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DAI DE COMER AOS GATOS

Não vos falarei da bomba atômica nem de outros eventos do dia. A escala
mundial excede as proporções desta mísera crônica. Prefiro os mínimos, os
imponderáveis. E vou procurar o meu assunto onde ninguém o botou: entre as
folhas da relva de um pequeno jardim encravado no centro desta curiosa
cidade que é nossa e que se chama o Rio de Janeiro.

Meu assunto é um embrulho de comida. Se o abrimos, veremos que são antes


catorze embrulhos pequenos, um deles relativamente maior que os demais. Já
satisfeita a primeira curiosidade e expostos os volumes constituídos em papel
de jornal eis que deles se aproxima um gato, dois gatos, depois muitos gatos.
Não são animais de boa linhagem com pretensões a árvore genealógica e
outros granfinismos bragantinos.

Humildes gatos de rua, na maioria pretos, alguns malhados, porém gatos,


fundamentalmente gatos no estilo cauteloso com que se avizinham, na
seriedade dos olhos –mélés de métal et d’agate, com dizia o poeta– na
elegância natural com que portam, inspecionam o ambiente e se decidem a
comer.

Estão comendo. As plantas do jardim, que é moderno e não comporta flores,


mas apenas folhagens, excedem de vinte vezes no máximo a estatura dos
felinos. Mesmo assim, hão de considerá-las árvores gigantescas à sombra das
quais se acolhem e se protegem das incertezas da vida civilizada. Porque estes
gatos estão na selva, embora a selva se localize na Esplanada do Castelo. Não
pertencem a nenhum dono, e foram os primitivos incorporadores do bando
pelo menos expulsos de alguma casa das vizinhanças. Não perderam de todo a
domesticidade, mas deram um salto para trás, no caminho da selvageria. O
homem abandonou-os: encontram um jardim e passaram a cultivá-los à
maneira dos gatos, para quem a contemplação é uma forma de ação.

Estão comendo. Observai o que contém cada embrulho. Não é apenas o


miserável arroz, o consuetudinário feijão: é também a preciosa carne,
presente dos deuses, sonhos das donas de casa, alucinação das cozinheiras. Eis
aí carne de vaca, talvez com osso, não é possível enxergar bem, pois são sete
horas da noite e a massa de vegetação derrama sobre estas coisas uma
sombra protetora: em todo caso, carne, e como comem! Cada gato é um
pequeno pachá, instalado na grama, deglutindo sua carnezinha à sombra dos
arranha-céus, enquanto na cidade declina a batalha da condução.

Mas essa carne veio do céu? — perguntareis. E vossa indignação será


respondida. Não, veio de açougues, e foi comprada por esta senhora que ao
vedes curvada sobre a grama, abrindo os pacotes e dispondo-os a espaços
regulares. Ela os preparou a todos. São catorze, para outros tantos animais.
Se há um maior é porque se destina a um cão também despossuído, e que faz
ponto mais adiante. Nem todos os gatos residem neste jardim. Há outros em
local próximo. A senhora que vos aponta lá irá ter com eles na hora justa:
enquanto isso, atende aos daqui por uma questão de ordem, e porque não há
jardim que caiba todos os gatos e todos os cães sem teto.
Notai que a boa dama não faz publicidade. Não está anunciando nada, nem
mesmo o seu pendor generoso. Acabou de jantar –à pressa, porque os bichos
não podiam esperar–, organizou seu fardo incômodo e veio trazê-lo aos dois
ou três lugares onde se acham seus amigos irracionais. Faz isso todas as
noites. E não é rica. Vê-se pela modéstia do vestuário que é decoroso, sem
fantasia, e indica talvez a viúva do oficial do Tesouro ou a contramestra da
casa de modas. (Observai de passagem, à luz deste poste de esquina, como são
finos os seus cabelos grisalhos, delicadas as suas mãos).

Se lhe perguntardes por que faz assim… Mas, não lhe pergunteis nada. Será
preciso explicar por que se dá de comer a um bicho? Por que se sai de casa à
noite, carregando um embrulho de jornal de manejo incômodo quando se
podia ir ao cinema ou ficar no quarto escutando no rádio a música boa ou má,
de nossa predileção? Há forças que nos prendem aos bichos, e quem não sentir
em si essas forças, não compreenderá jamais; quem as sentir dispensa
explicações. Imaginemos, apenas, que ao amor aos bichos se junte o
desencanto dos homens, não raro bem menos sensíveis do que cães e gatos; e
veremos nessa distribuição noturna de rações aos nossos irmãos de cauda, não
apenas um ato cordial e um ato poético, mas inclusive um protesto irônico e
franciscano contra a linha habitual de conduta desse pretensioso animal sem
rabo, que é o homem.

Carlos Drummond de Andrade

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