Você está na página 1de 12

"IDEOLOGIA DE GÊNERO": ATAQUES AOS ESTUDOS DE GÊNERO

PELO MOVIMENTO ESCOLA “SEM” PARTIDO

Ramayana e Silva Costa1


Iole Macedo Vanin2

Resumo: A partir de 1990 é possível identificar um aumento significativo na produção dos estudos
de gênero, no Brasil e no mundo. À medida que questionam as opressões legitimadas historicamente
pela ciência ocidental enquanto verdades absolutas e/ou única forma possível de sociabilidade, os
estudos de gênero tem se apresentado como uma ameaça à manutenção da ordem e do privilégio
dominante, o que tem feito com que tais estudos venham sofrendo inúmeros ataques. Este trabalho
tem por objetivo compreender, a partir da difusão da “ideologia de gênero”, o ataque aos estudos de
gênero pelo Movimento Escola “sem” Partido. Para a realização da pesquisa, pretende-se mapear a
difusão do termo “ideologia de gênero”, utilizado, inicialmente, pela ala ultra-conservadora da Igreja
católica a partir, especialmente, das Conferências Mundiais de 1994 e 1995 e reproduzido por outros
setores religiosos e políticos (ultra-conservadores) no mundo; analisar o fortalecimento do
Movimento Escola “sem” Partido no cenário brasileiro, fenômeno identificado com a incorporação
do discurso de combate à “ideologia de gênero”, a partir das discussões do Plano Nacional de
Educação; e identificar de que forma, a partir da difusão da “ideologia de gênero”, o Movimento
Escola “sem” Partido vem atacando os estudos de gênero. Trata-se de pesquisa de cunho qualitativo,
cuja realização se dará a partir de revisão bibliográfica e realização e analise de entrevistas semi-
estruturadas.
Palavras-chave: “Ideologia de gênero”. Gênero. Escola “sem” Partido.

Introdução

A literatura aponta que os estudos feministas em torno da discussão de “gênero” são


evidenciados a partir do final do século XX. Joan Scott (2019) já sinalizava que:

Elas estão ausentes na maior parte das teorias sociais formuladas desde o século XVIII até o
começo do século XX. De fato, algumas dessas teorias construíram a sua lógica sob analogias
com a oposição masculino/feminino, outras reconheceram uma “questão feminina”, outras
ainda preocuparam-se com a formação da identidade sexual subjetiva, mas o gênero, como o
meio de falar de sistemas de relações sociais ou entre os sexos, não tinha aparecido. Esta falta
poderia explicar em parte a dificuldade que as feministas contemporâneas têm tido de integrar
o termo gênero em conjuntos teóricos pré-existentes e em convencer os adeptos de uma ou
de outra escola teórica que o gênero faz parte do seu vocabulário. O termo gênero faz parte
das tentativas levadas pelas feministas contemporâneas para reivindicar certo campo de
definição, para insistir sobre o caráter inadequado das teorias existentes em explicar
desigualdades persistentes entre mulheres e homens. (SCOTT, 2019, p.65)

1
Mestranda no Programa de Pós Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo –
PPGNEIM, da Universidade Federal da Bahia – UFBA. Assistente Social do Nucelo de Gestão e Atenção à Saúde e
Segurança do Trabalho -NUGASST, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Salvador- BA, Brasil. E-mail:
rama.sc@hotmail.com.
2
Doutora em História e docente no Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade, no Programa de Pós-Graduação
em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo/PPGNEIM, da Universidade Federal da Bahia –
UFBA. Salvador-BA, Brasil. E-mail: iolevanin2007@gmail.com
1
Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X
Nessa direção, dentro dos estudos feministas, tais reflexões são recentes e resultado de
construções e esforços teóricos e políticos acerca da realidade socialmente construída. Para Scott
(2019), a definição de gênero “tem duas partes e várias subpartes”,

Elas são ligadas entre si, mas deveriam ser analiticamente distintas. O núcleo essencial da
definição baseia-se na conexão integral entre duas proposições: o gênero é um elemento
constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero
é uma forma primeira de significar as relações de poder. (SCOTT, 2019, p.67)

Gênero enquanto categoria de análise serve para pensarmos, antes de qualquer coisa, as
relações de poder. Nesse sentido, as discussões de gênero ajudam a descortinar o que está por trás da
naturalização de determinados papéis e hierarquias sociais, apontando que tal naturalização é um
constructo que serve para a manutenção de privilégios e a uma ordem societal muito bem
estabelecida: patriarcal, heteronormativa, classista e racista.
A partir dos anos de 1980 tais discussões começaram a ganhar impulso, chegando à década
de 1990 com grande expressividade, culminando no reconhecimento internacional da importância do
seu significado e utilização do termo “gênero”, em 1995, na IV Conferência das Nações Unidas sobre
a Mulher, que aconteceu na cidade de Pequim, China. (GURNIERI, 2010)
Evidente que o reconhecimento do “gênero” enquanto uma das categorias centrais para refletir
e propor ações na realidade social, bem como a sua utilização em documentos oficiais de organizações
internacionais não ocorreu de forma pacífica: trata-se de uma categoria em constante disputa para
afirmar-se até a atualidade. Nessa perspectiva, iniciou-se no mundo o que vem sendo denominado
por algumas teóricas de “Cruzada anti-gênero”, isto é, uma onda crescente de ataques aos estudos e
às estudiosas de gênero, aos movimentos feministas e à população de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Transsexuais, Travestis, Queer, Intersexo e outras (LGBTQI+), sob um discurso de combate à
“ideologia de gênero”.
A difusão da “ideologia de gênero” tem se apresentado enquanto um fenômeno transnacional,
no qual os setores ultraconservadores da Igreja Católica têm desempenhado importante papel,
construindo e utilizando discursos que “demonizam” aquelas que defendem, por exemplo, o direito
ao aborto, os direitos da população LGBTQI+, a despatologização dos corpos e a radical
desnaturalização das relações e papéis sociais.
No Brasil, o Movimento Escola “sem” Partido (MESP) se apresentou enquanto um agente
importante em tal “cruzada”, especialmente a partir das discussões em torno do Plano Nacional de
Educação em 2010. Desta forma, este trabalho propõe, a partir da difusão da “ideologia de gênero”,
analisar os ataques aos estudos de gênero pelo Movimento Escola “sem” Partido.
2
Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X
Para tanto, foi realizado mapeamento da difusão do termo “ideologia de gênero”, quando
analisou-se o fortalecimento do Movimento Escola “sem” Partido no cenário brasileiro, fenômeno
identificado com a incorporação do discurso de combate à “ideologia de gênero”, a partir das
discussões do Plano Nacional de Educação; e pretendeu-se identificar de que forma, a partir da
difusão da “ideologia de gênero”, o Movimento Escola “sem” Partido vem atacando os estudos de
gênero. Trata-se de pesquisa de cunho qualitativo, cuja realização se deu a partir de revisão
bibliográfica.
Importa destacar que, inicialmente pretendeu-se a realização e análise de entrevistas
semiestruturadas com militantes e docentes dos estudos de gênero que tiveram sofrido ataque por
parte destes cruzados. No entanto, devido à pandemia do COVID -19, a qual vem gerando inúmeras
mortes e grandes agravos de saúde, econômicos e políticos no país e no mundo, não foi possível
realizar tal proposta metodológica.

Cruzada “antigênero”: Uma breve contextualização

Os ataques ao gênero começam a ter maior expressividade na década de 1990. Apesar de na


literatura não haver consenso em relação a qual evento específico estes nascem, sabe-se que os
ataques se iniciam e se fortalecem no processo de organização para as Conferência Mundiais que
ocorreram no início de tal década. Como aponta Sônia Corrêa (2018)

(...) há várias discrepâncias quanto à cronologia de gestação dos ataques ao gênero.


Predomina a versão de que os ataques a gênero se deram no processo da IV CMM, mas há
quem identifique a Conferência do Cairo ou a ECO 92 como sendo o momento inicial dessa
saga. Isso decorre de que essas conferências se deram numa sequência intensa, na qual as
definições sobre reprodução, gênero e sexualidade foram condensadas de maneira
cumulativa, suscitando a cada etapa novos movimentos reativos e não é fácil rastrear esses
meandros sem ter estado neles. (CORREA, 2018, n.p)

Ao relatar a sua experiência pessoal em algumas Conferências e preparativos para tais, a


autora identifica um processo iniciado em 1992, na ECO 92, quando, segundo ela, “mesmo sem
discutir gênero, sexualidades, nem direito ao aborto”, a pauta em torno do “direito ao planejamento
familiar e o termo “saúde reprodutiva” se tornaram alvos da Santa Sé, gerando “ataques e manobras
políticas” por parte de seus representantes. (CORREA, 2018, n.p)
A Conferência do Cairo - Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento
(CIPD - 1994) foi marcada por um contexto de grande tensão, no qual a Santa Sé e países muçulmanos
impuseram diversas reservas em relação ao relatório final que expressava a agenda internacional de
prioridades a serem atendidas pelos países do mundo. No entanto, em 1995, na preparação para a IV

3
Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X
Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher (Conferência de Pequim), intitulada “Ação pela
Igualdade, o Desenvolvimento e a Paz” foi que os ataques ao gênero se expressaram de forma mais
incisiva.
Em 1997, como parte desse processo, Dale O’Leary 3, lançou um livro intitulado “Agenda de
Gênero”. No mesmo ano Rogério Junqueira (2017) apresenta que há a publicação do livro L’Évangile
face au désordre mondial (O Evangelho frente à desordem mundial), do monsenhor Michel
Schooyans cujo prefácio foi escrito pelo então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal
Joseph Ratzinger - que veio a tornar-se, posteriormente, o papa Bento XVI. Em tal livro há “amplo
espaço à denúncia da “ideologia de gênero”, sendo, possivelmente, uma das primeiras obras – se não
for a primeira – em que o sintagma foi empregado.” (JUNQUEIRA, 2017, p. 32-33) Ainda, continua
o autor,

Em abril de 1998, o sintagma “ideologia de gênero” apareceu pela primeira vez em um


documento eclesiástico. Tratava-se de uma nota da Conferência Episcopal do Peru, intitulada
La ideologia de género: sus peligros y alcances, produzida pelo ultraconservador monsenhor
Oscar Alzamora Revoredo, marianista, Bispo Auxiliar de Lima. Baseado em um artigo de
O’Leary (1995) redigido para subsidiar os trabalhos preparatórios dos grupos pró-vida e pró-
família para a Conferência de Pequim, o documento tornou-se uma referência.
(JUNQUEIRA, 2017,p. 32-33)

Apesar de o documento do monsenhor Revoredo ter sido produzido na Conferência Episcopal


do Peru, conforme aponta Miskolci e Campana (2017), foi com o “Documento de Aparecida”,
produzido em 2007, que a Igreja Católica efetivamente iniciou sua cruzada contra a “ideologia de
gênero” em toda a América Latina. Com isso, o autor sinaliza que existe um consenso na literatura
de que “ideologia de gênero” é uma criação da Igreja Católica.
Importa destacar que, apesar de os Movimentos ganharem força em diferentes períodos nos
diferentes países da América Latina, ao realizarem uma genealogia do termo “ideologia de gênero”,
Miskolci e Campana (2017) identificaram

três elementos comuns às diferentes realidades nacionais em que tais debates ganharam
relevância:
1. todas ocorreram a partir da virada do milênio;
2. emergiram em países que passaram a ter governos de esquerda; e
3. deflagraram-se em torno de reformas educacionais e legais. (MISKOLCI; CAMPANA,
2017, p.734)

3
Como aponta Rogério Junqueira (2017), Dale O’Leary é “jornalista e escritora norte-americana, ligada à Opus Dei, representante do
lobby católico Family Research Council e da National Association for Research & Therapy of Homosexuality, que promove terapias
reparadoras da homossexualidade”.
4
Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X
A partir de tal identificação, é possível afirmar que, no Brasil, os debates em torno das
questões de gênero e sexualidades, bem como a Cruzada contra a “ideologia de gênero” apresentam
esses três elementos centrais.

Movimento Escola “Sem” Partido: a escalada do ultraconservadorismo no Brasil

No Brasil, a primeira década dos anos 2000 se inicia com a vitória, nas eleições de 2002, do
candidato Luís Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), sobre a candidatura de José
Serra, do Partido da Social Democracia do Brasil (PSDB). Apesar de não ter rompido com as elites
brasileiras, o então candidato eleito defendia uma agenda progressista, especialmente no que tangia
às propostas de políticas sociais.
A partir de 2004 identifica-se que o processo de disputa de discursos, políticas e legislações
entre os ultraconservadores e os setores mais progressistas ficavam mais evidentes. Como apontam
Miskolci e Campana (2017), é possível identificar alguns marcos relacionados a tal processo, dentre
eles destacam-se a aprovação do Programa Brasil Sem Homofobia (2006), a discussão acerca do
Plano Nacional de Direitos Humanos (2009), a eleição de Dilma Rousseff (2010), cuja campanha,
conforme sinalizam, foi pautada em uma aproximação junto aos setores religiosos católicos
ultraconservadores e neopentecostais, com o compromisso de não alteração na “legislação sobre o
aborto ou concernente ao matrimônio homossexual”, a proposta do Programa “Escola sem
Homofobia” (2010-2011), conhecido de forma pejorativa enquanto “kit gay”, o reconhecimento do
STF da união entre pessoas do mesmo sexo – casamento civil (2011), o Plano Nacional de Promoção
da Cidadania e Direitos Humanos LGBT (2013), e o Plano Nacional de Educação (2014).
Luis Felipe Miguel (2016) aponta que a partir de 2010 a onda ultraconservadora, que já vinha
se implantando no país, cresceu. Segundo ele, a partir deste período, “as vozes abertamente
conservadoras” avançam no debate público, cujos discursos são fruto de “uma conjugação heteróclita
entre o “libertarianismo”, o fundamentalismo religioso e o antigo anticomunismo”. O
“libertarianismo” seria uma ideologia ultraliberal, o fundamentalismo religioso, se pauta em uma
verdade absoluta, “que anula qualquer possibilidade de debate” e o anticomunismo tem sido
vinculado à ideia de uma ameaça “bolivarianista” e do Foro de São Paulo, trazendo a ideia de uma
“conspiração para dominar o subcontinente” e é sobreposto ao antipetismo, sendo um dos seus porta-
vozes de maior destaque Olavo de Carvalho (MIGUEL, 2016, 593-594).
Nesse cenário, entre 2010 e 2014, a discussão acerca do Plano Nacional de Educação se torna
arena favorável para acordos e, mais que isso, para a difusão de discursos ultraconservadores,

5
Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X
LGBTfóbicos, misóginos e repletos de distorções teóricas em torno das discussões envolvendo gênero
e sexualidades. Como afirma Luis Felipe Miguel (2016, p. 599),

Evangélicos e católicos trabalharam juntos e obtiveram o banimento da temática de gênero


do plano nacional e de muitos outros, estaduais e locais (Britto e Reis, 2015; Bergamim Jr.,
2015). Durante a apreciação dos planos de educação, era comum ver câmaras ou assembleias
tomadas por freiras, lado a lado com pastores de igrejas neopentecostais, pressionando os
deputados e vereadores. (MIGUEL, 2016, p. 599)

Em meio a esse contexto de disputas discursivas e, efetivamente, de poder, começou a ganhar


grande destaque a pauta de combate à “ideologia de gênero”, o Movimento Escola “sem” Partido
(MESP). Apesar de Miguel Nagib, coordenador do Movimento Escola “sem” Partido, afirmar que
este foi criado em 2004, Fernando Penna e Diogo Salles (2017) afirmam que, enquanto um projeto
neoliberal, conservador, de privatização das escolas públicas, sob o discurso de combate às
doutrinações ideológicas que ocorrem nesses espaços, o Escola sem Partido surge antes, sob forte
influência, dentre outros atores, de Nelson Lehmann da Silva e Olavo de Carvalho, ambos membros
do Instituto Liberal de Brasília (ILB), cuja defesa de escolas livres da doutrinação “esquerdista”
aparecem antes do surgimento do Movimento em si. No entanto, como aponta Luis Felipe Miguel
(2016), em 2010, ao incorporar o discurso do combate à ideologia de gênero a ESP ganha corpo e
visibilidade.

O crescimento da importância do MESP no debate público ocorre quando seu projeto conflui
para o de outra vertente da agenda conservadora: o combate à chamada ideologia de gênero.
Antes, a ideia de uma “Escola Sem Partido” focava sobretudo no temor da “doutrinação
marxista”, algo que estava presente desde o período da ditadura militar. O receio da discussão
sobre os papéis de gênero cresceu com iniciativas para o combate à homofobia e ao sexismo
nas escolas e foi encampado como bandeira prioritária pelos grupos religiosos conservadores.
Ao fundi-lo à sua pauta original, o MESP transferiu a discussão para um terreno
aparentemente “moral” (em contraposição a “político”) e passou a enquadrá-la nos termos de
uma disputa entre escolarização e autoridade da família sobre as crianças. (MIGUEL, 2016,
p. 595-596)

Ao incorporar o combate contra a ideologia de gênero, o Escola sem Partido se fortaleceu e,


sob um discurso de neutralidade promove/vem promovendo um processo de intensa criminalização
em relação aos/às professores/as. Essa suposta neutralidade, bem como o suposto “sem Partido”
podem ser lidos como uma falácia, uma vez que, conforme já apontado em diversos estudos, por trás
desse discurso estão implicados projetos ultraconservadores e ultraliberais, na defesa da família
cisheteronormativa, de uma educação moral e religiosa – implicando no fim da laicidade do Estado,
visando a privatização especialmente das escolas públicas, junto com o avanço de projetos de
homeschooling – “educação doméstica, fora de uma instituição escolar” (BIROLI, 2018, p. 128).

6
Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X
Em 2014, no entanto, com a solicitação de Flavio Bolsonaro, deputado estadual pelo Rio de
Janeiro à época, a Miguel Nagib da formulação de um anteprojeto de Lei que trouxesse em seu
arcabouço os ideais do Movimento, que “o MESP buscará pelas vias institucionais do Estado as
formas de se consolidar definitivamente”. (PENNA E SALLES, 2017, p. 14-15) De modo que a partir
de tal ano os Projetos de Lei (PLs) em torno das pautas e sob o próprio manto de Escola sem Partido
começaram a se multiplicar pelo país.
No dia 01 de dezembro de 2020, a Frente Escola Sem Mordaça divulgou um documento
intitulado “6 anos de projetos ‘Escola Sem Partido’ no Brasil: Levantamento dos Projetos de Lei
Estaduais, Municipais, Distritais e Federais que censuram a liberdade de aprender e ensinar”4, o qual
apresenta a atualização do mapeamento dos PLs de 2014 até novembro de 2020. Conforme aponta o
documento, foram identificados 247 projetos de Lei.
Entretanto agora no momento de redação do relatório, analisando novamente as informações,
achamos por bem excluir os projetos que acrescentavam à proibição ao debate sobre gênero
e sexualidade em planos municipais e estaduais de educação e libera-los a parte, bem como
excluir alguns projetos de lei que tinham como foco bibliotecas públicas e não escolas. Desta
forma, trataremos neste relatório de 237 projetos de censura ao todo, sendo 214 projetos
apresentados em municípios e estados e no distrito federal e mais 23 projetos apresentados
no congresso federal. (MOURA; SILVA, 2020, p. 13-14)

As autoras - Fernanda Moura e Renata Aquino - sinalizam que, apesar de haver muitos
projetos, estão não são muito variados. No entanto, dentre as variações elas apresentam nas seguintes
categorias de Projeto:

a) Escola sem Partido: [...] são os projetos de lei que receberam de seus propositores este
nome e que geralmente consta na própria ementa do projeto. Estes praticamente sempre
seguem ao pé da letra os anteprojetos de lei criados por Miguel Nagib e disponíveis nos dois
sites oficiais do movimento Escola sem Partido[...]
b) Tipo Escola sem Partido: [..] seguem as ideias do movimento Escola sem Partido sem,
no entanto, utilizar os anteprojetos exatos e por isso sem utilizar o nome [...]
c) Antigênero: [...] censuram especificamente e somente o direito à educação em gênero e
sexualidade. Entretanto, alguns projetos “Escola sem Partido” ou “tipo Escola sem Partido”
também possuem um artigo ou um parágrafo único para proibir a abordagem das questões
relativas à gênero e sexualidade. Por isso “antigênero” é tanto um tipo como um subtipo que
caracteriza alguns projetos. [...]
d) Infância sem Pornografia: [...] visam proibir a discussão sobre gênero e sexualidade
usando, no entanto, uma suposta proteção da infância contra pornografia como meio para
isso. Usa, portanto, de uma estratégia comum na direita mundial: associar homossexualidade,
tema forte ao se discutir sexualidade na escola, à pedofilia. (...) (MOURA; SILVA, 2020, p.
7-8, grifos das autoras)

4
Tal atualização, realizada por Fernanda Moura e Renata Aquino, contou com “financiamento do Sindicato Nacional dos
Docentes das Instituições de Ensino Superior – (ANDES-Sindicato Nacional), do Sindicato Nacional dos Servidores
Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (Sinasefe) e da Federação de Sindicatos de Trabalhadores
Técnico-administrativos em Instituições de Ensino Superior Públicas do Brasil (Fasubra).” (MOURA; SILVA, 2020, p.4)

7
Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X
Dentre os dados apresentados cabe trazer que, no âmbito estadual e municipal entre 2017 e
2018, foram os anos que apresentaram o maior quantitativo de PLs tanto no que tange à apresentação
dos Projetos em si, quanto aos que chegaram a ser convertidos em Lei. (MOURA; SILVA, 2020, p.
17-18) No entanto, no que diz respeito aos Projetos de Lei em âmbito Federal, foi identificado 2015
e 2019 como anos de crescimento de apresentação de PLs.
Nesse percurso de ascensão, em 2016, ocorreu o golpe midiático parlamentar que oficializou
o impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, em nome de Deus, da Moral e da Família e contra
a “ideologia de gênero”. Em outubro de 2017, a filósofa norte-americana, feminista, Judith Butler
sofreu ataques verbais ao vir ao Brasil dialogar sobre democracia. Sob o discurso de luta contra a
“ideologia de gênero”, grupos se organizaram para tentar impedir a palestra da conhecida “feminista
do gênero”. Como ela mesma afirmou em carta escrita após os ataques, provavelmente por
acreditarem que a sua fala representa uma ameaça à família, à moral e à própria nação. Ainda, em
2017, em Salvador/BA, uma docente do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM)
da Universidade Federal da Bahia foi ameaçada de morte por realizar pesquisa, fazendo com que o
próprio Núcleo de Estudos se manifestasse publicamente afirmando em Nota Pública (2017) que “não
podemos aceitar esse cerceamento à liberdade de pensamento. Devemos somar forças para
defendermos o nosso campo de estudos e de manifestações políticas.”
Nesse sentido, apesar do expressivo quantitativo de PLs identificados no documento da
Frente Escola sem Mordaça apresentado, o próprio documento destaca que o Supremo Tribunal
Federal (STF) já apresentou decisões que afirmam a inconstitucionalidade da impossibilidade de se
discutir gênero e sexualidades nas escolas. Dentre tais decisões, encontra-se a de agosto de 2020, na
qual

[...] em 21 de agosto, três ADPFS5 relatadas pelo ministro Barroso (461, 465, 600) e três
ADIs6 contra o ESP alagoano, o “Escola Livre”, foram julgadas procedentes e suas
respectivas leis impugnadas, derrubadas definitivamente. Na avaliação do relator das ações,
ministro Barroso, que já havia suspendido liminarmente os dispositivos, as normas
comprometem o acesso de crianças, adolescentes e jovens a conteúdos relevantes, pertinentes
à sua vida íntima e social, em desrespeito à doutrina da proteção integral. (...) (MOURA;
SILVA, p. 27)

Após a decisão da inconstitucionalidade do PL anteriormente aprovado em Alagoas, Miguel


Nagib, no dia 22 de agosto de 2020, publicou na página do Movimento Escola sem Partido nota
anunciando o fim da sua participação no Movimento, bem como entrevista ao canal da Rádio Guaíba

5
ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
6
ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade
8
Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X
explicando a sua saída, sob a alegação de que o próprio STF estava blindando a “propaganda
ideológica e partidária dentro das instituições de ensino” e que, neste momento, ele acreditava ser
importante escrever um livro relatando a sua vivência no MESP.
Além disso, Nagib também apontou que esperava, após a eleição que colocou Jair Bolsonaro
na presidência, maior apoio do governo federal e de outros apoiadores do Movimento. Com isso,
apesar de o Movimento apresentar fragilidades, e de o próprio Nagib na entrevista apresentada na
Rádio Guaíba (2020) afirmar que verificava dificuldades nas condições de o Movimento prosseguir,
é importante refletir todo o processo de complexidade que envolve o crescimento do Movimento e o
seu “declínio”, bem como a real necessidade, neste momento de ascensão ultraconservadora no
Brasil, de um MESP para representar interesses de censura ao conteúdo de gênero e sexualidades nas
escolas, uma vez que o próprio presidente da República e seus secretários/a e ministros vem
representando/executando esse projeto. Com isso, vale ressaltar que apesar de essas decisões do
Supremo serem importantes, elas não dão conta de findar com os ataques e perseguições aos estudos
e estudiosas de gênero, aos movimentos feministas e à população LGBTQI+.

Para além do Escola “sem” Partido: Considerações sobre ideologia de gênero em tempos
ultraconservadores
Conforme apresentado, este trabalho pretendeu compreender, a partir da difusão da “ideologia
de gênero”, o ataque aos estudos de gênero pelo Movimento Escola “sem” Partido. Nessa direção, foi
possível identificar que o crescimento do MESP está atrelado diretamente às cruzadas antigênero que
ocorrem de forma transnacional em nome do combate à “ideologia de gênero”. Importa destacar que
o avanço tal conceito vem sendo difundido estrategicamente em um momento de avanço das
conquistas de direitos da população LGBTQI+ e das mulheres no mundo, bem como dos avanços dos
estudos de gênero e sexualidades a partir dos anos 1990.
A ala ultraconservadora da Igreja Católica ganha muito destaque nesse processo, se
apresentando enquanto criadora do sintagma da “ideologia de gênero”. É possível identificar, dentre
outras questões, que a sua luta histórica de controle sobre os corpos das mulheres e das sexualidades
não heteronormativas a partir da criminalização do aborto, da repulsa aos métodos contraceptivos, e
da condenação da homossexualidade, em nome da família e da moral cristã, se reafirma nesta Cruzada
antigênero.
No Brasil, especificamente, nos últimos anos, temos visto/vivenciado que o avanço de tal
Cruzada tem despertado os mais diferentes discursos e práticas de ódio no país. Nesse percurso, em

9
Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X
2004 identifica-se no país a criação do Movimento Escola ‘Sem’ Partido. Em 2014, como parte da
discussão acerca do Plano Nacional de Educação, impulsiona-se a arena para conchavos e ganha coro
discursos ultraconservadores em torno da “ideologia de gênero”. Esse grande acordo, que envolvia
religiosos na arena política, se deu em torno de uma agenda moral. Flávia Biroli (2018, p. 194) nos
lembra que essa aliança atua

(...) contra professoras e professores, na tentativa de proibir qualquer debate sobre


desigualdades de gênero e análises posicionadas da realidade social. Mas é possível
compreender o padrão atual das investidas no país também como reação à participação das
mulheres e à atuação feminista no âmbito estatal, em um contexto que teve como componente
a campanha marcadamente misógina contra a primeira mulher a exercer a presidência da
república no país. (BIROLI, 2018, p. 194)

Tal compreensão pode ser explicitada durante todo o processo do golpe que culminou no
impeachment de Dilma Rousseff, o qual, como apresentam Linda Rubim e Fernanda Argolo (2018),
tiveram enquanto justificativas majoritárias para o a saída imediata da presidenta “Deus” e “a defesa
da família”.
As eleições de 2018 evidenciam, ainda mais, esse ultraconservadorismo ao culminar com a
vitória de Jair Messias Bolsonaro, eleito presidente da república, após forte mobilização contrária por
parte das mulheres em torno de uma campanha intitulada “Ele Não”.

Enquanto cresciam politicamente também defendendo a ditadura militar, a família Bolsonaro


construiu pra si a imagem de viris protetores das crianças e dos jovens frente aos seus
temíveis professores “doutrinadores” que segundo eles “desvirtuam” a juventude com sua
defesa do comunismo e sexualização precoce. Essas ideias foram defendidas durante a
eleição de 2014 e durante o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016
no qual os grupos conservadores, dentre eles o clã Bolsonaro, votou “pela família”, “por
Deus”, “pelo Escola Sem Partido” e “contra a Ideologia de Gênero(...) Foi através dessa
narrativa de cruzada, incentivando um pânico moral e mirando-o contra os professores, que
o Movimento Escola Sem Partido cresceu e a família Bolsonaro pavimentou seu caminho
rumo à presidência: vendendo a imagem de “defensores da família brasileira” contra o
inimigo que eles mesmos inventaram (MOURA; SILVA, 2020, p. 11)

Pautada então numa lógica ultraliberal, heteronormativa, misógina, sexista, familista e


biologizante, baseada na moral e nos “bons costumes”, de forma repaginada, a caça às bruxas já está
acontecendo. Nesse momento histórico, especialmente, a defesa intransigente dos estudos, das
estudiosas, das militantes de gênero, dos movimentos feministas e da população LGBTQI+ faz-se
urgente.

10
Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X
Referências

BIROLI, Flavia. Gênero e Desigualdades: os limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo,
2018.
CORREA, Sônia. A “política do gênero”: um comentário genealógico. Cadernos Pagu: debate quem
tem medo de Judith Butler? a cruzada moral contra os direitos humanos no Brasil. Cadernos Pagu,
n. 53, 2018.
GUARNIERI, Tathiana Haddad. Os direitos das mulheres no contexto internacional – da criação da
ONU (1945) à conferência de Beijing (1995). Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery.
Curso de Direito - N. 8, JAN/JUN 2010. Disponível em: <
http://re.granbery.edu.br/artigos/MzUx.pdf> . Acesso em: 13 de junho de 2019.
JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Ideologia de gênero: a gênese de uma categoria política reacionária –
ou: a promoção dos direitos humanos se tornou uma “ameaça à família natural”? In: RIBEIRO, Paula
Regina Costa; MAGALHÃES, Joanalira Corpes (orgs.). E24 Debates contemporâneos sobre
Educação para a sexualidade. Rio Grande: Ed. da FURG, 2017, p. 25- 52
LOURO, Guacira Lopes. A emergência do gênero. In: Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis:
Vozes, 1997.
MIGUEL, Luís Felipe. Da “doutrinação marxista” à ideologia de gênero: Escola Sem Partido e as leis
da mordaça no parlamento brasileiro. Direito e Práxis. Rio de Janeiro, v.7, n.15, 2016, p. 590-621.
MISKOLCI, Richard.; CAMPANA, Maximiliano. ideologia de gênero: notas para a genealogia de
um pânico moral contemporâneo. In: Revista Sociedade e Estado, v. 32, n. 3, Set/Dez, 2017.
MOURA, Fernanda Pereira de; SILVA, Renata da C. A. da. 6 anos de projetos “Escola sem Partido”
no Brasil: levantamento dos projetos de lei estaduais, municipais, distritais e federais que censuram
a liberdade de aprender e ensinar. Brasília: Frente Nacional Escola Sem Mordaça, 2020.
NAGIB, Miguel. Entrevista na Rádio Guaíba - Fundador do ESP explica porque se desligou do
Movimento. Publicada em 16 de agosto de 2020. Disponível em < https://youtu.be/uwSpMNlWRjg
> Acesso em: 06 de dezembro de 2020.
NEIM - UFBA. Nota Pública. 2017. Disponível em < http://www.neim.ufba.br/wp/nota-publica/ > .
Acesso em: 28 de dezembro de 2017.
PENNA, Fernando de Araujo; SALLES, Diogo da Costa. A dupla certidão de nascimento do Escola
sem Partido: Analisando as referências intelectuais de uma retórica reacionária. In: MUNIZ, Altemar
de Costa; LEAL, Tito Barros (orgs.) Arquivos, documentos e ensino de história: desafios
contemporâneos. Fortaleza : EdUECE, 2017, p. 13-37.
RUBIM, Linda. ARGOLO, Fernanda. (Org). O Golpe na perspectiva de gênero. Salvador: Edufba,
2018 (Coleção Cult).
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de
(org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p.
49–80.

11
Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X
"Gender Ideology": Attacks on Gender Studies by School “Without” Party Movement

Abstract: From 1990 it’s possible to identify a significant increase in the production of gender
studies, in Brazil and worldwide. As they question the oppressions historically legitimized by Western
science as absolute truths and / or the only possible form of sociability, gender studies have presented
themselves as a threat to the maintenance of order and dominant privilege, which has led to such
studies have suffered numerous attacks. This work aims to understand, from the spread of the “gender
ideology”, the attack on gender studies by the School “Without” Party Movement. For the purpose of
this research, we intend to map the diffusion of the term “gender ideology”, initially used by the ultra-
conservative wing of the Catholic Church, especially from the 1994 and 1995 World Conferences
and reproduced by other religious sectors and (ultra-conservative) politicians in the world; analyze
the strengthening of the School “Without” Party Movement in the Brazilian scenario, a phenomenon
identified with the incorporation of the discourse to combat “gender ideology”, based on the
discussions of the National Education Plan; and identify how, from the spread of the “gender
ideology”, the School “Without” Party Movement has been attacking gender studies. This is a
qualitative research, whose realization will be based on literature review and semi-structured
interviews.
Keywords: “Gender Ideology”. Gender. School “Without” Party.

12
Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X

Você também pode gostar