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"DIREITO À IDENTIDADE": A PECIAGRAFIA COMO POSSIBILIDADE

NARRATIVA DA MEMÓRIA DOS PROCESSOS JUDICIAIS DE


RETIFICAÇÃO CIVIL DE NOME E SEXO DE TRAVESTIS E PESSOAS
TRANS EM PORTO ALEGRE/RS

Lucas Riboli Besen1

Resumo: Entre 2015 e 2019, em Porto Alegre/RS, o grupo de assessoria jurídica universitária gratuita
G8-Generalizando (G8-G), em parceria com as ONGs Igualdade-RS, HTA e SOMOS, coordenou o
projeto "Direito à Identidade" (DI). Tendo como foco a retificação civil do nome e sexo de travestis
e pessoas trans, o DI inovava ao articular argumentos e saberes jurídico-psicológicos de forma a
produzir uma alternativa jurídica baseada na despatologização das identidades travestis e trans. Este
paper tem como objetivo trazer à tona as questões produzidas nos últimos anos do projeto quando
houve uma mudança no entendimento jurídico por parte do judiciário. Para tanto, inspirado em
Annemarie Mol (2002), proponho a peciagrafia como um método potente para compreender as
relações justapostas entre as peças jurídicas e processo de discussão e formulação do argumento ali
colocados. Entendida como a descrição da (re)produção de peças jurídicas a partir de modelos
compartilhados dentro do G8-G, a peciagrafia trouxe a possibilidade de explicitar como a relação
entre o processo de discussão e de (re)produção da peça jurídica era performada, enfocando nos
momentos em que problemas antigos e novos surgiam e como eram resolvidos, tendo como um dos
efeitos a modificação do próprio modelo. Ao focar na descrição dos processos de (re)produção das
peças, a peciagrafia potencializa a narrativa da memória ali subjacente e traz à tona as mudanças de
posicionamento do G8-G e sua tradução para a gramática jurídica.
Palavras-chave: Peciagrafia. Antropologia. retificação civil. Processo judicial.

Introdução

Nos últimos dez anos, que englobam desde o meu Trabalho de Conclusão de Curso em
Ciências Sociais até minha tese de doutorado em Antropologia Social, realizei pesquisas etnográficas
cujo foco formam decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) no que concerne identidades sexuais
e de gênero no sistema judiciário brasileiro. Partindo das questões focadas no reconhecimento e
legalização do casamento e união civil entre mesmas do mesmo sexo e finalizando na legalização da
alteração do nome de registro e sexo de travestis e pessoas trans, meu interesse pelo sistema jurídico
brasileiro partiu sempre de uma mesma pergunta norteadora: como o STF e os movimentos sociais
performam o sexo como uma questão do Estado? Por um lado, em termos de relacionamentos sexuais
e afetivos, por outro, na construção da identidade de gênero e autodeterminação da pessoa.

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Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(PPGAS/UFRGS). Contato: misterbesen@gmail.com. Pesquisa financiada pelo Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior na modalidade de bolsa de doutorado.
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Essa pergunta é derivada da minha interlocução com as inquietações produzidos por
Annemarie Mol (2008). Em seu texto “Política ontológica: algumas idéias e várias perguntas”, a
autora propõe potente conceito política ontológica como forma de considerarmos as condições de
possibilidade com que vivemos. Para Mol, elas não são dadas como ponto de partida, já que a
realidade não precede as práticas banais em que as interações ocorrem, mas é moldada por elas. Logo,
esse conceito está intrinsecamente relacionado à defesa da noção de que a realidade não é plural – ou
seja, existiria uma realidade “lá fora”, que é significada a partir de diversos pontos de vista –, mas
como múltipla: a realidade é colocada em ação através de sua performance ou quando em-ação. Em
outras palavras, não devemos partir de um ponto de vista perspectivista, mas, ao contrário, focar nas
práticas que performam essa realidade: é necessário prestar atenção no sítio onde ela é colocada em-
ação. Alterando o local, a performance da realidade e os seus possíveis efeitos são alterados. Isso se
dá porque toda performance da realidade depende de questões de interesses – localizadas e objetivas,
como propõe Donna Haraway (1995).
Assim, nesse diálogo com Mol, entendo que, quando falamos de identidades sexuais e de
gênero, é importante nos centrar na forma como diferentes lugares (em diferentes escalas) modificam
a forma como o sexo é colocado em-ação como uma questão do Estado. Logo, para compreender o
Supremo Tribunal Federal brasileiro, primeiro voltei minha atenção para espaços e práticas locais que
tornaram possível que questões relacionadas ao sexo acabassem por ser entendidas/performadas como
questões de Estado no STF. De tal modo, resta a pergunta: como é possível rastrear essas práticas e
as mudanças nas perguntas de interesse provocadas a cada mudança de sítio?
Proponho, nesse artigo, apresentar um modo de captura e rastreamento desses processos de
colocar o mundo em-ação: a peciagrafia. Como ferramenta metodológica da minha tese, a peciagrafia
possibilitou justapor e melhor compreender as relações entres as distintas peças judiciais – nos seus
movimentos, relações e afastamentos – e o processo cotidiano de discussão e decisão sobre a prática
jurídica que produzia tais documentos. Nesse sentido, secciono minha resposta à essa pergunta em
dois momentos. No primeiro, introduzo as questões que produziram a peciagrafia enquanto um
método a ser utilizado na tese, através do trabalho de campo no G8-Generalizando (G8-G). No
segundo, engajo-me na descrição dessa metodologia e as suas potências para pensarmos a memória
de movimentos sociais através de processos judiciais. Por fim, retomo meu argumento sobre a
necessidade de levar a sério a pergunta lançada no começo desse artigo: como transformar o sexo
enquanto uma questão do Estado? Quais são as potencialidades de entendermos o sexo enquanto algo
em disputa?

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O G8-Generalizando: entre papéis e reuniões semanais

A primeira parte da minha resposta foi focalizar meu trabalho em um conjunto de processos
jurídicos de um grupo de assistência jurídica universitária gratuita, o G8-Generalizando (G8-G).
Através do projeto “Direito à Identidade: Viva seu nome!”, o G8-G inovou ao articular argumentos e
conhecimentos jurídico-psicológicos para produzir uma alternativa judicial baseada na
despatologização das identidades de pessoas travestis2 e trans. Explico. No processo de tornar o sexo
uma questão do Estado, houve um constante esforço de tradução do G8 das demandas do movimento
de pessoas travestis e trans no decorrer dos 6 anos que o projeto foi mantido. A partir de uma recusa
ativa de produção de provas judiciais que buscariam patologizar as pessoas assistidas pelo projeto –
como o “laudo médico psiquiátrico comprovando o diagnóstico de transexualismo (CID-10 F640)”
requerido pelo juiz –, o G8-G produziu uma alternativa legal baseada na violência física-psicológica
sofrida pelas pessoas trans e travestis ao serem chamadas pelo nome de registro 3, o qual elas não se
reconhecem4. Assim, a peça central do processo era um parecer psicológico que atestava esse
sofrimento, justificando que o Estado brasileiro reiterava tal violência ao não retificar o nome da
pessoa autora do processo.
Antes de explicar melhor como é elaborado este parecer psicológico, devo esclarecer que uma
"peça judicial" é um documento escrito por advogados, cujo protocolo ao processo judicial permite
que o caso avance – ou seja, cada peça judicial inquere as outras partes envolvidas (neste caso, o juiz
ou o Ministério Público) de modo a demandar a produção de uma outra peça que responda as questões
colocadas ali. Essa movimentação do processo termina, em primeira instância, com a decisão da
pessoa juíza, contudo, ela pode continuar nas instâncias superiores (os Tribunais de Justiça do Estado,
o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça). As principais peças analisadas para a
tese foram: 1) a petição inicial (que inicia o processo judicial e estabelece os seus objetivos); 2) o
recurso (que permite recorrer da sentença final); e 3) o agravo (que permite recorrer das decisões

2
Um termo êmico histórico no movimento LGBT no Brasil, na América Latina e em Portugal. Travesti refere-se a alguém
designado homem ao nascer, mas que se identifica como mulher, e pode e não ter feito procedimentos estéticos e
cirúrgicos. Ver Bento (2012).
3
Uso "nome de registro" como o nome presente na certidão de nascimento, escolhido pelos guardiães legais na hora do
registro em cartório. Ele se contrapões ao "nome social", utilizado por travestis e pessoas trans na sua rede social e nas
suas interações diárias. No Brasil, temos uma infinidade de documentos de identidade, que sempre fazem referência ao
"nome de registro" – dificultando o uso de "nomes sociais" nesses documentos.
4
A dicotomia entre "nome de registro" e "nome social" vem do uso muito restrito e burocrático do direito civil no Brasil.
É quase impossível mudar o seu "nome de registro" - a única opção viável é argumentar que ele causa eventos violentos
na vida da pessoa. Assim, o movimento travesti e trans investiu em alternativas legais, como a produção de identidades
usando seus "nomes sociais". Mas a questão permaneceu: ao lidar com espaços burocráticos e legais, essas identidades
não foram totalmente reconhecidas, uma vez que o seu "nome de registro" ainda é referido e utilizado na maioria dos seus
documentos legais.
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interlocutórias do juiz, realizadas durante o processo em primeira instância, ou seja, ainda sem
sentença final).

Foto 1: G-8 Generalizando na Parada Livre de Porto Alegre (2017).

Em diálogo direto com as peças judiciais, os pareces psicológicos foram elaborados pelos
psicólogos do G8-G e focavam na violência psicológica sofrida pelas pessoas assistidas quando eram
chamadas pelo seu nome de registro. Ao contrário das peças judiciais, o parecer é uma prova, aceita
pelas partes como uma representação material que justifica os pedidos apresentados na petição inicial.
Ao não produzir peças ou relatórios de patologizantes, o G8-G inovou, trazendo uma nova
interpretação da lei. O argumento principal dos processos do G8-G era de que as travestis e pessoas
trans sofriam violências (físicas, psicológicas, sociais) por conta do seu nome de registro e que, ao
não permitir a sua retificação, o Estado estaria perpetuando e permitindo essa violência. Esse
argumento era articulado com a noção de autodeterminação das identidades de gênero das travestis e
pessoas trans, de forma que não seria o papel do Estado definir o sexo das pessoas, mas reconhecer e
proteger a forma de autorreconhecimento de cada pessoa.
Além do exposto, é importante ressaltar que os processos do G8-G corriam em segredo de
justiça – por terem dados sensíveis de pessoas vulneráveis e que a descoberta da alteração do registro
poderia causar mais situações de violência às pessoas assistidas. Por um lado, isso criava uma rede
de segredos e de confiança entre os integrantes do grupo e as pessoas assistidas e representadas. Por
outro, me colocava uma questão de pesquisa importante. Sendo integrante do grupo, eu tinha acesso
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aos processos por conta de uma peça jurídica em específico – o substacelecimento – que me dava
poderes de consultar e copiá-los. Contudo, narrar essa pesquisa através dessa abertura irrestrita do
processo descontruía a rede de segredos e de confiança produzida pelo próprio trabalho do G8-G e
teria como efeito um apagamento dessas relações que permeavam o processo, em sua construção e
feitura diária pelo grupo.
Logo, precisei criar uma estratégia narrativa que me permitisse narrar o que eu presenciava
durante a minha etnografia com o G8-G. Essa se dava através da observação e participação em
reuniões semanais, bem como de atividades específicas (apresentações do grupo a outras entidades e
participação em eventos LGBT) e de formações profissionais das pessoas integrantes sobre peças
judiciais e pareceres psicológicos. Durante esses encontros – que se estendiam a um grupo de e-mails
e um grupo de trocas de mensagens eletrônicas –, eram debatidas e decididas as ações a serem
tomadas nos processos, respondendo às movimentações ocorridas durante a semana. Ou seja,
discutiam-se as peças judiciais que seriam produzidas e anexadas aos processos. Tinha, assim, de um
lado, os processos, as suas peças jurídicas e movimentações no processo e, por outro, uma série de
debates desse “fazer-se o processo”. A minha questão, então, era: como produzir uma narrativa que
trouxesse essa justaposição entre a prática do encontro e a prática da escrita?
Foi Annemarie Mol (2002) que me inspirou e, a partir das suas pesquisas, propus a
peciagrafia como um método potente para compreender as relações justapostas entre as peças
jurídicas e processo de discussão e formulação do argumento ali colocados. A peciagrafia segue as
peças judiciais, centrando-se especificamente nas modificações e reformulações que ocorrem ao
longo do seu processo de (re)produção em diferentes processos jurídicos.

Produzindo justaposições, narrando processos: a Peciagrafia

Para entender essa metodologia, é preciso antes apresentar as ideias que tornaram ela possível.
A primeira inspiração veio da leitura Orlando, de Virginia Woolf. Diz a narradora do livro:

Mas o que pode o biografo fazer quando o tema de sua biografia o pôs na situação em que
Orlando nos pôs? A vida, concordam todos cuja opinião vale a pena consultar, é o único tema
apropriado para o romancista ou o biógrafo; a vida, decidiram as mesmas autoridades, não
tem nada a ver com ficar sentado sem se mexer numa cadeira, apenas pensando. O
pensamento e a vida são como polos opostos. Portanto, como ficar sentada numa cadeira
apenas pensando é precisamente o que Orlando está fazendo agora, não nos resta outro
recurso senão o de recitar o calendário, desfiar as contas do rosário, assoar o nariz, atiçar o
fogo, olhar pela janela, até que ela termine com isso. Orlando se mexia tão pouco que se
podia ouvir um alfinete caindo. Quem dera, na verdade, que alfinete caísse! Já seria de
alguma vida, por ínfima que fosse. [...] Se ao menos os biografados, podemos nos queixar

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(por nossa paciência está se esgotando), tivessem mais consideração para com seus biógrafos!
(Virginia WOOLF, 2015, p. 175-176)

A ironia trazida por Virginia Woolf ao falar sobre o trabalho do biógrafo quando tem de
descrever momentos de ócio ou de momentos nos quais o pensamento é o principal protagonista,
como a escrita de um livro, traduzia os meus próprios anseios ao pensar em trabalhar a relação entre
práticas e peças judiciais. Afinal, quando estamos falando do ato de escrita desses documentos, parece
uma tarefa impossível e enfadonha transformar o ato de sentar-se à frente do computador e bater
teclas em uma descrição interessante. Contudo, ao mesmo tempo, o ambiente das reuniões semanais
do G8-G trazia o ânimo e o calor dos debates e das trocas de ideias acerca das peças jurídicas para
dentro da pesquisa, assim como uma série de dúvidas, anseios e críticas sobre elas. Não apenas isso,
o grupo ainda organizava formações regulares sobre os principais conhecimentos que precisavam ser
ensinados para os integrantes mais novos. Nesses momentos de aprendizagem, era possível captar as
estratégias jurídicas, os engendramentos entre leis e fatos, assim como se transformava as discussões
em reunião em uma peça jurídica.
Essa constatação se juntou a segunda inspiração: a praxiografia. Proposta por Annemarie Mol
(2002), a praxiografia é uma metodologia que enfoca na captura dos modos de ordenamento e
performatividade do mundo através das práticas banais e cotidianas. Aliada às questões trazidas por
Woolf, ela abria a possibilidade de pensar como justapor a vivacidade das reuniões com as peças
jurídicas produzidas pelo grupo – principalmente após ser ensinado que uma das principais formas
de aprender a produzir o direito é a utilização de modelos. Durante o meu período de participação
ativa no grupo, muitas foram as ocasiões nas quais se referiam ao grupo de e-mails para especificar
que o caso em que discussão já possuía um modelo específico que poderia ser usado como base para
a produção da nova peça a ser anexada ao processo. Nesse fazer do direito, a prática estava relacionada
a uma aprendizagem com um objeto que trazia em si a possibilidade de reprodução e adequação.
Nesse sentido, propus como principal método empreendido na minha pesquisa a peciagrafia
– ou descrição do processo de (re)produção de peças. O nome advém do verbete latino pecia,
entendida como parte ou pedaço, e origem etimológica da palavra peça no português. Contudo, mais
do que isso, pecia descreve um antigo método utilizado nas universidades europeias no século XII e
XIII para a reprodução de textos. Como forma de prover o acesso de obras fundamentais aos
estudantes, a técnica consistia na separação do manuscrito em seções, posteriormente copiadas e
autentificadas por uma comissão de peritos. Os exemplares finais eram então circulados entre os
estudantes. Esse método deu origem, posteriormente, às bibliotecas universitárias, sendo encorajado
até a criação da primeira impressão.
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Assim, enquanto forma de aprendizado, a produção e, posteriormente, reprodução dos
modelos de peças foi uma das principais ferramentas utilizada dos integrantes do G8-G. Nesse
sentido, a peciagrafia trata-se da descrição dessas práticas justapostas aos respectivos modelos
jurídicos, trazendo a possibilidade de melhor entender como que a relação entre o processo de
discussão e de (re)produção da peça jurídica é performada. Ao contrário do método original da pecia,
a peciagrafia empreende em prestar atenção e descrever os momentos em que, na reprodução,
problemas antigos e novos surgem e como se lidam com eles, podendo ter como efeito a modificação
do próprio modelo.

Foto 2: Produzindo a peciagrafia: colagem dos elementos que fizeram parte dessa produção narrativa.
Da esquerda para a direita: pasta com os modelos de peças jurídicas do G8-Generalizando; diário de campo das
reuniões, formações e audiências assistidas; e partes dos processos judiciais acompanhados enquanto antropólogo.

Logo, enquanto a descrição da (re)produção de peças jurídicas a partir de modelos


compartilhados dentro do G8-G, a peciagrafia trouxe a possibilidade de explicitar como a relação
entre o processo de discussão e de (re)produção da peça jurídica era performada, focando nos
momentos em que problemas antigos e novos surgiam e como eram resolvidos, tendo como um dos

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efeitos a modificação do próprio modelo. Ao focar na descrição dos processos de (re)produção das
peças e em conjunto com uma etnografia de longa duração no G8-G, a peciagrafia potencializou a
narrativa da memória ali subjacente e trouxe à tona as mudanças de posicionamento do grupo e a sua
tradução para a gramática jurídica.
Assim, a partir da peciagrafia, pude descrever uma parte do campo de disputas políticas acerca
do gênero e sexualidade no Brasil – ou quando o sexo se torna uma questão de Estado. Aqui, penso a
partir da proposta de Judith Butler: adentrar aos eventos críticos é entender esses momentos de
esgarçamento do tecido de nossa rede epistemológica, em que “as categorias segundo as quais nossa
vida social é ordenada produzem uma certa incoerência ou domínios inteiros de ininteligibilidade”
(BUTLER, 2013, p. 163-164). Ou seja, a peciagrafia desses processos jurídicos nos mostram um
momento de possibilidade de modificação dos nossos domínios de inteligibilidade, não perdendo a
sua complexidade, mas focando justamente em como pequenas mudanças produzem um efeito
borboleta que, ao final, pode mudar nosso próprio entendimento sobre o sexo enquanto sociedade. É
esse sentido que quero melhor desenvolver agora.

Narrando memórias coletivas: por que rastrear questões de Estado importam?

No processo de tornar o sexo uma questão do estado, houve um constante esforço de tradução
do G8-G das demandas do movimento de pessoas travestis e trans no decorrer dos 6 anos que o projeto
DI foi mantido. Esse processo é melhor entendido quando tomamos o despacho do juiz de
obrigatoriedade da apresentação de laudo pericial patologizante como momento crítico de
reformulação do processo de tradução jurídico. A saber,

Vistos. Suspendo, por hora, os efeitos da sentença de fls. xx/xx. Ante aos recentes julgados
da Superior Instância, a apresentação de laudo médico é documento imprescindível para a
comprovação do transexualismo. Assim, a fim de evitar-se nulidade, intime-se a parte autora
para apresentar laudo médico psiquiátrico comprovando o diagnóstico de transexualismo
(CID-10 F640), requisito indispensável para a alteração de prenome e gênero, junto ao seu
assento de nascimento. Prazo: 15 dias. Ainda, sendo a parte autora beneficiária da Assistência
Judiciária Gratuita, poderá requerer a remessa do presente feito ao DMJ, a fim de que seja
realizada a perícia médica necessária para a elucidação do caso em questão. Dil. Legais.

O despacho acima citado foi incorporado em todos os processos ajuizados pelo G8-G que
ainda se encontravam abertos no final de fevereiro de 2017. O seu intuito era simples: deve
apresentar-se um laudo psiquiátrico de diagnóstico de transexualismo (CID-10 F640) ou o processo
não será deferido. Instaurando uma “crise” (BUTLER, 2013), o pedido gerou uma mudança do
posicionamento despatologizante do grupo (centrado então no parecer psicológico e testemunhal de

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uma “transexualidade verdadeira”) levando a construção de uma inovação jurídica: o pedido de
retificação de nome e sexo a partir do constrangimento causado pelo uso do nome de registro. Esta
modificação resultou na refusa de provas técnicas patologizantes pedidas pelo Ministério Público e
juiz, numa arguição que utilizava pareceres de comprovação de violência física e psicológica como
principal prova legal.
Há, aqui, o deslocamento da centralidade do “nome vexatório e apelido público notório” para
um posicionamento aberto da construção de um constrangimento e da violência simbólico e
psicológica reiterada pelo não reconhecimento do Estado do nome social pelo qual a pessoa trans ou
travesti se reconhecia. Nesse sentido, o G8-G rearticulou a racionalidade política subjacente à sua
política ontológica, reordenando os processos através de um agravo de instrumento, que produzia
uma denúncia pública do Estado.
Agora, a transexualidade se tornava uma questão de interesse público, na qual o Estado
permitia que uma violência fosse reproduzida diariamente. Aqui, o sexo era uma questão do Estado,
não mais um dado biológico constatado por especialistas. Sexo era uma parte das características
individuais do cidadão através das quais o Estado interpela o sujeito. O G8-G, ao levar a sério a sua
tradução do movimento social, lança a própria interpelação para o Estado: o sexo nunca foi apenas
uma questão de natureza, mas também uma questão (preocupação) do Estado. O G8 revelava essa
prática de Estado e a voltava contra ele mesmo, como forma de interpelá-lo e fazê-lo responder à sua
própria pergunta. Afinal, o Estado reconhece o sexo do sujeito ou ele determina quem o sujeito é? Se
o juiz está certo ao pedir um laudo psiquiátrico, estamos produzindo um Estado que diz a verdade
sobre o sujeito. Se o G8-G está certo ao contestá-lo, estamos produzindo um Estado cuja função é
legitimar o sujeito, dando respaldo à sua própria identificação.
Esse processo adentra a uma série de questões maiores, trazidas pelos movimentos sociais ao
fórum público de debate. Na última década, vivenciamos um campo de disputas políticas acerca do
gênero e sexualidade no Brasil. Este cenário de disputas faz parte de um escopo maior que tem sido
traduzido por muitos acadêmicos enquanto uma “crise política” (RODRIGUEZ, 2019). Para além das
implicações dessa discussão, gostaria de pensar a partir da proposta de Judith Butler: entender a crise
como esgarçamento do tecido de nossa rede epistemológica, em que “as categorias segundo as quais
nossa vida social é ordenada produzem uma certa incoerência ou domínios inteiros de
ininteligibilidade” (BUTLER, 2013, p. 163-164). Ou seja, entender a crise como um momento de
possibilidade de modificação dos nossos domínios de inteligibilidade. É nesse sentido que minha

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etnografia contribui para a discussão, ao trazer uma disputa jurídica que serviu para produzir uma
tradução de demandas sociais dos movimentos travesti e trans em uma inovação jurídica.
Logo, a peciagrafia traz, ao colocar em justaposição a prática diária de tomada de decisões e
a prática jurídica da produção e circulação dos processos, a possibilidade de entendermos como certas
demandas são criadas, traduzidas e performadas através desse “fazer-se processo”, no quais
conquistas de direitos são produzidas e conquistadas. Como aponta Simone Schuck da Silva (2018),
é através da constante possibilidade de reivindicação de novos direitos pela sociedade que “a
efetivação renovada da democracia” é possível. Assim, o direito “precisa ser pensado em função do
conflito social, pela sua possibilidade de expressar ou não as lutas da sociedade” (SCHUCK DA
SILVA, 2018, p. 13).
Nesse sentido, a autora chama atenção que, de modos opostos, tanto o direito parece refutar a
ideia de que as identidades possam ser seu objeto de formulação e de estudo, quanto os movimentos
sociais só concebam as normas do estado enquanto necessariamente violentas – embora ambos
compartilhem “a mesma gramática de regulação nas relações sociais” (idem, p. 15). Para Schuck da
Silva, contudo, é nesse momento em que a separação e a tensão entre sociedade e Estado se instituem
que o direito tem papel fundamental, sendo possível a produção das regras jurídicas pela própria
sociedade. Isso se faz porque é justamente quando os movimentos sociais mobilizam a gramática
jurídica que a sua indeterminação, flexibilidade e ambiguidade se colocam, fazendo possível
considerar outras possibilidades jurídico-regulatórias.
Logo, para Schuck da Silva (2018),

O papel da gramática jurídica é assegurar apenas a própria identificação que instaura, o


reconhecimento dos sujeitos como sujeitos de direito. Se o nome e o sexo registrados não
servem à identificação do sujeito no direito, eles deixam de operar sua própria função
regulatória. Não compete ao direito substancializar as identidades, mas tão somente
reconhecer os processos de reivindicação de si demandados pela sociedade. Ser sujeito de
diretos, portanto, é a possibilidade de reivindicar, reiterar, rechaçar e transformar as
normas jurídicas, processo pelo qual o próprio direito é legitimado perante a sociedade.
(p. 15-16, grifo meu)

Ao trazer suas demandas ao direito, o movimento de travestis e pessoas trans conseguiu


efetuar uma mudança na forma como a sua identidade era vista e lida pelo judiciário, ampliando o
instituto do sexo. Contudo, como aponta Schuck da Silva, essa mudança ainda deixou outras
existências fora do escopo legal, como os não-binários ou agêneros. Como aponta Butler (2003), o
reconhecimento da autodeterminação das identidades trans e travestis se constitui em uma “dádiva
ambivalente”. Ou seja,

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ser legitimado pelo Estado é aceitar os termos de legitimação oferecidos e descobrir que o
senso público e reconhecível da pessoalidade é fundamentalmente dependente do léxico
dessa legitimação. Dessa forma, a delimitação da legitimação ocorrerá somente através de
uma exclusão de um certo tipo, embora não evidentemente dialética. A esfera da aliança
íntima legítima é estabelecida graças à produção e intensificação de zonas de ilegitimidade.
(idem, p. 226)

Logo, a peciagrafia se apresenta como uma possibilidade de fazer dessas narrativas de


memórias LGBT+ um processo maior da construção dessas demandas, dando especial atenção às
modificações, alterações, deslocamentos, más traduções incluídas na produção de um direito. Ao
olhar para os dois lados dessa relação e levar a sério o direito como prática banal cotidiana, o direito
em-ação se complexifica, adiciona e subtraí novas camadas de entendimento e problematização da
forma como o sexo pode virar questão de Estado. Rastrear essas questões é complementar as
narrativas, enfocando nos momentos de crise como aprendizagens maiores, de forma a melhor
entendermos como o direito se faz no dia a dia.

Referências

BENTO, Berenice. O que é transexualidade? São Paulo: Brasiliense - Coleção Primeiros Passos,
2012.
BUTLER, Judith. O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu, São Paulo, n. 21,
p. 219-260, 2003.
BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e
Filosofia Política, São Paulo, n. 22, pp. 159-179, ago. 2013.
HARAWAY, Donna. Saberes localizados. Cadernos Pagu, n. 5, p. 07–41, 1995.
MOL, Annemarie. The body multiple: Ontology in medical practice. Durham and London: Duke
University Press, 2002.
MOL, Annemarie. “Política ontológica: algumas idéias e várias perguntas”. In: Nunes, João
Arriscado e Roque, Ricardo (org.) Objectos impuros: Experiências em estudos sociais da ciência.
Porto: Edições Afrontamento, 2008. Tradução de Gonçalo Praça. pp.63-77.
RODRIGUEZ, José Rodrigo. Direito das lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. São
Paulo: Liber Ars, 2019.
SCHUCK DA SILVA, Simone. O PAPEL DAS REIVINDICAÇÕES SOCIAIS NA GRAMÁTICA
DO DIREITO: uma análise a partir da dogmática jurídica nas demandas de pessoas trans por nome e
sexo civis. Revista de Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídica, v. 4, n. 1, 2018, pp. 1-21.
WOOLF, Virginia. Orlando: uma biografia. 1ª Edição. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, 286
p.

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"The Right to Identity": peciagraphy as a narrative possibility for the memory of travestis and
transgenders' judicial cases of name and sex change in Porto Alegre

Abstract: Between 2015 and 2019, in Porto Alegre/RS, the pro bono university legal advisory group
G8-Generalizando (G8-G), in partnership with the NGOs Igualdade-RS, HTA and SOMOS,
coordinated the project "Right to Identity" (DI). Focusing on the civil change of travestis and
transgenders’ name and sex, ID innovated by articulating legal-psychological arguments and
knowledges in order to produce a judicial alternative based on the depathologization of travesti and
transgender identities. This paper aims to bring to light the issues raised in the last years of the project
when there was a change in the legal understanding on the matter. To this end, inspired by Annemarie
Mol (2002), I propose peciagraphy as a potent method to understand the juxtaposed relationships
between the legal pieces and the process of discussion and formulation of its argument. Understood
as the description of the (re)production of legal pieces from shared models within the G8-G,
peciagraphy brought the possibility to explain how the relationship between the discussion process
and the (re)production of legal pieces were performed, focusing on moments when old and new
problems arose and how they were solved, having as an effect the modification of the model itself.
By focusing on the description of the processes of (re)production of legal pieces, peciagraphy
enhances the narrative of the subjacent memory and brings to light the changes in the G8-G’s
positioning and its translation into legal grammar.
Keywords: Peciagraphy. Anthropology. Civil change. Judicial case.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X

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