PSE, vislumbra-se que
o Núcleo de Acolhimento agregue ao menos duas funções principais:
reconhecimento das demandas de acolhimento institucional de toda a
cidade, e gerenciamento / articulação / matriciamento dos proces-
sos de trabalho relacionados ao ingresso na Alta Complexidade. Pois,
tais funções tornam-se indispensáveis para a ampliação das relações
de parceria e a constituição de uma rede articulada nos territórios, que
possa favorecer a continuidade do plano de acompanhamento entre os
níveis de proteção e entre diferentes políticas públicas.
Uma ideia de núcleo, de central, remete exatamente a uma ideia
de regulação da demanda. No entanto, mais que isso, o Núcleo de Aco-
lhimento funciona como um meio por onde se reconhece a população
em situação de rua na cidade. Por essa razão, sua função extrapola a
distribuição da demanda e a articulação com a oferta dos serviços.
Uma análise do que chega na Porta de Entrada da Proteção Social
Especial revela diversas dimensões das necessidades das pessoas da rua,
bem como da relação da cidade com elas. Por um lado, o que chega via
Central de Abordagem tem a necessidade constante de diálogo com uma
cidade que, em grande parcela, compreende que a pessoa em situação de
rua deve ser retirada de seu olhar. De outro lado, a demanda que advém
dos equipamentos de saúde, como Hospitais, Centros de Atenção Psi-
cossocial - CAPS, Consultórios na Rua, revela uma população adoecida
que não possui lugar nas redes de atendimento especializadas, tampouco
ancora-se nas redes de apoio da rua. Para além, portanto, dos serviços
destinados à população adulta dentro da Assistência Social, a demanda
fala de uma cidade que tem dificuldades em acolher a loucura, os idosos,
os portadores de necessidades especiais, as pessoas em situação de rua,
as pessoas com o uso problemático de drogas, enfim, com a diferença em
relação a um determinado modelo de vida esperada.

171
Acolhimento institucional

Enquanto a rede de Alta Complexidade modificou-se e ampliou-


-se significativamente nos últimos 20 anos em relação ao público de
crianças e adolescentes, já buscando atender as orientações advindas
da implantação do SUAS, o reordenamento e ampliação da rede adulta
tem se mostrado mais lento. O crescimento do número de vagas de
acolhimento institucional para adultos não acompanhou o aumento na
população em situação de rua, além disso, o perfil das demandas modi-
ficou-se: há mais famílias necessitando de acolhimento, há mais idosos
(que não conseguem ingresso nas Instituições de Longa Permanên-
cia conveniadas com a FASC devido aos critérios rigorosos de ingres-
so), há mais pessoas com quadros bastante agravados de saúde física e
mental necessitando acolhimento.
A oferta de vagas nos serviços de Acolhimento Institucional,
conforme a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (BRA-
SIL, 2009), e de acordo com o recorte geracional e de necessidades
especiais, está distribuída nos seguintes serviços tipificados: Crianças
(Casa Lar, Abrigo Institucional e Serviço de Acolhimento em Família
Acolhedora); Adultos e Famílias (Abrigo Institucional, Casa de Passa-
gem e Serviço de Acolhimento em República); Mulheres em situação de
violência (Abrigo Institucional); Jovens e Adultos com deficiência (Resi-
dência Inclusiva); Idoso (Casa Lar e Abrigo Institucional - Instituição
de Longa Permanência para Idosos - ILPI). Além disso, a Tipificação
prevê a possibilidade de Serviço de Acolhimento em Situações de Cala-
midades Públicas ou Emergências.
Dentro de tal Tipificação, Porto Alegre possui uma organização
de serviços composta por serviços próprios e conveniados. Para crian-
ças e adolescentes há um total de 832 vagas distribuídas em 21 Abrigos
Residenciais e 46 Casas Lar para Crianças e Adolescentes. Além disso
existe convênio com 03 Abrigos Institucionais para Crianças e Ado-
lescentes com deficiência (neurolesionados). Para a população adulta
em situação de rua a rede existente oferece 227 vagas, através de 03
Abrigos Institucionais e 02 Repúblicas para Indivíduos Adultos; 02
Abrigos Institucionais para Famílias (um deles exclusivo para mulhe-

172
res e seus filhos); e, 02 Casas Lar para idosos com história de rua. Além
disso, existe convênio com 04 Instituições de Longa Permanência para
Idosos - ILPI. A cidade conta também com 03 Albergues, que oferecem
355 vagas de acolhimento noturno, e o Serviço de Hospedagem, ambos
não tipificados. Há, por outro lado, lacunas na previsão dos serviços
socioassistenciais, como a Residência Inclusiva e a Casa de Passagem.
O Núcleo regula 227 vagas voltadas para pessoas adultas e famí-
lias em situação de rua, distribuídas nas seguintes modalidades, descri-
tas na Tabela 1:

Tabela 1 - Vagas de Acolhimento Institucional para Adultos e Famílias1.


Modalidade Serviço Gestão Vagas por
Serviço
Abrigo Abrigo Municipal Marlene Própria 60
Institucional Abrigo Municipal Bom Jesus Própria 60
para Indivíduos
Abrigo Lar Emanuel - Conveniada 40
Feminino
Abrigo Casa Lilás Conveniada 10 famílias
Institucional (até 30
para Famílias pessoas)
Abrigo de Famílias Própria 4 famílias
(até 20
pessoas)
Casa Lar para Casa Lar – Idoso (com Conveniada 24
Idosos história de rua)
Serviço de República Junto Conveniada 24
Acolhimento em
República
Serviço de Pousada Maranata Contrato 5 diárias
Hospedagem
TOTAL 227
Fonte: Núcleo de Acolhimento - PSE/FASC.

Conforme orientações do “Texto de orientação para o reordena-


mento do serviço de acolhimento para a população adulta e famílias em

1 Não estão incluídas neste artigo a) vagas de ILPI - Instituições de Longa Perma-
nência para Idosos, ainda que eventualmente sejam acolhidos idosos com histórico
de rua; b) vagas em Albergue, pois o acesso é por demanda espontânea; c) vagas para
crianças e adolescentes.

173
situação de rua” (BRASIL, 2014), os equipamentos de Alta Complexidade
devem acolher “pessoas adultas ou grupo familiar com ou sem crianças,
que se encontram em situação de rua e desabrigo por abandono, migração
e ausência de residência ou ainda pessoas em trânsito e sem condições de
autossustento” . O acolhimento deve ser provisório (prevê-se um tempo
médio de 6 meses), em equipamento com características residenciais, in-
serida na comunidade, que tenha um ambiente acolhedor e que respeite
as condições de dignidade dos seus usuários. Ainda que nem todos os ser-
viços existentes contemplem tais características na totalidade, é nessa di-
reção que se pensa seu reordenamento e a implantação de novos serviços.
O fato dos abrigos Marlene e AMBJ disporem de beliches delimita
condições para que os usuários possam ser acolhidos. Uma parcela das
pessoas não pode ser acolhida em cama superior nos beliches, pelo agra-
vamento de saúde, pelo uso de medicações psicotrópicas e pela própria
fragilização do corpo pelas vicissitudes da vivência na rua. Tal situação
faz com que a condição de acessar uma cama superior ou inferior em um
beliche tenha que ser levada em conta na definição de quem poderá ocu-
par determinada vaga. Da mesma forma, o acesso à República pressupõe
alguma renda, pois a alimentação é cotizada entre os moradores, e o aco-
lhimento na modalidade Hospedagem também tem como critério uma
maior independência e transitoriedade na necessidade de acolhimento.
Assim, além dos projetos técnicos que diferenciam e especificam carac-
terísticas de cada um dos serviços, há as situações concretas vividas por
cada serviço que precisam ser levadas em consideração.

Reconhecimento da demanda

O processo de gerenciamento das vagas de acolhimento para


adultos tem acontecido a partir de discussões semanais por equipe
multidisciplinar, a partir de instrumentos como formulário e planilha
de registro das solicitações. A equipe tem buscado constituir critérios
para ingresso que envolvam discussão prévia dos casos, e que consi-
derem a relevância do acompanhamento técnico por serviços da assis-
tência social. Nesse cotidiano, percebe-se que a situação de rua por si
só não se constitui como um critério para o acolhimento, pois são con-

174
siderados outros fatores relacionados aos agravos de saúde, tratamen-
tos em dependência química, a condição de gestante, dentre outros, na
priorização dos indivíduos para as vagas.
De janeiro a outubro de 2016 o Núcleo de Acolhimento recebeu
508 solicitações para acolhimento de adultos, idosos e famílias. Desse
total, 166 referem-se a solicitações para ILPI, e não serão detalhadas
neste texto. Entretanto, deve-se registrar que 04 idosos desse grupo
foram acolhidos em Abrigo Institucional para Indivíduos nesse perío-
do. Além disso, 06 solicitações demandaram Residencial Terapêutico,
serviço da Política de Saúde Mental, e foram negadas, pela impossibili-
dade de acolhimento. As demais 336 solicitações referem-se a pessoas
em situação de rua, e estão detalhadas na Tabela 2:

Tabela 2 - Solicitações de acolhimento 2016.

Modalidade Modalidade de Total de Acolhidas Canceladas Demanda


de Vaga Solicitações Reprimida
acolhimento
Abrigo Cama superior- 141 60 60 21
Institucional masculina
para Cama inferior - 39 17 10 12
Indivíduos* masculina
Cama superior - 40 20 19 1
feminina
Cama inferior - 12 3 8 1
feminina
Abrigo Casais e filhos 18 4 10 4
Institucional Homem e filhos 2 1 1 0
para
Famílias Mulher e filhos 39 16 23 0
Serviço de Masculina 30 13 16 1
Acolhimento Feminina 4 3 1 0
em
República
Serviço de Masculino 7 7 0 0
Hospedagem Feminino 4 3 1 0
TOTAL 336 147 149 40
Fonte: Núcleo de Acolhimento - PSE/FASC. Dados de Janeiro a Outubro 2016.
*
Cama superior e inferior referem-se a beliches, tipo de cama disponível nos abrigos
para indivíduos.

175
A partir da Tabela 2 percebe-se que 43,7% (n=147) das solicita-
ções foram acolhidas em algum dos serviços da rede; 44,3% (n=149)
foram canceladas, suspensas ou negadas, ou seja, após tempo de espera,
quando a vaga foi disponibilizada, o serviço solicitante informou não
ser mais necessário o acolhimento, por motivos que serão discutidos a
seguir; e 12% (n=40) estão em lista de espera aguardando acolhimento,
caracterizando demanda reprimida.
Em relação à origem das 336 demandas para acolhimento de pes-
soas em situação de rua, identifica-se que 56,5% (n=190) das solicita-
ções foram realizadas por serviços da Política de Assistência Social;
40% (n=134) por serviços da Política de Saúde; e 3,5% (n=12) por ou-
tros Serviços do Sistema de Garantia de Direitos (Secretaria Municipal
de Direitos Humanos, Conselho Tutelar e FASE). Percebe-se o grande
volume de solicitações de acolhimento advindas da Política de Saúde
(40% do total), sendo que 60% destas originam-se especificamente de
Serviços de Saúde Mental.
As demandas advindas dos serviços de saúde nos falam de uma
população extremamente adoecida. A vivência na rua expõe a popula-
ção a diversas doenças, favorece sua cronificação, dificulta a continui-
dade dos tratamentos. Muitas altas hospitalares recomendam que os
cuidados sejam continuados “em casa”, mas como fazer com quem não
tem casa? Além disso, a população em situação de rua está submetida
a um contexto de maior violência urbana, que deixa marcas concretas
no corpo.
As questões de saúde mental e o uso problemático de drogas se
somam aos demais problemas de saúde. O fato é que o processo de
Reforma Psiquiátrica trouxe para as ruas, e para a convivência com
a sociedade, uma população que permanecia oculta. Uma vez que a
implantação dos serviços substitutivos encontra-se muito aquém das
necessidades da população, os reflexos disso impactam a Política de
Assistência Social. Aos novos loucos foram impostas novas formas de
institucionalização: nas internações sequenciais de 21 dias, nas comu-
nidades terapêuticas, no acolhimento institucional. E, neste sentido,
constata-se que os “loucos de rua”, muitas vezes sem nome e sem pas-
sado conhecido, não se encaixam nos critérios de ingresso para o Ser-

176
viço Residencial Terapêutico (vinculado à Política de Saúde), serviço
substitutivo ao modelo manicomial e asilar. Dessa forma, percebe-se
que um pouco da lógica manicomial foi deslocada para os abrigos da
Política de Assistência. A centralização de situações de saúde mental
graves e persistentes nos serviços de acolhimento modifica seu coti-
diano, desafia os profissionais que ali trabalham e inviabiliza a transi-
toriedade do acolhimento. Estas situações, em particular, mostram-se
extremamente complexas, pois acaba por reproduzir-se nos espaços
de acolhimento institucional “imagens” e um contexto semelhante ao
manicomial, que tanto se busca superar.
Neste sentido, tem-se que o Núcleo de Acolhimento tem busca-
do estimular a articulação prévia de serviços de saúde e assistência, e
trabalhar para que o acolhimento seja apenas uma etapa de um plano
de acompanhamento constituído não somente com o usuário, mas de
forma conjunta por uma rede articulada de serviços vinculados aos
territórios. Ainda não é assim, pois por vezes o pedido de acolhimento
surge como uma solução emergencial, para casos não acompanhados,
e sem uma verdadeira clareza do serviço solicitante quanto aos limites
e potências da proteção social oferecida no acolhimento institucional.
Devido à demora até o surgimento de vagas de acolhimento, mui-
tos dos indivíduos não serão acolhidos, pois até a disponibilização das
vagas outras alternativas serão encontradas ou mesmo os indivíduos
não estarão mais em acompanhamento pelas equipes demandantes, si-
tuações essas podem levar ao registro de cancelamento da solicitação
como verificado em 44% das solicitações (n=149). Assim, a ideia de
“demanda reprimida” não pode considerar somente os 12% (n=40) que
aguardam vaga, mas também uma parcela dos cancelamentos. Uma vez
que, por vezes, o “momento oportuno” se perdeu.
Tendo em vista o fato de que há uma demanda por acolhimento
muito maior do que as vagas que são disponibilizadas, é constantemen-
te necessário que as equipes que acompanham indivíduos ou famílias
em situação de rua que aguardam vagas de acolhimento constituam
planos alternativos de acompanhamento no contexto da rua. Pois, há
diversas situações em que, como forma de proteção, recorre-se ao que
podemos chamar de “circuito de espera”. Nesses casos os indivíduos ou

177
famílias que aguardam vaga de acolhimento acessam, durante o dia, os
Centros Pop e, à noite, os albergues. Esse formato apresenta suas pró-
prias dificuldades, relacionadas tanto à descontinuidade no horário de
abertura e fechamento dos serviços, quanto à condição de deslocamen-
to e alimentação dos usuários. Em algumas situações mais agravadas,
especialmente, quando envolve famílias com crianças muito pequenas,
migrantes e pessoas com transtornos mentais mais graves, o que faz
com que as equipes organizem toda uma logística de deslocamentos,
o que implica em disponibilização de educador e articulação com veí-
culos que prestam serviços às unidades. Nesses casos, a proteção em
tempo integral, ordinariamente prevista para ocorrer no contexto do
acolhimento institucional, acaba por ser “articulada” no contexto de
serviços de média e alta complexidade. E, esse “circuito de espera” aca-
ba por ter que ser sustentado por semanas, e mostra-se muitas vezes
iatrogênico, sobrecarregando as equipes e promovendo uma forma de
proteção ambígua e contraditória.

Gerenciamento / Articulação / Matriciamento

Como potencializar o intercâmbio entre as experiências vividas


por diferentes equipes no trabalho com um mesmo usuário, em dife-
rentes momentos de sua vida e a partir de diferentes níveis de proteção
social? É com essa questão de fundo que a PSE passou a discutir os
formatos de gerenciamento / articulação / matriciamento. A
implementação do SUAS apoia-se também em experiências já viven-
ciadas no contexto do SUS. Inspirados no modelo de apoio matricial
(CAMPOS, 1999; CHIAVERINI, 2011) que tem sido o norteador de
experiências de articulação e cuidado colaborativo em saúde mental de
modo que, visualizou-se para o Núcleo de Acolhimento uma função se-
melhante, mas adaptada ao contexto da Política de Assistência Social.
Distintos são os serviços e as equipes que solicitam vagas de
acolhimento, assim como são diversificados os entendimentos e as
concepções que levam à essas solicitações. O apoio matricial proposto
neste contexto objetiva assegurar espaços de discussão de caso entre
as equipes que solicitam vagas de acolhimento e as equipes que irão

178
acolher o caso. Pretende oferecer suporte técnico-pedagógico às equi-
pes de referência para, a partir da discussão conjunta do caso, construir
alternativas de intervenção e de encaminhamentos que favoreçam o
plano de acompanhamento durante o acolhimento institucional ou que
potencializem as formas de proteção na impossibilidade do acolhimen-
to a curto prazo.
“Apoio matricial e equipe de referência são, ao mesmo tempo, ar-
ranjos organizacionais e uma metodologia para a gestão do trabalho”
(CAMPOS; DOMITTI, 2007, p. 400), que objetiva ampliar as possibi-
lidades de diálogo entre diferentes especialidades, profissões e até mes-
mo níveis de cuidado e/ou atenção. O lugar do Núcleo de Acolhimento
é entre equipes, potencializando essa passagem e o reconhecimento das
diferenças nos processos de trabalho, nas realidades dos serviços da
rua e nos serviços de acolhimento institucional. Há um processo de
mediação que é favorecido pela existência de uma equipe colocada em
um lugar “neutro” ou “intermediário” que favorece o reconhecimento
das diferenças entre o trabalho realizado pelas equipes.
Esta metodologia de trabalho possibilita que profissionais das
equipes de referência, tanto solicitante, quando do serviço de acolhimen-
to pretendido, e apoiadores matriciais (equipe do Núcleo de Acolhimen-
to) mantenham uma relação horizontal, e não apenas vertical como na
tradição dos sistemas. Trata-se de uma tentativa de atenuar a rigidez
dos sistemas quando planejados de maneira muito estrita segundo as
diretrizes clássicas de hierarquização e regionalização. Entre outros ar-
ranjos, também o apoio matricial pode ser relevante para racionalizar
o acesso e o uso de recursos especializados (acolhimento institucional)
e ainda, alterar a ordenação sequencial do sistema (básica, média e alta
complexidade), intervenções relacionadas à política de saúde ou outras
articulações interinstitucionais que possam ser relevantes.
Pretende-se que a equipe do Núcleo de Acolhimento possa, a par-
tir da experiência de gerenciamento de casos de acolhimento institu-
cional, constituir saberes e práticas relevantes para agregar recursos
e mesmo contribuir com intervenções que aumentem a capacidade de
resolver problemas da equipe primariamente responsável pelo caso.
Nesse processo, é importante identificar as necessidades, demandas,

179
vulnerabilidades e potencialidades mais relevantes de quem busca aju-
da, seja do caso, seja da equipe em si. Pois, “valorizar as potencialidades
permite a ativação de recursos terapêuticos que deslocam respostas
estereotipadas, favorecendo a emergência de novos territórios existen-
ciais e a reconfiguração daqueles já vigentes” (BRASIL, 2013, p. 56).
O apoio matricial procura, assim, construir e ativar um espaço para
comunicação ativa e para o compartilhamento de conhecimento entre
profissionais. Salienta-se que a ação proposta é “inspirada” no modelo
do apoio matricial, uma vez que enfatiza a troca de conhecimento e de
orientações entre equipes e Núcleo.
E, neste sentido, há de se considerar que múltiplas são as expres-
sões da questão social vivenciadas por essa população de modo que,
espera-se, através do modelo proposto, constituir, cada vez mais, uma
maior articulação entre os serviços que atuam com a população em
situação de rua. O Núcleo de Acolhimento propõe-se a ser parte dessa
construção de modo que uma reflexão conjunta quanto ao lugar da
Alta Complexidade no Sistema Único de Assistência Social, e os novos
“lugares” que lhe são destinados no imaginário social mostra-se ne-
cessária e, precisa, também, dos olhares e atenções de todos os níveis
de proteção social. Pois, somente isso, possibilitará uma maior apro-
priação coletiva da demanda existente, co-responsabilização essa, em
relação ao acompanhamento no contexto da rua, algo que, acaba por
desmistificar a ideia de que o acolhimento institucional é uma forma de
“solução” para a situação de rua.

180
Referências

BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.


Tipificação de Serviços Socioassistenciais. Brasília, DF, 2009.

BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.


Texto de orientação para o reordenamento do serviço de acolhi-
mento para a população adulta e famílias em situação de rua. Bra-
sília, DF, 2014.

BRASIL, Ministério da Saúde. Saúde Mental. Cadernos de Atenção


Básica, Nº 34. Brasília: Ministério da Saúde, 2013.

CAMPOS, G. W. S. Equipes de referência e apoio especializado matri-


cial: uma proposta de reorganização do trabalho em saúde. Ciência e
Saúde Coletiva, n. 4, pp. 393-404, 1999.

CAMPOS, G. W. S.; DOMITTI, A. C. Apoio matricial e equipe de re-


ferência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em
saúde. Cadernos de Saúde Pública, v. 23, n. 2, pp. 399-407, 2007.

CHIAVERINI, D. H. (Org.). Guia prático de matriciamento em saú-


de mental. Centro de Estudo e Pesquisa em Saúde Coletiva. Brasília,
DF: Ministério da Saúde, 2011.

PMPA. Plano Municipal de Enfrentamento à Situação de Rua.


Porto Alegre, 2011.

181
“A LUTA É CONSTANTE”: DO MOVIMENTO
AQUARELA DA POPULAÇÃO DE RUA AO
MOVIMENTO NACIONAL DA POPULAÇÃO
DE RUA DO RIO GRANDE DO SUL
richArd de cAMPoS
edSon de cAMPoS
cArloS henrique dA SilvA
joSé luiz StrAubichen
AlexAndre PortuGuez
cícero Adão GoMeS
veridiAnA FAriAS MAchAdo
MArGArete vieirA

Nas intempéries do tempo, no sol e na chuva, acredita na luta,


diz que a briga é sua!.
Kalunga Quilombola

Introdução

O trabalho aqui proposto visa divulgar, contar a história, dar im-


portância à trajetória de organização política do Movimento Nacional
das Pessoas em Situação de Rua (PSR) no Rio Grande do Sul, (MNPR).
Movimento esse que milita, luta e reivindica direitos humanos, melhor
acesso às políticas públicas e o direito ao uso democrático dos territó-
rios nas cidades por onde se organiza.
Pretende também se ocupar das relações políticas que o movi-
mento tem construído com pessoas apoiadoras, sindicatos, trabalha-
dores e outros, origem do nascimento dessa organização no RS. Vem
dizer do caráter de luta que tem tomado, ao longo desses anos, das
potencias, das conquistas, dos avanços e das dificuldades, assim como,
da construção da sua identidade, da busca por autonomia desse público
para falar com sua própria voz.

183
Para tanto, esse texto foi construído a partir de encontros sema-
nais entre alguns militantes do movimento e apoiadores que caminham
juntos, já há alguns anos, ombro a ombro, nessa construção.
Nesses encontros, um grupo de pessoas com trajetória ou em
situação de rua teve participação ativa na escolha dos títulos, dos itens
a serem tratados, do conteúdo e de sua revisão, a partir das suas vi-
vências e memórias da história do movimento de modo que, este texto
segue alinhado com trabalho em conjunto, que a organização política
das PSR, no espaço e tempo que configuram o movimento no RS, tem
buscado se constituir.

O Censo das Pessoas em Situação de Rua em Porto Alegre no


ano de 2016 e a relação com o MNPR do RS

Através da parceria com a Fundação de Assistência Social e Ci-


dadania e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, hoje acontece
uma nova pesquisa sobre a população em situação de rua na capital do
RS. Militantes do MNPR, pessoas que estão ou já estiveram em situa-
ção de rua, participam como facilitadores do censo, da contagem desse
público na cidade. Colaboram, dessa forma, com a facilitação do vín-
culo nas aproximações entre pesquisadores, trabalhadores, estudantes,
professores e pessoas as quais se destinam a pesquisa, já que possuem
a experiência sobre tal realidade, a partir das suas próprias vivências
nos territórios. Os facilitadores recebem remuneração por isso, ação
que torna possível uma fonte de renda e de valorização do saber desses
indivíduos, estimulando o sentimento de pertencimento e de inclusão
dos atores em questão.
Essa participação, de tais militantes na pesquisa, é fruto também
da ocupação feita pelo movimento de algumas instâncias institucionais,
das reivindicações junto aos gestores no Comitê Municipal de Acom-
panhamento e de Monitoramento das Políticas para as PSR, conquista
também feita pelos militantes e seus apoiadores, ao tensionarem para
que o prefeito José Fortunati pedisse o aceite à Política Nacional para
a População em Situação de Rua em 2014. Política essa que foi instituí-
da através da luta do MNPR em nível nacional e assinada através do

184
decreto 7053/2009, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
possibilitando, assim, a formação dos CIAMPsRUA, os Comitês In-
tersetoriais de Acompanhamento e Monitoramento das Políticas para
as PSR, tanto em nível Nacional, quanto nas instâncias estaduais e
municipais. Hoje, existem dois comitês instituídos no RS, um em Porto
Alegre e outro Estadual e foi o movimento que reivindicou e participou
da formulação dos mesmos.
Cabe ressaltar que esses comitês cumprem um papel de contro-
le social, já que legitimam a participação paritária de militantes do
movimento, de representantes de entidades que o apoiam, escolhidos
por eles, com a participação intersetorial de representantes de diver-
sas secretarias, municipal ou estadual, pela parte dos governos. Nessas
instâncias, em reuniões mensais, são discutidas, encaminhadas e soli-
citadas providências aos gestores, relacionadas às pautas pertinentes
aos interesses comuns das PSR que, geralmente chegam às reuniões
semanais do movimento como forma de reivindicações, representan-
do, assim, parte desse público. Também chegam através de demandas
trazidas nas reuniões de base nas cidades onde o movimento tem se
organizado e, nesse caso, são levadas para o comitê estadual.
As PSR, militantes do MNPR do RS, entendem e consideram
que as pesquisas qualitativas e quantitativas, feitas para saber quem são
e qual o número aproximado de pessoas que vivem em situação de rua
nas cidades, podem ser relevantes para a construção de políticas públi-
cas mais eficazes ao acolhimento e acompanhamento desse público nos
serviços. Também podem servir como um instrumento de diálogo com
a população e com os governos, trazendo tão necessária visibilidade
sobre os modos diferenciados de vida, os direitos, as singularidades, a
importância da equidade e sobre a não criminalização dos indivíduos
pela sua própria condição de extrema pobreza, que é preciso existir a
fim de se aproximar dessa parcela da população.
Neste sentido, quanto mais fidedignas à realidade dessas pessoas
tais pesquisam forem, melhores indicadores e subsídios terão os repre-
sentantes do movimento social, para fazer suas reivindicações. Há que
se chamar atenção, também, para a inexistência da contagem dessas
pessoas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE,

185
em âmbito nacional, o que torna mais relevante ainda os censos regio-
nais. São esses os motivos pelos quais os militantes participantes dessa
pesquisa resolveram compor a mesma.

O ano de 2008 e o nascimento do Movimento Aquarela da


População em Situação de Rua

O ano de 2008 foi um tempo de extrema austeridade para quem


vivia a Situação de Rua em Porto Alegre. Chegavam relatos bastante
graves de pessoas atendidas pelos trabalhadores da Casa de Convivên-
cia, espaço da Fundação de Assistência Social e Cidadania. Traziam
denúncias sobre violência, torturas e diversas violações de direitos hu-
manos, praticadas, principalmente, por agentes do próprio poder públi-
co, especialmente, agentes da segurança pública, contra as pessoas em
situação de rua na cidade.
Os serviços da assistência social para a população adulta ainda não
se constituíam conforme preconiza o Sistema Único de Assistência So-
cial, o SUAS. Não existiam os Centros Pop, nem os Centros de Referência
Especializados de Assistência Social, os CREAS e outros como existem
hoje. Já havia os dois abrigos e os três albergues para acolhimento desse
público. E, o serviço de Atendimento Social de Rua era feito pela mesma
equipe que atendia a Casa de Convivência, pela manhã, e saia à tarde
para fazer as aproximações e acompanhamentos nas ruas, as chamadas:
“abordagens” sociais. Existia uma forte concepção higienista, tanto por
parte do Município quanto por parte do Estado, de governos que tinham
muita afinidade em “orquestrar” metodologias bastante agressivas no
tratamento ao público atendido na Casa de Convivência, que tinha ende-
reço na Rua João Alfredo, no bairro Cidade Baixa.
Nesse sentido, não forma poucas as vezes que os trabalhadores
do local se deparavam com pessoas atendidas que haviam sido bastante
machucadas, por terem sofrido agressões na noite anterior, por esses
agentes da segurança pública. Outras violações e violências diversas
chamavam atenção para a necessidade de se fazer algo que pudesse
enfrentá-las. Elas, inclusive, eram postas em prática por secretarias do
próprio município como a do meio ambiente, da guarda municipal, da

186
própria FASC, principalmente, através de cargos de confiança e do de-
partamento de limpeza urbana. Aqui estamos falando da cidade como
se estabelece através das suas diversas dinâmicas e produção de exclu-
são, de violência e de desigualdades:

Afora a ordem comercial que orienta a conquista do espaço a par-


tir da circulação, os elementos que compõem uma ordem subver-
siva com práticas não previstas pelo Estado expressam a tensão
dos lugares na cidade. A multiplicidade de sujeitos e atividades
que se cruzam apresenta práticas localizadas para além do impe-
rativo da circulação. Trata-se de atividades não contidas, não pla-
nejadas, como as dos camelôs que se espalham pela cidade; as dos
vendedores de vales-transportes, a dos hippies com seus produtos
artesanais; a dos artistas de rua; dos traficantes; das prostitutas,
dos michês, dos guardadores de carros, dos “pedintes” em portas
de restaurantes. Sujeitos e atividades que permanecem nos inters-
tícios, nas sombras, na penumbra entre os bicos de luz, tolerados
sob a condição de ameaça constante da intervenção estatal e da
violência legitimada (LEMÕES, 2013, p. 109).

A época, por isso e por outras questões, também trazia uma con-
juntura difícil para aquela equipe da Casa de Convivência e Atendi-
mento Social de Rua. Muitos atravessamentos se intensificavam em
consequência das mudanças na concepção de governo no município, em
relação ao tratamento com as PSR e com a forma como se constituía o
processo de trabalho da equipe. Isso teve consequências drásticas para
o andamento do trabalho, para os funcionários e para o público aten-
dido. Os trabalhadores municipais haviam recomeçado a luta sindical
em 2006 e retomado o Sindicato dos Municipários de Porto Alegre, o
SIMPA, como instrumento de sua organização política.
No serviço em questão, eram realizados grupos de acolhimento
coletivos e assembleias, espaços onde a população atendida podia ser
escutada em suas queixas, sugestões e questionamentos, assim como,
a própria equipe podia falar das suas dificuldades, do que era possível
mudar, dos seus limites, enquanto serviço de atendimento e de outros
assuntos mais gerais. Na verdade, era de política mesmo que aqueles
espaços tratavam.

187
A Casa de Convivência foi precursora do Centro Pop, serviço do
Sistema Único de Assistência Social, que traz como um dos objetivos o
estímulo à participação política das pessoas atendidas. A tipificação desse
serviço caracteriza o Centro Pop como espaço de referência fundamen-
tal ao convívio salutar e grupal, imprescindível ao desenvolvimento de
vínculos de solidariedade, respeito, afeto e autonomia. Nesse sentido, o
Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua, deve promover
as condições necessárias para o alcance da autonomia e estimular a orga-
nização, a mobilização e a participação social (BRASIL, 2014).
Dito isto e diante de todas as violações de direitos humanos e
violências diversas contra as pessoas atendidas na Casa de Convivên-
cia, surge em uma das assembleias semanais, entre as pessoas e a equi-
pe, a ideia de fortalecimento de um coletivo. Naquele momento, cria-se
uma comissão de cinco pessoas, entre PSR e trabalhadores, que foram
até o SIMPA, solicitar apoio para esse fortalecimento e o espaço do sin-
dicato para reuniões semanais do coletivo. Entendia-se a importância
de uma distância maior da organização política do coletivo em relação
ao próprio serviço. O apoio é dado pelo SIMPA e as reuniões semanais
passam a acontecer naquele sindicato, que também se situa na Rua João
Alfredo, portanto, essa região se refere a uma das regiões mais centrais
de Porto Alegre, onde o coletivo formado começa a atuar.

A Construção da identidade

A partir dessa etapa concluída, o grupo se depara com a neces-


sidade da construção de uma identidade, de um nome para o coletivo.
Em uma das primeiras reuniões no sindicato uma das pautas é essa. No
final do debate, as PSR que ali se encontravam, decidem que trariam
para a próxima reunião, as ideias de nomes a darem para o que já havia
ficado decidido que seria um movimento, uma organização política de
caráter reivindicatório, apoiado por pessoas e entidades que quisessem
somar na luta. Dessa forma, na reunião seguinte houve uma votação,
seis nomes foram levados e um deles foi escolhido para identificar o
coletivo. Um dos militantes da época, chamado Sérgio Carvalho Bor-
ges, levou o nome: Aquarela da População de Rua. Justificou a deno-

188
minação pela diversidade que existe entre as pessoas em situação de
rua e que isso além de, simbolicamente, ter relação com cores, no caso,
por isso uma aquarela, ainda lembrava algo que pudesse trazer alegria
quando falasse no movimento, diferente do olhar “sombrio” que a so-
ciedade costuma ter em relação a esse público. Foi essa justificativa que
fez com que fosse escolhido o nome pelos demais na reunião.
Dado o nome, decidiram construir símbolos: bandeiras e cores
para a construção dessa identidade. A bandeira também foi feita, a di-
versas mãos, no espaço de oficina de arte na Casa de Convivência. Ela
era parecida com a bandeira do Brasil, foi costurada por uma militante
e desenhada por outro, várias mãos foram marcadas nela para sim-
bolizar o coletivo. O pano para fazer a bandeira foi comprado através
da coletivização financeira pelo grupo e arrecadado em uma caixinha.
Todas essas etapas foram extremamente significativas e constituíram
algo novo como possibilidade de potência, de protagonismo, de perten-
cimento e de luta coletiva, que nascia naquele momento. Pois,

Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opres-


sor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, come-
çam a crer em si mesmos, superando, assim, sua “convivência”
com o regime opressor. Se esta descoberta não pode ser feita
em nível puramente intelectual, mas da ação, o que nos parece
fundamental é que esta não se cinja a mero ativismo, mas este-
ja associada a sério empenho de reflexão, para que seja práxis
(FREIRE, 2013, p. 72).

Alguns trabalhadores da Casa de Convivência continuaram no


apoio à organização política das pessoas atendidas, até a transformação
daquele serviço em outro. Muitas pessoas saíram da equipe, outras en-
traram e o serviço mudou de local. Estagiários de serviço social, de psi-
cologia e de outros campos, assim como, oficineiros, monitores, técnicos e
outros, inseridos na política de assistência social, também sempre foram
bastante importantes nesse apoio. Por outro lado, ainda persiste muita
resistência da maioria das equipes, em considerar a importância da orga-
nização política das pessoas atendidas no acolhimento institucional. Isso
tem sido ponto constante de discussão nas reuniões do movimento, pois,

189
muitas vezes, a impressão que quem se organiza tem, é a de que muitos
trabalhadores ainda veem o movimento como uma possível ameaça, já
que dentre uma das funções do mesmo, está a de criticar os processos
de trabalho quando não estão satisfatórios, a partir da opinião de quem
acessa os mesmos. É, porque, é consciência crítica sobre o mundo que os
cerca que tais militantes desenvolvem quando passam a pensar suas rea-
lidades. Isso pode trazer certa desacomodação, mas, esta deveria servir
para reflexões sobre que tipo de serviço está se prestando ao público que
se atende e qual o papel desse trabalhador.
Agora, fato é que as intervenções feitas, não tem se resumido
somente às críticas e, sim, tem sido transformadas em luta por melho-
rias pelo movimento. É importante dizer que quando se realizam as
conquistas, geralmente, vão favorecer à população atendida e aos tra-
balhadores também, pois, elas são, na sua maioria, de interesse comum
a todos. Isso se dá para além dos trabalhadores e dos serviços, porque é
mais amplo, é de políticas públicas de direito a que se refere, é de direito
à vida e ao bem estar das pessoas. E, dessa forma, envolvem outros ato-
res como governos e a própria sociedade, na visibilidade e na disputa
que o movimento tem dado e tem feito pelo uso democrático dos ter-
ritórios, pela inclusão e qualificação nos/dos serviços, por direitos hu-
manos fundamentais e por outras tantas pautas relevantes nas cidades
onde se organiza. Sobre isso, Paulo Freire em Pedagogia da Esperança
disse: “precisamos da esperança crítica, como o peixe necessita da água
despoluída” (FREIRE, 2011, p. 15).

Um pouco das relações políticas com outros movimentos,


organizações, as descobertas nacionais e o nascimento do
Movimento Nacional da População de Rua no RS

O Movimento Aquarela da População de Rua - MAPR foi lan-


çado no largo Zumbi dos Palmares, em um ato público, no dia 15 de
agosto de 2008. Sua bandeira já estava pronta, foi hasteada, foram fei-
tos cartazes e diálogo com a população que passava através do carro
de som do SIMPA. Houve um momento cultural ensaiado na oficina de
música da Casa de Convivência e apresentado lá.

190
Após essa etapa, o coletivo começa a pensar sua relação com outros
movimentos sociais. Na época, estava para ser votado na câmara de verea-
dores um projeto de lei de autoria do vereador Sebastião Melo, do PMDB,
que proibiria os veículos de tração animal de circularem pelas ruas da
cidade e estavam aventando a possibilidade de estender a proibição aos
chamados carrinheiros, pessoas que utilizam carrinhos para coletar mate-
riais recicláveis para a venda. Muitas pessoas em situação de rua exercem
essa atividade como forma de prover seus sustentos. Dessa forma, os mi-
litantes resolveram chamar representantes do Movimento Nacional dos
Catadores de Materiais Recicláveis, o MNCR, para discutir melhor esse
assunto e ver o que seria possível fazer juntos, a fim de resistir.
Houve um seminário entre os militantes dos dois movimentos
onde foi discutido sobre isso, também foi falado dos megaeventos: a
Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas, que o Brasil seria país sede
e as possíveis consequências dos mesmos para as pessoas em situação
de rua. Nessa interlocução, com o MNCR, descobriu-se que existia um
Movimento Nacional das Pessoas em Situação de Rua, que já estava or-
ganizado em alguns estados do Brasil. Havia começado a se constituir
na região sudeste, em função do que ficou famoso e conhecido como
Massacre da Sé, em 2004, na cidade de São Paulo1. Esse crime até hoje
se encontra impune. Os representantes dos catadores passaram os con-
tatos de pessoas envolvidas com esse movimento nacional e começou
a articulação do Movimento Aquarela com pessoas em situação de rua
e apoiadores de Belo Horizonte, Curitiba e depois com outros estados.
Alguns encontros de representantes do movimento Aquarela
começaram a acontecer entre os estados e um primeiro seminário da
região sul foi organizado pelos militantes e apoiadores em Curitiba.
Houve certo estranhamento em relação ao nome Movimento Aquarela
da População de Rua com essa descoberta, mas, isso não chegou a ser
problema. Na verdade, as dificuldades começaram a aparecer quando
os militantes do Rio Grande do Sul descobrem que o movimento na-
cional tinha na sua metodologia representativa a figura de um coor-
denador nacional. Aqui, o movimento não funcionava assim, pois, as
1 O episódio se deu quando um grupo de quinze pessoas em situação de rua, que
naquela praça dormia, foi brutalmente atacado por policiais que formavam uma milícia
e sete dessas pessoas haviam morrido, pelo simples fato de estarem dormindo na rua.

191
tarefas eram distribuídas, eram feitas de forma mais coletiva, a fim de
que todos e todas pudessem exercer suas potencialidades. Acontece
que, em todos os encontros e tarefas nacionais, era sempre exigido que
cada estado indicasse o coordenador para ir. Dessa forma, o movimento
Aquarela da População de Rua vota e indica o militante Sérgio Carva-
lho Borges para essas tarefas. O mesmo foi representante de 2008 até
2010 e a experiência, as consequências oriundas de dificuldades que
esse modelo trouxe e outras fragilidades fazem com que o movimento
se desarticule totalmente, deixando de atuar por dois anos.

A retomada

Durante esse tempo que o movimento se desarticulou, pode-se


perceber a importância que os dois anos de luta e início da organiza-
ção tiveram, pelo fato da cobrança que muitas das próprias pessoas em
situação de rua faziam para que o movimento fosse retomado. Final-
mente pelo esforço de um militante e duas apoiadoras, em agosto de
2013, o movimento retoma suas atividades de novo no SIMPA. Começa
com um seminário onde muitas pessoas em situação de rua se fazem
presentes e alguns trabalhadores dos serviços. Da parte do movimento
nacional da população de rua, havia uma insistência para que fosse re-
tomada a organização do movimento no RS, pois, tinham conseguido
conquistar um projeto de Centro de Defesa de Direitos Humanos da
População de Rua e dos Catadores e que Porto Alegre estava como uma
das capitais a implantar o centro. Um dos critérios para tal é que tives-
se o movimento organizado e que pessoas militantes ou que apoiassem
levassem adiante o projeto em conjunto.
Nessa retomada, se decide que o nome do Movimento seria então
Movimento Nacional da População em Situação de Rua do Rio Gran-
de do Sul, pois, se incorporaria ao movimento nacional já existente.
Também é abolida pelo coletivo a figura de um coordenador e volta-se
a atuar com distribuição de tarefas e decisões coletivas, o que retoma
um caráter mais horizontal nas relações. Essa decisão é comunicada
ao movimento nacional através de um documento feito e assinado pelo
coletivo.

192
O Centro Nacional de Defesa da População de Rua e dos Cata-
dores, o CNDH, foi, então, implantado ainda em 2013. Tinha uma es-
trutura pequena, funcionava junto com os catadores, fazia parte do seu
quadro de trabalhadores um militante da própria população de rua e do
movimento como agente de direitos humanos. Recebia salário, carteira
assinada e não somente era um contrato como muito acontece a esse
público quando lhe é oferecido trabalho por algum órgão da prefeitura.
O centro exerceu suas funções por um ano e meio, mas, teve grande
importância no levantamento, nos registros e encaminhamentos de
violências, violações de direitos humanos contra esse público. Aproxi-
mou órgãos como Ministério Público, Defensoria Pública, setores de
direitos humanos como comissões da Câmara de Vereadores e outros,
às pautas referentes à População em Situação de Rua em Porto Alegre
e em algumas cidades do interior do RS.
Foi fruto da articulação do CNDH do RS com esses órgãos, o
grupo Patrulha de Direitos Humanos que conseguiu formar um
“guarda chuva” de proteção aos grupos em situação de rua, nos terri-
tórios, na época da copa do mundo na cidade de Porto Alegre. Veículos
das Defensorias Públicas, junto com a promotoria de direitos humanos
do MP, visitaram os grupos nas ruas mais centrais, junto com mili-
tantes do MNPR, entregando telefones da Patrulha às pessoas para as
situações de violações que se deparassem.
Poderiam ligar 24 horas e a cobrar para qualquer um daqueles
números. O CNDH tinha ligação direta com o DISQUE 100, no ramal
para acolher denúncias sobre a população em situação de rua. Mui-
tas notícias dos embates dessas ações saíram na mídia, o que também
proporcionou visibilidade ao movimento que se fez em diálogo com a
população.
Para além dessa rede institucional, a parceria com outros movi-
mentos de luta sempre foi fundamental. Por exemplo, com militantes
do Utopia e Luta que moram no prédio localizado na Av. Borges de
Medeiros, chamado Assentamento Urbano, fruto da luta autônoma por
moradia, teve também papel fundamental como local de apoio para co-
municação de violências para a rede de proteção formada.

193
Conquistas históricas: frutos da luta!!!

Todo o acúmulo dessa época para o movimento serviu para con-


quistas muito importantes. Em 2014 o governo Fortunati/Sebastião
Melo informou que fecharia o projeto da Escola Porto Alegre, a EPA,
que atende as Pessoas em Situação de Rua há vinte anos na cidade.
Tem um método voltado para a dinâmica dessas pessoas, trabalha com
práticas que consideram a linha ética da Redução de Danos, tem tra-
balhos com arte e geração de renda e outras metodologias de inclusão
importantes para esse público.
O MNPR do RS, junto com os estudantes da escola, professores
e apoiadores, então, começaram a fazer uma grande luta política de rua
na cidade, com atos públicos em frente à Secretaria de Educação e Pre-
feitura, na feira do livro e outros tantos lugares e, também, chama au-
diências públicas conseguindo com isso que a Defensoria Pública ajui-
zasse uma ação contra o município. Isso resulta, então, em pareceres
favoráveis da justiça à permanência da escola, que além de estar aberta,
ganha um grande reconhecimento junto à comunidade. Paralelamente
a isso, havia também uma luta pela reabertura do restaurante popular
que estava fechado há mais de três anos no município.
Em 2016, o Restaurante Popular foi reaberto pela pressão que o
MNPR do RS fez aos dois governos: estado e município. Os gritos de
ordem na junção dessas duas pautas pelas ruas eram: ô, ô, ô, ô, morador
de rua também quer virar doutor! Queremos a abertura do Restaurante
popular!
O MNPR do RS também conquistou uma campanha feita com
verba da saúde para divulgar a portaria 940/2011, que fala da inclusão
das pessoas em situação de rua nos serviços de saúde sem a exigência
de ter que apresentar comprovante de endereço e documentos para a
confecção do cartão nacional do Sistema Único de Saúde. Militantes do
movimento apareceram por alguns meses em fotos nos ônibus da cida-
de onde dizia: Sou Morador de Rua e tenho direito à saúde. Também
foram distribuídas placas com a portaria em cada unidade de saúde, a
fim de que os trabalhadores a conheçam, assim como, apresentado um
teatro com a participação de militantes do movimento para falar da

194
questão em locais de atendimento de saúde. A negativa ao acesso da
saúde para esse público ainda é uma constante e por isso a importância
dessa campanha.
A constituição dos comitês, através da pressão do movimento
para que os governos se comprometam com a Política Nacional para
as Pessoas em Situação de Rua também são conquistas do movimento
no estado. O reconhecimento que hoje a população tem por essa orga-
nização, a interlocução com as universidades, com outros movimentos
de luta, com grupos culturais que apoiam os atos e atividades do movi-
mento como o grupo Kalunga Quilombola, que inclusive fez a música
chamada: Peregrinos, falando das PSR, o grupo Front LR e outros são
grandes conquistas dessa caminhada de modo que, hoje, o MNPR do
RS já tem bases constituídas em Gravataí e em Canoas, assim como,
se encontra atualmente em fase de constituir um fundo solidário que
dará autonomia financeira para o fortalecimento das bases no interior.
Também sediará o IV Congresso Nacional do MNPR no estado do RS
no ano de 2018, recebendo todas as delegações dos 13 estados onde o
movimento se organiza. Em nível nacional também são muitas as con-
quistas que a luta das pessoas em situação de rua vem realizando em
vários âmbitos: institucionais ou não.

Considerações finais

É notória e reconhecida a importância que a organização das pes-


soas em situação de rua hoje tem através do movimento para a garantia
de alguns direitos e a luta constante por outros. Muito embora, tanto
ainda se tenha a avançar para uma sociedade que se estabeleça de uma
forma menos desigual, essa busca deve ser constante. Necessário se faz
entender as pessoas que fazem uso das ruas como moradia, que cons-
troem outras possibilidades de laços e redes, para além da forma como
a sociedade enxerga que deva ser o mundo.
Sabe-se que faltam muitas políticas e distribuição mais igualitá-
ria de recursos no Brasil e no mundo, mas, também deve-se considerar
que ainda que todas as mazelas do nosso mundo fossem resolvidas,
teriam mesmo assim, pessoas que não se identificam com estar em uma

195
casa, com a família de origem, mas que constroem, no lugar disso, ou-
tras possibilidades de afetos, de trocas, de gestar a vida e as cidades
devem avançar na inclusão e no acolhimento dessas pessoas em seus
territórios.
Tais gentes são gentes e trazem consigo desejos, laços de afetos,
potencialidades. A rua não é um lugar fora do nosso mundo, nela exis-
te violência, cooperação, competição, animosidades, amizades, amores,
partilhas e tudo que há na vida de quem mora em casas e “a-par-ta-
-mentos”.
O território é vida, têm dinâmicas, estabelece regras, códigos e
vivências que precisam ser traduzidas para que haja inclusão, para que
as políticas cheguem de forma mais humana e qualificada, para des-
construir preconceitos, para que não haja mais tanta violência e cri-
minalização dessas pessoas pela sua própria condição, condição essa
produzida pela forma como constituímos nossa sociedade.

196
Referências

LEMOES, T. A família, a rua e os afetos: uma etnografia da cons-


trução de vínculos entre homens e mulheres em situação de rua.
São Paulo: Edições Acadêmicas, 2013.

FREIRE, P. Pedagogia da Esperança. Um reencontro com a peda-


gogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

______. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

BRASIL. Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais,


2014. Disponível em: http://www.mds.gov.br/webarquivos/publica-
cao/assistencia_social/Normativas/tipificacao.pdf

197
“A GENTE MUDOU A HISTÓRIA”: EXPERIÊNCIAS
E OLHARES DO JORNAL BOCA DE RUA

Por SeuS inteGrAnteS e colAborAdoreS

Neste texto, destacamos experiências diversas e situadas, que fazem


parte da produção do jornal Boca de Rua, feito, desde os anos 2000, com
e por pessoas em situação de rua na cidade de Porto Alegre. A partir de
vivências variadas, apresentamos percepções sobre os históricos e os en-
volvimentos com a temática da “situação de rua” e no Jornal Boca de Rua.
O jornal, apoiado e vinculado à Agência Livre para Informação,
Cidadania e Educação (a ONG ALICE), é produzido, semanalmente, e
vendido pelos próprios integrantes, seus jornalistas e jornaleiros. Este
periódico trimestral conta com a colaboração de apoiadores, como jor-
nalistas da ALICE, estudantes universitários, pesquisadores e fotógra-
fos. O ganho obtido sempre é revertido aos integrantes do jornal, que
contam com este apoio econômico em sua renda semanal.
Elaboramos um texto com uma proposta diferenciada, mesclan-
do estilos e temáticas. Num primeiro instante, uma apresentação tex-
tual e breve do jornal é exposta. Em seguida, registramos uma entre-
vista realizada com integrantes do Boca de Rua. Por fim, passeamos e
cartografamos duas histórias que marcaram os 16 anos deste projeto.

Apresentação
[Por Rosina Duarte, jornalista e coordenadora do projeto]

O projeto Boca de Rua gera uma publicação que prioriza a voz


das pessoas em situação de rua e risco social que vivem na cidade de
Porto Alegre. O “Boca” existe desde agosto de 2000, e é composto
por um jornal trimestral, o Boca de Rua, incluindo o suplemento in-
fanto-juvenil, o Boquinha. Adultos e crianças produzem textos, fotos,
ilustrações, mas apenas os mais velhos – adultos – vendem o jornal,
tendo a renda revertida integralmente para si. Além disso, participam

199
de oficinas de vídeo, expressão e escrita livre, tendo realizado, ao longo
de sua história, dois documentários - Carta de Porto Alegre e Ali na Capa
tá eu -, além do livro Histórias de mim. Sob a orientação de um fotógrafo
profissional e de outros apoiadores, os integrantes produzem, ainda, as
imagens que ilustraram o jornal, que compuseram também duas expo-
sições: Faces da rua e As duas faces da rua.
Todas as regras vigentes e a forma de trabalhar foram montadas
de maneira participativa pelos membros do grupo, sejam eles técnicos
ou comunicadores populares. O respeito – nas suas diferentes formas –
é o primeiro mandamento desta lei vigente no Boca de Rua.
A relação proposta é a de trabalho focado na prática da comuni-
cação ética e humanista. Ou seja: o Boca não pratica o assistencialismo,
não recebe e nem faz doações. Tampouco se tem a pretensão de res-
gatar os participantes da rua ou da droga, embora isso, logicamente,
seja desejado e trabalhado pela equipe na produção do conteúdo jor-
nalístico. Os técnicos não fazem papel de médicos, assistentes sociais,
enfermeiros, guarda-parques ou policiais. Para atender as demandas
surgidas, o grupo atua em rede com os organismos públicos encarre-
gados de atender o cidadão e a cidadã nas diversas áreas e também com
entidades, ONG’s e instituições parceiras.
Dentro deste caráter emancipatório, incentiva-se a participação
grupal, não competitiva e o debate da realidade. Desta forma, preten-
de-se que os integrantes tomem consciência da reivindicação de seus
direitos, comecem a expressar-se por meio da escrita, voltem a estu-
dar, tratem da saúde, estabeleçam outra relação com a cidade, lutem
por moradia e mudem a sua autoimagem. De “vagabundos, drogados,
ex-presidiários, aidéticos” – como frequentemente se definiam – passa-
ram a trabalhadores e cidadãos participantes de um grupo organizado.
O afeto e a honestidade são componentes importantes na cons-
trução do sentimento de coletividade. Olhar nos olhos e conseguir
expressar uma contrariedade com clareza, respeito e calma são con-
siderados avanços tão importantes quanto o retorno ao colégio, ou a
conquista de uma moradia.
Mais do que falar apenas dos próprios problemas, das próprias
chagas, o jornal se propõe a mostrar o cotidiano das ruas, sem o com-

200
promisso de ser “porta-voz” exclusivamente de moradores de rua. A
possibilidade de experimentação é estimulada e, para isso, são válidos
exercícios literários (técnicas de construção de personagem, método
de criação, colagem de textos), fotográficos, cênicos, de filmagem etc.
Os participantes devem buscar força suficiente como grupo para
garantir os atendimentos necessários e não se conformar com uma cer-
ta condição de vítima. Assim, são feitas não apenas denúncias, mas tam-
bém propostas coletivas, encaminhadas a quem tem poder decisório. O
jornal não se limita, portanto, a noticiar ressentimentos, mas propõe e
força mudanças sociais. O fato de terem a oportunidade de se expressar
sem intermediários externos os torna parte integrante de uma socie-
dade que os excluiu, colocando-os como sujeitos da sua história.
O jornal Boca de Rua é membro da Rede Internacional de Publi-
cações de Rua (International Network of Street Papers – INSP), entidade
com sede na Escócia, que reúne jornais e revistas vendidos por popula-
ções em situação de risco de 28 países. Ele é o único desta rede que tem
conteúdo produzido integralmente pelos próprios vendedores.

Entrevista com integrantes do jornal: históricos,


envolvimentos e mudanças

A seguir, expomos uma entrevista coletiva feita com os integrantes


do jornal, em novembro de 2016. A contribuição precisa e inspiradora de
todos foi fundamental, especialmente daqueles que participaram falando
de suas vivências. São eles: Alexandre, Carlos, Demétrio, Édisson, Jorge,
José Luiz, Michel, Michelle, Paulo e Paulinho (cartunista). Essa entrevis-
ta foi realizada pelos apoiadores Bruno Fernandes e Caroline Sarmento,
em uma reunião na Escola Municipal Porto Alegre (EPA).
Ressaltamos, assim, o caráter polifônico desta produção discursi-
va e interativa, que considera os estilos e singularidades de cada envol-
vido. Com suas experiências e inquietações, mostraram como é possí-
vel escrever, ou ainda mais, falar criticamente de mudanças na história.
Algumas percepções sobre a pesquisa quali-quantitativa da população
em situação de rua, realizada em Porto Alegre no ano de 2016, também
foram expostas, já que alguns integrantes participaram como facilita-

201
dores na elaboração e coleta de dados do censo. No mais, envolvimen-
tos, interesses e identificações foram abordados nas diferentes falas e
formas de vivenciar a participação neste projeto.

Bruno: Bom gente, neste primeiro instante, seria interessante vocês comentarem
um pouco da história do Boca de Rua e da importância do jornal pra cada um.

Carlos: Uma coisa importante nesta história do jornal Boca de Rua é


que eu sou ex-presidiário e aquela coisa toda que eu fazia – que eu rou-
bava, eu fazia maldade pras outras pessoas – eu acabei deixando isso,
pra vender meu jornal. Não é uma coisa que me dá um sustento de um
salário nem nada, mas me ajuda, também, nas minhas caminhadas, pra
me alimentar, pra me vestir e eu não precisar roubar. Acho que isso é
uma coisa importante que aconteceu pra mim. Sobre o Boca, eu acho
que conheço o Boca desde 2003, mais ou menos, e muita coisa mudou
de lá pra cá. Não somente o jornal: a cor e o valor dele. Mas é que nem
fala aqui na nossa edição de 15 anos: “A gente mudou a história”. Até
então, algumas coisas que a gente não tinha antes, a gente adquiriu
através de denúncias no jornal, através de reuniões com pessoas im-
portantes. Fomos adquirindo uma mudança, alguma diferença nesta
nossa sociedade. A sociedade que também nos discriminava e achava
que todo morador de rua é vagabundo, cachaceiro e drogado, viu que
não. Eles viram que a gente também é trabalhador. O jornal também
não é muita coisa, mas é um trabalho pra nós. Não é uma coisa que a
gente chega aqui e brinca de fazer jornal. Não. É um negócio muito
sério, com horário, com regras, com deveres e direitos.

Alexandre (Português): Eu adoro muito o jornal e vendo jornal mais


que todos aqui (risos).

Paulo: Desafio este vendedor a nós irmos, a qualquer momento, pro


semáforo pra gente ver quem vende mais... (risos). O jornal é impor-
tante pra mim, também, porque eu, com certeza, faturo 60 reais toda
a semana.

202
Bruno: Que tipo de mudança o jornal provoca na vida de cada um?

Paulo: O jornal Boca de Rua, pra mim, volta a mesma coisa que te falei
antes, ele me dá 240 reais no mês, que ajuda no café, ajuda no Bandejão
(Restaurante Popular), ajuda na gasolina [...] O Boca de Rua é simples-
mente uma fonte de renda, simples e completa ao que falta.

José Luiz: O Boca de Rua pra mim representa um novo começo de


vida, porque eu saí de dentro de casa, de uma família na periferia e
vim pra rua. Até então, cheguei e iniciei um trabalho de reciclagem,
isto é, “enfiando a cara na lixeira” – que nem eu sempre digo –, e hoje
estou aqui, participando da reunião, uma das últimas do ano. Já fazem
6 anos que estou no Boca de Rua. O que melhorou pra mim foi que, há
um tempo, neste horário estava saindo pra reciclar, com carrinho de
papelão. E hoje estou aqui, numa reunião, não esquecendo de dizer que,
eu saía pra reciclar com um carrinho de papelão e mais uma garrafa de
cachaça dentro do carrinho. E hoje estou aqui, sóbrio, há dois dias sem
beber nada, pra participar da reunião. Acho que isso aí é um meio de
vida que me beneficiou bastante.

Bruno: Jorge, o que acha que o jornal mudou na tua vida? Há quanto tempo
está no jornal? Como foi tua entrada e o que mudou?

Jorge: Eu, dos guris que estão aqui, sou o mais novo. E o Boca de Rua
pra mim é tudo. É um projeto interessante, porque, em princípio, ajuda
as pessoas como, no meu caso, que estou em situação de rua. É uma
oportunidade para aquelas pessoas que querem mudar de vida. E hoje,
o que estou crescendo, passo a passo, eu agradeço em primeiro lugar ao
Boca de Rua e a minha família aqui, o pessoal do Boca de Rua. Eu digo:
vou lutar até a morte com o Boca de Rua.

Carlos: Eu tenho mais uma coisa pra falar. O que pra muitos é um tra-
balho, pra nós é a nossa vida. Boca de Rua é a nossa vida, nossa história,
conta tudo de nós. O que pra muitos pode ser um trabalho, pra nós não
é só trabalho, é a nossa vida esse jornal.

203
Paulo: Jornal Boca de Rua é um exemplo para expor quem somos, de
onde viemos e para onde queremos chegar. Este é o objetivo do jornal.

Michel: Eu vou dar a real aqui. O jornal Boca de Rua é uma vida, mas
a folha é só uma folha, tá ligado? O jornal Boca de Rua é feito por ima-
gens, textos e fitas, daquilo que acontece no nosso dia a dia. Naquela
folha ali que vai, naquelas letras, no nanquim [...] naquele nanquim,
cada polígrafo que ele manda ali, é uma história nossa, tá ligado? E
cada história é uma fita.

Carol: A Michele queria dar o depoimento dela, sobre o Boca na vida dela.

Michele: Então, eu estou com 33 anos. Meu nome é Michele Apareci-


da Marques dos Santos, estou no Boca desde os 19 anos. Isso quando
ainda ele era recém-nascido, na época em que ele começou lá na volta
do Araújo Vianna. O Boca de Rua, na verdade, me deu muito estudo e
muita aprendizagem, porque eu conheci muitas pessoas. Com elas eu
aprendi falando e ouvindo. E o Boca de Rua pra mim é importante por
isto: pelo meu conhecimento. Não só das pessoas, mas de outros luga-
res que a gente foi, como pra conhecer escolas e estados. Eu, no caso,
fui pra São Paulo, apresentei o Boca de Rua lá. Tive no Rio e falei, tam-
bém, do Boca. Essas viagens foram pelo GAPA, pelo Grupo de Apoio a
Prevenção da AIDS, onde eu também fazia meus grupos de Rap. Então,
nestes lugares, eu também levei jornal daqui pra lá, muitas pessoas
leram e gostaram, já se interessaram pela reportagem do Boca, entra-
ram no nosso site e fizeram várias perguntas. Foi muito legal mesmo, a
aprendizagem e o conhecimento que eu tive pelo Boca de Rua.

Demétrio: Pra mim o Boca de Rua não é só mais um jornal. É o jornal


dos moradores em situação de rua e nós produzimos todo o jornal,
montamos, editamos e fazemos a história. Já faz um ano que pertenço
a tribo do Boca de Rua e eu me sinto muito honrado em participar,
faço com muito carinho e com muito amor as matérias. Curto e vendo
assim, explico pras pessoas, uma explicação de como funciona, como é
que é, quem é que faz o Boca [...]. Tudo pras pessoas entenderem que

204
o morador de rua não é o “invisível”. Morador de rua é um ser huma-
no, tem que ser respeitado em todos os sentidos. Quanto mais coisas
nós conseguirmos por intermédio do Boca, melhor. Nós temos muitos
artistas na rua, que hoje estão divulgando no Boca, na parte cultural –
hoje temos aqui o Michel, eu, Rosângela e outros que vão se agregando
– pra mostrar nosso trabalho como artista popular. O Boca pra mim é
um jornal sério.

Michel: Uma vez estava eu e o Demétrio, lá em Navegantes, no Felipe


Diehl. Estava eu e o Demétrio na fila, nem conhecia o Demétrio ainda.
Aí, encontrei ele. Ele estava com uma mochila e ele me disse: “Michel,
pegaram meus documentos da minha mochila, estava no bolso de trás
ali”. Ele falou pra mim assim: “me roubaram tudo”. E ele também me
disse assim: “Oh Michel, o bagulho é com nóis”. E eu respondi: “o ba-
gulho é Boca de Rua mano”. E ele perguntou: “o que é Boca de Rua?”.
Eu falei: “Boca de Rua é um jornal que tá rolando aí, meu irmão”. Ele
não conhecia, até então. Falei pro Demétrio e ele frustrado ali, logo
conheceu o Boca. Ainda falei pra ele que ele podia ir numa parada no
CRAS pra fazer os documentos de novo.

Alexandre (Português): A coisa do documento é um problema. Mo-


rador de rua não consegue acessar o SINE, por exemplo, pra arrumar
serviço.

Bruno: Vocês falaram a palavra “invisível”. Qual o papel do jornal em relação


a isso?

Paulinho: Eu acho que, realmente, o morador de rua é invisível quan-


do as pessoas querem. Porque elas olham pra pessoa, quando estão
passando pelo cara, elas conseguem enxergar e atravessam a rua. Mas
assim, o que significa o Boca de Rua, também, pra mim? É uma opor-
tunidade, pra mim, estar mostrando que morador de rua não é só vaga-
bundo, ladrão, mas que tem também muitas pessoas trabalhadoras na
rua. Elas querem mudar de vida e tal. O Boca de Rua é uma oportuni-
dade pra isso, porque, na realidade, o Boca de Rua é um jornal indepen-

205
dente, feito por moradores de rua, que batem fotos, fazem entrevistas
e o jornal. É uma oportunidade pra divulgar meus desenhos também.
Por exemplo, eu conheci uma apoiadora aqui no Boca, a Sofia, que me
deu uma oportunidade, de dar oficina no Instituto de Psicologia e de
conhecer os colegas e a mãe dela – que é professora de Artes. Isso foi
uma oportunidade, mas que também depende de mim. Mas na rua é
muito difícil, porque a pessoa não tem ajuda de custo e tal. Então fica
difícil de ir, fazer as oficinas, sendo que é uma coisa muito importante
pra mim. E o jornal é importante pra que eu conheça as pessoas e elas
me conhecerem, conhecerem o morador de rua também. Enfim, o di-
nheiro que eu ganho com o jornal vai encher meu bolso, mas as oportu-
nidades são bem melhores, tá ligado? Às vezes, uma atenção vale mais.

Michel: Mas na real assim, a oficina não parte só dele, que é cartunista,
tá ligado? Como eu, que sou roteirista [...]. Na real mesmo, a gente
depende também dos estudantes e colaboradores. Sem os colaborado-
res, o Boca de Rua não seria ninguém. Se ninguém estivesse como co-
laborador, não sei. Tem gente da UFRGS, tem a galera de ocupações.
Porque, quando estão ocupando, eles dão oportunidades pra nós, não
só nós Boca de Rua, mas nós de outras favelas aí, porque está chegando
vários caras da favela, que estão descendo. No Centro de Porto Alegre
mesmo, quando a gente dá uma “banda”, nós não damos sozinhos, só
com moradores de rua. A gente dá uma “banda” com os caras que estão
ali, estudando, mano. Eles estão estudando. E dizem bem assim: “salve
cartunista!”, que é pro Paulinho. “Salve roteirista!”, que é o Michel.

Bruno: Obrigado Michel. Acho que agora vocês podem contribuir falando
também sobre a pesquisa censitária. Alguns, por exemplo, participaram como
facilitadores. O que acharam desta experiência de envolvimento na pesquisa?
O que isso propiciou?

José Luiz: O envolvimento na pesquisa pra mim foi interessante, por-


que a gente teve oportunidade de falar com os “irmãos” que a gente
nem conhecia. Pra começar é por aí. Outra questão importante, que
eu tenho pra colocar é: por mais que se organize, por mais tempo que

206
tenha pra fazer uma pesquisa sobre contagem de pessoas que vivem em
situação de rua, jamais, de qualquer forma que se fizer, vai se chegar à
conclusão de que todos foram contados. Nós tivemos algumas dificul-
dades e algumas benfeitorias com a organização da pesquisa. A gente
encontrou algumas dificuldades. Uma delas, que mexeu muito com a
gente, foi ficar muito nas mãos dos centros de acolhimento, CRAS,
CREAS etc. Eles mesmos citavam pontos de referência para o mapea-
mento. Então, na realidade, o conhecimento do povo da rua foi meio
que desmerecido. Não digo totalmente. Mas não foi aquela expectativa
de ser considerado todo o conhecimento que a gente tem.

Bruno: Em que sentido este conhecimento não foi considerado? Onde e em que
tipo de trabalho? Seria legal falar como era o trabalho. E como era a partici-
pação dos facilitadores no planejamento deste trabalho?

José Luiz: Este trabalho de facilitador era um trabalho, na realidade,


de coragem, porque a gente se enfiava em lugares que não conhecia.
Começando por aí. E em situações adversas. A gente trabalhava de
manhã, de tarde, até certa hora da noite, em lugares que a gente não
conhecia, às vezes.

Carlos: Eu quero falar também. Bom, do trabalho da pesquisa, eu acho


que não posso dizer inútil, isso não foi. Porque eu acho que automa-
ticamente, a gente tirou aí de 30 a 40% do pessoal que mora na rua.
Por que de 30 a 40% que mora na rua? Pelas dificuldades que a gente
encontrava no trabalho, tanto com o pessoal que organizava as nossas
saídas e, também, pelo mapeamento que foi dado pelas instituições. Fo-
ram dados mapeamentos e, às vezes, as pessoas nem se encontravam
mais ali. E aí as pessoas nem se encontravam ali no mesmo lugar. E
porque, automaticamente, nós fizemos a pesquisa na mesma época que
a Força Nacional estava agindo aqui em Porto Alegre. Muitas pessoas
foram pra outras cidades, muitas pessoas foram pra Região Metropo-
litana, aqui na volta. Quer dizer, então, que nem todos estavam aqui.
Algumas pessoas são meio fugidas, outras meio acuadas. Algumas pes-
soas saíram do Centro da cidade, voltaram pras vilas, onde a gente ia

207
entrevistar e eles diziam pra nós que não moravam na rua, e sim na
vila. Até, por sinal, com medo de falar, porque sabe como é que está o
nosso mundo hoje e este governo do jeito que está, pensando, de repen-
te, que poderia ser até uma internação compulsória, essas coisas assim.
E a gente foi muito prejudicado, bastante prejudicado, na construção
desta pesquisa censitária.

Bruno: Por que vocês acham que é importante contar o pessoal da rua?

Carlos: Eu acho que é importante contar o pessoal da rua pra mostrar


pro governo, pra mostrar para essas políticas públicas que eles têm
morador de rua, que não tá fluindo nada, que nada acontece, que nada
progride, que as casas não tão dando conta, que os albergues ainda são
poucos, que os abrigos nem pensar, que os aluguéis sociais não estão
sendo pagos, que não tem política de moradia pra morador de rua ne-
nhum. A gente vem de uma ocupação do DEMHAB (Departamento
Municipal de Habitação) e de outros lugares, onde a gente estava lu-
tando por moradia e saímos de lá praticamente sem resposta, até hoje.
Então, eu acho que o bom da contagem seria pra mostrar pra essas
instituições, pro nosso governo, pra FASC, que lida com esse pessoal
que mora na rua, que dá assistência pra esse pessoal, pra dizer que está
precário e a coisa ainda, acho, vai piorar.

Bruno: Como é que foi, dentro desse contexto político, que vocês se envolveram
na pesquisa? Por que o Movimento da População de Rua e o Boca de Rua têm
interesse em participar da pesquisa?

Carlos: Na moral, o Movimento se envolveu na pesquisa mesmo era pra


fazer o trabalho esse pra contagem dos moradores de rua, nessa parte
acho que o Movimento se envolveu mais por causa disso. Porque até en-
tão era com o morador de rua, o Movimento tinha que está participando
junto do trabalho, pra depois poder ter um respaldo pra ti ir atrás dos
teus direitos. Eu acho que o Movimento mais se envolveu por causa dis-
so. Eles queriam nos pagar uma bolsa mínima, a gente não aceitou, por-
que pô, se a gente vai trabalhar igual aos alunos da UFRGS ou até mais,

208
entrando em locais que nem nosso amigo falou, que a gente muitas vezes
nem conhecia e o pessoal nem deixava nós chegar. Então, por que nós
iriamos receber menos? É sempre quando acontece isso é assim, quando
é pra dar uma oportunidade para o cara que mora na rua, as coisas não
fluem. Mas eu acho que foi mais por isso aí. E o Boca então, acho que foi
pra fazer mais uma denúncia no jornal, dizer que essa população que tá
na rua não tá sendo acolhida, não tá sendo “assistenciada”. Eu acho que o
único benefício que existe é isso aí, que foi pra comprovar que essa assis-
tência aí não tá dando conta da população de rua, não tá mesmo.

Por fim, algumas histórias...

Para finalizar nossa mensagem, deixamos duas histórias que


marcam a trajetória do jornal. Em “O grito”, comunicamos como o
logotipo do jornal foi produzido, a partir da criatividade de um inte-
grante. Em “Pequena Revolução”, mostramos como o jornal provoca
mudanças em meio a situações inesperadas. As histórias foram regis-
tradas pela jornalista Rosina Duarte e serão, também, detalhadas no
livro Incomuns Mortais – O direito à palavra e muito mais, que está
sendo editado e concluído pela ONG ALICE, responsável pelo jornal.

O grito

Chovia. Pouco, mas chovia. Quando a chuva era grossa, todo mundo
precisava que se abrigar embaixo das marquises, nas paradas de ônibus ou, na
pior das hipóteses, sob os guarda-chuvas descartáveis vendidos pelos camelôs
do centro a R$ 5,00. A gurizada recolhia nos lixos aquelas coisas pretas,
desengonçadas parecidas com urubus de asas quebradas, mas eficientes para
proteger da neblina ou do chuvisqueiro manso.
Naquele dia, porém, os pingos eram tão preguiçosos que não impediram
Riquinho de finalmente decidir-se a fazer o logotipo do jornal. Um mês antes
o nome “Boca de Rua” tinha sido concorrido com outras quatro sugestões e
vencido em uma votação apertada. Riquinho, pulso firme, apesar da loló, can-
didatou-se para desenhar as letras. Mas ele enrolava. Toda a semana tinha
uma desculpa. Naquele dia, apesar da chuva, acabou cedendo à pressão do

209
grupo. Como as reuniões do jornal eram feitas na praça, acomodou-se no chão
e transformou um banco de cimento em prancheta. Dez ou quinze minutos
depois o logotipo estava pronto. Apesar de um pouco respingado pela chuva,
era irretocável.
Na frente e no final das palavras, destacavam-se sinais de igualdade –
o maior desejo de quem clama por justiça. O “De” que unia as duas palavras
principais, lembrava tridentes de diabo e, também, a autodefinição, usada por
muitos dos meninos criados sem uma família, nem um teto - “nós somos uns
diabos”. E no centro de tudo, grande e vermelha, uma boca aberta. O dono ou
dona daquela boca não estava bocejando, nem cantando: estava gritando. Era
uma boca quase idêntica a da figura pintada por Münch no quadro célebre
“O grito”. Mas Riquinho nunca tinha visto uma reprodução da obra. Era o
grito de Riquinho. O grito daqueles 10 guris e gurias habitantes das praças,
das ruas, dos esgotos. Era a boca de todos eles gritando por socorro, gritando
em protesto, gritando por dignidade na rua, o único lar.

Pequena revolução

Antes mesmo dos integrantes do Jornal Boca de Rua pisarem o pri-


meiro degrau do gigantesco prédio, em forma de caixa forte, do Santander
Cultural, os seguranças bloquearam a porta, guardada por colunas coríntias
de 12 metros, como goleiros diante do pênalti. Pareciam os homens de preto
do filme MIB – com quem, aliás, tinham inegável semelhança – ao farejarem
extraterrestres.
- Sim??? (querendo dizer: Fora! Isto não é lugar para vocês!).
À frente do grupo, o Bocão respondeu rápido e seguro.
- A gente veio para a palestra. Somos os autores e os artistas do filme que vai
passar agora.
Os seguranças calaram. O Bocão entrou majestoso, cabeça erguida, an-
dar gingado de B-boy segurando pela mão a namorada Michelle – linda,
com seu metro e meio, rosto marcada por uma navalhada, cachos escuros de
legítima ovelha negra urbana. Logo depois vinha o Ceco – que há poucos
anos era analfabeto e, depois de brilhar na escola, virou um tribuno, capaz
de palestrar diante de políticos e autoridades. A Chineza fechava o cortejo.
Kaingang, travesti e sem-teto, era um compêndio para os preconceituosos de

210
plantão, ignorantes a respeito do seu talento de poeta, sua melancólica lucidez
e sua serenidade, herdada dos ancestrais.
Dentro do edifício encontraram os companheiros, todos integrantes
do Jornal Boca de Rua. Boa parte deles tinha participado do documentário
apresentado no cinema do Santander naquele final de tarde.
Aplausos calorosos explodiram ao final da projeção. Os atores-diretores
dirigiram-se ao palco e falaram sobre o trabalho com calma, clareza e hones-
tidade, enfrentando perguntas polêmicas sem gaguejar. Tudo era simbólico.
Estavam dentro de templo da cultura que, no passado havia sido um templo
do poderio econômico, um banco. E mais, o cinema fora instalado no interior
do monumental cofre bancário. O cenário era, portanto, a simbiose perfeita
entre a cultura e o dinheiro. E os moradores de rua palestravam para profes-
sores e estudantes universitários, que tinham comprado ingressos para assistir
ao filme realizado por deles. Mundo virado de cabeça para baixo. Ou, como
definiria mais tarde o jornalista Sílvio Ferreira - que fala pouco, mas sempre
tem a palavra certa na hora certa: foi uma pequena revolução.

211
VIOLÊNCIA CONTRA A POPULAÇÃO EM
SITUAÇÃO DE RUA EM PORTO ALEGRE:
CONSIDERAÇÕES SOBRE AS FORMAS
INSTITUCIONAIS E SIMBÓLICAS
DE OPRESSÃO COTIDIANA
MeliSSA de MAttoS PiMentA
joSé vicente tAvAreS doS SAntoS

O espaço urbano, em sua complexidade estrutural, pode ser


apropriado de inúmeras formas que vão além dos limites da ocupação
física de edificações e estruturas de trânsito de pessoas e veículos. É
nos diferentes usos e formas de estar na cidade que se podem obser-
var como se estruturam as relações entre grupos sociais e instituições
na produção da vida cotidiana. Identificar os processos de produção
dos lugares, seus significados e representações sociais, é uma forma de
apreender como as interações e os conflitos são reproduzidos a partir
da sua relação com o espaço e suas múltiplas categorizações. A cidade e
os diferentes espaços que integram o tecido urbano configuram, assim,
um lócus do exercício de poder entre indivíduos e grupos hierarquica-
mente distintos que, embora possam ser abrigados dentro da moderna
concepção de cidadania, não necessariamente têm acesso e usufruem
das mesmas garantias dos seus direitos.
Dentre os grupos sociais que integram a cidade e constituem
sujeitos de investigação sociológica, figuram as “pessoas em situação
de rua”1, categoria social complexa e em construção, cujo lugar na coti-
dianidade transita entre o visível e o invisível. Muitas vezes vistos com
1 O uso do termo “população em situação de rua” busca superar as limitações de
outros termos como “morador de rua”, que tendem a perpetuar a percepção desta
população como um grupo fixado numa condição específica, caracterizada por um
conjunto de carências e enfatizar “a situacionalidade da experiência nas ruas”, “defi-
nindo-os a partir de uma concepção do habitar a rua como uma forma de vida possí-
vel” (Schuch e Gehlen, 2012, p. 17). Assim, procura-se visibilizar as múltiplas formas
e estilos de vida que podem ser identificadas no espaço da “rua” sem, contudo, es-
sencializar essa condição e apontar para as possibilidades de entrar, ficar, estar, usar,
reivindicar e também sair da rua.

213
indiferença, mas, sobretudo, com suspeita e desconfiança, aqueles que
fazem da rua seu local de moradia ou permanência durante parte do
dia, ainda que temporariamente, são frequentemente vítimas de formas
perversas de violência física, institucional e simbólica. Segundo Tava-
res dos Santos (2004), podemos compreender a violência

[...] como um ato de excesso, qualitativamente distinto, que se ve-


rifica no exercício de cada relação de poder presente nas relações
sociais de produção social. A ideia de força, ou de coerção, supõe
um dano que se produz em outro indivíduo ou grupo social, seja
pertencente a uma classe ou categoria social, a um gênero ou a
uma etnia, a um grupo etário ou cultural. Força, coerção e dano,
em relação ao outro, enquanto um ato de excesso presente nas
relações de poder (TAVARES DOS SANTOS, 2004, p. 8).

A violência contra pessoas em situação de rua não pode ser expli-


cada apenas pela deficiência dos aparatos de controle social do Estado
em garantir sua segurança e proteção, mas é ela própria resultado de
políticas públicas e ações praticadas por agentes públicos, como por
exemplo, as ações de “limpeza urbana”:

[...] trata-se de uma função da limpeza pública municipal que


consiste na retirada das habitações e arranjos informais desse
segmento, assim como dos materiais recicláveis que guardam
para vender, forçando-os a deslocamentos espaciais. Trata-se de
uma atividade sistemática, exercida pelo poder público, ampara-
da pela força policial e que endossa as representações funcionais
sobre o uso das ruas da cidade (FRANGELLA, 2005, p. 220).

O imaginário social comumente concebe as pessoas que fazem


da rua o seu local de permanência, de moradia e sobrevivência como
um grupo homogêneo, composto por indivíduos dotados de certas ca-
racterísticas imediatamente identificáveis, especialmente a pobreza, a
utilização de espaços públicos para dormir, comer, consumir bebidas
alcóolicas e drogas e fazer as necessidades fisiológicas, reduz a percep-
ção do que se faz e de como se utiliza o espaço da rua à falta de recursos,
à falta de domicílio próprio ou regular e à falta de higiene. É como se

214
estivessem “imersos em outro mundo, um lugar privado construído a
partir das fronteiras corporais da sujeira, do corpo abjeto que assusta
e afasta” (FRANGELLA, 2005, p. 209), criando assim, uma enorme
distância social que separa o “morador de rua” e o “domiciliado”, de tal
forma que “tudo se passa como se elas não dispusessem de nenhuma
forma de reconhecimento social positivo pautada em seus gestos ou
suas formas de se vestir e falar” (GRAEFF, 2012, p. 762).
Para Moura Jr. et. al., (2013, p. 20), as representações sociais de
senso comum sobre esse segmento oscilam entre dois polos em oposi-
ção: a pobreza e o perigo.

No entanto, apesar das pessoas em situação de rua estarem imer-


sas em uma situação de extrema pobreza, elas são preponderan-
temente reconhecidas a partir da identidade social de morador
de rua com os papeis sociais de drogado, de criminoso, de violen-
to, de sujo e de doente.

Por um lado, essas concepções situam esses indivíduos em uma


condição comum de “carência” de recursos financeiros, de moradia, de
laços sociais e familiares, o que reforça a sua percepção como “vítimas”,
seja das condições desiguais de existência, da precariedade da rede de
proteção social do Estado ou dos infortúnios da vida. Por outro lado,
situam-nos em uma condição de “anormalidade”, o que os torna uma
“ameaça” à ordem social, na medida em que suas diferentes formas de ser
e estar no espaço urbano não são reconhecidas como legítimas. Nessa
perspectiva, a reiteração da metáfora dos lados opostos coloca as pessoas
em situação de rua e os domiciliados em dois grupos antagônicos: “o pri-
meiro representado por atores sociais para os quais se reconhece a legíti-
ma demanda pelo espaço público; o segundo composto por atores sociais
para os quais se nega o direito à cidade” (RESENDE, 2015, p. 121).
À condição precária dos corpos, à decadência material e à fra-
gilidade psicossocial soma-se um imaginário de ameaças sociais aos
estabelecidos (VALENCIO et. al., 2010) que se estendem, inclusive, aos
espaços onde ela se localiza (MOURA Jr. et al., 2013), gerando práticas
de discriminação e estratégias de expulsão de determinados espaços:

215
São tubos de água que mantêm as calçadas molhadas, ferragens
pontiagudas, gradis que cercam espaços desocupados sob mar-
quises, pisos irregulares, superfícies inclinadas e luzes, que se
aliam a estratégias menos camufladas como guardas noturnos e
ameaças explícitas (VARANDA e ADORNO, 2004, p. 65).

Práticas dissuasivas que, no limite, operam no cerceamento e na


interdição de espaços públicos, interferindo no cotidiano dos moradores
de rua e oprimindo de forma mais ou menos explícita todo um conjunto
de pessoas que não dispõem dos recursos mais elementares para a preser-
vação e manutenção da sua dignidade. Além disso, não são prerrogativa
apenas da iniciativa privada, mas também formas de violência institucio-
nal perpetradas pelo próprio Estado, como “o fechamento de banheiros
públicos ou interdição de vias e praças para passar as noites” que, em seu
conjunto, “materializam representações de ameaça criadas a respeito des-
se segmento sobre a legalidade da cidade que se pretende funcional e he-
gemônica” (FRANGELLA, 2005, p. 201). Tais estratégias, que vão desde
a construção de prédios sem marquises à colocação de grades em torno
de igrejas e árvores, para impedir que as pessoas ali durmam ou urinem,
constituem-se verdadeiras “tecnologias de expulsão” e configuram o que
veio a se denominar “arquitetura anti-mendigo” (FRANGELLA, 2005,
p. 201). Com base em justificativas como o “mau cheiro”, o “incômodo
visual” e a “ameaça de maculação dos pontos turísticos e destruição do
patrimônio histórico”, reitera-se sua imagem já estigmatizada de “polui-
dores do espaço urbano” (FRANGELLA, 2005, p. 202-3)
O Estado mesmo pode alternar entre o foco nos direitos huma-
nos das pessoas em situação de rua e o foco da segurança pública, “na
qual o grupo é fonte de ameaça à ordem pública ao invés de ser visto
como ameaçado por esta” (VALENCIO et. al., 2010, p. 59). Tanto a
falta ou a insuficiência de serviços adequados e especializados, como
também medidas de interdição, restrição e controle dos usos do espaço
público, configuram formas de violência institucional e simbólica que
contribuem para a reprodução de desigualdades e para a vulnerabiliza-
ção de determinados grupos sociais.
Estar na rua é estar vulnerável às variações climáticas, aos des-
confortos da falta de abrigo e privacidade, mas também ao insulto

216
moral e à discriminação, à rejeição velada ou explícita dos que têm
domicílio e, inclusive, dos profissionais dos setores públicos que se
ocupam de quem não tem moradia regular (FRANGELLA, 2005). A
vulnerabilidade, a experiência da violência e da discriminação afetam
o corpo, a identidade e a percepção de mundo2 das pessoas em situação
de rua. Não por acaso, despertam sentimentos de medo e insegurança
e colocam essa população em um estado constante de alerta e tensão.
A conflitualidade se manifesta não apenas entre aqueles que possuem
habitação regular e os moradores de rua, mas também entre a própria
população3, na disputa por espaços de convivência, abrigo e obtenção
de recursos.
Em pesquisa recente realizada em Porto Alegre4, verificou-se
que a violência está fortemente presente na experiência cotidiana das
pessoas em situação de rua. Quando questionados acerca dos principais
aspectos negativos da vivência na rua, os 21,5% dos entrevistados se
referiu à “discriminação de estar na rua”. Porém, o que mais chama
atenção em relação às características negativas da situação de rua, mais
do que a discriminação e a estigmatização, é a sensação de estar vul-
nerável à violência em suas mais variadas formas. Entre os elementos
de que menos gostam na rua, 19,8% dos entrevistados apontaram a
violência, e 6,2%, a insegurança.
2 “Os efeitos do desconforto, dos mal-estares e das dificuldades de higiene repercu-
tem imediata e sistematicamente na hexis corporal que, por sua vez, se revela cada vez
mais suscetível a experiências de humilhação e de estigmatização social” (GRAEFF,
2012, p. 759).
3 “As manifestações de conflito violento são muito evidentes também na convivência
entre os moradores de rua. Discussões adormecidas, guardadas, são trazidas à tona,
provocadas por motivos pequenos e fúteis, e abrem espaço para o enfrentamento da
agressão física” (FRANGELLA, 2005, p. 218).
4 A pesquisa quanti-qualitativa da população adulta e infanto-juvenil de Porto Ale-
gre, foi realizada em 2016 por uma equipe de pesquisadores e consultores da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em parceria com a Fundação
de Assistência Social e Cidadania e financiamento da Prefeitura Municipal de Porto
Alegre, RS. Teve por objetivo cadastrar a população adulta, adolescentes e crianças
em situação de rua e realizar um levantamento das suas condições de vida. Para isso,
contou a realização de visitas etnográficas a instituições prestadoras de serviço às
pessoas em situação de rua, grupos focais com trabalhadores da assistência social e
também moradores de rua, a contagem e cadastramento da população adulta e infan-
to-juvenil, bem como a aplicação de um questionário a uma amostra de 456 indivídu-
os adultos, de ambos os sexos, que fazem da rua o seu lugar de moradia e produção
social da existência.

217
Em relação aos principais medos, os entrevistados se referem a
diferentes tipos de violência, especialmente física, incluindo a violência
letal e as agressões, que podem ser agressões físicas ou verbais. O medo
de ser assassinado, o que pode ocorrer especialmente enquanto estão
dormindo, foi manifestado por 13,2% e 8,5% dos entrevistados. Um em
cada 5 entrevistados, portanto, tem medo de morrer de forma violenta,
incluindo aí o medo de ser queimado vivo5. Em seguida, aparecem as
agressões, que superam inclusive o medo da polícia. Todos esses me-
dos são fundamentados nas experiências de violência acumuladas pelos
entrevistados, que se manifestam no conjunto de violências praticadas
cotidianamente e também em violências que marcaram suas trajetórias
de vida em relacionamentos anteriores, no âmbito familiar e das rela-
ções conjugais.
De fato, a grande maioria dos entrevistados (60,6%) afirmou já
ter sofrido algum tipo de violência, sendo que 47,5% foi vítima de vio-
lência mais de uma vez. Quando perguntados sobre quem praticou mais
vezes, os entrevistados se referiram, em primeiro lugar, a agentes do
estado, nomeadamente policiais da Brigada Militar, mas também poli-
ciais civis e agentes municipais, como funcionários do Departamento
Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) e da Secretaria Municipal do
Meio Ambiente (SMAM).
Com efeito, quando perguntados se já haviam sido detidos pela
polícia, 70,5% dos entrevistados afirmaram que sim, sendo que 23,5%
uma vez e 47,0% mais de uma vez. Entre os principais motivos de de-
tenção estão os delitos relacionados ao patrimônio, como roubos, as-
saltos, furtos e danos foram os motivos mais frequentemente citados
(26,5%). Porém, quase um quarto (24,2%) dos entrevistados relatou
ter sido detido pelo fato de estar na rua, por engano ou denúncias da
vizinhança, ou seja, sem terem cometido um delito, estando sujeitos,
portanto, à estigmatização que a situação de rua provoca. A rotulação
das pessoas em situação de rua como “suspeitas” ou como prováveis
5 Esses dados refletem constatações de pesquisas anteriores. Analisando os resul-
tados do levantamento nacional realizado em 2008, abrangendo 71 municípios, VA-
LENCIO et. al. (2010) destacaram, entre as formas que mais empregadas no ex-
termínio, “a prática de atear fogo (nove casos) nas pessoas, nos locais onde estão
(casa abandonada, por exemplo) ou em seus pertences (nos colchões em que estão
dormindo etc.)” (p. 63).

218
criminosos, especialmente pela polícia, aparece nas respostas daqueles
que responderam terem sido detidos por outros motivos, por serem
suspeitos (12,1%) ou por preconceito (6,1%).
Além da violência institucional, cometida pelos próprios agen-
tes do estado, as pessoas em situação de rua também estão sujeitas à
violência cometida por outros em condições semelhantes. Os conflitos
entre as pessoas que disputam os espaços e recursos disponíveis na
rua, destacados nos aspectos negativos e nos medos manifestados nas
respostas anteriores, também aparecem nas violências cometidas por
outros grupos de moradores de rua, que aparecem em primeiro lugar
para 23,6% e em segundo lugar para 20,1% dos respondentes.
As violências sofridas pela população em situação de rua se mani-
festam ainda de formas simbólicas, nos processos de rotulação e estig-
matização, pelas pessoas que têm moradia regular (casas, apartamentos,
imóveis próprios ou alugados) ou são proprietárias e/ou trabalhadoras
em locais públicos, especialmente comércios. A hostilidade em relação
à presença de pessoas dormindo, ocupando, habitando e/ou fazendo
outros usos dos espaços públicos contíguos, em frente ou imediatamen-
te próximos de lojas, restaurantes, bancos, supermercados etc., resulta,
muitas vezes, na adoção de estratégias veladas e também explícitas de
invisibilização, cerceamento e também expulsão propriamente dita. A
análise das situações e dos locais aos quais os entrevistados já tiveram
o seu acesso barrado ou impedido, revelou um percentual significativo
de experiências negadoras do reconhecimento social destes indivíduos
como cidadãos com direitos equivalentes aos demais, sobretudo em re-
lação aos espaços públicos, como praças, parques e transportes coleti-
vos. Outros espaços onde são sistematicamente barrados ou impedidos
de entrar são os estabelecimentos comerciais, shoppings e bancos.
As barreiras sociais enfrentadas pelas pessoas em situação de rua
se tornam ainda mais graves quando consideramos que esses impe-
dimentos podem vir a se concretizar no próprio cerceamento do di-
reito de ir e vir. Cerca de 45% dos entrevistados afirmaram já terem
sido expulsos de algum lugar, sendo que, das 171 respostas registra-
das, 36,5% se referiam a locais e órgãos públicos, como ruas, calçadas,
praças, parques, marquises e até mesmo hospitais e postos de saúde.

219
Em seguida, figuram os estabelecimentos comerciais, incluindo bancos
(21,1%). É importante ressaltar que, muitas vezes, os entrevistados não
se encontravam dentro dos estabelecimentos, mas estavam na frente da
loja ou do banco e foram expulsos, o que é revelador das dinâmicas de
apropriação do espaço público que interferem diretamente nas possibi-
lidades e formas de ser e estar na cidade.
Os resultados perversos dessas práticas aparecem nas entrevistas
na percepção dos informantes em relação à forma como se sentem con-
siderados e tratados pela população de Porto Alegre em geral. Quando
perguntados a respeito de: “Como a população de Porto Alegre trata as
pessoas que moram/vivem nas ruas” os entrevistados foram confron-
tados com a possibilidade de configurar a relação entre eles e outras
populações da cidade em termos das seguintes variáveis: desconfiança,
preconceito, medo, indiferença, respeito e solidariedade.
Os tratamentos negativos foram consideravelmente mais fre-
quentes que os tratamentos positivos. As categorias “com desconfian-
ça” e “com medo” foram indicadas por 82,4% e 80,7%, respectivamente,
dos entrevistados. O preconceito em relação a essa população também
é bastante elevado, aparecendo em 79,4% das respostas positivas. Mais
da metade, 51,8%, afirmou ser tratados “sem respeito”. Por outro lado,
ações como as doações de roupas, alimentos e dinheiro, distribuição de
comida, entre outras iniciativas assistenciais e de caridade, por parte de
organizações não governamentais, voluntários, igrejas e outras institui-
ções, ajudam a compor o percentual significativo de percepções de “soli-
dariedade”, vivenciadas por 58,2% dos respondentes. Trata-se da única
categoria positiva reconhecida pelos entrevistados, que se contrapõe à
indiferença com a qual são tratados no dia a dia. Contudo, prevalecem
as situações em que a desconfiança e o medo, subjacentes à “suspeita”
em relação ao tipo social enquadrado na categoria de “morador de rua”,
geram situações concretas de discriminação com base no preconceito.
A violência contra a população em situação de rua não é um fe-
nômeno recente. Pelo contrário, ela pode ser identificada no âmbito das
violências contra grupos dominados, observada desde os primórdios
da colonização brasileira. Ela se manifesta no conflito entre grupos
dominantes, representados pelos senhores de escravos, proprietários

220
(de terras, domicílios, comércios) ou aqueles que detêm a prerrogativa
de mando (como a polícia, por exemplo) e grupos sociais hierarqui-
camente inferiores, como mulheres, crianças, indígenas, entre outros,
incluindo-se aí a população em situação de rua.
No imaginário social, as representações sobre o espaço da “rua”
estabelecem fronteiras simbólicas que delimitam práticas aceitas, em
contraposição às que são condenadas. No célebre ensaio “A Casa e a
Rua”, Roberto Da Matta (1997) explorou as dimensões simbólicas des-
te par em oposição, analisando como são construídas as regras infor-
mais e implícitas do que é próprio de cada espaço:

Por tudo isso, não se pode misturar o espaço da rua com o da


casa sem criar alguma forma de grave confusão ou até mesmo
conflito. Sabemos e aprendemos muito cedo que certas coisas só
podem ser feitas em casa e, mesmo assim, dentro de alguns dos
seus espaços (DA MATTA, 1997, p. 50).

Desta perspectiva, pode-se dizer que certas práticas, como dor-


mir, comer, urinar, defecar e manter relações sexuais não devem ser
feitas na “rua”, à vista dos outros, o que torna a apropriação dos espa-
ços públicos abrangidos pela categoria “rua” – como praças, marquises,
viadutos, calçadas e outros – interditos para o seu uso nas funções pró-
prias da “casa”. Além disso, simbolicamente a rua é o espaço em “que
devem viver os malandros, os meliantes, os pilantras e os marginais em
geral” (Da Matta, 1997, p. 55) e, portanto, lugar de risco e perigo em
oposição à proteção oferecida pela casa. Daí a percepção de “anormali-
dade” da apropriação dos espaços públicos e o seu não reconhecimento
como formas viver e estar no mundo. A contradição está no fato de que
a rua torna-se lugar de conflito entre aqueles que fazem uso dela na
condição de “casa” e aqueles que se apropriam dela como extensão de
seus domicílios e estabelecimentos comerciais, fechando acessos a ruas
sem saída em zonas residenciais, impedindo a permanência de pessoas
nas calçadas em frente a lojas e bancos, entre outras práticas. É nessa
relação dinâmica que se podem observar os conflitos que emergem das
diferentes relações de poder entre os grupos sociais e suas diversas
formas de ocupação dos espaços urbanos.

221
Historicamente, a presença de grupos itinerantes que ocupam e
transitam pelo espaço urbano não é estranha; a questão que se coloca
é como esses grupos são identificados, percebidos e tolerados. Em uma
perspectiva histórica, é possível perceber, no contexto brasileiro, a so-
breposição de estereótipos e estigmas sobre determinados indivíduos,
que fundamentaram formas de classificação e controle com base em
princípios eivados de preconcepções moralizantes e estigmatizantes
sobre os usos e formas de apropriação do espaço da rua.
A partir de um estudo histórico sobre legislações e práticas de
repressão “à vadiagem”, Teixeira et. al. (2016) procurou identificar os
sujeitos inseridos nessas classificações, que os transformaram, paulati-
namente, em “alvo simbólico preferencial de controle e repressão” (p.
381). Inicialmente, os vadios eram aqueles que não tinham senhores
ou meios de ganhar a vida e, geralmente eram presos e açoitados. Na
verdade, estavam incluídos nessa categoria todos aqueles que não con-
seguissem se inserir nas formas de existência do mundo colonial, e que
perambulavam pelas cidades, trilhas e caminhos, sem ocupação certa.
No Império, mendigos, vagabundos e ébrios eram obrigados a
assinar o “termo de bem viver”6 e corrigir seus modos de vida, para isso
empregando-se formalmente ou então arranjando ocupação remune-
rada legitimamente reconhecida – preferencialmente, trabalho formal
que não fosse exercido nas ruas. Na realidade, esse conjunto de pessoas
qualificadas de formas diferentes eram oriundos da estrutura escravo-
crata da colônia e estavam ligadas a ela inescapavelmente. A ociosidade
dos escravos libertos passou a ser vista, após a Abolição em 1888, como
ameaçadora e partir daí emergiram iniciativas de repressão e controle
das “classes ditas perigosas”, incluindo mendigos e vagabundos, que
eram vistos como “degenerados.”
De um lado, essas concepções refletem mudanças nos padrões de
civilidade e de organização dos espaços públicos nos processos de urba-
nização. As medidas de reordenamento e saneamento das cidades, que
caracterizaram as principais intervenções urbanas no século XIX, fazem

6 O “termo de bem viver” foi fixado no Código de Processo Criminal de 1832 e


“obrigava o indivíduo a viver ‘decentemente’, ordenamento que embutia um objetivo
corretivo, pois previa o confinamento para aqueles que rompessem com o termo”
(TEIXEIRA et. al., 2016, p. 384).

222
parte do intenso processo de modernização e expansão dos modelos “civi-
lizatórios” europeus. Segundo Elias (1993), os processos de interiorização
do controle das funções corporais, do instinto e das emoções integram
um processo de longa duração de incorporação de comportamentos sociais
adotados na corte pelas aristocracias europeias, os quais paulatinamente
foram impostos às classes subalternas. Comportamentos em relação ao
cuidado com o corpo e os modos de apresentação social, adotadas em
deferência ao poder do rei, tornaram-se poderosas formas de distinção
social entre grupos que mantinham relações hierárquicas entre si.

Tais exigências sensíveis caracterizam a civilidade. A acentuada


delicadeza das elites, assim como o desejo de manter- à distância
o dejeto orgânico, que lembra a animalidade, o pecado, a morte,
a necessidade de distinção em relação ao “imundo zé-povinho” (o
que indica um novo estatuto claro de repulsa), são sentimentos
que instigam às práticas higiênicas (PIMENTA e OLIVEIRA,
1999, p. 143).

Essas “sensibilidades” explicam, em parte, a estigmatização dos


moradores de rua cujos corpos precarizados, transformados negativa-
mente pelas condições sociais nas quais se inscrevem, “causam mal-estar”
(GRAEFF, 2012, p. 764). Posteriormente, esses sentimentos passaram a
ser justificados cientificamente de uma perspectiva higienista, na qual a
necessidade de se manter a limpeza é entendida como medida de saúde
pública. A nova “patologia social” identifica no mau-cheiro, na sujeira,
na falta de asseio a origem das doenças e das epidemias. Por essa razão, é
“importante abolir o nauseabundo cheiro orgânico que atesta a presença
da morte” e “fazer com que o povo perca sua fetidez animal, mantendo-o
à distância dos excrementos” (CORBIN, 1987, p. 203).
De outro lado, as medidas higienistas, que se voltaram também
contra as pessoas em situação de rua, se sobrepuseram também às pre-
concepções sobre as formas de estar na rua e produzir a existência
neste espaço, numa perspectiva moralizante que “também respondia ao
conjunto de transformações que o país atravessava, expresso na emer-
gência do trabalho livre, da nova ordem econômica e do processo de
urbanização” (TEIXEIRA et al., 2016, p. 386).

223
Assim, a modulação de comportamentos das categorias sociais
enquadradas sob o estereótipo estigmatizante do vadio engendraram
as práticas de denúncia, perseguição e controle, especialmente por
meio da imposição do trabalho. Foram criadas instituições e locais de
abrigamento especificamente “destinados a segmentos sociais que não
poderiam mais permanecer no meio urbano, engendrando-se a lógi-
ca de higienização do espaço público pela remoção dos indesejáveis”
(TEIXEIRA et. al., p. 387). As práticas correcionais paulatinamente
passaram das mãos dos juízes para as forças policiais e, sob o argumen-
to de manutenção da ordem pública, frequentemente tenderam a ser
destinadas a determinados tipos sociais, mais vulneráveis ao arbítrio e
ao abuso de poder, cujas condutas e características caíam nas classifica-
ções morais das classes dominantes.
Forma-se em torno da figura do “vadio” um conjunto de repre-
sentações que se opõem aos valores prevalecentes acerca do mundo do
trabalho. Essas representações se estendem às pessoas em situação de
rua, “frequentemente consideradas como improdutivas, inúteis, pregui-
çosas e vagabundas,” de tal modo que os que não têm emprego formal
são rotulados como “anormais” ou “desviantes,” “ou seja, a culpa da
ausência de trabalho recai sobre a própria vítima” (MATTOS e FER-
REIRA, 2004, p. 49).
As representações “que responsabilizam as pessoas extremamente
pobres, exclusivamente, por sua situação” (RESENDE, 2015, p.114) se
fortalecem em condições de modernidade tardia, caracterizada por pro-
cessos de individualização (BECK e BECK-GERNSHEIM, 2002) e de
expansão de formas de violência difusa que, no século XXI, são legitima-
das “pela consciência coletiva, instituindo-se como norma social, ainda
que controversa e polêmica” (TAVARES DOS SANTOS, 2004, p. 3). As-
sim, a própria forma como as pessoas em situação de rua são percebidas
influencia a produção discursiva acerca da vulnerabilidade social, obli-
terando qualquer possibilidade de apreensão dos processos que levam a
essa condição. Assim, a naturalização da situação de rua, que deixa de ser
percebida como um problema, e a sua concepção como “ameaça” passível
de expurgo, “pode ter como efeito que deixe de ser percebida como uma
injustiça à qual se deve responder com ação política” (RESENDE, 2015,

224
p. 114). A questão não é apenas estrutural, mas também discursiva e re-
produzida pelo discurso (da mídia, do senso comum).
As dificuldades de integração dessas pessoas nas formas de traba-
lho “regular”, bem como a falta de endereço fixo e de um comprovante
de residência dificultam, ou mesmo inviabilizam, o acesso ao conjunto
de direitos trabalhistas, previdenciários e jurídicos que são prerroga-
tivas da cidadania formalizada ou “regulada” (SANTOS, 1979), repre-
sentada pela posse de documentos, domicílio e registro em carteira.
Isso contribui para a que a população em situação de rua muitas vezes
ocupe um lugar subalterno ou condição de sub-cidadania, onde não
apenas seus direitos não são reconhecidos, como também são sistema-
ticamente violados.
Mais grave ainda é a sistemática sobreposição de estigmas so-
ciais, cultural e historicamente construídos que, no limite, contribuem
para a estreita e perversa associação das pessoas em situação de rua
com a delinquência, a criminalidade e a violência.

225
Referências

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227
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA
E IMAGINÁRIO ESCOLAR:
MEMÓRIAS DA ANTIEDUCAÇÃO

AlexAndre SilvA virGínio


ivAldo Gehlen
MeliSSA de MAttoS PiMentA
PAtrice Schuch
MAuro MeirelleS

Os estudos de sociologia da educação envolvem, de modo geral,


as implicações, mais ou menos recíprocas, das dinâmicas sociais nos
processos de escolarização formal. Neste âmbito, figuram trabalhos
que procuram desde assinalar a dimensão reprodutiva da escola que,
por meio de um currículo marcado pela violência simbólica, reforça a
estrutura de poder desigual entre os grupos sociais, até aqueles que,
em outro espectro, exaltam o caráter emancipador do fator escola, no-
tadamente no que engendra de possibilidades transformadoras, seja
nos contextos socializadores, seja nas subjetividades em formação
(PEREGRINO, 2012; VIRGÍNIO, 2012).
Em meio às ambiguidades que possam figurar neste debate, pou-
cas dúvidas se colocam quando a questão é reconhecer que o desempe-
nho escolar brasileiro encontra-se muito aquém do razoável. De fato,
a experiência escolar revela um desencaixe entre seu currículo e as
mudanças sociais, culturais e tecnológicas em curso. O resultado é uma
realidade marcada por desigualdades de toda ordem e cuja equação
implica em um sistema educativo que favorece, tendencialmente, os já
favorecidos. Pode-se afirmar que o contexto educacional ainda é mar-
cado pelo velho dualismo escolar, ou seja, ensino de qualidade para os
bem aquinhoados e escola pobre para os deserdados da sorte (CAS-
TRO; TAVARES JR., 2016; COSTA; ALVES; MOREIRA e SÁ, 2013;
DAYRELL, 2012; TEIXEIRA, 2007; FREITAS, 2009).

229
De fato, ainda termos realidades escolares profundamente alicerça-
das no ensino propedêutico, na desvinculação entre conhecimento cotidia-
no e científico; pela imposição de conteúdos a partir de certa lógica discipli-
nar; com tempos e espaços rígidos; com critérios de sucesso definidos pela
capacidade de reprodução de textos, enunciados e fórmulas estereotipadas,
bem como a imposição de comportamentos standard e; baseada em uma
aprendizagem mecânica que pouco ou nada pode servir de referência para
outros contextos e/ou situações diferentes daquelas previstas nos manuais
de ensino. Além disso, a quantidade do conhecimento que se supõe que
deveria ser ensinado não tem levado em consideração a capacidade e o
ritmo de aprendizagem dos alunos. O resultado, em especial durante o en-
sino fundamental, é uma situação em que o educando acaba por aprender,
e como os indicadores nacionais tem revelado, quase nada de quase tudo
(CANÁRIO, 2006; DEMO, 2004; ZABALA, 2002; TEIXEIRA, 2000).
Hoje, a média de escolaridade da população, por exemplo, é de
10,7 anos. Convivemos com uma população de 56 milhões de brasilei-
ros, com mais de 18 anos, que não possui sequer o ensino fundamental
completo (INEP, 2013). Isto é tão mais dramático se considerarmos
o fato de que, nos últimos 8 anos, as matrículas da EJA (Educação de
Jovens e Adultos) passaram de 5 milhões para 3,4 milhões, uma redu-
ção de 32,5%. No que se refere aos jovens de 15 a 17 anos, 2,8 milhões
não frequentam a escola. Dos que estudam nesta faixa etária, 46% são
oriundos do quartil mais pobre da população. Já os 25% da população
mais rica conta com 75% de seus jovens matriculados. Como esperar
melhor resultado em um sistema onde 70% das crianças de 0 a 3 anos
não tem acesso à educação infantil. Dos que estão matriculados, 22,4%
pertencem aos 25% mais pobres da população enquanto que os 25%
da população mais rica dispõe de 51,2% das matrículas. Em termos de
infraestrutura, basta assinalar que 64,5% das escolas que atendem os
anos iniciais do ensino fundamental não dispõem de quadra de esporte.
Nos últimos anos desta etapa de ensino, incomoda o fato, além de ou-
tras deficiências, de haver escolas (26,2%) que não possuem biblioteca
ou sala de leitura (INEP, 2017; TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2015).
O que estes indicadores demonstram é que no Brasil, para uma
imensa maioria da população, a educação ainda é um direito negado. Por

230
decorrência, a negligência em relação à formação educacional da popula-
ção compromete, amiúde, a constituição dos demais direitos de cidadania,
sejam eles políticos, sociais, econômicos, culturais ou ambientais. E aqui
não se trata do direito a qualquer educação. Como um direito inalienável
e intransferível, o conteúdo da educação refere-se a uma disposição social
destinada a potencializar as capacidades humanas e as liberdades subs-
tantivas que, uma vez relacionadas, amplificam as possibilidades dos in-
divíduos de controlar seus destinos e/ou de ajudar uns aos outros (SEN,
2000). Isto implica oferecer a cada pessoa conteúdos culturais, cogniti-
vos, sociais e afetivos que potencializem sua compreensão do mundo de
modo que possa, além de exercer seus direitos e deveres como cidadão,
melhor se integrar aos tecidos social, político, cultural e profissional.
Nesta direção, educar, nos sistemas de ensino, impõe o desafio de ter pro-
jetos curriculares multiculturais, cuja centralidade esteja no contato com
fatos realmente fundamentais na história e da cultura de grupos muito
diferentes (TORRES SANTOMÉ, 2013).
Ainda que apresente propriedades singulares, a população que
tem dificuldades em vivenciar os termos desta educação situa-se no
que Jessé Souza (2009) nominou de “ralé estrutural”. Essa classe, que
ocupa a base de nossa pirâmide social, congrega como características:
baixa incorporação de disposições como o autocontrole, o pensamento
prospectivo, além de socialização em um ambiente de desestruturação
familiar. O mesmo autor (SOUZA, 2006) assevera que a legitimação da
desigualdade no Brasil funda-se na imposição do domínio da razão e/
ou do trabalho intelectual como critérios definidores do acesso, legíti-
mo, a todos os bens e recursos.
Por este prisma, e considerando o campo educacional, estes são
setores sociais que, uma vez marcados por um habitus precário (SOU-
ZA, 2004), próprio de personalidades, disposições e comportamentos
distantes do que a sociedade considera passível de reconhecimento
social, chegam à escola sem apresentar aqueles atributos requeridos
pelo sistema de ensino (autonomia, espírito de sacrifício, capacidade de
expressar suas emoções, de atenção ou de acatar ordens, iniciativa, au-
toconfiança, autoestima, disciplina, concentração, autocontrole, dispo-
sição para o conhecimento, sentimento de dever, cálculo prospectivo e/

231
ou desejo de vencer), o que os leva, o mais das vezes, ao fracasso neste
campo. Entretanto, tem-se presente que o insucesso escolar resulta, e
estudos tem revelado isto, muito mais da violência simbólica do que de
alguma incapacidade de aprendizagem destes setores.
Tal fracasso é reforçado, muitas vezes, pelos efeitos da má-fé
institucional, marcas de uma ação institucional (escolar) que, mesmo
diante de setores sociais com distintos patrimônio sociais, econômicos
e culturais, mostra-se incapaz de reconfigurar seus métodos tradicio-
nais de ensino e de avaliação, notadamente livrescos e acadêmicos. Em
resultado, com uma instituição escolar moldada para atender aqueles
cuja socialização lhes possibilitou a posse das disposições exigidas por
aquela, as classes despossuídas acabam por ser responsabilizadas por
sua inadequação, incompetência ou falta de esforço (FREITAS, 2009).
Esta, aliás, é uma realidade transgeracional em nosso país. A escola,
distante que está das variações culturais da vida, pouco favorece a ex-
tensão de outras influências socializadoras às camadas populares. A
escola, como instituição deficiente de ensino, é parte de um sistema
comunitário e institucional que resiste em estabelecer conexão com as
necessidades estáveis e variáveis do meio social imediato (FERNAN-
DES, 1959). Isto é tão mais evidente se se considerar as condições
sociais, econômicas e culturais que caracterizam o cotidiano dos que se
encontram no andar de baixo do edifício social.
Estes são os marcos nos quais situamos o objeto deste estudo, a
população em situação de rua de Porto Alegre. Ela expressa, malgra-
do outros condicionantes sociais, os efeitos possíveis de uma relação
precária e/ou descontínua com o sistema escolar. Por população em
situação de rua entenda-se um conjunto diverso de pessoas que circu-
lam pelas ruas ou que fazem delas seu local de moradia, existência ou
sobrevivência, de modo mais ou menos permanente e que se benefi-
ciam, intermitentemente, de serviços e de políticas públicas dirigidos à
sua proteção ou garantia de direitos (SCHUCH e GEHLEN, 2012). Na
pesquisa recente sobre esta população (SCHUCH e GEHLEN, 2016),
e que serviu de estrado para o presente estudo, considerou-se, como
pessoas a serem pesquisadas, os adultos que usufruíam, de alguma for-
ma, de instituições e seus serviços (abrigos, albergues, escola, centros

232
de assistência social destinados ao acolhimento e/ou ao abrigo tem-
porário, intermitente ou definitivamente) assim como aqueles que se
encontravam em atividades de perambulação/circulação pelas ruas e/
ou que disseram fazer da rua seu local de existência e habitação, mesmo
que temporariamente.
Em essência, trata-se de viés interpretativo de estudo deste gru-
po social realizado na capital gaúcha no ano de 2016. O objetivo de tal
estudo foi, além de recensear esta população, demarcar suas caracterís-
ticas socioculturais e dinâmicas de existência. Naquele momento foram
identificadas 2115 pessoas em situação de rua. Na oportunidade, por
ocasião da análise dos dados, recorreu-se aos resultados de pesquisas
anteriores (2007 e 2011) de modo a verificar as mudanças do perfil
desta população no transcorrer do tempo. Em termos sucintos, regis-
tre-se que esta população se mostrou preponderantemente masculina
(85,5%), que está há mais de 5 anos na rua (47% encontram-se nesta
situação), marcados por doenças e/ou problemas de saúde associadas
ao uso de álcool e drogas, fatores estes que, associados a conflitos fami-
liares, figuram como os principais motivos para a ida para a rua.
Em termos educacionais, está população apresenta indicadores
que refletem suas condições de existência. Em 2007 a escolarização
indicava que os analfabetos eram 16% desta população. Em 2016, 6%
dos entrevistados alegaram que eram analfabetos. A maior parte dos
entrevistados nesta ocasião (76,2%) não tinha mais do que o ensino
fundamental de escolaridade, realidade que pouco mudou no intervalo
entre as pesquisas. Em relação ao Ensino Médio, os percentuais reve-
laram crescimento de quase 50%. Os que apresentaram Ensino Mé-
dio completo eram 6,0% da população em 2007. Em 2016, foram 9,9%
os que declararam ter concluído este nível de ensino. Ingressar e/ou
concluir o ensino superior continua sendo privilégio de poucos (2,4%),
sendo que 0,8% o completou e um percentual mínimo (0,3%) chegou à
pós-graduação (SCHUCH e GEHLEN, 2016). A tabela a seguir permi-
te visualizar estes dados.

233
TABELA 1 – Escolaridade do entrevistado(a)
Escolaridade 2007 2016
Freq % Freq %
Analfabeto 192 16,0 96 6,0
Ensino Fundamental incompleto 558 46,4 917 57,4
Ensino Fundamental completo 161 13,4 205 12,8
Ensino Médio incompleto 105 8,7 155 9,7
Ensino Médio completo 72 6,0 158 9,9
Ensino Superior incompleto 23 1,9 26 1,6
Ensino Superior completo 8 0,7 12 0,8
Pós-graduação --- --- 5 0,3
Nunca foi à escola --- --- 16 1,0
Aprendeu sozinho / Ensino Especial 3 0,3 --- ---
NS/NR 81 6,8 8 0,5
Total 1203 100 1598 100
Fonte: Pesquisa Perfil e Mundo dos Adultos em Situação de Rua de Porto Alegre,
2007-8 (N=1203) e 2016 (N=1598).

No entanto, por mais que estes dados revelem o trânsito desta


população pelo sistema escolar, pouco se conhece a respeito das dinâ-
micas sociais e/ou estratégias individuais que contribuem para assegu-
rar ou vetam o direito à educação para este grupo social. Neste sentido,
na recuperação dos contextos de interação e/ou de socialização muito
particulares, buscou-se apreender o sentido conferido ao jogo social
pelos atores em causa, notadamente no que concerne às projeções e
interditos colocados, mais ou menos subjetivamente, à vida escolar.
Para tanto, tratou-se de recuperar na memória da experiência pretérita
deste grupo as imagens, representações, situações e/ou emoções que
constituíram aquele que figurou como contato inicial com a escola.
Tendo isto presente, ao recuperar as práticas, representações e/
ou situações dos entrevistados, é muito difícil falar-se da escola sem
falar da família. Portanto, a influência destes espaços de socialização,
relativamente independentes, podem aparecer combinados em sua ação
sobre os indivíduos. Como as pesquisas têm assinalado, a complexidade
das configurações familiares, particularmente no que respeita as rela-
ções com a cultura escrita, as condições econômicas, a ordem moral
doméstica, as formas de autoridade familiar, as estratégias de investi-
mento pedagógico, a estabilidade psicológica e/ou suas práticas dialó-

234
gicas, bem como a forma como interagem e absorvem as informações e
o conhecimento veiculado pela mídia, repercute nas singularidades cul-
turais, morais, políticas e éticas dos atores (ROMANELLI; NOGUEI-
RA e ZAGO, 2013; SETTON, 2005; LAHIRE, 1997).
Aliado à esta tarefa, importa salientar que os saberes da memória
estão situados no esquecimento e precisam ser ativados por diversos
fatores (contato com pessoas ou grupos com os quais nos relaciona-
mos, lugares – cidades, casas, ruas, paisagens – pelos quais transitamos,
acontecimentos históricos, rupturas significativas e/ou acontecimentos
marcantes na vida) de modo a fazer emergir a lembrança a ser traduzi-
da em uma linguagem. Tais lembranças são, o mais das vezes, parciais
e inexatas, além do que dependem, de certa forma, das relações com o
presente. Expressam ainda uma memória coletiva. Elas constituem re-
cortes (sentimentos, pensamentos, imagens, preocupações, situações),
mais ou menos similares e contínuos, de experiências vividas em grupo
retratando, assim e em alguma medida, formas coletivas e contextuais
(representações) de perceber, pensar e interpretar a realidade. Em ver-
dade é fato que, além de nossas observações interiores, porquanto in-
dividuais e sensíveis, o que lembramos com maior facilidade é o que é
comum aos outros. Ou seja, nossa memória individual sustenta-se em
nossa existência como ser social (HALBWACHS, 2003).
Assim, o objetivo deste trabalho foi identificar, de modo expe-
rimental e longe de ser representativo, as dimensões da experiência
desta população com a escola recuperando, amiúde, a memória e/ou
seu imaginário escolar. Neste sentido, buscou-se apreender os senti-
dos que o(a) morador(a) em situação de rua atribui à sua experiência
escolar. Que visões, lembranças possui de sua passagem pela escola?
Que obstáculos pensava estar enfrentando? Que significados atribui à
escola em sua vida? Portanto, tratou-se de compreender as percepções
desta população de sua relação com a escola. Assim, a análise das opi-
niões, representações e pontos de vista dos atores, em relação às suas
vivências e experiências escolares, destacou as dimensões do acesso e
da trajetória escolar, da participação dos pais, das condições de funcio-
namento e infraestrutura da escola, da relação com os professores, da
visão de si como aluno e das dinâmicas de ensino e aprendizagem.

235
Em paralelo, atentou-se para a imagem de si ou do grupo social,
da instituição escola, das escolhas, das estratégias, dos conflitos, das
emoções e das condições sociais da experiência. Nesta direção, a ideia
é trabalhar as questões teóricas e empíricas de forma o mais flexível
possível. Neste sentido, as análises estão marcadas pelos enlaces con-
ceituais e/ou teóricos justapostos aos achados empíricos.

O grupo pesquisado: um perfil aproximado da população


em situação de rua

A busca da memória escolar teve, como objeto empírico deste


estudo, uma turma de alunos da Escola Porto Alegre (EPA). O projeto
desta escola da rede municipal de Porto Alegre visa o atendimento
especializado a jovens e adultos que se encontram em situação de rua.
Localizada no centro de Porto Alegre, a EPA assume lugar estratégico
para o acesso desta população, sobretudo porque o centro histórico
da capital registra uma grande concentração (39,7%) desta população
(SCHUCH e GEHLEN, 2016).
Ganha destaque e significado o trabalho de inclusão social de-
senvolvido pela escola, notadamente porque a escola está organizada,
segundo seu projeto pedagógico, em termos estruturais e curriculares,
para promover uma educação inclusiva, qual seja, voltada às necessi-
dades e demandas de desenvolvimento pessoal e coletivo de estudantes
que, por estarem em situação de rua, vivem experiências de abando-
no, de ameaça, de direitos violados (maus tratos físicos e/ou psíquicos,
abuso sexual), de uso de drogas, em conflito com a lei e com vínculos
familiar e comunitário fragilizados (PPP-EPA, 2013).
Neste sentido, o objetivo da escola é ressignificar a relação destes
sujeitos com seu processo de aprendizagem e contribuir, articuladamen-
te, com a alteração e/ou reconstrução de seu modo de vida priorizando,
especialmente, o resgate dos vínculos familiares. As peculiaridades de
seus estudantes (vivendo num mundo de carência absoluta, convivendo
com experiências de ver suas necessidades básicas como moradia, saú-
de, alimentação, trabalho, lazer e principalmente as relações afetivas não
contempladas), o que justifica o desenvolvimento de uma metodologia

236
própria de trabalho, tanto quanto a estruturação de serviços destinados
ao acolhimento, integração, acompanhamento e desenvolvimento social
e criativo de seus alunos. Tais serviços constituem-se em espaços de con-
versa, de escuta dos alunos a qualquer momento (PPP-EPA, 2013).
Conforme assinala o referido projeto, com uma gestão balizada pelo
princípio do diálogo e da troca de saberes, a escola procura desenvolver
a pedagogia da diferença em favor da heterogeneidade. Nesta direção, o
funcionamento da EPA atende o princípio metodológico da redução de
danos. Assim, os estudantes têm a oportunidade de ficar mais de 10 horas,
12 meses no ano, na escola. Ali eles podem desenvolver ou praticar várias
atividades que vão desde o cuidado com o corpo (saúde), até aquelas de
caráter cognitivo, social, esportivo ou profissional. Neste âmbito, aliás, des-
taque para um conjunto de oficinas (usina do papel, jardinagem, cerâmica,
música, teatro, dança, terapia comunitária, terapia ocupacional, letramen-
to, literatura, informática e esportes) destinadas a promover a autonomia,
a criatividade, o senso de responsabilidade, a autoria e a participação social.
Tais ações mostram-se nodais se se considerar que a baixa autoestima e a
falta de perspectiva de mudança imediata em suas condições de vida são os
grandes desafios, segundo a escola, no que se refere às questões de apren-
dizagem e do mundo do trabalho (PPP-EPA, 2013).
Tais particularidades remetem para a importância do trabalho
pedagógico – interdisciplinar e baseado na realidade, nos conhecimen-
tos e/ou nas histórias de vida de seu público – diferenciado levado
a efeito na EPA. Adotando o trabalho como princípio pedagógico e
a prática como princípio de teorização, a escola se propõe a acolher,
acompanhar e investigar a realidade, as histórias familiar e de vida dos
estudantes de modo que tais elementos constituam pontos de reverbe-
ração na construção, a partir do diálogo com outros saberes, de outros
significados para os conhecimentos que dominam. Com um sistema
curricular e de avaliação (os alunos progridem em qualquer momento
do ano) que indica uma preocupação com as dificuldades de aprendiza-
gem dos alunos, a EPA diferencia-se como instituição educacional no
que almeja como eixo de seu trabalho, qual seja, de promover a dialéti-
ca entre a cultura e a história de vida, entre a cultura escolar e a cultura
da rua (PPP-EPA, 2013).

237
Objetivou-se, desta forma, que a presença em seu ambiente, além
de favorecer a identificação dos possíveis participantes da pesquisa,
configurasse fator importante na ativação das lembranças escolares
dos atores. Aliado a isto, assinalar que os dados empíricos decorreram
de análise documental (cadastro dos alunos na escola e Projeto Políti-
co-Pedagógico), de observação (dos alunos em seus momentos na sala
de aula, no pátio ou no refeitório), de conversas no grupo de diálogo
e de duas entrevistas semiestruturadas. No que respeita à escolha dos
atores para organizar o grupo de diálogo recorreu-se à indicação fei-
ta pela coordenação pedagógica da escola. Assim, como procedimento
de campo, optou-se por montar grupo de diálogo em uma turma de
totalidade final (T3) dos anos iniciais do ensino fundamental. O fato
desta turma atestar uma relativa familiaridade com o processo escolar
e ter uma professora como referência foi decisivo para tê-la como fonte
especial para a coleta de dados. Acresce indicar que tais dados foram
apreendidos ao longo dos meses de abril e maio de 2017.
A fim de apreender as lembranças escolares desta população orga-
nizou-se dois momentos de diálogo com este grupo, com duração média
de uma hora e contando com a participação de oito (8) alunos no total,
sendo sua composição relativamente heterogênea, com quatro (4) mu-
lheres e quatro (4) homens apresentando, os mesmos, idades variadas
que oscilaram entre 21 e 51 anos. Suas identidades foram preservadas
aqui com uso de nomes fictícios. Ademais, coletou-se informações so-
bre a trajetória dos alunos junto à secretaria da escola. Em suma, temos
aqui o que Bernard Lahire (2004) destacou como uma observação que
pretende dar conta de um objeto bastante delimitado através de certa
variação das escalas de observação. Em complemento, realizou-se duas
entrevistas individuais. Optou-se por fazê-las com dois homens, Carlos
e Evandro, ambos com alguns anos de passagem pela escola. As mesmas
tiveram o objetivo de aprofundar o contato com a memória escolar. Isto
é, a partir do comentado nos grupos de diálogo, procurou-se acessar al-
guns pormenores, detalhes desta ou daquela trajetória escolar a fim de
melhor capturar as situações que concorreram para o distanciamento, na
infância destas pessoas, dos aportes da educação escolar.

238
Memórias da “antieducação”: imposição prematura
do fracasso escolar

Nossos entrevistados revelaram, de início, muita dificuldade em


lembrar das situações e/ou fatos associados à sua primeira experiência
escolar. Isto é relativamente normal, se considerarmos que a dilata-
ção do tempo torna mais turva as imagens de outrora. Tendo estes
pressupostos em mente, o contato com o grupo de alunos que aceitou
participar deste estudo permitiu traçar seu perfil, especialmente no que
respeita às condições e situações sociais e familiares a que estavam sub-
metidos na infância. As mesmas remetem a um conjunto de situações
de socialização que, de alguma forma, conspiraram contra a permanên-
cia dos mesmos no ambiente escolar.
Registre-se que são indivíduos que tiveram que enfrentar, desde
os primeiros anos de vida, privações materiais de toda ordem. Além
disso, congregam em suas trajetórias e relações sociais a convivência
com doenças (físicas e mentais), morte prematura da mãe ou abandono
do pai, pais separados ou adotivos e com pouca ou nenhuma escola-
ridade, família numerosa, desorganização e dispersão familiar, uso de
álcool e de drogas, violência e/ou incivilidade no lar, trabalho infantil
etc. Com efeito, procurou-se, oportunamente, considerar as vicissitu-
des de cada caso por ocasião da apresentação de seus relatos e/ou das
interpretações que suscitaram. Por agora, o sumário da história de vida
de Pedro é ilustrativo de tais circunstâncias.

Quando minha mãe me deu à luz ela morreu no parto e eu fui


adotado por outra família e isso aí de não conhecê minha mãe ver-
dadeira mexe muito com a gente [...] eu saí pra rua, eu não voltei
mais pra casa, até hoje eu não conheço mais eles, onde eles estão
morando, quem morreu, quem não morreu sabe ... nós não tive-
mos este diálogo, acho que não era um diálogo muito bom entre
nós porque não me fez olha pra frente sabe, fez eu me perdê.

Em consequência, situações desta natureza remetem para traje-


tórias de vida muito específicas que, a despeito de casos singulares, ba-
lizaram seu consumo cultural e linguístico, bem como suas emoções e

239
visões de mundo que, combinado com a privação de liberdade econômica,
concorrem para inibir a emergência de disposições sociais destinadas a
expandir a experiência de liberdade substantiva, de desenvolver capaci-
dades que permitam escolher e viver a vida que se imagina poder levar
(SEN, 2000). Em realidade, trata-se de reconhecer a influência das pro-
priedades contextuais (ordem moral e material) sobre as bases percep-
tivas e cognitivas da ação (LAHIRE, 2004; FERNANDES, 1959). Por-
tanto, não causa estranheza que os mesmos encontrassem no ambiente
familiar um conjunto de obstáculos, senão pouca compreensão e estímu-
lo nas questões relacionadas às suas experiências escolares.
A trajetória familiar, escolar e social de Carlos é sintomática des-
tas implicações contextuais. Carlos é um homem de 38 anos, magro e
que, inicialmente mostrou-se reticente em participar de nosso estudo.
Todavia, acabou participando do grupo de diálogo e concordando em
participar da entrevista individual. Natural de São Jerônimo, teve uma
infância marcada por muitas dificuldades. A casa em que vivia, locali-
zada em um beco sem pavimentação, era de madeira, tinha duas peças
e abrigava, além dele, seus oito (8) irmãos e sua mãe. Segundo Carlos,
na casa, até seus 10 anos de idade, não tinha luz, TV ou geladeira. Ele
nos disse que sua mãe tinha baixa escolaridade (4ª Série do E. F.), tra-
balhava em serviços de limpeza na prefeitura local e em três (3) casas
de família. Era a grande responsável pelo sustento dos filhos.
A pouca leitura que se praticava em casa era da bíblia. Sua mãe
frequentava uma igreja (evangélica) e a lia para os filhos nos interva-
los de uma ou outra história em quadrinhos. Tinha pouco tempo para
acompanhar a questões escolares dos filhos e, como relatou Carlos,
não se furtava de repreender fisicamente aquele que era alvo das re-
clamações das professoras. Já o pai de Carlos bebia e, quando trabalha-
va, praticamente não participava na garantia do bem-estar da família.
Quando ele largou a família Carlos tinha três (3) anos. Para ele, o pai só
queria farra. O tempo para as brincadeiras de criança (polícia-ladrão;
bang-bang, jogar futebol, pregar peças) não era muito. Em realidade,
o tempo de infância dividiu-se no tempo da escola e no tempo de tra-
balho. Aos sete (7) anos, com a ajuda do irmão mais velho, já saía para
trabalhar engraxando sapatos no turno inverso ao da escola ou mesmo

240
em prejuízo deste, visto que, por vezes, tinha que dispor do dia inteiro
para a ‘caixa’ e para vender picolé.
Ou seja, as imposições econômicas geraram reações na forma de
adquirir e de compartilhar as rendas da família, mormente para atender
os interesses e objetivos do conjunto de seus membros (inclusive da-
queles que não tem renda). Isto implica considerar, segundo Amartya
Sen (2000), que as oportunidades e realizações dos membros da família,
mormente das crianças, dependem do modo como a renda é adquirida
e distribuída, qual seja, dos critérios (gênero, idade, percepção das ne-
cessidades, sentimentos) que orientam sua partilha.
Desta forma, Carlos esteve exposto, desde cedo, ao convívio com
pessoas que apresentavam princípios de socialização diferentes e que,
de alguma forma, impactou em seu patrimônio de disposições indivi-
duais. O trabalho precoce (infantil) gerou o contato com hábitos dis-
cursivos, mentais, perceptivos, apreciativos e atitudinais que, somados
à dificuldade da mãe em acompanhar e lidar dialogicamente com a vida
escolar dos filhos, podem ajudar a explicar porque ele, quando no am-
biente escolar, manifestou reações desiguais e/ou contrárias às expec-
tativas institucionais. Concomitantemente, a escola, segundo os rela-
tos, pouco oferecia enquanto ambiente socializador fundado no diálogo,
na compreensão e na abordagem racional, especialmente nas situações
de conflito. A trajetória social e escolar de Carlos é similar a de outros
membros da turma. Sobre isto considere-se seu depoimento.

Na minha época tinha uma professora que deixava assim de castigo


em cima das tampinhas de garrafa e esta professora me judiava
muito [...] ela me dava com a régua nos dedo, puxava as orelha, me
botava atrás da porta [...] ela não gostava de mim e eu não gostava
dela e da última vez eu não sei o que ela falou que eu mandei ela
bem longe [...] um palavrão disse pra ela e ela veio me dá uma ré-
gua nos dedo e eu dei uma cadeirada nela [...] mas mesmo eu dan-
do uma cadeirada nela eu não fui expulso por que eu acho que era
só ela que era atentada, ela era racista alguma coisa assim (Carlos).

O que a trajetória de vida social e escolar de Carlos indica é a


existência de uma confluência de configurações que o mantem, o mais

241
das vezes, situado nas tramas do que estamos chamando de “antiedu-
cação”. Destituído, de um lado, do acesso aos direitos básicos de cida-
dania, que lhe permitiria o desenvolvimento de capacidades consoantes
a uma integração social sem maiores sobressaltos e, por outro lado,
inobservado em suas necessidades e capacidades por um currículo es-
colar mais ou menos rígido, rotineiro, descontextualizado e seletivo, o
caso em tela revela aspectos de dinâmicas socializadoras que dilataram
a distância de uma educação que lhe permitisse, com autoconfiança e
autoridade, levar a efeito seu projeto de vida sem que o mesmo viesse a
colidir com o direito recíproco de outros indivíduos ou grupos sociais.
O acesso à escola para o grupo de alunos ocorreu, aliás, no tempo
certo, ou seja, aos sete anos de idade. No caso de Evandro, já na pré-es-
cola. A julgar pela idade dos alunos isto ocorreu, para a maioria, no final
dos anos setenta e início dos anos oitenta do século passado. Talvez isto
explique porque os alunos, das poucas lembranças em relação à organi-
zação e infraestrutura da escola, revelaram percepções, de modo geral,
aprazível “Naquela época”, destaca Claudio, “[...] era aquelas cadeira e
mesa de madeira, era verde, era simples [...] o banheiro assim era bem
bonito e bem cheiroso eles eram bem caprichosos assim”. Esta visão bu-
cólica da escola é partilhada por Pedro: “[...] a escola lá era toda de ma-
deira, cor de vinho, era um pavilhão do lado do outro [...] e as classe era
madeira mesmo [...] era bonito né [...] e tinha um portãozão ali na en-
trada e entrava todo mundo e fechava”. Pode-se inferir que, de um lado,
as condições materiais das escolas eram mais ou menos adequadas e/ou
compatíveis com os projetos curriculares e/ou com as demandas cultu-
rais. Por outro lado, uma imagem favorável dos espaços e ambientes das
escolas pode estar associado às carências materiais e/ou habitacionais
que experimentavam junto a suas famílias e/ou com seus vizinhos.
Não obstante, havia certas vivências escolares que trazem boas
lembranças. Além das boas relações com as professoras (tema que va-
mos abordar na sequência), os alunos chamaram atenção para as festas
ou atividades fora das salas de aula como, por exemplo, jogo de futebol,
gincanas e festas juninas. Vanessa, por exemplo, disse que gostava quan-
do tinha festa junina pois, segundo ela, [...] minha mãe dava um jeito de
arrumá um vestido pra mim pra gente dançá aquelas dancinhas”.

242
No entanto, quando o tema é o significado da experiência escolar
da infância, o espaço físico, os equipamentos da escola ou atividades
extraclasse perdem importância. Não faltou, por exemplo, relato de
sentimento de vergonha ou de discriminação como exemplificado nos
depoimentos a seguir.

A gente via os outros arrumado né e a gente chegar lá com rou-


pa diferente, aquilo ali eu detestava, eu tinha vergonha e eu acho
que aquilo me prejudicava porque tirava toda a atenção... eu fi-
cava pensando bah vou chegar ali desse jeito [...] as professora
chamavam ela (a mãe) e xingavam ela, diziam como manda a
criança pra escola com uma bermudinha e chinelo em dias de frio
e aquilo ali era muito constrangedor [...] (Evandro).

[...] eles não acompanhavam eu na escola como acompanhavam


os filhos verdadeiros dela sabe, e como eu era maiorzinho um
pouquinho e eu trabalhava de auxiliar de mecânico do outro lado
da rua e eu prestei muita atenção nisto daí, eu percebendo sabe
que era diferente comigo (Pedro).

Isto revela, para além das implicações afetivas, as diferenças de


perspectivas e de comportamento do sujeito diante de costumes e con-
venções, mais ou menos aceitos pelos alunos. Em essência, configura
como as diferenças, as hierarquias e/ou as posições sociais repercutem
no jogo social. Indo além, no caso de Evandro implicou, conforme o
que ele lembra, constrangimento, humilhação e retraimento e/ou di-
ficuldades em participar da vida entre seus pares na escola, além do
que pode ter apresentado repercussão sobre seu respeito próprio e na
relação com sua mãe adotiva. Esta situação foi, segundo ele, mais um
dos efeitos de uma relação difícil que mantinha no convívio familiar.
Segundo ele, a mãe (adotiva) era “muito ruim, pessoa problemática”.
Relata que ela até mandava ir à escola mas não dava muita importância.
Destacou ainda que ela nunca foi à escola. Lembra que havia um filho
(natural) da mãe que tinha problemas mentais e que ele, Evandro, é que
tinha que dar banho, apesar do mesmo querer, por vezes, lhe bater. Diz
ainda que ajudava nas tarefas domésticas e que apanhou muitas vezes

243
de sua mãe e que, mesmo reconhecendo que fazia coisas erradas, a úni-
ca explicação que encontrou do porquê a mãe lhe batia foi que “ela não
era o sangue da gente”.
A situação precedente sugere repercussões sobre a autoconfiança
de Evandro (como de resto para crianças), sobretudo pelo que implica
de dificuldades para a internalização do comportamento estável da pes-
soa de referência primária, geralmente a mãe ou o pai. Correlatamente,
as seminais formas de autorespeito decorrem, também, da experiên-
cia de ser respeitado por membros da família como um sujeito cujas
necessidades, convicções e opiniões não podem mais ser totalmente
desprezadas. Deste modo, o entrelaçamento entre individualização e
socialização abriga a internalização da relação de reconhecimento que,
ao longo da vida, vai se diferenciando e onde o sujeito percebe-se, pau-
latinamente, como um membro com valor em seu meio social. Quan-
do suas carências e capacidade de julgamento não são confirmadas e/
ou reconhecidas pelos seus grupos sociais, há grande probabilidade do
sujeito desenvolver traços de personalidade que expressam ressenti-
mento, agressividade, desconfiança ou temor (HONNETH, 2013).
Nesta direção, os problemas da vida em grupo são, comumente, desen-
cadeados por distúrbios individuais de personalidade. De acordo com
Honneth (2013: 78), é por isso que “[...] a situação dos grupos numa
sociedade sempre é tão boa ou tão ruim quanto o são as condições de
socialização que nela prevalecem”.
Tendo isto presente, saliente-se que outro sentimento de vergo-
nha decorre da reprovação escolar. Os alunos relataram o constrangi-
mento que significava estar em uma turma com alunos mais novos. Em
realidade, a experiência escolar remete, nas lembranças dos alunos, a
situações que denunciam momentos de mal-estar vividos entre os mu-
ros da escola efeitos, amiúde, da violência simbólica ali experienciada.
A mágoa mais comum manifestada pelos alunos foi o vexame de ter que
estudar, estando eles já com idade avançada, com crianças pequenas.
Com universos familiares marcados por penúria econômica, uso
de drogas e/ou de álcool, pela ausência de diálogo e apoio mais efetivo
da família, além do contato com outras experiências socializadoras que
sequestravam, inclusive, o tempo da escola, os alunos não encontravam

244
no contexto escolar um conteúdo de solicitações próprias que pudesse
ecoar de modo a favorecer neles as disposições necessárias, ainda que
não suficientes, para assegurar, mais do que o êxito escolar, seu direito
à educação. Por outras palavras, a escola (mormente pública) sustenta
muitas dificuldades em reconhecer, em sua dinâmica organizacional, as
particularidades, especialmente os marcadores de classe, do público a
que se destina. Em resultado, os alunos apresentaram muita dificulda-
de em estabelecer conexões de sentido entre a experiência escolar e as
peculiaridades de suas vidas cotidianas.
Com raras exceções, a imagem que vem à memória é de xinga-
mentos e/ou gritos das professoras, quando não a opressão física (pu-
xão de orelha), e seu não envolvimento com as necessidades particula-
res de aprendizagem e de socialização dos alunos. Segundo Evandro,
“[...] a professora era carrancuda, botava a matéria no quadro e tinha
que fazê, xingava a gente”. A recuperação das provas era, segundo
ele, refazer a mesma prova. Como resultado, ao final de cada ano, o
instrumento da reprovação colocava-se como o recurso institucional
de recuperação de um tempo perdido. Diante da iminência reiterada
de fracasso, desmoralizados pela inadaptação às demandas escolares
e pelo orgulho abalado diante dos (novos) colegas, não espanta que a
busca por valorização pessoal e social tenha encontrado, na estratégia
de sair da escola, a escolha mais razoável. As declarações a seguir são
sintomáticas neste sentido.

[...] eu fiquei dos 7 aos 11 anos na escola e eu rodei um ano, dois


anos eu acho, eu rodei um ano na primeira [...] mas eu já estava
com 11 anos e já estava estudando com gente de 8 já [...] só sei
que eu já estava com vergonha [...] eu tinha passado pra terceira
série (Carlos).

[...] eu fui pra primeira série e eu sempre dei problema assim


porque eu era filho adotivo [...] na época eu era muito gurizi-
nho, muito criança [...] e eu mentia assim pros meus pais [...]
as professoras falavam pra eles e depois eu tomava um laço e
daí foi indo, foi indo e depois de passa uns três, quatro anos con-
seguiram me passa pra segunda série e na segunda série eu fui
ficando, fui ficando, eu saí do colégio (Evandro).

245
A reprovação escolar denuncia, em realidade, antes o fracasso da
escola do que o fracasso na escola. Assim, a reprovação como medida
educativa é um último recurso que coloca sobre o aluno a responsabi-
lidade de aprendizagem e que pouco considera um conjunto complexo
de situações internas e externas à escola que interferem na aprendiza-
gem (PARO, 2001). No âmbito institucional um elemento condiciona-
dor deste processo é a ação pedagógica. A forma como as professoras
praticavam a docência e/ou a relação com os alunos escondem uma
forma, mais ou menos coletiva, de pensar e proceder.
A reivindicação, na maioria das vezes não manifesta, de outra
ação (atenção) pedagógica ganha a realidade no contexto atual de sua
escolarização. Na atualidade, invariavelmente os alunos chamam aten-
ção para a vontade das professoras de ensinar, sendo a paciência (rit-
mos diferenciados de aprendizagem) e a preocupação com suas vivên-
cias uma marca positiva da atuação das mesmas. Esta percepção do
trabalho executado pela escola nos dias que correm. Sobre isto note-se
os depoimentos de Evandro: “[...] a escola hoje mudou minha vida,
mudou meu modo de pensar, uma expectativa nova, uma esperança de
futuro”. E de Carlos: “Hoje a escola é a maior satisfação que eu tenho
em minha vida, poder voltar a estudar e querer aprender”. Neste senti-
do, ganha destaque o projeto de escola EPA no que, segundo os relatos,
procura observar (investigar) e considerar as características de seus
alunos em seu processo curricular.
Em realidade, as rotinas e regularidades constituintes das práti-
cas pedagógicas resultaram, no tempo pretérito, em ação irrefletida da
instituição por sobre indivíduos portadores de disposições e variações
intraindividuais e sociais incompreendidas. As normas, mais ou menos
rígidas, que balizavam as relações pedagógicas e sociais na escola, além
de impor inibições a esta ou àquela manifestação de personalidade mui-
to própria, provocavam reações, mais ou menos passivas, dos alunos.
Aqui situa-se, aliás, toda a dificuldade de responsabilização exclusiva
do aluno por seu fracasso na escola. Muito de suas aprendizagens ao
longo da vida estiveram associadas a modos práticos de aprendizagem
ou suas esferas de socialização. “Na real, o que eu aprendi foi na escola
da vida e uma coisa que eu nunca consegui aprendê na escola foi a tal de

246
tabuada”, assinalou Carlos. O que Vanessa recorda é que não aprendeu
nada na escola: “[...] o que eu me lembro assim foi que eu tava com a
minha tia assim na cama e eu aprendi a lê sozinha e aí depois que ela
começou a me ensinar e eu aprendi a escrever”. Na visão retrospectiva
dos alunos de sua vida escolar, aliás, o que mais despontou em relação
às aulas, e suas dificuldades de aprendizagem, refere-se a estratégias
destinadas a driblar o desconforto, a insatisfação e a sensação de não
pertencimento.

[...] ali era tudo rígido e a gente era sujinho e eu matava bas-
tante aula ... a escola mandava assim uns bilhete pra casa eu apa-
nhava assim sabe mas se pau adiantasse eu taria legal, mas não
adiantô (Carlos).

As professora era muito chata, era muito ruim naquela época ... eu
me lembro que eu era muito relaxado naquela época, na verdade
eu sabia fazê, eu sabia das coisas mas eu não queria fazer de pre-
guiçoso [...] eu aprendi a lê sozinho com as embalagens das coi-
sas, perguntava assim pra alguém que sabia e as pessoas dizia que
isto é leite, aquilo é aquilo outro e daí eu fui guardando na cabeça e
na escola não sei, na escola as professora passava umas coisa mui-
to infantil, só faziam assim só colocam a, e, i, o, u, era muito chato
não tinha que nem hoje assim de acompanha a gente (Evandro).

Antigamente a gente tinha que ir lá na frente e lê o que tava no


quadro, hoje a gente lê aqui sentado na classe... agora o que eu
lia eu não sei (Carlos).

Tais dificuldades persistem ainda hoje. Um dos grupos de diálogo


foi organizado em torno da leitura (oral) de poesias. Na oportunidade
pude constatar o imenso sacrifício, senão uma grande disposição racio-
nal, que estes alunos operam para expressar sua compreensão do jogo
e do significado das palavras e/ou das ideias subjacentes. “Não consigo
montar a conta no caderno, mas o cálculo eu faço na cabeça”, mencio-
nou Carlos. O esforço que dispendem, no entanto, vem da motivação
gerada no reconhecimento do valor da escola, seja para atender suas

247
aspirações ocupacionais, quer dizer, “[...] pegar num trabalho melhor,
mais leve, já que a idade tá pegando” (Evandro), seja como expediente,
mais ou menos consciente, de evitar espaços e situações de socializa-
ção concorrentes, qual seja, a exposição às intempéries, insegurança,
violência e acesso às drogas que a rua representa. Assim, manifesta-se
certa racionalização protetora na busca de arranjos contextuais (escola
EPA) que inibam os efeitos de inclinações incompatíveis com o que
buscam como projeto de vida (propensão para o consumo de drogas,
por exemplo) ou para colocar nas melhores condições de ativação as
suas (por vezes fracas) disposições críticas e de favorecer os objetivos
que estabeleceram para si.
Entrementes, e voltando às lembranças escolares, apesar da sen-
sação de inadequação às exigências escolares, os alunos conservam, de
modo geral, uma representação positiva das relações que mantinham
com as professoras e com as direções das escolas. Não faltaram regis-
tros de uma ou outra professora querida que despertou o sentimento
de bem-querer neste ou naquele aluno. De acordo com Evandro, “[...]
tinha uma professora querida que morreu de câncer e eu fiquei muito
triste porque ela era muito boa, nunca me esqueci do jeito dela, tinha
paciência, ela conversava com a gente (silêncio) [...] daí cheguei em
casa chorando”. Tal lembrança destaca a importância das relações afe-
tivas no sentido de, em combinação com outras variáveis, favorecer a
aprendizagem e a permanência dos alunos no sistema escolar.
No entanto, a moldura da memória ganha quadros que retratam
situações de autoritarismo e abuso de poder. Diante de tais circunstân-
cias a reação dos alunos esteve marcada, frequentemente, pela adoção
de estratégias de enfrentamento que variaram segundo esta ou aquela
personalidade, esta ou aquela inclinação para agir de modo mais in-
conformista. A trajetória da vida escolar de alguns alunos dá conta
do conteúdo destas reações. As mesmas, malgrado as singularidades
familiares, encontravam ressonância na forma, mais ou menos violenta,
com que os adultos utilizavam para educar as crianças. Apesar do res-
sentimento que desencadeava nas mesmas, não é incomum a percepção
atual destes alunos de que aquelas imposições físicas e/ou morais (xin-
gamentos, repreensões, gritos) eram necessárias à sua educação. Nas

248
palavras de Evandro, “[...] ela (a mãe) vinha com tudo e me batia mas,
no fundo, no fundo aquilo ali foi uma correção que ela tava me passan-
do pra gente não anda sem vergonha né”. Não obstante, na sequência
tem-se fragmentos de um tempo em que a cultura escolar era apenas
a fração de um momento cultural e institucional mais amplo marcado,
comumente, por arbitrariedades e ausência de diálogo (COSTA, 1994).

Às vezes me chamavam assim lá na frente pra me bota de castigo


(Carlos).

[...] teve uma vez que a diretora puxou minha orelha e eu co-
mentei com a minha madrasta e ela foi na escola e ‘descascou’ a
diretora ... a diretora era ruim assim ela botava a gente em cima
dos milho, das tampinha, na época tinha isto daí, tinha o nego
preto (Evandro).

A música que tinha na escola era nós fica lá assim na frente da


bandeira e ia tocando o hino, era todo dia assim, tinha que fica
em forma lá (Pedro).

A visão de si como aluno obedece, malgrado os traços de perso-


nalidade muito próprios, a percepção da maior ou menor inconveniên-
cia da forma de pensar, sentir e agir diante das situações, mais ou me-
nos escolares, a que os sujeitos eram exigidos. Chamados a responder
as exigências escolares, necessitavam demonstrar disposições prévias
(concentração, disciplina, ascetismo, passividade diante das normas ou
autoridade, manifestações de linguagem associadas à civilidade) que
não haviam sido construídas em seus processos de socialização prévios,
particularmente em suas famílias. O que os alunos manifestavam na
escola eram outras disposições, notadamente associadas ao hedonis-
mo, à resistência ativa, à destreza e força física, à preocupação com o
outro e certo espírito de liderança. Tais inclinações a agir configuram
elementos de uma forma de pensar, ser e proceder ajustado ao modo de
vida nos meios populares. Com ocupações precárias e salários aviltan-
tes, tais grupos descarregam as tensões da sobrevivência nos prazeres
(excessos) possíveis imediatos (BOURDIEU, 2007).

249
Na minha época a gente era mais rebelde, não queria aula, queria
era fica na rua, fazê zuera mesmo e isto aí é que foi tirando o cara
do eixo da escola [...] e isto da violência na escola tinha muito
sabe, porque não tinha só aluno da vila, tinha gente dos outros
lugares sabe e tinha aquela rixa assim sabe (Pedro).

[...] eu gostava de tirar as cara assim pelo outros e mostrar as-


sim para que entrava no colégio assim novo, mostra pra eles
que quem mandava naquele pedaço era eu ... sempre querendo sê
mais que os outros assim (Carlos).

[...] sempre me dei com os mais humildes, não andava com os


mais arrumadinhos (Evandro).

O que as lembranças da infância e da vida escolar recuperaram, tam-


bém, foi a crença na legitimidade da cultura escolar. O reconhecimento do
valor da escola encontra-se expresso na autoresponsabilização dos alunos
por seu comportamento discrepante em relação às expectativas escolares
e/ou por não conseguirem aprender o que a escola se dispunha a ensinar.
Tem-se aqui o desconhecimento da violência simbólica no contexto esco-
lar, qual seja, a ausência de percepção do sentido arbitrário presente nas
imposições e práticas curriculares. Os alunos, por ignorarem as relações
de dominação presentes na comunicação e nos significados (simbólicos)
escolares, não os percebiam como imposição de um arbitrário cultural. O
mais das vezes, quando um ou outro aluno apresentava alguma proprieda-
de (espírito de liderança) que servia à ordem escolar (o caso de Carlos, por
exemplo), o aluno sentia-se reconhecido e valorizado.

[...] eu era bem visto pelas professoras ... sempre fui um dos
melhores alunos assim ... não deixava ter alausa (bagunça) assim
em sala de aula, elas sempre me tratavam bem assim, tomava
café com as diretora [...] (Carlos).

Não obstante, tal valorização é o lado reverso da domesticação


dos dominados, ou ainda, expressão da reprodução da ordem social e

250
das relações de dominação. O filtro desta equação resultou no que se
sabe, a antieducação solucionada pelo abandono da escola. Pressionados
que estavam por intercorrências familiares e sociais, os alunos (crian-
ças) viram-se diante de situações cujas exigências morais, materiais e
afetivas encontravam-se além do desenvolvimento de suas capacidades
até então. Naquele contexto, e sem o acompanhamento adequado de
adultos, seja na esfera familiar, seja no ambiente escolar, não causa sur-
presa que suas escolhas revelassem disposições (dispersão, displicência,
hedonismo, relação tensa com as normas, modos práticos de aprendiza-
gem) em desacordo com as demandas escolares e que culminassem com
o raciocínio de que “tem pessoas que nascem com um dom de fazê as
coisas certas e eu não tive aquele dom da sabedoria” (Carlos). Quanto
mais não seja, os lances de memória recuperados permitiram imaginar
algumas dimensões que demarcam os condicionamentos presentes na
vida escolar destes sujeitos. A estas dimensões foram dispostas cate-
gorias correlatas que expressam, em nosso entendimento, ações, rea-
ções, situações, procedimentos, sensações e sentimentos que, uma vez
combinados, culminaram no fracasso escolar e abandono da escola. A
figura a seguir permite visualizar estas dimensões e seus elementos.

Figura 1 - Dimensões condicionantes da experiência escolar

251
Deste modo, pode-se inferir que o insucesso escolar de parcela da
população em situação de rua denuncia a disfuncionalidade da escola tra-
zendo, para ela e para o sistema social, instabilidade, seja porque deixa a
descoberto suas incompatibilidades para com a diversidade, seja porque
os casos de desajustamento são creditados aos desvios, individualizados,
da norma. Em consequência, o desajuste entre as prescrições (normas
escolares) e as disposições sociais, intelectuais e afetivas (singulares e
dissonantes) dos alunos apresentou, além do fracasso escolar e/ou o
abandono da escola, efeitos decorrentes deste efeito, isto é, uma função
derivada (FERNANDES, 1978). Não é difícil imaginar que, com pouca
ou nenhuma escolaridade, os sujeitos deste grupo social tenham encon-
trado, ao longo de suas vidas, limites mais ou menos intransponíveis no
que respeita suas condições objetivas de vida (escassa composição e volume
do capital econômico; precárias relações com o mundo das ocupações ou
profissões; informais, inseguras e intermitentes estratégias de sobrevi-
vência), sociais (apartamento e isolamento social), simbólicas (discrimina-
ção, estigma, preconceito), políticas (frágil consciência dos direitos a que
tem direito) e afetivas (perda dos laços familiares).
Durante o período em que a atual população em situação de rua
pode viver seu “tempo de escola”, a forma como as então crianças rea-
giram às condições sociais (privação econômica, relações autoritárias e
sofrimento emocional) contribuiu para o encadeamento, mais ou menos
sequencial, de conexões interdependentes que, por suas propriedades,
resultaram num conjunto de condições, mais ou menos grupais, mais
ou menos individuais (desestruturação familiar, ausência ou limites do
pensamento prospectivo, intermitência ou insegurança nos laços sociais,
dificuldade de reconhecimento da legitimidade das normas – produto
de sentimento de inadequação social –, saber existencial ou profissional
vivenciado como constrangedor das relações sociais e/ou ocupacionais)
que definiram situações, mais ou menos universais, seja nas dinâmicas
intragrupo, seja nas interações com outros grupos sociais.
Em suma, os alunos viveram em seus primeiros anos de vida aqui-
lo que Robert Castel (1998) nominou de individualismo negativo. Esta
conotação negativa decorre, por um lado, da existência de um indivíduo
senhor de seus empreendimentos, independente, autônomo e resistente

252
às formas coletivas de enquadramento, sobretudo aquelas típicas das ins-
tituições. Por outro, temos um indivíduo que apresenta muita dificuldade
de inserir-se em algum coletivo, tão completamente despossuído, quanto
desligado de relações de dependência e de interdependência que susten-
tam a sociedade. Este individualismo é negativo porque marcado pela
falta, seja de consideração, seguridade, de bens garantidos ou mesmo
de vínculos estáveis. Em resultado, temos o indivíduo ‘individualizado’
e exposto a um mundo de múltiplas e díspares referências, de insegu-
ranças e precariedades, sem suportes em relação ao trabalho, ao capital
familiar, às possibilidades de construir um futuro (CASTEL, 1998).

Considerações finais

Segundo Bernard Lahire (2004), quanto mais prematuras forem


as experiências socializadoras heterogêneas, mais os atores dominarão
meios simbólicos de resistir aos efeitos, por ventura, destrutivos de sua
socialização familiar. Se esta assertiva for substantiva, pode-se dizer que
a primeira experiência escolar, nos casos da população em análise, esteve
muito aquém de relações sociais e educacionais enriquecedoras. Por mais
condicionado que se esteja pela superficialidade dos dados empíricos aqui
expostos, o que se constatou foi que a bagagem social construída fora da
escola não encontrou conexões interpretativas e/ou formativas no currí-
culo escolar. O resultado não poderia ser outro, qual seja, a antieducação
expressa nos obstáculos colocados ao desenvolvimento das capacidades
e liberdades, ou mesmo às oportunidades de apropriação de conteúdos
culturais, cognitivos, sociais e afetivos diferentes.
Em realidade, o que se pode perceber foram práticas sociais e
educacionais levadas a efeito no meio familiar que pouco ou nunca fo-
ram observadas pela escola. Os imperativos econômicos vivenciados no
cotidiano das famílias, associados aos limites impostos pelos processos
de socialização pretéritos e precários (baixo capital cultural, consumo
de álcool e drogas, brigas constantes e desorganização familiar) dos
adultos, conformaram ambientes que incidiram na constituição de for-
mas de pensar e de agir, senão de disposições, de comportamentos e de
personalidades que se revelaram estranhas às expectativas escolares.

253
Portanto, não causa estranheza que a população em situação de rua seja
mais um grupo a tornar mais caudaloso o contexto escolar marcado
pela não aprendizagem, por problemas de acesso e permanência, quan-
do não de desigualdade escolar e social.
Se é razoável aceitar que uma das bases da desigualdade no Bra-
sil seja o domínio e a valorização da razão e do trabalho intelectual, a
exclusão precoce da escola a que foram, mais ou menos diretamente,
submetidos os atores deste estudo revelam, especialmente, um passado
escolar marcado pela incompatibilidade entre os efeitos, sociais, cultu-
rais e cognitivos, das vivências das crianças e de suas famílias com um
currículo ascético, abstrato, autoritário e insensível às diferenças.
Em conexão, se é verdade que a qualidade do ambiente socio-
cultural define as necessidades dos membros individuais da sociedade
(FERNANDES, 1978), então tem-se em análise uma situação em que
família e escola, malgrado exceções, foram responsáveis por ambientes
de socialização divergentes. Em realidade, tais instituições, por vezes,
colidiram, na não convergência de suas atividades configurando, em
boa parte das vezes, a inexistência de homologias funcionais entre am-
bas. Nesta lógica, as diferenças entre os elementos formativos destas
estruturas, e considerando a interdependência entre ambas, resultou
em distanciamentos culturais substantivos, no caso destes sujeitos com
a escola e, obstáculos ao desenvolvimento da razão e da capacidade de
compreensão, sobretudo no contorno das questões e dilemas familiares.
Assim, na medida em que certos ajustamentos exigem motivação
afetiva e social, senão uma predisposição para alcançar certos objetivos,
de modo mais ou menos consciente por parte dos indivíduos, não causa
surpresa que o fracasso escolar e o abandono da escola tenham deixado,
pelas razões aqui apresentadas, sua contribuição para a forma (escolhas)
com que os mesmos vieram a lidar, ao longo de suas vidas, com as circuns-
tâncias históricas. A esse respeito, aliás, o que comumente se enfatiza são
os predicados individuais associados à trajetória desta população esque-
cendo-se, não raras vezes, os contextos sociais, históricos e institucionais
com os quais foram desafiados a interagir (SCHUCH e GEHLEN, 2012).
Uma das consequências, dentre tantas que se poderia elencar, foi
a interiorização por parte dos alunos de antes, hoje adultos, de que são

254
eles, enquanto indivíduos, e não a sociedade e/ou o Estado, os respon-
sáveis por seu fracasso escolar e, em consequência, por suas atuais (e
inseguras) condições de cidadania. Em verdade, dentre as implicações
da violência simbólica está a ocultação das relações de poder (e de sa-
ber) que se encontram na base das desigualdades educacionais e sociais.
Aqui reside, ademais, a importância da educação de jovens e adultos na
vida adulta destas pessoas, notadamente na forma como a EPA se dis-
põe a trabalhar com este público, qual seja, dinamizando e adaptando
seu currículo às necessidades de seus alunos. A julgar pelo reconheci-
mento da importância da escola EPA para os alunos aqui estudados,
mais do que trabalhar na perspectiva da redução de danos (o que já é
muito, diga-se de passagem), merece destaque o caráter problematiza-
dor da realidade impresso em sua dinâmica curricular. Tal diferencial
apresenta-se como um caminho que pode, em perspectiva, desvendar
aquelas relações de poder e de dominação.

255
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DOS MORADORES DE RUA AOS SEM DOMICÍLIO
FIXO: CONTRASTES BRASIL E FRANÇA

clAudiA turrA-MAGni

Na tentação comparativa, riscos de anacronismo


e etnocentrismo

O assunto aqui proposto desafia-me a revisitar duas etnografias


nas quais estive visceralmente envolvida: uma realizada nas ruas de
Porto Alegre, entre 1990 e 1994 (MAGNI, 2006); outra, desenvolvida
no meio associativo em Paris, entre 1997 e 2002 (MAGNI, 2011a). O
risco de anacronismo não é pequeno, na medida em que afastei-me des-
te campo de investigação por mais de quinze anos, exceto pelo acom-
panhamento de pesquisas de alunos e pela contribuição para os estu-
dos censitários sobre população de rua realizados em Porto Alegre em
2004 e 2007, os quais balizam o objeto mais amplo desta publicação.
A rigor, os contrastes sobre os quais eu precisaria me ater não seriam
apenas de ordem espacial, entre Brasil e França, mas também temporal,
pois se trata de outra época, vista retrospectivamente, cujas realidades
mudaram bastante em relação à atualidade. Para o Brasil, considere-se
o fato de que, na época de meu estudo, ainda não havia a “epidemia do
crack”, que acabou recrudescendo as condições de vida na rua e aumen-
tando significativamente seu contingente. Para a França, o Institut Natio-
nal de la Statistique et des Etudes Économiques (INSEE) identificou 143.000
pessoas sem-domicílio em 2012, o que corresponde a um aumento de
mais de 50% em relação a 2001 (MORDIER, 2016), sem contabilizar as
levas migratórias em fuga das guerras no Meio Oriente. Entretanto, por
falta de um conhecimento consistente mais atualizado, as considerações
que sou capaz de tecer apresentam considerável anacronismo.
Em Porto Alegre, analisei o problema do modo de vida nomádico
dos habitantes das ruas e suas implicações para uma sociedade sedentária.
Em Paris, o meu recorte de pesquisa foram as imagens elaboradas pela so-

261
ciedade francesa a respeito de pessoas Sem-Domicílio Fixo, em contrapo-
sição às imagens produzidas por elas em ateliers artísticos e culturais pro-
movidos no meio associativo. Percebe-se como os temas que me guiaram
nos dois contextos não foram os mesmos1, além do fato do trabalho etno-
gráfico em grandes metrópoles, desenvolvido a partir de uma abordagem
direta, em pequena escala, não ser o mais adequado para comparações.
Entretanto, foi o que tentei fazer durante o primeiro ano do dou-
torado, até reconhecer a armadilha etnocêntrica que me assolava, cada
vez que era tentada a considerar muito “confortáveis” e “abastadas” as
condições de vida e amparo social dos chamados Sem-Domicílio Fixo
franceses em relação aos Moradores de Rua brasileiros. Finalmente,
consternada pelas notícias de suscessivas mortes violentas de vários de
meus jovens interlocutores brasileiros, acabei desistindo de uma abor-
dagem comparativa. Agora, à distância, tentarei esboçar alguns con-
trastes a partir de recortes pontuais, sem, contudo, deixar de atentar
para os limites e a complexidade deste investimento.

Precauções para uma reflexão transnacional

Em artigo de Patrick Gaboriau (2011) para o dossier temático so-


bre População em Situação de Rua da Revista Antropolítica, este etnó-
grafo, que trabalhou em Paris, Moscou e Los Angeles, é prudente quan-
to aos limites e à complexidade desta reflexão transnacional. Dentre os
inúmeros parâmetros possíveis – a desigualdade social, a visibilidade
ou não destas pessoas no espaço público, as faixas etárias predominan-
tes, as estatísticas, o funcionamento do estado e das políticas sociais, as
modalidades de serviços disponíveis, a atuação das associações e dos
quadros caritativos, os modos de vida, os estudos biográficos etc. – é
necessário definir precisamente o que se quer comparar.
As tentativas de objetivação da questão, segundo ele, constituem
apenas uma abordagem prévia útil, que não dispensa o trabalho de
campo. Assim, os dados sobre a renda media, por exemplo, não dão
conta da situação multifactorial que envolve a vida nas ruas, que deve
considerar o acesso à habitação, a assistência médica e social, a possi-
1 Diferente da tese em Sociologia de Camila Giorgetti (2004), acerca das represen-
tações sociais sobre os moradores de rua em São Paulo e em Paris.

262
bilidade de recorrer a empregos informais ou à mendicância, as formas
de dominação do Estado e da polícia, o amparo de organizações carita-
tivas, públicas ou privadas, dentre tantos. O mesmo ocorre quanto ao
fator climático, pois se os invernos em Moscou, por exemplo, são de
15oC negativos, o acesso a moradias coletivas ou estruturas de alberga-
mento relativizam a fatalidade do desabrigo.
Assim, para este etnólogo, a vida nas ruas resta como “símbolo”
maior da privação, cuja análise comparativa não pode desconsiderar o
seu campo de dominação, a relação com os pobres em geral e com os
demais habitantes da cidade, de acordo com a organização cultural e o
período histórico de cada sociedade. Como aspecto irredutível aos três
estudos de caso, na França, EUA e Rússia, ele identifica o discurso dual
e o comportamento “bicéfalo” da sociedade, oscilando entre a amabili-
dade e a culpabilização, a assistência e a repressão.
Ressaltadas estas precauções, passo às duas etnografias referidas,
sem no entanto deixar de mencionar uma evidência quanto às duas
metrópoles em foco: Porto Alegre é capital regional de um país sul-a-
mericano, marcado por um passado escravocrata, cujas cicatrizes per-
manecem abertas e incidem sobre a população que habita as ruas; Paris
é capital de uma das maiores potências européias, considerada centro
do mundo na era colonial, para onde tenta imigrar a população que
amargou as consequências desta política imperialista.

A propósito do Nomadismo Urbano: a etnografia


em Porto Alegre

Na época em que realizei a primeira etnografia, o termo “popu-


lação em situação de rua” não era usado (embora ainda esteja pouco
difundido), prevalecendo as designações com carga semântica negativa
- como Vagabundo, Trapeiro, Mendigo, Pardal, Indigente, Sem-Teto,
Sem-Domicílio, Criança de/na Rua - com consequências diretas sobre
a imagem daqueles que são assim designados. Sabe-se que os termos de
designação remetem às representações, aos valores e à autoimagem da
sociedade de modo que, nas representações sobre o Outro, é o essencial
do Mesmo, sujeito designante, que está em questão.

263
Nesta etnografia sobre o modo de vida nas ruas de Porto Ale-
gre, sem restrição a faixas etárias, destaquei a efemeridade dos acam-
pamentos, continuamente reterritorializados em diversos logradouros
da cidade, analisei a morfologia habitacional, a cultura material, a iti-
nerância e fluidez destes coletivos, assim como as particularidades de
seus corpos e estratégias de sobreviência. Com isso, defendi a hipótese
de que a mobilidade acentuada, decorrente da não fixação domiciliar
da população de rua, promove um tipo de relação com os espaços, com
as coisas e com os corpos, divergente dos padrões sedentários, caracte-
rizando seu modo de vida por um tipo de nomadismo próprio ao meio
urbano. Além de contemplar a dinâmica e especificidade deste modo
de vida, a perspectiva nomádica em meio urbano, visava quebrar as
categorias nominativas que lhes eram atribuídas a partir de uma pers-
pectiva sedentária e pautada pela negatividade semântica: a ausência
ou carência em relação ao lar, valor e símbolo central na história da
civilização ocidental.

Da etnografia a um projeto de ação coletiva: “Letras na Rua”

Decorrente desta etnografia, uma experiência abalou meus para-


digmas, devido ao total desinteresse demonstrado pelos jovens a quem
tentei restituir a dissertação. Não pude deixar de reconhecer que tinham
razão, quando afirmaram que nenhum “especialista” saberia, melhor do
que eles, escrever sobre seu modo de vida. Com apoio da Secretaria Mu-
nicipal de Cultura e de uma amiga escritora, decidimos investir nesse
projeto coletivo, que há tempos, eles tentavam, em vão, realizar. Ao lon-
go de três meses, fizemos uma oficina literária em praças e parques da
cidade, e o livro Letras na Rua (MAGNI e LUNARDI, 1995) foi publi-
cado alguns meses depois, reunindo dez ensaios autobiográficos selecio-
nados por eles próprios, dentre o total de textos produzidos. O interesse
que demonstraram em investir numa forma de expressão escrita, pouco
usual para eles, devia-se à uma premonição, confirmada nos anos subse-
quentes: de que não viveriam por muito tempo.
Assim, no ano seguinte, quando obtive uma bolsa de doutorado
para realizar a pesquisa na França, minha primeira intensão era de

264
refletir sobre esta experiência e sobre a evidência de que além de “so-
breviver” nas ruas, estas pessoas anseiam por meios para expressar-se
simbolicamente, através de seus corpos, suas performances, suas músi-
cas, seus desenhos, sua grafia (esteja ela inscrita sob viadutos, como
forma de territorilização dos espaços públicos em que habitam, ou atra-
vés de um livro com suas memórias e visão de mundo).
Refletindo sobre o processo e os resultados desta Oficina Literá-
ria, associados àquela primeira experiência etnográfica, pareciam-me
profundamente contrastantes as imagens (mentais, gráficas, pictóricas,
performativas) que estas pessoas produziam sobre si e sobre o mundo,
em relação ao imaginário enraizado na sociedade a seu respeito. E foi
este o ponto de partida do projeto de doutorado, beneficiado pela pro-
liferação de ateliers e atividades socioculturais semelhantes à Oficina
Letras na Rua, que encontrei na França.

De Clochard a SDF: as imagens de acervos e o fenômeno


da exclusão social na França

Em Paris, procurei desdobrar este problema de pesquisa, a res-


peito da imagem de si e do outro na interação entre as pessoas em
situação de rua e a sociedade abrangente, começando pelo método his-
tórico ou a etnografia de arquivo, através de consulta a acervos visuais
e audiovisuais, onde procurava pistas sobre o modo como a sociedade
francesa foi elaborando seu imaginário a respeito do que eu chamara,
no Brasil, de “nômades urbanos”.
Inicialmente, foi difícil diferenciar entre as várias designações
correntes na mídia, políticas públicas e literatura especializada – Sans-
-Domicile Fixe (Sem-Domicílio Fixo), SDF, Sans Abri (Sem-Abrigo) – e
outros termos que haviam caído em desuso, mas que eram eventual-
mente acionados: Clochard, Gueux (Indigente), Mendiant (Mendigo),
Vagabond (Vagabundo) etc. Com estas palavras-chaves em mãos, passei
à pesquisa de imagens em acervos públicos e privados.
No Departamento de Impressões de Fotografia da Biblioteca Na-
cional da França, visualizei microfilmes e cópias de gravuras, como
as de Jacomo Callot (1592-1635), com figuras de homens, mulheres

265
e crianças maltrapilhas e estropiadas, portando sacos e cajado, tendo
igrejas cristãs ou hospitais gerais como cenário de fundo. São cenas
que praticamente não se vê mais na França, embora encontrem certa
correspondência no contexto brasileiro.
Desde os primórdios da fotografia, a imagem de mendigos e indi-
gentes faz apelo ao olhar de fotógrafos, como se percebe dentre acervos
particulares de livreiros e colecionadores de impressos do início do
século XX. Neles, encontrei fotomontagens, como as do célebre cego
Yann ar Soniou, cuja mesma figura aparece, ora sozinha, ora em meio
a um grupo de “Mendigos bretões de diferentes localidades reunidos
para um perdão”; fotografia de um casal de velhos sob a placa “mendi-
cância proibida - lei municipal”; ou cartões postais de fotopinturas com
a inscrição “Lição de Caridade”, com a encenação de uma menina e sua
mãe, na porta de casa, entregando esmola a uma mendiga.
Chronique de la Rue Parisienne (CELATI e TROUILLEUX, 1995)
é uma publicação em série, organizada por uma associação de fotógra-
fos, reunindo fotos e artigos de imprensa separados por décadas. Na
década de 30, chamam a atenção cenas de distribuição de comida por
entidades filantrópicas e uma matéria intitulada “os trogloditas em ple-
na Paris”, mostrando homens que acampam sob as pontes e às margens
do Rio Senna, com a legenda: “descida aos infernos”. Há também foto-
grafias de clochards imersos em cenários turísticos, como a Av. Champ-
s-Elysées ou a Catedral de Notre Dame.
Dentre os arquivos da Videoteca de Paris, no Forum des Images,
consultei 130 obras relacionadas ao tema, sendo a mais antiga, fiel à
tradição burlesca do cinema mudo, datada de 1917: Une soirée mondaine
(Uma noitada mundana), de Diamant-Berger, com 8 minutos de dura-
ção, em que um casal de simpáticos clochards misturam-se aos partici-
pantes de uma festa animada. Quase metade do acervo (60 filmes) são
do último decêncio do século XX.
No centro de consulta do Instituto Nacional do Audiovisual, a
Inathèque de France, onde estão os arquivos audiovisuais e sonoros da
televisão e rádio francesas, encontrei 5.181 emissões televisivas, dentre
programas de estúdio com reportagem, documentários, jornais televi-
sivos, ficções, espetáculos, reportagens e retransmissões.

266
Impressionada com este corpus de pesquisa histórica que, por si
só, valeria uma outra monografia, tive que fazer uma escolha e acabei
optando pela etnografia, mas gostaria aqui de destacar alguns aspec-
tos. Em termos gerais, em contraste com o que ocorre no Brasil, per-
cebe-se a importância do valor patrimonial da documentação na cultu-
ra francesa. No que concerne especificamente ao sujeito em questão,
percebe-se a antiguidade e a profusão de imagens em que aparecem,
embora os significados e tratamentos correspondentes tenham varia-
do, de acordo com a ideologia predominante em cada época. A figura
do pobre associada ao filho de Deus, com poder de mediação para a
remissão dos pecados, está aquém do que está arquivado, remontando
ao cristianismo primitivo, com raízes profundas no imaginário euro-
peu, que se propaga pelo mundo colonizado através da cristianização.
Posteriormente, a laicização da assistência aos necessitados foi uma
das bases da implantação dos estados nacionais, e as de imagens do
trabalho filantrópico contribuem para a sua consolidação. Ao longo do
século XX, percebe-se uma distância considerável entre a figura folcló-
rica do clochard no entre-guerras – personagem exótico, com seu saco
nas costas e garrafa de vinho na mão, integrado à paisagem urbana e
destacado em filmes, canções e cartões postais da Cidade Luz – e o SDF
de hoje, cuja tentativa de invisibilizar-se em meio à sociedade abran-
gente revela os efeitos do desemprego em massa. Como diz Gaboriau
(1998, p. 16), “o SDF que vemos à nossa porta ou na tela de nossa TV,
no inverno, é a prolongação do mendigo vagabundo de início do século
e do clochard dos anos cinquenta”.
A partir dos anos 80 do século passado, a sociedade francesa, que
se acreditava protegida pelos dois pilares – a Seguridade Social para os
trabalhadores e a Assistência Social para os incapacitados ao trabalho
– passa a falar em “nova pobreza”, colocando em dúvida a sua coesão
social. Dissolve-se a utopia de “fazer a revolução”, para então “lutar
contra a exclusão” e “promover a inclusão”, sem maior questionamento
sobre o sistema. Segundo Michel Autes (1997, p. 127), a imagem “é de
uma ameaça, do retorno das coisas vergonhosas, que se acreditava ter
apagado de nosso mundo”, enquanto Jacques Donzelot (1996, p. 89)
afirma que a “nova pobreza” representa um “espectro vindo assustar as

267
nações desenvolvidas”. Também aqui, a realidade brasileira é contras-
tante, pois mesmo após o fim do sistema escravocrata, a grande massa
de trabalhadores continuou vivendo à margem dos direitos cidadãos,
e o Estado de Bem-Estar Social, tal como conhecido na França, jamais
foi implantado em sua plenitude.

O trabalho de campo nas ruas de Paris e a onipresença


do Terceiro Setor

Diante do risco de fratura social, os anos 1980 marcam uma rea-


ção dos cidadãos franceses ao individualismo de massa, através da reto-
mada e proliferação das ditas “Associações Lei 1901” (ano em que entra
em vigor o direito de livre associação para fins não lucrativos), cujo
objetivo explícito é o “combate contra as exclusões sociais”. Incapaz de
atender às demandas crescentes, o Estado Provedor passa a uma polí-
tica de descentralização, estabelecendo parcerias com o Terceiro Setor
e com as comunidades locais, que já atuavam ou que passam a atuar
na relação direta com este vasto e diversificado segmento de pessoas
“excluídas”. Assim, simultaneamente à coleta de imagens em arquivos,
a que me ative por cerca de um ano, eu realizava o trabalho de campo
em espaços públicos da cidade e no meio associativo.
Nas estações de trem, nos subterrâneos de metrô (refúgio aque-
cido durante o inverno) ou, eventualmente, sob as pontes do Rio Sena
e em lavanderias de autoserviço sem presença de atendentes, eu en-
contrava pessoas SDF: predominantemente homens sozinhos ou em
pequenos grupos, com poucos pertences e muitas vezes entorpecidos.
Mas nunca deparei-me com bandos de crianças e jovens, famílias mo-
noparentais e agrupamentos “mistos” com homens e mulheres, como
é o caso nas metrópoles brasileiras. Demorou para que eu percebesse
que, diversamente do que ocorre em Porto Alegre, em Paris, a presença
diminuta de acampamentos sob viadutos, em calçadas, praças, parques
e construções abandonadas, resulta de um intenso controle policial e
reflete um problema de (in)visibilidade social, numa metrópole ciosa de
sua imagem perante o turista e o cidadão francês. Na França, diz Gabo-
riau (2010, p. 50), “desde o século XIX, a vadiagem e a mendicidade fo-

268
ram objeto de intensa repressão até março de 1994, data em que entrou
em vigor o novo código penal (que não as considera contravenção)”.
Entretanto, quatro anos depois de meu retorno ao Brasil, o movimento
Les Enfants de Don Quichotte, em protesto pela carência de moradias a
baixo custo, mudou radicalmente aquele panorama, através da ocupa-
ção massiva, em barracas vermelhas, das margens do Canal St Martin
e outras vias importantes da capital (GRAEFF, 2010). Finalmente, as
forças policiais reprimiram o movimento, proibindo novas ocupações
em locais públicos.
Outra cena recorrente em cidades brasileiras, que não observava
em Paris, era a cata de comida feita individual ou coletivamente, por
crianças, jovens e idosos, em meio ao lixo indiferenciado das residên-
cias e estabelecimentos comerciais. Também neste caso, a questão do
controle disciplinar e da higienização são decisivos, pois desde 1883, a
regulamentação municipal do prefeito Poubelle obriga a colocação do
lixo, acondicionado, na via pública, apenas uma hora antes da passagem
da limpeza urbana. Por outro lado, no final das feiras de rua, os restos
de frutas e legumes são fonte de consumo próprio para alguns, mas
com frequência, ficam sob a responsabilidade do trabalho associativo,
com voluntários responsáveis pela organização e distribuição destes
excessos aos necessitados. Nestas filas, além de adultos e velhos, de
ambos os sexos, encontrei também jovens e crianças, mas estas, jamais
desacompanhadas.
Nas proximidades das estações férreas, ao entardecer, um espe-
táculo dramático se repetia diariamente: longas filas de pessoas aguar-
dando pelas diferentes equipes móveis, que se sucediam para converser,
disponibilizar informações e distribuir alimentos: refeição quente, pães
e doces, café etc., alternadamente. Estas doações, entregues pelos vo-
luntários em embalagens descartáveis, eram preparadas por eles ou
coletadas dos excedentes de estabelecimentos de restauração, para se-
rem redistribuídos, sendo proibido ejetá-los em lixeiras públicas, por
risco de contaminação. Na prestação de assistência alimentar gratuita,
articulada a um propósito de inclusão social, destaca-se ainda, em todo
o país, a ampla rede de voluntários e assalariados da associação fundada
em 1985 pelo famoso comediante Coluche: os Restos du Coeur (Restau-

269
rantes do Coração) que, além das equipes móveis, dispõe de cantinas
estabelecidas, onde é possível comer uma refeição completa, com en-
trada, prato principal e sobremesa, conforme hábito alimentar francês.
Aos poucos, eu percebia que, para entender o fenômeno na Fran-
ça, era impossível restringir meu trabalho de campo ao universo das
ruas, como eu havia feito no Brasil, onde a presença de organismos as-
sociativos e prestação de serviços públicos era débil e deficitária. Para
Gaboriau (2000, p. 244) “ a pobreza na rua será considerada como parte
visível do iceberg, que desvela a precariedade massiva dos beneficiários
dos ‘rendimentos mínimos’ que não encontraram lugar nos mercados
de emprego”. A profusão e o dinamismo do Terceiro Setor, articulado
ao Estado, podem ser exemplificados por um dos Guias Práticos dispo-
nibilizados pela Prefeitura de Paris, em 1998, onde encontro informa-
ções sobre: alojamentos (permanências sociais de acolhimento, centros
de albergamento, estruturas de albergamento geridas por associações),
alimentação (50 endereços, embora alguns funcionassem apenas no in-
verno), cuidados de saúde (centros médico-sociais, hospitais e outros
locais de cuidados de saúde gratuitos) e necessidades cotidianas (Cen-
tros Municipais de banho/ducha, prestações diversas). Foi no quadro
identificado como “espaços solidariedade-inclusão”, incluídos nesta úl-
tima categoria, que aprofundei meu trabalho de campo, analisando as
atividades socioculturais promovidas pelo Socorro Católico e pela As-
sociação Les Haltes des Amis de la Rue, relacionadas à Igreja e ao Estado,
respectivamente. Por já ter tido a oportunidade de escrever sobre as
oficinas nelas desenvolvidas (MAGNI, 2002; 2009; TURRA-MAGNI,
2011), não me deterei no assunto, mas quero, a seguir, refletir sobre a
associação onde dei início ao trabalho de campo.

O trabalho de campo em um Atelier Literário parisiense:


os contrastes com o Letras na Rua

Meu primeiro contato no meio associativo, quando acabara de


chegar na França, ocorreu em um Atelier Literário, que contrastava
com a experiência realizada em Porto Alegre através da Oficina Letras
na Rua. Esta era uma das atividades realizas pela Associação Compag-

270
nons de la Nuit, criada 1975, num local do Quartier Latin chamado La
Moquette, em funcionamento desde 1992. Em sua origem está o bar
Le Cloître, mantido pelo abade Pierre, celebridade francesa responsável
pelos relatórios sobre a pobreza da década de 70 e pela intensa mobili-
zação cidadã daí decorrente. Com o fechamento do Bar, por queixas da
vizinhança, o Padre Pedro Mecca, um educador social basco, foi licen-
ciado, passando a atuar nas ruas, até a abertura da Moquette, que privile-
gia atividades noturnas: “De noite - diz Pedro Mecca - que se seja SDF
ou ADF (Avec Domicile Fixe: Com Domicílio Fixo), encontramo-nos
fora do tempo social. As máscaras caem, os papeis explodem. [...] O
tempo da noite desnuda e aproxima as pessoas” (ELSJE, 1994: s/n).
Sempre fui bem recebida neste local, onde acompanhei 8 sessões de um
Atelier Literário, realizado em uma sala ampla no subsolo, abaixo do
andar térreo, no qual estão a sala de recepção, o escritório da equipe,
uma cozinha e dois toilettes.
Cerca de sessenta pessoas ou mais, dependendo da programação,
reuniam-se nas noites em que estive presente. Como é hábito dentre
os franceses, cada um que entrava no ambiente, cumprimentava os de-
mais, estendendo-lhe a mão, mesmo que não se conhecessem. A aco-
lhida dos educadores e estagiários era calorosa e informal. “Tem um
monte de gente hoje na tua casa”, diz uma das pessoas acolhidas, ao
que responde o educador: “Gosto disso! E nem sei por quê é que elas
vêm aqui!”. Este comentário vem reforçar o que ele já me explicara: que
não se trata de um lugar destinado a fazer doações, como tantos que
existem pela cidade, em que as pessoas permanecem anônimas. Aqui
“não se dá nada”, disse-me ele, justamente para “não criar o estatuto do
necessitado, mas, ao contrário, valorizar o que as pessoas portam em si
mesmas”. É sobretudo um lugar para “trocar, estar em relação”, “rom-
per os guetos”. Nem por isso era inabitual o surgimento de discórdias e
bate-bocas, logo resolvidos com discrição e paciência pelos educadores.
Foi neste campo de pesquisa, onde reuniam-se pessoas adultas,
majoritariamente do sexo masculino, nascidos na França ou prove-
nientes da América Latina, de antigas colônias francesas da África ou
de outros países da Europa, como Portugal, que tive meus primeiros
contatos com os “SDF”, que eu acreditava serem os “homólogos” dos

271
habitantes da rua com quem eu trabalhara no Brasil. Entretanto, como
fui entendendo ao longo de nossas conversas, a maioria deles não habi-
tava efetivamente nas ruas ou em abrigos improvisados, mas em cen-
tros de albergamento, hotéis sociais ou locações subsidiadas por asso-
ciações ou pelo Estado. No que concerne à aparência e vestimenta dos
participantes, elas pouco ou nada diferiam daquelas usadas por outros
cidadãos franceses, em contraste com os andrajos e roupas de tamanho
desproporcional com que se abrigavam os jovens do Letras na Rua.
Ademais, muitos dos “SDF” tinham acesso a algum recurso financeiro,
como pensão ou Rendimento Mínimo de Inserção (que, para a minha
surpresa, correspondia a 6 vezes mais do que o salário mínimo do Bra-
sil, para quem trabalha 8 horas diárias). Considerando que, no fim do
século XX, a telefonia portátil ainda era pouco difundida, admirava-me
o fato de alguns possuírem celular (o que, vim a perceber, era mais
compreensível para uma pessoa que não tem domicilio fixo do que para
outra domiciliada).
O lugar que eu ocupava neste atelier, e que condicionava meu
olhar sobre o Outro, também era distinto daquele que eu ocupara na
Oficina do Brasil, onde minha relação de alteridade com os demais par-
ticipantes era mais evidente. Na França, eu me encontrava na condição
de neófita, ignorando as sutilidades do idioma, transtornada com as
minhas limitações de comunicação oral e, principalmente escrita, o que
fazia com que eu me sentisse, de certa forma, “excluída” do domínio das
letras e, portanto, identificada com as pessoas acolhidas, muitas delas,
também estrangeiras. Já em 1908, Georg Simmel (1998) apontava o
paradoxo comum vivido por pobres e por estrangeiros, na medida em
que ambos encontram-se, simultaneamente, fora e dentro da sociedade
em que residem.
Em cada sessão do atelier literário, um dos responsáveis escrevia
no quadro algumas palavras ou frases para servir de inspiração. “O Va-
zio”; “Eu sei, eu não sei...”; “O Cansaço”; “E se amanhã...”; “Que o único
sonho que eu tenha seja: acordar” foram alguns dos temas propostos.
Após a redação, um círculo de cadeiras era formado para as pessoas
lerem os textos ou darem-nos para que alguém os lesse em voz alta, ao
que os ouvintes aplaudiam, com maior ou menor entusiasmo.

272
A qualidade literária dos textos produzidos revelava uma forma-
ção escolar admirável, em comparação com a precariedade da alfabeti-
zação dos jovens que haviam participado do Letras na Rua. A abstração
dos temas propostos em La Moquette também contrapunha-se ao estilo
realista que movia os participantes da Oficina de Porto Alegre, cuja
intenção declarada era de testemunhar e denunciar as condições nas
quais haviam crescido e sobrevivido à rudeza da vida nas ruas. Lem-
bro-me inclusive dos protestos gerados pelo garoto que tentou lançar
mão de certos jargões literários, para aventurar-se na poesia.
Na Moquette, antes do encerramento da sessão, bandejas com chá,
café e biscoitos eram trazidas para serem compartilhadas de modo con-
vivial e descontraído. Enquanto isso, todos os textos eram fotocopia-
dos para serem enviados aos editores da Revista La Rue (A Rua), que
selecionavam alguns a serem publicados.
Também na Oficina Letras na Rua, minha amiga escritora e eu
proporcionávamos aos jovens, no início da sessão matutina, um lanche
com pão, margarina e suco, que eram engolidos com voracidade e ga-
rantiam maior êxito na realização da atividade principal, sem que isso
fosse um momento de convivialidade para eles. Os textos produzidos
passaram por uma leitura coletiva para serem selecionados, e após al-
guns meses, em 1996, o livro Letras na Rua foi lançado, com sessão de
autógrafos e grande destaque nas mídias (imprensa, rádio e televisão).
Posteriormente, no ano 2000, foi criada, em Porto Alegre, a
Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação (ALICE), res-
ponsável pelo Jornal Boca de Rua, vindo somar-se a projetos similiares
de outras capitais do país, como a Revista Ocas e o Jornal O Trecheiro.
O fato de ser inteiramente feito, autogerido e vendido por moradores
de rua, com reversão integral do dinheiro arrecadado para os partici-
pantes do grupo, confere peculiaridade a este projeto, que permanece
vigoroso e inclusive está integrado ao estudo censitário reunido para a
presente publicação.
Em contraste, na Europa, esta “imprensa de rua”, cujo precursor
foi o jornal inglês The Big Issue, entrou em franca decadência nas últi-
mas décadas, depois de ter passado por um período áureo, quando eu
vivia lá. Além do La Rue, que publicava matérias muito interessantes,

273
juntamente com os produtos do Atelier Literário da Moquette, havia
também um amplo leque de opções, embora com qualidade jornalística
muito inferior. L’Itinérant, SDF, Sans-Logis, Le Réverbère, Le Lampa-
daire, La Mouise, Passeport, Faim de siècle, Macadam eram os jornais de
maior circulação. Diversamente do Boca de Rua, estes jornais eram co-
mercializados por pessoas Sem Domicílio Fixo, mas nem sempre pro-
duzidos por elas. Com o tempo, escândalos de fraudes, enriquecimento
ilícito, exploração de trabalho clandestino e interesse puramente co-
mercial passaram a colocar em dúvida seu real interesse na reinserção
social e econômica destes vendedores, levando a um franco declínio da
imprensa de rua (assim como dos jornais impressos de modo geral).

As imagens de si e do outro e a desintegração


do binômio inicial

Dois projetos em especial, realizados na Moquette foram abalando


a minha convicção inicial, sobre a dualidade entre as imagens de si e
do outro, na interação social entre pessoas sem domicilio fixo e a socie-
dade abrangente. O primeiro, ‘Viens chez moi, j’habite dehors’, un carnet
de voyage chez les sans-abri’ (ELSJE, 1994), reúne desenhos, aquarelas
e manuscritos, realizados por uma artista plástica, fruto de sua parti-
cipação nos encontros noturnos desta Associação e da experiência de
acompanhar um de seus habitués na busca, frustrada, de um abrigo para
pernoitar. O segundo projeto resultou de uma exposição fotográfica de
Olivier Pasquier, em que aparecem retratos com uma parte do rosto de
alguns dos frequentadores da Moquette, acompanhados de um pequeno
texto de autoria da própria pessoa fotografada, onde ela descreve “o
que a fotografia não revela”.
Estes e outros projetos e publicações demonstravam a possibi-
lidade de produtos híbridos, feitos em parceria entre pessoas “com” e
“sem” domicílio. Foi este o princípio que guiou os dois filmes que reali-
zei em Paris2, desenvolvidos no âmbito do atelier de vídeo de uma das
associações que etnografei. Também não me deterei nestes casos, já
apresentados em artigos, mas é importante ressaltar que, diversamente
2 “A Oferenda de Sabiá” e “Tempo dos Sem-Voz”, disponíveis em https://vimeo.com ›
LEPPAIS UFPEL › Videos

274
dos filmes que acompanharam a pesquisa de mestrado3, os do doutora-
do foram feitos em diálogo e numa perspectiva simétrica com os pro-
jetos fílmicos dos próprios protagonistas, participantes desta oficina.
O fato é que, antes disso, durante muito tempo, o sentido de “ex-
clusão” para a sociedade francesa me escapava, na medida em que era
difícil para mim identificar, na Moquette, quem eram os SDF e quem
eram os educadores, os agentes sociais e visitantes eventuais (ou
“ADF”). As fronteiras imaginárias entre incluídos e excluídos, nativos
e estrangeiros se apagavam e as “imagens do mesmo e do outro” se in-
tercambiavam. Confusa diante deste “novo sujeito de estudos”, que ga-
nhava contornos imprecisos e ameaçantes, acabei por abandonar esta
associação, depois de três meses de trabalho de campo (entre janeiro e
março de 1998), para partir em busca de pessoas SDF mais “autênti-
cas”, segundo os preconceitos etnocêntricos que então me assolavam,
a cada vez que eu tomava a experiência etnográfica realizada no Brasil
como parâmetro de comparação. Isso bloqueava minha capacidade de
estimar o sofrimento de arcar individualmente com o peso de ser “ex-
cluído”, numa sociedade que constrói sua imagem balizada pela crença
na igualdade e no bem-estar social.

3 “Nômades Urbanos” e “Habitantes de Rua” (disponível em https://vimeo.com ›


LEPPAIS UFPEL › Videos).

275
Referências

DONZELOT, J. Face à l’exclusion, le modèle français, Paris : Esprit,


1991.

ELSIE. Viens Chez Moi, J’habite Dehors. Un carnet de vouyage


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nólogo em três campos de pesquisa: tentativas de esclarecimento. An-
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GIORGETTI, C. Entre o Higienismo e a Cidadania. Análise com-


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São Paulo e Paris. [Tese de Doutorado]. PUC-SP e Institut d´Études
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GRAEFF, L. De la survie à la reconnaissance: ethnologie de per-


sonnes “sans logis” à Paris. [Tese de Doutorado]. Université Paris
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MAGNI, C. T.; LUNARDI, A. (Orgs.). Letras na rua. Porto Alegre:


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MAGNI, C. T. Sem-Domicílio Fixo, de objeto a sujeito de imagens:


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logia e Imagem, v. 15, 2002.

______. Nomadismo urbano: uma etnografia sobre os moradores


de rua em Porto Alegre. Santa Cruz: EDUNISC, 2006.

______. A Oferenda de Sabiá: Produção Fílmica em uma Oficina para


Pessoas Sem-Domicílio-Fixo em Paris. In: MICHELON, F. F.; SEN-
NA, N.; DA SILVA, U. (Orgs.). Gênero, Arte e Memória. Ensaios
Interdisciplinares. Pelotas: Ed da UFPel, 2009.

276
______. Images du Même et de l’ Autre, une ethnographie des
ateliers artistiques pour des personnes sans domicile à Paris. Saar-
brücken: Editions Europeenes, 2011a.

MORDIER, B. Introduction de cadrage: les sans-domicile en France :


caractéristiques et principales évolutions entre 2001 et 2012. Écono-
mie et Statistique, n. 488-489, 2016.

SIMMEL, G. Les pauvres, Paris: PUF Quadrige, 1998 [1908].

TURRA-MAGNI, C. Nova pobreza e paradoxos da política de inclu-


são social francesa: considerações a partir de uma oficina cerâmica no
Socorro Católico. Antropolítica: Revista Contemporânea de Antro-
pologia, n. 29, 2011b.

CELATI, J.-L.; TROUILLEUX, R. Chronique de la rue parisienne.


Paris: éditions Parigramme / CPL, 1995.

277
A LEGIBILIDADE COMO GESTÃO E INSCRIÇÃO
POLÍTICA DE POPULAÇÕES: NOTAS
ETNOGRÁFICAS SOBRE A POLÍTICA PARA
PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA NO BRASIL
PAtrice Schuch

James Scott (1998) situa a legibilidade como um dos problemas


centrais das práticas de formação do Estado1. O conhecimento dos su-
jeitos, sua localização, riqueza e identidade, assim como os processos
de criação de métricas e medidas que permitem que tais elementos se-
jam traduzidos para padrões comuns, seriam fundamentais para o mo-
nitoramento, registro e inspeção, que acompanham a criação dos Es-
tados. A invenção de sobrenomes, a padronização de pesos e medidas,
o estabelecimento de pesquisas cadastrais e registros populacionais,
a padronização de linguagem e discurso legal, o desenho das cidades
e do transporte público são exemplos dessas práticas de legibilidade.
Para Scott (1998), as práticas de legibilidade aumentariam a capacida-
de estatal e tornariam possíveis intervenções discriminatórias de todo
o tipo, tais como as políticas de vigilância, de saúde, de assistência so-
cial etc. Segundo o autor, seriam espécies de “mapas abreviados”, os
quais possibilitariam refazer as realidades que retratam através dos
processos de racionalização, padronização e simplificação.
Ao analisar um conjunto diverso de produção de legibilidade
em cenários muito diversos – por exemplo, a coletivização soviética, a
construção de Brasília, as práticas de criação de vilas/aldeias na Tan-
zânia (1973-6) – o autor destaca uma composição de fatores que ca-
racterizaram tais esforços: ordenamento administrativo da natureza
e sociedade; ideologia modernista na crença no progresso, técnica e
ciência; Estado autoritário disposto a usar seu poder coercitivo para
1 Texto publicado originalmente no livro: FONSECA, C.; MACHADO, H. (Orgs.). Ci-
ência, Identificação e Tecnologias de Governo. Porto Alegre: Editora da UFRGS/
CEGOV, 2015. Pp. 121-145.

279
construir seu projeto; e, finalmente, sociedade civil apática. Entretanto,
Scott (1998) também se interroga acerca dos problemas na efetivação
da legibilidade nos contextos analisados e conclui, ao responder à ques-
tão, por ele mesmo colocada – por que tais projetos falharam? – que,
fundamentalmente, isso se deu porque tais propostas não levaram em
conta o conhecimento prático “local”, assim como os processos infor-
mais e a improvisação em face do imprevisível, presentes nos cenários
em que tais propostas visaram se efetivar.
Sem dúvida, a improvisação, os processos informais e o conheci-
mento prático das pessoas a que tais propostas se destinam são funda-
mentais de serem levados em conta analiticamente. Scott (1985; 1990)
já mostrou, em seus estudos sobre resistência, o quanto o que chama de
“infrapolítica” dos dominados pode exercer um papel importante na con-
figuração da política. Nessa direção, convence a sua fantástica descrição
sobre as relações entre fazendeiros e camponeses na aldeia que chamou
de Sedaka, em que o autor reivindica sua contrariedade com as noções
de “hegemonia” e “falsa consciência” a partir da potência das práticas de
fofoca, colocação de inusitados apelidos, realização de corpo mole e de
pequenos roubos e greves de trabalho realizadas pelos trabalhadores,
em um cenário de transformações nas relações de trabalho. Também, ao
desenvolver, em seus estudos sobre as revoltas camponesas, a noção de
“economia moral” (SCOTT, 1977), enfocou com grandeza os sentidos
de justiça forjados a partir do que chamou de “ética da subsistência” dos
camponeses, a qual valorizava o risco mínimo e embasava seus sentidos
de justiça, baseados em reciprocidades entre camponeses e seus patrões.
Embora tenha recebido algumas críticas – veja-se, por exemplo, as
colocadas por Monsma (2000) – fundamentalmente colocadas na pouca
atenção às diferenças e desigualdades presentes entre os próprios do-
minados, as análises de Scott (1977, 1985 e 1990), sem dúvida, são um
marco muito significativo e inovador nas abordagens sobre resistência.
Ao abordar as práticas de legibilidade estatais, entretanto, fica-se com a
sensação de que o problema na analítica de Scott (1998) não é exatamen-
te na consideração da criatividade e improvisação presentes nos cenários
estudados, mas em algo inverso: uma perspectiva muito homogênea do
próprio Estado e da ação de suas tecnologias de governo.

280
Análises como as de Das e Poole (2004) já criticaram o duplo
efeito de ordem e transcendência imaginado nas análises mais clássicas
sobre Estado, questionando sua construção. Em coletânea de estudos
antropológicos sobre o Estado, tais autoras rejeitaram a ideia do Esta-
do como forma administrativa centralizada de organização política que
se torna enfraquecida ou menos articulada ao longo de seu território
e nas suas “margens”. Na analítica proposta por Das e Poole (2004) o
Estado é imaginado como um projeto sempre incompleto, que deve
ser constantemente criado e imaginado através de uma invocação de
selvageria e ilegalismos. Por outro lado, as margens não são apenas
territoriais, mas são também espaços de práticas nos quais a lei e outras
práticas estatais são colonizadas por outras formas de regulação.
É neste sentido que as interrogações de pesquisa podem abarcar
também as questões de como as práticas e a vida política desses/nesses
espaços conformam as práticas políticas, regulatórias e disciplinares que
constituem o que se chama de “Estado”, convidando os analistas a repen-
sarem as dicotomias bem estabelecidas entre legal/ilegal, centro/periferia,
público/privado etc. Como possíveis agendas de pesquisas inspiradoras
sobre a relação entre Estado e suas margens, as autoras sugerem a análise
das tecnologias de poder com as quais o Estado tenta administrar e pacifi-
car populações, a relação entre corpos, disciplina e lei e, também, as dinâ-
micas de produção da legibilidade e ilegibilidade (DAS e POOLE, 2004).
No caso das análises sobre a produção de legibilidade estatal, o
privilégio analítico da maior parte das abordagens têm sido a de destacar
a relacionalidade entre legibilidade e ilegibilidade, mostrando sua con-
substancialidade (por exemplo, DAS e POOLE, 2004; DURÃO, 2009;
SOILO, 2015). Entretanto, acredito que a abordagem proposta por Das
e Poole (2004) convida também a explorar a sua produção a partir das
“margens”. Em minha opinião, o que é interessante nesta perspectiva é
a possibilidade de abertura para considerar a produção de legibilidade
não apenas como uma dimensão unilateral de um Estado centralizado
que produz “mapas abreviados” que simplificam, controlam e refazem as
realidades que retratam (SCOTT, 1998). Na medida em que nos permiti-
mos pensar as “margens” como espaços que também podem colonizar o
Estado, a própria produção de legibilidade também pode ser um espaço

281
em que novas inscrições políticas são efetivadas. É exatamente essa a
argumentação que desejo enfatizar neste capítulo, a partir de uma ex-
periência de engajamento etnográfico com o Movimento Nacional de
População de Rua (MNPR), coletivo que luta pela defesa e promoção dos
direitos humanos das chamadas “pessoas em situação de rua” no Brasil.
Através desse acompanhamento etnográfico, é possível perceber
um esforço, tanto do MNPR quanto de organismos jurídicos e órgãos
ligados ao Estado, em tornar a chamada “população em situação de rua”
legível ao Estado. Como pretendo também demonstrar neste texto, tal
esforço implica a celebração de técnicas importantes de produção da le-
gibilidade – como, por exemplo, as pesquisas censitárias, as definições
conceituais expressas em novas normativas legais e os manuais e carti-
lhas para a devida consideração desse grupo social como uma população
oficialmente inscrita no universo da garantia dos direitos no Brasil. En-
tretanto, tais práticas de produção de legibilidade não podem ser consi-
deradas como esforços constituídos apenas pelo Estado; tais técnicas de
governo são coproduzidas a partir de composições heterogêneas e tensas
entre Estado, movimento social, organizações jurídicas e não governa-
mentais e narrativas transnacionais mais amplas dos direitos humanos,
num entrelaçamento dinâmico de lutas e leis, processos de subjetivação e
moralidades, modos concomitantes de gestão e inscrição política.

Engajamentos Etnográficos e a Política Contra


e a Partir do Estado

Desde o ano de 2013, tenho acompanhado as reuniões e ativida-


des diversas do MNPR em sua seção do Rio Grande do Sul, estado do
sul do país. Meu atual engajamento etnográfico provém de um interes-
se iniciado em 2007, quando coordenei uma pesquisa quali-quantitati-
va sobre esse grupo populacional, em Porto Alegre, em parceria com
os colegas Ivaldo Gehlen (UFRGS), Claudia Turra Magni (UFPEL)
e Iara Kundel (UFRGS). A pesquisa intitulou-se: “Perfil e Estudo do
Mundo da População Adulta em Situação de Rua” (UFRGS, 2008) e
deu origem a uma mobilização reflexiva que articulou acadêmicos e
profissionais da Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC),

282
órgão gestor da política de assistência social no município e responsá-
vel pela administração da pesquisa em Porto Alegre, a qual originou
uma coletânea de artigos sobre a pesquisa e as políticas de atendimento
à população de rua (GEHLEN, BORBA e SILVA, 2008)2.
Na época, o Ministério do Desenvolvimento Social do Brasil, em
parceria com a UNESCO, estava realizando a primeira – e até o momento,
única – contagem populacional em nível nacional em relação à população
de rua. A pesquisa abrangeu todos os municípios com mais de 300.000
mil habitantes, com exceção de Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre,
que realizaram estudos próprios, com equipes locais (como aquela em que
eu estava incluída). A contagem nacional totalizou o número de 31.922
pessoas em situação de rua nos 71 municípios pesquisados e, na época,
agregando-se os dados das cidades que realizaram pesquisas específicas,
calculou-se que havia cerca de 50.000 pessoas em situação de rua no país.
A pesquisa de Porto Alegre, por sua vez, totalizou 1203 adultos e 383
crianças e adolescentes em situação de rua, contribuindo com dados im-
portantes acerca de seus modos de vida, relação com serviços públicos,
saúde, cotidiano e violência na rua (UFRGS, 2008; SCHUCH et Al., 2008).
Posteriormente, em 2011, engajei-me novamente no estudo de tal
população, a partir do convite da Prefeitura Municipal de Porto Alegre
que, às vésperas do lançamento do então chamado Plano de Enfrenta-
mento à População de Rua no município, desejava realizar o que foi cha-
mado de “cadastro” populacional dos adultos em situação de rua. Eu e o
sociólogo Ivaldo Gehlen realizamos então tal assessoria para o cadastro
populacional, que visava atualizar os dados de 2007 e subsidiar as ações
do governo previstas no Plano de Enfrentamento à População de Rua,
por sua vez obrigatório a partir das orientações da Política Nacional para
a População em Situação de Rua, lançada em 2009.
Sem prever o estudo mais amplo a respeito dos modos de vida,
educação, saúde, relação com serviços públicos, sociabilidade e violência,
2 A pesquisa quali-quantitativa acerca da população de rua integrou um projeto mais
abrangente de estudo de outras populações em Porto Alegre, com objetivo de com-
preender a diversidade cultural na cidade. Foi financiada pelo Ministério do Desen-
volvimento Social, administrada pela Fundação de Assistência Social e Cidadania
(FASC) e coordenada pelo sociólogo Ivaldo Gehlen. Foram estudados também os
remanescentes de quilombos, as comunidades indígenas e os afro-brasileiros de Por-
to Alegre/RS, pesquisas que contaram com uma ampla equipe de profissionais, entre
os quais antropólogos, sociólogos e historiadores. Ver: Gehlen, Borba e Silva (2008).

283
o cadastro populacional contabilizou o número de 1347 pessoas adultas
em situação de rua em Porto Alegre. Mais que a publicação do número
de pessoas em situação de rua em Porto Alegre, este cadastro populacio-
nal deu origem a uma nova mobilização efetiva dos serviços de assistên-
cia social em termos de reflexão sobre a população em situação de rua na
cidade de Porto Alegre. Houve a articulação de acadêmicos e profissio-
nais envolvidos com a efetivação das políticas públicas em seminários e
discussões diversas, originando mais uma vez a publicação de uma cole-
tânea de artigos sobre isto (ESPÍNDOLA et Al., 2012).
No ano de 2013, incentivada pelo desejo de realizar relações
menos contingentes do que aquelas estabelecidas pelas pesquisas qua-
li-quantitativas, passei a coordenar um projeto de pesquisa-extensão
intitulado: “Direitos Humanos: moralidades e subjetividades nos cir-
cuitos de atenção à população de rua no Brasil”. O projeto, que conta
hoje com dois anos de trabalho e ainda está vigente, prevê a compreen-
são das práticas de governo em torno desse grupo a partir das mora-
lidades e subjetividades daqueles que estão as produzindo nas práticas
cotidianas3. Inicialmente pensado para abordar tanto os profissionais
do Estado como aqueles atendidos pelas políticas de governo, fazendo
uma espécie de mediação entre esses através de encontros de reflexão
em torno de temas específicos (violência e cidadania, direito à cidade
etc.), o projeto atualmente privilegia o engajamento e compreensão da
luta política do Movimento Nacional de População de Rua (MNPR).
Como disse a mim certa vez José Batista, atual co-coordenador
do MNPR no Rio Grande do Sul (RS): “Patrice, você olhou o lado dos
vencedores [...] Agora está na hora de olhar para os perdedores, tem
que escrever sobre os perdedores”. Possivelmente ele estava se refe-
rindo às minhas participações nas pesquisas administradas pela FASC.
A forma de colocação dos termos da frase – perdedores e vencedores
– colocava o MNPR e a Prefeitura de Porto Alegre em lados opostos e
3 Atualmente, a equipe é formada pelos alunos de graduação em Ciências Sociais
Bruno Guilhermano Fernandes e Pedro Ferreira Leite. Participam ativamente ainda
desse campo de pesquisa e extensão o aluno de doutorado Tiago Lemões da Silva
e a aluna de mestrado Helena Lancelotti. O trabalho de campo intenso vivenciado
por essa equipe começa agora a ser refletido e pensado em textos e artigos sobre o
assunto e, nesse sentido, indico os textos de Fernandes e Schuch (2015) e Silva (2013
e 2014). Agradeço imensamente a colaboração de todos, a qual é fundamental para a
efetivação do projeto e inspiração para confecção desse texto.

284
desiguais, minando minhas expectativas de atuar como uma espécie de
“mediadora” dessas relações4.
A partir de seu convite, passei a frequentar as reuniões semanais
do MNPR, assim como dos intensos e frequentes encontros e seminários
de discussão sobre a política de gestão da população de rua em Porto
Alegre, promovidos a partir das redes estabelecidas entre movimento
social, Estado, organismos judiciais e órgãos não estatais de proteção e
promoção de direitos. A própria existência dessa profusão de encontros
de discussão sobre a formulação e execução das políticas mostrou que
essas entidades se encontravam em direta e disputada relação, podendo-
-se sugerir o mesmo para as próprias políticas ali refletidas e inventadas.
Foi através desse acompanhamento das suas lutas e debates que
passei a perceber um modo de ação política bastante peculiar, que analiso
como sendo realizado simultaneamente contra e a partir do Estado, hi-
pótese que também persigo neste texto. Para acompanhar esse modo de
produção política, foram fundamentais duas referências clássicas da teoria
social: de um lado, as análises de Michel Foucault (1977, 1979, 1984 e
1985) sobre as práticas de subjetivação, formuladas a partir da sua propo-
sição do que ficou conhecido como “paradoxo do sujeito”. Em seu enten-
dimento, os sujeitos são formados discursivamente por tecnologias que
entrecruzam saberes e poderes e, a partir dessa constituição e através do
que Foucault (1984 e 1985) chama de processos de subjetivação, podem
desenvolver originais éticas de existência e estilos de vida singulares.
De outro lado, fascina-me a possibilidade de pensar a própria po-
tência da etnografia de Pierre Clastres (2003) em torno das formas de
evitação do Estado entre os Guayaki e as possibilidades abertas pela sua
obra de acompanhar as formas de subjetivação em ação, empreendidas a
partir de relações e práticas concretas entre sujeitos, o que de certa forma
4 Sobre as formas de trabalho antropológico e sua justificação, ver o texto de Ramos
(2007) que, com relação aos povos indígenas, argumenta que o trabalho a ser realiza-
do deve perseguir o movimento “do engajamento ao desprendimento”, na medida em
que tais povos têm representantes políticos atuando potentemente na configuração
de suas causas, além de contar com etnógrafos para estudar e visibilizar suas ques-
tões configuradas como “antropológicas”. O texto de Velho (2008) também argumen-
ta para a abertura da tarefa de mediação na construção da nação, tradicionalmente
colocada para antropólogos brasileiros, propondo a possibilidade do trabalho enfati-
zar a politização da tarefa antropológica em um cenário em que a nação “explodiu”,
como refere em suas palavras. Esses dois textos são referências fundamentais para o
trabalho de pesquisa-extensão que desenvolvo junto à população de rua.

285
inexiste na abordagem foucaultiana5. Além disso, ressalto suas precisas
influências, sobretudo, na construção de uma analítica de dessubstancia-
lização do Estado, na evocação de uma pragmática da produção do poder
político que se expande para além das formas coercitivas e, de máxima
relevância para os fins de minha argumentação em torno das formas de
produção da política da população de rua no Brasil, nas possibilidades de
manutenção da indivisa sociedade Guayaki a partir da lógica da guerra
como mecanismo que protege a dispersão dos seus grupos.
Tais referências constituem inspirações importantes para esta-
belecer uma espécie de zona de vizinhança com as forças de produção
da política ora abordadas, fornecendo certas grades de inteligibilida-
de. Com Clastres (2003), é possível pensar as forças de contraposição
ao Estado que se exercem, no caso estudado, sem prescindir deste e
que, inclusive, atuam a partir de suas tecnologias de governo, simul-
taneamente opondo-se às suas forças de atração através das denúncias
críticas às suas formas de atuação e seus instrumentos. Com Foucault
(1979 e 1984), temos um modelo dinâmico tanto da simultaneidade
das relações de poder e resistência, como das práticas de governo que
administram e inscrevem politicamente populações, que acredito ser
fundamental para a consideração das tecnologias de legibilidade como
formas de administração e inscrição política de populações.
Não obstante, o privilégio deste texto será acompanhar os modos
de gestão e inscrição política da população de rua a partir da dimensão da
etnografia como um modo de conhecimento que privilegia a experiência
(DAS e POOLE, 2004) e que, portanto, é de fundamental importância
para afirmação da complexidade de dinâmicas que muitas vezes extra-
polam esquemas analíticos mais rígidos. De forma original e dinâmica, a
vivacidade do funcionamento das lutas políticas empreendidas pela po-
pulação de rua no Brasil constitui uma rica teoria etnográfica e não deve
ser encapsulada pelas teorias sociais acima destacadas. É um pouco da

5 Didier Fassin (2009), no intuito de recuperar analiticamente os sujeitos portadores


de valores e os sentidos morais empreendidos por práticas de governo, propõe os
conceitos de “biolegitimidade” e “políticas da vida”. O arcabouço deste texto é pe-
queno para desenvolver tais noções, mas registro os esforços de Fassin em dinamizar
as análises foucaultianas no estudo das práticas de governo e, substancialmente, seu
original empreendimento de agregar a dimensão experiencial dos sujeitos como par-
te da análise das tecnologias de governo.

286
potência dessas práticas políticas, dirigidas à reflexão sobre legibilidade
e, especialmente, dos debates em torno da configuração, características,
usos e efeitos das pesquisas censitárias, que passo a destacar a seguir.

As Pesquisas Censitárias: somente “Mapas Abreviados”?

Para além de descrever o início de meu engajamento com a temática


das políticas de gestão da população de rua no Brasil e minhas principais
hipóteses analíticas, a recuperação dos aspectos acima referidos importa
porque mostra o quanto a realização de pesquisas censitárias e de perfil po-
pulacional esteve agregada à produção de políticas governamentais para
esse grupo. Na cidade de Porto Alegre, a Prefeitura Municipal, através da
Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC), desde 1994, executa
serviços voltados ao atendimento de pessoas em situação de rua da cidade.
E é significativo que a primeira pesquisa censitária sobre essa popu-
lação e seus modos de vida, que totalizou 222 vivendo nessa situação, foi
realizada já em 1995, em uma colaboração entre a FASC e profissionais
do curso de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (FASC, 2012). A própria contagem nacional, realizada em
2007, antecedeu a promulgação do celebrado Decreto nº 7.053, de 23 de
dezembro de 2009, que institui a Política Nacional para a População em
Situação de Rua, ao mesmo tempo definindo oficialmente tal população
e orientando uma série de programas e políticas para seu atendimento.
Estes dados parecem apontar, portanto, que as pesquisas censitárias
e de perfis populacionais são fundamentais para a produção da legibilidade
de determinados grupos ao Estado, possibilitando refazer as realidades
que retratam a partir de processos de padronização, racionalização e sim-
plificação, dimensão bastante destacada nos estudos de Scott (2008).
Sem dúvida, no que diz respeito às políticas para população de
rua, a profusão de pesquisas censitárias e a busca por configuração de
perfis populacionais que se realizam para compor a produção de políti-
cas para este grupo social não é uma realidade apenas existente no es-
tado do Rio Grande do Sul, mas é verificada também em inúmeros ou-
tros locais do país6. Segundo Pereira (2007), em geral essas pesquisas
6 Ver, por exemplo: Costa (2005), Pereira (2007), Vieira (2004), Vieira, Bezerra e
Rosa (1992), Rosa (2005), Stoffels (1997).

287
caracterizam-se por uma contextualização histórica da visibilidade das
pessoas em situação de rua, assim como mostram preocupações com
as causas desse fenômeno (emprego, família, transtornos psicossociais
etc.) e o entendimento de seu modo de vida. Analisando a tendência de
produção de estudos sobre perfis populacionais da população de rua no
Brasil, De Lucca (2007) enfatizou como evidenciam uma valorização de
atributos individualizados dos sujeitos pesquisados, em detrimento das
variadas mediações institucionais, históricas e políticas que engendram
a construção dessa população como uma problemática social.
Certamente, a expectativa dos organismos institucionais é, mui-
tas vezes, conseguir produzir uma espécie de “retrato” do universo que
se apresenta como desconhecido e como se pudesse ser captado em sua
naturalidade ou essência; para produzir uma fotografia, entretanto, há
inúmeras escolhas do que captar e qual o enquadramento a realizar.
Em cada fotografia, muitos outros enquadramentos possíveis ficam de
fora e o resultado obtido é, simultaneamente, uma representação e uma
simplificação dos cenários trabalhados.
É neste sentido que concordo com Scott (1998), quando assinala
que tornar uma população legível ao Estado implica em procedimentos
de padronização que configuram espécies de “mapas abreviados” que
refazem as realidades que retratam e que são fundamentais para a ação
política e o controle efetivado pelo Estado. Entretanto, como é possível
perceber no caso das práticas de inscrição política da população de rua no
Brasil, tais técnicas de legibilidade não são apenas isso: ao mesmo tempo
em que simplificam, classificam e conformam uma “população” às possibi-
lidades do governo, também a inscreve nos cenários de atenção pública7.
Obviamente, o movimento de inscrição política da população de
rua no Brasil tem uma história importante em que importam não ape-

7 Sobre isso, ver as considerações de Fonseca e Cardarello (1999), ao lembraram a


importância de levar-se em conta a dimensão discursiva nos estudos sobre cidadania
e direitos. Como dizem Fonseca e Cardarello (1999), as “frentes discursivas” – um
conjunto de mobilizações variadas em torno da produção de epistemologias, institui-
ções e práticas ligadas a um tema ou grupo específico – são uma faca de dois gumes:
por um lado são fundamentais para mobilizar apoio político em bases amplas e efica-
zes, mas por outro lado tendem a reificar o grupo alvo das preocupações, alimentando
imagens que pouco têm a ver com a realidade. Acredito que a dinâmica a que me
refiro neste artigo, de simultânea administração e inscrição política de grupos, pode
ser aproximada das reflexões de Fonseca e Cardarello (1999).

288
nas as pesquisas de contagem e perfis populacionais, mas sim também
os movimentos de ajuda caridosa e/ou filantrópicos e, de forma bas-
tante significativa, o próprio movimento social (MELO, 2013; SILVA,
2014). Sem tentar encontrar uma razão única para processos comple-
xos, trata-se de destacar essa composição de elementos heterogêneos e
um cenário de redemocratização propício para modificação da arena do
debate político, informado ainda por influências de narrativas transna-
cionais de direitos humanos.
Como já escreveu Richard Wilson (1997), tais narrativas dos di-
reitos humanos e sua incidência em programas e instituições nacionais
são extremamente importantes em países com experiências de rede-
mocratização, uma vez que são fontes de legitimidade em cenários in-
ternacionais.
Em Porto Alegre, no que se refere à luta política em relação à
população de rua, em meados de 1991 foi instituído um movimento po-
pular chamado Movimento dos Direitos dos Moradores de Rua (MDM
de rua). Segundo Lima e Oliveira (2012), esse movimento visava a or-
ganizar e estimular os moradores de rua a participarem de encontros
semanais para debater problemas enfrentados e buscar suas soluções
de forma coletiva. Originou-se no então chamado albergue municipal
Abrivivência, que apoiou o projeto. Por conta da falência de alguns
projetos originados nesse âmbito do movimento (essencialmente, um
galpão de reciclagem), o movimento teria sucumbido.
Alguns anos depois foi articulado, em conjunto com a organi-
zação não governamental ALICE, o Fórum da População Adulta em
Situação de Rua. O Fórum funcionava a partir de encontros semanais
em uma sala do Mercado Público de Porto Alegre e foi um movimento
importante que originou conselheiros da assistência social e de outras
áreas, no âmbito do Orçamento Participativo de Porto Alegre (LIMA
e OLIVEIRA, 2012; PIZZATO, 2012). Por sua vez, a organização não
governamental ALICE é a entidade que coordenou a implantação do
Jornal Boca de Rua, existente há quatorze anos em Porto Alegre. O
jornal é uma mídia que foi propulsora na divulgação de reportagens
sobre a vida na rua, escritas pelas próprias pessoas em situação de rua,
autointitulados jornalistas do Boca de Rua. Sem dúvida, o Boca de Rua

289
também vem ampliando significativamente a visibilidade e luta política
dessa população.
Relatos ainda de pessoas participantes do MNPR contam da
existência do Movimento Aquarela, o qual teria se desconstituído em
função de ser “um movimento de um homem só”. Simone, militante do
MNPR, jornalista do Boca de Rua e escritora, ao falar dos variados
movimentos de luta política salienta que: “É um movimento que se
movimenta”, para exatamente apontar a dinamicidade dessas formas
de organização política, que perdem a força exatamente quando seus
líderes passam a querer apenas se auto-representar e promover e/ou
encontram modos de vida alternativos à rua, pelo qual são lembrados
negativamente e destituídos pelo grupo, numa dinâmica que pode ser
aproximada com aquela referida por Clastres (2003).
Destaco assim, que esses diversos movimentos presentes no cená-
rio porto-alegrense tinham uma dinâmica regional, ao passo que diferem
significativamente do atual MNPR, movimento criado em 2004 para
atuar e representar nacionalmente tal população e que, no Rio Grande
do Sul, passou a ter uma sucursal com existência efetiva apenas em 2013.
A própria criação do MNPR – agente fundamental na inscrição polí-
tica da população de rua no Brasil – decorre de um cenário de inscrição da
linguagem dos direitos no Brasil e processos mais abrangentes de trans-
formações de instituições, normativas e modos de intervenção a variadas
populações, realizadas a partir do processo de redemocratização política e
no bojo da expansão da retórica dos direitos humanos no país (FONSE-
CA e CARDARELLO, 1999; SCHUCH, 2009). Sem dúvida, no que diz
respeito especificamente à população de rua, foi fundamental a visibilidade
adquirida pelos “meninos de rua” (MILITO e SILVA, 1994; SCHUCH,
2009) e pelo Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, criado
em como entidade civil independente em 1985, com o apoio da UNICEF
(MNMMR, 1988). Esses personagens ampliaram as lutas por reconheci-
mento da rua como um espaço de luta política, ao mesmo tempo em que
divulgaram as práticas de violência a que os sujeitos que a ocupavam esta-
vam sujeitos, num espaço social e político bastante ambíguo.
O nascimento do MNPR, por exemplo, resulta de um evento de
violência extrema contra pessoas em situação de rua, o conhecido Mas-

290
sacre da Sé, em São Paulo, efetivado em 2004. Neste evento, mais de
uma dezena de pessoas foram assassinadas e/ou ficaram feridas, por
estarem simplesmente ocupando tal espaço público para habitação. Po-
de-se dizer que a marca de criação do MNPR passa a ser a própria
denúncia de violência e desrespeito aos direitos humanos das pessoas
em situação de rua, configurando uma forma de subjetivação política
em que a forma “denúncia” de violação dos direitos humanos é funda-
mental, assim como os processos de reversão dos modos de se engajar
politicamente: da queixa à luta, do favor aos direitos.
Como afirmou Roberto, militante e atual co-coordenador do
MNPR no Rio Grande do Sul, em seminário realizado em novembro
de 2013, na UFRGS, realizado em colaboração entre MNPR, UFRGS
e Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República: “A
gente tem dois caminhos na vida: um é viver de queixas e o outro é
transformar as queixas em lutas”. Numa dinâmica bastante peculiar
de atuar a partir do repertório das políticas oficialmente vigentes dos
direitos das populações brasileiras, mas ao mesmo contra a forma de
sua efetivação, o MNPR passa a atuar utilizando-se da linguagem dos
direitos humanos como forma de luta política.
Nos encontros do movimento, há um incentivo para que as pessoas
em situação de rua possam aprender não mais a “pedir”, mas “exigir”
direitos. “Vamos nós, população de rua, exigir nossos direitos: não é fa-
vor!”, disse em uma das reuniões do MNPR um de seus coordenadores,
João Batista. Ele e outros de seus colegas, frequentadores assíduos do
movimento, insistem na política de que morador de rua tem que se infor-
mar sobre seus direitos e sobre as políticas de direitos humanos, assim
como a respeito do funcionamento dos órgãos estatais para sua atenção.
Nessa mobilização, é destacada a relevância dos processos de
transformação das políticas de caridade e assistência às políticas dos
direitos humanos – mesma tônica dos organismos governamentais
que, com o apoio de entidades transnacionais de proteção e promoção
aos direitos humanos (como UNICEF e UNESCO), se engajam com o
movimento social numa espécie de pedagogia informativa dos direitos
da população de rua no Brasil e das normativas legais para sua prote-
ção (SILVA, 2014). Tal pedagogia é explícita na intensiva publicação

291
de cartilhas em relação aos direitos da população de rua e as formas de
intervenção que a esta população deve ser dirigida. Numa rápida pes-
quisa na internet e sem esgotar, portanto, o universo dessas produções,
encontrei em outubro de 2014 cerca de 30 cartilhas e guias de serviços
produzidos no país, em geral produzidos através de redes governamen-
tais e não governamentais, organismos jurídicos e órgãos de defesa de
direitos humanos, muitas com o apoio do MNPR.
Em geral, constava nesse material a conceituação de pessoa em
situação de rua, um arcabouço significativo de normativas legais em
torno dessa questão e, de acordo com a origem da cartilha e guia de ser-
viços (governamental ou não governamental), instruções sobre como
intervir (nas abordagens policiais, nos CREAS e SUS, por exemplo)
ou como denunciar violações de direitos humanos (órgãos a procurar,
como fazer um Boletim de Ocorrência, o que é um habeas corpus etc.).
Embora, neste texto, não caiba uma atenção maior às cartilhas e guias
de serviços, é meu argumento que também constituem um material
significativo de produção de legibilidade à população de rua, mostran-
do uma forma de coprodução das formas de gestão e inscrição política
dessa população no Brasil e o quanto a preocupação com o tema da
população de rua e seus direitos tornou-se uma questão nacional na
década de 2000.
Um dos pontos interessantes de observar nesse processo de na-
cionalização das preocupações com a população de rua, evidenciado
também nas cartilhas e guias de serviços, é a própria definição dos
termos utilizados para defini-la. Na década de 2000, a visibilidade cres-
cente desse grupo colocou em debate também à própria terminologia
utilizada para defini-lo e classificá-lo, historicamente bastante variada.
Como já nos ensinou Didier Fassin (1996), ao trabalhar com as ter-
minologias de definição do “clandestino” ou “excluído” na França, as
palavras não servem apenas para nomear, classificar ou definir: elas
permitem também definir ações e orientar as políticas. É neste sentido
que um dos pontos fundamentais da criação da Política Nacional para a
População de Rua, instituída pelo Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro
de 2009, é a própria definição do que se entende por “população em
situação de rua”. Neste documento, pode-se ler que:

292
Parágrafo único. Para fins deste Decreto, considera-se população
em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui
em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompi-
dos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional re-
gular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas
como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou
permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite
temporário ou como moradia provisória (DECRETO nº 7.053 de
23 de dezembro de 2009: 1).

Como já destaquei anteriormente (SCHUCH et Al., 2012), a po-


pulação ‘‘em situação de rua’’ é definida acima a partir de sua pobreza,
da interrupção de vínculos familiares e pela inexistência de moradia re-
gular convencional – atributos de despossessão – além de ser também
caracterizada pela utilização de serviços de acolhimento ou moradia
temporária ou provisória, isto é, pela dependência de agentes e institui-
ções. É interessante como a definição proposta contrasta frontalmente
com aquela proposta pelo Movimento Nacional da População de Rua.
Nos termos da definição deste movimento:

O Movimento Nacional da População de Rua é formado por ho-


mens e mulheres em situação ou trajetória de rua, comprometidos
com a luta por uma sociedade mais justa que garanta direitos e
a dignidade humana para todos. Esses homens e mulheres, pro-
tagonistas de suas histórias, unidos na solidariedade e lealdade,
se organizam e mobilizam para conquistas de políticas públicas e
transformação social6.

Nessa definição, é acentuada a disposição para a luta por direi-


tos e dignidade, o protagonismo dos seus participantes na produção
da história e a sua união na solidariedade, na lealdade e na mobiliza-
ção para conquista de direitos. A autodefinição dada pelo movimento
produz uma visão mais ambígua da própria rua como espaço de cria-
ção de identidades e novos relacionamentos, não marcados apenas
por falta, perda e despossessão. A rua aparece, então, não só como um
espaço da carência, mas de inventividade, criatividade e, sobretudo,
luta (SCHUCH et Al., 2012). O Movimento Nacional da População

293
de Rua, ao definir-se prioritariamente por sua agência política, forne-
ce uma visão ambígua da rua: ao mesmo tempo em que busca alter-
nativas para a saída ou a melhoria dessa situação social, também luta
pelo próprio direito à rua (DE LUCCA, 2007).
Assinalar essas diferenciações conceituais é importante porque co-
loca em questão a luta política constante que é realizada em torno dos
significados legítimos para esse conjunto diverso de pessoas que, como
destacou Fassin (1996), tem incidência direta no modo como as práticas
de governo serão orientadas/efetuadas. Explicita também que as práticas
de coprodução realizadas entre o MNPR e organismos jurídico-estatais e
o apoio do movimento a determinadas tecnologias de legibilidade estatal
– como vimos, através da proposição das cartilhas e da celebração da Po-
lítica Nacional da População de Rua – não deve ser compreendido como
adesão direta aos próprios termos propostos, mas também como parte
de estratégias e táticas políticas nas quais variados modos de habitar ins-
trumentos e categorias são possíveis. Afinal, se o Estado deve ser cons-
tantemente refundado e não é homogêneo ou completo (DAS e POOLE,
2004), será que não poderia também haver diferentes modos de habitar
suas normas e categorias, coproduzi-las e coproduzir-se neste processo?

Práticas de Legibilidade e as Formas Inventivas


de sua Habitação e Coprodução

Nos esforços de produção de visibilidade política, o próprio


MNPR celebrou e apoiou a realização da primeira contagem nacional,
realizada em 2007 no Brasil, como uma importante conquista de suas
lutas. Isto porque, através dessa contagem a problemática da situação
de rua adquiriu uma dimensão nacional, para além das preocupações
regionais de municípios e de estados brasileiros8. Tal movimento de
8 No âmbito das políticas públicas federais, o maior interesse sobre as especificida-
des da “população adulta em situação de rua” data de 2004, quando o Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS) propôs o debate em torno de po-
líticas específicas para os indivíduos colocados nessa situação social. Em torno dessa
época foi realizado o I Encontro Nacional de População em Situação de Rua, mais
exatamente em 2005, e foi solicitada uma pesquisa de abrangência nacional sobre o
assunto, que fornecesse informações sobre o número e modo de vida das pessoas em
situação de rua dos principais municípios brasileiros, realizada finalmente em 2007, o
que deu uma dimensão nacional à problemática da situação de rua.

294
nacionalização também teve como ato importante o I Encontro Na-
cional de População em Situação de Rua, promovido pelo Ministério
do Desenvolvimento e Combate à Fome, em 2005, com a participação
de representantes políticos e militantes da população de rua, gesto-
res federais, estaduais e municipais. Atualmente, o movimento social
pressiona para a realização da inserção da população de rua nos censos
nacionais da população brasileira, o que por ora ainda não aconteceu.
É importante destacar, porém, que essa participação na configu-
ração das políticas nacionais e reivindicação por estudos censitários
e cadastrais acerca desse público não significa legitimar os dados le-
vantados (ou mesmo o rumo das políticas propostas), mas destaca a
importância que certas técnicas de legibilidade têm para as lutas por
reconhecimento, ao registrar oficialmente uma população flutuante e
inscrevê-la como alvo de atenção das políticas governamentais. Não
significa também dizer que as pessoas pesquisadas celebraram a in-
serção de seus cadastros individuais nos sistemas de controle gover-
namentais, havendo aqui uma diferença fundamental entre os níveis
molar (massificante) e molecular (individualizante) das estratégias de
governo e de sua aceitação, marcando modos distintos de habitar suas
formas de efetivação e usos9.
Em minha experiência com pesquisa censitária, por exemplo,
percebi um interesse legítimo dos pesquisados em compreender exata-
mente os termos da pesquisa e seus usos, além de estratégias de ocul-
tamento das identidades, os quais não podem ser desconsiderados. Em
um dos casos que analisamos, o mesmo indivíduo investigado se apre-
sentou com trinta diferentes perfis de dados, mudando pequenas infor-
mações sobre idade, procedência etc., em cada uma das vezes em que foi
questionado. No mesmo sentido, foi possível perceber um substantivo
acréscimo de pessoas que simplesmente se recusaram a responder a
pesquisa, quando comparamos os números do estudo de 2007, que foi
coordenado e executado por uma equipe significativa de profissionais
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com o núme-
9 A distinção entre os planos molar e molecular que realizo é inspirada naquela efe-
tivada por Rabinow e Rose (2006), ao discutirem o biopoder na contemporaneidade,
em que o plano molar é aquele das ênfases e relações sobre os modos de pensar e agir
ao nível dos grupos populacionais e coletividades e o plano molecular refere-se à
individualização de estratégias biopolíticas.

295
ro de recusas a responder à pesquisa em 2011, quando esta foi realizada
pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) através de
seus profissionais e estagiários.
No cadastro efetuado em 2007, a universidade participou apenas
através da equipe de consultoria e também por meio da equipe de su-
pervisores do trabalho de campo, composta em sua maior parte por es-
tudantes de pós-graduação da antropologia e sociologia. Enquanto na
pesquisa de 2007 os que se recusaram responder abrangeram apenas
4,2% (50 pessoas) do universo pesquisado, este percentual subiu para
12,8% (172 pessoas) em 2011. Essa substantiva diferença foi explicada,
no relatório final do cadastro, tanto através da mudança do organismo
de produção da pesquisa, quanto por conta de uma maior organização
política das pessoas em situação de rua, o que teria levado a disputas
de representatividade e conflitos com o grupo de representantes da
população de rua que foram consultados na atividade de mapeamento,
durante a organização da pesquisa (FASC, 2012).
Entretanto, tanto o caso do sujeito que se identificou diferente-
mente em 30 questionários, quanto o caso do alto percentual de pes-
soas que se recusaram a participar do cadastro censitário, tem-se que,
isso, não pode ser compreendido como se fosse simplesmente o resulta-
do de uma falha na confecção da pesquisa ou um mero erro de entendi-
mento dos termos do estudo, por parte dos investigados. Acredito que
traga uma potência significativa de contrariedade à individualização
das informações e de seu registro e uma prática de resistência impor-
tante em relação às técnicas de legibilidade, em seu nível molecular. A
importância da distinção analítica entre os níveis molar e molecular é
preciosa, pois quando consideramos o nível molar em que as técnicas
de legibilidade atuam, os esforços do movimento social parecem ser o
de ampliar os processos de visibilidade política dessa população.
Isso pode ser evidenciado tanto pelas reivindicações e a celebra-
ção em torno da produção de estudos censitários dirigidos a este pú-
blico, quanto pela crítica dirigida ao número de pessoas em situação de
rua, os quais resultam dos censos. Em Porto Alegre, foram bastante
significativos os debates em torno do número resultante das pesquisas
de 2007 e 2011, na medida em que representantes da população de rua,

296
em fóruns sobre o tema e em conversas cotidianas em torno do assun-
to, questionaram o que salientavam ser o reduzido número de pessoas
em situação de rua resultantes da pesquisa. Tal questionamento incidiu
diretamente nos esforços de pesquisa, tanto em 2007 quanto em 2011,
quando uma espécie de “força tarefa” foi montada para tentar encontrar
pessoas em situação de rua que não tivessem sido ainda pesquisadas,
mesmo após o encerramento do prazo estabelecido para a investigação
e da percepção dos investigadores do próprio esgotamento do número
de pessoas a serem pesquisadas.
Todavia, os números resultantes ainda foram questionados (res-
pectivamente 1203 pessoas na pesquisa de 2007 e 1347 pessoas adul-
tas em situação de rua no estudo de 2011) – em que pese o resultado
de Porto Alegre condizer com o padrão populacional resultante dos
estudos com cidades do mesmo porte no Brasil. O movimento social
estimava, em 2007, a existência de 4.000 pessoas em situação de rua
na cidade (LIMA e OLIVEIRA, 2012)10; as estimativas de 2011 eram
ainda maiores, de cerca de 5.000 pessoas, e foram veiculadas em jornais
tanto por militantes, quanto por acadêmicos envolvidos com projetos
de extensão à população de rua, oriundos das áreas de enfermagem e
arquitetura11.

10 Em torno de 2007, dois pesquisadores da área da arquitetura, ligados à UFPB,


realizaram uma incursão junto ao então Fórum da População Adulta em Situação de
Rua. O objetivo dos pesquisadores era compreender a trajetória e a luta política pela
criação desse movimento, o qual objetivava inserir as demandas da população de rua
no Orçamento Participativo do município, o qual trabalhava a partir da setorização
de bairros esse movimento e não considerava as demandas da população sem domi-
cílio. Além da historicização dessa trajetória, os pesquisadores ressaltaram outras
informações recolhidas junto ao movimento e salientaram que: “Algumas informa-
ções obtidas contrariam os dados oficiais, entre elas a mais alarmante relaciona-se ao
número total de moradores de rua no município. Integrantes do Fórum estimavam
que, no ano de 2007, o número total de moradores sem domicílio institucional daque-
le município ultrapassava a 4.000 pessoas, enquanto os dados oficiais apontam para
um número bem inferior” (LIMA e OLIVEIRA, 2012: 170).
11 Em relação às estimativas de 2011, ver a reportagem do jornal Zero Hora de
15/08/2014, onde se coloca o cálculo de 3.000 a 5.000 pessoas em situação de rua
em Porto Alegre, sugerida por Fernando Fuão, professor da arquitetura da UFRGS
e coordenador do projeto Universidade na Rua, que reúne uma rede importante de
professores relacionados com a problemática da situação de rua na cidade e ao qual
também estou vinculada. A reportagem originou um pedido de explicação da FASC
ao reitor da UFRGS, em torno da metodologia usada para produzir esse número, que
se afastava daquele produzido pelo estudo feito pela instituição.

297
Em 2007, a crítica atingia não apenas os números resultantes
do estudo, mas também os seus próprios objetivos. Segundo Lima e
Oliveira (2012), alguns representantes do Fórum chamavam a atenção
de que as pesquisas realizadas pelas universidades não acrescentam
nada de novo ao seu cotidiano (LIMA e OLIVEIRA, 2012: 170). Em
reuniões do MNPR e conversas informais com pessoas do movimento,
não era raro ouvir críticas aos estudos acadêmicos de um modo geral,
no sentido de não aproveitamento dos estudos realizados. Em 2014,
a crítica à pesquisa de 2011 também foi feita por Simone, mulher de
cerca de 40 anos, militante do MNPR, escritora e jornalista do Boca de
Rua. Em uma das reuniões do MNPR, levantou seu braço com a cole-
tânea resultante da publicação de textos acerca da pesquisa realizada
e de outros artigos sobre a política para pessoas em situação de rua e
lamentou veementemente sua publicação.
Essa situação me constrangeu de forma significativa, pois era uma
das autoras de um capítulo do livro e havia especialmente o entregado a
ela, em uma reunião anterior do MNPR, achando que havia ficado apa-
rentemente satisfeita. Naquele dia, ela juntou o livro a uma grande pasta
que eventualmente levava às reuniões e que orgulhosamente dizia ser
o material que embasou a denúncia de “violação de direitos humanos”
contra a Prefeitura de Porto Alegre. Quando em um dos encontros Si-
mone rapidamente deixou-me verificar tal material, pude perceber que
consistia em uma composição diversa de “denúncias”, como ela denomi-
nava: abaixo-assinados de pessoas em situação de rua com diversos fins e
destinatários, fotos, Boletins de Ocorrência de delegacias por denúncias
diversas relacionadas à rede de atendimento, relatórios de visitas técni-
cas de militantes de direitos humanos realizados em abrigos e albergues,
reportagens de jornal sobre população de rua, cartas e bilhetes de pes-
soas usuárias das redes de assistência etc.
A pasta era um material simplesmente fascinante, na medida em
que Simone produzia um grande arquivo em torno das formas de ins-
crição política e jurídica da população de rua em Porto Alegre e era
incrível ver, através dos papéis, a circulação que realizava pelos orga-
nismos de proteção aos direitos humanos, organismos jurídicos, órgãos
estatais e não estatais de atenção à população de rua. Arrisco-me a dizer

298
que a pasta de Simone era, ela própria, um instrumento de produção de
legibilidade. Mais do que isso, é possível assinalar que tal instrumento
incidia – ou, nos termos de Das e Poole (2004), colonizava – os pró-
prios modos estatais de produção de legibilidade. Isto porque a pasta
de Simone e seus incansáveis esforços de denunciar o que configura
como sendo as “violações de direitos humanos” contra a população de
rua, em conjunto outros esforços de uma rede heterogênea composta
pela Comissão de Defesa do Consumidor, Segurança Pública e Direitos
Humanos da Câmara Municipal de Vereadores de Porto Alegre, pelo
MNPR e pelo Ministério Público, conseguiram configurar, a partir de
2008, uma ação civil pública contra a Fundação de Assistência Social e
Cidanadia (FASC), da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.
Tal ação civil pública visava questionar a estruturação dos ser-
viços de assistência social em relação à população em situação de rua
em Porto Alegre e, sobretudo, a capacidade dos abrigos e albergues em
acolher tal população. Para encurtar um processo longo que aqui não
cabe especificar, mas que foi composto por visitas técnicas realizadas
nos abrigos para verificar suas condições, testemunhos de gestores e
profissionais ligados à assistência social e uso de informações disponí-
veis sobre a rede de atendimento, a ação foi finalmente julgada proce-
dente ao fim de 2013, em função da inadequação das políticas estatais
de acolhimento à população de rua. Lendo o material disponível para
seu acompanhamento, entretanto, ressalta a importância que os dados
numéricos das pesquisas censitárias – tanto de 2007, quanto de 2011 –
tiveram na configuração dos debates legais e na decisão judicial.
Com estruturas de abrigamento e albergagem para moradores de
rua cuja quantidade de vagas suportava somente a metade do número
de pessoas em situação de rua, esta, recenseada pela própria FASC em
2011, o estado do Rio Grande do Sul foi condenado a construir: no
prazo de um ano, duas Casas Lares para idosos e duas repúblicas; no
prazo de dois anos, mais duas repúblicas e um abrigo para famílias em
situação de risco e uma casa para cuidados transitórios; no prazo de
três anos, triplicar o número de vagas em residenciais terapêuticos.
A condenação ainda orientou a multa diária de R$ 2.000,00 por
cada estabelecimento não instalado e condenou o município de Por-

299
to Alegre a multa diária de R$ 3.000,00 em caso de não observância
das determinações, cujas verbas deverão estar previstas no orçamento
público nos anos que se seguirem. Tal condenação foi imensamente
celebrada pelos militantes e movimento social e, para os termos de
interesse desse texto, pode-se ver através dela um efeito bastante ines-
perado das pesquisas censitárias: promovidas a partir da FASC/Prefei-
tura Municipal de Porto Alegre para possibilitar suas formas de go-
verno, foi finalmente utilizada contra essas, numa dinâmica articulação
entre movimento social, órgãos jurídicos e influências das narrativas
dos direitos humanos incidentes em normativas legais e entidades não
governamentais de promoção e proteção de direitos.
Exatamente pelas características trazidas por Scott (1998) e aqui
etnograficamente explicitadas, isto é, de comporem “mapas abreviados”
que simplificam, padronizam e racionalizam, os números das pesquisas
censitárias revelaram possuir uma potência de verdade facilmente as-
similáveis e legíveis nos parâmetros de objetividade e materialidade
normalmente característicos da configuração de um “fato” jurídico no
Ocidente (BOURDIEU, 1989; GEERTZ, 1997).
Essa dinâmica parece apontar que, através dos ativos e complexos
modos de habitar normas e categorias, novas formas de inscrição polí-
tica são possíveis, realizadas simultaneamente a partir e contra o Estado.
Ao mesmo tempo, em sua colonização por lutas sociais articuladas com
organismos jurídicos colocados em uma arena pública sensível às nar-
rativas dos direitos humanos, parece ser possível afirmar que o Estado
também é transformado e produzido dinamicamente neste processo.

Considerações Finais

A partir da análise de certas práticas de legibilidade – funda-


mentalmente, através do debate em torno das pesquisas censitárias e
cadastrais, mas também perpassando as cartilhas e guias de serviços e
as questões relacionadas à terminologia que define a população de rua
– espero ter deixado claro que tais tecnologias não apenas descrevem,
nomeiam e classificam, mas orientam e conduzem políticas. Isto é, não
são apenas meios técnicos neutros de conhecimento, mas instrumentos

300
político-morais pelos quais novos modos de governo são constituídos.
Ao refazerem as realidades que desejam retratar, são “mapas abrevia-
dos” que simplificam, padronizam e classificam seres e elementos, per-
mitindo o governo (SCOTT, 2008).
Entretanto, ao produzi-las, o Estado também se dá a conhecer
–simultaneamente tornando visível seus modos de ação, permitindo
a sua crítica e possibilitando formas variadas de habitar seus instru-
mentos, normas e categorias. Ao envolverem um modo dinâmico de
“fazer o Estado”, colocam em xeque perspectivas que trabalham a
partir das noções de sua transcendência, homogeneidade ou comple-
tude (DAS e POOLE, 2004).
Na medida em que o Estado deve ser sempre refundado, pode
haver também diferentes modos de habitar suas normas e categorias
e coproduzias e coproduzir-se nesse mesmo processo. As diferenças
entre as apreensões moleculares (individualizantes) e molares (mas-
sificantes) das pesquisas censitárias e cadastrais, a distinção entre as
terminologias em torno da população de rua oficialmente constituída
pelos organismos estatais e aquela produzida pelo movimento social e
os usos estratégicos das pesquisas censitárias para a abertura da ação
civil pública contra o município de Porto Alegre foram as vias etnográ-
ficas que persegui para tentar afirmar tal argumento.
Foi também através desses elementos que busquei constituir o
que considero a minha principal contribuição deste texto: as práticas
de legibilidade fazem mais do que possibilitar o governo; elas são tam-
bém vias relevantes de produção de sujeitos e, sobretudo, são oportuni-
dades onde novas lutas e inscrições políticas são possíveis.
Antes de finalizar este texto, gostaria de adicionar mais um co-
mentário. Embora meus escritos tenham sido um argumento em torno
das tecnologias da legibilidade, possuem também um subtexto, que é
exatamente sobre as formas tensas de engajamento antropológico e
seus estilos de atuação pública.
Tendo aceitado coordenar a realização da pesquisa quali-quanti-
tativa, realizada em 2007, em um momento de finalização do curso de
pós-doutorado e à procura de trabalhos, fui envolvida numa rede hete-
rogênea de agentes estatais, militantes, atores judiciais e estudantes de

301
antropologia e sociologia. Na época, tanto esses estudantes quanto eu
estávamos fascinados pelos desafios abertos pelo trabalho antropológi-
co com pessoas tão dinâmicas, assim como desafiados a contribuir para
uma melhor formulação de políticas públicas nesta área. Este ainda é
um desafio e um compromisso que me coloco, embora agora, com mais
de cinco anos após a primeira pesquisa, eu perceba o quão difícil é com-
preender o que seria uma “melhor” formulação de políticas públicas,
numa configuração dinâmica de conjunções e disjunções de agentes,
organismos e instituições.
Confesso que, trabalhando com pessoas envolvidas em processos
de luta política e que empregam políticas que entendo serem realizadas
a partir e contra o Estado e, tendo sido autora de artigos sobre o assun-
to disponíveis publicamente – alguns deles escritos através de minha
contratação como assessora ou pesquisadora de organismos governa-
mentais – a recepção de meus escritos é sempre um motivo de tensão.
Embora as críticas às pesquisas acadêmicas sejam constantes, sobretu-
do, por não adicionarem nada de novo ao cotidiano estudado e em que
pese algumas experiências de piada e riso sofrido por pesquisadores
– Lima e Oliveira (2012) relatam que na época em que trabalharam
com o Fórum da População de Rua em Porto Alegre alguns militan-
tes chamavam os pesquisados de “gravatinhas” – minha expectativa
é de contribuição, em algum nível, para as lutas políticas e sociais da
população da rua no Brasil e ainda estou experimentando as formas
possíveis disso se efetivar.
Para além de manifestar esse compromisso, esse posfácio serve
também para relatar mais um pouco desse cenário dinâmico de minhas
relações com o movimento social e as pessoas que dele participam, tra-
zendo o relato de uma situação vivenciada com José Batista – atual co-
-coordenador do MNPR – a quem conheci em 2007 e, posteriormente,
passei a novamente me relacionar a partir do projeto de pesquisa-exten-
são iniciado em 2013. Em novembro de 2013, em uma mesa de bar com
estudantes da UFRGS e também da UFSCAR que estavam em Porto
Alegre para um seminário e ficaram interessados em conhecer o MNPR
no Rio Grande do Sul, José Batista aproveitou para informar os estudan-
tes de nossos contatos. Bebendo um copo de cerveja e fazendo-me tremer

302
segurando meu próprio copo de caipirinha, anunciou que tinha lido o ar-
tigo escrito por mim em coletânea sobre a pesquisa de 2011 (SCHUCH
et Al., 2012) e se reconhecido como personagem do artigo.
José Batista fez um suspense terrível (o qual pareceu interminável
para mim), até finalmente declamar que tinha gostado muito do artigo e
cair numa boa risada, fazendo-me fazer o mesmo. Ressaltou, sobretudo, a
possibilidade do registro no texto de que, mesmo naquela época e antes
de ter uma trajetória consolidada em termos de luta política, já havia
criticado a política da assistência social como uma política “de primeiros
socorros”. Ao falar sobre os escritos sobre a pesquisa, José Batista não
falou nada do censo, dos números, dos percentuais ou de qualquer outro
dado recolhido pelo estudo. Orgulhoso do modo como eu o havia repre-
sentado, citou apenas – e literalmente – apenas as minhas observações
quanto à configuração das pessoas em situação de rua como de sujeitos
“altamente reflexivos” e com “agência política”. Repetiu esses termos al-
gumas vezes, em uma entonação sincera e emocionada.

303
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308
SOBRE OS AUTORES

Alexandre Portuguez: Militante do Movimento Nacional da Popula-


ção de Rua. Componente jornalista do Jornal Boca de Rua. Pessoa com
trajetória de situação de Rua atendida pelos serviços da assistência so-
cial, abrigos Bom Jesus, Marlene e Albergue municipal.

Alexandre Silva Virgínio: Doutorado em Sociologia pela UFRGS


(2006), mestrado em Sociologia pela UFRGS (2000), licenciatura e
bacharelado em Ciências Sociais pela UFRGS (1996), graduação em
História pela FAPA (1986). Especialização em História do Brasil pela
FAPA (1987). Professor do Departamento de Sociologia da UFRGS.

Aline Espindola Dornelles: Doutora em Serviço Social pela Ponti-


fícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2013), Mestre em
Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (2000), Graduação em Serviço Social pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (1996). Atualmente assistente social na
AEPAT/FASC, vinculada ao Acompanhamento Funcional dos trabalha-
dores da rede própria e ao NUEP – Núcleo de Educação Permanente.

Aline Sardin Padilla de Oliveira: Psicóloga, trabalha no Serviço de


Abordagem Social das regiões Humaitá e Navegantes/Fé e Alegria.

Ana Letícia Fontanive: Assistente Social, trabalha no Serviço de


Abordagem Social das regiões Restinga e Extremo-Sul/AMURT.

Carlos André da Rosa Bittencourt: Monitor da Fundação de Assis-


tência Social e Cidadania de 12/1998 a 01/2012; Monitor do Atendi-
mento Social de Rua/ASR de 12/2001 a 01/2012; Monitor da Casa
de Convivência da Fundação de Assistência Social e Cidadania desde
01/2012. Atualmente é Coordenador do Centro POP 1. Formação
em Ciências Sociais, UFRGS, concluso em 2005.

309
Carlos Henrique da Silva: Militante do Movimento Nacional da População
de Rua. Componente jornalista do Jornal Boca de Rua. Facilitador Social
da Pesquisa do Senso Municipal das Pessoas em Situação de Rua de Porto
Alegre. Pessoa com trajetória de situação de Rua atendida pelos serviços da
assistência social, abrigos Bom Jesus, Marlene e Albergue municipal.

Charline Pereira dos Santos: Psicóloga, trabalha no Serviço de Abor-


dagem Social das regiões Restinga e Extremo-Sul/AMURT.

Cícero Adão Gomes: Militante do Movimento Nacional da População


de Rua. Componente jornalista do Jornal Boca de Rua. Facilitador Social
da Pesquisa do Senso Municipal das Pessoas em Situação de Rua de Porto
Alegre. Pessoa com trajetória de situação de Rua atendida pelos serviços
da assistência social, abrigos Bom Jesus, Marlene e Albergue municipal.

Claudia Turra-Magni: Graduada em História (bacharelado e licencia-


tura) pela UFRGS, Mestre em Antropologia Social (UFRGS), disserta-
ção sobre habitantes de rua em Porto Alegre, Doutora em Antropologia
e Etnologia pela EHESS (França), tese sobre pessoas sem domicílio em
Paris. Professora do departamento de História e Antropologia da UFPel.

Cléber Cândido de Deus: Monitor atualmente lotado na Proteção So-


cial Especial da FASC, Publicitário, Mestre em Serviço Social.

Daiana Santos: Educadora Social, trabalha no Serviço de Abordagem


Social das regiões Norte e Nordeste/ACOMPAR.

Daniela Bianchi: Socióloga, trabalha no Serviço de Abordagem Social


das regiões Glória, Cruzeiro e Cristal/Pequena Casa da Criança.

Daniela Canabarro: Assistente Social, trabalha no Serviço de Aborda-


gem Social da região Partenon/CPCA.

Daniela Soares: Assistente Social, trabalha no Serviço de Abordagem


Social das regiões Sul e Centro-Sul/Calábria.

310
Diogo Santos: Educador Social, trabalha no Serviço de Abordagem
Social da região Partenon/CPCA.

Edson de Campos: Militante do Movimento Nacional da População


de Rua. Possui trajetória em situação de rua.

Fernando Oliveira Júnior: Educador Social, trabalha no Serviço de


Abordagem Social das regiões Restinga e Extremo-Sul/AMURT.

Giane Silveira: Filósofa, trabalha no Serviço de Abordagem Social da


região Leste/CPCA.

Heloísa Helena Salvatti Paim: Heloísa Helena Salvatti Paim é gradua-


da em Ciências Sociais (1994), mestre em Antropologia (1998), pela Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul e doutora em Antropologia pela
Universidade Federal Fluminense (2009). Os temas de estudo concen-
tram-se sobre as formas de intervenção estatal e as populações das ca-
madas urbanas de baixa renda, a produção de saberes especializados para
e na atuação estatal, em especial nas áreas de saúde e assistência social.

Ivaldo Gehlen: Bacharel em Ciências Sociais (PUC/RS), Mestre em


Sociologia (UFRGS), Doutor em Sociologia, Universidade Paris X -
Nanterre (França), Professor Associado do Departamento de Socio-
logia, do PPG em Políticas Públicas e do PPG em Desenvolvimen-
to Rural da UFRGS, Pesquisas com ênfase nos atores sociais rurais e
atores de baixo reconhecimento de cidadania, ensino e estudos sobre
desigualdades e diferenciação sociais.

Jorge Gomes de Oliveira: Educador Social, trabalha no Serviço de


Abordagem Social das regiões Restinga e Extremo-Sul/AMURT.

José Luiz Straubichen: Militante do Movimento Nacional da Popula-


ção de Rua. Componente jornalista do Jornal Boca de Rua. Facilitador
Social da Pesquisa do Senso Municipal das Pessoas em Situação de Rua
de Porto Alegre. Pessoa com trajetória de situação de Rua atendida

311
pelos serviços da assistência social, abrigos Bom Jesus, Marlene e Al-
bergue municipal.

José Vicente Tavares dos Santos: Graduado em Ciências Sociais pela


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1971), Mestre em So-
ciologia (USP), Doutor em Sociologia (Doctorat d'Etat) Universidade
Paris X, Nanterre. Professor Titular do Departamento de Sociologia,
professor. Professor do PPG em Sociologia e do PPG em Políticas
Públicas da UFRGS. Membro do Conselho Universitário da UFRGS.
Pesquisador do CNPq (nível I-A), Diretor do ILEA - Instituto Latino-
-americano de Estudos Avançados da UFRGS, Coordenador do Grupo
de Pesquisa Violência e Cidadania, desde 1995. Membro do Conselho
Deliberativo da Editora da UFRGS e da FAURGS.

Kizzy Assunção: Historiadora, trabalha no Serviço de Abordagem So-


cial da região Leste/CPCA.

Lirene Finkler: Doutora e Mestre em Psicologia/UFRGS, Pós-Dou-


torado em Educação/Unilasalle, especialista em Terapia de Casal e
Família/Domus, especialista em Dinâmica dos Grupos/SBDG (2005),
graduada em Psicologia/UFRGS. Psicóloga da Fundação de Assistên-
cia Social e Cidadania – FASC.

Lisiane do Carmo: Assistente Social, trabalha no Serviço de Aborda-


gem Social da região Partenon/CPCA.

Márcia S. de Almeida Knorr: Assistente Social da FASC, Mestre em


Serviço Social.

Marcos Cabral Borges: Psicólogo, trabalha no Serviço de Abordagem


Social da região Centro/AICAS.

Margarete Vieira: Monitora do Abrigo Marlene. Formada em Servi-


ço Social pela UNISINOS. Redutora de Danos.

312
Maria Dornelles de Araújo Ribeiro: Psicóloga, trabalha no Serviço
de Abordagem Social das regiões Glória, Cruzeiro e Cristal/Pequena
Casa da Criança.

Marta Borba: Bacharel em Serviço Social (PUC/RS), Mestre em Ser-


viço Social (PUC/RS), técnico-científico da Prefeitura Municipal de
Porto Alegre. Foi Diretora Técnica da FASC.

Mateus Freitas Cunda: Psicólogo, técnico social da Fundação de As-


sistência Social e Cidadania de Porto Alegre, Especialista em Saúde
Mental Coletiva pela Escola de Saúde Pública/RS, Mestre em Psicolo-
gia Social e Institucional pela UFRGS.

Mauro Meirelles: Doutor em Antropologia Social (UFRGS), Pós-


-Doutor em Ciências Sociais (UNISINOS), Mestre em Educação
(UFRGS), Licenciado e Bacharel em Ciências Sociais (UFRGS). Pes-
quisador do CNPq.

Melissa de Mattos Pimenta: é doutora em sociologia e membro do


Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS. Também é
professora do Departamento de Sociologia da UFRGS e atua como
pesquisadora no Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania.

Milena Cassal Pereira: Socióloga, trabalha no Serviço de Abordagem


Social da região Partenon/CPCA.

Pablo Gonçalves: Sociólogo, trabalha no Serviço de Abordagem So-


cial da Lomba do Pinheiro/CPCA.

Patrice Schuch: Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais, Mestre


e Doutora em Antropologia Social pela UFRGS. Realizou estágio na
Universidade da Califórnia (Berkeley/EUA). É Pós-Doutora em An-
tropologia Social (UFRGS). Professora Adjunta, Departamento de
Antropologia, do PPG em Antropologia Social e do PPG em Políticas
Públicas da UFRGS. Pesquisadora do Núcleo de Antropologia e Cida-

313
dania (NACi/UFRGS) e diretora da Associação Brasileira de Antropo-
logia (ABA, gestão 2015-2016) e da Associação Nacional de Pesquisa e
Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS, 2015-16).

Rejane Margarete Scherolt Pizzato: Assistente Social da FASC des-


de 1996. Graduada pela UNISINOS. Mestre em Serviço Social pela
PUC.

Richard de Campos: Militante do Movimento Nacional da População


de Rua. Facilitador Social da Pesquisa do Senso Municipal das Pessoas
em Situação de Rua de Porto Alegre. Pessoa com trajetória de situação
de Rua atendida pelos serviços da assistência social, abrigos Bom Jesus,
Marlene e Albergue municipal.

Roberta da Silva Gomes: Psicóloga, trabalha no Serviço de Aborda-


gem Social das regiões Eixo Baltazar e Nordeste/OSICOM.

Saulo Vieira: Educador social, trabalha no Serviço de Abordagem So-


cial da região Partenon/CPCA.

Simone Ritta dos Santos: Coordenadora Técnica da Pesquisa na


FASC. Doutora em Serviço Social – PUCRS. Mestre em Antropologia
Social – UFRGS. Coordenadora ASSEPLA - FASC/PMPA

Tiago Martinelli: Professor no Curso de Serviço Social, Departa-


mento de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS). Assistente Social pela Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (Unisinos), Mestre e Doutor em Serviço Social pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Veridiana Farias Machado: Monitora do Abrigo Bom Jesus. Apoiado-


ra do MNPR. Bióloga de formação. Pós-Graduada em Saúde do Traba-
lhador pela UFRGS. Redutora de Danos com experiência no Consul-
tório na Rua de Canoas.

314
SOBRE O PROJETO E A PESQUISA

Projeto: ESTUDOS QUANTI-QUALITATIVOS POPULAÇÃO EM SI-


TUAÇÃO DE RUA DE PORTO ALEGRE:
• Cadastro de Crianças e adolescentes em situação de rua
• Cadastro mundo dos adultos em situação de rua
• Estudo de institu8ições conveniadas com FASC
• Estudo sobre técnicos que atuam junto à PopRua

créditoS

Coordenação: Ivaldo Gehlen e Patrice Schuch

Equipe Técnica executora


Ivaldo Gehlen (Dr. em Sociologia, prof. Depto de Sociologia UFRGS)
Patrice Schuch (Dra. em Antropologia, Profa. Depto Antropologia UFRGS)
Heloísa Helena Salvatti Paim (Dra. em Antropologia)
Melissa de Mattos Pimenta (Dra. em Sociologia, Prof. Depto Sociologia UFRGS)
Tiago Martinelli (Dr. em Serviço Social, Depto de Serviço social UFRGS)
Alexandre Virgìnio (Dr. em Sociologia, Prof. Depto Sociologia UFRGS)

Consultores
José Vicente Tavares dos Santos (Dr. em Sociologia, Diretor ILEA)
Mauro Meirelles (Dr. em Antropologia, Unisinos)
Elsa Cristina de Mundstock (Dra. Estatística, Aposentada UFRGS)

Apoio técnico
Regiane Accorsi (Mestranda em Políticas Públicas)
Caroline Sarmento (Bacharelanda em C. Sociais)
Dayana Mezzonato Machado (Mestranda em PGDR)
Graziela Pandolfo (Doutoranda em Sociologia)
Lais Azevedo (Doutoranda em Economia)
Érica Imbirussú de Azevedo

315
Campo Censo e Mundo (06 Supervisores de Campo)

Bruno Fernandes
Calvin da Cas Furtado
Caroline Sarmento
Dayanna Cristina Machado
Flávio Saidelles Ferreira
Helena Patini Lancellotti

Entrevistadores (22)

Ana Luiza Moro


Anderson R. Ferreira
Carlos Henrique Pereira
Carolina Nunes dos Santos
ClauciaPicolliFaganello
Francisco Castilhos Fear
Gabriela Cruz Bastos
GabrilaPedroni
Gabriela Silveira
Glaucia Maricato
Helena Moura Fietz
Luzia Vieira Sant’Anna
Marcos Bonacina
Maria Gabriela Andriotti
Natasha Pergher Silva
NathasheInhaquiite
Renata Borges
Ricardo Bernardes Pereira
Richer Ribeiro
Tatiele Mesquita
Thiago Cantanhêde da Rosa
Wagner Lemes

316
Digitadores (06)

Andriara Muller de Souza


Fabiane Crescêncio Trindade
Heitor Lange Virginio
Leandro Vieira Lima Araujo
Ligiane Salete Pavoski Dias
Khrisna Chiminazzo Predebon

Facilitadores (06)

Da Pop Rua

Alexandre Português da Silva


Carlos Henrique Rosa da Silva
Cícero Adão Goms de Almeida
Edisson Jose Souza Campos
José Luiz Straubichem
Richard Gomes de Campos

Indicado pela FASC

Carlos Alberto de Moraes Guarnieri

Comissão acompanhamento da FASC


Simone Ritta Dos Santos (Coordenadora)
Aline Espindola Dornelles
Edisson José Souza Campos
Eduarda dos Reis Eschberger
Isabela ArreguiBinz
LireneFinkler
Luis Claudio Bernardo
Miriam Schiller Thomaz
Rejane Margareth Scherolt Pizzato
Richard Gomes De Campos

317

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