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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

CONTRACAPA

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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

INFORMAÇÕES TÉCNICAS

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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

SUMÁRIO
Introdução............................................................................................ 4
O misterioso ancião............................................................................. 5
Todo bom guerreiro não anda só.................................................. 18
Reminiscências colatinenses............................................................ 29
As muitas formas da morte............................................................... 39
O que restou do fim do mundo....................................................... 50
A navegação no rio doce................................................................. 63
A última batalha. ............................................................................... 75
Pesadelo ou profecia........................................................................ 83
Uma instituição educacional:.......................................................... 91
Márcia e o formigueiro mágico...................................................... 99

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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

INTRODUÇÃO

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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

O MISTERIOSO ANCIÃO
Martinho Raasch Júnior

Era muito se meus cabelos tocassem a cintura de meu pai quan-


do aquele velho veio morar em nosso vilarejo.
Ocupou um casebre abandonado nos fundos das habitações fron-
tais, lugar mais frequentado por escorpiões, ratos e baratas do que
por gente. As nossas mães, inclusive, sempre recomendavam que não
fôssemos naquela direção, que ali era toca de insetos transmissores de
doenças e de pessoas excomungadas pela roda da bonança.
— A mãe disse que lá tem bicho-papão.
— A minha afirma que há assombrações rondando aquelas tape-
ras todas as noites.
— O pai já viu uma porção de urutus se escondendo no meio do
batume que pavimenta o redor.
A escada de nefastos comentários daria para chegar às estrelas.
Sempre algum adulto punha um novo degrau, recheado de repug-
nância. Quando não eram os pais, a obra passava a ser tocada por
tios, genros, primos, cunhados e avós, além dos estranhos que sen-
tiam alguma necessidade de lubricar as línguas à custa da periferia
do povoado que nos abrigava.
Com tantos ditos funestos blindando a passagem, nenhum me-
nino ousava se enfiar naquele maldito território. O menor ruído po-
deria despertar o bicho-papão, que devorava as criancinhas que lhes
tiravam o sossego. Dormiam de dia para aprontar mil malvadezas à
noite, com a cumplicidade das apavorantes falanges de trevas.
Um senhor, repentinamente, de vestimentas surradas e cabelos
esbranquiçados, carregando um saco roto às costas chega e invade
a malquista área, adentrando-se a uma das mansardas com toda
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tranquilidade, como se o local lhe fosse familiar. Acende logo o


fogão, que faz a fumaça jorrar, em lépidas golfadas, pela chami-
né adormecida pelo tempo. Fato esquisito demais para o nosso
morno cotidiano, habituado às romarias de mesmices dos vilórios
ocultos pelas lonjuras dos sertões.
Deveria vir de muito longe para arranchar ali, haja vista que so-
mente um desavisado procederia assim. Ainda que suas posses fos-
sem mínimas, antes ficar ao relento do que se enfurnar naqueles bar-
racos cujas tábuas estavam condenadas pelo voraz labor dos cupins.
Eu e a molecada espiávamos o ancião a uma distância segura,
numa dobra de esquina ou atrás das tantas pilhas de madeiras dis-
persas pelas margens das ruas.
De semblante manso e olhar vago, o velho quase não saía do in-
terior da cafua. Costumava ficar escorado numa janela, perscrutan-
do, em pose atenta, as redondezas feito um cão que fareja uma caça.
Mirava o horizonte em doses prolongadas, elencando imaginações
que apenas Deus poderia conhecer. Talvez pedisse às nuvens que in-
tercedesse por sua ínfima posição social. Não demoraria a findar os
seus dias e quem o ampararia na sofreguidão que antecede à morte?
Se todo mundo precisava de um sustento, de onde aquele decré-
pito tirava o seu? Inquietante indagação que meu pai fazia. Pequeno
demais para entender das engrenagens fisiológicas, eu apenas ouvia
e fazia associações com as abóboras que via o desconhecido reco-
lher no quintal e com os preás que capturava nas adjacências.
Em decorrência do apressado gotejamento do tempo, a chegada
do velho foi perdendo força no cotidiano da povoação. Soprou para
outras direções o vento da curiosidade pela vida alheia. Apenas para
nós, meninos, o cata-vento representado pela figura esfarrapada do
velho continuava a girar em nossas rodas de conversas, tanto antes
quanto depois das espionagens que insistíamos em fazer. Dir-se-ia
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que era um lazer que substituía os brinquedos que nossos genitores


não podiam comprar.
Vimos, um dia, um episódio raro: o velho caminhar na rua prin-
cipal. Pareceu-nos mais surrado pelos anos do que em nossas obser-
vações ao longe. Por que ele estava ali? Não estava fora dos limites
impostos pela sua extremada miserabilidade? Algumas cabeças de
gente grande apontaram nas bandas de janelas, e furtivos olhares fu-
zilaram o caminhante. Coisa rápida, não compensava perder tempo
com uma cambota carcaça que ninguém sabia de onde viera. Mais
ou menos dias, a morte o levaria. E seria os urubus a nos dar o alar-
me ao voarem em círculos sobre a tapera. Uma cova rasa para não
faltar ao zelo cristão e tudo estaria selado com uma camada de terra.
Os eventos, entretanto, pensavam diferente.
Uma mulher andava na direção do decrépito. Trazia ao colo uma
criancinha que chorava incessantemente. Portadora de uma doença
ignorada, a pequena beirava o adeus a esse mundo. Um esqueletinho
que teimava em respirar, para abreviar a descrição.
Apiedado possivelmente pelos soluços da enferma, o velho
aproximou-se da mãe, que, no afã de tentar acalmar a filha, não no-
tou a presença do estranho. Ao vê-lo, quis se afastar num gesto re-
pulsivo, no entanto, a serena e enrugada feição do ancião paralisou-a
por alguns instantes. A menina, tão bem embrulhada nos panos que
somente a face ficava à mostra, cessou o choro de imediato. Abri-
ram-se os seus olhinhos e fitaram o idoso maltrapilho. Do rostinho
dantes todo rabiscado por lágrimas, um angelical sorriso jorrou.
Incrédula e indecisa, a mulher mexeu com a criança nos braços
e foi se afastando, não sem antes endereçar ao velho um olhar que
poderia ser interpretado como um agradecimento.
No lar da menininha, o restante do dia foi uma festa por algo
inusitado, para além da compreensão humana. Os risos eram
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constantes, e a febre, que tinha por hábito definhar a pequena,


desaparecera por completo. Pela primeira vez, os pais conheciam
uma paz que nunca imaginavam que pudessem ser merecedores.
Outra cena incomum ocorreu no dia seguinte. Mãe e filha visi-
taram o casebre do ancião. Acompanhamos tudo, acobertados por
uma moita de colonião. Um embornal passou para as mãos do velho.
Seriam víveres, certamente, para abastecer a despensa do morador.
O caso criou lépidas pernas pelo vilarejo, fuçando todos os can-
tos onde houvesse uma alma de ouvidos dispostos. Simplória é a
formação do povo sertanejo, contudo, uns raciocínios de fácil con-
clusão todos podem fazer. Quem opera um milagre tem cabedal
para realizar outros.
Várias crianças que se mantinham nas presas de doenças de todo
tipo foram levadas para o velho examinar, mesmo que fosse apenas
com o olhar. Ele retirava da prateleira alguns frascos com chás das er-
vas que recolhia na pastaria e os entregava às esperançosas genitoras.
Já não era mais um menosprezado forasteiro o ancião. As refe-
rências a ele, nas reuniões das camadas mais abastadas, passeavam
de mesa em mesa na fartura que as engraxadas matracas pudessem
suportar.
— Curou o impaludismo encruado no Tiãozinho, filho do ferreiro.
— Coqueluche e sarampo também capitularam aos pés das gar-
rafadas dele.
— E a catapora? Desarma a barraca em dois dias.
Não obstante fossem mais renitentes, os adultos também se ren-
deram às evidências e tomaram o caminho do subúrbio para buscar
socorro aos seus achaques. Quase sempre exitoso, o velho ia fazen-
do nome e sobrenome.
Não tardou a boa-nova em varar fronteiras. Dos povoados vizi-
nhos aos grotões mais ermos, a peregrinação à tapera do curandeiro
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era um estardalhaço. A periferia ficou pequena para tantas pernas e


cabeças. Um locador sugeriu que o ancião se transferisse para um
sobrado da rua mestra. A proposta, entretanto, esbarrou na resis-
tência do velho. Criara raízes ali nos fundos, de modo que uma re-
moção poderia comprometer o tronco. Ninguém mais abriu a boca.
Nem tosse e nem resfriado circulavam mais pelo nosso patrimô-
nio. Moléstia agora era traste de museu. Todos sadios, aptos à peleja
diária, à busca dos tostões garantidores da permanência dos seres
pensantes neste mundo. Houve quem supusesse que estávamos des-
frutando de uma amostragem do paraíso celestial, onde crianças,
adultos e idosos podiam ver a vida por outros ângulos e aproveitar
as benesses que o Criador nos ofertava em sacarias.
Quanto ao velho, seria escusado dizer que se tornara o cidadão
mais ilustre e respeitado da região. Alguns mais aficionados até se
mudaram para os barracos suburbanos para ficarem mais perto da-
quele talismã sagrado.
Sem que suspeitássemos, todavia, alguém estava sentindo-se
muito incomodado com o estado de regozijo por que passávamos.
A revelação chegaria somente depois para esclarecer o enigma que
nos sobreviera dias antes.
Tomado por um remorso pungente, o vendeiro Tobias viu-se
obrigado a colocar o sapo para fora, visto que a congestão estava a
ponto de lhe sugar a vida.
Um dos fregueses mais assíduos do bodegueiro estava carrancu-
do com a popularidade do ancião milagreiro. Tratava-se de Eugênio
Garcia, proprietário da botica do vilarejo. Se ninguém mais o pro-
curava, o que faria com o amontoado de remédios se empoeirando
nas estantes? Antes, orgulhava-se da farta clientela, passando-se, in-
clusive, por clínico geral, formado na experiência dos anos e avali-
zado pela ignorância predominante. Agora, porém, aparecera aquele
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enrugado decrépito para lhe tirar os petiscos da ávida bocarra.


Além do vício das bebidas mais sofisticadas, o boticário tinha
dois filhos na cidade grande que dependiam dele para o financia-
mento dos estudos. Ainda os veria ostentar diploma de doutores, e
não seria um trapo humano como aquele velho que iria lhe frustrar
esse sonho.
As contas chegando aos tufos, e os vinténs drasticamente rarean-
do. Os camponeses, que antes rasgavam sorrisos para o farmacêuti-
co, agora cortavam voltas dele como se vissem um cão leproso. Por
que haveriam de pagar se o novo curandeiro fazia tudo em troca de
um quilinho de fubá ou de arroz? E isso para quem quisesse dar,
haja vista que o velho não cobrava nada.
Aquilo não poderia continuar assim. Urgia tomar uma providên-
cia — desafogara Eugênio Garcia em noite alta na venda de Tobias,
com o litro já quase a seco sobre a mesa. Estando o estabelecimento
vazio em virtude do horário avançado, apenas o taberneiro ouvira
aquelas palavras impregnadas de ódio.
Ouvimos, dias depois, um grande estrondo pelas tantas da noite.
Voz de trabuco grosso, teria pensado o meu pai sob camadas de
cobertas. Qualquer que fosse o ocorrido, que ficasse para o ama-
nhecer. O sono era sagrado.
Não imaginávamos, no entanto, a monstruosa cena que a auro-
ra nos revelaria na periferia. A uns trinta metros da mansarda do
ancião, jazia o corpo de Eugênio com a cabeça horrivelmente des-
pedaçada. Ao lado, úmida de sereno, uma espingarda cano duplo
estava partida ao meio. A conclusão era unânime. O boticário atirara
em algum alvo, mas o bacamarte lhe explodira no rosto, talvez pelo
excesso de munição.
Aquela não fora, contudo, a única má notícia. O velho desapa-
recera, juntamente com os pertences mais necessários, incluindo a
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metade dos frascos de remédios da prateleira.


Um mistério que os dias vindouros negaram-nos explicações. E
quiçá permaneceríamos para sempre na obscuridade se o vendeiro
não sentisse a consciência pesar e não nos colocasse a par das inten-
ções do inescrupuloso Eugênio Garcia. Embora se visse culposo,
Tobias jurou por Deus que não desconfiou que o boticário che-
gasse a tanto. Julgou que os rancorosos verbetes pronunciados por
Eugênio naquela noite fossem somente um arroto das incontáveis
talagadas ingeridas.
O que teria, porém, acontecido ao curandeiro? A única janela da
cozinha do casebre ficava de frente para o local onde o atirador se
posicionara. Era comum o ancião pôr a cabeça à janela, no trans-
curso da noite, para lançar olhares à abóbada celeste toda coalhada
de estrelas. O farmacêutico, então, ficara de tocaia, aguardando o
momento de praticar o vil ato de Caim.
Visto não termos encontrado presença de sangue às margens da
janela, intuímos que o velho não teria sido atingido. Possivelmente
apavorado, ele decidira se retirar do nosso vilório. Uma atitude am-
plamente justificável.
Desolação geral. Perdêramos o milagreiro que nos livrara de um
regimento de doenças. Infrutíferas foram as tentativas de localizá-lo
em outras regiões. Ninguém tinha notícias dele. Sumira em definiti-
vo, como se houvesse se desintegrado da face da terra.
Houve briga pelo legado medicamentoso que o velho nos deixa-
ra. Sobraram tapas e empurrões pela posse dos frascos. Quando o
conteúdo destes findou, as enfermidades não tiveram clemência, e o
cemitério foi recebendo novos inquilinos.
Fizemos de tudo para imitar o ancião. Conhecíamos muitas das ervas
que ele extraía os sumos, mas o efeito não era o mesmo. Ou o velho tinha
as mãos mágicas ou acrescentava algum ingrediente que desconhecíamos.
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O novelo do tempo foi passando e confeccionando roupas cada


vez maiores para mim. Já homem feito, cismei de vaguear pelos ser-
tões em companhia de um lote de burros, exercendo o ofício de
mascate. Negociava uma infinidade de produtos e, às vezes, até um
dos animais da tropa caía na barganha para atender a algum caboclo
no transporte de carga.
A estrada passou a ser o meu mundo, principalmente depois que
os meus pais tributaram as suas almas ao reduto divino. Desprovido
de referência familiar, fiz de meu ninho os grotões mais recônditos,
os povoados que nem em sonho conheciam o progresso e as luzes
das vastas metrópoles.
Rodei por sendas e trilhas, feito peregrino a quitar promessas por
terras apartadas dos mapas. Onde houvesse um assentamento, os
meus burros batiam os cargueiros. Por quantas vezes não pernoitei
numa campina com as estrelas a velarem por mim.
A lembrança do velho que décadas atrás aparecera em nosso lu-
garejo nunca saiu de minha mente. De certa forma, o meu trabalho
era um pouco parecido com o dele. É certo que eu não sabia curar
ninguém com o preparo das ervas. Contudo, trazia alguns momen-
tos de alegria àquela gente sofrida, com a oferta de utensílios que
nunca tinham posto os olhos. Em algumas situações, era inclinado a
fazer doações, mormente para provocar um riso na face de alguma
criança com a entrega de um ou dois brinquedos.
Perigos, não posso dizer que nunca os topei, afinal, em luga-
res tão remotos, talvez até mesmo esquecidos pelo Criador, haverá
sempre uma cancela aberta para o diabo e sua oficina. Descreverei a
seguir o episódio mais grave que enfrentei.
Embrenhara-me numa picada que parecia nunca ter fim. A noite
chegara com uma fartura de trevas que nunca testemunhara. Mal via
o vulto dos muares quando olhava para trás. Arrependia-me tardia-
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mente de não ter arranchado numa margem mais aberta, longe do


matagal por que passava agora. Cada árvore dava-me a impressão de
ser um fantasma a fazer assustadoras caretas para mim.
Ao contornar uma curva, duas montarias se acercaram de mim.
Antes que tivesse tempo de compreender o que estava acontecendo,
fui jogado ao chão e minha tropa passou para mãos de desconheci-
dos, que rapidamente foram se afastando. Não deixaria, entretanto,
que um assalto daqueles terminasse assim. Mesmo meio tonto pelo
fato de ter batido com a cabeça no chão, ergui-me num impulso de
peão arrojado e levei a mão à cintura para sacar a garrucha, minha
mascote de estradão.
Um dos salteadores, todavia, percebeu a minha intenção e, de
revólver em punho, fez um disparo. E eu tombei novamente ao solo.
Quando recobrei a consciência, estava deitado num colchão de
palha numa cabana. Era noite, e um arcaico lampião vertia uns file-
tes de luz, postado na extremidade de uma mesa.
Uma pessoa que estava encostada ao fogão retirou uma panela da
chapa e entornou um líquido num copo. Ao se aproximar de mim,
tive um sobressalto. Era o velho curandeiro. Incrível! Ainda que de-
pois de tantos anos, a sua feição não mudara.
— Eu conheço o senhor. Morou na ... — a emoção embargara a
minha voz. — O senhor morou em nossa comunidade quando eu
era pequeno.
O ancião mostrou-se contente com o que ouvira.
— Eu sei. Você é o Luisinho Ferreira e seus pais se chamavam
José Ferreira e Carmen Auxiliadora.
— Isso mesmo! Por onde o senhor andou por todo ... — a minha
voz foi bloqueada novamente e comecei a tossir.
— Não se agite. Você ainda está fraco. Eu caçava nas imediações
da trilha e vi quando você foi baleado. Por uma dádiva da sorte, a
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bala o atingiu somente de raspão. Arrastei-o ao meu casebre e apli-


quei sobre a ferida um emplasto com as minhas ervas. Teve febre
alta, enfrentou delírios, porém, o seu instinto de sobrevivência foi
mais forte, superando a perda de sangue.
— Mas como o senhor ... — as minhas vistas se escureceram e
eu voltei a dormir. Tomara todo o chá que o ancião me dera. Talvez
contivesse algum narcótico, pois o sono me viera rápido e intenso.
O que eu queria perguntar ao velho era como ele, com um corpo tão
frágil, aguentara me trazer até ali.
Acordei numa linda manhã ensolarada. Seria o dia seguinte ou
outros já haviam transcorrido? Digo isso porque eu estava total-
mente recuperado e (acreditem!) nem existia mais o sinal da lesão,
como se nada tivesse me ocorrido.
Não havia, infelizmente, nenhum vestígio da presença do velho.
Estava muito desarrumada a mansarda, aparentando um abandono
de uma fornada de anos.
Sobre o colchão, no entanto, fora deixado um embornal abarro-
tado de víveres, suficientes para vários dias.
Saí ao terreiro com a esperança de encontrar o meu salvador, e
uma estupenda surpresa me aguardava. Os meus burros, com toda
a carga, estavam debaixo de uma árvore. Abracei-os aos prantos, tal
se estivesse reencontrando os filhos que nunca tive.
Quase todo invadido pelo mato, o quintal também era um in-
dicativo do distanciamento de presença humana ali se sabe lá por
quantas eras. Esperei por umas duas horas, andei nos arrabaldes,
sequioso por avistar o ancião, contudo, inútil foi o meu esforço. Até
o ar estava encharcado da orfandade que circundava aquele sítio.
Intrigado, prossegui a viagem com a manada de quadrúpedes.
Será que fora tudo um sonho o assalto e a conversa com o velho
na tapera à noite? Se assim fosse, como explicar o fato de eu ter ido
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parar naquela cabana e de ter dormido tanto? E de onde surgira o


embornal com os mantimentos?
Não. Nada de sonho. Apesar de eu não ter uma resposta plau-
sível, tudo fora real demais para ser fruto de uma imaginação mo-
tivada por um imenso adormecimento. Eu estivera mesmo diante
daquele senhor de antigamente. Mas, para ter cultivado a mesma
fisionomia, o tempo, certamente, lhe era indiferente.
Onde ele estaria agora? Decerto, socorrendo mais alguém pela
vastidão daqueles agrestes.
Eu também prosseguiria cumprindo a minha jornada, envere-
dando-me por grotas ermas, levando produtos a quem deles neces-
sitasse, enquanto a vida permanecesse agarrada ao meu corpo.

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Sobre o Autor:
Martinho Raasch Júnior nasceu no dia 06 de novembro de 1970,
em Itapina, distrito de Colatina, ES. Graduado em Letras, publicou
estes três livros: O Casarão (contos/2003); A Vila dos Meninos
Degolados (romance/2014); A Reunião dos Encapuzados e Ou-
tros Contos (contos/2015).
Mistério e realismo fantástico são algumas de suas temáticas preferidas.
É membro da Academia de Letras e Artes de Colatina (ALARC).

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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

TODO BOM GUERREIRO NÃO ANDA SÓ


Wesley Alves

A história que lhes conto segue na íntegra de tal forma que me


foi passada. Não sei se trata de verdades práticas ou de interpreta-
ções extemporâneas. Sei de fato que foram palavras que me tocaram
quando as ouvi e, portanto, sinto que devo as replicar. Mas, primei-
ro, alertar-lhes-ei que o fim não é tão interessante, afinal trata-se
da biografia de alguém como eu ou você, cujos caminhos possuem
agruras. E o fim é sempre o fim.
Essa é a história de Adão de Matos. De pele acobreada da mis-
cigenação da preta Rosa de Matos e seu Raimundo Schultz — “Le-
mão Cachaça”, como era alcunhado lá no morro do São Judas Ta-
deu. Dandão, como conhecido desde sempre, era do tipo parrudo:
ombros largos, braços fortes, canelas secas, flexíveis e ágeis. Biótipo
fruto das subidas e descidas pela escadaria do Elias carregando as
compras das velhas, fazendo favores aqui, dando recados ou mar-
cando encontros indecentes ali. Às tardes auxiliava na cuida das ga-
linhas de dona Deja e, às vésperas de Finados, limpava catacumbas
de famílias, cujo remorso se estendia à além-vida. Isso tudo quando
não podia descer pra cidade, pois o trampo preferido do dito-cujo
era engraxar sapatos de senhores distraídos, enquanto seu amigo e
companheiro, José Mendes Filho (Zé Coité) surrupiava as bolsas
dos coitados.
Dandão nessa época tinha apenas oito ou dez anos. Época essa
que jamais esquecera, afinal foi quando seu pai abandonara a família.
Mas, vida que segue, como os caminhos que levam e trazem.
Dandão morava com a mãe e duas irmãs num barraco de madeira
muito bem cuidado e limpo (o que contrastava com o restante dos
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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

barracos ali do morro). Sua casa era pintada quase que por completa
de verde-claro e rodeada de espadas-de-são-jorge, samambaias e ale-
crins. Nunca faltavam na horta dos fundos, taioba, guaco e manjeri-
cão, plantas do orixá de cabeça de preta Rosa, Oxossi, rei das matas e
abridor de caminhos.
Falando em caminhos, havia naquela época três que chegavam
à casa de Dandão: o mais fácil, pela escadaria que se estendia por
detrás do supermercado do Elias ao Beco 18. Eram escadas mal
feitas do tempo do doutor Syro Tedoldi, que porventura Dandão
decidira evitá-las já que a catinga de esgoto que ali corria livremente
era acachapante. “Preciso disso não”, ele dizia. Pelo outro lado, era
até possível subir pelas escadarias do São Vicente que margeavam
os muros do cemitério, mas era tão longe que nem valia a pena. Ele
preferia mesmo era invadir o antigo sítio do seu Cica, por dentro do
morro do Colatina Velha, passar pelo Beco 07, onde mora Lacione,
dar uma volta extenuante e passar pelos cantos da dona Jaciara —
uma velha preta e macumbeira que, além de ser mãe de Zé Coité,
mantinha há anos um terreiro de gira de Caboclo.
Porém, caro leitor, desde as minhas primeiras palavras eu prome-
ti-lhes a verdade.
Dandão já estava na “idade de namorar”, como dizia sua mãe. E,
de fato, ele estava de olho em uma das filhas da dona Jaciara. Madá
era uma preta esguia, vaidosa, prendada e muito perspicaz (ao pon-
to de saber das intenções de Dandão) e que odiava seu verdadeiro
nome que intuitivamente sabemos que era Madalena.
Ser amigo de Coité e desviar consideravelmente sua rota não
eram ações suficientes para que Adão (como preferia agora ser cha-
mado) conquistasse o coração de sua amada. Ele precisava ganhar a
confiança da velha yaya. “Quer namorá a Madá, Dandão, por mim
tudo bem, o negóço é tu dobrar a véia Jaciara”, aconselhava Coité.
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Zé Coité que nada se importava se Dandão misturasse com uma ou


três mulheres de sua família, já que nessa época o pobre primogê-
nito da dona Jaciara já sofria das máculas do álcool e queria mesmo
que suas irmãs e mãe o deixassem em paz.
— Até que eu tenho uma ideia. Dandão. Vem trabalhá com nóis
lá no terreiro. Mamãe sempre precisa de gente pra tocar o tambor
e arrumá os trabalho na encruza e preparar o congá pro Malandro
Zé do Coco.
— Oxi, Coité cê sabe que num gosto muito desse negoço de
macumba, vai que eu pego bicho. — assustado, dizia Adão.
— Tem pobrema não, com Zé do Coco mim entendo eu.
— Mas também preciso de trabalho de homem, Coité. Bem que
cê pudia arranjar uns trampos lá na construção das casas do mutirão.
— implorava.
Eis que Adão é empregado na empreiteira do mutirão. O traba-
lho, de segunda a sexta, de carregar lata de areia, cimento e água, não
era um dos melhores, tampouco empolgante, mas garantia o troca-
do para Adão no fim do mês ajudar a família. Todavia, o que acabou
tocando mesmo o coração do homem era as giras de caboclo do
terreiro de dona Jaciara.
O Templo do Caboclo Sete Pena situava-se no Colatina Velha
quase chegando ao São Judas Tadeu. Incrustado no que parecia uma
escavação feita à horizontal. O terreno da família de Jaciara e José
Mendes era grande, porém íngreme e circundado por algumas casas
de familiares ou amigos próximos. Aqueles domínios se assemelha-
vam a uma vila vertical, cujo templo dos Caboclos da dona Jaciara
era a catedral e epicentro de quase tudo de interessante que ali na-
quelas bandas acontecia.
Dona Jaciara era uma preta muito vaidosa e inteligente. Cabo-
cla de nascença e nos idos de seus 70 anos ainda cultivava cabelos
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longos e escovados. Eram lisos desde sempre, mas há algum tempo


perdiam a negritude. Sempre muito perfumada, sorridente e simpá-
tica, carregava em seu peito um cordão de prata com uma medalha
de São Jorge e em seus dedos um tanto de anéis. Era a mãe de santo
mais conhecida da cidade. Também pudera: além de ser a primeira
macumbeira de Colatina, a velha atendia todo aquele que a procu-
rava. Todavia, sua especialidade e preferência era cuidar de recém-
-nascidos: ela regava o umbiguinho com chá de cravo, dava banho
de picão para “tiriça” e abençoava as mais mirradas com a primeira
água da chuva da lua cheia do ano. Como dito, dona Jaciara atendia
a todos, sem preconceito, porém o sentimento não era recíproco
pela maioria daqueles que a conheciam e muitos daqueles que por
ela foram servidos.
“Ou é pelo amor ou pela dor, fi”, respondeu preta Rosa quando
o filho lhe disse que trabalharia com dona Jaciara a partir de agora.
Dandão ajudava a velha nos preparativos dos trabalhos como as
arrudas, os fedegosos, espadas-de-são-jorge. Comprava as pingas,
charutos, frutas para as oferendas e, nas encruzilhadas fazia os pa-
dês conforme solicitado pelos Exus. E, já no final do ano, Dandão
comandava o ogã do templo, pois batia um tambor como ninguém.
Era véspera de Cosme e Damião. Dandão e Madá trabalhavam
juntos nos preparativos e decorações daquela que era a festa umban-
dista mais alegre. Todo o terreiro estava enfeitado de fitas, bolas de
soprar e arranjos de flores coloridas. Brinquedos e doces de sobra
para todos os êres jovens, velhos ou espirituais.
— Coité. Chega aí. A velha tá muito preocupada com a gira de
amanhã, e olha que já arrumamo tudo. Tava aqui pensando: é hoje
que eu dou um jeito e falo com Madá. — sussurrava Adão a seu
amigo e, quem sabe, futuro cunhado.
— Dexa que vô te ajudar também, Dandão. Eu num saio hoje —
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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

ele quis dizer que não passaria mais uma noite no boteco — e fico
aqui colado na mãe. Vou distrair ela. — Coité sempre cúmplice. —
Dandão, Madá gosta de filme. Leva ela no cinema.
Mas, Dandão não tinha o dinheiro suficiente para manter sua
família, muito menos para os ingressos da sessão de cinema que,
evidentemente, deveriam vir acompanhados de refrigerantes, sacos
de pipoca e balas de menta.
Porém, Zé Coité sempre tinha a solução. Afinal, o homem era
filho dos malandros da encruzilhada. Dar passagem ao amor era a
sua vocação, mesmo que muitas vezes por meios escusos:
— Aí, Dandão, tô cumas ideias aí. Seu Daniel, fi do Taruíra, tá
querendo colocar umas pedra de mármore na varanda dele, mas o
muquirana não quer pagar na loja. Mas pagaria mais barato se fosse
de outro jeito.
— Não sou mais ladrão, Coité, já te disse. Meu tempo de enganar
bobo já passou.
— Mas não é roubar, seu besta, a gente podia pegar umas pedra
lá no cemitério de baixo. Tem umas catacumba arrumada cheia de
mármore, antiga pra caramba que ninguém nem sabe de quem é.
Família até já se esqueceu do defunto. Se tu topar, eu falo cum Be-
né-Dois-Dedo que tá de vigia hoje.
— E ele vai topar?
— Uai. Só dar umas pinga pra ele se esquentar na noite que tá
tudo certo.
E foi feito.
E tudo deu certo: o roubo, o suborno e a venda.
A tarde se estende. Dandão inventa um serviço qualquer de ar-
rumação e convida Madá para lhe ajudar. Dona Jaciara feliz com a
sobriedade do filho que há muito não ocorria. A noite cai, as lâm-
padas amarelas e quentes dos postes se acendem transformando o
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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

terreiro num grande campo colorido, florido e perfumado. Um vale


encantado cuja cacofonia de risos se mesclava com os cantos aos
orixás. Até seu Zé Mendes, marido de dona Jaciara, dedilhava um
pagode antigo no seu Tonante amarelo.
— Pensei que nunca fosse me convidar, Dandão.
— Tudo tem seu tempo. Eu tava querendo escolher as palavras certas.
— Eu tenho certeza que essa você aprendeu com Zezinho.
Risos.
— Então, Madá. Você aceita ir à sessão das oito? Se a gente se
arrumar agora, dá pra tomar um refrigerante antes.
Mais risos.
O canto suave de seu Zé parou de repente, dando lugar a sua voz
rouca e preocupada. “Tem cana subindo no morro. Quem não deve
não teme, mas cum esses, num se deve brincar”.
— Boa noite, senhor. É aqui que mora o preto chamado de Zé
Coité? — indagava um dos três policiais.
— Sim, senhor. Ele tá lá no colo da mãe dele. — Seu Zé Mendes
era sempre direto e profundo.
— Quem que quer saber? Zé Coité sou eu, senhor. — seus olhos
iam dos olhos do policial aos marejados da mãe. Os do pai ele nunca
conseguia encarar. — Já vô dizendo que num fiz foi é nada.
— Então, teje preso, vagabundo, por roubo. — E em pequenas
frases relatava sobre o roubo das pedras no cemitério.
Houve um ensaio de alvoroço pelos presentes, logo abafado pe-
los olhares de rapina dos outros policiais. Adão, que a tudo assistia,
resolve agir. Mas as mãos de Madá o impedem, não antes de cruzar
o olhar com o de seu amigo que, balançava a cabeça em sinal de ne-
gativo. Um simples e profundo sinal que implorava a que seu amigo
não fizesse nenhuma besteira. Coité mantinha-se de cabeça baixa e
em silêncio. Do que mais precisa para assumir uma culpa?
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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

— Dona Jaciara, eu quero lhe agradecer o que fez pelo meu filho.
Ele nunca mais tossiu sangue depois que tomou sua garrafada. Que
pena que a senhora sabe cuidar muito bem dos filhos dos outros e
tão mal dos seus. — Disse sádico o policial, enquanto algemava José
Mendes Filho. Zé Coité era malandro, mas até a malandragem tem
limites.
— Adão de Matos, ocê não tem escolha, ou vira homi ou vai pra
cadeia igual aquele fi vagabundo da dona Jaciara. E olha só, mínimo.
Eu num tenho fi vagabundo, não. — Mal sabia Preta Rosa que fora
Dandão quem ensinara Coité a roubar desde os tempos de engra-
xate. — Tem mais: se embestar com esse negoço de macumba de
novo eu te surro até tirar esses capeta do seu corpo. — Preta Rosa
dava o ultimato.
No final dos anos 1980 igrejas neopentecostais encontraram
terreno fértil em comunidades pobres, sem muita educação e, ou
esperanças. O principal dogma dessas congregações era a caça aos
demônios, a bruxaria e a macumbaria. Enquanto muitas igrejas
abriam, vários terreiros fechavam e umbandistas se convertiam às
novas práticas cristãs. E isso não foi diferente com irmã Rosa.
Adão não tinha nem como voltar ao mutirão. Ele sabia que mui-
tos ali conheciam a história e, pior que ser ladrão, era ser conside-
rado covarde. Ele não tinha muitas escolhas — evitara passar pelo
terreiro da dona Jaciara e voltou a descer e subir pela escadaria do
Elias. Algumas semanas se passaram até Adão ter coragem de visitar
seu amigo na prisão, visita essa muito diferente de como ele imagi-
nou, já que seu amigo o recebeu de forma calorosa e fraternal.
Mais uma vez, a vida de Adão de Matos era modificada (in)dire-
tamente por seu amigo Coité. À saída da prisão, Dandão fora sur-
preendido por um policial que trajava uma farda de belo corte e se
portava como um bacana.
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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

— Ei, garoto, vem cá. Quer trabalhar na corporação? Estou pre-


cisando de gente pra fazer ronda ali pela rodoviária e evitar roubos
e pior, pederastia. Você tem o porte que vai dar medo em muito
bandido. Vem aqui amanhã que sua farda estará garantida.
Às vezes não temos escolhas mesmo.
Nem todas as histórias têm o final empolgante e essa não seria
diferente. Nosso protagonista trocou as aventuras pelo juízo, a in-
certeza pela rotina e a passionalidade pela razão. Como dizem: o
caminho muitas vezes é mais importante do que o destino e quando
lá chegamos nem sempre nos esquecemos das pedras que nos ma-
chucaram.
Aquela quinta-feira nasceu fria, chuvosa, triste e morta. Ele sabia
que deveria fazer o que não queria e isso lhe apertava o peito. Cabo
Matos vestia sua farda, pois precisava trabalhar para esquecer. A sua
ronda era a mesma há anos: da rodoviária à Câmara, da Câmara à ro-
doviária. Nada demais. Nunca. Porém, naquele dia especial, algo lhe
chamou a atenção: um moleque engraxava o sapato de um senhor
distraído enquanto outro abria lentamente a sua bolsa de viagem e
lhe furtava algum dinheiro. Adão resolvera aliviar. De repente, um
pensamento lhe invadia. “Quantas vezes fui aliviado quando rouba-
va dos viajantes? Quantas vezes fui aliviado em toda minha vida?”.
A resposta era incerta.
Ou na verdade, não.
Adão se lembrara da primeira e única vez em que sentiu o toque
das mãos de Madá.
Ele tinha que fazer o que não queria. E o fez.
Àquela hora, o corpo já fora velado, porém, havia uma esperança
de que ainda não tivesse sido enterrado. Dona Jaciara abraçava as
filhas enquanto o caixão esperava pelo destino derradeiro. Dandão
nunca presenciou a velha chorar, a não ser da última vez que a viu
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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

e agora. Madá lhe acena com um sorriso e lhe faz um sinal para ele
se aproximar:
— O Zezinho até que se batizou e tudo. Há umas duas semanas,
eu acho. Tava até firme na igreja. Só que... cê sabe né, Dandão, a
maldita da cachaça é mais forte.
Os últimos momentos de José Mendes Filho sobre a terra foram
acompanhados por uma oração do Pai Nosso e por uma “segura na
mão de Deus e vai”. Mais algumas lágrimas rolaram e tudo ficou em
plenitude.
O silêncio em cemitérios geralmente não é sinal de mau agouro.
Muito pelo contrário. A solidão atrelada a confortável sensação de
eternidade é bem-vinda àqueles que descansam da vida. Mas, pare-
cia que algo faltava. O fim de Zezinho não podia ser assim, e isso in-
comodava Adão. Vindo de seu âmago e sem muito pensar a respeito
no que fazia, o eterno companheiro do defunto cantou uma música
que há muito não se atrevia em cantar.
Cantou sozinho. E sentia que deveria repetir. Só que dessa vez,
todos acompanharam o ponto de Oxossi, rei das Matas:

“Eu vi chover, eu vi relampear


E mesmo assim o céu estava azul
Samborê. Pemba. Folha de Jurema
Oxossi reina de norte a sul.”

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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Sobre o Autor:
Wesley Alves, nascido em Colatina em 1985, atualmente é Servi-
dor Público Municipal. Graduado em Licenciatura em História,
pós graduação em Educação Infantil e Neuropsicopedagogia. Há
alguns anos tem estudado sobre aprendizados não formais, o que
lhe levou a desenvolver e executar diversas oficinas em escolas
públicas sobre essas práticas, utilizando o RPG como ferramenta
cognitiva. É co-autor dos livros “Resistência Glórqui”, “Chover e
Relampiar” e “Jogos de Campinhos”.

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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

REMINISCÊNCIAS COLATINENSES
Olney Braga

Tendo nascido em Colatina há quase 85 anos, muitas histórias


tenho pra contar.
Era 1º de janeiro de 1937 quando vim ao mundo. Aos cinco me-
ses e cinco dias de idade, fiquei órfão de pai, em razão de uma tra-
gédia ocorrida na Praça Municipal, a qual foi devidamente explicada
no meu último livro. O meu pai era servidor municipal, melhor di-
zendo, era o Tesoureiro Municipal, cargo que corresponderia, hoje,
ao de Secretário de Finanças. Naquela época, o servidor falecia e
as viúvas não recebiam pensão. Isso só passou a ocorrer a partir de
1982, quando o vereador Luiz Antônio Polese conseguiu aprovar o
seu projeto que resolveria tal impasse. Em razão disso, minha mãe
teve de ralar muito: bordava pra fora e fazia geleia de mocotó, que
minha irmã, então com 8 anos, vendia de casa em casa. Consegui-
mos transpor os obstáculos da vida, graças a essas guerreiras, que
se juntaram à minha avó materna e a uma tia, irmã da minha mãe,
todas extremamente trabalhadeiras e religiosas. Fui criado, pois, por
quatro mulheres. Bendita criação!
Cresci estudando, sabendo da necessidade do estudo, pois teria
de compensar as minhas quatro mulheres por tudo que fizeram em
favor da minha criação. Fiz o primário na escola Aristides Freire,
depois o ginásio, na escola Conde de Linhares (que era particular),
graças ao esforço da minha irmã, que dava aulas de Mecanografia
na Escola de Comércio, para suprir o pagamento das minhas men-
salidades.
Lembro-me de que, menino ainda, contando cerca de 6 anos,
ia, com relativa frequência, à casa de uma tia, residente na hoje rua
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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Bartovino Costa. Uma das diversões, lá, era chegar até a janela para
ver os trens passarem. Sim, porque a estrada de ferro dava uma vol-
ta enorme. Saía da estação, no centro da cidade e, quando chegava
pra cá um pouco do Posto São Miguel, subia vertiginosamente até
atingir a rua Bartovino. Fazia isso devido ao leito do Rio Santa Maria
do Doce serpentear por toda a região hoje conhecida como Bairro
Esplanada, quase no centro da cidade.
E essa é uma boa história. Os americanos entraram na Segunda
Guerra Mundial e precisavam, com urgência, de que a Companhia
Vale do Rio Doce desse um jeito de tornar a estrada de ferro a mais
retilínea possível, pois eles necessitavam da chegada do minério,
com rapidez. A sinuosidade da estrada de ferro aqui em Colatina
ocorria em outros pontos da estrada, também. Engenheiros ameri-
canos para cá vieram e trouxeram todo o maquinário próprio para
a aterragem e, como num passe de mágica, o rio foi aterrado, e o
Morro das Cabritas, que ficava onde hoje se situa o Hospital Sílvio
Avidos, foi desmoronado, tendo a Prefeitura indenizado as famí-
lias que lá residiam. Resultado: Colatina ganhou o Bairro Esplanada
praticamente a custo zero para a municipalidade. Lembro-me de
que nós, crianças ainda, chorávamos ao assistir à morte de parte do
Santa Maria, sem nos darmos conta do benefício que tudo aquilo
causaria ao Município.
Todo esse processo deve ter demorado uns dois anos e meio. A
estrada tomou novo rumo, em direção direta da cidade até a nova
estação ferroviária, no bairro Esplanada. Segundo o historiador Dr.
José Luiz Pizzol, esse mesmo processo ocorreu em outros pontos
da estrada, resultando numa redução drástica, o que facilitou so-
bremaneira a chegada do minério ao Porto de Vitória. Com o des-
moronamento do Morro das Cabritas e a construção do Hospital,
tivemos a visita do então Presidente da República Marechal Eurico
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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Gaspar Dutra, em 1949, para a inauguração daquele majestoso cen-


tro hospitalar, um dos nossos orgulhos.
Vivi a época de ouro do café. Lembro-me de que, no governo
do Dr. Raul Giuberti, em meados da década de 50, o município de
Colatina foi considerado o maior produtor de café do mundo. Tanto
orgulho!
O tempo foi passando e, aos poucos, descobri que a vontade
política é primordial para a solução dos problemas citadinos. A Pon-
te Florentino Avidos foi construída em pouco mais de dois anos
(1926-1928) porque o governador Florentino Avidos teve o máximo
interesse na sua construção, pois a finalidade era a de que os trens
passassem pela ponte e fossem dar lá pros lados de Nova Venécia,
de lá seguindo para outras paragens. Tudo foi abandonado, pois,
terminado o governo e acabados os recursos, a solução foi não es-
tender mais a estrada. Ela ficou por aqui mesmo. Mas a ponte, linda
e forte estruturalmente como é, está aí para ser atravessada por mi-
lhares de veículos e pessoas, ela é responsável pelo escoamento dos
nossos produtos para o norte do Estado e para a Capital.
Essa mesma vontade política já não se deu na segunda ponte,
a Ponte Dr. Sérgio Ceotto, que levou quase 21 anos, num enrolo
interminável. Outro exemplo claro e cristalino é a ponte de Itapina,
um elefante branco lá deixado pelos nossos políticos há mais de 80
anos.
Vivi e sofri, com a nossa Colatina, na emancipação de distritos
que se tornaram municípios, como: São Gabriel da Palha, Pancas, São
Domingos do Norte e Marilândia, grandes produtores de café. Vivi
e sofri, com as enchentes, principalmente a de 1979, que tantos pre-
juízos causaram, principalmente aos nossos comerciantes e à munici-
palidade. Os rejeitos de Mariana foram a pá de cal em todo o nosso
sofrimento, pois causaram mal ao rio Doce e aos nossos pescadores.
31
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Mas Colatina, aos poucos, foi se reerguendo com o Polo de Con-


fecções, uma verdadeira febre, a partir da década de 70, restando,
ainda hoje, marcas de consagração mundial.
Com o passar do tempo, Colatina foi se engrandecendo no En-
sino. De início, um ginásio, o Conde de Linhares, fundado em 1939
pelo intrépido cearense Aloísio Barros Leal, que trazia professores,
os mais gabaritados, para lá lecionarem. Em 1951, o Estado encam-
pa o Conde. Em 1953, surge o Colégio Marista, graças ao empenho
do Comendador José Pagani, que lutou bravamente para que Colati-
na tivesse um colégio de caráter religioso para os meninos, já que as
meninas eram agraciadas com o Ginásio Divino Rei, das Irmãs de
Jesus na Santíssima Eucaristia. Aos poucos, foram surgindo as esco-
las tradicionais (de professores) e outros ginásios importantes. Não
demorou muito, na década de 60, mais precisamente em 1964, graças
ao empenho dos professores Sylvio Silva Vitali, Kleber Bussinger
Pereira e Wieslau Eustáquio Ignatowski, empenho esse acompanha-
do pela contribuição da Prefeitura Municipal, no governo Honório
Fraga-Pergentino de Vasconcellos, surge a Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, de Colatina (FAFIC). Três anos depois, a FADIC,
graças ao dinamismo do hoje muito saudoso Dr. Pergentino de Vas-
concellos, surge para, num boom de empreendedorismo, transfor-
mar-se, hoje, no Centro Universitário do Espírito Santo (UNESC),
oferecendo inúmeros cursos para a mocidade colatinense e de ou-
tras plagas. Ainda no final da década de 60 e início da de 70, surge
a Faculdade de Ciências Econômicas de Colatina (FACEC), capita-
neada pelos saudosos professores Dr. Gélice Aucyrones D’Oliveira
Neves, Maurício Sobreira Cortat, Adwalter Alves de Souza e Aylton
Paulo Dalmaso. Hoje FAFIC e FACEC se juntaram para formar a
Faculdade Castelo Branco, logo após a criação do Curso de Direito.
Temos, ainda, importantes cursos superiores a distância.
32
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

O desenvolvimento econômico de Colatina muito deve a esses


cursos, que colocam no mercado de trabalho profissionais altamen-
te qualificados. Com um comércio lojista competente e em expan-
são e algumas interessantes atividades industriais e de serviços, com
excelentes hospitais, que abrigam um corpo médico fora de série,
Colatina segue bombando.
Seus pontos turísticos e suas belezas naturais encantam a tantos
quantos os veem..., mas como eu me incluo em tudo isso, já que
comecei este texto falando de mim?
Bom, quando concluí o curso científico em 1954, Colatina não
possuía Faculdade. Contava eu 17 para 18 anos e teria de parar os
estudos ou, então, fazer o curso Técnico de Contabilidade, na Esco-
la Técnica de Comércio de Colatina. Havia, sim, o curso de Direito,
mas era em Vitória. Era federal e não exigia frequência. O acadêmi-
co iria tão somente submeter-se a provas três vezes por ano. Para
isso, os nossos empregadores teriam de nos conceder praticamente
três semanas por ano para prestarmos esses exames. Resolvi prestar
o vestibular. Mesmo não tendo me preparado, fui um dos primei-
ros classificados, graças ao excelente ensino do Conde. Português,
Inglês ou Francês e Latim eram as matérias exigidas. Uma prova es-
crita e outra oral, de cada matéria. Saí-me airosamente. Estudava em
casa e prestava as provas em Vitória durante todo o curso. Apesar
do sufoco, fiz, também, o curso de técnico em Contabilidade. Quan-
do terminei o curso de Direito, em 1959, já estava há mais de dois
anos no Banco do Brasil, que nos incentivava a fazer o curso. Eram
vários estudantes de Direito na agência. Em 1957, havia começado
a lecionar Inglês no Ginásio Divino Rei. Em 1958, iniciei-me na es-
cola Conde de Linhares e na Escola de Comércio, como professor.
Em 1960, aos 23 anos, fui eleito o paraninfo da turma de formandos
do curso técnico de Contabilidade, o que me encheu de orgulho e
33
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

incentivo. Isso viria a acontecer diversas vezes na minha vida, tanto


na escola Polivalente de São Silvano, onde lecionei durante 15 anos,
quanto na Faculdade Castelo Branco, onde permaneci por 32 anos.
Às vezes brinco dizendo que mamãe passou “açúcar ni mim”, por
isso sou diabético. Além de ter sido paraninfo de diversas turmas,
quando estudante fui eleito orador da turma nos cursos: científico,
técnico em Contabilidade, Administração e Letras. Lembro-me de
que, certa feita, um colega de magistério chamou-me de “populista”,
o que me revoltou profundamente. Sempre fui daqueles professo-
res que conheciam os seus alunos, que os chamava pelo nome, que
com eles conversava. Em pouco mais de um mês já sabia o nome e
o sobrenome de cada um. Tal método, acredito, causa um impacto
positivo na meninada. Isso não é ser populista. Após 54 anos, pen-
durei as chuteiras. No dia 4 de julho de 2016, encerrei as minhas
atividades docentes. Porém, continuo dando as minhas aulinhas de
Português no Facebook.
Na década de 60, mais precisamente de 1964 a 1966, fui diretor-
-presidente do Instituto Brasil-Estados Unidos, de Colatina – IBEUC,
ocasião em que consegui um número de alunos jamais visto na es-
cola. Foi a época de ouro do ensino de inglês em Colatina. Para dar
conta daqueles 250 alunos, tive de contratar excelentes professores.
Porém, como tudo o que é muito bom tende a durar pouco, em 1967
fui contemplado com uma bolsa de estudos do Rotary Internacional,
para não-rotarianos, e, como havia terminado a minha gestão no Ins-
tituto, outro diretor foi eleito. Quando retornei da Califórnia, tinham
trocado os pés pelas mãos. O IBEUC havia sido despejado, por falta
de pagamento de aluguel e com dívidas exorbitantes. Tudo o que eu
havia conseguido: máquina de escrever, mimeógrafos, livros etc., tudo
foi adjudicado pela Justiça, para pagamento aos credores. E queriam
que eu começasse tudo de novo! Não aceitei a indigesta empreitada.
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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Virei escritor e já escrevi cinco obras, quatro das quais publi-


cadas: Vivências de um caminhante (2007), Nossa Língua: curio-
sidades, desafios e armadilhas (2010), Dicas de Português (2019) e
Colatina: ontem, hoje e sempre, no meu coração (2021). O quinto
e último deverá ser publicado, se Deus quiser, no início de 2022:
Trocadilhos: uma homenagem a Emílio de Meneses.
Sofri desbragadamente com as emancipações dos distritos aqui
já mencionados. Por ironia do destino, quis o Tribunal de Justiça do
Estado que eu fosse testemunha ocular da consulta ao povo para
a decisão do sim ou não. Em todas essas emancipações, trabalhei
como membro da Junta Apuradora de votos, nomeado pelo Tribu-
nal. Com referência a Marilândia, há uma curiosidade: Fui nomeado
para trabalhar como Membro de Junta, também na primeira eleição
para prefeito daquele Município. O vencedor ganhou por 1 voto de
diferença. Isso foi confirmado na recontagem final. Deja Caversan
derrotou Dailton Magnago por tão somente 1 voto.
Não poderia encerrar este relato sem a minha homenagem aos
imigrantes, em especial os italianos, que tiveram atuação decisiva na
colonização colatinense. Isso a gente aprende na escola, mas quan-
do se escreve um livro, como eu escrevi, acerca da Princesa do Nor-
te, é que se constata quão importante para a nossa economia foi
a contribuição deles, que continuam, com os seus descendentes, a
levar o nosso torrão natal para o lugar de destaque que alcança nos
dias atuais.
Eu me vi crescer profissionalmente ao longo de todos esses anos
e vi Colatina, a minha terra tão amada, desenvolver-se. Agradeço a
Deus por haver conseguido ingressar no magistério e dele ter parti-
cipado, com carinho e com afeto. Recebi, hoje, 18 de novembro de
2021, mensagem de um ex-aluno, o José Mário Ferreira, de quem me
lembro com muito carinho. José Mário está há 46 anos no Canadá,
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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

mais precisamente em Vancouver, vindo de Montreal, onde se apo-


sentou, aos 59 anos, numa Companhia de Gás. Ele conta, hoje, 68
anos de idade. São indescritíveis as palavras de que ele se valeu para
retomar a nossa relação professor-aluno. Isso não tem paga.
Perdi a minha esposa há 11 anos, bem jovem ainda, mas são os
desígnios de Deus. Vi os meus quatro filhos crescerem, estudarem e
trabalharem; sinto-me feliz por eles.
Só posso agradecer à minha terra bendita, chamada Colatina, por
ter me proporcionado tanta felicidade. A ela, o apreço do meu amor
eterno, estampado no soneto que escrevi em sua homenagem, o
primeiro e único em toda a minha vida:

COLATINA
Por mais que queiras mudar a tua sina,
Jamais conseguirás sair do rumo,
Pois, como bem conheço o teu prumo,
Viverás em ascendência, ó Colatina!

Quantas vezes te vi desencantada!


Quanto perscrutei tuas desditas!
Mesmo te vendo tão preocupada,
Sei que superaste horas aflitas.

Como colatinense autêntico que sou,


Amante de tuas belezas magistrais,
Eu nunca acreditei nesses teus ais.

E alegre desta vida partir vou,


Na certeza do teu porvir risonho,
Que a vida inteira povoou meu sonho.
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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Sobre o Autor:
Nascido em Colatina em 1º de janeiro de 1937, Olney Braga fez
seus estudos iniciais no então Grupo Escolar Prof. Aristides Freire
e no Ginásio Conde de Linhares. Fez os seguintes cursos superio-
res: Direito (UFES), Letras (Português-Inglês-Francês), na FAFIC,
Administração (FACEC), Técnico em Contabilidade na Escola
Técnica de Comércio de Colatina. Aposentou-se no Banco do
Brasil e foi professor durante 55 anos. É viúvo e tem quatro filhos.
Passou a ser escritor a partir de 2007, tendo já escrito e publicado
quatro livros.

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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

AS MUITAS FORMAS DA MORTE


Leônidas Fachetti

Maurício Medeiros, o Medeirinha, passeava com o seu possante.


O pai era rico. O automóvel, turbinado. Um Porsche. Um dos veí-
culos mais rápidos da cidade...
Ele parou no sinal. Estava indo para a balada, azarar as gatinhas.
Então, imagine a reação de Maurício quando parou, ao seu lado,
um outro carro.
Não! Não era nenhum “Rachador”. Mais parecia um veículo de
funerária!
Um Caravan! Um carro comprido, com grande carroceria. Todo
estilizado, pintado de preto, com uma grande caveira no capô. Como
um carro de gangster mexicano. No entanto, no Brasil, não tinha
gangsters, tinha?
Medeirinha achou uma audácia o paspalho parar a “banheira”
bem ao seu lado. Ainda por cima, fazendo o motor roncar, repetidas
vezes, como se estivesse desafiando para um racha.
O jovem de dezoito anos não se conteve. O Porsche era conver-
sível. Ele fez sinal para que o motorista abrisse o vidro.
O cara era um Zé Mané qualquer, com pinta de suburbano, e
uma tatuagem de caveira no braço.
— Por que está acelerando, meu irmão? Tá querendo disputar
corrida? Com isso aí?
— Ah, desculpe. Não aposto corridas. Meu carro não é para isso.
— Mas... E os roncos do motor?
— Ah... O Caravan é velho. Fica morrendo à toa. Se eu não
acelero, puf! Já era! E depois, quem é que vai sair para empurrar?
Medeirinha ficou pensando naquele absurdo. Depois que se
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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

tornou rachador, qualquer acelerada de carro era vista como um


desafio. Mas, aquela lata velha, coitada... Era um milagre que esti-
vesse andando.
— Peço desculpas, amigo. Eu pensei que você quisesse disputar
um racha amigável...
— Um racha? Não... Não mesmo! Rachas são perigosos.
— Ah, rapaz, deixa de bobeira. Eu tenho um porsche. Esse carro
não foi feito para andar a menos de cem!
— Mas... Nunca ouviu falar dos garotos que acabam atropela-
dos? Ou dos coitados que batem e ficam tetraplégicos ou mortos?
— Gente que não sabe dirigir é igual a quem não sabe nadar. “Se
não aguenta, não era nem para enfiar o pé”.
— Quem não sabe nadar ainda pode contar com os salva-vidas.
Mas, e quem se espatifa com um carro? Vai contar com quem? Com
os paramédicos?
— Eu nunca bati. Já estou correndo há muito tempo. Desde
quando tinha treze anos e meu pai me deu um golzinho mil! Você
é muito medroso! Tem esse visual todo agressivo, mas não aguenta
correr nem a sessenta por hora!
— Minha tatuagem é para lembrar que a velocidade mata.
— Mata gente sonsa que não sabe correr!
Maurício fechou a capota. Começou a acelerar, desafiadoramen-
te. Então, quando o sinal abriu, saiu a mil por hora!

*******

Dona Clarice Delgado tinha medo de atravessar a rua. Já havia


passado dos sessenta anos. Estava muito acima do peso, o que dei-
xava seus passinhos lentos. Porém, quando ia até a farmácia, do ou-
tro lado da avenida, não queria perturbar um dos filhos para levá-la.
40
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

O trânsito estava caótico. Com a sua vagarosidade, Clarice tinha


receio de não conseguir atravessar antes do sinal abrir.
Felizmente, quando já estava quase desistindo, uma moça muito
bonita, de cabelos negros e terninho preto, parou ao seu lado.
Ela usava um cordão com uma caveirinha, feita de ouro.
— Precisa de ajuda para atravessar?
— Ah, eu agradeceria muito.
Com passinhos cuidadosos, Clarice pisou na faixa de pedestres.
Na metade do caminho, a moça perguntou:
— Desculpe, mas, a senhora está um pouco acima do peso, não é?
— Ah, não ando fazendo muitos exercícios ultimamente.
— É ruim não se exercitar. O corpo sente. A saúde piora. Pro-
blemas com hipertensão arterial... Um perigo!
— Estou justamente indo comprar o meu remédio de pressão.
— Só o remédio não fará diferença. A senhora precisa dos exer-
cícios também. É muito nova para morrer...
— Ah, filha, eu até gostaria de fazer umas caminhadas, mas essa
cidade é tão agitada. Qualquer rua é um perigo de atravessar. Eu não
posso ficar pedindo para os meus filhos me acompanharem. Eles
são ocupados...
— Então, prefere tomar remédio e rezar para não ter problemas
de pressão?
— O meu problema não é pressão alta. É diabetes.
— Diabetes?
— Depois que meu marido morreu, comecei a chupar umas bali-
nhas. Eu dava para os meus netos quando pediam. Crianças adoram
doces. Porém, acabava botando umas na boca. Fiquei viciada!
— Sua idade não permite comer tantos doces. Diabetes leva a
hipertensão, que leva à morte. A senhora quer que seus netinhos
percam a vovó?
41
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

— Ah, isso é exagero, minha filha! O remédio de pressão é muito


bom! Além disso, estou diminuindo as balinhas. Meus netos estão
crescidos. Já não ando com tantas no bolso.
— Bem... Eu só quis ser útil. O infarto e a pressão matam muita
gente. Você é uma senhora muito simpática. Não queria que fosse
embora tão cedo.
— Credo! Vire essa boca para lá!
A jovem deixou a senhora na calçada. Os carros voltaram a an-
dar. Clarice agradeceu a gentileza. Tinha chegado à porta da farmá-
cia quando voltou para perguntar o nome da moça. Porém, a jovem
de terninho tinha desaparecido!
Dando de ombros, a idosa retirou uma balinha do bolso, de-
sembrulhou e colocou na boca... Um gesto automático, nos últimos
anos...

*******

Carla Tavares estava brincando no parquinho. Ela já estava acima


da idade. Tinha dez anos. Os brinquedos eram para crianças de, no
máximo, oito anos. Porém, ela adorava os balanços.
O pai já havia dito que não devia ir até o playground. O lugar
precisava de manutenção. Os balanços, as gangorras, até os escor-
regadores, estavam aos pedaços, cobertos por ferrugem. Porém, a
menina não resistia. Quando batiam dez horas da manhã, lá ia Car-
linha para o play.
Ali era sossegado. Normalmente, não tinha nenhuma criança.
Os pais dela também deviam proibir. Mas, nesse horário, o senhor
Rodrigo Tavares estava trabalhando. Quem é que poderia impedir a
menina de brincar?
A garota se sentou no assento favorito do balanço e começou a
42
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

balançar... Bem rápido... Do jeito que gostava!


— Posso me sentar aqui, do seu lado? — perguntou uma garoti-
nha de vestido preto.
Devia ser nova por ali. Carlinha nunca tinha visto a menina.
— Ué? Claro que pode... — respondeu, tentando chegar mais
alto a cada balançada.
— Esses balanços estão bem velhos, né?
— Estão... Mas eu prefiro assim. O parquinho fica vazio. Posso
brincar à vontade, sem ninguém me perturbar.
— Ah... Sim... Ter sossego é bom... Mas meu pai sempre fala que
temos que brincar com segurança...
— Bobagem! Esse balanço aguenta! Só está um pouco enferrujado.
— As correntes rangem... Não sei, não... Tenho medo de me
balançar muito forte... Vai que essa coisa arrebenta?
— As correntes rangem. Mas todo balanço range — disse a me-
nina, indo cada vez mais alto.
— O seu pai sabe que está aqui?
— Não. Meu pai está no trabalho.
— Você veio para cá sem ele saber? E se acontecer alguma coisa?
— Não vai acontecer nada! Que droga! Você parece até o meu
pai! Ele deve achar que sou uma criancinha de dois anos! Vive fa-
lando “não corre menina”, “não pedala tão depressa, garota”, “não
vá ao parquinho, querida”. Droga! Isso enche o saco! Eu vou onde
quiser! Já sou grande!
— Os pais sempre querem o melhor para a gente... Esse parqui-
nho é perigoso. Precisa de manutenção. Por isso ninguém vem aqui.
Você devia balançar mais devagar...
— Ah, não enche o saco! Eu vou encostar o meu pé lá naquele
galho de árvore, quer ver só?
— Não... Não quero nem ver... — disse a garotinha. Ela deu um
43
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

sorriso sem graça, saiu do balanço e foi embora.


Carlinha percebeu que a maria-chiquinha da amiguinha tinha o
formato de uma caveira. Era última moda. Entre as crianças também.
Ela continuou se balançando, a todo vapor, tentando encostar
os pés nas folhas de uma goiabeira, que ficava bem no meio do
playground.

*******

Os passageiros estavam ali, esperando o ônibus. A parada ficava


no meio do nada. Um espesso nevoeiro cercava o lugar.
Quando o veículo chegou, era o coletivo mais esquisito que já viram.
Todo preto, com caveiras desenhadas. Estava indo para a esta-
ção “Paraíso, via Inferno”. As pessoas do ponto de ônibus nunca
tinham ouvido falar daqueles bairros.
Maurício era o primeiro da fila. Ele não se lembrava de como
tinha ido parar ali.
Atrás dele, vinha a dona Clarice.
Depois, a pequena Carlinha.
Um motorista negro, com longos bigodes, abriu a porta:
— Todos a bordo!
— Que ônibus é esse? — Perguntou o Medeirinha.
— Este é o ônibus de partida das suas vidas. Hoje, vocês com-
praram a passagem, mais cedo. Agora, é hora de embarcar.
— Partida nas nossas vidas? O que está dizendo? — perguntou
Clarice.
— Estou dizendo que, apesar de ser muito bem avisada, você
insistiu em continuar chupando suas balinhas... Pois é... O remédio
não adiantou muito.
— Como sabe disso? Que conversa esquisita! Parece até aquela
44
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

menina... — disse a velha, desconfiada.


— Ah, a menina do terninho preto... — Como se, num passe de
mágica, o motorista se transformou na jovem, com terno preto e
tudo — Eu tentei te avisar, dona Clarice... As balinhas iam acabar te
matando... Agora é tarde.
— E eu? Por que estou aqui? Quero ver o meu pai! — disse Car-
linha, começando a chorar.
— Você vai ver o seu pai. Mas não hoje. Hoje, você vai embarcar.
— Para onde? Vou viajar sozinha?
— Ninguém viaja sozinha, sua boba. Deus está com a gente o
tempo todo. Ah, e não se preocupe. Você é criança. Toda criança vai
para o céu — e, dizendo isso, a moça se transformou na garotinha
da maria-chiquinha com caveira.
— A menina do vestido preto? Aquela que me avisou do balanço?
— Ela mesma. Eu te avisei que as correntes estavam enferruja-
das, que não iam aguentar... Você já é grandinha... Balançando da-
quele jeito... Deu no que deu...
— Puxa! Mas você podia ter me impedido de balançar!
— Bem... Eu podia... Mas Deus iria me demitir se fizesse isso.
Eu sou a morte! Tenho que levar as pessoas, no fim do dia. Mas...
Puxa... Dá um dó ver o ser humano jogando sua vida fora...
— Jogar minha vida fora? Que papo é esse, moleca! Eu sempre
dirigi com todo cuidado! — disse Maurício.
— Sim... E aquelas pessoas que atropelou, em um ponto de ôni-
bus, foi por quê? Será que estavam no lugar errado, na hora errada?
— Ah... Aquela curva era muito fechada... Não dava para curvar!
— A via era feita para quarenta por hora, não para cento e vinte!
— Mas... O meu carro... Era um porsche... Ele acelera de zero a
cem em um segundo!
— Em um segundo? — riu a garotinha, transformando-se no
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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

gangster com a tatuagem — Puxa! Acho que é a passagem mais


rápida que já compraram! Você devia se orgulhar... O diabo certa-
mente vai...
— O diabo?
— Ora! Para chegar ao céu, o ônibus passa pelo inferno. Você vai
descer antes do ponto final.
— Eu? Por que eu?
— Porque você foi avisado sobre o perigo que estava causando
a sua vida e a das outras pessoas. Se tivesse morrido sozinho, não
tinha problema. Mas, com aquele ato, você matou mais dez pessoas.
— Se matei, onde estão elas?
— Elas pegaram o ônibus que veio antes. Mas tem lugar de sobra
neste aqui. Então, podem subir...
— Nunca! Você não vai me pegar! — o rapaz saiu correndo pela
rua, mergulhando no nevoeiro. Correu, correu, correu, sem enxer-
gar nada, com nuvens brancas tapando a visão. Então, de repente,
meteu a cara em alguma coisa dura. Uma parede enorme.
Começou a ouvir o rugido do motor.
Era o ônibus. O ônibus preto.
Ao contornar a barreira de metal, acabou chegando ao mesmo
ponto de partida.
— Estou de volta ao ponto de ônibus?
— Sim... — disse o gangster, com um sorriso.
— Mas... Mas... Isso não faz sentido?
— Muita gente diz que a vida não faz sentido. Você não podia
esperar que, com a morte, fosse diferente.
— Eu vou para o inferno?
— Quem mata os outros, por diversão, costuma ir... Não me
cabe decidir. Deus é quem julga. Agora, suba logo! Você já viu que
não tem como escapar!
46
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

— Puxa... — O homem entrou no ônibus.


— A senhora também, dona Clarice.
— Meu Deus! Tudo por causa de uma balinha?
— Nunca é “só por uma balinha”. Foram milhares!
— Droga... — A senhora entrou.
Depois disso, a menininha subiu os degraus.
— Eu vou gostar do céu? — perguntou.
— Claro que vai! É o melhor lugar que existe!
O motorista fechou a porta.
O ônibus partiu, desaparecendo no nevoeiro.

47
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Sobre o Autor:
Leônidas Fachetti é escritor Colatinense, formado em direito e
funcionário público. Um escritor de histórias do gênero PULP,
cheias de ação e aventura. Já possui mais de dez livros lançados
(auto-publicação) e cerca de cinquenta e quatro livros escritos.

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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

O QUE RESTOU DO FIM DO MUNDO


Hugo Giacomin Rebonato

Até aonde o orgulho pode levar alguém? Até a lua? Antigamente


essa poderia ser uma boa resposta, hoje não.
Quando eu recebi um e-mail estranho do tal Enzo Vinacani, nem
imaginava que tudo se desencadearia de uma forma tão corrida as-
sim. Ele procurava saber do velho. Nas palavras dele, “tenho contas
a acertar com o senhor Flávio Ferrochi, estou indo para sua colônia
em dois ciclos lunares”.
Com isso, os últimos dois ciclos foram de uma paz inacreditável
nesta colônia lunar. O fato é que ele mal conversou durante esse
período. Quando eu tomei coragem para perguntar se aquela men-
sagem era tão importante assim, o velho Favo mal me ouviu. “Eu
nem lembrava o quanto” respondeu com voz distante. Eu não sei se
fiquei preocupada com ele de verdade ou se foi só curiosidade mes-
mo. Todo mundo já sabe que ele não é — e nunca fez questão de
ser — uma pessoa muito agradável de conviver. O olho cibernético
vermelho nem é tão assustador perto de toda a rabugice dos seus
125 anos de experiência agre... agra... — como se chama mesmo? —
agrícola! Isso! Que palavra horrível! Como se alguém nas fazendas a
vácuo da lua soubesse o que é isso.
Confesso que é um alívio pra todo mundo não ter que ouvir o
barulho surdo daquelas pernas biônicas dele, chegando bem na hora
da dosagem de biomassa para falar que está tudo errado. Mas dois
ciclos inteiros sem nenhum sermão? Nenhuma palavra sobre como
a gente precisa entender as plantocélulas? Isso já está chegando ao
limite! Desde que eu falei do e-mail ele passa giros e mais giros
lá fora, sozinho. Ele, que vivia se gabando que os altos índices de
50
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

produção da nossa colônia são por sua causa. Pois é; seja lá o que
for essa agro-coisa, tenho que reconhecer que o velho sabe o que
faz trabalhando no painel de criação. Nunca vou dizer isso em voz
alta, claro! Já é suficiente ele me chamar de menina-cabeça-de-vento,
desde aquela vez que..., ah! Chegou! Fiquei tão perdida em pensa-
mentos que nem percebi que o espaço-porto tinha sido liberado
para pouso. Vamos lá ver o que o universo nos traz...

*******

Pensei que a nave seria mais nova. Financiar uma viagem de hipe-
respaço, tão rápido assim, não deve ser barato. E esse modelo pare-
ce mais uma relíquia. Pelo menos o tal de Enzo é pontual, são dois
ciclos desde o contato se completando nesse exato giro. A comporta
principal se fecha, a escotilha principal do veículo vai se abrindo, o
tripulante sai — estou mais ansiosa do que gostaria —, ele entra no
módulo lunar, passa pela sala de adaptação e — Pelo cosmo! Que
demora! — chega à área de recepção da colônia. Observo ele dar
entrada nas informações pelo terminal de serviço e — até que en-
fim! — Vou o mais rápido que posso para chegar até ele, enquanto
ainda está tirando o capacete:
— Oi! Você deve ser o Senhor Vinacani! Eu sou Hina-Korela, fui
eu quem recebeu o seu...
Eu não esperava que fosse o piloto mais jovem que já vi. Minha
expressão de espanto deve ser engraçada, porque ele sorri envergo-
nhado, enquanto faz um gesto de cumprimento, balançando a mão
levantada ao lado da cabeça:
— Olá! Que bom te encontrar logo. Obrigado pela recepção. O
senhor Ferrochi não está com você?
— Não aqui, mas me acompanhe que iremos até a célula dele.
51
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

O sorriso, que já não era grande coisa, morreu de vez. Caminha-


mos em um silêncio tão incômodo que me obrigo a ser mais educa-
da do que estou acostumada:
— Então..., err..., primeira vez na lua?
— Sim... Na verdade, já passei por aqui algumas vezes, mas nun-
ca pude desembarcar.
— Oi? Quantos biotempos você tem? Até uma lunária, como
eu, sabe que não é tão simples ser um tripulante pelo sistema solar,
desse jeito.
— Desculpe não explicar direito, é que minha cabeça ainda está
um pouco confusa da viagem. Quando eu era criança costumava
viajar com meu...
— Cadê aquele sem-vergonha? Ele não tem coragem de vir me
encontrar, é?
O velho apareceu de surpresa no meio do eixo cilíndrico que
liga o módulo principal às células de dormitório, dando um enorme
susto em nós dois. Agora sim parece o sujeito inconveniente de
sempre, enquanto olha fixamente para o nosso visitante, usando o
implante cibernético e o olho bom — bom? Acho que nunca fun-
cionou —, só se aperta, ele questiona, mantendo a mesma rispidez:
— E quem é você? Essa cara... Não me diga que...
Enquanto o mecanismo vermelho gira para focar com precisão,
Enzo termina sua resposta a mim:
— Costumava viajar com meu avô por aqui. Ele era muito ape-
gado à Terra.
E só então se vira para meu companheiro de trabalho, fazendo o
mesmo gesto que usara comigo:
— Olá, senhor. Sou Enzo Vinacani Neto. Vim para atender o
último pedido do meu falecido avô.

52
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

*******

A célula do velho era um cubículo de três cômodos como qual-


quer um dos outros, mas parecia ainda menor por causa da quan-
tidade de tralha acumulada. Na pequena cozinha, que visivelmente
não recebia visitas, ele fez questão de preparar um fluido quente
com infusão de um pó preto que me deixa bastante desconfiada.
Não só pelo gosto que, afinal, era até bom, mas principalmente por
essa educação repentina. Enquanto os dois conversam, eu fico de
lado, ouvindo a história que o nosso visitante Enzo relata sobre
como seu avô e o velho Favo se conheceram, ainda na Terra, jovens
— se é que esse velho rabugento já foi jovem algum dia — antes
do cataclismo que forçou todos os habitantes a saírem do planeta.
Ou quase todos, já que alguns focos de resistência permaneceram
no planeta e, numa dessas, estava o avô do Enzo. Aliás, Enzo Neto!
Agora sim faz sentido um nome tão arcaico! Terráqueos e suas ma-
nias de colocar um monte de letras onde não precisa; de manter es-
ses vínculos sanguíneos desnecessários. Nunca vou entender..., ah!
Acabei me perdendo na conversa, então preciso interromper:
— Espere um pouco, só para eu ter certeza de que entendi di-
reito..., você, velho, saiu do planeta quando aconteceu o terceiro
aciden...
Antes de eu terminar, ele retruca exaltado:
— Não foi um acidente! Talvez o primeiro, de 2015, mas não o
de 2048! Muito menos o de 2065! Foi tudo armado para nos mandar
embora!
— Episódio, desastre, vamos chamar do que você quiser... O fato
é que o avô do Enzo resolveu ficar no planeta, enquanto a maioria
fugiu par...
— Não fugi! A gente sairia da Terra de qualquer jeito! O planeta
53
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

estava condenado, já havia muitas colônias espaciais instaladas. Quan-


do as lama-coisas surgiram e começaram a nos atacar, só aceleramos
a retirada.
— Certo, não foi fuga. Como uma colônia lunar era o destino
mais fácil e barato, você decidiu vir pa...
— Eu não escolhi vir para cá! O conselho de ocupação estelar
era quem mandava no destino que cada um de nós teria. Estava me
recuperando em uma cápsula de fluido e quando acordei tinham me
jogado nesse pedaço de pedra.
— Ah, sim! Você se feriu enquanto trabalha...
— Fui atacado! Você tem certeza que ouviu nossa conversa?
— Ceeerto! Desculpa! É que são tantos termos, hábitos, tanta
coisa diferente, que nunca ouvi... Não é fácil me achar! Por exemplo,
de onde vem essa sua experiência com a criação de plantocélulas?
Porque já fazia isso, não fazia?
— Vou tentar te explicar de novo. Nós éramos a-gri-cul-to-res!
Era isso que fazíamos na Terra! Já não era algo fácil naqueles dias,
mas a gente ainda conseguia comer comida de verdade por lá. Isso
que é feito aqui é bem diferente de lidar com uma lavoura terrestre,
porém, é o mais próximo que se tem e, no fim das contas, o princípio
é o mesmo. Cuidar para que estruturas sintetizem proteína comestível
não é um desafio tão grande quanto tirar tomates de uma horta.
— Tudo bem então. O espaço já seria o destino de todos. As
coisas atacaram. Você foi gravemente ferido. Te mandaram com ur-
gência. Você acordou na colônia lunar. Simplesmente esqueceu seu
amigo...
— Ele não era meu amigo!
Pelo jeito que ele bate na mesa com os punhos cerrados e seu
rosto fica vermelho, parece que exagerei nas provocações. Desta vez
quem quebra o silêncio é o nosso visitante:
54
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

— Não era isso que o meu avô dizia do senhor.


Eu daria meu crédito anual inteiro para ter gravado essa cena do
velho Favo desconcertado, se arrumando na cadeira e balbuciando
algo como “aquele velho ingênuo”. Com ele calado, continuo a con-
versa com o outro:
— Então, Enzo, seu avô ficou para lutar na resistência?
— Não tenho tantas informações dessa época. O que sei é que
ele ficou por lá ajudando na organização dos assentamentos de de-
fesa que se formaram. Eram algumas centenas que queriam ficar e
proteger o território. O senhor Flávio também estava entre eles, no
início.
Este só suspira desinteressado e olha vagamente a superfície lu-
nar pela janela translúcida.
— Mas os ataques foram ficando mais e mais constantes. Mui-
tos se foram... Outros desistiram... E quando as áreas produtivas
diminuíram drasticamente e não produziam mais o necessário para
todos, ele começou a trabalhar como guia nas missões de pesquisa
que recolhiam matéria orgânica. Levava tudo que pudesse para a po-
pulação da Terra. Foi ele quem me incentivou a ser piloto cedo. Fiz
algumas viagens nessas expedições e, assim, eu passava com a frota
pela Lua. Ele dizia, sorrindo, que sentia saudade do contato com o
solo de verdade e que, um dia, voltaria de vez para lá.
— Aquela cara de bobo! Ele estava muito ocupado salvando o
universo, com a irritante mania de querer abraçar o mundo... — um
suspiro — você nunca mudou, não é, seu velho cabeça-de-vento?
— Ele tinha permissão de pisar na Terra, mas isso restringia o
acesso dele a outros campos gravitacionais. Nunca permitiu que eu
saísse da nave. Sobre ele não entrar em contato, o que me disse é que
você tinha perdido demais na Terra e esperaria o seu luto.
A minha admiração de ver aquele rosto fechado e sisudo, agora
55
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

desarmado e frágil, preso a um passado distante, é tamanha que


quase deixo passar algo importante:
— Que vida! Mas isso foi em que ciclo? Há quantos translados?
Porque se os ataques começaram em 2065, calculando, dá...
— 100 anos terrestres. Ou 36525 biotempos, se você preferir.
Ou 1303 ciclos lunares.
O velho retorna de sua estase para responder. Pela exatidão nos
números, ele deve ter feito esse cálculo várias vezes.
— Isso é muito! E você, enfiado aqui na Lua esse período todo?
Nunca quis voltar?
— Para que? Eu era um jovem, tinha conseguido um bom lugar
aqui na Lua e não queria reviver todo aquele sofrimento. Se quiser
rir do meu medo, não ligo. Você não sabe o que passei — diz ba-
tendo o dedo na lateral da cabeça — o quanto isso ainda dói — nas
pernas metálicas — tudo o que foi tirado de mim — no peito —.
Eu esperei muito para receber minha recompensa. Vamos acabar
com isso.
Ele se vira para Enzo, estende a mão e eu não entendo mais nada.
— Não posso. Ainda não sei o resultado da aposta.
— Como assim?! Então você veio pra cá à toa? Pode pegar essa
nave velha e sair daqui. Você precisa ir pra Terra agora! Já!
— Nós precisamos. Meu avô me disse que você é quem iria me
explicar essa tal aposta, quando descêssemos à Terra para conferir o
resultado e que..., bem..., tinha certeza que você perderia.
Aquela tímida empatia que eu vinha sentindo por aquele velho
nessa conversa vai embora de uma vez, quando ele se levanta es-
bravejando, soca a parede e xinga tantos nomes que mais parece o
idioma primitivo de algum protoplaneta. Espero a crise passar para
voltar à civilidade:
— E agora? Vocês vão para lá?
56
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

— Vamos nós três. Precisamos de alguém de fora para conferir


o resultado.
— Ei! Quem disse que eu quero ir? Perdeu o juízo?
— Você quer saber como entendo as plantocélulas, não quer?
Quer liderar a produção no meu lugar? Vai ter que vir conosco, e
agora.
Não tenho o que argumentar com essa proposta. Mal posso or-
ganizar os equipamentos espaciais. Acompanho os dois para a nave
e, poucos instantes depois, já estamos decolando.

*******

Depois que o piloto informa nossa partida ao centro de controle,


a viagem, que dura cerca de meio ciclo, segue completamente silen-
ciosa. Além dele, um idoso perdido em pensamentos e uma jovem
que faz sua primeira viagem fora da Lua. Que bela equipe! Minha
empolgação por uma viagem interplanetária e o temor por estar no
planeta condenado são duramente esmagados pela melancolia que
preenche a nave durante todo o trajeto. O que me sobra é a curiosi-
dade sobre uma aposta que atravessa gerações e afasta amigos.
Chegando à órbita do planeta azul, pude ver como ele é caótico.
Umas formas brancas flutuantes, relevos pontiagudos, áreas colo-
ridas irregulares..., tantas estruturas diferentes fazem minha cabe-
ça girar. Os hologramas dos planetas confederados que estudamos
nunca mostraram nada igual. Era sempre tão organizado, conciso.
Tudo seguia um padrão próprio de desenvolvimento que não deixa-
va brecha para erros. Enquanto aqui, parece que tudo acontece por
acaso, como se...
— Há! Vai ficar com essa boca aberta pra sempre?
Nem posso me defender. Com certeza meu semblante expressa
57
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

essa confusão. Mas o estalo foi importante. Já estamos próximos ao


nosso destino. Aproximo-me do Enzo e vejo pela placa translúcida
principal uma linha errante por toda área, fazendo voltas e curvas. A
superfície refle a luz do sol em alguns lugares. Aponto:
— O que é isso que risca o território?
— É o que os antigos chamavam de ryo. Ele é cheio de um tal
de ah-goua que vai deslizando até um grande reservatório natural,
aquilo azul que a gente viu lá do espaço.
— É incrível como vocês não sabem de nada! Mas não vou me
preocupar com isso. Você, rapaz! Qual o perigo de encontrarmos
lama-coisas por aqui?
— Pelo que meu avô me explicou, o norte do ryo é seguro. As
criaturas tomaram a parte sul e ficaram por lá desde então. Ali, está
vendo? É a base principal, naquele planalto, onde vamos descer.
Enzo sintoniza uma frequência restrita e fala pelo sistema de co-
municação:
— Missão de pesquisa NiaacLot. Aqui descemos, aqui resisti-
mos. Combustível e placas solares no local de sempre, conforme
combinado.
Estranho, mas o que não está sendo, não é mesmo? Descemos
em meio a um grande complexo de estruturas firmes que surgiam
do solo e subiam, cheias de ramificações verdes que balançam numa
dança sincronizada e hipnotizante.
— Ei, cabeça-de-vento! Descreva o que você vê ali, sobre o rio.
Ele aponta para uma edificação que atravessa o tal ryo como um
corredor aberto. Enzo me ajuda ampliando a capacidade de capta-
ção visual do painel.
— Bem... É uma pista reta, várias pistas. Tem proteções semi-
destruídas de ambos os lados. Parece construída com um metal que
nunca vi; uma cor de muito mau gosto e...
58
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

— Foco!
— Certo! Tem alguns mastros verticais em cima e é suportada
por alguns pilares.
— Quantos?
— São... Vinte e cinco? — Enzo confirma com a cabeça — Isso!
— Sei... Mais o que você vê?
— Ela se liga com o lado em que estamos, mas no outro parece
que foi desconectada. — Ampliamos ainda mais a imagem — Tem
um pedaço caído por lá, no chão.
— Eu sabia! Sabia que ela não resistiria. Então é isso, jovens. Seu
avô acreditava que a ponte duraria mais cem anos. Eu disse que não.
A vitória é minha.
Tenho que intervir:
— Ei! Aquilo ainda está de pé! Fizeram um corte para se defen-
der! Você perdeu!
— Não interessa o motivo. A ponte não está inteira, venci. Fim.
— Bem... — Enzo abre um compartimento, retira uma espécie
de caixa metálica com uma tela em cima e a entrega ao velho — Não
tenho como abrir isso mesmo...
Favo segura a caixa, visivelmente emocionado, acaricia, faz al-
guns gestos na tela e a caixa faz um clique, se abrindo.

*******

Acompanhamos a nave de Enzo decolar e rumamos para a célu-


la-dormitório de Flávio. Dos três tesouros que estavam na caixa, um
agora decora com muito destaque a parede do cômodo principal:
Um pah-péu com uma imagem gravada onde três adolescentes se
abraçavam. Um deles, uma versão quase impossível do velho, com
dois olhos inteiros e um — mais impressionante ainda — sorriso;
59
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

os outros dois eram um garoto — Enzo Avô — e uma garota, todos


com rostos praticamente iguais. Os três se abraçavam em frente a
uma estrutura que lembrava vagamente a tal põe-ti, mas iluminada
e movimentada com vários veículos. No verso, inscrições primitivas
que só o velho conseguiria entender.
O segundo não sairia nunca mais do pescoço do velho: Uma
delicada corrente dourada que passava no interior de dois aros acha-
tados, também dourados.
O terceiro, um pequeno quadrado com uma conexão eletrônica
curiosa. Este o velho ainda não conseguiu — ou não quis — abrir.
— Vamos andando! Eu tenho muito a te ensinar.
Não sei para onde o seu orgulho te levaria, mas o de um velho
rabugento — que talvez até se torne meu amigo — me levou até a
Terra, onde tudo começou, inclusive, o fim.

60
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Sobre o Autor:
Profissional de informática há quase 20 anos, começou a ler todo
tipo de texto desde os 6 anos de idade. Aos poucos foi descobrindo
os incríveis mundos do RPG, fantasia medieval, ficção científica,
histórias de mistério, quadrinhos e os clássicos. Ingressou no Ifes
aos 15 anos para cursar o Ensino Médio, ali ficou para a faculdade
e voltou depois como servidor, onde trabalha atualmente. Católico
assíduo, noivo apaixonado, flamenguista esperançoso, violeiro as-
pirante, está sempre pensando no que vai aprender em sequência.

61
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

A NAVEGAÇÃO NO RIO DOCE


José Luiz Pizzol

Não sou do tempo em que vapores navegavam no Rio Doce,


mas, lembro-me, mesmo que vagamente, de ter visto o “Juparanã”
semiemborcado num barranco em Colatina Velha, durante a visi-
ta que minha mãe e eu fizemos em 1960, a uma prima dela, pelo
lado materno (Prest), moradora numa casa em frente aos trilhos da
EFVM, em Colatina Velha. Tinha apenas oito anos e curiosidade
de sobra. Perguntando sobre o que era aquilo, fui informado de
que se tratava de um grande navio, que por longo tempo singrou as
águas do Doce. Recordo-me que aquela informação me deixou mais
curioso e ansioso para ver o barco de perto, o que fiz, em compa-
nhia de alguns parentes. Fiquei surpreso com o tamanho dele, com
seus dois andares e porque ainda aparentava estar em bom estado
de conservação. Só dez anos depois, ao iniciar meus estudos sobre
o município de Colatina, é que pude compreender direito aquela
fascinante história, contada, em parte na minha monografia sobre o
Cinquentenário de Colatina (1921-1971), premiada em 22 de agosto
de 1971 no concurso promovido pela Prefeitura Municipal e Facul-
dade de Filosofia de Colatina.
O vapor Juparanã foi o maior e o último que navegou no Rio
Doce. Inaugurado em 1927, fazia cinco viagens mensais entre Cola-
tina e Regência, até 1955, quando ancorou em Colatina Velha para
reparos, que não aconteceram, porque o próprio Governo não viu
necessidade, uma vez que em 1954 foi inaugurada a ponte sobre o
Rio Doce em Linhares, assim como a estrada ligando-a à capital,
suprimindo bastante o movimento de passageiros no navio, muitos
deles vindos da região linharense para Colatina, de onde embarca-
63
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

vam nos trens rumo a Vitória. Como era um bem que tanto repre-
sentou para a história de Colatina, algumas tentativas foram feitas
para salvá-lo, todas em vão. O próprio Pedro Epichim, já aposenta-
do em seu cargo de comandante do navio após 30 anos de trabalho,
foi um dos que tentou por várias vezes recuperá-lo. Consta que o
barco se encontra soterrado sob o casarão nº 343 da Rua Adamastor
Salvador, na área que os aterros da Beira Rio roubaram trecho do
rio.
O Juparanã tinha 26 metros de comprimento por 6 metros de
largura, maquinário alemão, casco de aço, 60 centímetros de calado
e motor gerador de energia elétrica a gasolina, que podia ser ligado
ao próprio motor do vapor. Sua tripulação permanente contava com
12 funcionários: o comandante (Pedro Epichim), o imediato (Ilton
Epichim, filho de Pedro), o piloto, o chefe de máquinas, o foguista,
a cozinheira, o copeiro e cinco marinheiros. Podia acomodar até 150
passageiros em seus dois andares, sendo o superior, contornado por
varanda, com oito camarotes, totalizando 36 leitos. Também possuía
cozinha, serviço de bar e restaurante. No andar inferior, o espaço
era quase todo aberto, com algumas fileiras de bancos.
Sua principal finalidade era atender o trecho Colatina-Regência,
o qual não dispunha à época de outra opção de transporte a não
ser o Doce. Partia às terças-feiras de Colatina às 07:00 horas da ma-
nhã e chegava à noitinha em Linhares, onde pernoitava para seguir
na manhã seguinte para Regência. Lá pernoitando, regressando a
Linhares na quinta-feira. Após pernoite, voltava pela manhã para
Colatina, aonde chegava ao anoitecer da sexta-feira e ficava até nova
partida na terça-feira seguinte. Assim era sua rotina, só modificada,
muito raramente, quando alguma cheia no rio lhe proibia navegar ou
quando não havia suficiente quantidade de passageiros ou cargas a
viabilizar economicamente a viagem.
64
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Seu local de parada em Colatina era diante do pequeno edifício


que o governo construiu em 1927 para servir de escritório, bilhete-
ria e armazém do serviço de navegação, nos fundos do terreno onde
surgiria, em 1939, o Colégio Conde de Linhares. Antes, com a inau-
guração da estação ferroviária (1906), era utilizado como ponto de
atracação de vapores um barranco onde se localiza o Iate Clube, por
ser a melhor opção aos usuários da ferrovia, substituindo as paradas
em Colatina Velha, que era em frente ao Barracão dos Imigrantes,
onde foi construída a Cadeia Pública nos anos 50.
Em seus porões e convés cabiam respectivamente 1000 e 800 sa-
cas de 60 kg, sendo os principais produtos transportados o cacau, o
café, cereais, frutas, legumes, telhas (de Barbados), ovos de tartaruga
(de Regência), cabritos, galinhas e porcos. Era comum durante seu
regresso rebocar até 30 canoas de particulares, muitas carregando di-
versos produtos para serem comercializados rio acima. O Juparanã
aportava também em várias fazendas ribeirinhas, além das paradas
mais prolongadas em Linhares e Regência. Quando não estava em
sua rota normal, era frequentemente fretado para viagens de recreio
à Itapina e à Lagoa Juparanã, muito apreciadas pelos colatinenses,
sendo usado, ainda, para levar mantimentos e outros produtos aos
índios do Aldeamento de Pancas, descarregando próximo à foz des-
se rio mercadorias as quais chegavam ao seu destino transportadas
através de um caminho margeando aquela via fluvial. Foi o único
meio de transporte em todo o Baixo Rio Doce, onde na época se
desenvolvia com rapidez as lavouras de cacau, prestando serviços
inestimáveis às populações atendidas.
Nas épocas de seca aconteciam, vez por outra, os temidos en-
calhes nos bancos de areia, por mais aguçada que fosse a perícia
do comandante Epichim, que parecia conhecer pelo reflexo da luz
onde a profundidade era maior. Os transtornos podiam durar horas,
65
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

mesmo com toda a eficiência dos marinheiros em deslocar o casco.


Símbolo maior da navegação no Rio Doce, o Juparanã funcionou
de 1927 a 1955, quando ancorou nas proximidades da Cadeia Públi-
ca para reparos, ali encalhando até ser tragado de vez pelas águas em
que tanto navegara.
Contudo, a história da navegação no Rio Doce remonta ao sé-
culo 16, quando grandes canoas já singravam suas águas, levando
aventureiros em busca de pedras preciosas na região das Minas Ge-
rais. Porém, foi somente no século 19 que as atenções governamen-
tais se voltaram para o rio e sua navegabilidade.
Logo que assumiu o cargo de Presidente da Província do Espíri-
to Santo em 21 de abril de 1833, Manuel José da Silva Pontes encar-
regou o Sargento-Maior-Engenheiro Luís d’Alincourt de estudar o
Rio Doce. Os estudos foram iniciados em 23 de junho daquele ano e
renderam ao engenheiro subsídios para a elaboração de importante
documento ao qual intitulou “O Rio Doce na História e na Lenda”.
Essa iniciativa governamental, visando estabelecer a navegação
regular no Doce já sonhada antes por D. Rodrigo de Souza Couti-
nho, Silva Pontes, Tovar, Rubim e até D. João VI, teve um êxito ini-
cial, com um vapor navegando no rio em 1836, mas acabou fracas-
sando logo após a falência, em 1841, do empreendimento de João
Diogo Sturz, oficial da Marinha, que havia conquistado privilégios
exclusivos para fundar uma Companhia em 1832, ano em que foram
concluídos os estudos sobre o Rio Doce, iniciados por Rubím, em
1819. Provavelmente se tratava da Cia. de Navegação, Comércio e
Colonização do Rio Doce, organizada por José Alexandre Carneiro
Leão, segundo Teixeira d’Oliveira. Em 1837 uma expedição enviada
pela Inglaterra acabou naufragando na barra do rio. Tinha como ob-
jetivo verificar informações exatas sobre as condições de navegação
local e do andamento da empresa, financiada com capitais ingleses
66
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

e possibilitando a Sturz, além de iniciar oficialmente a navegação no


Rio Doce, montar uma serraria e estabelecer colonos na sesmaria
recebida do governo, nas cercanias de Linhares.
Apesar da navegabilidade do Rio Doce ter sido sempre conside-
rada franca e boa, das cachoeiras das Escadinhas (onde está hoje a
Usina hidrelétrica de Mascarenhas) até a foz, nunca foi tarefa fácil
ultrapassar a barra, em virtude das condições marinhas e dos temi-
dos ventos sul locais, que dificultavam a passagem das embarcações
maiores e provocando um alto índice de naufrágios e encalhamen-
tos, esses, pela movimentação constante das areias depositadas no
leito do rio defronte a Regência, atravancando muitas vezes a en-
trada e saída dos barcos. Tais fatos impediram que vingasse uma
navegação regular do rio ao litoral, embora vários vapores tivessem
realizado essa façanha, mas nunca sem antes se precaverem com
todos os necessários cuidados.
Em 18 de julho de 1857, a bordo de um barco a vela de 38 tone-
ladas - o iate Francilvânia – Nicolau Rodrigues França e Leite che-
gou na colônia Francilvânia, onde hoje se localizam vários bairros
da Grande São Silvano, com 46 colonos portugueses, franceses e
alemães, juntamente com 15 toneladas de cargas diversas e 7 tripu-
lantes, depois de uma viagem difícil de 27 dias desde a barra do Rio
Doce. A colônia não prosperou, sendo doada ao Estado, em 1860,
logo após os botocudos da tribo Pancas assassinarem o Sr. Avelino,
administrador da colônia na ocasião e sobrinho de França e Leite.
Embora irregular, a navegação no Rio Doce foi servindo cada
vez mais para a integração do território. Além dos vapores que, vez
por outra, singravam suas águas, embarcações menores, principal-
mente canoas e pranchões, revezavam-se na missão de transportar
gente e mercadorias ao longo do curso navegável.
Em 1879 o vapor “Rio Doce” fez viagem inaugural no Rio Doce.
67
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Pertencia à Empresa de Navegação do Rio Doce, com a qual o Dr.


Manuel da Silva Mafra, presidente da Província do Espírito Santo de
16-09-1878 a 24-01-1879, havia assinado contrato em 1878. Fabri-
cado na Alemanha e encomendado por intermédio do engenheiro
Cesar Rainville, fez várias viagens de Regência a Porto do Souza e
vice-versa. De propriedade de Francisco Tagarro, João Maria Mous-
sier e João Felipe da Silva Calmon, a empresa acabou ficando depois
apenas na mão do primeiro e teria funcionado até o início do século
XX. Por certo também pertencia a aquela empresa o vapor “São
João”, de fundo chato com roda traseira, que fez viagem inaugural
no início de 1879, desde Vitória até Regência, dali tomando o rumo
do Rio Doce até chegar ao Guandu, trazendo um grupo de pessoas,
incluindo Francisco Tagarro, a esposa e três filhos.
Provavelmente foram esses navios que aportavam em Colatina,
logo que ali foi estabelecido um porto, em 1889, por iniciativa do
engenheiro Jacintho Adolpho de Aguilar Pantoja, chefe do Núcleo
Colonial Antônio Prado, criado em 1887 e composto inicialmente
por seis secções, sendo Colatina (Santa Maria do Rio Doce, depois,
Barracão do Santa Maria, quando foi concluído o Barracão dos Imi-
grantes) a única diante do Rio Doce.
Tais vapores pertenciam à Empresa de Navegação do Rio Doce,
fundada em 1878, e não há dúvidas de que logo o porto viesse a
desempenhar importante função comercial, estabelecendo negócios
com os de Regência, Linhares, Porto do Souza e, ocasionalmente,
Vitória. Por ele saía parte da produção agrícola local, especialmente
café, cana, milho, feijão arroz e mandioca. Como nunca houve em
Colatina, nem nas localidades citadas, um porto de verdade, com
cais de atracação e outras benfeitorias, os barcos ancoravam próxi-
mos a algum barranco, sendo o embarque e desembarque de cargas
e pessoas feitos por uma prancha de madeira que eles carregavam.
68
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Ao que tudo indica o próprio barracão, já não servindo mais ao


inicial propósito, tenha se transformado num armazém e demais
dependências do porto. Adquirido do governo estadual pelo Cel.
Virgínio Calmon existiu até o início dos anos 1950, quando foi de-
molido para a construção da Cadeia Pública.
No primeiro governo de José de Melo Carvalho Moniz Freire
(1892-96) novo estímulo foi dado à navegação no Rio Doce, ao ser
estabelecida a quantia de 20 contos de reis (Lei nº 58 de 23-10-
1893) em favor da Empresa de Navegação do Rio Doce que ex-
plorava, desde 1878, a navegação a vapor no Rio Doce, subvenção
aumentada depois para 30 contos, de acordo com a Lei nº 152 de
27-11-1895. Algumas embarcações da companhia Lloyd Brasileiro
também navegaram no Rio Doce, como o paquete Ahraruama, que
em 1894 subiu o rio até Porto do Souza, a 156 km da foz, lá deixan-
do 23 passageiros e 144 toneladas de carga. Embora considerada
relativamente fácil, a navegação no Rio Doce de Porto do Souza a
Regência, obstáculo crucial para os navios que vinham do mar em
direção ao rio e vice-versa era cruzar a sua barra, em decorrência da
constante movimentação de areia depositada no leito do rio. Muitos
barcos ali encalharam, alguns naufragaram e outros nem se atre-
veram a cruzá-la, tão perigosa que era, passando a ser quase uma
regra que as embarcações descendo o rio com cargas para Vitória as
permutassem em Regência para algum vapor ali fundeado na costa.
O grande flagelo que os botocudos representaram, desde o iní-
cio, para os pioneiros desbravadores, motivou a instalação de quar-
téis militares ao longo do Rio Doce em 1800 e uma agressiva cam-
panha de repressão a partir da Carta Régia de 1808. Ainda assim,
continuaram dificultando ao máximo todas as tentativas de coloni-
zação da região, até que o Império adotasse medidas para integrá-los
à civilização, criando aldeamentos, como o do Mutum, em 1859, nas
69
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

cercanias do Porto do Souza. Porém, por mais interesse que as auto-


ridades governamentais tantas vezes demonstraram em viabilizar de
fato uma franca navegação no grande curso d’água desde as Minas
Gerais até o Atlântico, a fim de se estabelecer uma rota comercial
lucrativa e duradoura, jamais foram construídos os necessários ca-
nais para transporem a sua barra e o seu trecho encachoeirado. Não
fossem a falta de ousadia, de determinação e de recursos financeiros
para a eliminação daqueles dois gargalos que a natureza ao rio im-
petrou, outro teria sido o seu destino. Certamente, uma importante
via de escoamento de boa parte das riquezas produzidas nos dois
estados em direção aos portos nacionais e estrangeiros.
Não havendo condições adequadas nem mais interesse para se
ultrapassar os difíceis limites impostos a leste pela assoreada barra
e a oeste pela sequência de pedras logo acima do Porto do Souza,
a navegação no Rio Doce acabou por ficar restrita apenas ao seu
leito navegável. Ou seja, de Regência a aquele porto. Assim rezava
a cartilha da empresa Vianna e Cia, criada em 1902 e que mantinha
em funcionamento o vapor “Muniz Freire” (ou “Muniz”), e da fir-
ma Mascarenhas, Costa e Cia, da mesma época, subvencionada pelo
governo estadual com seus vapores “Milagre” e “Santa Maria”. Tal
flotilha estava sediada em Regência Augusta, onde freqüentemente
ancoravam navios ao largo, possibilitando conexão de cargas e pas-
sageiros via marítima e onde possuía comércio e propriedades o Sr.
Cleres Martins Moreira, que em 1907 adquiriu o “Milagres”, ao que
parece, o único a fazer viagens regulares até Porto do Souza. Na-
quele ano Colatina já estava conectada à Vitória por ferrovia, com a
sua estação inaugurada em 20-10-1906, ao mesmo tempo em que se
transformara na sede da comarca de Linhares em 20/08/1907 e do
próprio município linharense em 22/11/1907, data em que também
foi elevada à vila, ficando, portanto, a ela subordinada o território,
70
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

abrangendo todo o curso do Rio Doce em terras capixabas. Logo,


Colatina passou a ser o porto mais movimentado do Rio Doce, re-
cebendo embarcações com gente vinda da vasta área leste que se
destinava à capital, porque o rio era ainda a única via de comunica-
ção a servir a população ribeirinha daquela região.
Porto do Souza, ponto final da navegação do rio, teve sua estação
ferroviária (Mailasky - km 190,700) inaugurada em 08-08-1907, pos-
sibilitando-lhe também conexão rápida e segura com a capital, fato
que fez diminuir bastante sua movimentação fluvial, a qual passou a
se concentrar especialmente no trecho Colatina-Regência.
No governo de Nestor Gomes (1920/24) foram adquiridos os
navios Tupy e Tamoyo, que vieram da Lagoa dos Patos (RS) para
navegar no Rio Doce, no trecho Colatina-Regência. Mediam cerca
de 26 metros e podiam transportar 50 ou mais pessoas. Não tiveram
vida longa. Segundo consta, até há algum tempo se podia ver nos
barrancos de areia em Colatina, numa ilhota abaixo da ponte Flo-
rentino Avidos, o esqueleto do vapor Tamoyo, ali deixado por ter
transportado dezenas de portadores de varíola preta (“bexiga”) que
ameaçava contaminar as populações. Sepultado também nas areias
ali perto, está o vapor Tupy.
Em 1927 foi criado o Serviço de Navegação do Rio Doce, sedia-
do na cidade. Um navio foi então comprado pelo presidente Floren-
tino Avidos ao preço de 2.715 libras esterlinas (cerca de 110 contos
de réis) e montado em Colatina Velha, onde se deu a construção
de toda a parte de madeira, convés e divisões pelo imigrante russo
Pedro Epichin, que foi designado chefe do referido Serviço. Chama-
va-se Juparanã e iniciou suas atividades em 22 de setembro de 1927,
numa viagem inaugural entre Colatina e Barbados, com Florentino
Avidos (presidente do Espírito Santo) e comitiva a bordo. Sobre
esse vapor, dissertamos sobre ele no início do texto.
71
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Também fazendo a rota Colatina-Regência, houve um vapor


(óleo diesel) fabricado nos anos 1940 por Maurício Neves Calmon,
com peças de motor de trator e capacidade de 30 toneladas. Trans-
portou, inclusive, o Circo Teatro Stevanovic, em suas raras incur-
sões pelo Estado. Teria navegado até os anos 1950. Em Linhares
funcionou por muitos anos um serviço de barcas para a travessia do
Rio Doce, encerrado com a inauguração da ponte em 1954, além
de barcos transportadores de cacau e de uma lancha da saúde, que
duraram mais tempo e que também atendiam Colatina.
Vários fatores provocaram o fim da navegação dos vapores no
Rio Doce: o crescente assoreamento do rio, a concorrência das ro-
dovias, o desinteresse governamental e privado para a realização de
obras de adequação do leito à navegabilidade, a ausência de uma
política voltada para os transportes fluviais e a quase total inexpres-
sividade do país em aproveitar seus imensos potenciais hídricos para
o turismo, negócios e lazer.
De meados dos anos 1950 em diante, as canoas voltaram a ser o
principal tipo de embarcação a singrar as águas do Rio Doce, exa-
tamente como no início de tudo, há pouco mais de quatro séculos.
São canoas de pescadores ou de desportistas em passeios ou com-
petições. Em Itapina, há várias décadas, continua em atividade uma
balsa que faz a travessia do rio, assim como em algumas localidades
mineiras, e em Colatina e outros locais podem ser vistas com alguma
freqüência, além de canoas, outras embarcações de lazer, como caia-
ques e jetskis. É o que se move atualmente sobre as águas do “Nilo
brasiliense”, no dizer de Francisco Manuel da Cunha, depois de ter
protagonizado por longo período, um movimentado vai e vem de
embarcações maiores.

72
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Sobre o Autor:
José Luiz Pizzol, escritor, historiador e médico. Autor de vários li-
vros sobre Colatina e outros temas, sendo dois já publicados: “Bo-
tocudos de Colatina e Região” e “Colatina, sua história sua gente”.

73
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

A ÚLTIMA BATALHA
Eduardo Aurich Filho

— Temos que ser temperados como aço; na medida exata, minha


filha. Ferro muito duro se parte, muito mole se dobra. Nós, anões,
não nos partimos nem nos dobramos, somos como aço. — Sempre
dizia Drohan à sua filha Dulna.
Nunca houve batalhas como as da Grande Retomada, em que
o povo anão passo a passo, vila a vila e fortaleza a fortaleza recon-
quistou sua antiga morada dos orcs invasores. Mas, claro, primeiro
haviam sido os dragões.
Os anões viviam em suas terras, conhecidas como Hrufrea, na
língua comum, canto mais ao norte do mundo civilizado. Depois de
várias migrações e viagens o pequeno povo encontrou isolamento,
recursos e espaço para se fixar e prosperar, mas também, encontrou
algo muito mais importante, que mudaria a sua história para sempre.
Escavando para abrir mais minas de ferro, minério abundante em
Hrufrea, os anões descobriram uma caverna natural emparedada de
cristais e, no centro, uma forja de vidro. A luz do sol e da lua entrava
por aberturas no teto e refletia nos cristais, iluminando todo o local
e, apesar do objeto parecer frágil, os anões notaram que tudo o que
era forjado naquela fornalha cristalina era mais forte, mais durável,
leve, maleável ou qualquer outra característica que os mestres ferrei-
ros quisessem dar. Naquela forja, os anões eram mestres de qualquer
metal e todo lingote era servo de sua vontade. Ao redor dessa Forja
Ancestral, uma relíquia e, decididamente, um presente dos deuses,
os anões construíram sua capital e, na sua solidão, enriqueceram.
Já estabelecidos os anões fizeram contatos com outros povos e
aprenderam muitos de seus costumes, línguas e práticas. Com aquelas
75
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

poucas comunidades que fizeram amizade, trocavam ensinamentos,


aprendizes e mestres.
Em algumas décadas os anões possuíam salões com tesouros e
seu trabalho era renomado, o que atraiu a ganância dos dragões que
caíram sobre Hrufrea, destruindo e pilhando, forçando seu povo a
debandar. Durante essa época os anões conseguiram alguma ajuda
dos outros povos, mas esse auxílio quase nunca era suficiente na sua
honestidade ou generosidade.
Depois de anos surgiu à notícia de que os dragões haviam aban-
donado os túneis e as cavernas de Hrufrea. E o povo anão, disper-
so e desesperançoso, reacendeu o fogo de seu orgulho, retornando
para ocupar suas moradas. Sem os dragões, no entanto, os anões
viram que orcs haviam ocupados seus salões e, então, iniciou-se a
Grande Retomada; batalhas que durariam mais de 100 anos, até os
anões recuperarem seu território e expulsar os invasores.
A maior parte das batalhas foi travada sob a superfície da ilha.
Depois que a capital e a Forja Ancestral foram liberadas das garras
dos inimigos, os anões tiveram seus espíritos renovados.
Agora era a última batalha. Os passos finais para libertar o bas-
tião norte da ocupação orc. As fogueiras de guerra estavam acesas,
as armas afiadas e os escudos levantados.
O braço direito de Daina tencionou quando sua lança atingiu
o alvo. A ponta de ferro, decorada com runas, atravessou osso e
cartilagem, abrindo uma caverna sangrenta no pescoço do inimigo.
Seu braço esquerdo levantou o escudo para desviar o golpe de um
machado enegrecido. Aproveitando o movimento, abaixou a borda
do escudo, atingindo o pé cheio de garras do seu atacante. Sentiu
ossos se partirem. O companheiro ao seu lado na parede de escu-
dos finalizou o inimigo com um golpe preciso: “Mais um!” pensou
“Mais um passo!”
76
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

A fileira de guerreiros intercalou os escudos e contra essa parede


de madeira e ferro os inimigos batiam como ondas e se quebravam.
Onde um guerreiro caía outro tomava seu lugar.
De trás da parede de escudos ouviu-se um aviso:
— Ay-oy! Flechas! — O comandante havia gritado.
A linha traseira levantou os escudos enquanto a linha dianteira
os mantinha contra a maré de orcs. A chuva de flechas caiu pesada,
acertando alguns aliados, mas a vanguarda obstinada não se rompeu.
Ao longe, outro som cortou o ar e setas pesadas atingiram a traseira
do exército orc: “Bons artilheiros!” pensou Daina “Isso nos dará o
fôlego para a última ofensiva”.
Os anões avançaram por sobre os cadáveres orcs da primeira
fileira e seguiam em direção à fortaleza de Reretrim, que guardava
a entrada norte para as terras anãs. Uma segunda chuva de flechas
caiu, ribombando nos escudos levantados dos anões. Gritos surgiam
quando as flechas achavam uma abertura naquela muralha de ma-
deira e aço, mas imediatamente os feridos e mortos eram retirados.
Pelo flanco esquerdo ouviu-se uma trombeta e outra parede de
escudos se formou. Os anões haviam fechado suas forças em cima
dos orcs com tenacidade.
— Agora sim! Estão entre o martelo e a bigorna, vamos avançar!
— disse um companheiro ao seu lado. Pouco depois, a linha orc se
partiu, com os sobreviventes debandando para dentro da fortaleza.
A linha de frente avançou rapidamente, dispersando inimigos do
lado de fora.
— Vamos! — a anã chamou — Para dentro da fortaleza, desen-
tocar os vermes! — e avançou com alguns companheiros.
Nos portões, um grupo de orcs ofereceu resistência, mas foi re-
chaçado. Do alto da torre o capitão inimigo grunhia ordens para
seus subalternos.
77
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

— Um último esforço! — gritou Daina, e começou a subir as


escadas com dois de seus companheiros.
Lá em cima viu o capitão dos orcs, alto, pálido, com garras negras
e olhos frios, segurava um grande martelo ensanguentado e vestia
uma cota de malha vermelha. O orc uivou.
De repente, Daina sentiu uma dor na boca do estômago. “Não!”
pensou. “Ainda não é tempo!”. Ajoelhou-se de dor. O capitão orc
desceu sobre eles com o martelo em mãos, num esforço de luta e
escolheu o alvo que se encolhia de dor. Um escudo subiu ao seu
lado e parou o golpe do martelo, mas se partiu.
A dor aumentou, a lança caiu de sua mão. O martelo do capitão
orc se levantou e caiu no companheiro à sua direita, o elmo resistiu
ao golpe, mas o peso foi tanto que o pescoço se quebrou. Algo
molhado e quente começou a escorrer em suas pernas. A dor estava
terrível. Caiu no chão, de costas, a lança a centímetros da mão. O orc
ergueu o martelo e, nesse instante, um grito:
— Daina! — Era Drohan. Saltou em cima do capitão orc, segu-
rando seu braço.
As mãos de Daina encontraram sua lança e, em meio à dor, ela viu
Drohan, seu esposo, com o braço do escudo quebrado e segurando o
pálido capitão orc para trás. Empunhando sua arma com toda a for-
ça que tinha, Daina arremeteu, mesmo deitada e desajeitada, a lança
contra o capitão orc. A lança encontrou a resistência da cota de malha
vermelha, mas, nesse momento, as runas brilharam. O metal da malha
derreteu, a carne na barriga do orc borbulhou. Drohan puxou o orc
para trás e a criatura caiu de costas, sangue preto efervescente saindo
da boca. Daina voltou sua atenção para a própria dor.
Drohan se levantou:
— Daina! — gritou novamente — Sabia que não devia ter deixado
você vir!
78
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

— Deixado? — Daina bufou entre os dentes — E quem iria


tomar conta de você, seu estabanado?
Drohan riu nervoso e se aproximou da esposa. Ouviram passos
na parte de baixo das escadas, botas pesadas e passadas curtas, seus
compatriotas.
— Vou buscar ajuda! — disse Drohan.
— Não há tempo! Essa criança parece que quer vir se juntar à
batalha de qualquer jeito! — gemeu Daina.
Drohan se ajoelhou atrás da esposa e ajudou a retirar a parte de
baixo de sua armadura. A calça de couro ele cortou com uma adaga.
— Ai de você se estragar minha armadura! — gritou Daina, se
esforçando para suportar a dor.
Drohan viu que as pernas da esposa estavam cobertas do que
parecia ser sangue, ele não era curandeiro e, embora este fosse o
segundo parto de Daina, era o primeiro que acontecia fora de sua
casa e sem o auxílio das parteiras.
— Respire! — disse Drohan — Respire fundo! Tem algo acon-
tecendo aqui!
— Pelas barbas dos Anciões, Drohan! Jura mesmo? — respon-
deu Daina.
— Calma agora, vamos, isso, respire, respire! — Drohan estava
apavorado, mas tentava se controlar. O seu braço do escudo não se
movia, mas ele também não sentia a dor.
“Lá em cima! Tem alguém ferido lá em cima!”, eles ouviram gri-
tar. “Tragam as sacerdotisas”.
Daina empurrou, forçou e respirou, até que a dor passou. Olhan-
do para baixo ela viu Drohan segurando em um dos braços uma
pequena forma que tossia, se mexia e chorava.
— O que é? — Perguntou Daina.
— Uma menina — disse Drohan, com lágrimas nos olhos. —
79
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Uma linda menina de olhos cinzas.


Daina relaxou o corpo, o pior tinha passado, mas o corpo estava
dolorido. Antes de fechar os olhos ela viu uma Sacerdotisa subindo
as escadas, com a batina suja de sangue e viu a ponta da sua lança,
o que sobrara dela, retorcida e incandescente, viu o teto do bastião
de Reretrim, suas abóbadas geodésicas e viu Drohan, chorando, se-
gurando sua nova filha. “Dulna”, ela murmurou e dormiu com a
certeza de que tudo estava bem no mundo.

80
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Sobre o Autor:
Eduardo é nascido em Colatina, filho de Eduardo Sebastião Au-
rich e Carlene Soares Aurich, formado em Direito pela UNESC
e em História pela Funcab. Jogador e mestre de RPG desde os
15 anos, sempre teve paixão pelo gênero de fantasia e seu autor
favorito é Tolkien.

81
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

PESADELO OU PROFECIA
Rodrigo Tonon Bergantini

Não costumo ter sonhos e, quando os tenho, não costumam fa-


zer sentido, tampouco podem ser chamados de vívidos ou realistas,
ao contrário, são apenas visões opacas, turvas e totalmente caóticas,
uma espécie de apanhado aleatório do que foi visto durante os úl-
timos dias, uma verdadeira baderna psíquica. No entanto, um certo
sonho ou delírio, talvez um pouco dos dois, deixou-me bastante
impressionado a ponto de recordá-lo.
Lembro-me que foi numa noite de verão especialmente quente,
durante o dia a temperatura deve ter atingido uns 38º graus, mas a
sensação certamente era de mais de 40º graus, o tempo estava espe-
cialmente úmido e o ar incrivelmente estagnado, como se os ventos
todos estivessem aprisionados em alguma caverna longínqua, quem
sabe nas eólicas moradas. Depois de um dia perfeitamente ordiná-
rio, no qual tudo aconteceu como sempre, aquela repetição tediosa
de mais um dia abatido em casa, sem nenhum pequeno aconteci-
mento digno de impressionar sequer uma criança inocente, senti-me
de repente oprimido pelas paredes e ao olhá-las, vi que pareciam bri-
lhar tal se tivessem recebido camada de verniz e, ao mesmo tempo,
faziam um movimento ondulado, como se fossem uma miragem.
Percebendo que não estava bem, pensei em deitar-me.
Sei muito bem que já estava deitado em minha cama, as duas
janelas do quarto abertas e o ventilador ligado em potência máxima.
Enquanto isso, do lado fora não vinha nenhuma brisa sequer, o ven-
tilador movimentava o ar quente do ambiente combinado com seu
próprio hálito dracônico ainda mais quente gerado pelo motor, cujo
barulho beirava o hipnótico, empurrando-me em direção ao torpor,
83
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

apesar da minha resistência em parte consciente e em parte apenas


inquietação provocada pelo meu estado e pelas circunstâncias at-
mosféricas do momento.
Devido a minha condição de doente, não tinha qualquer vontade
de levantar da cama, apesar de todo o desconforto, estava muito
cansado, abatido pelo calor e soterrado por uma montanha de pre-
guiça e tédio, estava até faltando ao trabalho nos últimos dias, era
uma virose qualquer que havia me derrubado, algo que costumava
acontecer no verão e que, de certa maneira, já era até esperado quan-
do o auge do calor ia se fazendo notar.
Permaneci na cama por... não sei ao certo quanto tempo, po-
dem ter sido horas ou apenas poucos minutos, simplesmente perdi
a noção do tempo. Tive sede, mas a preguiça misturada ao cansaço,
assim como as dores corporais me pesavam sobre o corpo, tornan-
do hercúlea a tarefa de levantar e tomar a água gelada que eu tanto
desejava. Como não sou nada próximo de um Hércules, permaneci
onde estava, com sede e dores, já que não bebia água nem tomava
remédios há algum tempo.
Deitado, vagueei por entre um emaranhado de pensamentos, como
aquele desordenado monte de imagens que vem à mente pouco antes
de cair no sono, mas dessa vez de modo mais intenso, talvez eu já
estivesse delirando naquele momento, mas não posso dizer ao certo;
parecia só o sono ordinário chegando. Depois, sei que fechei os olhos
e em minhas pálpebras fechadas vi cores dançando, coisas disformes
coloridas se moviam, como se fossem imagens em movimento proje-
tadas numa tela de cinema, até que um feixe de luz branca semelhante
ao foco de luz de uma lanterna apareceu e na “tela” iluminada por
esse foco de luz, eu podia ver imagens complexas: pessoas, lugares,
objetos, animais, alguns conhecidos outros não. Tais imagens apare-
ciam e desapareciam rapidamente, aparentemente de forma aleatória.
84
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

O fato é que adormeci por um instante e, quando abri os olhos,


estava de pé em algum lugar fora de casa, o céu e até o próprio ar pa-
reciam estranhamente encardidos, amarelados como o céu costuma
ficar depois de um temporal no final da tarde. Minha sensação era
de deslocamento, sentia como se tivesse entrado por algumas portas
erradas num prédio vazio e estivesse um tanto perdido, esperando
alguém aparecer para ter a chance de pedir orientação.
Vaguei por algumas ruas completamente desertas, nas quais ha-
via casas baixas e alguns poucos sobrados, aqui e ali também podia
ver o que pareciam ser um ou outro pequeno comércio fechado,
semelhantes àquelas “vendas” que ainda podem ser encontradas em
localidades do interior. As edificações eram feitas de tijolos, as pa-
redes eram cobertas por pinturas muito desgastadas. Aqui e ali, era
possível ver rachaduras e telhados totalmente ou parcialmente arrui-
nados, além disso, as construções eram estranhamente assimétricas
em relação umas às outras, havia desarmonia presente no conjunto
e tudo estava coberto de uma poeira ocre.
As portas e janelas estavam todas fechadas, o silêncio parecia inque-
brável e eu mesmo não tinha voz para desafiar a ausência absoluta de
som. Perambulei a esmo, confuso, dobrando ruas e vielas, uma após a
outra, sem contá-las, pareciam ter se passado horas e acabei concluindo
que aquilo era apenas um sonho estranho, fruto da febre e que logo eu
acordaria. Até que num momento, o silêncio absoluto foi gradualmen-
te quebrado e comecei a ouvir levemente, como se viessem de longe,
meus próprios passos meio arrastados, repentinamente, uma mudança
na paisagem, as portas e janelas, antes fechadas, abriram-se e ao longe
ouvi vozes sussurrando e eram muitas, apesar de não compreendê-las,
percebia nelas um tom ao mesmo tempo sofrido e odioso, como o de
um doente terminal que insiste em amaldiçoar o mundo que em breve
deixará e aqueles que permanecerão nele vivos e saudáveis.
85
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

As vozes sussurrantes vindas de todas as direções formavam


uma cacofonia assustadora e, naquele instante, senti medo. Porém,
racionalizei que só podia ser um pesadelo se intensificando e que
logo eu acordaria. As vozes, cujo volume crescia, eram como os
trovões igualmente crescentes, que anunciam uma terrível tempesta-
de. A situação piorou, pois me dei conta de que podia sentir minha
própria respiração, o que me deixou tomado de pavor, pois até então
não me dera conta de que respirava. Comecei a inspirar então um ar
quente e pesado, com um cheiro ruim que parecia uma mistura de
poeira, mofo e enxofre.
Senti um aperto no peito, dei-me conta do quanto tudo era real,
fiquei tomado de uma profunda aflição e fiz toda a força que pude
para correr, na esperança de me afastar daquele lugar e voltar ao
mundo da vigília. Mas não consegui, fiquei estacado no meio da rua
de paralelepípedos irregulares, durante algum tempo, no qual vi se-
res disformes, alguns pareciam humanoides, movendo-se ao longe,
entrando e saindo das construções.
Senti a cabeça girar e a vista escurecer. As casas, a rua, o céu com
seu sol pálido, tudo ficou fora de proporção, como seu estivesse
sofrendo um tipo de alucinação causado pelo uso de alguma droga
potente, quanto mais tentava olhar ao redor, mais minha visão se
tornava turva e afunilada. Senti-me tragado pelo chão, como este
derretesse e eu afundasse nele, tudo escureceu e, quando abri os
olhos, tive por um instante a esperança de estar de volta à minha
cama..., foi em vão.
Estava novamente preso naquele insano pesadelo. Senti-me um
tanto enjoado com os cheiros, agora mais pútridos no ar, percebi
que estava novamente de pé, numa outra rua maior de pedras com
uma arquitetura que parecia europeia, herdada do renascimento.
Ouvi então sons de algo sendo arrastado e quando me virei, vi
86
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

seres grotescos; posso dizer que eram pessoas que, da cintura para
baixo, pareciam ter sido derretidas como soldadinhos de plástico,
esses seres se arrastavam como lesmas e seus rostos expressavam
dor, ódio e desespero tremendos. Seus olhos vazios aparentavam
uma vileza assombrosa, um apetite pela destruição. Não sei explicar
o porquê, mas eu parecia invisível a essas criaturas, que se arrasta-
vam pelas ruas em lamúrias tenebrosas, praguejando, amaldiçoando,
do fundo dessa sinistra multidão. Atrás daqueles que se arrastavam
como lesmas vinham outros pobres diabos, estavam em situação
ainda pior, assim como os da frente arrastavam a parte inferior der-
retida de seus corpos. No entanto, seus corpos eram ainda mais
arruinados, queimados, tinham feridas expostas por todo o corpo
e vinham mais devagar que os primeiros e quanto mais para o fim
daquilo que parecia uma espécie de fila ou procissão, mais defor-
mados e sôfregas eram aquelas criaturas repugnantes. Aos últimos
faltavam mãos e braços, outros tinham até mesmo olhos e maxilares
arrancados e de suas feridas brotavam vermes devoradores de carne,
uma visão que faria o melhor dos filmes de horror parecer um conto
de fadas.
Ah..., que visão abjeta aquela! Aquele odor de podridão e fuma-
ça me faziam sentir náuseas, a aparência hedionda daquelas coisas
me congelava, fazendo-me sentir que a qualquer momento eu me
tornaria visível novamente e seria devorado por aqueles seres mu-
tilados, pensava que iriam me arrancar violentamente os olhos para
enfiá-los em suas órbitas vazias. Senti o mais profundo temor de ser
canibalizado de corpo e alma.
Enquanto aquela imensa horda de rastejantes passava, esgueirei-
-me tremendo entre eles até conseguir encontrar uma casa de porta
aberta na qual entrei. Mas fui seguido por um dos malditos raste-
jantes, cuja cabeça não havia nariz, apenas um buraco, também não
87
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

tinha olhos e suas orelhas pareciam ter sido queimadas, pois esta-
vam terrivelmente retorcidas e coladas à cabeça. Dentro da casa, o
ser tateou até um quarto no alto de uma escada, onde deitado numa
cama havia o que parecia ser um vulto acinzentado, do qual eu não
podia enxergar detalhes, mas me lembro de ver o ser rastejante se-
gurar a cabeça do vulto cinza por um tempo, enquanto gemia como
se aliviasse sua imensa dor. Em seguida, seus olhos se regeneraram
assombrosamente rápido, formando grandes bolas avermelhadas
que me fitaram profundamente. Foi nesse exato momento que mais
temi por mim mesmo, desde o início desse insólito delírio, senti uma
agonia sufocante, como se fosse cair de um abismo.
Pensei que naquele exato momento, meu corpo estivesse deitado
na cama e aquele ser desfigurado e malévolo prestes a me extinguir
a vida, e que eu poderia ficar ali, eternamente aprisionado em sofri-
mento, ou ainda pior, que eu me tornaria um semelhante daquela
entidade de olhos sanguíneos que me fitavam com maligna e insa-
ciável fome.
Usei toda minha força restante para encher os pulmões de ar e
gritei. Por alguns segundos, nenhum som pôde ser ouvido, até que
um grito minguado e agudo saiu de minha garganta e acordei em
minha cama, o corpo suado, o ventilador desligado. Toquei rapida-
mente no interruptor para acender a luz e percebi que havia acabado
a energia. Sentei na cama até recuperar o fôlego, e após algum tem-
po, o ventilador voltou a funcionar. Nas noites seguintes, tive muita
dificuldade pra dormir, pois um medo supostamente irracional se
apoderou de mim; aquelas coisas do sonho, não sei o que eram e
sinceramente tenho medo de pensar no assunto, tenho medo de crer
que são reais e ainda rezo para deixar de ver aqueles olhos verme-
lhos vívidos quando fecho meus olhos na cama.

88
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Sobre o Autor:
Rodrigo Tonon Bergantini é licenciado em História e possui pós-
-graduação em História da Arte. Atualmente é professor de Histó-
ria do ensino médio e fundamental das redes pública e privada em
Colatina - ES e também escritor estreante nesta publicação.

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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

UMA INSTITUIÇÃO EDUCACIONAL:


VISÃO DE UMA INSTITUIÇÃO EDUCACIONAL, DE
ENSINO SUPERIOR (FAFIC), BASEADA EM VIVÊNCIAS

Arlete Ana Corteletti Pereira

A nossa viagem e/ou nossa caminhada começa com o nascimen-


to. Nascer é florescer, nascer é uma dádiva divina! Quantos não têm
ou não tiveram esse direito! Fatores diversos podem facilitar ou difi-
cultar e até mesmo cercear esse desabrochar, esse florescer.
O que pode acontecer depois do nascimento escapa às nossas
previsões: quantas coisas agradáveis povoam o nosso caminhar! E
quantas coisas desagradáveis também ocorreram e ocorrem!
A vida, a nossa caminhada, após o nascimento, é uma viagem
rumo ao amadurecimento. Contribuem e fazem parte dessa bus-
ca (amadurecimento) todas as nossas vivências. Todos os aconte-
cimentos que permearam nossos passos contribuíram positiva ou
negativamente na construção de nosso objetivo. Foram eles, tam-
bém, que, em interação com nossos fatores constitucionais, deter-
minaram nossa singularidade. Vou repetir o que muito ressaltava em
minhas aulas de Psicologia da Educação: as características que nos
distinguem uns dos outros, tornando-nos únicos e singulares, tam-
bém nos imprimem responsabilidades em relação às nossas ações e
reações. Não foi por acaso que Deus imprimiu, em cada um de nós,
essa marca – singularidade.
O salmo 138/39,14 diz: ‘’Sede bendito por me haverdes feito
de modo tão maravilhoso”. Com certeza, somos uma maravilha da
criação. Que maravilha! meu Senhor sou eu!
Então essa marca maravilhosa que nos distingue, tornando-nos
únicos e singulares, também nos exige responsabilidades únicas e
91
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

singulares diante da vida, da comunidade em que estamos inseridos


e, principalmente, diante de Deus.
O meu desenvolvimento ocorre de forma única e singular. Os meus
relacionamentos com o próximo e com a esfera espiritual são únicos e
inconfundíveis. Isso nos imprime muita importância realmente.
Nasci no dia 15 de julho de 1938. Cresci no convívio de um lar
cristão e sob influências da cultura italiana.
Estudei em Colégio de Freiras e tive uma formação católica, típi-
ca das décadas de 50 e 60. Sempre valorizei os métodos e recursos
utilizados para a minha formação.
Sou imensamente grata a meus pais, que tiveram essa visão de futu-
ro, contribuindo para minha inserção no meio educacional, com desta-
que singular em minha trajetória intelectual, social, moral e espiritual.
Sou, em parte, o que sou e fiz, o que fiz porque tive a felici-
dade de contar com pais que não mediram esforços, numa época
em que poucos valorizavam isso, para me proporcionar os meios
nessa integração.
Cursei Pedagogia (graduação e licenciatura) na Universidade Fe-
deral do Espírito Santo. Esse curso me destacou como a 1ª mulher
no município de Colatina licenciada em Pedagogia e aprovada em
concurso público estadual, na disciplina de Psicologia da Educação.
Casei-me em 1968 com Kleber Bussinger Pereira, funcionário
do Banco do Brasil e professor do ensino médio e superior. Foi ele
de grande importância como incentivador no e do meu desenvol-
vimento pessoal e profissional. Além disso, devo ao Kleber e aos
outros colaboradores, a fundação da Faculdade de Filosofia, Ciên-
cias e Letras de Colatina, palco da minha atuação profissional, no
magistério de Ensino Superior, por 43 anos.
Surgiram, em 1963, as ideias iniciais a respeito da necessidade de
uma Instituição de Ensino Superior em Colatina. Os professores
92
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Kleber Bussinger Pereira, Sylvio Silva Vitali e o saudoso Wieslau


Eustachio Ignatowski empenharam-se, sem medir esforços, para a
concretização dessa ideia. Esses abnegados professores dedicaram,
gratuitamente, seu precioso tempo e esforço, na concretização des-
se objetivo: Fundação de uma Instituição de Ensino Superior em
Colatina.
Graças a esse valioso empenho, em 21 de outubro de 1964 foi
criada a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Colatina, pela
Lei municipal 1442, de 21/10/64, sancionada pelo então prefeito
municipal, o Sr. Honório Fraga.
No dia 9 de maio de 1965, foi instalada, em sessão solene, no
Cine Idelmar, a FAFIC, cuja aula inaugural foi proferida em 11 de
maio de 1965, pelo senador colatinense Dr. Raul Giuberti, a qual
consta nos anais do Senado, em Brasília.
Graças aos beneméritos professores Kleber Bussinger Pereira,
Sylvio Silva Vitali e outros colaboradores, a FAFIC funcionou até
1968, como autarquia municipal, com ensino gratuito, o que muito
contribuiu para que uma vasta comunidade discente tivesse acesso
ao ensino superior.
O saudoso Sr. Anísio Richa liderava o comércio para contribuir
com um percentual, junto à prefeitura, para essa finalidade (gratui-
dade do ensino).
A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Colatina foi a pri-
meira Instituição particular de Ensino Superior do Espirito Santo.
Quantas e quantas gerações foram beneficiadas...! Quantas pessoas se
destacaram no meio social, econômico, político e educacional, graças
às oportunidades oriundas dessa renomada Instituição FAFIC!
É sempre bom rever e compreender a história. O passado e o
futuro constituem a base do nosso presente.
Esse passado glorioso, que tanto impulsionou a minha vida, como
93
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

ser humano e, principalmente, como profissional da educação, me


foi possibilitado pela existência da FAFIC. Através dela (FAFIC),
projetei-me como a 1ª mulher no estado a dirigir uma Instituição
de Ensino Superior, a ter meus currículos aprovados nos Conselhos
Estadual e Federal de Educação, nas disciplinas: Introdução à Psico-
logia e Psicologia da Educação.
Tive a oportunidade de participar de todos os colegiados da Ins-
tituição e, durante 28 dos 43 anos em que lá permaneci, ministrei
aulas em todos os cursos oferecidos. Ressalto que a minha disciplina
– Psicologia da Educação – nos cursos de Pedagogia, fazia parte das
disciplinas básicas e, nos demais cursos oferecidos pela instituição,
era disciplina pedagógica que integrava a carga horária.
Pelas oportunidades que tive na FAFIC, pela minha saúde (em
43 anos de magistério superior, só tirei 3 licenças-maternidade), pela
minha capacidade, pelo dom de ensinar, pela dignidade de ter sido e
ser uma eterna aprendiz, o meu louvor a Deus;
Pela coragem de escrever e publicar: “Viver! Com cabelo, sem
cabelo e apesar do cabelo – um relato de superação, amor e fé” –
obrigada, Senhor!
Aos meus ex-alunos, muito amados e queridos, o meu profundo
agradecimento: com vocês e por vocês desenvolvi sentimentos de
empatia, aprendizagens significativas e relacionamentos amistosos.
A visão multidisciplinar e interdisciplinar de conteúdos desen-
volvidos na Instituição contribuiu muito para a realização de alguns
projetos, inclusive o livro que escrevi e os vários cursos ministrados
a convite das secretarias de educação de várias prefeituras do Esta-
do.
A visão multidimensional de homens e a bússola para navegar na
complexidade da agitação da vida foram muito desenvolvidas nessa
interação dinâmica: professor X professor, professor X aluno e aluno
94
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

X professor, que a Instituição me possibilitou.


Quero, nesta oportunidade, ressaltar o valor significativo de meu
marido, Kleber Bussinger Pereira, co-fundador da Instituição, pela
sua visão ampla de futuro e concepção abrangente de mundo, que
muito me ajudou a refletir sobre coisas de inestimável valor, tais
como: as derrotas são trampolins para novas conquistas; nossas
ações devem ser norteadas pelo nosso código de valores. Infringir
esse código é sumamente desgastante para a integridade da perso-
nalidade. O nosso próximo merece tratamento digno e respeitoso
e, para tudo, há um tempo debaixo dos céus: os acontecimentos se
seguem, se revezam e tudo passa.
Foi também através da união com meu marido que tive o privilé-
gio de ser mãe de 3 filhos: Adriana, Ana Cláudia e Kleber, que são a
razão de tantas realizações.
O meu amplo e profundo agradecimento aos meus pais, que me
propiciaram a base para o meu desenvolvimento; à Instituição (FA-
FIC), palco da minha profissão no magistério do Ensino Superior;
aos meus ex-alunos, ao meu querido marido e aos adorados filhos
que, numa dinâmica de influências e interferências, muito contribuí-
ram para ampliar a minha compreensão a respeito do imprescindível
papel do ser humano, nas relações dialógicas que se realizam através
da interação verbal.
• Nasci, vivi e convivi sob as influências familiares, educacionais,
sociais e morais.
• Desenvolvi a espiritualidade através da doutrina católica e
creio em um Deus único, criador de todas as coisas.
• Sou o resultado da interação de meus fatores constitucionais
e das várias influências recebidas nesses 83 anos bem vividos.
• Sou muito agradecida a Deus, a meus pais, a meu marido, a
meus filhos, a meus ex-alunos e à FAFIC que, em uma dinâ-
95
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

mica de interações, contribuíram para eu ser quem sou, com


meus defeitos, qualidades, satisfações, insatisfações – marcas
indeléveis da minha singularidade.
• Em relação à FAFIC, registro, com o mesmo entusiasmo, o
que escrevi através de um Histórico da Instituição, por oca-
sião de seu cinquentenário de instalação:

“Hoje, após 50 anos, todos quantos se empenharam nessa


causa – criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Le-
tras de Colatina – FAFIC, se rejubilam. Fazer parte des-
sa história, tendo contribuído para que as palavras do Dr.
Raul Giuberti, proferidas naquele memorável 09 de maio
de 1965, adquirissem, no decorrer desse meio século, dia-
logicidade e concretude, é, sem dúvida, muito gratificante.
... “Faculdade destinada a ser o farol da juventude estudio-
sa de nossa terra e, no futuro, o relicário de memoráveis
tradições’’.
E mais, “As taxas arrecadadas em benefício do ensino re-
tornarão amanhã aos seus doadores...’’
“Como retornaram!’’

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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Sobre o Autor:
Especialista em Psicologia da Educação;
Professora fundadora da FAFIC;
Ex-Professora, por 43 anos consecutivos, da FAFIC;
Ex-diretora da Instituição.

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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

MÁRCIA E O FORMIGUEIRO MÁGICO


Tonico Clímaco

Era uma vez, num lugar não tão distante e nem há tanto tempo
assim, havia uma pequena e singela casinha, à beira de um barranco,
recém-construída em cima de um mágico formigueiro.
As serelepes formigas ficaram furiosas, mas não tinham escolha,
elas precisavam acreditar que ia ficar tudo bem. Pensavam “Bem,
este não é um formigueiro comum, é um Formigueiro Mágico”.
Herdeiro da magia primordial que construiu a Terra. Este era o fan-
tástico Formigueiro de Zim, Zum, Zão e a Rainha Mágica.
Toda a tropa se reuniu perante a Rainha e começaram a chaco-
alhar suas minusculinhas anteninhas em uníssono, seus corpinhos
então vibraram, juntinhos. E na ponta de suas anteninhas um brilho
branco apareceu. De repente, um pequeno raio de luz branco, como
uma caneta laser, apontou para uma direção que passava bem atrás
da “gigante” Rainha, que brilhava por inteiro.
Toda a tropa então correu, liderados por Zim, Zum e Zão, as
destemidas, incansáveis e corajosas formiguinhas cavaram e cava-
ram e cavaram, mais e mais, até que finalmente encontraram uma
pequena brecha nos tijolos da parede e chegaram numa pequena
rachadura embaixo da pia. Elas ficaram eufóricas e felizes e todas se
alegraram com a liberdade recém conquistada.
Rapidamente eles se adaptaram à vida na casa e perceberam que
aquela era uma excelente oportunidade de experimentar novos e de-
liciosos sabores, diretamente da pia da cozinha. O que podia parecer
fácil, mas envolvia muitos perigos.
Principalmente porque além de Zim, Zum e Zão, as outras for-
migas não eram assim, muito astutas. E diversas situações inusitadas
99
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

acabavam por fazer com que várias formigas perdessem suas vidas
na empolgante caça às sobras na pia.
Zilum seguia a fila de formigas quando viu uma brilhante e atra-
ente gota d’água em cima da pia. Ele desviou de seu caminho para
checar aquela coisa fantástica. Tocou a gota d’água com suas minús-
culas anteninhas. Naquele momento, Zim, que estava à frente da
fila, virou-se para checar e viu Zilum se aproximar da gota.
Zim se desesperou e correu, gritando para que Zilum se afastas-
se, porém, era tarde demais. Zilum foi engolido pela gota d’água e
se afogou, de perninhas para cima, dando seu último suspiro. Zum
se aproximou, triste. Zão chegou e olhou para os demais. Todos se
entreolharam e, subitamente, romperam em gargalhadas.
Diariamente, Zilum fazia a mesma coisa. Só o que mudava era a
posição da bolha de água. Zão então pegou Zilum nos braços e o le-
vou de volta para o Formigueiro. Zim e Zum continuaram a marcha
até a pia e Zão retornou com Zilum ao Formigueiro.
A Rainha já estava à espera deles. Ela conhecia muito bem seus
soldados. Zão pôs Zilum diante da Rainha e os dois fizeram a mes-
ma dança em uníssono, seus corpinhos começaram a brilhar a partir
de suas antenas.
A Energia canalizada percorreu seus corpinhos até as patinhas,
então atravessou o chão e chegou até Zilum, que aos poucos voltou
à vida. Zilum se levantou e saiu correndo, de volta para a fila. A Rai-
nha disse a Zão que dessa vez o acompanhasse de perto. Zão saiu
correndo atrás de Zilum, que partiu em disparada.
Apesar dos perigos e contratempos tudo ia razoavelmente bem.
Até que um homem começou a namorar a dona da casa. Ele não
tolerava a presença das formigas do mesmo modo que sua parceira.
Várias batalhas foram travadas entre o Formigueiro Mágico e aquele
homem, até que um dia o homem chegou a casa dizendo que havia
100
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

encontrado a solução final.


Zim, Zum e Zão ficaram aterrorizados ao perceber que algo ruim
estava prestes a acontecer. O homem trouxera veneno e o espalhou
sobre a pia. Zim, Zum e Zão sabiam do que se tratava e tentaram,
com todas as forças, impedir que outras formigas carregassem o
veneno para dentro do Formigueiro Mágico. Contudo, o veneno era
atraente, elas eram muitas e parte do veneno atingiu o interior do
Formigueiro, causando inúmeras baixas na energia do Formigueiro.
Todos os dias Zim, Zum e Zão se entregavam ao máximo para
tentar controlar as outras formigas, mas elas eram muitas e muito do
veneno continuava a atingir o interior do Formigueiro.
Exaustivamente, dia após dia, eles lutavam e vibravam em unís-
sono para salvar o Formigueiro. Zim, Zum e Zão combateram com
tudo, durante semanas, diariamente, até que conseguiram estabilizar
o Formigueiro Mágico. Mas agora eles estavam com apenas um ter-
ço das formigas vivas e muitos outros corpinhos desfalecidos aguar-
davam para serem revividos pela magia do Formigueiro.
O homem ficou uma fera ao ver que ainda restavam formigas na
pia depois de ter gastado tanto dinheiro com veneno e decidiu que
era hora de sair daquela casa que ele considerou maldita.
Zim, Zum e Zão comemoraram! Foram até a Rainha se reportar
e conversaram sobre a Profecia. Aquele era um sinal de que as coisas
estavam melhorando.
Alguns dias depois Márcia e Oswaldo visitaram a singela casa à
beira do barranco. Oswaldo falava mal das formigas na pia, o ho-
mem dizia que elas estavam com os dias contados. Ele tinha em
mãos um veneno ainda mais potente e atraente que prometia di-
zimar todo o restante do Formigueiro. Zim, Zum e Zão ficaram
tristes e amedrontados com isto.
Alguns dias depois, Márcia e Oswaldo fizeram sua primeira refeição
101
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

na casa. Tomavam café, antes de irem trabalhar. Márcia ao navegar pe-


las redes sociais encontrou um vídeo sobre a indústria da carne. Várias
imagens de animais aprisionados por toda a vida em minúsculas
gaiolas, esperando pela morte, sem nunca ter podido sair de suas
prisões, fadadas à escravidão para alimentar as pessoas. Os olhos de
Márcia se encheram de lágrimas, de alguma forma ela se sensibilizou
com aquelas vidas inocentes.
Oswaldo não percebeu o que aconteceu.
Ele cortou um pedaço do queijo preferido de Márcia e ofereceu
à amada, que recusou. Oswaldo não entendeu muito bem, afinal,
Márcia sempre amou queijo. Contudo, Márcia disse que estava se
sentindo diferente naquele dia e que o queijo não lhe parecia mais
tão apetitoso quanto antes.
Oswaldo foi até a pia. Viu as formigas e fez cara de nojo. Então,
buscou no armário o super veneno e espalhou pelo caminho das
formigas. Zim, Zum e Zão reiniciaram a corrida contra as formigas
pouco astutas. Os três ficaram tristes, concluíram que se enganaram
com o casal.
À noite, Oswaldo e Márcia conversavam na sala. Márcia navegou
através do feed de notícias de uma rede social e se deparou com um
vídeo que mostrava imagens de como as vaquinhas sofriam durante
toda a vida para servir leite e queijo aos humanos. Márcia ficou triste
e conversou com Oswaldo. Revelou-lhe que viraria vegana.
Oswaldo, meio sem entender, levou os pratos para a pia, então
viu as formigas Zim, Zum e Zão, que ficaram felizes ao ouvir que
Márcia decidiu virar vegana.
Oswaldo fez novamente cara de nojo e colocou mais do veneno
na pia. Zim, Zum e Zão não tiveram tempo para comemorar e vol-
taram a lutar contra o mal que afligia as formigas pouco astutas. A
batalha estava muito difícil para o Formigueiro Mágico que estava
102
HISTÓRIAS AO SOL POENTE

quase sem forças. Zão suplicou para a Energia Primordial da Terra


que ele não estivesse errado e que em breve a Profecia se cumprisse,
trazendo a paz finalmente.
Márcia foi da sala para a cozinha e viu as dezenas de formigas
mortas no caminho até o pequeno buraco na parede. Ela enxer-
gou aquela cena como um campo de batalha sangrento e notou que
algumas formigas carregavam outras formigas mortas em direção
ao Formigueiro, o que a deixou emocionada. Era possível ver no
semblante de Márcia que alguma coisa mudara. Como mágica, seus
olhos brilhavam. Ela se sentia ligada àquelas vidas, o que a fez tirar
o veneno das mãos de Oswaldo, que ficou sem entender. Márcia
deu um categórico esporro em Oswaldo, que reclamou, alegando
que não dava para viver assim, com insetos nojentos dentro de casa.
Márcia olhou para as formigas e seus olhos se cruzaram com seis
pequenos pares de olhos mágicos e encantadores. Pela primeira vez
Márcia conseguiu reconhecer Zim, Zum e Zão, que tentavam de-
sesperadamente deter as outras formigas que carregavam o veneno
para dentro do Formigueiro Mágico.
Ela viu que seus minúsculos olhinhos suplicavam por ajuda.
Desse modo, Márcia retirou o veneno do caminho e conversou
com as formigas. E magicamente as formigas pouco astutas a ou-
viram e entenderam. Uma a uma, elas largaram o veneno e, em fila,
começaram a voltar para o Formigueiro. Zim, Zum e Zão se encan-
taram e, naquele instante, perceberam que Márcia poderia realmente
ser o humano da Profecia.
Durante algumas semanas felizes, todos os dias Márcia passou a
chegar em casa antes de Oswaldo. Conversava com as formigas e pe-
dia que elas voltassem para o Formigueiro Mágico, carregando tudo
que podiam, antes que Oswaldo chegasse. Este era o acordo! E o
Formigueiro Mágico conseguiu recuperar toda sua força desde então.
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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Todavia, num certo dia, Márcia não foi trabalhar. Ela parecia aba-
tida. Médicos a visitaram em casa e disseram que ela estava muito
doente. Zim, Zum e Zão ouviram tudo da cozinha e ficaram muito
tristes com a péssima notícia.
Alguns dias depois, Zim, Zum e Zão conversavam sobre o fato
de não verem Márcia há algum tempo, quando ouviram Oswaldo
ao telefone. Zim, Zum e Zão se esforçaram para escutar tudo do
médico, que disse que Márcia tinha pouco tempo de vida.
Zim, Zum e Zão se entreolharam, espantados, e correram de
volta ao Formigueiro para falar com a Rainha sobre a Transferência
de Vida.
A Rainha disse que não poderia permitir que eles se entregassem
pela humana; que não valeria o risco, que era apenas o ciclo da vida e
que a Magia do Formigueiro dependia deles para existir. Zim, Zum e
Zão rebateram, dizendo que Márcia era a humana da Profecia e que
ela poderia libertar todas as formas de vida da escravidão humana.
A Rainha fez sua tréplica, argumentando que eles eram eternos e
que poderiam esperar na certeza de que outros humanos viriam para
cumprir a Profecia.
Apesar da insistência, Zim, Zum e Zão não conseguiram fazer a
Rainha mudar de ideia. Ela era irredutível. Os três pequenos irmãos
saíram cabisbaixo da presença de vossa majestade. Caminharam
pelo corredor, entreolhando-se, tristes. Foi quando ouviram a voz
de Oswaldo na cozinha.
Oswaldo estava com o viva voz do telefone ligado sobre a mesa,
enquanto preparava uma mochila em cima do sofá da sala. Ao tele-
fone, os médicos diziam que aquela visita de amanhã seria a última
vez que Oswaldo veria Márcia.
Os três pequeninos choraram, abraçaram-se e retornaram para o
Formigueiro.
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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Então, na calada da noite, Zão saiu sorrateiramente sozinho, es-


condido, do Formigueiro. Foi até a mochila de Oswaldo sobre o
sofá. Aquela era sua última chance de fazer alguma coisa por Márcia.
Zão procurou um lugar seguro na mochila de Oswaldo e se pre-
parou para dormir. Então, ouviu um barulho e assustou-se. Olhou
para cima e viu Zim e Zum entrando na mochila. Ambos se abra-
çaram, felizes, e todos juntos reafirmaram que aquilo era o melhor
a ser feito. Fariam a transferência de suas vidas para Márcia, sal-
vando-a. Mesmo sabendo que aquilo significaria não voltar para o
Formigueiro.
Seria a última aventura dos três pequeninos irmãos.
Na manhã seguinte, Oswaldo pegou a mochila e o movimento de
sacolejo acordou Zim, Zum e Zão. Oswaldo saiu de casa e o balan-
çar da mochila ocasionava muitos perigos para os três pequeninos,
encolhidos em seu interior.
Eles lutavam para não serem esmagados pelos objetos que sa-
codiam para lá e para cá. Um descuido e poderiam morrer antes
mesmo de chegar até Márcia. Muita tensão e perigo estavam agora
sobre Zim, Zum e Zão.
Eles desviaram de uma gigante caneta que quase esmagou seus
frágeis corpinhos, mas ficaram prensados num canto, entre a parede
da mochila e um caderno. Uma garrafa de água pressionou o cader-
no contra a mochila e Zim, Zum e Zão precisaram dar um jeito de
sair dali, ou seriam esmigalhados. Espremeram-se num canto e esca-
param, segundos antes do caderno se comprimir contra a mochila...
até que tudo ficou quieto.
Do lado de fora, Oswaldo e o médico conversavam sobre des-
ligar os aparelhos de Márcia. Zim, Zum e Zão então sentiram um
arrepio correr em suas oito patinhas e subir até seu peito. Imedia-
tamente começaram uma corrida contra o tempo para chegar até
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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Márcia, antes que o pior acontecesse. Alcançaram o topo da mochila


e pularam nas costas de Oswaldo, que não estava tão perto assim do
leito de Márcia. Os três pequeninos foram engolidos pela gigantesca
distância. Olharam-se e deram as mãos.
Os três juntos começaram uma pequena corrida até o ombro de
Oswaldo e pularam com todas as forças. Oswaldo e o médico con-
versavam sem perceber o heroico esforço dos três pequeninos que
enfrentavam o medo e o perigo para salvar Márcia.
Zim, Zum e Zão percorreram o ar naquele salto que poderia ser
fatal para eles e, consequentemente, para Márcia. Aproximavam-se
muito lentamente do leito. Parecia que o pulo não fora forte o bas-
tante. Fizeram força, tentando se empurrar no ar e estavam quase
passando direto em direção ao chão.
No último instante, as patinhas de Zão agarraram a beirada do
lençol e eles ficaram pendurados. Suspiraram aliviados! Mas a alegria
durou pouco. Oswaldo já estava diante dos aparelhos, pronto para
desligá-los.
Zim, Zum e Zão correram o máximo que puderam, até alcan-
çarem o peito de Márcia. Eles gritaram o seu nome, mas ela estava
imóvel. Então se posicionaram em cima de seu coração de mãos
dadas e se despediram um do outro e do Formigueiro. Fecharam os
olhos, levantaram a cabeça em direção aos céus e começam a vibrar
em uníssono. Neste instante, um pequeno brilho começou a tomar
conta de seus corpos. Um brilho gigante para as minúsculas formi-
gas, mas imperceptível para o médico e Oswaldo que choravam ao
olhar para o rosto pálido de Márcia.
O brilho ganhou uma cor de barro vermelho, começando pelas
anteninhas de Zim, Zum e Zão. Este brilho percorreu seus corpos,
inundando suas cabecinhas de olhos fechados, passando pelo seu
peito e patinhas superiores, percorrendo seus abdomens até suas
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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

patinhas que estavam sobre o coração de Márcia. E aquele brilho


fluiu para dentro do corpo da mulher. Aos poucos, aquela energia
expandiu.
O médico disse para Oswaldo que era chegada a hora de desligar
os aparelhos. Ele caiu em prantos e seus olhos se tornaram um rio
de lágrimas. Os aparelhos se calaram e o quarto do Hospital ficou
em silêncio. Oswaldo era consolado pelo médico.
Um brilho branco se iniciou nas antenas de Zim, Zum e Zão e
foi tomando o lugar do brilho cor de barro vermelho ao fluir pelo
corpinho dos três heróis e aquela energia vital caminhou até o peito
de Márcia, que moveu muito timidamente os dedos.
O brilho branco apagou, lentamente, a partir das antenas de Zim,
Zum e Zão. Eles suplicaram para a Energia Primordial da Terra
que ainda desse tempo de salvar Márcia, à medida que o brilho se
apagava. Zim, Zum e Zão ficaram fracos e começaram a desfalecer.
Quando a última porção de energia vital saiu de seus pequenos
corpos e atingiu o peito de Márcia, milagrosamente ela abriu os
olhos e encontrou, imediatamente, os minúsculos olhinhos de Zim,
Zum e Zão, sobre seu peito. Eles sorriram felizes, cambalearam e
desfaleceram sobre o peito de Márcia. Ela chorou, num misto de
tristeza ao ver seus amiguinhos esmaecidos e alegria por estar de
volta à vida. Márcia colocou a mão sobre os três pequeninos.
Seu choro foi ouvido por Oswaldo que ficou atônito ao notar o
milagre de sua amada esposa acordando bem diante de seus olhos.
Ele se jogou em cima dela, feliz!
Alguns dias depois, Márcia ainda se recuperava em casa. Estava
com um prato com sobras de sua última refeição nas mãos e na
outra o celular. Caminhou da sala para a cozinha, em direção da
pia. Ela falava com as formigas como sempre fez, mas elas não a
obedeciam mais como antes, desde que Zim, Zum e Zão se foram.
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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Márcia insistia, mas nada adiantava.


Triste, colocou o prato sobre a pia e se virou para a sala com o
celular nas mãos, ficando de costas para a pia. Oswaldo chegou à co-
zinha comendo um sanduíche com banana frita no lugar da salsicha.
Ele abraçou Márcia ao perceber que sua amada estava cabisbaixa.
De repente, Oswaldo se espantou com o que viu na pia.
As formigas estavam a andar enfileiradas de volta para o Formi-
gueiro. Ele exibiu um sorriso radiante sobre os ombros de Márcia.
Ela se virou e um sorriso ainda maior encheu seu rosto de alegria,
quando seus olhos se encontraram com seis pequeninos pares de
olhos heroicos que salvaram suas vidas.
Zim, Zum e Zão foram revividos pela magia do Formigueiro,
porque a Humana da Profecia sabia que devia trazer seus corpinhos
de volta para casa.
Márcia fez um vídeo para suas redes sociais, mostrando como
treinar formigas e como respeitar todas as formas de vida. O vídeo
viralizou na internet com milhões de visualizações em pouco tempo.
Assim, iniciou-se o cumprimento da Profecia e Márcia, Oswal-
do, Zim, Zum e Zão e o Formigueiro Mágico viveram felizes para
sempre.

Fim.

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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

Sobre o Autor:
Com sua peculiar criatividade e seu desejo de escrever com emoção,
o autor busca empolgar os leitores com pitorescas e variadas aven-
turas, ao mesmo tempo em que os leva à reflexão acerca de impor-
tantes temas sociais da humanidade. Toda a obra de Tonico Clímaco,
além de encantar e emocionar o leitor, tem o propósito de cumprir a
missão de vida do autor, que, ao se imaginar o herói de sua própria
história, vive o sonho de contribuir para a evolução da Terra através
de sua dedicação à escrita.

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HISTÓRIAS AO SOL POENTE

O texto deste livro foi composto em Adobe


Garamond Pro, em corpo 12/15,7.
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