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REVISÃO: Hermínia Totti e Luis Américo Costa


CAPA, PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO: Laura Daviña e Natalia Zapella
PESQUISA ICONOGRÁFICA: Isabela Mota
ADAPTAÇÃO PARA E-BOOK: Hondana

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

C151c Caldeira, Jorge, 1955-

101 brasileiros que fizeram história [recurso eletrônico] / Jorge Caldeira.


- 1. ed. - Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2016.
recurso digital

Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-85-5608-011-0 (recurso eletrônico)
1. Brasil - Biografia. 2. Livros eletrônicos. I. Título: Cento e um
brasileiros que fizeram história.

16-33583

                                                   
                                                     CDD: 920
                                                   
                                                     CDU: 929

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Para os sertanejos e seus filhos citadinos:
Fonseca, republicanos e professoras da Escola Normal;
Caldeira, tropeiros e amantes do futebol.
Sumário
Créditos
Prefácio
Afonso Ribeiro
Aleixo Garcia
Guaibimpará, depois Catarina
João Ramalho
Brites de Albuquerque
Jerônimo de Albuquerque
Garcia d’Ávila
José de Anchieta
Mem de Sá
Antonio Knivet
Domingos Fernandes Nobre ou Tomacaúna
Diogo Afonso
Felipa de Sousa
Jerônimo de Albuquerque Maranhão
Pedro Teixeira
Albert Eckhout
João Fernandes Vieira, o reinol
André Vidal de Negreiros, o mazombo
Felipe Camarão, ou Poti, o índio
Henrique Dias, o negro
Antônio Raposo Tavares
Antônio Vieira
Salvador Correia de Sá e Benevides
Zumbi dos Palmares
Domingos Afonso Sertão
Gregório de Matos
Padre Guilherme Pompeu de Almeida
Artur de Sá Menezes
Manuel Borba Gato
Manuel Nunes Viana
Xica da Silva
Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera
Ajuricaba
Alexandre de Gusmão
Alexandre Rodrigues Ferreira
Francisco Félix de Souza, o Chachá
Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes
Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho
D. João VI
Carlota Joaquina
José Bonifácio de Andrada e Silva
Sebastiana
D. Pedro I
Carolina Josefa Leopoldina
Domitila de Castro Canto e Melo, marquesa de Santos
Amélia de Leuchtenberg
Frei Joaquim do Amor Divino Caneca
Diogo Antônio Feijó
Eduardo Nogueira Angelim
Anita Garibaldi
Joaquim José de Souza Breves
Paulino José Soares de Souza, visconde do Uruguai
Joaquim José Rodrigues Torres, visconde de Itaboraí
Luís Alves de Lima e Silva, duque de Caxias
D. Pedro II
Irineu Evangelista de Sousa, barão e visconde de Mauá
Luís Gama
Antônio Bento
André Rebouças
Ana Clara Breves de Moraes Haritoff
Eufrásia Teixeira Leite
Machado de Assis
Princesa Isabel
Rui Barbosa
Júlio de Castilhos
Floriano Peixoto
Prudente de Morais
Antônio Conselheiro
Euclides da Cunha
Campos Sales
Augusto Ramos
Jorge Tibiriçá Piratininga
João Pinheiro
Afonso Pena
Alberto Santos Dumont
João Cândido
Oswaldo Cruz
Carlos Chagas
Pixinguinha
Padre Cícero
Cândido Rondon
Francisco Matarazzo
Júlio Mesquita
Tarsila do Amaral
Getúlio Vargas
João Guimarães Rosa
Juscelino Kubitschek
Oscar Niemeyer
Pelé
Tom Jobim
Antônio Ermírio de Moraes
Walther Moreira Salles
Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni
Caetano Veloso
Ernesto Geisel
Mário Juruna
Ulysses Guimarães
Fernando Henrique Cardoso
Ruth Cardoso
Lula
Fernanda Montenegro
Posfácio
Crédito das imagens
Sobre o autor
Sobre a Estação Brasil
BRASIL, MOSTRA TUAS CARAS

Cinco séculos depois, o Brasil continua um mistério — pelo menos


semântico. Se por um lado ainda arde, rubro feito brasa, por outro, refulge
na lenda e na cartografia antigas como Hy Brazil, a terra prometida, ilha
movediça ressonante de sinos sobre o velho mar… O fato é que, como
marujos em meio ao nevoeiro, ninguém sabe ao certo o que Brasil quer
dizer — nem mesmo se é com o S habitual ou com um Z ancestral.
Talvez seja nessa dubiedade que se encontre a gênese do Brasil e seu
duplo — essa espécie de síndrome que justapõe o país real ao país
imaginário. O lugar onde os clichês se despedaçam e no qual o “país de
contrastes” vira o país das contradições, onde a pátria do homem cordial
transborda em discórdia e o suposto caldeirão que mistura todas as cores
e raças mais parece um liquidificador — como se a aquarela do Brasil
fosse um borrão abstrato.
A coleção Brasil 101 quer funcionar como espelho, refletindo não
apenas o país que se vê, mas também a nação que não se enxerga. A série
abre com estes 101 brasileiros que Jorge Caldeira mais do que escolheu,
pinçou para com eles formar um painel tão dinâmico, surpreendente e
multifacetado como o próprio Brasil. Se a lista de personagens o deixar
atônito e um tanto desorientado, não se preocupe: isso é só porque não
sabemos quase nada de nossa história — e o pouco que sabemos não
aconteceu bem do jeito como nos contaram…
Caldeira é o guia ideal para que possamos nos aventurar pelas grandes
veredas desses sertões, pelas vias dos confins, pelas veias abertas. Afinal,
ele é o homem que nos reapresentou Mauá, o empresário do Império,
sujeito maior do que a vida e que a história oficial achou por bem
esquecer. Caldeira também concebeu, editou e publicou a magistral
coleção Formadores do Brasil, resgatando do mesmo injusto
esquecimento os homens que construíram esta nação — desde o
rascunho.
Jorge Caldeira e os demais autores convidados para executar esta série
são os cicerones de uma jornada por um labirinto de imagens — os cacos
de um espelho partido onde o Brasil se reflete aos pedaços, em peças,
canções, filmes, livros e múltiplos personagens desses tantos Brasis…
Brasil mameluco, mulato, mestiço e cafuso. Brasil confuso, dos
cafundós e das caatingas. Brasil Tupi, nascido de ventre indígena e pai
desconhecido. Brasil luso, Brasil Zumbi, sangue escravo vertendo do
lombo — lombo de mula, bestas de carga, carro de boi. Brasil do gado,
povo marcado. Brasil do chicote e da chibata, casa-grande e senzala: raízes
do Brasil.
Brasil da selva e dos Silvas: Xica da Silva, Lula da Silva, da Silva Xavier.
Brasil esquartejado em mil pedaços, como Tiradentes. Brasil, formoso
Aleijadinho, barroco e rococó, antropofágico e macunaímico. Brasil de
meia-tigela mas também Brasil de Frei Caneca. Brasil de Feijó e do feijão;
feijão-tropeiro e arroz de carreteiro. Brasil carroça, Brasil trem-bala
perdida na esquina, crianças no semáforo fazendo sinais que ninguém vê.
Brasil tríplex, Brasil Rolex — fora do tempo e do espaço. Mas também, e
sempre, Hy Brazil, a eterna terra da promissão.
Alguém já disse que o Brasil é o país do futuro — e sempre será… A
piada é boa, embora de certa forma mascare uma realidade ainda mais
perturbadora: a do país que vive num eterno presente sem passado,
sempre a flertar com o futuro… do pretérito. Nas páginas — e nos livros
— que se seguem, você vai encontrar 101 razões para crer que não é difícil
reescrever a história do Brasil.

— Eduardo Bueno
Curador da coleção Brasil 101
Afonso Ribeiro
★?†?

O ESCOLHIDO PARA VIVER UM ENCONTRO HISTÓRICO


No intervalo de duas frotas começa a novidade do convívio entre
povos antes separados — e de histórias que impressionam.

Mil e quinhentos homens, apertados em doze navios, avistam enfim uma


paisagem: matas exuberantes, praias de areia branca, gentes
desconhecidas. Organizando o primeiro desembarque, o capitão da
armada Pedro Álvares Cabral toma uma decisão, registrada pelo escrivão
Pero Vaz de Caminha:
“Mandou um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que chamam
Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras
[comportamentos].”
O escrivão foi para terra acompanhando o degredado. Ambos viram de
perto homens e mulheres; mesmo escrevendo sobre todos, as letras de
Caminha fixam o objeto que mirara sem pudor:
“Andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com
cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas,
tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos,
não tínhamos nenhuma vergonha.”
Ao longo dos dias seguintes, Afonso Ribeiro faz mais que arregalar os
olhos. Desembarca de dia, é bem recebido pelos homens da terra, visita a
aldeia deles — mas de noite é sempre mandado de volta. Conta suas
aventuras do dia a bordo. Ouvindo-as, Pedro Álvares Cabral decide:
“Melhor informação da terra dariam dois homens destes degredados que
aqui deixássem[os].”
Nesse momento é traçado o destino de Afonso Ribeiro e de um
companheiro não nomeado. Ele recebe uma ordem, uma missão: ficar em
terra por obrigação. Mas a visão da paisagem e das pessoas leva outros
marujos a perderem mais que o pudor e se atirarem para terra por
vontade própria, como narra o escrivão:
“Creio, senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes,
que esta noite se saíram desta nau, no esquife, fugidos para terra.”
Quando a esquadra desaparece no horizonte, os quatro marujos
desembarcados começam a empreender, junto com os nativos da terra,
uma mescla de pessoas e destinos no Brasil.
Afonso Ribeiro fica até ser recolhido pela esquadra na qual Américo
Vespúcio vinha como piloto, no início de 1502. Tem agora muitas histórias
para contar a bordo. Histórias tão impressionantes e tão interessantes que,
de novo, se tornam atração entre os marujos.
Américo Vespúcio é mais que navegador: sabe escutar e escrever
histórias, de modo que logo transforma as palavras faladas por Afonso
Ribeiro em relatos escritos, que seriam parte de Mundus Novus, o segundo
best-seller da história da humanidade, depois da Bíblia.
Ninguém sabe se Afonso Ribeiro conhecia a escrita. Mas, pela palavra
escrita que os nativos desconheciam, a história foi passada adiante. Sua
experiência de vida entre os Tupi foi a primeira numa terra que passa a ter
novo destino pelos contatos entre povos diferentes.
Aleixo Garcia
★ ? † Bacia do Prata, c. 1525

PARENTES, PRATA E TRAVESSIA DO CONTINENTE


Líder de um grupo que vai de Cananeia até o Peru atrás de
guerreiros ancestrais e prata vive uma história que impressiona
reis e marca a vida na terra.

Nascido em Portugal, já na segunda década do século XVI é um dos vários


europeus que vivem na terra do modo possível: casados com índias Tupi
da região entre Cananeia e Iguape (onde hoje estão as cidades de mesmo
nome em São Paulo).
Desse grupo faziam parte figuras como o lendário Bacharel de
Cananeia. A partir de 1516 eles contatam, na ilha de Santa Catarina,
Henrique Montes, Gonçalo da Costa e Melquior Ramires, sobreviventes da
expedição espanhola de Juan Díaz de Solis, destroçada depois de navegar
por terras interiores subindo o rio da Prata.
Os recém-chegados contam o que viveram. Os ouvintes somam os
dados com casos ouvidos dos parentes de suas mulheres. As histórias das
duas fontes coincidem num ponto: relatos de um império interior que
domina a metalurgia de um metal branco.
O vislumbre de riqueza dos europeus casa com uma ambição mítica
dos parentes Tupi: conhecer a morada dos deuses na qual viviam seus
ancestrais corajosos, que ficaria na mesma direção do império do Rei
Branco.
As duas histórias se juntam; uma expedição é organizada. Em algum
momento próximo a 1524, Aleixo Garcia e Francisco Pacheco partem com
os parentes de suas mulheres para as terras do Rei Branco. Sobem a serra,
chegam às nascentes do rio Iguaçu (no atual município de Curitiba),
descem o rio até a foz, sobem o rio Paraguai até a região da atual
Corumbá, em Mato Grosso. Dali, sempre em território dominado por
aliados Tupi-Guarani, atravessam o Chaco e vão dar no atual Peru, na
região de Chuquisaca.
Chegam à fronteira do Império Inca com seus tesouros de prata. Mas,
como ali terminam os domínios dos Tupi e Guarani, a travessia deixa de
ser pacífica. Há combates, é preciso voltar — mas o grupo vindo do litoral
consegue arrancar amostras de prata.
Aleixo Garcia morre na viagem de retorno, possivelmente em algum
ponto do atual território do Paraguai. Francisco Pacheco sobrevive e volta
para Cananeia. Traz amostras de prata e as miraculosas histórias de seu
amigo e comandante da expedição. Os sobreviventes de Santa Catarina
levam parte delas para a Europa.
A aventura é tão impressionante que esses sobreviventes vão sendo
requisitados por ouvintes cada vez mais importantes — o rei de Portugal e
o rei da Espanha escutam enquanto olham para as peças que vão sendo
apresentadas. Mandam registrar a história da aventura de Aleixo Garcia e
enviam expedições navais com mais gente para correr atrás da prata.
Ambições pessoais e ambições de Estado, prosa de degradados e crônica
de reis se misturaram depressa no afã da riqueza vista no interior da nova
terra.
Guaibimpará, depois Catarina
★ ? † 1583

MULHER TUPINAMBÁ, MULHER BRASILEIRA

Adriana Varejão
Detalhe de Kindred Spirits IV, 2015 óleo sobre tela
Políptico composto por 4 retratos
52 x 45,5 cm cada
Foto: Jaime Acioli
Na primeira parte de sua vida com Caramuru ela garante, nos
padrões da cultura Tupi, uma aliança poligâmica de negócios com
europeus.

Tupinambá, filha do chefe Taparica, criada e educada segundo essa


condição em seu povo.
Cada uma das palavras da frase acima ganha sentido próprio quando
analisada por padrões antropológicos — uma necessidade imperiosa para
falar de quem não conhece a escrita.
“Tupinambá” indica o pertencimento a um grande grupo dos povos
Tupi-Guarani, com seus traços gerais de organização.
“Filha”, nessa cultura comum, quer dizer algo bem diferente daquilo
que significa no Ocidente. Para os Tupi-Guarani há somente um genitor, o
pai; a mãe é considerada apenas um veículo de geração da vida.
Sendo assim, “família” também tem outro significado. Apenas um
exemplo revela o tamanho da diferença: filhos de uma irmã do pai não são
sequer considerados parentes — e com eles uma filha mulher desse pai
pode casar; já os filhos de um irmão dele são considerados irmãos dessa
filha mulher — e o casamento, incestuoso. No modo ocidental de
conceber família, seriam ambos primos.
“Chefe” também significa coisa própria: um cargo eletivo. Exceto no
caso de guerra, ninguém lhe deve obediência. Sua grande função é unir
pessoas conversando, seja dentro do grupo na aldeia, seja com os grupos
ao redor.
“Criada” indica crescer numa casa com suas regras. Na hora de casar, o
homem dos grupos Tupi-Guarani vai morar no local de residência da
mulher. Assim as pessoas fixas da casa são as mulheres. Na casa da
menina Guaibimpará vivem, de forma permanente, sua avó materna, sua
mãe, suas irmãs e suas eventuais sobrinhas — toda a linhagem feminina
de parentes. Os homens do grupo são afins sem relação de sangue
obrigatória entre si.
“Educada”, para uma mulher Tupi-Guarani, significa aprender, entre
outras coisas, a saber viver com um marido vindo de fora, que possa
enriquecer a vida do grupo de mulheres permanentes e homens
passageiros. E “casamento” significa um ato de união consensual e
temporária, que pode ser desfeito a qualquer momento.
A “condição” de filha de chefe impõe um aprendizado diplomático
extra: ela, preferencialmente, é oferecida aos homens que, a julgamento
do pai, permitam formar alianças para fortalecer o grupo. Em seu caso, o
marido aceito é Diogo Álvares Correia, náufrago acolhido por volta da
segunda década do século XVI.
O marido enriquece o grupo a partir de negócios com europeus. A
troca mais comum é de produtos de ferro (os nativos desconheciam a
metalurgia, e assim tais objetos tinham muito valor) por pau-brasil
(abundante na terra, inexistente na Europa e por isso com alto valor para
navegantes).
A escala dos negócios logo se torna maior que a capacidade de uma
única aldeia suprir a demanda. O método de ampliação é o usual para os
Tupi-Guarani: fazer aliança com aldeias próximas — sagrada por um
casamento no qual uma filha do chefe aliado, como exceção da regra, é
mandada para ser segunda mulher do fornecedor de bens. A poligamia
não só é aceita como bem-vista nesse caso. Cabe à filha do chefe que faz
novas alianças organizar diplomaticamente o convívio das novas mulheres
de seu marido.

Fundada Salvador, Catarina Paraguaçu se torna a grande dama de


uma sociedade afluente e comanda uma rede de casamentos
católicos.
Os negócios progridem até o ponto em que Diogo Álvares Correia
pode levar suas mulheres para conhecer a França, no navio comandado
por Jacques Cartier (futuro descobridor do Canadá). Em Rouen, no dia 30
de julho de 1528, a mulher do comandante, Catherine des Granches, que é
nobre, torna-se madrinha de batismo da visitante, registrada na certidão
como Catarina do Brasil. Na volta da viagem ela adota uma nova
denominação: Catarina Paraguaçu, esposa do marido apelidado
Caramuru.
Catarina não conhece apenas uma nova cultura na Europa — tão
distante de seu povo de origem como o Brasil dos europeus. Aprende a
manejar os conceitos de família e negócios dos ocidentais.
Casa com Caramuru segundo o rito católico. Ganha os atributos
culturais que os europeus davam ao ato: única mulher oficial, herdeira.
Mas não esquece o sentido do casamento entre seus parentes: as alianças
e negócios com eles continuam — o que sugere um marido agora com
concubinas — e mostram sua força num momento delicado.
Em 1536 aparece na terra o português Francisco Pereira Coutinho com
uma carta do rei de Portugal que dizia ser ele o senhor de tudo que por ali
houvesse. Reza a lenda que Taparica teria comandado a expulsão dele da
terra. Mas tal lenda, que inocenta o casal no episódio, pode ter sido criada
mais tarde.
Em 1548 o próprio rei D. João III mostra ter entendido quem mandava
por ali — e se alia: pede a Caramuru apoio para instalar o governo-geral
em sua área de domínio. O governador Tomé de Sousa vem instruído para
fazer o possível pelo casal capaz de garantir o plano — e logo nobilita os
filhos homens, tornando-os importantes pela lógica ocidental.
Mas o casal age também com outra lógica. Presta atenção nos
casamentos das filhas mulheres, aquelas que trazem homens de fora e
promovem a ampliação da casa, segundo o conceito Tupi. Todas se unem
a maridos indicados pelo governador, o chefe representante de uma nova
aliança.
Caramuru morre em 1557. Catarina herda dinheiro e poderes. Mulher
rica e respeitada, sua capacidade de controlar a sociedade ao redor com a
diplomacia aprendida de seu povo passa pelos negócios de seus genros e
chega até a Igreja, que ajuda com o emprego de seu patrimônio no
financiamento de obras sociais.
Morre em 1583 como figura central da já afluente sociedade baiana.
Mas o grande empreendimento dessa mulher Tupinambá para chegar até
esse lugar proeminente é atribuído por historiadores a méritos apenas
ocidentais. Até que os modos de ser Tupinambá fossem estudados,
apagou-se da história o papel essencial das mulheres nativas na
construção de uma sociedade nova.
Adriana Varejão
Autorretrato indígena II a partir de Codina, 2012 óleo sobre tela
68 x 60 cm
Foto: Vicente de Mello
João Ramalho
★ Vizeu, Portugal, c. 1493 † São Paulo, c. 1580

UM PORTUGUÊS QUE PREFERIU VIVER COMO ÍNDIO


Mesmo recebendo título de capitão e sendo eleito vereador, gosta
mesmo é de andar nu pelos matos e se entreter com suas trinta
mulheres.

Filho de João Vieira Maldonado e Catarina Afonso de Balbode, ainda jovem


mete-se em aventuras. Deixando sua terra natal e a mulher, Catarina
Fernandes, segue para o Brasil em 1512. Após naufragar no litoral de São
Vicente, escapa dos destinos reservados pelos Tupi aos mais fracos (a
escravidão) ou aos muito fortes (o sacrifício antropofágico) e acaba casado
com Bartira, filha do chefe Tibiriçá.
Intermediário de negócios com os europeus que aportam na região,
junta riqueza nos moldes da sociedade Tupi, na qual o sucesso pessoal se
mede pelas alianças matrimoniais. Casa com trinta mulheres vindas de
outros grupos — e tem dezenas de filhos e filhas. A multiplicidade
significa também comando sobre uma aliança militar, com a qual passa ao
negócio das trocas de ferro por escravos feitos em guerras; como não há
pau-brasil na região, os navios embarcam essa “mercadoria”.
Em 1532, Martim Afonso de Sousa aparece em seus domínios com
uma carta escrita por D. João III que o nomeava autoridade máxima para
dirigir a vida do lugar. Em vez de brigar com João Ramalho pelo poder e
ser expulso, o navegador se acerta depressa: todos os homens que
desembarcam casam com mulheres indicadas pelo morador; instalam São
Vicente, a primeira vila do Brasil, pelo ato de eleger vereadores — ato
seguido até hoje.
Assim que os negócios locais começam a prosperar, João Ramalho
muda-se para o interior — e os outros o seguem. Em 1553 a taba onde vive
é transformada na vila de Santo André e ele em vereador. Com tal
autoridade comanda arranjos para a instalação da primeira missão
jesuítica no interior do Brasil, numa igrejinha chamada São Paulo.
Protegidos por João Ramalho, os padres são dos primeiros europeus a
sobreviver na terra sem casar com nativas — mas em suas cartas pessoais
não escondem seu horror com o modo de vida do protetor polígamo.
Cada parte, a seu modo rude, convive com a outra naquela que era então a
única vila no interior, no sertão.
Em 1560 muitos moradores da vila mudam-se para perto do colégio, e
a povoação passa a se chamar São Paulo. Em 1562 o vereador João
Ramalho comanda a defesa militar do local, atacado por aliados dos
franceses do Rio de Janeiro. Em 1564 recusa outro mandato e vai ainda
mais para o sertão, nas nascentes do rio Tietê, onde pode andar nu e
entreter-se com suas mulheres.
Enquanto suas filhas e netas comandam as famílias mais importantes
de São Vicente e São Paulo, o octogenário João Ramalho faz suas
caminhadas pelas matas todas as manhãs, passa o dia na taba. Morre com
quase 90 anos e é enterrado segundo os ritos da cultura que adotou.
Brites de Albuquerque
★ Portugal, c. 1517 † Olinda, 1584

CAPITOA E GOVERNADORA

Aristocrata e alfabetizada, tem filhos numa choupana em


Pernambuco antes de comandar o estabelecimento mais rico do
Brasil.
Nasce nobre, filha de Lopo de Albuquerque e Leonor Lopes, pajens reais. É
uma das raras mulheres da época a ser alfabetizada e dominar a escrita.
Adolescente, frequenta o Paço Real em Lisboa e ali conhece seu futuro
marido: Duarte Coelho, veterano embaixador na Índia e na Tailândia. Em
1533 os dois se casam e, dois anos depois, partem para Pernambuco,
capitania doada pelo rei D. João III.
Desembarcam onde havia uma feitoria: rigorosamente, uma taba
habitada por europeus casados com nativas. Brites, uma das raríssimas
mulheres europeias a vir para as novas terras, se adapta: vai morar numa
choupana de pau a pique, onde nascem e vão sendo criados os filhos do
casal.
Depois de dezoito anos muito movimentados, Duarte Coelho e Brites
de Albuquerque não apenas consolidam o poder político local como se
transformam em pessoas ricas, graças à produção dos engenhos de açúcar
que constroem — e às rendas dos demais engenhos da região recebidas
como impostos pagos ao donatário.
Em 1553 o casal toma uma decisão inusitada: Duarte Coelho volta para
Portugal levando os filhos para apresentar ao rei e estudar; Brites de
Albuquerque fica em Olinda, assumindo os poderes de governo
reservados ao donatário.
O marido morre em 1554, de modo que Brites torna-se a autoridade
máxima de Pernambuco. Ganha a alcunha de “Capitoa”. Fica conhecida
pela sabedoria com que escreve ordens, concede sesmarias, distribui a
autoridade. Sob sua direção, Pernambuco acaba sendo uma das raras
capitanias brasileiras em que o poder do donatário é exercido em sua
plenitude — entre os atos da capitoa estavam declarar guerras ou
enfrentar militarmente revoltas.
Mesmo quando os filhos retornam ao Brasil, a partir de 1560, ela
mantém a autoridade, apesar de transferi-la formalmente nos intervalos
nos quais eles estão na terra. Mas, como vão e vêm, a administração do
cotidiano fica sempre nas mãos de Brites. Sob sua gestão, Pernambuco
torna-se a mais próspera ocupação brasileira: os engenhos se multiplicam,
a produção do açúcar é crescente, o comércio vai transformando Olinda
numa vila na qual desfilam pessoas com roupas caras e fumaças de
nobreza.
Sobrevive à dor da queda de Alcácer-Quibir, em 1578, na qual dois de
seus filhos desaparecem, ao lado do rei D. Sebastião, no combate que pôs
fim à independência de Portugal.
Morre em 1584 em sua casa em Olinda, como autoridade respeitada,
de vida casta, figura de talhe nobre e europeu, pouco antes de seu irmão,
que esteve a seu lado todo o tempo nas muitas vicissitudes da composição
de uma nova sociedade — um nobre europeu de origem, mas não
exatamente tão casto quanto sua irmã governante.
Jerônimo de Albuquerque
★ Lisboa, Portugal, c. 1510 † Olinda, 1584

O ADÃO PERNAMBUCANO

Até hoje, os genealogistas tentam contar o número de filhos que


ele teve com inúmeras índias, africanas e europeias.

Irmão de Brites de Albuquerque, parte com ela e seu marido Duarte


Coelho para Pernambuco. Os primeiros tempos são muito difíceis: na
feitoria existente na área da capitania vivem europeus de diversas origens
(entre os quais muitos franceses); eles tinham criado alianças com os
nativos, de modo que não foi exatamente fácil arranjar espaço para o
grupo que chegava.
Duarte Coelho, porém, tem vantagens: é rico a ponto de trazer um
grupo grande de pessoas por sua conta; tem acesso a financiamento
europeu, de modo que pode pagar salários para artesãos profissionais e
até se dar ao luxo de importar escravos africanos. Mas, para manter tudo,
precisa desesperadamente de produtos dos nativos.
Cria-se, de imediato, uma disputa feroz por alianças com os ocupantes
da feitoria — e Jerônimo de Albuquerque desempenha um papel
fundamental nelas. Como é nobre, historiadores fazem descrições
eufemísticas de seus casamentos poligâmicos, como esta do Frei Vicente
do Salvador: “por sua brandura e condição, assim como por ter muitos
filhos das filhas dos principais [chefes], era tratado com respeito”.
Jerônimo não leva uma vida exatamente branda. Comanda seus aliados
em guerras; numa delas toma uma flechada num olho, fica cego dele e
ganha o apelido de “O Torto”. Desses combates resulta a expulsão dos
franceses, na qual o caolho emprega métodos pesados como o de reunir
chefes de muitas tribos para uma festa, aprisionar alguns e propor aliança
e tratar outros com métodos descritos sem eufemismo pelo padre-
narrador:
“A uns mandou pôr em boca de bombardas e mandou dispará-las à vista de
todos, para que os vissem voar em pedaços; outros entregou aos chefes aliados,
que os mataram no terreiro e comeram.”
Como parte desses procedimentos de tempos rudes, Jerônimo sai das
guerras de domínio casado como Muira-Ubi, Tabajara depois batizada
como Maria do Espírito Santo Arcoverde. Tem uma dezena de filhos com
ela e mais outros tantos com filhas de chefes.
Em 1562, quando tem 52 anos, recebe uma carta da rainha Catarina de
Portugal com ordens taxativas:
“Porquanto nos consta estares vivendo nessa conquista nova a lei de
Moisés, com trezentas concubinas, mau exemplo para um povo novo, vos
ordeno casais com uma filha de D. Cristóvão de Melo que vai a meu serviço à
Bahia.”
Súdito obediente, casa-se com Felipa de Melo — com quem tem uma
dúzia de filhos. Também inaugura uma nova forma de miscigenação com
escravas africanas.
Deixa um problema para historiadores: saber o número exato de seus
filhos — há estimativas de até 36 reconhecidos. Mas o apelido é unânime:
O Adão Pernambucano.
Garcia d’Ávila
★ São Pedro de Rates, Portugal, 1528 † Salvador, 1609

GADO E SERTÃO

Constrói uma rede que mistura alianças com nativos, expansão da


pecuária com gado europeu e transforma a produção indígena em
mercadoria.

Chega ao Brasil em 1549, juntamente com o primeiro governador-geral,


Tomé de Sousa. A partir de alguns indícios, historiadores sugerem que
talvez fosse filho bastardo dele. Mas o fato é que, logo depois de sua
chegada, ganha um posto oficial que lhe permite arrecadar impostos e
recebe importantes concessões de terras.
Garcia d’Ávila demora muito pouco tempo para casar — ao modo Tupi,
já que tinha mulher portuguesa — com algumas filhas de chefes da região
ao norte de Salvador. Resolve levar gado para as terras dos parentes e
consegue transformar os aliados em vaqueiros. Além disso, em vez de
plantar cana e construir engenhos, investe no comércio, transformando
em mercadorias os produtos tradicionais da dieta e do artesanato Tupi:
farinhas, algodão, madeiras, frutas.
A combinação revela-se rentável. Em pouco tempo é um dos homens
mais ricos da cidade. Ao contrário dos plantadores de cana ou senhores de
engenho, expande a fortuna empregando o gado como instrumento de
novas alianças tribais, comércio e conquista: fornece novilhos para aliados
criarem, fica com parte das reses criadas, aumenta os fluxos comerciais
dos produtos tradicionais.
Já a partir de 1551, quando tais negócios apenas engatinham, começa a
construção da peculiar sede de seus empreendimentos: a Casa da Torre,
palácio de pedra e alvenaria que mistura as funções de depósito, fortaleza,
observatório e capela. Em torno dela ficam as aldeias de seus parentes
Tupi, aos poucos transformadas em sede da milícia de guerra permanente
para a expansão de seus domínios.
Vive ali com a mulher reinol e as filhas de chefes aliados com as quais
se casa. Uma delas, batizada Francisca Rodrigues, foi mãe de Isabel d’Ávila,
nascida em 1553; outra, chamada Catarina Rodrigues, era mãe de João
d’Ávila, apelidado João Homem. Já com Mécia Rodrigues, a mulher com
quem se casara no rito católico, não teve filhos.
Isabel casou-se, no início da década de 1570, com Diogo Dias, filho de
uma filha de Catarina Paraguaçu — um indicativo de que o rápido
comando de grandes alianças militares nativas poderia ser fruto de
diplomacia feminina com parentes Tupinambá, num favor agora
retribuído. O casamento coloca o noivo na família mais rica de Salvador.
Em meio a idas e vindas, intrigas familiares que duraram décadas e a
morte de João Homem, o fato é que o neto de Garcia nascido desse
casamento, Francisco Dias d’Ávila, acaba sendo escolhido pelo avô como
herdeiro. Para lhe deixar a totalidade dos bens, o empresário luta contra a
mulher legítima. Quando morre, em 1609, o neto ganha o comando de
uma aliança que produz guerras e gado — além de fortunas em dinheiro.
José de Anchieta
★ San Cristóbal de La Laguna, Espanha, 1534 † Aldeia de Reritiba, 1597

TUPI CATÓLICOS, ÍNDIOS LIVRES


Depois de observar a cultura Tupi-Guarani, estabelece um modelo
de conversão religiosa e liberdade que marca a política do
governo-geral.

Desembarca no Brasil com 19 anos, ainda noviço da Companhia de Jesus.


É mandado diretamente para as terras de Santo André, onde a ordem
tinha acabado de fundar sua primeira instalação no interior, graças à ajuda
de João Ramalho.
Desde cedo revela aquelas que seriam suas maiores capacidades:
observar, ouvir e apreender. Em pouco tempo domina a língua geral Tupi
e deixa de depender de intérpretes. Dialoga e logo adquire um grande
conhecimento dessa cultura. Visita aldeias, observa hábitos, destrincha
toda a lógica do sistema de parentesco e aliança que estava na base da
cultura Tupi — de um modo como apenas antropólogos treinados fariam
séculos mais tarde.
Com tanto conhecimento, em vez de insistir nos modos de sua cultura
para o catecismo, tenta fórmulas mais adaptadas de conversão. Passa a
pregar o cristianismo cantando o Evangelho em língua nativa à noite,
como os pajés cantavam a vida dos deuses e espíritos — já que essa era a
forma única da rica religião dos grupos, que não realizavam cultos; escreve
peças com temas católicos para serem apresentadas nas festas pelas
crianças.
Na via inversa, emprega seus conhecimentos e cria um projeto de
conversão inteligível pela Igreja. Convence os superiores a obter do papa
uma licença para que no Brasil se casassem primos cruzados — o
casamento mais estável nos grupos, mas proibido por Roma. Ajuda a
conceber o modelo do aldeamento, no qual uma espécie de vila de
convertidos gravitaria em torno de um templo.
Uma consideração inusitada para o tempo funda todo o plano: os
índios devem ser tidos como pessoas dotadas de direitos universais de
liberdade e sua escravidão, proibida. A Companhia de Jesus adota o
modelo — e emprega sua influência para defendê-lo. Convence o
monarca a decretar a liberdade.
A partir do governo Mem de Sá a opção do aldeamento passa a ser
política de Estado. As leis abrem guerras diretas com moradores que se
aliam a índios. Mas as reclamações nem sequer abalam o projeto
governamental, mesmo com os conflitos crônicos que gera.
Ao longo de toda a gestão do governador o padre Anchieta participa
ativamente de cada aspecto de sua administração — inclusive das guerras
contra as alianças entre franceses e Tupi dirigidas pelo governo.
A partir de 1577 é promovido a superior dos jesuítas no Brasil. Exerce o
cargo ao longo de dez anos, ao fim dos quais pede para voltar a ser
missionário em aldeias. Em 1595 publica a primeira gramática da língua
geral Tupi, passo fundamental na compreensão dessa cultura no Ocidente.
Morre em 1597 num aldeamento.
É declarado santo católico em 2014.
Mem de Sá
★ Coimbra, Portugal, 1500 † Salvador, 1572

GOVERNO-GERAL E GUERRA DE ESTADO


Incentiva a importação de escravos, dificulta o emprego do
trabalho indígena e forma exércitos nativos para transformar
alianças locais em aliança geral.

Num tempo em que padres católicos ainda podiam casar, Mem de Sá era
filho do cônego da catedral de Coimbra — pai também, num casamento
anterior com outra mulher, do jurista e poeta Sá de Miranda, um dos
maiores literatos portugueses de seu tempo. A fama do irmão ajuda a abrir
portas na corte e em torno dela faz sua carreira.
Funcionário da alta burocracia, ao longo da carreira é juiz de instâncias
superiores, legislador, administrador. Tem já 58 anos de idade — bem
mais que a média de vida da época — quando é designado governador-
geral do Brasil. Em 1558 deixa Portugal pela primeira vez e desembarca em
Salvador. Antes de tomar posse interna-se no convento dos jesuítas para
um retiro espiritual. Sai de lá com um plano de ação comum a ambos.
Uma das primeiras medidas, em 1559, é a modificação de tarifas
alfandegárias: reduz em 40% a alíquota para a entrada de escravos
africanos. A tarifa menor incentiva a circulação maior da mercadoria
humana — numa economia em que as receitas do governo dependiam
das taxações alfandegárias sobre mercadorias transportadas entre
continentes de navio. Ganham também aqueles que passam a pagar
açúcar com escravos, pois precisam desembolsar menos dinheiro que
antes, quando pagavam a totalidade do valor na compra da produção feita
por indígenas. Perdem os produtores que empregam mão de obra nativa.
Essa lógica estava por trás do que viria a seguir: as leis que implantam
a política de liberdade para os índios e o instituto dos aldeamentos
transferem parte do domínio sobre nativos e o produto de seu trabalho
para os jesuítas — e para o governo que legisla. Aumenta o poder do
governo à custa dos moradores.
Mem de Sá emprega o poder do governo-geral para iniciar uma nova
política militar. Em 1560 reúne, pela primeira vez sob comando do
governo-geral, tropas de nativos para transformar as guerras tribais em
conflitos nacionais.
Forma e financia um exército de Tupi aliados na Bahia e no Espírito
Santo para atacar um estabelecimento francês na baía da Guanabara. A
expulsão do grupo oficial de comando foi rápida. Mas a ela segue-se uma
revolta dos Tamoio (esse o nome dado aos Tupi da região aliados aos
franceses). O conflito se generaliza, e o governador arregimenta tropas de
índios por todo o espaço da aliança entre Tupi e portugueses para lutar
contra seus aparentados.
No comando delas, em 1565, Estácio de Sá (sobrinho do governador)
ataca e expulsa os Tamoio da Guanabara. Funda a vila de São Sebastião do
Rio de Janeiro. A aliança entre portugueses e Tupi passa a ser a única
relevante no Sul do Brasil. Mem de Sá morre ainda no cargo, no qual
serviu por quase 15 anos.
Antonio Knivet
★?†?

INGLÊS, ESCRAVO E CARAÍBA


Quarenta anos depois da expulsão dos Tamoio do Rio de Janeiro,
ele encontra sobreviventes da antiga aliança e é visto como
profeta.

Membro da expedição de Thomas Cavendish, pirata inglês, é capturado


em combate em Santos no ano de 1593. Ruivo e barbudo, torna-se escravo
de Martim Correia de Sá, morador no Rio de Janeiro. Mostra-se um cativo
rebelde: quando pode, tenta escapar. Numa das tentativas chega até
Angola, mas é recapturado e mandado de volta para seu senhor.
Na virada para o século XVII Martim de Sá o envia numa expedição
que parte do Rio de Janeiro em direção a oeste. Depois de cerca de vinte
dias de andanças, o grupo apresenta-se numa aldeia. Quatorze dos
europeus, interrogados, dizem ser portugueses; Knivet se identifica como
francês. Terminado o interrogatório, o primeiro português é
imediatamente morto, trinchado, cozido e devorado num banquete que
dura três dias. De festa em festa são todos mortos, até sobrar apenas o
“francês”. Então um captor lhe diz:
“Nada receies pois teus antepassados foram nossos amigos, e nós amigos
deles. Os portugueses nos fazem escravos, nós os tratamos assim.”
Nos meses seguintes ele perambula com o grupo. Um dia, sentado nu
na beira de um riacho, “um velho índio principal” lhe diz:
“Foi para nós um tempo bom aquele do comércio com franceses. Agora não
temos canivetes nem machadinhas, vivemos em penúria.”
Fazia então cerca de 40 anos que os franceses tinham sido expulsos da
Guanabara — mas a aliança ainda estava viva na memória dos grupos
compelidos para o interior. Percebendo isso, Knivet diz que pode levar
todos até uma terra na qual a antiga fartura se restabeleceria. O resultado
da proposta o surpreende:
“Na manhã seguinte apresentaram-se vinte chefes na taba onde eu dormia,
perguntando se eu tinha certeza de chegar a um local em que poderiam achar
navios franceses. Disse estar seguro que sim e que seria um lugar junto do mar,
com abundância de tudo.”
Suas palavras foram entendidas como aquelas de um caraíba, grande
profeta que tem intimidade com os deuses e recebe deles as indicações do
caminho que leva à Terra Sem Mal, um paraíso de fartura que faz parte da
tradição mítica Tupi. Ouvido como tal, sua vida mudou:
“Foram os anciãos levar a nova a seus povos, e todos desejaram conhecer o
mar. Assim resolvido aprontamos as provisões e 30 mil partimos de nossas
moradias.”
Chefiado pelo caraíba ruivo, o grupo atravessa o continente pelo
interior em sua marcha. Infelizmente vão dar no litoral, exatamente no
Porto dos Patos, em Santa Catarina, um centro de tráfico português.
Todos são capturados como escravos, inclusive Knivet, mais uma vez
devolvido a seu senhor. Consegue um dia escapar e escreve suas
memórias, que são publicadas na Inglaterra.
Domingos Fernandes Nobre ou
Tomacaúna
★ Pernambuco, c. 1546 † ?

OS HOMENS E OS DEUSES SE FUNDEM


As pessoas comuns — seja nativos, seja europeus — criam novas
formas sincréticas de vida espiritual — para horror da ortodoxia.

Filho de um pedreiro nascido em Portugal e de uma índia, casado com


mulher branca, torna-se desde jovem um comandante de expedições de
apresamento de nativos. O que se sabe de sua vida se deve ao fato de ter
sido preso em 1591 pela Inquisição — que, entre outras coisas, estava atrás
de desvios da fé.
Como se pode ver pelos trechos de sua confissão citados a seguir, já no
final do século XVI a mistura com costumes Tupi, especialmente os
religiosos, estava sendo enquadrada pelo governo como heresia.
“Disse que da idade de 18 anos até a idade de 36 anos viveu como homem
do gentio, não rezando nem se encomendando a Deus, e que sua vida no dito
tempo foi mais de gentio do que de cristão (…).”
“Confessou que haverá 20 anos, pouco mais ou menos, quando foi ao
sertão de Porto Seguro na companhia de Antônio Dias Adorno, na conquista do
ouro, e no dito sertão ele usou dos usos e costumes dos gentios, tingindo-se
pelas pernas com uma tinta chamada urucum e outra jenipapo, e empenando-
se a cabeça de penas, e tangendo os pandeiros dos gentios, que são uns cabaços
com pedras dentro, e tangendo seus instrumentos (…).”
“Há quinze anos (…) no dito sertão lhe deram os gentios suas filhas gentias
por mulheres e tinha duas ou três como qualquer gentio e bebia com eles o seu
vinho e fumava o seu fumo e bailava e tangia e cantava com eles e andava nu
como eles, as quais coisas todas fazia em descrédito de Deus porque os gentios,
vendo-o fazer aquelas ditas coisas, o tinham por gentio e o chamavam de
sobrinho (…).”
Mas os inquisidores estavam mesmo interessados numa seita
chamada Santidade, que reunia adeptos no sertão para um culto peculiar:
“Confessou que há cinco anos se levantou uma erronia chamada Santidade,
e tinham um gentio que chamavam papa, o qual se dizia ser Deus, e a outros
chamavam santos, e uma gentia chamavam Mãe de Deus, e faziam entre si
batismos com candeias acesas, lançando água pela cabeça dos batizandos, os
quais batismos fazia o dito papa, que se chamava Antônio e era dos gentios do
Brasil e se criou em casa dos padres da Companhia de Jesus no tempo em que
eles tinham aldeias em Tinharé, na capitania de Ilhéus (…)”.
“E ele confessante adorou o dito papa e fez também pranto ao dito papa
segundo o costume gentílico, e saltou e festejou com ele, e bebeu fumo com ele,
o qual fumo os seguidores da dita abusão chamavam sagrado, e consentiu que
adorassem a ele confessante e o chamassem de São Luiz.”
Arrancando dezenas de confissões como essa os inquisidores
processaram os antigos alunos do colégio — mas deixaram registrados
nos processos a forte dose de mistura cultural e um dos primeiros
sincretismos religiosos da nova terra.
SEXUALIDADES ALTERNATIVAS
Diogo Afonso
★ Porto Seguro, c. 1575 † ?

Entre os sincretismos da vida na nova terra estava a relativa tolerância com


sexualidades alternativas — que também passaram a ser enquadradas
como desvios. Em 1591, a Inquisição na Bahia arrancou como confissão o
seguinte relato do caso de amor de Diogo Afonso:
“Sendo ele da idade de quinze anos ou pouco mais ou menos, veio a ter
amizade com Fernão do Campo, que era mais velho que ele um ano, e por
serem vizinhos da mesma rua tinham entre si muita comunicação e chegaram a
cometer o pecado nefando da sodomia. (…) E o dito pecado, assim
alternadamente, muitas vezes, em diversos tempos e diferentes lugares, ora em
casa, ora nos matos, ora em ribeiras cometeram, e nesta amizade e
conversação torpe duraram por espaço de um ano pouco mais ou menos, tendo
os ditos ajuntamentos sodomíticos consumadamente, de três em três dias, e de
dois em dois dias, e de semana em semana, às vezes um dia duas vezes, de
maneira que o número certo não é lembrado de quantas vezes cometeram o
dito ajuntamento carnal, mas foram muitas e também muitas vezes ajuntavam
suas naturas um defronte do outro.”
 
Felipa de Sousa
★ Tavira, Portugal, 1556 † Brasil, c. 1600

Foi objeto de duas confissões. Maria Lourenço, casada, declarou:


“Estando ela confessante em uma roça, foi ter com ela Felipa de Souza, e
lhe começou a falar muitos requebros e amores e palavras lascivas, melhor
ainda que se fora um rufião a sua barregã e lhe deu muitos abraços e beijos e a
levou para um quarto e, enfim, a lançou sobre a cama e se deitou sobre ela de
bruços com as fraldas de ambas arregaçadas e assim estiveram se deleitando.
(…) E depois disso, quatro a cinco dias, veio a ela ter a dita Felipa de Souza e se
tornaram a fechar na câmara e a dita Felipa a tornou requestar de amores,
apalpando-a, abraçando-a e beijando-a”.
Já Paula de Siqueira, igualmente casada, disse:
“Felipa de Sousa, casada com Francisco Pires, pedreiro, lhe começou a
escrever muitas cartas de amor e requebros. (…) Num domingo veio a sua casa
a dita Felipa de Souza e como ela, confessante, já tinha entendido a intenção de
Felipa, a recolheu consigo para dentro de sua câmara. Então, tiveram ambas
ajuntamento carnal uma com a outra por diante, tendo deleitação e
consumando por duas ou três vezes, pouco mais ou menos, o dito
ajuntamento.”
“A dita Felipa de Souza, antes de ir para casa, lhe contou que tinha pecado
do dito modo com Paula Antunes, mulher de Antônio Cardoso, e com Maria de
Peralta, cristã-nova, mulher de Tomás Bibentão, inglês, e também que havia
usado o dito pecado com muitas moças, altas e baixas, e também dentro de um
mosteiro.”
 
Jerônimo de Albuquerque Maranhão
★ Olinda, 1548 † São Luís, 1618

GUERREIRO CONQUISTADOR MAMELUCO

Filho de governante com índia, impõe o domínio da aliança entre


portugueses e Tupi por todo o Norte do Brasil — e governa como
nobre.

Um dos filhos de Jerônimo de Albuquerque com Muira-Ubi, cresce


circulando entre mundos que começam a ficar distintos. Seu pai é a
grande autoridade da capitania de Pernambuco, na qual o açúcar começa a
trazer dinheiro suficiente para mudar as aparências. Olinda ganha
sobrados de taipa e ruas pelas quais circulam pessoas assim descritas pelo
padre Fernando Cardim:
“Vestem-se as mulheres e filhos de todas as sortes de veludos, damascos e
outras sedas. As mulheres são muito senhoras e não muito devotas. (…) Os
homens têm grossas fortunas e são tão briosos que compram ginetes caros e
têm três ou quatro cavalos de preço.”
Os vestidos são usados em festas como aquelas com a oferta de uma
filha em aliança com alguém de fora, uma das quais foi assim descrita pelo
padre Cardim:
“Casando-se uma moça honrada com um vianês, os parentes e amigos se
vestiram, uns de veludo outros de seda, para um banquete. E por esta festa se
pode julgar o que fazem nas mais, que são comuns e ordinárias.”
Como o padre circulava apenas pela elite da vila, não nota nem as
raízes indígenas da cena nem outros detalhes de uma vida sincrética,
como as andanças pelas matas do jovem Jerônimo de Albuquerque. Filho
de índia, forma-se como guerreiro, passa a comandar expedições militares
por domínio de territórios, casa-se com nativas ao modo desses parentes.
Domina o território sul, na área da atual Paraíba, derrotando uma
aliança entre franceses e Tupi — o tipo de vitória que agora é de interesse
também do governo-geral. Em 1597, Jerônimo é oficialmente apoiado para
atacar a aliança francesa ao norte, no território do atual Rio Grande do
Norte. Vence ao modo Tupi, aliando-se via casamento ao chefe Poti (até
então aliado apenas de franceses) e repetindo o processo com Ilha Grande.
Torna-se senhor do território, funda a vila de Natal — da qual é
nomeado capitão, sendo agraciado com o título de Cavaleiro Fidalgo: o
meio índio, às vezes perseguido pela Inquisição, torna-se nobre quando o
governo quer. E, nessa qualidade, ganha apoio para comandar tropas e
tentar expulsar os franceses de São Luís.
Prefere compor o exército apenas com aliados Tupi — assim como
Martim Moreno, comandante das tropas cearenses, que luta nu. Os
combates e as grandes vitórias militares de ambos culminam com uma
batalha no dia 19 de novembro de 1614 na qual derrotam adversários
muito superiores em número.
Acaba ali a última aliança que permitia aos franceses lutar por território
com apoio dos Tupi no Brasil. Nomeado capitão-mor, passa a se assinar
Jerônimo de Albuquerque Maranhão. Como governador, manda tropas
ainda mais para diante — mas morre antes de conhecer os resultados.
Pedro Teixeira
★ Cantanhede, Portugal ? † Belém, 1641

SENHOR DO AMAZONAS

A partir de um pequeno grupo ele comanda a expansão do


domínio da aliança entre portugueses e Tupi por todo a imensa
região amazônica.

Combate com Jerônimo de Albuquerque Maranhão. Após a tomada de São


Luís, é enviado numa pequena expedição de apenas três canoas, que acaba
se fixando na baía de Guajará em janeiro de 1616. Ali se fazem novas
alianças entre portugueses e Tupi locais que logo ganham força.
A partir de 1620 a pequena instalação inicial se torna a vila de Belém e
dela partem incursões para devastar instalações inglesas e holandesas —
sempre mais vulneráveis por causa da falta de apoio nas alianças
resultantes de casamentos com nativos. Em 1625 Pedro Teixeira sobe o
Xingu e, no ano seguinte, o Tapajós. Cada incursão dessas significa novas
alianças e novas forças militares.
Em 1637 a vila de Belém reúne forças suficientes para uma tentativa
ainda mais ousada. Pedro Teixeira comanda uma frota assim descrita pelo
jesuíta Cristóbal de Acuña:
“Partiu do Pará com 47 canoas de bom tamanho, nelas levando 70 soldados
portugueses, 1.200 índios remadores e guerreiros, que com as mulheres e moços
de serviço passariam de duas mil pessoas.”
O objetivo: subir o rio Amazonas até sua nascente, não apenas para
comércio, mas para tomar posse oficial das terras em nome do rei de
Portugal. Os obstáculos são narrados pelo padre:
“Havia tanto a força das correntezas quanto as dificuldades para conseguir
mantimentos para um grupo tão numeroso e, sobretudo, pela falta de guias
habilitados para orientar sem rodeios nos caminhos a percorrer. Em razão dos
caminhos tão longos e das dificuldades encontradas os índios amigos
mostraram pouca disposição para prosseguir e alguns voltaram para casa.”
Pedro Teixeira vence esse momento crítico dividindo o grupo em dois.
Entrega o comando da vanguarda a alguém capaz de dar voltas e marcar
caminhos. O padre descreveu esse fluminense muito especial:
“Bento Rodrigues de Oliveira era natural do Brasil, tendo sido criado e
vivido entre os nativos. Por isso lhes conhecia os pensamentos e, ao menor
gesto, adivinhava o que lhes ia no coração. Por esse motivo era estimado e
respeitado por todos os índios e sua figura foi essencial para o sucesso da
missão.”
Em meados de 1638 o grupo começa a subir os formadores do
Amazonas e chega a Quito (atual capital do Equador), já em pleno
território espanhol. Como na época as coroas portuguesa e espanhola
estavam unidas, é bem recebido. Apresenta sua pretensão sobre o
território ao governador; ela é admitida para exame em Madri.
Mas Pedro Teixeira é mandado de volta, tendo o padre Cristóbal de
Acuña como acompanhante oficial — e por isso sua incursão foi das
poucas a ganhar registro escrito. Chega a Belém em 1639; é nomeado
capitão. Morre em 1641 administrando os vastos territórios que percorrera.
Albert Eckhout
★ Groningen, Holanda, c. 1607 † 1666

HOMEM BRASILIAN E SEUS DOMÍNIOS

Albert Eckhout, Retrato de Menino, 1637.

Pintor de grande capacidade técnica e formação renascentista,


criou imagens épicas para mostrar a mistura de raças que gera o
brasileiro.
Há poucas informações sobre a infância e o período de formação de Albert
Eckhout em sua cidade natal. Sabe-se com certeza que, no início da
década de 1630, está estabelecido em Amsterdã e já possui algum
reconhecimento como retratista e pintor da natureza. Por causa dessas
qualidades acaba sendo convidado para fazer parte da comitiva do príncipe
Maurício de Nassau, desembarcando no Brasil em janeiro de 1637.
Indicado pela Companhia das Índias Ocidentais para governar a
conquista brasileira, Nassau chega como o nobre de alta estirpe que é,
trazendo uma corte completa — que inclui desde nobres acompanhantes
até lavadeiras e criados menores. Como parte dela há uma equipe
completa de estudiosos, com naturalistas, pintores, engenheiros e
literatos.
Eckhout é apenas um dos pintores, inicialmente de menor
importância. A maior parte de seu trabalho consiste em acompanhar os
naturalistas Piso e Marcgraf, desenhando em pequenos cadernos os
animais e espécimes vegetais que os dois descreviam. Mas registra
também as pessoas, dos índios aos nobres.
Sua habilidade acaba sendo reconhecida e ele passa a ser enviado até
mesmo para missões diplomáticas no território do inimigo português —
pinta um retrato do governador-geral do Brasil estando em Salvador.
Existe boa possibilidade de que ele tenha recebido de Nassau a
incumbência de pintar telas monumentais para a decoração de um salão
no palácio que o príncipe construía em Recife, por volta de 1643.
O fato é que Eckhout acompanha Nassau em sua viagem de volta para
a Holanda, em 1644, e continua por algum tempo a seu serviço, do qual
fizeram parte oito grandes telas, enviadas de presente para o eleitor de
Brandemburgo.
As pinturas são organizadas como uma tetrarquia: quatro casais de
pessoas em quatro estágios de civilização, indo dos povos mais brutos aos
mestiços mais civilizados. Assim faz mais que os primeiros grandes
retratos de pessoas vivendo no Brasil: cria uma interpretação para ilustrar
uma civilização — que nasceria do casamento entre pessoas de origem
étnica diversa.
Somados aos primeiros óleos e desenhos de grande qualidade sobre a
natureza tropical, os trabalhos de Albert Eckhout acabam servindo de
modelo para muitos pintores e tapeceiros europeus, que produzem
centenas de cópias e adaptações de toda espécie, levando a tetrarquia
inicial (com suas escolhas sobre a miscigenação) a se transformar numa
forte visão europeia desta porção do Novo Mundo.
Em 1653, Nassau recomenda seu pintor para o príncipe da Saxônia.
Aposenta-se em 1664 e volta para sua cidade natal, Groningen, onde
morre em 1666.
Homem tapuia. É retratado segundo alguns signos do tempo para designar a selvageria. Em
primeiro lugar, anda nu, tendo como único adereço de vestuário o estojo peniano. Usa botoques na
face e no queixo. Porta um tacape, empregado nas mortes cerimoniais. A seus pés estão animais
peçonhentos, a cobra e a aranha. Deve-se notar também que o termo Tapuia é da língua Tupi, para
designar os outros índios, os inimigos, os selvagens — características que o pintor projeta sobre o
retratado.
Mulher tapuia. Os sinais de civilização são pequenos: folhas cobrindo a região genital, uma
pequena pedra no lábio. Em contraste, os adereços indicativos de selvageria são conspícuos: as
partes amputadas de corpos humanos, que competia às mulheres (como únicas detentoras do
poder de cozinhar no grupo) moquearem para o banquete ritual da antropofagia — aquele que
realmente horrorizava os primeiros europeus. Um detalhe mínimo: entre as pernas da mulher o
artista desenhou um grupo de guerreiros armados.
Mulher brasilian. Aparece com vários adereços civilizatórios: roupas brancas cobrindo a cintura,
uma cabaça para carregar água, uma cesta com seus utensílios. A pele lisa não apresenta sinais de
pintura corporal. A seu lado aparece uma bananeira, planta trazida pelos europeus; ao fundo, um
engenho com árvores plantadas em fileiras e terras cultivadas. Trata-se de uma índia Tupinambá de
aldeamento, já acostumada a viver no espaço europeu. A escolha do termo Brasilian ocorreu num
tempo em que o gentílico ainda não era empregado.
Homem brasilian. Está vestido de calção branco, porta também suas flechas (mas não o tacape,
como o Tapuia). A seus pés aparece a espécie cujo cultivo exigia uma técnica aprimorada
desenvolvida pelos nativos, a mandioca. No rio, pouco adiante de seus pés, foram pintadas
minúsculas figuras de índias lavando roupa e tomando banho. O retratado tem barba e bigode,
característica que pode significar já o cruzamento com europeu, na medida em que os relatos da
época são quase unânimes em descrever os Tupi como despidos de pelos faciais.
Mulher africana. Colocada no mesmo nível da índia Tupinambá, apresenta um vestido, uma cesta
com alimentos e está acompanhada de um filho. O cenário é inteiramente brasileiro, com uma
carnaubeira, frutas nativas na cesta, a espiga de milho do filho, os Tupinambá desenhados na praia.
Além disso, estudiosos dizem que o filho, de pele mais clara que a mãe, pode ser fruto de
miscigenação. Mas o quadro traz alguns elementos africanos, como o chapéu e a cesta com padrões
da região do Congo, e europeus, como os brincos de pérola.
Homem africano. Este desenho é o único que foge do padrão: não há nenhum elemento natural
que seja exclusivo do Brasil, mas antes dois indicativos da África: a tamareira e a presa de elefante
aos pés do retratado. Toda a indumentária é de origem africana e a espada, indicativa da nobreza da
Guiné. Um único detalhe pode ligar a europeus: o cabelo crescido, não empregado na África. Uma
possível explicação está no fato de Nassau receber delegações da Guiné. Traziam presentes, e entre
eles poderiam estar todos os elementos africanos do quadro.
Mulato. O filho mestiço de negra e europeu: retratado num grau de civilização mais alto,
assemelhado ao europeu. É apresentado como um militar, com roupas, armamentos (inclusive a
espada, arma de uso então restrito a nobres) e um gibão. Aparece entre mamoeiros, produtos
plantados da flora local e a cana-de-açúcar, a cultura europeia de maior significado econômico da
nova terra. Este quadro não chegou a ser concluído — a parte inferior das pernas não possui
qualquer detalhamento nem aparecem as figuras menores presentes nos demais registros.
Mameluca. Mestiça de índia e europeu, também é representada como ápice civilizatório. Está
trajada com um vestido longo de corte europeu — mas que maneja com sensualidade para exibir
um pedaço da perna e os pés nus. Um olhar sorridente e convidativo acentua essa sensualidade. No
mais, tudo em volta são exemplares da beleza da flora local — dos cajueiros no alto, passando pelas
flores no cesto. Toda a composição segue o modelo europeu contemporâneo do pintor das imagens
da deusa Flora, que simbolizava a primavera e a fertilidade.
A TETRARQUIA PERNAMBUCANA (A PRIMEIRA NOÇÃO DE
PÁTRIA)

Batalha de Guararapes, óleo de anônimo, Museu do Estado, Recife, PE.

A luta contra os holandeses que ocupam Pernambuco em 1630 dura até


1654 e coincide com um período crítico de Portugal: a separação da
Espanha, em 1640, e as difíceis negociações para a sobrevivência do reino.
Nesse cenário, as decisões políticas e militares mais importantes são
tomadas na colônia — e provocam o surgimento de uma nova consciência.
Esta consciência se manifesta inicialmente como formulação da Câmara de
Olinda, representante do poder local eleito. Já na época dos combates os
vereadores escrevem ao rei dizendo que a expulsão se fazia “à custa de
nosso sangue, vidas e fazendas [recursos]”.
Essa compreensão original serve de base para um longo processo de
entendimento da luta contra o invasor como vitória do que agora é próprio
no Brasil: pessoas de diversas raças e condições se unindo para fazer uma
pátria. Evaldo Cabral de Mello, que estudou a construção no livro Rubro
Veio, diz:
“A Restauração forjara-se sobre a aliança de grupos étnicos que compunham
a população local, não evidentemente em pé de igualdade mas sob a direção da
‘nobreza da terra’ e dos reinóis. Trata-se de uma noção já consagrada pelo
imaginário nativista nos começos do século 18, mediante o simbolismo de uma
tetrarquia de heróis a que se devia o culto cívico tributado aos verdadeiros ‘pais
da pátria’.”
Os pais cultuados seriam os seguintes:
João Fernandes Vieira, o reinol
★ Ilha da Madeira, c. 1613 † Olinda, 1681

O nascimento no Reino dá a ele o lugar mais alto na tetrarquia — apesar


da razoável probabilidade de se tratar de um mulato, filho de pai
português e escrava africana.
O percurso de vida também vai um pouco contra o enquadramento
enobrecedor. Vem pobre para o Brasil no início da adolescência. Trabalha
em ocupações humildes e consegue acumular alguma riqueza
empreendendo pelo próprio esforço.
Fica rico durante a ocupação holandesa. Começa trabalhando para
Jacob Stachhouwer, conselheiro da Companhia das Índias Ocidentais que
acaba se tornando senhor de engenho. Através dele liga-se a Maurício de
Nassau e ganha dinheiro. Seu casamento, dessa época, reproduz as
alianças Tupi: em 1643 desposa Maria César, neta de Muira-Ubi e Jerônimo
de Albuquerque, e passa a fazer parte da elite já miscigenada da terra.
Depois da volta de seu protetor para a Holanda tem problemas — e
muda de lado. Em 1645 torna-se o chefe de uma insurreição de moradores.
As tropas sob seu comando dominam pontos no interior do território e
têm papel importante nas batalhas de Guararapes.
Em 1654, com a expulsão dos holandeses do Recife, recebe títulos de
nobilitação e ocupa cargos como os de governador da Paraíba e de Angola.
Morre em 1681, em posição muito diferente daquela de seu nascimento:
vive a ascensão social que só a colônia permitia.
André Vidal de Negreiros, o mazombo
★ Paraíba, 1606 † Goiana, 1680

Alista-se como voluntário aos 18 anos e luta contra os holandeses que


invadem a Bahia em 1624. Destaca-se em combate e ganha o posto de
alferes.
A partir de 1630 envolve-se em todas as formas de resistência contra a
ocupação em Pernambuco: as lutas iniciais para defender Recife; a retirada
posterior para o sul; as incursões guerrilheiras contra o Brasil holandês; a
expedição de Luís Barbalho através do interior do Nordeste, em 1640; as
articulações com vistas ao levante de 1645.
Quando o levante começa, Vidal de Negreiros ataca no comando das
próprias tropas, que se unem aos combatentes reunidos por Vieira. Tem
participação importante nas duas batalhas de Guararapes, em 1648 e 1649.
Chefia o último ato dos combates, com a capitulação holandesa no Recife.
Sua importância pode ser medida pelo fato de que é o encarregado de
comunicar oficialmente a D. João IV a vitória final. Foi nobilitado e
designado capitão-mor no Maranhão, Pernambuco e Angola.
Apesar dessa longa folha de serviços militares, é colocado em segundo
plano na tetrarquia, por causa da condição de mazombo, isto é, nascido no
Brasil.
Felipe Camarão, ou Poti, o índio
★ Rio Grande do Norte, ? † Recife, 1648

Os combates vitoriosos com o inimigo externo holandês em


Pernambuco forjam uma ideia de Pátria como resultado da união
de raças diversas em torno de um objetivo único e homogêneo.

Tupi nascido na virada para o século XVII. Em 1614 vive num aldeamento
jesuítico e é batizado, trocando o nome Poti (camarão, em sua língua natal)
para Antônio Felipe. Aprende a ler e escrever, domina rudimentos de latim
e acaba conhecido pela gravidade de sua fala.
Desde o início da ocupação holandesa, em 1630, passa a chefiar um
exército de Tupi composto de homens e mulheres combatentes (uma delas
é Clara Camarão, sua esposa). As tropas sob seu comando lutam o tempo
todo, primeiro defendendo territórios, depois mantendo um esforço
permanente de guerrilhas. Por isso recebe, em 1635, o hábito da Ordem de
Cristo, tornando-se fidalgo.
Tem papel fundamental na primeira batalha de Guararapes, em 1648.
Morre em decorrência dos ferimentos recebidos em combate, um mês
depois de terminada a luta.
Henrique Dias, o negro
★ Recife, ? † Recife, 1662

Pouco se conhece sobre sua infância, mas era um negro liberto no


momento da invasão de 1630. Alista-se ao lado de Matias de Albuquerque,
reúne um forte grupo de escravos e libertos para lutar sob seu comando.
Sobrevive a vários ferimentos em combate e participa da resistência até a
queda do forte Bom Jesus, em 1635.
Capturado como se fosse escravo, consegue fugir para a Bahia e
reorganizar suas tropas, passando a chefiar cerca de 500 homens. Em 1637
tem a mão esquerda decepada em Porto Calvo, mas continua comandando
seus soldados até a vitória. Recebe o hábito da Ordem de Cristo no ano
seguinte.
A partir de 1645 a companhia passa a ser denominada Terço dos
Homens Negros e Mulatos do Exército Patriota. Teve papel de destaque
nas duas batalhas de Guararapes e participação até o final das lutas.
O tratamento que recebe posteriormente é duro. Ao fim dos combates
tem dois anos de soldo atrasado para receber, o que só consegue depois
de viajar para Lisboa e apelar ao rei D. João IV.
Além dos atrasados, o máximo que o comandante consegue é a alforria
para seus soldados e terras para eles em Estância. Morre muito pobre, em
1662.
 
Antônio Raposo Tavares
★ Beja, Portugal, 1598 † São Paulo, 1658

O MAIOR VIAJANTE DOS SERTÕES


É um dos comandantes da expansão da aliança Tupi, que absorve
boa parte dos territórios da aliança entre Guarani e espanhóis.

Chega a São Vicente com 20 anos, em 1618, acompanhando o pai,


Fernando Vieira Tavares, representante do donatário da capitania. Muda-se
em 1622 para São Paulo. Embora tardiamente para os padrões da época,
aprende a participar das incursões pelo interior do território.
É um dos principais organizadores de uma mudança fundamental dos
equilíbrios de alianças entre nativos e europeus. Os Guarani — povos de
línguas, conhecimentos técnicos e costumes muito próximos aos Tupi —
começaram a se aliar a espanhóis em Assunção do Paraguai, em 1537, e
logo o domínio desses aliados se estendeu por uma vasta área no interior
do continente.
A dinâmica dessa aliança foi alterada radicalmente por uma ação do
governo metropolitano espanhol no início do século XVII. Até 1604, ao
contrário de Portugal, os jesuítas foram praticamente impedidos de pregar
nos domínios de Castela. Mas como, também na Espanha, o rei tinha
controle da Igreja, um decreto mudou tudo. Os inacianos ganharam o
monopólio das relações comerciais com os Guarani e o poder de eles
mesmos instalarem seus aldeamentos no interior — num tempo em que
os jesuítas brasileiros, por ordem do mesmo rei, que controlava também a
Coroa portuguesa, só podiam criar aldeamentos com índios aliados nas
vilas e eram proibidos de ir ao sertão.
Em pouco mais de duas décadas os efeitos foram sentidos: a
população paraguaia ficou pobre, as trocas de moradores com os nativos
cessaram, as alianças matrimoniais perderam força; na via inversa, as
reduções (aldeamentos na selva) jesuíticas se expandiram depressa em
direção a leste, ultrapassaram o território Guarani, entraram pelo espaço
intermediário dominado pelos Caingangue (um grupo Jê) e passaram a
bordejar o espaço Tupi próximo a São Paulo.
Em 1628 aparece uma oportunidade estratégica para os paulistas
reagirem: Luís de Céspedes de Xería, governador nomeado para o
Paraguai, faz escala no Rio de Janeiro, onde acerta um casamento e aceita
a oferta de ser levado para Assunção, capital do Paraguai, via São Paulo.
Alguns paulistas se juntam à comitiva e se acertam com os moradores de
Assunção para atacar as reduções jesuíticas.
Raposo Tavares, um dos incentivadores do plano, deixa São Paulo em
1629, no comando de uma centena de paulistas e cerca de 2 mil indígenas.
Na região das missões jesuíticas do Guairá (no oeste do atual Paraná), o
grupo emprega com sucesso argumentos para revoltar índios. Com raros
combates (o número de mortos relatados pelos inacianos espanhóis foi de
apenas 14 em todo o episódio) o grupo consegue desarticular o conjunto
das reduções (que já agrupavam quase 100 mil nativos) e levar o jesuíta
Ruiz de Montoya, superior delas, a liderar uma heroica fuga daqueles que
se mantêm fiéis para o vale do rio Uruguai.

Chefiou a grande incursão pelo oeste dos domínios Tupi até o vale
do Amazonas — façanha que Vieira viu como uma das maiores
viagens da humanidade.

A vitória dos paulistas, combinada com a migração maciça de


paraguaios para São Paulo (depois de Guairá, quase metade dos habitantes
europeus da vila passa a ser de espanhóis e aumenta exponencialmente o
número de Guarani), abre um largo espaço de domínio para a aliança
entre Tupi e portugueses no território Guarani.
Raposo Tavares tenta ampliar esse espaço comandando, em 1636, um
ataque terrestre às novas reduções, agora instaladas no território do atual
Rio Grande do Sul. Mas dessa vez, sem apoio de moradores espanhóis
nem conseguindo dividir os Guarani, acaba sendo derrotado por tropas de
convertidos comandadas por padres.
De volta a São Paulo, atende a um pedido de reforços para uma
incursão destinada a atacar os holandeses. Junta um grupo de sertanistas e
índios e vai para Salvador. Com as tropas de Henrique Dias e Felipe
Camarão embarca na armada comandada pelo conde da Torre. Depois de
muitas peripécias, os soldados são desembarcados em 1639 no Rio Grande
do Norte, em pleno território de domínio holandês. Lutando para
sobreviver, entram pelo sertão combatendo. Atingem finalmente o rio São
Francisco e conseguem voltar para Salvador — um percurso que chegou a
quase 3 mil quilômetros.
Ao chegar recebe a notícia da Restauração portuguesa e vai
diretamente para Lisboa. Passa ali os cinco anos seguintes, entre 1642 e
1647. Embora a documentação seja escassa, existem indícios de que o
período foi dedicado a preparar uma missão: adentrar a área de domínio
Guarani, tentar chegar até os grupos Tupi da região de Tarija (atual Bolívia,
então parte do reino do Peru) e ganhar acesso para a prata de Potosí.
Em fins de 1648, com 50 anos de idade, Raposo Tavares parte de São
Paulo no comando de 200 paulistas e mil índios. Penetrando no território
da atual Bolívia, o grupo vai sendo acossado, fugindo até chegar ao rio
Guaporé, já na bacia amazônica. Dali segue: descendo o rio até a foz, os
viajantes chegam ao Madeira e vencem dezenas de cachoeiras para chegar
até o Amazonas.
Em 1651, três anos, 3 mil quilômetros terrestres e 18 mil quilômetros
navegados após a partida, um grupo de sobreviventes — Raposo Tavares
entre eles — chega a Belém. Por acaso estava lá o padre Antônio Vieira,
que lutou a vida inteira contra as incursões de moradores. Mesmo ele não
deixou de reconhecer o tamanho da empreitada:
“Como dos argonautas contam as fábulas, com exemplo verdadeiramente
grande de constância e de valor, se o não deslustrara tanto a causa. (…)
gastaram onze meses inteiros na navegação, sem saber para onde iam, até que
aportando à fortaleza de Gurupá, conheceram que tinham descido pelo rio das
Amazonas abaixo. E (…) vem a fazer o que navegaram mais de 3 mil léguas de
rio. Três anos e dois meses puseram neste grande rodeio, que deram ao interior
da América. (…) Foi uma das mais notáveis (viagens) que até hoje se tem feito
no mundo.”
Um século depois de Raposo Tavares, em 1749, Alexandre de Gusmão empregou relatos como
aquele de suas viagens para marcar em amarelo as andanças dos portugueses no território.
Antônio Vieira
★ Lisboa, Portugal, 1608 † Salvador, 1697

O IMPERADOR DA LÍNGUA
Sua vida movimentada o levou a pregar nas selvas mais profundas
e nas cortes mais sofisticadas e a renovar o modo de escrever em
português.

Nascido em Portugal, vem para Salvador com 8 anos de idade. Em 1623,


ingressa no noviciado do colégio jesuíta na cidade, concluindo-o em 1625.
No ano seguinte, com 18 anos, seu talento de escritor já é reconhecido
entre seus pares, que o escolhem para redigir em latim a Carta Ânua,
relatando a invasão holandesa da Bahia (1624-25).
Dez anos depois, quando se ordena padre, seu talento para pregar atrai
muita gente para os púlpitos. Revela tal domínio sobre a língua
portuguesa que quase a recria: sua prosa fluente e clara tinha uma
estrutura muito diversa daquela empregada por seus contemporâneos —
e com o tempo o faria ser reconhecido como um dos maiores escritores da
literatura portuguesa.
Mas tal qualidade se revela nos intervalos de uma carreira sacerdotal
que, ao modo jesuítico do envolvimento no mundo, ganha também
aspectos políticos relevantes num tempo movimentado. Em 1638, participa
da defesa de Salvador contra nova tentativa de invasão holandesa. Começa
a pregar a favor da independência de Portugal da Espanha. A posição o
leva para Lisboa em 1640, logo após a Restauração da monarquia. Torna-se
um dos principais conselheiros do rei D. João IV, que o encarrega de
inúmeras missões diplomáticas. Como embaixador em Haia, destaca-se na
defesa dos judeus e cristãos-novos.
Em 1653, volta ao Brasil para dirigir a missão jesuítica do Maranhão.
Participa também de várias expedições missionárias na bacia amazônica e
no Pará. Tenta implantar situações mais próximas aos moldes espanhóis,
com os padres ganhando poderes para dominar as relações de troca com
os nativos e penetrar no interior do território.
Justificava os atos como defesa da liberdade dos índios. Dessa forma
atrai a hostilidade de várias câmaras municipais, representantes dos
interesses dos colonos. Por essa época, na metrópole, o padre Antônio
Vieira vê surgirem outros inimigos, entre os quais a Inquisição.
O agravamento dos conflitos com os colonos leva, em 1661, à eclosão
de motins no Maranhão e no Pará que ocasionam sua expulsão. No ano
seguinte, em Lisboa, o missionário é julgado, condenado e preso por
ordem da Inquisição, mas obtém pouco tempo depois a anulação da
sentença.
Em 1668, com a deposição de D. Afonso VI, recupera a influência
política e realiza missão diplomática em Roma, entre 1669 e 1675. Em 1681
está de volta ao Colégio da Bahia e, em 1688, é nomeado visitador do
Brasil e Maranhão, cargo que exerce até 1691. Passa os últimos anos de
vida como missionário e coligindo seus Sermões, que se constituem num
tesouro de uma língua portuguesa renovada, inclusive pelos falares do
Brasil.
Salvador Correia de Sá e Benevides
★ Cádis, Espanha, 1602 † Lisboa, Portugal, 1688

EMPRESÁRIO COM NEGÓCIOS EM TRÊS CONTINENTES


Cachaça do Rio para Angola; para a América, escravos africanos;
do Peru para o Brasil, prata; açúcar para a Europa; navios para
levar tudo; e ele dirige os negócios.

Filho de Martim Correia de Sá e Maria de Mendoza y Benevides, estuda


com os jesuítas e, ainda adolescente, vem ao Brasil pela primeira vez.
Desde a chegada aprende a andar na selva com índios aldeados em torno
do engenho da família no Rio de Janeiro.
Essas incursões de juventude já tinham caráter diverso daquelas do
século XVI: a aliança entre Tupi e portugueses se tornara geral e
dominante no território, com o que não havia mais inimigos de porte;
com o interior dominado, destinavam-se basicamente a comerciar com
tribos aliadas, submeter grupos isolados — e agora a tentar encontrar
minérios. Cariocas e paulistas de Cananeia começam a faiscar e
descobrem vários pontos onde extraem ouro de aluvião no Sul do país. Os
familiares de Salvador estão entre os pioneiros da atividade.
A capacidade de comando adquirida por Salvador de Sá nos sertões
logo é aplicada a outras missões. Assim que recebe a notícia da invasão de
Salvador pelos holandeses, em 1624, ele embarca suas tropas de índios e
miscigenados para combater; no caminho para o Nordeste, ainda no
litoral do Espírito Santo, encontra navios holandeses se abastecendo, ataca
a esquadra e aprisiona os adversários.
Em 1630, parte em outra viagem. Deveria levar sua irmã, prometida
em casamento ao governador do Paraguai, até São Paulo, de onde ela seria
levada a Assunção. Alegando ter tido um sonho, decide acompanhá-la
Tietê abaixo — e não para na capital paraguaia: a pedido do cunhado,
comanda um ataque a grupos rebeldes no Chaco paraguaio.
Vai logo combater Calchaqui na região de Tucumã, no norte da
Argentina, uma das principais zonas de abastecimento das minas de prata
peruanas. Em 1631, depois de vencer os combates, casa-se com D. Catarina
de Ugarte e Velasco, viúva, herdeira de grande fortuna e com prestígio na
sociedade colonial espanhola.
Os negócios de sua mulher o levam a seguir caminho até Potosí, então
uma das cidades mais populosas do mundo, na qual 200 mil pessoas (a
grande maioria escravos) extraem a prata que alimenta a monetização de
toda a economia ocidental do tempo.
Volta para o Brasil ao receber a notícia da morte do pai. Governa a
capitania do Rio de Janeiro e consolida, a partir de uma visão empresarial,
o papel econômico da região Sul do país na esfera brasileira. Aproveitando
o fato de as invasões holandesas desarticularem as trocas com o sertão
nordestino que abasteciam o litoral e os lucros da fortuna de sua mulher
que chegavam do território espanhol na forma de moedas de prata,
constrói navios, compra farinhas e algodão e vende na Bahia. Torna-se o
homem mais rico do Brasil.

Com madeiras da floresta tropical, carpinteiros europeus e


trabalhadores indígenas, constrói o Padre Eterno, o maior navio do
mundo.

A Restauração portuguesa acontece em meio a esse período. Tendo


fortuna nos dois domínios agora inimigos, revela seu talento político. Sem
perder os bens da mulher, fica do lado dos portugueses — e acaba sendo
nomeado para o Conselho Ultramarino, instituição recém-fundada para
articular toda a política colonial do Reino.
Concebe a estratégia portuguesa para a América e a África,
apresentando um plano que previa a retomada de Angola dos holandeses,
a montagem de um ponto de venda de escravos por contrabando em local
próximo a Buenos Aires — para obter prata peruana — e o controle do
comércio entre Brasil e Lisboa por uma companhia de comércio com
atuação monopolista.
Parte para comandar a primeira etapa do plano em 1647. No Rio de
Janeiro, abastece os navios e embarca tropas de índios. Desembarca na
África e, mesmo em situação de inferioridade numérica, ataca Luanda.
Vence os holandeses, recupera a aliança com os congoleses e governa
Angola pelos anos seguintes.
Volta para o Rio de Janeiro em 1652 e ataca a parte empresarial do
projeto. Sabendo que as madeiras da floresta tropical eram excelentes para
a construção naval, inicia a construção daquele que seria o maior navio do
mundo na época. Monta um estaleiro na ilha do Governador e começa a
reunir grandes toras trazidas da ilha Grande, distante quase 100
quilômetros. Em seguida, manda vir técnicos da Europa para orientar
carpinteiros índios. O galeão Padre Eterno é lançado ao mar no Natal de
1663.
Comanda a primeira viagem para Lisboa em 1665, numa das frotas
que, segundo seu plano, agora monopolizam o comércio. Vê a cidade de
seu posto, que fica no alto de duas cobertas armadas de canhões num
navio de 53 metros de comprimento, algo extraordinário na época. Graças
à qualidade das madeiras, é ao mesmo tempo resistente, capaz de levar
muita carga e fácil de manejar. O navio acaba na Marinha, e por muitos
anos é o orgulho da Armada — mas seu antigo proprietário conhece
destino menos glorioso.
No longo período de ascensão tornara-se não apenas o governador de
todo o Sul do Brasil como o dono dos negócios mais importantes da
região. Gere o poder nomeando familiares, cobrando impostos (e lucrando
com isso) e jogando pesado com os concorrentes locais.
Cala as críticas pela grande influência em Lisboa, forte a ponto de
arrancar para seu filho descendente de mamelucos o título de visconde de
Asseca — a casa que seria a mais rica da nobreza do Reino.
Mas a combinação de uma revolta no Rio de Janeiro, em 1660, com o
afastamento do rei português, dois anos depois, permite que seus
adversários se aliem ao infante D. Pedro — e ele cai em desgraça.
Processado, passa anos numa espécie de prisão domiciliar, da qual só é
libertado em 1678, quando, aos 76 anos, oferece-se para chefiar uma
expedição que iria de Angola ao outro lado do continente africano, em
Zanzibar. Quando observaram que isto seria uma aventura quixotesca para
alguém tão idoso, replicou que queria ter “o consolo de ouvir tiros na hora
da morte”. Morreu rico e na cama, com 86 anos, em 1688.
Navio Padre Eterno, desenhado em Lisboa por um espião francês.
Zumbi dos Palmares
★ ? † Alagoas, 1695

COMANDANTE DE QUILOMBO
Na esteira da ocupação holandesa, escravos africanos fugidos
conseguem renovar a produção no sertão — e resistir sob o
comando de um líder forte.

Pouco se conhece da infância e do período de formação de Zumbi, mas já


se sabe alguma coisa do mundo que comandou. Desde o início do século
XVII alguns negros escravos tinham conseguido fugir do cativeiro e se
instalar na selva tropical em instalações que chamavam de quilombos.
Para isso precisaram conhecer as técnicas de manejo natural e agricultura
dos índios — possivelmente fazendo alianças matrimoniais.
Com a invasão holandesa de Pernambuco e os combates que se
seguiram o número de fugas, tanto de escravos como de índios aldeados,
aumentou exponencialmente, e com elas os quilombos. Ainda antes da
insurreição de 1645, tropas holandesas tentaram — sem sucesso —
combater o maior deles: Palmares, instalado no território do atual estado
de Alagoas.
Uma das razões para o fracasso estava no sucesso econômico do
quilombo. A combinação cultural de índios, cafusos e escravos gerou uma
agricultura produtiva (roças ao modo indígena, mas cultivadas com
trabalho dos escravos do quilombo) e um artesanato produtivo. A
produção dali competia com vantagem em relação aos produtos trazidos
de longe, de modo que não faltava mercado — e com seu aumento
também crescia o número de quilombolas.
Com o tempo foi se criando também uma sociedade própria. A língua
portuguesa se impôs, como intermediária das muitas falas originais dos
moradores. Uma religião sincrética de molde católico também, pelas
mesmas razões. Mas o sistema de poder político trazia fortes marcas
africanas, com o comando sendo entregue a um chefe único, ao modo de
muitos grupos desse continente. Ele comandava uma produção feita por
escravos e um exército disciplinado pela hierarquia social.
Essa organização era importante também por razões de sobrevivência.
Depois de 1654, com a expulsão dos holandeses, Palmares tornou-se um
alvo importante: as terras e a escravidão dos homens vivendo no local
foram oferecidas como prêmio a quem submetesse o quilombo, de modo
que mais de uma dezena de aventureiros tentaram o prêmio.
Em 1678 há um acordo de rendição e convivência aceito por Ganga
Zumba, o chefe do quilombo. Mas Zumbi recusa o alvitre, domina o
território com seu grupo e passa a vencer seguidos atacantes com grande
habilidade militar. Torna-se figura lendária ainda em seu tempo de vida,
passando a aparecer na documentação como líder a ser batido.
É morto em 1695 com um grupo de apenas 20 seguidores. Sua cabeça
é cortada e mandada para o governador de Pernambuco, Caetano de Melo
e Castro, que determina que “se a pusesse em local público na praça de
Olinda, para satisfazer os ofendidos e atemorizar os negros que o
julgavam imortal”.
Domingos Afonso Sertão
★ Mafra, Portugal, ? † Salvador, 1711

SENHOR NA GUERRA DOS CURRAIS


No fim do século XVII ele conduz a expansão da pecuária para os
mais fundos sertões, a milhares de quilômetros dos mercados
litorâneos.

Pouco se sabe de sua formação. Em 1674, estabelece-se numa propriedade


chamada Sobrado, que ficava a cerca de 250 quilômetros da vila baiana de
Juazeiro, rio São Francisco acima.
Era então apenas um entre os muitos que aceitavam as condições dos
descendentes de Garcia d’Ávila, o fundador da Casa da Torre: recebia
alguma proteção das permanentes tropas de índios aliados, entregava
parte da produção e podia explorar a pecuária no território cedido.
O rio São Francisco marcava a fronteira entre a Bahia e Pernambuco,
de modo que a propriedade de Domingos Afonso estava já além dos
limites das concessões de terra que se podia obter em Salvador.
Domingos Sertão (ele mesmo adiciona o termo ao nome) aproveita a
oportunidade e passa de subordinado a senhor, obtendo sesmarias no
atual território do Piauí. É um entre muitos. Desde a expulsão definitiva
dos holandeses os dirigentes pernambucanos concedem títulos de terras
— com a condição de que o agraciado as ocupe.
Agindo por conta própria, aprimora a cartilha da Casa da Torre:
arranjar um exército de índios aliados via casamentos; massacrar as
populações nativas existentes; entregar gado para os vencedores que se
disponham a criá-lo no território devastado.
Assim a aliança entre Tupi e portugueses, formada no litoral durante o
século XVI, foi ampliando seu domínio sobre vastas porções do território
interior nordestino. Dezenas de etnias são dizimadas e o território que
ocupavam é transformado em núcleos isolados de criação tocados por um
sobrevivente da guerra, casado no geral com índia — e às vezes contando
com a ajuda de vaqueiros.
O proprietário da terra se transformava em sócio-empreendedor,
recebendo parte da produção. A quarta, nome dado à parte do vaqueiro,
era suficiente para manter a família e os auxiliares. Já os três quartos das
crias que iam para Domingos Sertão permitiam a multiplicação da riqueza,
a manutenção da família oficial e das famílias derivadas dos casamentos
com nativas.
O sucesso de Domingos Afonso Sertão em manejar simultaneamente
as etapas que iam do massacre até a produção regular vai permitir que ele,
apenas no Piauí, se torne proprietário de 30 grandes estabelecimentos
próprios de criação, formados em pouco mais de três décadas.
Quando morreu, em 1711, tinha acumulado não apenas propriedades,
mas também uma das maiores fortunas em dinheiro existentes na colônia:
a guerra dos currais levava o mercado para o interior do território da
aliança luso-Tupi e fortunas para as grandes cidades do litoral — os
jesuítas de Salvador, herdeiros da maior parte do dinheiro, fizeram um
seminário inteiro com apenas uma fração do que receberam.
Gregório de Matos
★ Salvador, 1636 † Recife, 1696

BRASILEIROS EM LETRAS
Escritor passa a viver entre o povo mestiço, festeiro e negociante;
surge o primeiro grande retrato em palavras da realidade
brasileira.

Seu pai é um empreiteiro e senhor de engenho rico o suficiente para fazer


algo que poucos podem: mandar o filho estudar em Coimbra, já que o
governo português não permitia faculdades no Brasil. Formado, faz
carreira como juiz e chega a publicar livros. Volta para a cidade natal em
1681, como padre (também era formado em Teologia) encarregado de um
cargo administrativo da igreja, controlada pelo rei.
Já em seus primeiros tempos na cidade começa a empregar a sólida
formação literária e retórica para fazer poesia nos moldes da época para
pessoas com situação social elevada: produz uma espécie de crônica social
do poder, com elogios a autoridades amigas, e poesias religiosas nas quais
mostra o grande domínio da retórica barroca. Mas sofre reveses políticos e
sua vida muda radicalmente. José Miguel Wisnick resume:
“Casou-se com Maria dos Povos, vendeu as terras que recebera como dote,
jogando dinheiro num saco e gastando-o ao acaso e fartamente. Sai pelo
Recôncavo ‘povoado de pessoas generosas’ como cantador itinerante,
convivendo com todas as camadas da população, metendo-se no meio das
festas populares, banqueteando-se sempre que convidado. ‘Do gênio que já
tinha tirou a máscara para manusear obscenas e petulantes obras’, diz Manuel
de Castro Rabelo. Nessa fase engrossa o volume de sua poesia satírica, o
barroco popular oposto ao acadêmico e a poesia satírica ao lirismo cortês.”
O apuro técnico da escrita — uma raridade na colônia em que o
governo proibia, além de escolas, a entrada de máquinas impressoras,
fabricando analfabetos — deixou como herança em sua obra um
preconceito de fidalgo com relação ao mundo no qual agora andava. Mas,
assim como no caso do pintor Eckhout, o assunto retratado, a vida das
pessoas comuns, compôs o primeiro grande painel da sociedade brasileira
do tempo naquilo que tinha de próprio.
O diferencial é resumido de modo muito direto no mote de um
poema:
“De dous efes se compõe esta cidade, a meu ver: um furtar, outro foder”.
Com relação ao “furtar”, sua poesia descreve com certa acrimônia o
fato de que a vida brasileira era muito mais mercantil do que suportava
sua herança nobre: pobres se tornam ricos, tomam o governo, vivem como
fidalgos mesmo sendo descendentes de índios.
Já quanto ao “foder”, desanca com frequência a realidade dos
casamentos de aliança, pelos quais um enriquecido se entrelaçava com a
família de uma noiva da já então chamada “nobreza da terra”, enquanto
descreve a vida sexual muito animada (inclusive a própria) fora do
casamento oficial, que gera mestiços de todo tipo.
Morre em 1696 e sua obra só é impressa no século XX.
Padre Guilherme Pompeu de Almeida
★ Santana de Parnaíba, 1656 † Araçariguama, 1713

O BANQUEIRO DO SERTÃO
A partir de um empreendimento siderúrgico, financiou
descobridores de ouro e montou um peculiar banco num palácio
em pleno sertão.

Faz doutorado em Teologia no Colégio de Jesuítas de Salvador: é o


máximo a que alguém pode chegar estudando no Brasil. É um dos raros a
ter esse título sem entrar para a ordem, por um motivo: uma filha, tida
provavelmente com uma índia. Faz então o que costumavam fazer os
candidatos menos estudados para chegar ao sacerdócio: um concurso
público, tornando-se padre secular. Nessa condição volta para a cidade
natal, em 1676.
Sendo padre secular, não tem rendas eclesiásticas nem está obrigado
pelo voto de pobreza. Vai trabalhar para ganhar a vida ao lado do pai, o
capitão Guilherme Pompeu de Almeida. Sem nunca ter saído de Santana
de Parnaíba, seus negócios iam longe.
Na base deles está a exploração do ferro: o capitão começou com uma
pequena oficina de ferreiro e a transformou numa manufatura com cinco
oficinas e 200 trabalhadores. Tal crescimento se devia ao mercado: o ferro,
na forma de facas, machados e cunhas, era a moeda de troca básica nos
negócios com índios.
O capitão entregava produtos de ferro para quem fazia incursões pelo
sertão e recebia parte do que eles recolhessem com suas caravanas. Os
retornos do capitão vinham de negócios numa área que se estendia da
Amazônia ao Prata, do litoral ao Peru. Tal era o espaço dominado pela
aliança Tupi-portuguesa no Sul da colônia.
Recebendo um dote do pai, o padre emprega-o para financiar parentes
que faíscam ouro em Curitiba e outros que se embrenham pelos sertões.
Vários de seus clientes são muito bem-sucedidos — apenas no ano de
1697, recebe quase 100 quilos de ouro como pagamento.
Usa a fortuna para comprar gado em Curitiba, escravos em Salvador e
produtos de abastecimento em São Paulo. Organiza caravanas armadas
que levam tudo para as minas e vendem com grande lucro para quem
tiver ouro para entregar.
O passo seguinte é ainda mais ousado: construir um palácio murado
numa grota protegida por sua força armada em pleno sertão. Manda
trazer louças da China, sedas do Oriente, talheres de ouro de Portugal;
artesãos decoram a capela onde celebra missas, com destaque para uma
luminária feita com uma arroba de prata.
É um banco do sertão. Os clientes deixam seus pertences na portaria,
são tratados como hóspedes de luxo — e o padre se encarrega de guardar
o precioso metal que juntavam em segurança, longe das vistas de
cobradores de impostos do governo.
Guilherme Pompeu de Almeida morre em 1713. Uma parte menor de
seus bens fica para a filha, outra forma o maior dote recebido pela
Companhia de Jesus em todo o império português até aquela data — 115
quilos de prata eram apenas a parte mais vistosa do quinhão.
Artur de Sá Menezes
★ ? † Portugal, 1709

O PRIMEIRO GOVERNADOR A VIAJAR PELO INTERIOR


Depois de dois séculos de desprezo, o poder central finalmente se
mexe — para buscar sua parte no ouro que os moradores
encontraram.

Como governador enviado pelo rei, Artur de Sá Menezes entra em São


Paulo no final de 1697 e anuncia sua missão: organizar uma incursão para
o sertão, por ordem de Sua Majestade. Os paulistas arregalaram os olhos.
Não era para menos. Ao longo de dois séculos de colonização, quase
nenhum governador-geral do Brasil tinha viajado para o interior do
território no exercício do cargo. Quase inexistiam atividades do governo-
geral fora da capital, Salvador — quando existiam, aconteciam no litoral.
O descaso do governo central pelo sertão era de tal ordem que,
passados dois séculos, nem mesmo uma pequena estrada havia sido
construída por conta dele. Toda a atividade econômica no já imenso sertão
brasileiro era inteiramente feita “à custa do sangue, vida e fazenda dos
moradores”, como diziam os olindenses. Todo o governo também:
vereadores eleitos eram a única autoridade nas vilas do vasto interior — e
as eleições regulares a única forma de organização do poder existente.
Artur de Sá Menezes convocou uma reunião dos moradores e,
segundo escreveu numa carta contando os resultados para o rei, explicou
as razões da viagem com muitas palavras:
“É de tão grande utilidade para os vassalos a riqueza que estas minas
produzem e Vossa Majestade tão generosamente lhes concede, e eles,
esquecendo-se das suas obrigações, extraviam aquela pequena parte que Vossa
Majestade manda reservar para a sua Real Fazenda; e é justo que se busque
todo o remédio para que a ela se pague o que cada um deve.”
Os moradores entendem depressa o recado: ele vinha pegar uma parte
do ouro. Para o governador, esse ouro não era o resultado do suor dos
mineradores, mas algo generosamente concedido pelo rei — algo que
talvez os moradores não tenham pensado durante os anos de abandono.
O governador encontra os meios para chegar a seus fins: perdoa Borba
Gato, foragido depois de assassinar uma autoridade, e o nomeia guarda-
mor das minas de Caeté, com amplos poderes para distribuir datas aos
mineradores. Segundo Costa Matoso, a aliança deu resultados curiosos:
“Na repartição das minas, tomou o governador Artur de Sá Menezes datas
para si no lugar que lhe assinalou Borba Gato e, nelas, dizem que tirou trinta e
tantas arrobas de ouro, voltando rico para Lisboa.”
Teve menos fortuna na arrecadação dos quintos reais, mas não deixou
de lembrar uma opção ao rei:
“Como as minas são tão ricas, pareceu-me preciso facilitar aquele caminho
de sorte que convidasse mineiros a irem minerar, o que redundará em grande
utilidade da Fazenda de Vossa Majestade.”
A Coroa finalmente encontrava motivos para governar o sertão do
Brasil.
Manuel Borba Gato
★ São Paulo, 1649 † Sabará, 1718

DE ASSASSINO A FIDALGO
Um criminoso fugido vira autoridade num passe de mágica
quando se dispõe a colaborar com os cobradores de impostos
reais.

Genro de Fernão Dias Paes Leme, acompanha o sogro em suas andanças


pelo sertão em busca de minérios. Em 1681 o grupo recebe um homem
importante em plena selva. Há um desentendimento. Borba Gato mata-o.
Bento Fernandes Furtado, seu contemporâneo, narra o que veio em
seguida:
“Entrou na desconfiança de que, infalivelmente, seria procurado das justiças
com violentas ordens para ser punido. Ainda que sem culpa total sua, tomou o
caminho do sertão do rio Doce. E fazendo-se parcial com o gentio, aos quais
domesticou a sua obediência, ficou entre eles respeitado como cacique e assim
viveu barbaramente. (…) Doído de sua consciência, comunicou a seus parentes
em São Paulo por enviados secretos de tão distante lugar e, sendo avisado de
que não era procurado, retirou-se para a vila de Pindamonhangaba, numa
paragem chamada Paraitinga.”
Sabia onde havia ouro. Por isso, por uma ordem direta do governador
Artur de Sá Menezes, deixou a vida de foragido diretamente para a de
guarda-mor das minas de Caeté, onde não faltavam determinações
explícitas:
“Confiado de sua prudência e de que se haverá muito conforme ao real
serviço, como dono do posto gozará de todas as honras, privilégios, liberdades e
isenções; em razão disso mando a todos os oficiais de guerra e justiça que o
honrem, estimem e a todos que o acompanharem que o obedeçam.”
As determinações são cumpridas pelos dez anos seguintes, nos quais
Borba Gato é a autoridade máxima nas minas do rio das Velhas. Mas este
é um afluente do rio São Francisco, portanto um território que pode ser
atingido com mais facilidade desde Salvador que de São Paulo. Assim a
região se torna o ponto de contato de dois fluxos de ocupação dos sertões
brasileiros até então pouco conectados, o do Nordeste e o do Sul. O ouro
provoca uma unificação material da colônia.
A lógica econômica se impôs depressa: criadores de gado do vale do
São Francisco ganham um novo mercado de enriquecidos, de modo que
as boiadas passaram a subir o vale em vez de descer. Com elas vai gente
que enriquece depressa — e ganha poder.
Em 1709, Borba Gato desafia o baiano Manuel Nunes Viana,
expulsando-o das minas como contrabandista. Em vez de obedecer, Viana
comanda uma revolta, conhecida como Guerra dos Emboabas. No curso
dela manda para Lisboa um emissário, que promete mais dinheiro de
impostos ao rei.
A oferta é aceita, um novo governador enviado com força militar — e
assim a autoridade central domina o sertão.
Borba Gato perde o cargo, honras e obediência. Suas filhas se casaram
com portugueses, que levaram quase todo o ouro que ajuntara para a
metrópole. Morre em 1718.
Manuel Nunes Viana
★ Portugal, ? † Salvador, c. 1735

O PODER DOS EXÉRCITOS SERTANEJOS


Dois modos de viver no sertão se confrontam: exércitos com
marcas africanas dos pecuaristas nordestinos e aqueles de
lutadores indígenas dos paulistas.

Chega adolescente na Bahia e vai trabalhar no comércio. Adquire certo


nome pela capacidade de agradar os clientes — que sobrevive inclusive ao
fato de ter cometido um assassinato. De alguma forma acaba conhecendo
Isabel Guedes de Brito, herdeira de um complexo de criação de gado de
porte semelhante ao da Casa da Torre, a chamada Casa da Ponte.
Consegue que ela o nomeie procurador, com poderes sobre todo o alto
vale do São Francisco.
Logo fica famoso, e não mais por causa da simpatia. Transforma um
escravo africano conhecido como Bigode no chefe de um verdadeiro
exército de escravos e servos, muito mais eficazes militarmente que os
agrupamentos índios. Faz parte dessa eficácia o emprego conspícuo da
violência contra moradores e subalternos — e também o crescimento
rápido das propriedades e rebanhos.
A descoberta do ouro leva-o — com armas e bagagens — para as
minas de Caeté. Já em 1703, em boa medida pela capacidade de trazer
escravos africanos de Salvador para minerar, torna-se um dos maiores
exploradores do ouro. Com os escravos vinham produtos de
abastecimento, de maneira que sua casa torna-se o principal ponto de
comércio do local. Não bastasse, é também o maior vendedor de gado.
Por muitos anos ninguém liga para o fato de que as leis proibiam a
venda de reses baianas nas minas — decreto talvez arranjado por pressão
de consumidores de Salvador. Mas em 1709, temendo os métodos duros
de Viana, o guarda-mor Borba Gato resolve expulsá-lo como
contrabandista.
Em resposta, Manuel Viana coloca suas tropas nas ruas, faz-se eleger
governador por sua clientela — e ninguém é capaz de desafiá-lo
abertamente. Quando há combates, as tropas sob seu comando mostram-
se superiores aos grupos de índios dos paulistas. Seguro de sua posição,
manda emissários para Lisboa, oferecendo dinheiro de impostos em troca
de apoio.
O rei D. João V aproveita a oportunidade. Compra a capitania de São
Vicente dos antigos donatários, nomeia Antônio de Albuquerque como
capitão-mor. A passagem da capitania da esfera particular para a da Coroa
marca o fim da era de autonomia local: o novo governante coloca gente
fiel em todos os postos, monta uma tropa leal, domina militarmente tanto
São Paulo como o território das minas — este, com apoio de Manuel
Viana.
Vendo-se vitorioso, Viana continua empregando seus métodos
tradicionais. Mas logo recebe o mesmo enquadramento dos paulistas:
passa a ser acusado de contrabandista, perseguido pelas tropas do poder
central — e obrigado a abandonar a região mineradora. Preso em 1725,
sofre uma série de processos. Morre na capital baiana, deixando sete filhos
ilegítimos.
Xica da Silva
★ ?, c. 1732 † Serro, 1796

MISCIGENAÇÃO EM NOVA ESCALA

Os arranjos familiares pouco ortodoxos se tornam regra nos locais


de mineração — e produzem exceções como a desta mulata.
Seu pai, Antônio Caetano de Sá, era português do Rio de Janeiro; foi
soldado numa barreira fiscal antes de se embrenhar na Chapada
Diamantina. A mãe, Maria da Costa, era africana da Costa da Mina, trazida
escrava para a Bahia. Ainda menina é entregue como escrava pelo pai e
nessa condição tem um filho com seu senhor, o sargento Manuel Pires
Sardinha.
Situações assim eram a regra na região mineira nessa época, como
relatam alguns padres no Livro das devassas ou das visitas de 1733-1734,
escrito depois de percorrerem as Minas Gerais:
“O grande resvaladouro da frágil virtude daquelas gentes é a geral
mancebia, em que vivem quase todos os homens e mulheres disponíveis, não se
furtando a ela nem mesmo alguns sacerdotes. A falta de mulheres honestas é
aguda. Muitos cristãos saem em andejos à busca de alúvios auríferos sem se
importar com os sagrados laços do matrimônio. Estas vilas estão cheias de
pretas, índias, mulatas forras e solteiras, que não se pejam em concorrer com os
homens nas minas, nas estradas, em casa, a ponto de escandalizarem, as mais
audaciosas, até mesmo os próprios governadores com convites para o pecado e
a coabitação sem responsabilidades nem consequências.”
Com o ouro, a miscigenação deixa de ser colateral de alianças Tupi ou
processo restrito à área exportadora para se tornar prática geral na colônia.
E Xica da Silva escapa da regra da coabitação sem proteção porque acaba
se ligando a João Fernandes de Oliveira, filho de um pai de mesmo nome
e herdeiro também de um alto cargo local, o de Contratador de
Diamantes.
Sua situação muda depressa nos registros cartoriais. Passa de
“Francisca Mulata” para “Francisca da Silva, parda forra” e, logo depois do
nascimento da primeira filha do casal, em 1754, para “Francisca Silva de
Oliveira” — e os treze filhos tidos durante os quinze anos de convivência
dos dois são registrados em nome de ambos os pais, o que era uma
raridade na época.
Mais raro ainda é o fato de a união aparecer também no mundo
público. Xica da Silva passa a conviver com as autoridades e os ricos locais,
ainda que João Fernandes não oficialize a união. Nessa situação, os filhos
do casal também recebem a melhor educação possível na região.
Mas aquilo que é possível no Brasil era impossível em Portugal. Em
1770, João Fernandes recebe um chamado de Lisboa — e não tem o
mesmo procedimento de antes. Leva para a metrópole os filhos homens
do casal — todos acabam formados e fazem carreira.
Embora com propriedades e dinheiro deixados em seu nome, Xica da
Silva tem dificuldades para casar suas oito filhas. Morre 26 anos depois da
partida do companheiro e é enterrada no cemitério da irmandade da elite
da vila.
Bartolomeu Bueno da Silva, o
Anhanguera
★ Santana de Parnaíba, 1672 † Vila Boa de Goiás, 1740

A RIQUEZA DE GOIÁS LONGE DO DESCOBRIDOR


Na infância, o governo central inexiste nos sertões; na juventude,
é elemento de tentação; na vida madura, parceiro; na velhice,
entidade distante de sua pobreza.

Nasce na vila onde se aglomeravam os sertanistas de São Paulo; desde


criança segue nas caravanas de seu pai, de mesmo nome. Com 12 anos
percorre o interior de Goiás, área que não era de domínio Tupi e por isso
bem menos conhecida pelos mamelucos, quase sempre adstritos a
territórios de seus aliados. Apesar das descobertas minerais feitas por seu
pai, toma outro destino na vida.
Em 1701 migra para Sabará, na esteira das grandes descobertas das
Minas Gerais. Faz parte do grupo de mineradores paulistas derrotados na
Guerra dos Emboabas, mas se mantém como produtor próspero. Muda de
vida por insistência do governador Rodrigo César de Menezes, que,
sabendo das antigas descobertas, passa a oferecer poderes crescentes para
ele e sua família irem buscar ouro na região que percorrera com o pai na
infância.
Em 1722 sai o acordo: em troca de uma promessa por escrito de que
teria o governo da região em que descobrisse ouro, muda a vida de
pessoas próximas. Convence seu genro rico, João Leite da Silva Ortiz, a —
como disse um biógrafo — “vender por um o que valia dez”, deixando a
região do Curral del Rey (atual Belo Horizonte); já o irmão deste,
Bartolomeu Paes, entra no grupo como financiador em São Paulo.
Assim juntam 500 pessoas. A maior parte dos componentes da
incursão são índios, mas já havia escravos africanos e mulatos, como se
tornara regra em Minas Gerais. A disciplina é mais militarizada, e algumas
revoltas foram acontecendo na longa caminhada de procura.
Durante três anos e oito meses o grupo esquadrinha a região à custa
de dinheiro e vidas, até achar ouro. A notícia chega a São Paulo — mas
não se limita à vila. Em menos de uma década, apenas a população de
escravos africanos chegava a 10 mil em Goiás.
Anhanguera mantém o poder sobre o aglomerado — até encontrar um
governante realmente ambicioso. Antônio da Silva Pimentel teve a ousadia
de mandar abrir a arca com 60 quilos de ouro dos impostos de Mato
Grosso, trocar o conteúdo por chumbo e despachar a nova carga para
Lisboa. Sabendo que seria processado, trata de arrancar o que pode
enquanto não vem a intimação.
Manda prender e processar Bartolomeu Paes, alegando desvios na
cobrança de impostos. João da Silva Ortiz sabe da notícia, vai para São
Paulo — e é envenenado. Sobra apenas o Anhanguera tentando remediar
a situação. Acaba sendo também processado por desvios de autoridade.
Silva Pimentel manda para Goiás um novo governador, que trata de
defenestrar o velho descobridor. Bartolomeu Bueno da Silva morre em
1740, pobre e não exatamente feliz com a palavra do governo real, que
agora dominava definitivamente o interior rico do Brasil.
Ajuricaba
★ ? † Rio Amazonas, 1727

LIDERANÇA INDÍGENA EXCEPCIONAL


Sua façanha: pela palavra, unir grupos isolados; negociar armas
com ingleses e holandeses; resistir aos portugueses e controlar o
vale do rio Negro.

Pertencente a uma tribo do grande grupo Aruaque — um dos quatro


principais existentes no Brasil, ao lado dos Tupi-Guarani, Jê e Caribe —,
nasce no vale do rio Negro no início do século XVIII.
Naquele momento a região estava sofrendo uma verdadeira
devastação populacional: os registros de viajantes do século anterior falam
dela como local no qual nativos viviam em grandes cidades, algumas com
dezenas de milhares de habitantes; aqueles posteriores à época de vida de
Ajuricaba relatam apenas agrupamentos humanos pequenos, pontos de
troca das tropas da aliança e base para incursões de predação de seus
adversários.
Vivendo num momento de grande pressão sobre sua etnia, Ajuricaba é
capaz de estabelecer uma forma de lidar com a situação bastante diferente
da tradicional. Reúne grupos de vários matizes étnicos numa confederação
regional — algo possível apenas pelo método da diplomacia constante,
uma vez que cada povo era independente do outro e todos
constantemente guerreavam entre si por territórios.
A formação de um todo sólido dependeu ainda de outras habilidades.
O vale do rio Negro era então uma região de fronteira entre a ocupação
portuguesa no Brasil, ao sul, e domínios holandeses e ingleses no litoral
caribenho. Ajuricaba soube aproveitar a tensão fronteiriça para negociar
armas e bens com holandeses e ingleses.
Consegue assim produtos essenciais para compensar a desvantagem
tecnológica dos nativos sem recorrer às alianças de casamento que
marcavam essa espécie de negócio. Sem laços de dependência, ganha ele
mesmo o papel tradicionalmente reservado ao aliado português:
fornecedor de meios de produção e poder para outros grupos em troca da
apoio daqueles que recebiam os bens.
Dá sentido a essa posição rara de poder perseguindo o objetivo de
transformar os aliados em defensores militares da soberania no território,
mantendo sua independência. Chefiando a própria aliança, passa a
negociar com portugueses e holandeses alternadamente, lançando as
próprias frotas comerciais com excedentes econômicos nas duas direções.
A crescente independência e força da aliança de indígenas acaba sendo
vista como um perigo pelos portugueses. Em 1727 é organizada uma
expedição de guerra ao rio Negro. Ao fim dos combates, Ajuricaba é preso.
Metido a ferros, é posto numa canoa que parte para Belém. Em algum
ponto do caminho o prisioneiro manietado vai parar no rio, morrendo
afogado. Uma possibilidade óbvia é a de ter sido jogado. Mas também
correu a versão de que Ajuricaba teria cometido suicídio para não morrer
na condição de prisioneiro.
Alexandre de Gusmão
★ Santos, 1695 † Lisboa, Portugal, 1753

AS AÇÕES DA ALIANÇA FUNDAM UM TERRITÓRIO BRASILEIRO

Junta registros das andanças de grupos de lusos e Tupi; marca os


trajetos em mapas; reivindica (e consegue) o reconhecimento do
território do Brasil.

Nascido na vila que era o porto de São Paulo, faz seus estudos básicos com
os jesuítas — os únicos educadores disponíveis. Matricula-se em 1712 no
curso de Direito da Universidade de Coimbra. Dois anos depois recebe sua
grande oportunidade: acompanhar o conde da Ribeira Grande, enviado
como embaixador à França por D. João V.
Seu trabalho principal seria o de assessorar o embaixador, mas não se
limita a isso. Para começar, vence as limitações financeiras do modo que
pode; entre outras atividades, trabalha num cassino. Arranja dinheiro
suficiente para, ao longo de sua estadia de cinco anos na França,
frequentar o curso de Direito da Sorbonne. Em 1719 retorna a Portugal e
obtém o diploma de bacharel em Coimbra.
Cai nas graças de D. João V, que o envia para Roma, onde passa sete
anos. De volta a Portugal, torna-se secretário do rei, dedicando-se à
política externa. Começa a desenvolver uma nova ideia para o Brasil, capaz
de adequar a colônia à situação de grande produtora de riquezas. Organiza
o povoamento do Sul com a pretensão de ocupar o território até o rio da
Prata, mandando para Santa Catarina grandes contingentes de moradores
dos Açores.
É nomeado em 1743 para o Conselho Ultramarino, a mais alta instância
de governo do mundo colonial português. Começa um trabalho de
pesquisas no arquivo da instituição, com uma estratégia clara: buscar
todas as evidências documentadas das andanças pelo sertão de todos os
grupos da aliança entre Tupi e portugueses que encontrasse.
Marca os pontos geográficos citados nos documentos em mapas, até
chegar a uma demarcação de território contínua. Encomenda pareceres a
juristas para fundamentar as pretensões de domínio sobre o território.
Manda espiões para confeccionar mapas favoráveis em zonas fronteiriças.
Convence o rei a apoiar sua estratégia. Em 1747 é nomeado para
negociar as fronteiras entre os territórios americanos de Espanha e
Portugal. Apresenta mapas e documentos, argumenta com a paz derivada
do reconhecimento mútuo daquilo que era apenas posse. Consegue seus
objetivos: o Tratado de Madri, assinado em 1750, emprega o critério da
posse efetiva do território para a demarcação de fronteiras.
Faz-se assim o reconhecimento jurídico daquilo que os aliados luso-
Tupi moldaram em séculos de andanças. Os muitos casamentos entre
mulheres nativas e lusitanos, apoios dos chefes aliados aos genros e vice-
versa, incursões de guerra, escravidão ou negócios, destruição de outras
etnias, controle de espaços, adquirem uma nova realidade a partir do
trabalho de Alexandre de Gusmão: o Brasil ganhava um território
demarcado em mapas e reconhecível pelo Direito internacional.
Alexandre Rodrigues Ferreira
★ Salvador, 1756 † Lisboa, Portugal, 1815

UMA IMENSA EXCEÇÃO

Portugal adota a política cultural mais obscurantista de todas as


Américas; sua pequena equipe de desenhistas e naturalistas foi a
única a romper a barreira férrea.

Filho de um comerciante rico de Salvador, torna-se eclesiástico com 16


anos; enviado para a metrópole, entra na Universidade de Coimbra em
1778, justamente no momento em que a instituição recebe sua primeira
modernização em séculos. Como fruto dela, acaba sendo um dos
primeiros a se formar em História Natural.
Faziam parte das mudanças na administração portuguesa as tímidas
tentativas de suavizar a brutal política de manter o Brasil na obscuridade
— ou, como diziam os autores, a Política de Segredo. Foi seguida à risca
por três séculos, com a justificativa de evitar que estrangeiros
conhecessem o potencial e as riquezas da colônia.
Os instrumentos eram ferozes. Para evitar que brasileiros divulgassem
informações ou pensamentos, as impressoras foram proibidas — e todos
os que ousaram desobedecer à proibição foram presos, tendo as prensas
destruídas. Qualquer livro que descrevesse a vida e a economia locais era
censurado. Todos os pedidos dos moradores para instalar faculdades
foram negados. A alfabetização era reduzida a um mínimo brutal.
Tal política criou uma exceção na América. Enquanto a miséria
intelectual era mantida no Brasil, havia gráficas até mesmo nas reduções
de Guarani espanholas — e algumas dezenas de faculdades. Nos Estados
Unidos as universidades chegaram quase junto com os pioneiros e a
alfabetização era uma realidade comum em todas as colônias.
A pobreza intelectual era de tal ordem que, dois séculos e meio depois
da aliança inicial, praticamente não havia retratos de pessoas, memórias
escritas, desenhos das cidades, registro dos modos de vida. Apenas em
1780 o governo português manda o primeiro grupo de estudiosos laicos
para observar e documentar a vida e a natureza brasileiras — e Alexandre
Rodrigues Ferreira é indicado para seu comando.
Desembarca em Belém em outubro de 1783, à testa de uma equipe
mínima, composta por apenas dois desenhistas e um botânico. Viaja
primeiro em torno da cidade. No ano seguinte sobe o rio Negro e chega
até os confins do atual estado de Roraima e a fronteira com a Colômbia.
Volta a Belém apenas para saber que seus proventos não tinham sido
pagos.
Parte novamente, na via inversa de Raposo Tavares: sobe o Solimões, o
Madeira e o Mamoré, vai dar em Cuiabá, já na bacia do Prata. Percorre o
Pantanal fazendo registros e volta para Belém — dez anos depois da
primeira partida e sofrendo os efeitos dos ataques de malária.
Retorna para Lisboa e, nos anos seguintes, cuida de editar o material
que havia recolhido — e que se tornara um tesouro, na medida em que
era único. Faz isso em meio a trabalhos botânicos até o fim da vida. Morre
em 1815.
Frontispício alegórico da viagem filosófica, na qual supostamente Alexandre Rodrigues Ferreira
aponta o mapa dos rios Amazonas, Madeira, Branco e Negro (Livro B.N.21.1.0).
Casa das índias de Monte Alegre, desenhada durante a expedição.
Vários modelos de pintura facial dos Jurupixuna, realizados pela equipe.
No alto, utensílios dos índios Mura; acima, etapas da construção de canoas.
Francisco Félix de Souza, o Chachá
★ Salvador, 1754 † Ajudá, Benim, 1849

MAMELUCO, TRAFICANTE E REI AFRICANO


Começa no negócio do tráfico de escravos ainda jovem,
desembarcando na Costa da Mina; sobe na vida, até se tornar o
soberano de Benim.

Filho de português com uma mestiça de origem indígena, nasce num


momento em que a economia baiana se tornara importante não apenas
como fornecedora de gado e alimentos para as regiões mineradoras —
inclusive aquelas da própria capitania. Já ao final do primeiro terço do
século XVIII os mercadores da cidade mandam frotas regulares para
comprar escravos na região da Costa da Mina.
Formalmente o território era holandês. Mas, na prática, os navios
vindos de Salvador traziam subornos em mercadorias, de modo que as
autoridades permitiam o comércio direto com os potentados locais. Em
pouco tempo havia um posto permanente exclusivo dos baianos, a
fortaleza de Ajudá. Ali aportavam anualmente algo como duas dúzias de
navios mandados para carregar escravos.
Félix de Souza segue num desses navios, quase certamente em posto
modesto. Fica na fortaleza e começa sua carreira de comerciante a partir
de posições inferiores. Assim como no Brasil, a economia local era movida
por uma combinação de trocas diretas de mercadorias, moeda, guerra,
casamentos e acordos políticos. O recém-chegado é capaz de manejar
tudo isso, ganhar fama por seu proverbial cumprimento da palavra
empenhada — e sobe na vida.
Na virada para o século XIX isso queria dizer várias coisas: um posto de
oficial na fortaleza, casamento com filha de reis (Jijibu, filha de
Comalangan), depósitos próprios de escravos — e até acordo direto de
fornecimento com o mais poderoso monarca: Adondozan, rei de Daomé.
Assim se torna também fornecedor para Cuba e o Caribe.
Um dia vai reclamar uma dívida com o rei e acaba sendo preso — para
sua sorte junto com Gapê, meio-irmão do monarca. Os dois selam um
pacto na prisão, que rende muito: com armas mandadas por aliados do
traficante Gapê dá um golpe e assume o poder. Félix de Souza ganha o
título de Chachá, o controle político de Ajudá e o monopólio do tráfico de
escravos na região de Benim.
Amplia seu comando na fortaleza e reúne uma fortuna colossal.
Mantém o domínio da região e seu rendoso negócio mesmo depois da
separação entre Brasil e Portugal. Manda os filhos estudarem na Bahia,
recebe negros que voltavam enriquecidos ou exilados (como foi o caso dos
maleses depois do levante de 1835) para a África, vende dezenas de
milhares de escravos, mesmo enfrentando uma dura oposição da Marinha
inglesa, especialmente a partir da décade de 1840.
Morre com 94 anos, em 1849. Deixa viúvas 53 mulheres, mais de cem
filhos e 2 mil escravos. É enterrado em casa, segundo os ritos sincréticos
que praticava. Seus descendentes reinaram pelas gerações seguintes na
região de Benim com o mesmo título.
Joaquim José da Silva Xavier, o
Tiradentes
★ São João del Rei, 1746 † Rio de Janeiro, 1792

O MÁRTIR DA INDEPENDÊNCIA
Republicano sem medo de sua posição, é o único de um grupo de
conspiradores mineiros a ter a pena executada por lutar pela
soberania do Brasil.

Filho de pequeno proprietário rural, fica órfão aos 9 anos e é educado por
um de seus irmãos, o padre Domingos da Silva Xavier. Aprende noções
práticas de medicina e odontologia. Ganha o apelido pela habilidade com
que extraía dentes.
Sem dinheiro para seguir adiante nos estudos, faz a vida como tropeiro
e mascate. Consegue um pouco mais de estabilidade ao obter um posto
de alferes nas milícias. Depois de sete anos de serviço, cansado de esperar
por uma promoção, pede baixa.
Em 1787 vai para o Rio de Janeiro. Já era, nessa época, grande defensor
dos ideais republicanos e apaixonado pela independência dos Estados
Unidos, cuja Constituição estudaria bastante. Em 1788 conhece José
Álvares Maciel, que acaba de voltar de uma viagem pela Inglaterra.
A partir daí vai sendo introduzido nos círculos de conspiradores da
elite, quase todos ligados à Maçonaria, instituição secreta que disseminava
projetos na terra sem livros. Entusiasmado, Tiradentes nunca se adapta
plenamente ao regime de segredo. Comenta abertamente suas ideias e
divulga projetos republicanos e de independência sem atentar para sua
segurança.
De volta a Minas, acaba aceito num grupo de antigos governantes
apeados do poder pelo rei. O grupo inclui militares de alta patente,
secretários do governador, juízes, ouvidores e mineradores muito ricos
que se tornam conspiradores pensando numa volta ao poder. Tiradentes é
aquele de posto mais modesto no grupo e um dos mais entusiasmados.
Quando é preso, a princípio nega sua participação na conjura, mas,
confrontado com testemunhas e as confissões dos companheiros,
reconhece que contribuíra para a organização do movimento e defende
publicamente suas ideias republicanas. É condenado à morte, e o único de
todo o grupo a ter a sentença executada.
No sábado, 21 de abril de 1792, depois de beijar os pés do carrasco,
veste a alva de condenado. Vai na frente do cortejo, seguido por nove
padres franciscanos e membros de várias irmandades, todos recitando
salmos. Atrás seguem os irmãos da Misericórdia e cavalarianos em
uniforme de gala.
Depois de três horas de desfile chega ao cadafalso. Faz um único
pedido: que lhe seja abreviado o suplício. Depois de rezar o “Credo”, o
carrasco o empurra. Morto, tem a cabeça cortada e o corpo dividido em
quatro partes. O sangue serve de tinta para a lavratura de sua certidão de
óbito.
Os restos mortais, metidos em salmoura, são enviados para os lugares
onde o condenado pregara a independência. A cabeça fica exposta na
praça de Ouro Preto, onde o governador ordena três dias de festas para
comemorar o malogro da conspiração.
Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho
★ Ouro Preto, 1738 † Ouro Preto, 1814

UM GÊNIO DA ESCULTURA
Apesar dos desequilíbrios sociais, na região mineradora foi
possível juntar riqueza suficiente para manter o trabalho de um
escultor de talento.

Filho bastardo do mestre de obras português Manuel Francisco Lisboa e


de Isabel, uma escrava africana, sua formação profissional acontece no
ambiente de trabalho do pai, que inclui agrupamentos culturais tornados
possíveis com a concentração humana promovida pela mineração.
Em meados do século XVIII, época de sua formação, Ouro Preto era a
principal cidade mineira e tinha cerca de 30 mil habitantes. Aos poucos
conhecia certa estabilidade. Os desequilíbrios dos tempos iniciais, quando
a população masculina chegou a ser três vezes maior que a feminina,
foram sendo mitigados.
Mas ainda havia muitos solteiros que costumavam beber bastante, pois
esse era o único divertimento, e das bebedeiras resultavam
desentendimentos que com frequência acabavam em brigas e mortes.
Também havia muita miséria (escravos definhando, infelizes que haviam
esgotado seus veios, artesãos sem trabalho) e corrupção por todo o
governo.
Mas havia também mineradores e funcionários tão ricos que mal
sabiam o que fazer de seu ouro. Gastavam em fantasias que iam da
compra de escravos trombeteiros para anunciar sua passagem ou escravas
jovens para seus prazeres. Depois, em construções capazes de mostrar sua
condição à cidade.
O surto de grandes obras na região das minas começou incentivado
pelo mais rico de todos os ocupantes, que encomendou o Palácio dos
Governadores, inaugurado em 1749. Nesse mesmo ano foram contratadas
a ampliação do palácio do bispo de Mariana e as obras do primeiro
chafariz dessa cidade, cujo pelourinho é do ano seguinte. Em 1751,
começaram a ser erguidas as igrejas da Ordem Terceira de São Francisco,
em Ouro Preto, e da Ordem Terceira do Carmo, em Mariana; no ano
seguinte, as igrejas do Rosário e de São Pedro, em Mariana; em 1756, a
Casa do Cabildo, em Mariana.
As obras ajudavam a transferir dinheiro para empreiteiros como o pai
de Aleijadinho, numa época em que, por causa da concorrência dos
escravos, era raro o trabalho pago. Assim, as cidades mineiras começaram
a abrigar uma franja de artistas e artesãos capazes.
A oportunidade valia também várias outras atividades, inclusive
culturais. Nessa mesma época formaram-se orquestras que competiam
entre si, pois as irmandades ou confrarias religiosas passaram a contratar
regentes, cantores e instrumentistas. Assim muitos profissionais
dominaram tanto a música religiosa quanto a profana, dedicando-se à
música para entretenimento também em festejos privados, onde tocavam
desde peças instrumentais eruditas até acompanhamentos para danças de
salão.
Embora em Ouro Preto tenha havido a maior concentração de
atividade musical do período, a possibilidade disseminou-se por muitas
outras vilas da região mineira, como Sabará, Mariana, São João del-Rei,
São José del-Rei (hoje Tiradentes) e Arraial do Tijuco (Diamantina). Assim
surgiram grandes compositores. Entre os mais importantes estão José
Joaquim Emérico Lobo de Mesquita, Francisco Gomes da Rocha e
Jerônimo de Souza Lobo.

Aleijadinho conseguiu a proeza de firmar um estilo pessoal que


acabou sendo considerado a marca mais elevada do barroco
mineiro.
Também havia espaço para a literatura. Apesar da rigorosa proibição da
imprensa e das dificuldades impostas para importar livros, surgiu uma
produção escrita local em Minas Gerais. Nos moldes do tempo, o
arcadismo firmou-se em meio à efervescência cultural e política, revelando
a influência do iluminismo francês, e mais tarde a ressonância da
independência americana.
Cláudio Manuel da Costa, autor do poema épico “Vila Rica”, foi o
primeiro e um dos maiores letrados mineiros. Fazia parte de um grupo
que incluía Basílio da Gama, autor da poesia épica “O Uraguai”; Manuel
Inácio da Silva Alvarenga, com sua obra Glaura, composta de rondós e
madrigais; José de Alvarenga Peixoto, autor do poema lírico “Bárbara
Bela”; Santa Rita Durão, com “Caramuru”; e Tomás Antônio Gonzaga,
autor de Marília de Dirceu e Cartas chilenas.
Formado nesse ambiente, Antônio Francisco Lisboa ganha fama não
apenas como artista, mas também como animado festeiro e dançarino.
Talentoso, monta a própria oficina de arquitetura, entalhe e escultura. Em
1766, recebe a primeira encomenda de vulto, para ornamentar a igreja da
Ordem Terceira de São Francisco, em Ouro Preto. No ano seguinte morre
seu pai — que não deixou herança para seu filho natural. Em 1774 conclui
os trabalhos de renovação e escultura da fachada da igreja da Ordem
Terceira do Carmo, em Sabará.
Por essa época começam a se manifestar os sintomas da doença
progressiva que provocaria as deformações físicas que lhe valeram o
apelido de Aleijadinho. Após perder os dedos dos pés, começa a andar
apoiado sobre os joelhos. Quando perde também os dedos das mãos, faz
com que ferramentas sejam amarradas aos punhos, a fim de continuar a
trabalhar.
Ajudado por seus escravos artesãos, vai dando conta de desafios
escultóricos cada vez maiores — e se tornando um mestre do trabalho
com pedra-sabão. Na última década do século, já com mais de 60 anos de
idade, passa a dedicar-se a uma grande encomenda: as 66 estátuas que
compõem os Passos da Paixão do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos
(1796-9), em Congonhas do Campo, e aquelas dos profetas para o adro da
mesma igreja (1800-5).
A doença o afasta progressivamente do convívio social. Relaciona-se
apenas com três escravos, dois dos quais o ajudavam como entalhadores.
Como manteve os movimentos finos do polegar e do indicador, conseguia
fazer suas esculturas. Só para de trabalhar nos dois últimos anos de vida.
Deixou uma obra gigantesca — a essência daquilo que veio a ser chamado
barroco mineiro, o primeiro estilo de arte próprio do Brasil.
Morreu aos 76 anos, em 1814, numa situação de extrema pobreza e
sofrimento, e sem qualquer reconhecimento contemporâneo de seu
trabalho.
Jesus carregando a cruz (detalhe).
Profeta Amos
Profeta Habacuc
São Francisco de Assis (detalhe).
Via Crucis (detalhe).
D. João VI
★ Lisboa, Portugal, 1767 † Lisboa, Portugal, 1826

UM REI E SUA CORTE DO BRASIL


Reage às revoluções da época flutuando para cá e para lá: deixa
Portugal, reina no Rio, volta tangido a Lisboa. Mantém a coroa
sobre a cabeça e a cabeça sobre o corpo místico de rei.

Filho da rainha D. Maria I e de D. Pedro III, torna-se regente de Portugal


em 1792, quando sua mãe é declarada louca. Passa a comandar um reino
no momento em que revoluções derrubavam monarcas e revolucionários
mandavam decapitar reis. Não bastasse, a vaga se espraiou em guerras
continentais, em que a força portuguesa era mínima. Prudente e realista,
quando ameaçado por Napoleão emprega a saída que os portugueses
comuns empregavam havia três séculos: buscar remédio no Brasil.
Transfere a Corte para o Rio de Janeiro. Depois de absorver
empreendedores, o Brasil absorve toda a elite governamental do Reino —
sem problemas, pois os impostos que a sustentavam eram há tempos
recolhidos na colônia.
As vantagens iniciais são muitas — a começar pela primeira máquina
de imprimir a funcionar no Brasil, com três séculos de atraso, e a primeira
faculdade (de Medicina, em Salvador). Em 1808, assim que chega, D. João
determina a abertura dos portos. Em 1815, a colônia é transformada em
reino unido ao de Portugal e Algarves.
A guerra parou na Europa no momento da morte de D. Maria I, em
1816. Aclamado rei, D. João VI fica no Rio de Janeiro quanto pode — até
haver uma revolução em Portugal. Deixa a cidade em 1821, levando apenas
3 mil dos 15 mil cortesãos que vieram. O grupo carrega todo o ouro
depositado no Banco do Brasil, dando início a uma crise econômica.
De volta a Portugal, o rei aceita governar sob restrições constitucionais.
Mas em maio de 1823, depois da Independência brasileira, um levante
militar promovido por seu filho D. Miguel permite-lhe governar como rei
absoluto. Foi um dos raros monarcas do tempo a sobreviver no poder.
 
Carlota Joaquina
★ Aranjuez, Espanha, 1775 † Queluz, Portugal, 1830

A REACIONÁRIA

Já na noite de núpcias com D. João VI, com 10 anos, começam suas


desavenças com o marido — deu com um candelabro nos cornos do
ousado. A partir daí os dois levam vidas bastante diversas, cada um com
suas convicções.
Carlota Joaquina é orgulhosa, detesta conceder aos tempos
revolucionários — não muda de ideia nem mesmo quando seu pai é
destronado. Abomina o Rio de Janeiro e suas gentes misturadas. Torna-se
amante de um traficante de escravos e faz incursões fracassadas para ser
rainha das antigas colônias espanholas da América, já independentes.
De volta a Portugal, recusa-se a assinar a Constituição liberal. Apoia
seu filho Miguel em tentativas de golpe contra o marido — e, depois da
morte dele, contra a rainha D. Maria II, filha de D. Pedro I do Brasil.
Derrotada, morre como prisioneira no palácio de Queluz.
José Bonifácio de Andrada e Silva
★ Santos, 1763 † Niterói, 1838

DA ALIANÇA E TERRITÓRIO À NAÇÃO


No momento crucial da independência e formação de um país
chamado Brasil, ele concebe a noção de que nem raça nem
religião separam os cidadãos.

Nasce em Santos, numa família rica de comerciantes e traficantes de


escravos. Muda-se para Portugal em 1783, forma-se em Direito e Filosofia
quatro anos depois. Seu primeiro trabalho publicado tem como tema a
pesca da baleia — e a conclusão é que, se não fosse contida, a atividade
humana poderia destruir o meio ambiente.
A partir de 1790, ganha uma bolsa para estudar no exterior. A viagem
começa por Paris, aonde chega em setembro. Tem oportunidade de
acompanhar de perto os desdobramentos da Revolução Francesa. Torna-se
próximo de vários dirigentes do novo governo e combina o
aperfeiçoamento de sua formação iluminista com a verificação direta dos
problemas políticos que a implantação da nova filosofia como
organizadora do poder traziam.
Em 1792 vai para Freiburg, a melhor escola de mineralogia da
Alemanha. Em pouco tempo é um dos alunos preferidos de Abraham
Werner, o principal professor, e amigo de Alexander von Humboldt, futuro
reformador de todo o sistema universitário alemão, com quem discutia
todos os tipos de problema. No verão de cada ano faz viagens para regiões
mineralógicas. Conhece boa parte da Europa, firma nome como
mineralogista em todo o continente, entre outras coisas por descobrir
uma dúzia de novas espécies minerais e participar da identificação do lítio.
Em 1801 volta para Portugal e é nomeado para a cátedra de
mineralogia, especialmente criada para ele, na Universidade de Coimbra.
Nas invasões francesas de 1808 destaca-se como organizador e
comandante no Corpo dos Voluntários Acadêmicos. Já acalentava a ideia
de voltar ao Brasil, mas uma série de nomeações para postos diretivos
acabaram adiando o projeto até 1819.
Volta à terra natal com 56 anos e planos de viver como aposentado.
Os planos mudam radicalmente. Em janeiro de 1822 é nomeado
ministro pelo regente D. Pedro. Apresenta um plano ousado: unir a
sociedade formada a partir da aliança entre Tupi e portugueses, manter o
território reconhecido juridicamente do Brasil desde a ação de Alexandre
de Gusmão — e fundar sobre essa base uma Nação.
Começa a construção pela política. Propondo unidade entre as
correntes do tempo, em pouco mais de três meses costura um acordo pelo
qual o regente aceitaria um poder soberano vindo do povo pelo voto,
institucionalizado num Parlamento eleito, enquanto os republicanos
aceitariam a continuidade de toda a estrutura administrativa herdada da
colônia, inclusive o príncipe absolutista no comando.
Parecia um contrassenso evidente fundir instituições fundadas em
princípios opostos (igualdade entre os cidadãos eleitores, superioridade
divina do rei), mas os resultados foram efetivos. A convocação da eleição
para a Constituinte acontece em junho, a nomeação de embaixadores vem
em agosto, o gesto formal da Independência em 7 de setembro, a
instalação da Assembleia Constituinte em março de 1823 — quando ainda
havia tropas portuguesas dominando boa parte do território.

A sociedade aberta e sem preconceitos faz a substância do Brasil: a


unidade pelo amalgamento; o poder arbitrário do Estado deve ser
temporário.

Sem que a unidade básica seja rompida, as diferenças surgem:


começam os problemas entre o soberano que defendia o arbítrio para
governar e a Assembleia que queria o governo limitado pela lei feita pelos
representantes. José Bonifácio, nesse momento, fica entre dois fogos: é
constituinte e ministro do imperador. Tenta manter a unidade mostrando
os fundamentos de seu projeto de nação.
Define assim o termo “brasileiros”:
“Nós não conhecemos diferenças nem distinções na família humana. Como
brasileiros serão tratados o chinês e o luso, o egípcio e o haitiano, o adorador
do sol e de Maomé.”
A seu ver, nem raça nem religião deveriam separar o pertencimento à
nacionalidade — e o particular dos brasileiros seria aceitar todos — num
Ocidente em que até os iluministas mais radicais negavam tanta
amplitude para a igualdade entre humanos.
Também é claro sobre as bases reais que podem sustentar tanta
convicção de igualdade no ser brasileiro:
“É tempo também que vamos acabando gradualmente com todos os
vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar uma nação
homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e
felizes. É da maior importância ir acabando com tanta heterogeneidade física e
civil. Cuidemos, desde já, em combinar sabiamente tantos elementos discordes,
em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e
compacto.”
A aceitação de todos entre si via casamento, fonte da aliança original
que criou o brasileiro como ser diverso, inicialmente do Tupi ou do
português, depois também dos africanos, permitiria chegar a um futuro
democrático — vencendo o fosso social criado pela escravidão e o
analfabetismo. A grande força da nação estaria nas pessoas comuns, nos
pobres e analfabetos, na sociedade — nesse ambiente seria gerada a
igualdade substantiva entre os nacionais. Apenas temporariamente,
durante a travessia para a homogeneidade, seria necessário o que ele
chamava de “centro de força e unidade” do poder arbitrário da Coroa.
Na política imediata ele perde. Em julho de 1823 é demitido do
ministério; em 11 de novembro é dissolvida a Assembleia e José Bonifácio,
banido. Exila-se na França. De volta em 1829, elege-se deputado pela
Bahia. Quando D. Pedro I abdica, em 1831, confia-lhe a tutoria de seu filho
e herdeiro. Durante a Regência é destituído do cargo de tutor. Vive o resto
de seus dias isolado em Paquetá.
Mas seu projeto se realiza na lenta consolidação da monarquia
constitucional e no fim da escravidão, ainda no império de duas
soberanias. A República elimina formalmente o centro autoritário
(algumas vezes ressuscitado em ditaduras), mas os brasileiros continuam
suas tentativas pessoais de aperfeiçoar, via democracia, a nação plural e
igualitária com que sonhava o Patriarca.

Jean-Baptiste Debret, Aclamação de D. Pedro I, Imperador do Brasil, Campo de Sant’Ana, Rio de


Janeiro.
“Senhor. O dado está lançado: de Portugal não temos a esperar senão
escravidão e horrores. Venha V.A.R. quanto antes e decida-se, porque
irresoluções, e medidas d’água morna, à vista desse contrário que não nos
poupa, para nada servem, e um momento perdido he uma desgraça.”

Carta de José Bonifácio a D. Pedro, datada de 1 de setembro de 1822. Acervo do Museu Paulista.
Sebastiana
★ Chapada dos Guimarães, c. 1815 † ?

FAMÍLIAS BRASILEIRAS MISCIGENADAS

Aimé-Adrien Taunay, Sebastiana, filha da mestiça Francisca de Sales e de um branco, 1827.

Enquanto o Brasil nasce como país, o jovem Aimé-Adrien Taunay descansa


na casa de seus pais, no Rio de Janeiro, depois de uma viagem de
exploração na Austrália e Oceania que consumira quatro anos. Tem 21
anos em 1824 quando aceita outro desafio: percorrer o interior do Brasil
com o barão Langsdorff, representante da Rússia no país.
Segue o roteiro das monções, indo de São Paulo a Cuiabá pelos rios
Tietê, Paraná e Paraguai. Estaciona na cidade por algum tempo, e dali faz
pequenas incursões para pintar. Em maio de 1827, na Chapada dos
Guimarães, realiza retratos dos membros de duas famílias locais. Anota
umas poucas observações étnicas (os termos que identificam raças nas
legendas são dele).
Os únicos eixos geracionais presentes são de mulheres — exatamente
como nos grupos Tupi-Guarani. Elas ficam e marcam o local, os homens
circulam via casamentos que podem ser desfeitos — e só um aparece nas
imagens. Deles ficam apenas as informações étnicas: “índio Pareci”, “índio
de outro grupo”, “mestiços”, um “filho de negro e índia”, um “branco”.
Sebastiana tinha 12 anos no momento em que foi retratada em seu
vestido com motivos gráficos indígenas (embora o padrão possa ter sido
posto pelo pintor, uma vez que não era comum ser empregado em
tecelagem). A imagem foi uma das últimas de Taunay, que morreria
afogado semanas depois tentando atravessar o rio Guaporé a nado.
Família de Sebastiana
Família de Paulinha
D. Pedro I
★ Lisboa, Portugal, 1798 † Lisboa, Portugal, 1834
O IMPERADOR SANGUÍNEO E DISSIPADOR

Figura amada e popular no momento da Independência, vai


perdendo popularidade cada vez que age como imperador
arbitrário.
Pedro de Alcântara de Bragança e Bourbon pisa no Brasil com 9 anos, em
1808, quando a Corte portuguesa se muda para o Rio de Janeiro. Em abril
de 1821, quando tinha 21 anos, seu pai, D. João VI, volta para Lisboa e ele
assume o governo provisório. Em 9 de janeiro de 1822, pressionado pelas
Cortes lisboetas a regressar a Portugal, declara que permaneceria no
Brasil.
Mostra-se um governante ativo. Cavaleiro exímio, faz questão de viajar
para fazer política — e estoura um cavalo atrás do outro de tanto galopar.
No dia 7 de setembro, cavalgando de Santos para São Paulo, ao saber que
fora rebaixado a mero delegado das Cortes, proclama a Independência do
Brasil. Em 12 de outubro, dia em que completa 23 anos, é sagrado
imperador constitucional, sendo coroado no dia 1 de dezembro.
Sua figura jovem e impetuosa faz sucesso imediato — e o
comprometimento com o plano de José Bonifácio pelo qual dividiria o
poder com parlamentares eleitos ajuda muito na construção de uma
imagem positiva. Mas os conflitos começam depressa. Dissolve a
Assembleia Constituinte, em 1823, e promulga a primeira Constituição
brasileira como ato de arbítrio no ano seguinte — e as revoltas começam a
estourar.
A péssima gestão administrativa faz o resto. Assina um tratado de
reconhecimento da independência que desagrada conservadores (previa o
fim do tráfico de escravos em cinco anos) e liberais (que mostram horror
às cláusulas de indenização a Portugal). Para completar, declara uma
guerra impopular contra a Argentina.
Cada ato piora a precária situação econômica herdada de seu pai. Em
pouco tempo, o governo do novo país está à beira da falência — e a conta
está sendo paga com inflação e pobreza da população.
As movimentações de sua vida pessoal pioram ainda mais a situação. A
imperatriz Leopoldina morre em 1826, amargurada com o caso público do
marido com a marquesa de Santos — que só acaba em 1829, na época do
segundo casamento do monarca, com a princesa Amélia.
A essa altura a impopularidade já é grande. Para piorar, D. Pedro se
envolve cada vez mais na sucessão portuguesa. A economia brasileira está
em frangalhos e o imperador recusa-se a ser austero nas despesas,
pensando no poder em Lisboa. Em 1831, após a crise suscitada pela
dissolução de um gabinete, D. Pedro I abdica da Coroa em favor do filho,
Pedro de Alcântara, então com 5 anos.
Deixa o Brasil e volta ao ambiente que o atrai: ação e movimento. Por
três anos disputa o poder com o irmão D. Miguel. Vence e assegura o
trono português para a filha Maria da Glória, pouco antes de morrer de
tuberculose — no mesmo quarto em que nascera, no palácio de Queluz.
AS TRÊS MULHERES DO IMPERADOR
Carolina Josefa Leopoldina
★ Viena, Áustria, 1797 † Rio de Janeiro, 1826

Cada uma a seu modo e com personalidade própria, ajudaram a


construir o país nascente.

Filha do rei Francisco I da Áustria, nascida em Viena, a arquiduquesa


Carolina Josefa Leopoldina pertencia a uma das mais poderosas casas reais
da época. Sua irmã mais velha, Josefina, casa-se com nada menos que
Napoleão Bonaparte — derrotado em 1815 com forte ajuda do sogro.
Vencedor do marido da filha, Francisco I torna-se um dos mais
influentes monarcas europeus. Como parte da reconstrução do poder
monárquico abalado pela Revolução Francesa, concede a mão da filha ao
filho primogênito de D. João, regente de Portugal. Leopoldina deixa Viena
em 1816.
Recebida no Rio de Janeiro com festas, vê pela primeira vez seu
charmoso e pouco letrado marido. Gosta dele. Aos poucos, aclimata-se aos
costumes locais e torna-se cada vez mais simpática à independência — o
oposto do que esperava seu pai ao mandá-la para o Brasil.
Em 1821, encontra aquele que seria seu mais constante interlocutor no
país: o ministro José Bonifácio, com quem costuma dialogar em alemão
sobre botânica. Adere à movimentação política com entusiasmo,
temperado pelo forte domínio diplomático de sua formação. Coroada
imperatriz em dezembro de 1822, conhece o auge de sua popularidade e
prestígio.
A partir do ano seguinte, com a crescente influência da marquesa de
Santos, amante do marido, tem de enfrentar duros desafios — sem nunca
reclamar. Morre em 1826, no parto de seu sétimo filho.
Domitila de Castro Canto e Melo,
marquesa de Santos
★ São Paulo, 1797 † São Paulo, 1867

Casa-se aos 15 anos com Felício Coelho de Mendonça. Separa-se quatro


anos depois, por maus-tratos. Em setembro de 1822 pede uma audiência
ao regente em visita a São Paulo, pretendendo que ele anule o casamento.
Sai dela como amante de D. Pedro.
Levada para o Rio de Janeiro, vive um movimentado romance com o
imperador, com quem teve cinco filhos, todos reconhecidos. Apaixonado
escritor de textos eivados de erotismo, o amante agraciou-a com o título
de marquesa de Santos e fez dela dama do Paço.
O caso termina em 1829. A marquesa retorna para São Paulo, onde em
1842 volta a se casar, com Rafael Tobias de Aguiar. É a grande dama da vida
social da cidade até a morte, em 1867.
Amélia de Leuchtenberg
★ Milão, Itália, 1812 † Lisboa, Portugal, 1873

Amélia Augusta Eugenia d’Eichstadt era duquesa de Leuchtenberg —


título relativamente secundário para uma mulher de rei. Mas é a única
nobre europeia que aceita casar-se com o viúvo D. Pedro I, com péssima
fama depois do tratamento dispensado à primeira mulher, a imperatriz
Leopoldina.
Aos 17 anos de idade parte para o Rio de Janeiro. Chega em outubro de
1829; em abril de 1831 o marido abdica e o casal vai para a Europa.
Instalam-se em Paris, onde nasce sua única filha, a princesa Maria Amélia.
D. Pedro parte para a guerra, que dura até 1834. A paz da vitória permite
apenas um curto período junto ao marido, que, doente, morreria logo em
seguida. Amélia viveu até 1873.
 
Frei Joaquim do Amor Divino Caneca
★ Recife, 1779 † Recife, 1825

A VIA REVOLUCIONÁRIA
Defensor da liberdade e do federalismo, por duas vezes encontra
apenas nas armas a possibilidade de ver respeitadas suas ideias.

Ingressa cedo na Ordem dos Carmelitas, uma das mais ricas e tradicionais
— e também das que mais dificuldades impunham à entrada de mestiços.
Em 1796, ordena-se como frei Joaquim do Amor Divino, mas faz questão
de acrescentar o Caneca, homenagem ao pai tanoeiro. Fica famoso por
devorar livros de toda espécie. Torna-se conhecido em Recife como
professor de retórica, filosofia e geometria.
Também discute muito política. Como tantos pernambucanos, sente
uma mudança. A transferência da Corte para o Rio de Janeiro cria um novo
fluxo econômico: o dinheiro que antes ia para a metrópole via impostos
agora é levado para a capital, criando desigualdades regionais.
Pernambuco foi uma das capitanias mais prejudicadas. Em 1817
acontece uma resposta: a Revolução Pernambucana, que tem frei Caneca
como um dos líderes. Preso, é transferido para Salvador. Anistiado em
1821, retorna para o Recife, para as aulas e para a atividade política.
Na prisão, amadurece suas posições nativistas. Numa das polêmicas
que mantém, acusado de ser filho de “dois pardos comedidos”, faz
questão de mostrar sua ascendência, na qual, afora portugueses, haveria
apenas uma trisavó que “poderia ser uma Tapuia, Petiguari, Tupinambá”
ou, “se fora alguma rainha Ginga, nenhum mal me fez, pois já está à porta
o tempo de nos honrarmos do sangue africano”.
Libertado da cadeia com a Independência, apoia inicialmente a
fórmula monárquica brasileira — mas, ao modo de José Bonifácio, com a
ressalva de que o poder imperial deveria ser muito limitado pela
constituição. É também federalista, defendendo a autonomia provincial —
e por isso critica a ideia do ministro de constituir um poder central forte.
Supunha que o imperador seria bem mais liberal.
Em 1824 foi desmentido: recebe a notícia do exílio de Bonifácio e da
dissolução da Constituinte. Defende uma posição radical, que foi aceita
pelo governo pernambucano: pegar em armas contra o atentado à
liberdade. Torna-se um dos principais líderes da Confederação do
Equador, com esperanças de obter adesão de várias províncias.
O apoio não vem, a situação se torna crítica. Recife é atacada, ele foge
para o sertão na direção do Ceará. Entre agosto e novembro de 1824,
participa de vários combates contra as tropas do governo.
Preso em 29 de novembro, é levado para Recife, julgado por comissão
militar e condenado à morte na forca. A execução da sentença fica
marcada para o dia 13 de janeiro de 1825, mas nenhum carrasco se
apresenta para executá-la. É necessário comutar a pena para fuzilamento,
que acaba sendo realizado pelos militares encarregados da repressão.
Diogo Antônio Feijó
★ São Paulo, 1784 † São Paulo, 1843

O REGENTE QUE ORDENOU O PAÍS


Bebê abandonado no nascimento, pobre que faz a vida com luta,
padre que prega contra o celibato: o currículo do primeiro
brasileiro a comandar o Executivo.

Ganha uma marca indelével já em seus primeiros dias de vida: é deixado


na Roda dos Expostos, traquitana instalada no muro da Santa Casa de São
Paulo na qual mães abandonam filhos ilegítimos. Numa sociedade que
vive para valorizar a condição do nascimento e a superioridade da nobreza,
o ato equivale a lançar o bebê abandonado para o ponto mais baixo da
escala social.
Diogo Antônio Feijó cresce segundo essa condição. Ora é recolhido
por uma alma caridosa, ora sobrevive acompanhando alguém que não se
importava com sua presença. Acaba seguindo um padre que cuidava do
aldeamento indígena de Queluz, com quem aprende a ler e escrever, além
dos rudimentos do ofício sacerdotal.
Num tempo em que o governo controlava a Igreja, tornar-se padre
secular era um caminho para conseguir um emprego público. Faz as
provas em 1798, é aprovado — mas não tem a idade mínima requerida.
Muda então para a recém-fundada Campinas. Ali aparece nos registros
como pessoa que “vive de esmolas”, mas também consegue ganhos
irregulares como professor.
A situação perdura até 1805. Para ser nomeado padre, precisa se
humilhar. É obrigado a assinar um documento no qual jura por escrito
que “não era, nem haveria de ser, imitador da incontinência de meus
pais”. Em 1808 é designado presbítero e passa a receber pelos
sacramentos — pouco, mas o suficiente para os censos o registrarem
como pessoa que “vive de suas ordens”.
A boa situação acaba logo: uma acusação falsa de incentivo ao
adultério no confessionário abala sua carreira: quando é inocentado, o
nome está prejudicado. Ainda assim encontra um caminho, juntando-se a
um grupo de padres mestiços de Itu, chefiado pelo frei Jesuíno do Monte
Carmelo — grande pintor sacro, mas recusado pelos carmelitas por ser
mulato. Enquanto se aperfeiçoa nos estudos sacros, começa a se interessar
também pelas ideias revolucionárias dos liberais.
Nesse ponto sua vida sofre uma transformação radical. Em 1821
acontece a primeira eleição geral no Brasil, por convocação dos
revolucionários que haviam tomado o poder em Portugal no ano anterior.
Sem jamais ter qualquer participação administrativa (sua situação de
abandonado vedava o acesso a cargos elevados), acaba sendo escolhido
como um dos seis deputados representantes de São Paulo.
A novidade política do papel de deputado — algo até então inexistente
— se combina com a novidade de conhecer a Europa. Desembarca em
Portugal em fevereiro de 1822. A constituição já está pronta e sendo
votada. Discordando dela por ser federalista, estreia como orador
parlamentar fazendo um duro ataque a seu conteúdo. A reação é tão
violenta que precisa fugir para a Inglaterra. Em dezembro de 1822 está de
volta ao Brasil, já um país independente. Tem rusgas com José Bonifácio,
cujo projeto nacional julgava muito centralizador.

O exercício do poder se confunde sempre com a luta contra o


arbítrio do próprio governo, a proteção dos cidadãos, a
democracia: assim ele molda uma ordem.

Volta à cena política em 1826, dessa vez como deputado no Parlamento


que começa a funcionar. Seu primeiro projeto é polêmico: a abolição do
celibato dos padres, que julgava ser assunto administrativo e, portanto, da
esfera de poder do governo que controlava a igreja. Adere à oposição a D.
Pedro I, que obrigaria o monarca à abdicação em 1831.
Vive novidades outra vez. O Parlamento de cinco anos assume
completamente o poder executivo — e ele, o cargo de ministro da Justiça,
em 6 de julho de 1831.
A maior tarefa é enfrentar a total falência do governo. D. Pedro I gastou
mais que arrecadou, fez dívidas, não pagou. Cabe ao ministério fazer o
possível: cortar gastos e enfrentar a fúria daqueles que, deixando de
receber do governo, organizavam revoltas.
Feijó enfrenta revolta atrás de revolta — com um destemor incomum.
Demite tropas militares, arma cidadãos. Enfrenta o problema que os
antecessores temiam: cortar despesas para valer. Em um ano no comando,
os gastos do governo ficam 40% menores. E, detalhe importante, faz tudo
isso dentro da lei: só gastava o autorizado pelo Parlamento, só executava
leis que saíssem de lá.
Cria uma ordem, paga um preço.
É odiado pelos prejudicados, os que recebem do governo — que se
concentravam na Corte. Estes tinham prestígio e jornais, nos quais o
regente é tratado como “alcoviteiro sedutor de donzelas” ou “homem que
veio ao mundo num chiqueiro de porcos”. Respeitador da liberdade de
imprensa, convive com essas expressões.
E assim conhece outra novidade. Em 1835, pela primeira vez na história
do Brasil, o comandante do poder executivo nacional é eleito pelo voto dos
cidadãos. Diogo Antônio Feijó, bebê abandonado pelos pais, se torna, por
escolha dos eleitores brasileiros, o substituto do imperador do Brasil.
Armado com o poder do voto, enfrenta diversas rebeliões nas
províncias, como a Cabanagem no Pará e a Farroupilha no Rio Grande do
Sul. Desgastado pelas revoltas e enfrentando vigorosa oposição no
legislativo, cria outra novidade que seria ordem: demite-se, curvando-se
ao poder da maioria parlamentar — e consolidando o poder da instituição
à qual devia sua carreira.
De volta ao mandato de senador, luta contra o grupo dos
“regressistas” que defendiam a centralização política e administrativa,
além da manutenção da escravatura. Vê o poder ser entregue a D. Pedro II,
sonhando com o parlamentarismo que a lei não previa, mas instaurado
segundo a prática que delineou.
Mas o imperador anula uma eleição e derruba um gabinete com
maioria. Feijó não se contém. Doente e com metade do corpo paralisado
por um derrame, participa da Revolução de 1842. É preso ao modo que
detestava: contra a lei que dava imunidade aos parlamentares, sem
processo pelo qual pudesse se defender. Morre no ano seguinte, sem
conhecer o longo período de estabilidade entre poderes que viria em
seguida, a ordem vinda de baixo que construíra.
Eduardo Nogueira Angelim
★ Aracati, 1814 † Barcarena, 1882

LÍDER NA CABANAGEM
Jovem empresário se vê compelido a entrar na luta política e se
torna líder dos cabanos na mais violenta revolução da história
brasileira.

Nascido no Ceará, muda-se para Belém com os pais que fugiam da seca
em 1827. A cidade vive momentos agitados desde a Independência, por
duas razões locais importantes. Em primeiro lugar, ao contrário do
restante do país que se formava, a escravidão africana era pouco relevante
na economia — e não existiam comerciantes que acumulavam vendendo
escravos e comprando produção local. Tudo era produzido por índios.
Em segundo lugar, a região esteve ligada administrativamente a
Lisboa, e não ao Rio de Janeiro. A medida tinha lógica: dado o regime de
ventos, as viagens de navio a vela duravam 20 dias até a metrópole e 90
dias até o Rio de Janeiro.
A trajetória inicial de Eduardo Nogueira é marcada por essa realidade.
Desde muito jovem mostra talento para negócios. Torna-se comerciante
— a profissão dos ricos desse tempo — mas logo desiste, para montar
uma roça em terras arrendadas.
A passagem parecia inusitada, mas tinha sentido. O comércio com
Lisboa desaparecera com a Independência, sem ganhar substituto vindo
da nova capital. Assim a produção local ia passando para o centro da cena
econômica — com duras consequências políticas.
Os governos anteriores à Independência eram dominados por
comerciantes ligados à metrópole. Já os representantes políticos indicados
pelo Rio de Janeiro procuravam cumprir as funções de arrecadar impostos
e manter a ordem — algo que não ajudava em nada a economia local.
Sem comerciantes com meios de articular a produção nessa realidade,
instalam-se a decadência econômica e violentas disputas por poder
político. Em meio a elas, Eduardo Nogueira ganha o apelido de Angelim,
dadas as qualidades de dureza e resistência dessa madeira.
No processo, vai deixando a condição de empresário e ganhando a de
líder de uma revolução popular que recebe o nome de Cabanagem. No
comando de uma tropa de caboclos e índios, toma a cidade de Belém em
agosto de 1835.
Tem apenas 21 anos quando passa a comandar uma revolução que
domina todo o interior da Amazônia. Quando tropas e enviados do
governo central tomam Belém, em abril de 1836, ele continua a lutar no
interior.
Preso em outubro, é mandado para o Rio de Janeiro e daí para o exílio
em Fernando de Noronha — enquanto algo como 30 mil cabanos (numa
população total de 150 mil pessoas) são massacrados. A economia é tão
dizimada quanto a população — mas os impostos para o governo central
passam a ser cobrados com regularidade da população local.
Apesar da anistia de 1839, Eduardo Angelim só pode voltar para a
Amazônia em 1851. Morre em 1882, já na decadência do Império.
Anita Garibaldi
★ Laguna, 1821 † Ravena, Itália, 1849

A GUERREIRA E O MARINHEIRO
Amor à primeira vista e aventuras revolucionárias em sequência
compõem a história intensa de um casal de apaixonados.

Ana Maria de Jesus Ribeiro nasce numa família pobre que trafegava entre
Laguna e Lages — o litoral e o sertão tropeiro de Santa Catarina. Seu pai
morre quando ainda era muito jovem, deixando seis filhas e quatro filhos.
Por insistência da mãe, casa-se aos 14 anos — mas o marido a deixa ao se
alistar no Exército.
No dia 25 de julho de 1839, está na rua assistindo à chegada de uma
esquadra que invadia a cidade quando um marinheiro a bordo de um
navio assesta a luneta sobre ela.
Chama-se Giuseppe Garibaldi, tem 32 anos de idade, 17 dos quais
percorrendo mares do mundo em todo tipo de aventura militar, comercial
e de pirataria. Por conta delas vai dar no Rio de Janeiro. Aceita a condição
precária de oficial de marinha do governo dos farroupilhas gaúchos — e
se torna um dos comandantes na modestíssima frota naval que invade
Laguna para fundar a República Juliana. Olhando a mulher pela luneta,
toma decisões que pouco têm a ver com seus deveres militares.
Desembarcando na cidade, o marinheiro vai atrás daquela que o
encantara. Assim que a encontra, declara seu amor e afirma que quer tê-la
a seu lado. Convence. Em outubro, Anita embarca com o companheiro
numa lua de mel que é também expedição de corso para Cananeia. Mal
atingem Imbituba, o navio é atacado.
Com menos de um mês de união voltam para Laguna, que é atacada
por uma esquadra do governo. Expondo a vida, Anita se encarrega de
cruzar várias vezes a linha de fogo num escaler, para buscar munição e
manter a luta. O casal consegue escapar para o interior.
Chegam a Lages em dezembro, acossados por tropas. Em janeiro,
Anita é presa em combate. Convence os captores a deixá-la procurar o
corpo do companheiro, dado como morto. Escapa e acaba se unindo a ele
depois de atravessar o rio Canoas a nado.
Em setembro de 1840 nasce o primeiro filho do casal; doze dias depois
do parto ela escapa de um cerco a cavalo com seu recém-nascido e tem
um papel relevante na fuga do grupo através da região tropeira, até chegar
ao Rio Grande do Sul.
Garibaldi consegue ganhar uma boiada por seus serviços e parte com
Anita para Montevidéu. Ali os dois se casam, em 1842, enquanto o marido
presta pequenos serviços mercenários para os governos locais.
A situação de relativa tranquilidade dura até 1848, quando Garibaldi
consegue mudar com a família para sua cidade natal, Nice. Em fevereiro
de 1849 o marido vai para Roma, onde é proclamada a República. Mas logo
aparecem tropas para perseguir os revolucionários. Anita, grávida, deixa a
segurança de Nice e vai acompanhar o marido em mais uma mistura de
fuga e batalhas. Morre de febre, em 4 de agosto — com apenas 27 anos.
Joaquim José de Souza Breves
★ São João Marcos, 1804 † Passa Três, 1889

TRAFICANTE E FAZENDEIRO DE CAFÉ


Empresário-padrão num império conservador: próximo à Corte,
escravocrata convicto, fazendeiro, produtor de café até o último
dia do cativeiro.

Filho de um fazendeiro do vale do Paraíba fluminense, aos 18 anos está


entre os jovens que acompanham o regente D. Pedro a São Paulo e
assistem à Proclamação da Independência. Continua entusiasmado com o
imperador até o fim de seu reinado, em 1831, que coincide com a entrada
em vigor de um tratado pelo qual o Brasil considerava ilegal o tráfico de
escravos.
Nessa altura recebe terras e bens relativamente modestos como
herança. Mas, juntamente com seu irmão José, resolve aplicar o dinheiro
no financiamento de viagens agora ilegais de tráfico. Os lucros são
aplicados na compra de terras baratas nos pontos mais distantes de
vigilância no litoral fluminense.
Em seguida, monta passo a passo a estrutura de um grande negócio.
Planta cana, fabrica cachaça, embarca a bebida nos navios para vender na
África, recebe os escravos desembarcados e os envia para fazendas no vale
do Paraíba. Usa parte dos lucros para montar novas fazendas.
Ele e o irmão investem também em proteção política para o negócio
ilegal: os dois tornam-se autoridades eleitas nas cidades em que fundam
fazendas, deputados provinciais pelo Rio de Janeiro (apresentam projetos
de lei para cancelar o tratado de proibição do tráfico). A defesa do negócio
é o programa comum, embora cada um apoie um partido diferente — e
assim obtenham acesso alternado ao poder.
Em duas décadas no negócio se tornam riquíssimos. Investem cada
vez mais os lucros na produção escravista. Tornam-se proprietários de
dezenas de fazendas (as divergências de avaliação variam de 40 a 90) e
milhares de escravos (6 mil, segundo alguns autores menos otimistas, 12
mil segundo os entusiasmados com números altos).
Joaquim Breves é renitente. Está entre os últimos a serem processados
por tráfico, em 1853. Depois de compelido a abandonar a parte mais
rentável e mais monetária de seu negócio, dedica-se inteiramente à
atividade de produtor de café nas muitas fazendas do vale do Paraíba,
abandonando a estrutura litorânea de seu conjunto de propriedades.
A partir da década de 1870, quando fica claro que a escravidão deixaria
de ser o norte das políticas econômica e social brasileiras, começam a
surgir diferenças de enfoque entre ele e o irmão. José vai vendendo
propriedades, aplicando o lucro em outros investimentos e acelerando a
libertação de cativos.
Joaquim, no entanto, se mantém fiel à produção escravista. Despreza
todos os sinais de mudança, continua com seu patrimônio formado
basicamente por terras e escravos. Morre em 1889, tendo assistido à
partida de seus antigos escravos das fazendas depois da Abolição. Os
herdeiros não conseguem pagar as dívidas e perdem as propriedades.
Paulino José Soares de Souza, visconde
do Uruguai
★ Paris, França, 1807 † Rio de Janeiro, 1866

O IDEÓLOGO POLÍTICO DO TRONO

Defende a necessidade de um poder central arbitrário e


irresponsável por sobre o poder local e aquele dos representantes
eleitos.

Seu pai é um mineiro de Paracatu que acaba se formando em Medicina na


França; a mãe é francesa, filha de um livreiro decapitado na Revolução.
Com a queda do imperador, o casal acaba indo parar em São Luís do
Maranhão.
Forma-se numa das primeiras turmas da Faculdade de Direito de São
Paulo, em 1831. Honório Carneiro Leão, futuro marquês do Paraná, seu
colega, arranja — ao modo Tupi de aliança que se tornara brasileiro — um
casamento com uma menina de 13 anos, irmã da mulher de Joaquim
Rodrigues Torres, futuro visconde de Itaboraí.
A aliança familiar funda uma mesma trajetória política: liberais na
década de 1830, os três tornam-se conservadores na década seguinte.
Passam a considerar escravidão e centralização do poder como os maiores
bens da nação. Paulino seria o grande defensor da posição, escrevendo
textos de teoria política: “Ensaio sobre o Direito Administrativo” foi o mais
conhecido.
Faz parte do ministério de 1848, que prepara a única grande mudança
operada pela agremiação: a proibição do tráfico de escravos, em 1850. A
partir daí, é o líder na defesa dos poderes do governo imperial, que
favoreciam a Corte e sua província com recursos fiscais, e contra políticas
voltadas para beneficiar províncias ou vilas empobrecidas pelo dinheiro
mandado para o centro.
Joaquim José Rodrigues Torres,
visconde de Itaboraí
★ Itaboraí, 1802 † Rio de Janeiro, 1872

O GRANDE ECONOMISTA CONSERVADOR

Em sua concepção a agricultura escravista seria uma forma ideal


de produção no país e a indústria — que ele combateu como
pôde —, uma atividade indutora de problemas.

Forma-se em Matemática em Coimbra, em 1825, especializa-se em Paris.


Começa a carreira política na época da Regência, é mais um liberal que se
torna muito conservador.
Adquire certa notoriedade com suas ideias sobre economia, que expõe
sobretudo quando se torna ministro da Fazenda, no gabinete de 1852. É
um momento de grande progresso dos negócios, estimulado pela
reaplicação em outras atividades econômicas dos capitais imobilizados no
tráfico de escravos.
Itaboraí considera um grande perigo os investimentos em empresas —
sobretudo indústrias —, de modo que emprega ostensivamente os
poderes do governo para impedir tal malefício: estatiza bancos, faz o
governo tirar dinheiro da praça, entra em luta aberta contra todos aqueles
que defendem outras alternativas.
Na virada para a década de 1860 é um dos principais defensores
daquela que ficou conhecida como a Lei dos Entraves: destinada a regular
a vida das empresas, coloca tantos problemas para elas que torna quase
impossível sua legalização.
É político de grande prestígio até o fim de seus dias. Parte dele,
segundo Joaquim Nabuco, se deve ao fato de ser “o financista preferido do
imperador”. Sua política econômica completa a obra de favorecimento da
região escravista em torno da Corte.
Luís Alves de Lima e Silva, duque de
Caxias
★ Porto da Estrela, 1802 † Valença, 1880

MILITAR DA NAÇÃO E POLÍTICO CONSERVADOR


Por quatro décadas foi o grande comandante militar, lutando
contra revoluções e comandando a luta no Paraguai, e, através daí,
o governo no Brasil.

Seu pai, Francisco de Lima e Silva, é militar e proprietário na região


abastecedora do Rio de Janeiro. A chegada da Corte leva-o a novas missões
de caráter político — como a repressão à revolução de 1817 em
Pernambuco — e à proximidade do novo centro de poder.
A independência traz maior aproximação com o imperador e novas
possibilidades sociais — um de seus filhos casa-se com uma filha do barão
de Piraí (que tinha duas filhas casadas com os irmãos Breves) — e
militares, especialmente para o filho que segue a mesma carreira.
Em 1822, recém-formado na Academia Militar, Luís se integra ao
Batalhão do Imperador, designado para missões importantes no novo
país: em 1823, participa das lutas pela independência baiana; entre 1825 e
1828, da Guerra da Cisplatina, na qual ganha a patente de major.
Está entre aqueles que se levantaram em 1831, forçando a abdicação de
D. Pedro I. Seu pai é designado para compor a Regência, e ele acaba
desempenhando um papel fundamental para armar a população e
enfrentar as várias revoltas de militares contra o novo regime no Rio de
Janeiro — enquanto dá aulas de esgrima para o menino-imperador D.
Pedro II.
Em seguida, participa da repressão a revoltas locais, ajudando a
consolidar o domínio do centro sobre as províncias. Volta de sua última
missão no período regencial, a repressão à Balaiada no Maranhão, como
deputado conservador e marechal — além de ser agraciado com o título
de barão de Caxias pelo recém-coroado aluno de esgrima.
Com o novo título, comanda a repressão às revoltas de Minas Gerais e
de São Paulo, em 1842. Nomeado presidente da província do Rio Grande
do Sul, faz o acordo que encerra a Revolução Farroupilha — a mais longa
revolta contra o governo central.
Em 1851 comanda uma bem-sucedida incursão militar brasileira que
sustenta uma troca de governo no Uruguai e a derrubada de Juan Manoel
Rosas na Argentina — suas tropas vitoriosas desfilam em Buenos Aires.
Na volta, recebe o título de marquês.
Torna-se um dos líderes do Partido Conservador. Ministro da Guerra
em 1853, líder do Ministério em 1856 e novamente entre 1861 e 1862. No
início da Guerra do Paraguai seu partido está na oposição — mas Caxias
recebe missões do próprio imperador.
Em 1868, aceita o comando da campanha contra Solano López — mas
exige que o imperador coloque seu partido no poder. D. Pedro II o atende
e derruba o ministério, dando início a mais um longo período de
gabinetes conservadores, o último dos quais presidido pelo próprio Caxias
— já então o único súdito agraciado com o título de duque — entre 1875 e
1877. Retirado para uma fazenda, morre em 1880.
D. Pedro II
★ Rio de Janeiro, 1825 † Paris, França, 1891

IMPERADOR
Ganha poder por suas qualidades: manter um parlamentarismo
inexistente nas leis, ficar atento à alternância do poder, ser austero
e atento ao bem comum.

Pedro de Alcântara nasce em 2 de dezembro de 1825. Em 7 de abril de 1831,


D. Pedro I abdica do trono em seu favor; no dia seguinte, chorando no
colo de sua babá, que o acompanha na carruagem em meio a um cortejo
ruidoso, o menino de 5 anos é aclamado imperador. Como é menor, o
poder político passa a ser exercido por regentes.
Cresce isolado no palácio imperial. Seus tutores esmeram-se na
formação intelectual e são pouco cuidadosos com as atividades físicas (a
mais frequente são as aulas de esgrima com o futuro Duque de Caxias) e
sociais (um reduzido grupo de filhos de cortesãos são seus amigos nas
raras brincadeiras).
Enquanto cresce, os regentes vão consolidando a péssima situação das
finanças públicas herdada do Primeiro Reinado. Cortes nas despesas e
cobrança de impostos em todo o país para remediar a situação falimentar
do poder central vão aos poucos produzindo um equilíbrio — de alto
custo político.
É preciso carrear recursos das províncias em dificuldades para o
governo central, operação só tornada possível com o esmagamento de
seguidas revoltas provinciais contra o custo elevado e as oportunidades
escassas de progresso geradas pela política de equilíbrio na instância
central.
Mas a mesma política produz um efeito inverso na região em torno da
Corte. Parte dos recursos coletados nacionalmente ganha aplicação local
ali, de modo que a província do Rio de Janeiro vai se tornando a única na
qual empresários se mostram capazes de montar projetos lucrativos — e o
mais constante deles, na primeira metade do século XIX, é a combinação
do domínio do tráfico de escravos, plantação de café e montagem de uma
infraestrutura pública.
Em julho de 1840, com 14 anos, D. Pedro II é declarado maior e
assume o comando do país graças à mobilização pela maioridade
empreendida por um grupo que deseja conter o processo de centralização.
Demora muito pouco tempo para aprender a empregar a maior arma que
a Constituição de 1824 lhe reserva privativamente: ser, ao mesmo tempo,
chefe do Estado e do governo, nomeando e demitindo ministros. Derruba
o ministério que o levara ao poder e derruba em seguida o de seus
adversários que o sucedera.
Mas toma um cuidado essencial: jamais nomeia um amigo pessoal
para os ministérios. Assim que todos os políticos percebem que há um
comandante, trata de mostrar outros dons. Mesmo sem gostar, preside
seguidas cerimônias públicas. Ganha certa popularidade, que emprega
para se firmar no comando. Marca como regra da troca de ministérios a
maioria parlamentar — a mesma inaugurada pelo regente Feijó. Cria
assim um parlamentarismo na prática, pois a lei não o previa.

Perde poder por sua timidez com relação à economia: num


mundo sempre mais capitalista, não consegue escolher líderes
para mudar.

Faz isso tomando o lugar daquele que em tese deveria escolher, o


eleitor. A mecânica de seu poder é assim resumida por Nabuco de Araújo:
“Vede este sorites fatal. O Poder Moderador chama quem quiser para
organizar o ministério; esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; a eleição
faz a maioria. Este o sistema representativo de nosso país.”
O mecanismo pelo qual o ministério “faz a eleição” é chamado de
derrubada. O ministro troca todos os presidentes de província por
partidários seus; estes trocam os funcionários que controlam as eleições; o
partido do nomeado ganha a maioria dos votos e faz a maioria do
Parlamento — até deputados suficientes desistirem de defender o
ministério.
Em 49 anos de governo, nunca os indicados pelo imperador perdem
uma eleição — mas há troca no poder. Assim, o que parecia impossível
finalmente acontece: o sistema de poder desenhado por José Bonifácio,
que supunha a convivência de duas soberanias opostas, aquela do trono e
a do voto, opera.
D. Pedro II se firma como um imperador realmente devotado à arte de
fazer funcionar tal equilíbrio de poder. Jamais indica ministros que não
pode demitir, de modo que os amigos ficam de fora das listas. Mantém
uma supervisão fina do Parlamento, e assim controla o timing das
sucessões. Conhece ou se informa sobre todos os congressistas, e assim
faz bons convites.
Mas a partir de 1860 começa o declínio, derivado inicialmente de um
problema que não consegue equacionar: progresso. Temeroso de lidar
com política econômica, é incapaz de indicar pessoas que contrariem o
domínio institucional, fiscal e político dos interesses da cafeicultura
escravista.
A Guerra do Paraguai impôs as mudanças. De um lado, emissões
monetárias sustentam os gastos militares — e geram oportunidades de
progresso provinciais, especialmente naquelas do Sul. A derrubada do
gabinete liberal com maioria, por exigência do duque de Caxias, obriga-o a
quebrar sua regra de troca e gera problemas.
Finda a guerra, num mundo cada vez mais capitalista, o governo do
Brasil não acha alternativas para ultrapassar os limites institucionais da
escravidão: mantém leis arcaicas, mantém no poder conservadores que se
empenham em boicotar qualquer tentativa de mudança. Cansado, D.
Pedro II acaba deixando de lado o acompanhamento estreito e dedica cada
vez mais tempo a viagens e estudos a partir da década de 1870.
A sociedade avança, apesar do governo. Ao longo da década de 1880
surgem cada vez mais empresas que empregam trabalho assalariado,
enquanto toma corpo o movimento abolicionista. Vilas e províncias
decretam a abolição, as fugas de escravos aumentam. Apenas em 1888 a
princesa Isabel assina a Lei de Abolição da Escravatura. Os ministérios
conservadores que vêm em seguida são incapazes de adequar a política
monetária à nova realidade do trabalho. A princesa consegue convencer o
pai a nomear reformistas para sanear o atraso.
Em 15 de novembro de 1889 é proclamada a República. No dia 16 o
imperador deposto parte para o exílio. Morre em Paris.

Aclamação do jovem Pedro II como imperador do Brasil, a 9 de abril de 1831, por Jean-Baptiste
Debret.

 
Irineu Evangelista de Sousa, barão e
visconde de Mauá
★ Arroio Grande, 1813 † Petrópolis, 1889

EMPRESÁRIO CAPITALISTA
Trabalhando desde os 9 anos, aos 22 se torna o homem mais rico
do Brasil — sem nunca usar trabalho escravo nem buscar clientes
dependentes.

Filho de estancieiros gaúchos, o pai é assassinado quando tem 5 anos. Aos


9, é mandado para trabalhar no Rio de Janeiro. Começa como empregado
menor de João Rodrigues Pereira de Almeida, grande empresário de seu
tempo: traficante de escravos, comerciante atacadista, importador-
exportador e fazendeiro. O menino mostra talento e, com 14 anos, se torna
gerente da empresa.
Em 1829, na esteira das comoções econômicas geradas por D. Pedro I,
Pereira de Almeida é obrigado a entregar seus negócios comerciais para
um credor, o escocês Richard Carruthers. Ele se impressiona tanto com o
gerente da firma que controlaria que o leva para trabalhar consigo. O
talento de Irineu se amplia quando ele devora rapidamente o inglês e os
livros de economia e contabilidade entregues pelo novo patrão.
Combina o aprendizado com a prática. Fazendo negócios, aprende a
ganhar dinheiro aproveitando-se das diferenças conceituais embutidas nas
culturas de negócios brasileira, que ainda seguia os modelos do Antigo
Regime, e inglesa, já inteiramente capitalista.
Do lado do capital, os mais ricos brasileiros são como o antigo patrão
falido: misturam créditos dados em mercadorias (sendo os escravos a mais
cara) com contas-correntes pessoais; ganham mais porque possuem
clientes dependentes, mas correm mais risco de ficar sem dinheiro na
hora que precisam dele. Carruthers, como todos os comerciantes ingleses,
emite títulos de dívida para cada fornecimento, separando os circuitos do
capital e das mercadorias e evitando a dependência.
Do lado do trabalho, Carruthers simplesmente não admite o emprego
de escravos em seus negócios. Compra trabalho apenas pagando em
dinheiro, e apenas o necessário. Ao contrário da imensa maioria dos
empresários brasileiros, julga um risco econômico excessivo imobilizar
altas quantias para ter um trabalhador dependente.
Seguindo a receita à risca, Irineu torna-se um exímio executivo — tão
bom que, em 1836, fica sócio e responsável pela empresa quando
Carruthers volta para a Escócia. Tem 22 anos e já é um dos homens mais
ricos do Brasil. Nos dez anos seguintes, enquanto as grandes fortunas se
estruturam em torno do tráfico e do cativeiro, ele se torna o brasileiro
mais rico — sempre longe dos créditos pessoais e do trabalho escravo.
Em 1846, prevendo o fim do tráfico, vai ainda mais longe: liquida seus
negócios comerciais e convence capitalistas ingleses a investirem com ele
numa grande indústria, combinação de metalúrgica e estaleiro. A Ponta da
Areia passa a fabricar utensílios que iam de canos de ferro a arados, além
de navios a vapor. Em menos de uma década emprega 1.200 operários. É a
primeira grande indústria do país, capaz de dar suporte ao
desenvolvimento em muitos setores da economia.

Ferrovias, companhias de gás e navegação, estaleiros, indústrias e


bancos em seis países: no auge, seu império empresarial faturava
mais que o governo.

O fim do tráfico de escravos produz um momento capaz de gerar uma


combinação econômica proveitosa para o empreendimento: grandes
capitais e poucas possibilidades de aplicação. Irineu Evangelista de Sousa
apresenta alternativas: funda o Banco do Brasil, que logo se torna o maior
captador de recursos do país. E inova mais, aplicando parte desses
recursos em grandes projetos.
Quase ao mesmo tempo monta uma companhia de navegação na
Amazônia (fabrica os barcos), uma empresa de iluminação a gás no Rio de
Janeiro (fabrica os canos), a primeira ferrovia brasileira (fabrica trilhos e
equipamentos), além de começar negócios financeiros no Uruguai e na
Argentina. Em 1854, no dia da inauguração da ferrovia, recebe do
imperador o título de barão de Mauá.
Mas, a essa altura, é também o alvo predileto dos conservadores. Seu
adversário mais explícito no grupo é o visconde de Itaboraí, que lidera
uma campanha bem-sucedida para estatizar o banco que financiava os
negócios e montar uma política monetária que dificulte as transferências
de capital dos antigos traficantes para as novas indústrias.
O barão de Mauá reage como pode: junta o capital que recebe pela
entrega do banco com aquele de vários investidores ingleses para montar
uma grande empresa financeira. Organiza-a ao modo inglês, como uma
sociedade anônima. O governo brasileiro, depois de aprovar os estatutos,
faz uma lei retroativa que proíbe a divisão do capital em ações e obriga que
Mauá a reorganize nos moldes das velhas empresas de traficantes, como
associação ligada à pessoa física dos investidores.
Mauá aceita, e corre riscos maiores. Para minorá-los, amplia os
negócios bancários no Uruguai, na Argentina e na própria Inglaterra. Em
1859 lança a Estrada de Ferro Santos-Jundiaí no mercado londrino, em
sociedade com o maior banqueiro do mundo na época, o barão
Rothschild. O sucesso torna seu nome conhecido a ponto de ele ser citado
por um personagem de Júlio Verne.
Mas a combinação de ousadia capitalista com instituições econômicas
arcaicas cobra seu preço. Em 1867 os negócios de Mauá têm ativos de 115
mil contos de réis, enquanto o orçamento nacional prevê despesas de 97
mil contos. As políticas monetárias restritivas iam tornando os problemas
de gestão de caixa cada vez mais críticos.
Em 1875, uma crise combinada no Uruguai e no Brasil obriga Mauá a
pedir um empréstimo de liquidez no Banco do Brasil, mas ele é negado.
As leis brasileiras, já muito arcaicas para o capitalismo avançado, obrigam-
no a liquidar todas as suas empresas, num processo que dura até 1884.
Ao fim de tudo, os ativos vendidos têm valor muito maior que as
dívidas pagas, de modo que o visconde de Mauá fica na situação dos
brasileiros bem-sucedidos de seu tempo: uma pessoa física muito rica,
mas sem as empresas que criou. Assim morre, em outubro de 1889,
poucos dias antes da deposição do imperador e da Proclamação da
República.
O estaleiro e a siderúrgica da Ponta de Areia.

Foto da primeira composição a trafegar no Brasil, na ferrovia construída por Mauá.


Luís Gama
★ Salvador, 1830 † São Paulo, 1882

ESCRAVO E LÍDER ABOLICIONISTA


Vendido pelo próprio pai, autodidata, acaba se tornando advogado
e montando uma rede que conduz a luta pela emancipação em
São Paulo.

Sua mãe é uma negra livre, da nação Nagô, vendedora de alimentos nas
ruas e ligada a organizadores de insurreições escravas; o pai é descendente
de portugueses, rico, apreciador de cavalos e jogos. Quando tem 7 anos,
depois da Revolta dos Malês, sua mãe é obrigada a fugir para o Rio de
Janeiro. O pai perde mais do que tinha no jogo. Para pagar a dívida, vende
o filho como escravo.
Trazido para o Rio de Janeiro, é revendido para um traficante que
forma lotes, põe o grupo em viagem e vai ofertando a “mercadoria” de
cidade em cidade. Acaba comprado em Campinas para ser escravo
doméstico. Quando tem 17 anos um hóspede da casa ensina-o a ler e
escrever.
Foge, alista-se como soldado. Acaba secretário de um professor de
Direito. Consegue um emprego público — mas é despedido numa das
derrubadas pré-eleitorais pelos conservadores.
Com ajuda de amigos maçons acaba se tornando rábula. Em pouco
tempo especializa-se em ajuizar causas de alforria, com um método muito
moderno para a época. Suas petições vêm com pareceres de professores
da faculdade de Direito e ele mesmo se encarrega de escrever reportagens
em jornais noticiando a causa.
Ganha desenvoltura, passa a processar pessoas conhecidas. As causas
ganham repercussão, a notícia chega a muita gente. Sua casa passa a ter
fila diária de escravos em busca de liberdade, seu escritório na cidade
recebe movimento intenso.
Cria uma rede abolicionista informal, cujo tamanho e influência só é
medido no dia de sua morte, em 1882. Num tempo em que São Paulo
tinha 30 mil habitantes, mais de três mil aparecem para o enterro. No
meio do caminho para o cemitério, negros que ele libertara tomam o
caixão nos braços. Os discursos à beira do túmulo são muitos, o enterro só
acontece à noite.
Antônio Bento
★ São Paulo, 1843 † 1898

ABOLICIONISMO ARMADO

Branco, advogado, ex-delegado de polícia, católico praticante, militante do


Partido Conservador. Tem 39 anos de idade quando é um dos que jura, ao
pé do caixão de Luís Gama, que continuaria sua luta. Dado seu passado,
muitos duvidam.
Em menos de um ano monta uma rede logística instalada em locais
que iam de sacristias a prostíbulos, um conjunto de fortalezas armadas em
pontos-chave, um quilombo militarizado no bairro do Jabaquara, em
Santos.
Com a cobertura de advogados, funcionários de estradas de ferro e,
especialmente, de negros libertos, o grupo começa a promover fugas em
massa e dar proteção armada aos foragidos para Santos, onde as
autoridades locais decretam uma abolição local para proteger os
quilombolas — que são 10 mil no momento da Abolição.
André Rebouças
★ Cachoeira, 1838 † Funchal, 1898

A EXCEÇÃO NEGRA NA ELITE

Filho de um dos primeiros descendentes de africanos a se eleger


deputado, engenheiro de sucesso, é abolicionista que pensa no dia
seguinte.

Seu pai, Antônio Pereira Rebouças, é filho de um alfaiate e uma escrava


negra, advogado e político muito bem-sucedido. Agraciado com a Ordem
do Cruzeiro por D. Pedro I em reconhecimento ao seu papel nas lutas pela
independência em Salvador, torna-se, em 1823, secretário do governo
provincial. Em 1829 é eleito deputado para o Parlamento nacional.
Reelege-se várias vezes, e por um bom período é conjuntamente deputado
provincial.
Muda-se para o Rio de Janeiro com a família quando André tinha 4
anos de idade. Torna-se um dos interlocutores do imperador e, nessa
condição, pode dar uma formação esmerada aos filhos. André estuda
engenharia na Escola Militar; formado em 1858, ele e seu irmão José,
também engenheiro militar, viajam para se aperfeiçoar na Europa.
De volta ao Brasil em 1862, recebe várias incumbências em províncias.
Em 1864, com a Guerra do Paraguai, alista-se e atua até contrair varíola e
ser mandado de volta para o Rio de Janeiro. É nomeado inspetor da
Alfândega.
Em 1872 viaja novamente para a Europa e os Estados Unidos. Neste
último país sofre, pela primeira vez na vida, sanções por causa da cor:
negativa de hospedagem em hotéis, proibição de entrada em restaurantes,
impedimento para assistir a óperas, etc. Reage a seu modo, com anotações
nos diários que escreveu a vida toda.
De volta ao Rio de Janeiro, continua a frequentar os eventos sociais
mais importantes. Mantém relações próximas com a princesa Isabel: em
bailes da Corte, às vezes é o parceiro de dança escolhido por ela; em
Petrópolis, promove encontros da princesa com abolicionistas. Ajuda
Isabel a organizar uma festa de aniversário dela em que escravos são
alforriados.
É também engenheiro e empresário de sucesso — um dos
construtores da estrada de ferro de Paranaguá, uma das mais complexas
obras da época. Na década de 1880, dedica cada vez mais esforço ao
abolicionismo. Escreve muito a respeito, e suas obras mostram uma
consciência aguda de que o problema brasileiro não se limitaria ao
cativeiro: pensa no dia seguinte, quando os escravos libertados seriam tão
pobres como qualquer pobre e tão sem direitos como qualquer sertanejo.
Propõe políticas de Estado para entregar títulos de propriedade e, com
base neles, crédito, de modo a garantir o sucesso econômico dos pobres
como pequenos proprietários.
Festeja muito a Lei Áurea. Mas continua monarquista, tão fervoroso
que, na República, abandona o país para se exilar com a família imperial.
Depois da morte do imperador muda-se para a África, onde passa seus
últimos dias registrando num diário até mesmo seus sonhos — atitude
bastante rara naqueles tempos. É encontrado morto ao pé de um
penhasco, em 1898.
Ana Clara Breves de Moraes Haritoff
★ ?, 1850 † Barra do Piraí, 1893

MULHER RICA, MARIDO DISSIPADOR

Um destino feminino do século XIX: viver segundo o ritmo e as


condições determinadas pelo marido.

Filha de uma irmã do fazendeiro Joaquim Breves, cresce na fazenda Bela


Aliança, uma das mais ricas do vale do Paraíba. Em 1864 morre seu pai,
deixando como herança nove fazendas, 837 escravos e 1,1 milhão de pés de
café plantados. No ano seguinte aparece na fazenda o conde russo
Maurice Haritoff, expoente de uma família que vivia exilada em Paris. Os
dois conversam em francês, começam um namoro e se casam.
Ana Clara parte para a capital francesa, onde o marido dissipa a imensa
fortuna da própria família em festas seguidas e jogos intermináveis. Na
década de 1880 o casal volta para o Rio de Janeiro. Em 1883 inauguram
uma mansão no bairro das Laranjeiras e um estilo de vida que incluía
saraus todas as terças-feiras.
Os visitantes apreciavam os salões decorados com quadros, os jarros
de malaquita, os adornos que pertenceram a Napoleão III, a orquestra que
animava os bailes, as porcelanas de Sèvres e os móveis de Boulle, a dona
da casa recebendo em vestidos de gala — bem como o retrato a óleo da
dona da casa com seu cachorro preferido.
A fortuna acaba com a Abolição, o marido se torna amante de uma
empregada negra, os salões são fechados. Ana Clara morre com 43 anos,
antes de as propriedades serem tomadas por credores.
Eufrásia Teixeira Leite
★ Vassouras, 1850 † Rio de Janeiro, 1930

MULHER INDEPENDENTE, NOIVO ASSUSTADO

Uma raridade: dona de seu nariz, grande empresária,


independente, generosa com o amado — e deixada na solidão.

Filha de Joaquim José Teixeira Leite, irmão do barão de Vassouras e


comissário de café. Mesmo vivendo numa família de agricultores, José
prefere se dedicar aos aspectos comerciais e financeiros do negócio.
Forma uma casa comissária e aplica todos os lucros em títulos de renda.
Também dá uma educação diferente a suas filhas: ensina a elas
matemática financeira e os princípios básicos do comércio. Quando
Eufrásia tem 22 anos seu pai morre. Ela e a irmã decidem liquidar todos os
negócios pendentes e embarcar para Paris — apesar dos protestos de
familiares que pretendem que elas se casem.
Embarcam em 1873. A bordo do navio vai também Joaquim Nabuco,
que acabara de vender um engenho herdado da madrinha. Os dois se
apaixonam imediatamente, desembarcam noivos — mas não se entendem
sobre casamento.
Eufrásia revela-se uma grande investidora, compra ações de empresas
que se valorizam depressa. Seu tino empresarial a faz famosa. Passa a
frequentar os círculos masculinos de negócios, e dizem que foi a primeira
mulher a entrar no recinto da Bolsa de Valores de Paris.
O noivo não suporta a independência da mulher. O caso termina em
1887, quando ela oferece dinheiro para sustentar a carreira do amado. A
partir daí, Eufrásia leva uma vida reclusa. Volta para o Rio de Janeiro em
1928 e morre dois anos depois, deixando uma grande fortuna.
Machado de Assis
★ Rio de Janeiro, 1839 † Rio de Janeiro, 1908

ESCRITOR PROFISSIONAL
Pais de origens diversas, misturas sociais novas na capital do país,
oportunidades modestas de trabalho assalariado: assim se faz o
escritor completo.

Seu pai, Francisco José de Assis, é mulato livre e pintor de paredes; a mãe,
Maria Leopoldina da Câmara Machado, é portuguesa dos Açores e
lavadeira. Cresce em meio a outro processo de amalgamento: os pais
vivem no terreno de uma antiga chácara que era parte da zona rural, mas
progressivamente vai sendo loteada, tornando-se parte do tecido urbano
do Rio de Janeiro.
A urbanização traz novos serviços, entre eles uma escola gratuita na
qual o menino estuda sem mostrar muito interesse. Mas certas tradições
continuam: há uma capela, ponto de maior atração; além de coroinha nas
missas e carola, Machado de Assis acaba se interessando pelos estudos a
partir do latim aprendido com o padre Sarmento.
Quando tem 10 anos a mãe morre e seu pai casa-se com uma
quituteira que mora em São Cristóvão e muda para a casa da nova mulher
(a regra Tupi de moradia). Mais perto do centro, quando se torna
adolescente o rapaz encontra uma oportunidade de formação intelectual
possível apenas em cidades: frequentar a biboca de Francisco de Paula
Brito, mistura de tipografia, livraria e loja de conveniências, além de ponto
de encontro de interessados em cultura do bairro.
Com 17 anos transforma a formação eclética no meio de vida possível:
é contratado como revisor e tipógrafo na Imprensa Nacional, iniciando a
dupla carreira de homem de imprensa e funcionário público. Dessa
posição profissional começa também a carreira de escritor, nas formas
acessíveis: publicando poemas na revista do amigo livreiro, traduzindo
libretos de óperas, escrevendo noticiário anônimo de jornais.
Assim, vai misturando profissão e formação intelectual. Trabalha como
jornalista para Quintino Bocaiúva e Saldanha Marinho, futuros líderes
republicanos. Frequenta teatro e escreve peças de pequena repercussão.
Publica um livro de poemas. Ganha promoção na repartição.
Casa-se em 1869 com Carolina Xavier de Novais, imigrante portuguesa
que tem 35 anos — muito além da idade média de casamento das
mulheres na época. Culta e alfabetizada, ela é parceira intelectual,
introdutora de novidades, comentadora e eventualmente revisora de
textos. O casal, que não teria filhos, vai morar no Cosme Velho.
A partir de 1872 inaugura outra atividade e outra forma de renda:
escrever romances. À medida que vai acumulando sucessos no mercado
de literatura que se formava na cidade (e recebendo direitos autorais),
torna-se também um escritor profissional reconhecido — o primeiro do
Brasil a viver primordialmente daquilo que escrevia.
Apenas no Rio de Janeiro combinam-se as possibilidades necessárias
para isso. Em primeiro lugar, há um contingente já apreciável de
alfabetizados — uma raridade num império que dedica muito pouco
esforço para superar o atraso recebido da miserável política cultural da
metrópole portuguesa: mesmo no final do regime monárquico, o índice
de analfabetos é de 87% da população e o ensino superior se resume a
umas poucas faculdades isoladas, sem nenhuma universidade.

Depois de décadas de esforço diário produz um estilo pessoal,


empatia com o público, uma grande liderança — e a maior obra
literária brasileira.

Em segundo lugar, há mercado de trabalho — mas seu caso mostra


quanto esforço é necessário para ganhar a vida escrevendo. Machado de
Assis precisa ser bem-sucedido como tipógrafo, redator, funcionário
público e romancista para ter o suficiente para uma existência
relativamente modesta.
Apesar das limitações, forma seu público. A partir da década de 1870
aparecem no Rio de Janeiro as primeiras revistas, nas quais crônicas ou
contos do escritor viram grande atração — e esses escritos se tornam mais
uma fonte de renda para o operário das letras. Na via inversa, a existência
de consumidores dispostos a pagar para ler dava também autonomia cada
vez maior para o profissional — e ele sabe aproveitar-se disso.
A partir da publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, em 1881,
Machado de Assis abandona os cânones do romantismo e inaugura um
estilo pessoal marcado tanto pela adesão a alguns traços do realismo —
como a concepção de personagens e argumentos que podiam gerar uma
impressão de confusão com o cotidiano dos leitores — como às muito
peculiares intervenções do narrador no fluxo dos acontecimentos
narrados, que seriam parte essencial de seu estilo.
Produz sucesso atrás de sucesso, impondo tanto a empatia com os
leitores como o resultado econômico da produção — e tudo isso o leva a
uma posição de grande prestígio social, tornando-se o primeiro
profissional a imperar como juiz do gosto intelectual no Brasil.
Emprega essa liderança depois da proclamação da República, em 1889.
Primeiro, escrevendo: grandes romances como Quincas Borba (1891), Dom
Casmurro (1899) e Esaú e Jacó (1904) são desse período. Depois, utilizando
seu prestígio para liderar uma reorganização das formas partidárias de
debate intelectual da época, tendo um papel fundamental na implantação
e no funcionamento da Academia Brasileira de Letras, em 1897, da qual
seria o primeiro presidente.
A partir da morte de sua mulher, Carolina, em 1904, passa a levar uma
vida mais reclusa. Mas continua fazendo o que fazem os escritores
profissionais: escreve todos os dias para ganhar dinheiro. E continua a
fazer isso ao modo ainda precário de seu tempo: combina o trabalho diário
de escritor com aquele também diário na repartição pública na qual era
funcionário, o Ministério da Viação.
Nessa situação delicada, consegue terminar Relíquias da Casa Velha,
coletânea de contos de 1906, e Memorial de Aires, romance de 1908. Em
julho pede licença no emprego para tratar da saúde. Morre em 29 de
setembro, deixando cinco coletâneas de poemas, nove romances, 200
contos e mais de 600 crônicas — uma obra que compõe um grande
tesouro da língua portuguesa.
Exemplar de Memórias Póstumas de Brás Cubas autografado para a Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro.
Princesa Isabel
★ Rio de Janeiro, 1846 † Eu, França, 1921

TARDE DEMAIS PARA MUDAR


Mulher e abolicionista, é abandonada pelo Partido Conservador na
hora de firmar as transformações do país sem escravos.

Filha de D. Pedro II e da imperatriz Teresa Cristina de Nápoles, é


designada oficialmente herdeira do trono brasileiro com a morte de seu
irmão Pedro Afonso, quando tem 6 anos de idade. A partir daí começa a
receber uma educação mais aprimorada que aquela dada às mulheres
nobres de seu tempo, com aulas de línguas, humanidades e
conhecimentos históricos e científicos.
Casa-se em 1864 com o francês Gastão de Orléans, o Conde D’Eu. O
marido é militar e acaba designado comandante do Exército brasileiro na
Guerra do Paraguai, em substituição do duque de Caxias, terminando
vitoriosamente a campanha.
No ano seguinte, D. Pedro II inicia uma viagem de quase dois anos à
Europa e a Princesa Isabel, com 24 anos, assume pela primeira vez o posto
de regente. Nesse período assina a promulgação da Lei do Ventre Livre —
mesmo um passo tímido como esse custa pesados debates parlamentares
e algumas manobras do trono para que se chegue à aprovação.
O segundo período da princesa como regente acontece em 1877 e,
depois dele, ela vive um tempo na França. De volta ao Brasil, já mais
segura do que quer, adota um estilo de vida diverso do pai — que inclui
gestos como o de, em 1885, comemorar seus 39 anos com uma cerimônia
pública de alforria de escravos.
Também faz questão de ter amigos como o abolicionista André
Rebouças e receber líderes liberais como Joaquim Nabuco no Palácio das
Laranjeiras — que funciona mais ao modo dos salões literários da época
que no registro de Corte do Antigo Regime do palácio de São Cristóvão,
moradia dos pais.
Em 1887, com 41 anos de idade, torna-se regente pela terceira vez.
Emprega ativamente o Poder Moderador para formar gabinetes e arrancar
do Parlamento a Lei Áurea, que assinou no domingo, 13 de maio de 1888,
em meio a imensas festas populares.
Com o pai de volta, não tem como comandar a implantação das
reformas que pretendia fazer no momento seguinte. Gabinetes
conservadores apenas produzem paralisia, o que abre uma crise produtiva
na área escravista do Rio de Janeiro. Somente em julho de 1889 o
imperador é persuadido a nomear o gabinete mais ao gosto da filha,
comandado pelo visconde de Ouro Preto, que corre como pode contra o
tempo.
O Partido Conservador, que sempre defendera o arbítrio do Poder
Moderador e a Coroa, se vê num dilema: defender o poder arbitrário nas
mãos de uma imperante com crenças que não eram exatamente as suas.
Entre a instituição e a oportunidade, fica com a oportunidade, aliando-se
aos republicanos. Em 15 de novembro de 1889 a monarquia é derrubada e
a Princesa Isabel mandada para o exílio.
Rui Barbosa
★ Salvador, 1849 † Petrópolis, 1923

MODERNIZAÇÃO E RANCOR
Num único dia, atualiza séculos: liberta empresários da tutela do
Estado, permite a garantia de créditos, formata o crescimento do
setor privado.

Toma uma decisão crucial em 1889: ex-deputado e ex-ministro, advogado e


jornalista reconhecido, recebe um convite do visconde de Ouro Preto para
ser novamente ministro. Recusa publicamente e adere ao projeto
revolucionário republicano. Em novembro é o único liberal a ter cargo no
governo provisório do marechal Deodoro: ministro da Fazenda.
O desafio jurídico é imenso. A remoção física do imperador elimina o
Poder Moderador, que controlava muitas áreas: a religião (o rei
administrava privativamente a religião católica); a vida empresarial (apenas
com beneplácito da Coroa as sociedades anônimas podiam funcionar); o
judiciário (a nomeação de juízes para os tribunais superiores era
prerrogativa pessoal do imperante); o Executivo (o Poder Moderador
formava os ministérios); os governos regionais (os presidentes de
província eram funcionários subordinados ao ministério nomeado).
Não bastasse, a lei civil vigente (que regulava contratos entre pessoas,
direito de família, casamentos e sucessões, hipotecas e contratos sobre
objetos, entre outros assuntos) são as Ordenações do Reino, codificadas
nos séculos XVI e XVII para regular as relações entre senhores e súditos
com base na tradição feudal — e, portanto, para as quais são estranhas as
relações entre cidadãos e governantes eleitos, empresários e
consumidores, homens e mulheres com iguais direitos.
O primeiro ato de Rui Barbosa lida com o resultado de tal
ordenamento jurídico arcaico na economia: paralisia. Durante os 70 anos
do Império o crescimento da renda per capita brasileira foi zero. Um
resultado pior que aquele do período colonial, com o agravante de que, no
século XIX, o capitalismo se impôs e todas as economias que o
implantaram passaram a crescer. Para efeito de comparação, o Brasil
entrou naquele século com uma economia de porte semelhante à dos
Estados Unidos e chegou à República com uma economia cerca de dez
vezes menor.
Em um único dia, 17 de janeiro de 1890, e com quatro decretos, Rui
Barbosa atualiza séculos.
O primeiro decreto simplesmente retira da vontade arbitrária do
imperante a franquia de aprovar sociedades anônimas e a transfere
diretamente para os cidadãos (não mais súditos): todos podem fazer as
empresas que quiserem sem pedir licença ao governo, bastando apenas
registrá-las nas juntas comerciais. No caso das pequenas empresas, o
decreto permite que elas se organizem fora da esfera familiar, com
contabilidade separada da pessoa física dos proprietários.
A regulamentação amplia tremendamente as possibilidades legais
daqueles que queriam ser empresários — e diminui muito a mistura de
negócios e relações pessoais que mantinha os comerciantes atacadistas no
topo da pirâmide econômica e política e os clientes como pessoas
dependentes. Cria espaço para a economia formal e contratual do
capitalismo, para a autonomia dos consumidores, para o progresso do
mercado interno.

Exilado ao pedir habeas corpus, perseguido por defender o voto


secreto, mal entendido como social-democrata: ser progressista
tem preço.

O segundo decreto modifica o estatuto jurídico da propriedade


agrária. A sobrevivência das Ordenações manteve no Brasil alguns
privilégios medievais, como a impossibilidade de executar grandes
propriedades de terra. Funcionava nos tempos da escravidão — e se
tornou um grande problema quando os ex-proprietários de escravos
precisaram de dinheiro para salários e não encontraram quem
emprestasse sem garantias.
O terceiro decreto regulamenta o chamado direito das coisas,
hipotecas e penhores entre elas. Traz para esse direito a noção de
propriedade alienável, permitindo que os bens de cada um sejam
empregados para obter crédito, funcionando como garantia. Cria a base
para o acesso ao crédito das pessoas que não têm propriedade imobiliária.
O quarto decreto regula o único tipo de empresa que ainda precisaria
de autorização do governo para funcionar, os bancos de emissão. Em
essência, é uma versão atualizada das leis monetárias dos Estados Unidos,
que permitiam a combinação de uma moeda interna de papel com
transações internacionais feitas no padrão-ouro. Assim separava o crédito
para expansão do mercado interno do controle discricionário do governo.
Os princípios jurídicos de todas essas medidas vigem até hoje no país.
Na época, provocaram uma enorme mudança a favor do setor privado da
economia — e geraram uma reação de ódio conservador que
acompanharia o ministro pelo resto de sua vida.
Reações viriam de todas as áreas em que ele atuou depois. Em 1892
entra com o primeiro habeas corpus no recém-criado Supremo Tribunal
Federal. Pede que a Justiça solte prisioneiros mantidos ilegalmente no
cárcere. A medida hoje parece normal, mas foi muito pouco entendida
num tempo em que se pensava em justiça como derivada do poder de um
rei que se achava acima da lei.
O marechal Floriano, presidente da República, considera ofensa essa
tentativa de um cidadão para anular um ato do dono do poder. Ameaça os
ministros e persegue Rui Barbosa até o ponto de levá-lo a exilar-se numa
embaixada e sair do país.
De volta, passa a atacar a política dos governadores criada por Campos
Sales. Em 1908 apresenta-se como candidato a presidente da República
contra o candidato criado em palácio, o marechal Hermes da Fonseca. O
programa é singelo: diz que o eleitor deve escolher o presidente e prega
contra as formas de controle do resultado eleitoral, sugerindo o voto
secreto.
Volta a ser candidato em 1919. Com 70 anos de idade, abandona os
princípios liberais e se apresenta com um programa social-democrata pelo
qual propunha a intervenção do Estado para criar direitos trabalhistas,
uma previdência e um sistema de saúde pública.
Morre em 1923. O crescimento econômico do país é um dos maiores
do mundo no momento.

Rui Barbosa em São Paulo, durante a campanha presidencial de 1908. Esta foi a primeira fotografia
feita em um dia e publicada no dia seguinte na imprensa brasileira, no jornal O Estado de S. Paulo.
Júlio de Castilhos
★ Cruz Alta, 1860 † Porto Alegre, 1903

DITADOR POSITIVISTA

Contrário ao voto e à democracia, ele liderou uma revolução


sangrenta para se tornar ditador e governar um estado no qual o
desenvolvimento econômico seria menor que a média nacional.

Líder dos republicanos gaúchos, não é avisado dos preparativos do golpe


para derrubar o imperador, pois os organizadores não confiam nele. Mas
ganha direito a indicar ministro, e seu indicado passa a defender as ideias
do chefe: repúdio a eleições e democracia, implantação de uma ditadura.
Perde no plano federal mas ganha no estadual: a constituição sul-rio-
grandense de 1891 amplia ao máximo o poder do governador e diminui ao
extremo as franquias de legislativo e eleitores. Nesse momento a
economia do estado é do mesmo tamanho que a de São Paulo; a taxa de
alfabetização, a mais alta do país; e a fatia de imigrantes europeus na
população, a mais elevada.
Mas o custo de implantação do regime ditatorial é bastante alto: anos
de turbulência, outros de guerra civil com dezenas de milhares de mortos.
De tudo isso resulta um governo que intervém muito mas faz pouco (o
orçamento gaúcho foi menor que o pernambucano por muitos anos).
Ao fim da primeira década republicana, a combinação de custos altos
de implantação com apoio limitado faz com que a economia do estado
seja aproximadamente a metade da de São Paulo — e as taxas de
crescimento da indústria continuem, pelas décadas seguintes, abaixo da
média brasileira. Júlio de Castilhos morre como ditador e é sucedido por
outro.
Floriano Peixoto
★ Maceió, 1839 † Barra Mansa, 1895

O MARECHAL DE FERRO

Militar competente, político matreiro, governante com poderes


absolutos — também fiador e construtor da ditadura gaúcha.

Nasce em família modesta, alista-se como soldado. Participa dos primeiros


combates da Guerra do Paraguai como tenente e do último episódio do
conflito, a morte de Solano López, como coronel. Membro do Partido
Liberal, é indicado como presidente de província. Chega ao posto mais
alto do Exército.
Apoia a República. É vice-presidente quando o titular, marechal
Deodoro, fecha o Congresso e se torna novamente ditador, em 1891. Com
apoio dos republicanos, especialmente os paulistas, derruba o antigo chefe
e assume o cargo.
Começa o governo em meio a dificuldades com o setor externo da
economia, abalado por uma crise mundial. Enquanto enfrenta esse
problema, monta o esquema de apoio militar pelo qual Júlio de Castilhos
pôde enfrentar pela força todos os seus adversários locais na chamada
Revolução Federalista.
A decisão racha as Forças Armadas. Parte do Exército e o grosso da
Marinha se revoltam e aderem aos federalistas, transformando o episódio
local em guerra civil nacional. Floriano Peixoto enfrenta a todos com seus
métodos militares e com poderes absolutos dados pelo Congresso. Vence
batalhas, censura a imprensa, prende e manda perseguir adversários. Mas
faz isso apenas nos limites de seu mandato, permitindo a realização de
eleições nacionais e entregando o poder a seu sucessor.
Prudente de Morais
★ Itu, 1841 † Piracicaba, 1902

VOTO POPULAR, PRESIDENTE POPULAR


Democrata por formação e convicção, o primeiro presidente
escolhido pelo voto dos cidadãos faz algo raro: dirigir o país
pensando nos eleitores.

Filho de um tropeiro, seu pai morre assassinado quando tinha 5 anos.


Estuda Direito e se torna militante do Partido Republicano Paulista no
momento de sua fundação. É um dos únicos três republicanos a se eleger
para o Parlamento durante o regime monárquico.
Governador de São Paulo na implantação da República, um de seus
primeiros decretos é aquele que cria uma rede pública de educação — a
primeira a ser implantada no país. Eleito senador e presidente da
Assembleia Constituinte em meio a várias ameaças de golpe, impõe um
regime de discussão capaz de levar o trabalho ao término em apenas dois
meses.
A constituição aprovada transferia muitos poderes antes reservados ao
Poder Moderador para instâncias menores de governo — o federalismo
que os republicanos pregavam como solução dos problemas que se
arrastaram Império afora. O mais conspícuo deles era a transferência da
esfera privada e hereditária do imperador para os cidadãos do poder de
determinar quem seria o chefe de Estado e governo, o presidente da
República.
O mesmo aconteceu com o poder de determinar os comandantes das
esferas intermediárias de governo. As antigas províncias foram
transformadas em estados nos quais o governador seria eleito e também
dotadas da capacidade de tributar e executar orçamentos por conta
própria. Também houve divisão no próprio âmbito federal, com a retirada
do Judiciário da esfera do antigo Poder Moderador e sua transformação
em um poder independente.
Entre o desenho da constituição e seu início efetivo de operação, muita
coisa acontece. O primeiro presidente da República, marechal Deodoro da
Fonseca, e seu vice, marechal Floriano Peixoto, são eleitos indiretamente
pelo Congresso. Nenhum dos dois poderia ser acusado de entender
minimamente um sistema de divisão de poderes — e muito menos de
pretender agir como representantes de eleitores. O primeiro dá um golpe
e é derrubado; o segundo governa com poderes quase absolutos
delegados pelo Congresso, sob estado de sítio.
Nesse ambiente Prudente de Morais se lança candidato. Muitos dos
convencionais de seu partido pedem adiamento da eleição, alegando
existir uma guerra civil em andamento; praticamente não há campanha
eleitoral, pois a imprensa de todo o país está censurada; depois da eleição
começam a circular boatos de que o marechal Floriano não entregaria o
poder.
Prudente de Morais desembarca no Rio de Janeiro para a posse:
ninguém o espera na estação. No dia da transmissão do cargo nem o
presidente que saía nem os ministros dão as caras. Quando chega ao
Palácio do Itamaraty, encontra os móveis da sala passados a baioneta.
Seu primeiro ato como primeiro presidente da República eleito pelos
cidadãos do país é mandar abrir as portas do palácio e permitir a entrada
do povo — que pode verificar os estragos enquanto acontece a primeira
reunião ministerial. A um amigo, Prudente diz:

Depois de superar guerra civil, crises, revoltas, armadilhas e


atentados, deixa o governo com o respeito popular e vai viver
como cidadão comum.

“Soltar os demônios é fácil; minha missão será recolhê-los, cumprindo meu


dever cívico.”
Começa recolhendo instrumentos de exceção. Reduz o estado de sítio
às regiões de conflito da Revolução Federalista. Acaba com a censura da
imprensa. Os exageros ideológicos terminam, os fatos dramáticos —
como execuções em massa — podem ser noticiados, as ideias de
pacificação circulam. Em pouco tempo a paz se estabelece no Sul do país.
Passa a recolher os escolhos econômicos. Os dois presidentes
anteriores haviam governado com uma combinação de emissões e crise
cambial internacional, o que levou a uma grande desvalorização da moeda,
que por sua vez gerou dificuldades para o governo honrar os
compromissos externos. Prudente de Morais consegue conter as emissões
e ir pagando os compromissos, além de refrear os gastos do governo.
Adota também um estilo de comunicação próprio de quem tem contas
a prestar aos eleitores: organiza cerimônias públicas para anunciar cada
meta cumprida em seu programa de guardar demônios, vai tentando
mostrar ao eleitor que valia a pena o novo sistema de governo.
Precisa tirar uma licença médica em 1896. Passa o poder para o vice,
Manuel Vitorino — e os métodos de governo mudam. O novo ocupante
troca o ministério, ensaia uma nova política econômica, parte para críticas
diretas ao eleito — e organiza uma expedição do Exército a Canudos,
tentando reativar os manejáveis demônios da ameaça ao regime
republicano.
Prudente de Morais reassume o poder de surpresa, no dia da morte do
coronel Moreira César em Canudos. Foi sua sorte: com a notícia, o país é
varrido por uma onda de ataques contra monarquistas e pedidos de
renúncia. Mantém o sangue-frio, organiza os ataques a Canudos sem
estado de sítio. Com a zona de combates aberta para a imprensa,
repórteres contam o que veem e assim a população começa a descobrir
que certos fantasmas só vicejam no escuro.
No dia da volta dos militares vitoriosos ao Rio de Janeiro o presidente
vai recebê-los no Arsenal da Marinha. Sofre um atentado do qual escapa
por milagre e no qual morre o ministro da Guerra. Prudente desafia os
adversários que tentaram matá-lo indo ao enterro e carregando o caixão.
Torna-se herói popular e presidente amado. Passa o cargo a seu
sucessor na frente de uma multidão, gasta dois dias para cumprir toda a
agenda de homenagens antes de deixar a capital. As homenagens se
repetem em São Paulo. Vai para Piracicaba advogar, como um cidadão
comum. Só deixa de ir ao fórum para protestar contra a política dos
governadores. O manifesto que ajuda a redigir a qualificava de “evidente
atentado contra a soberania nacional, a nulificação das eleições, a negação
absoluta do regime democrático, cuja base é o sufrágio popular”. Morre
logo em seguida, com o dever cívico cumprido.
Da esquerda para a direita, o governo provisório paulista de 1890: Caetano de Campos, Antônio
Macedo, Paula Sousa, Pudente de Morais (governador), Bernardino de Campos, Peixoto Gomide e o
coronel Lisboa.
Antônio Conselheiro
★ Campo Maior, 1830 † Canudos, 1897

SÚDITO EXEMPLAR, CIDADÃO MASSACRADO

Foto do cadáver de Antônio Conselheiro em Canudos, feita no dia 6 de outubro de 1897 por Flávio
de Barros.

Admirado por suas virtudes nos tempos do Império, acossado


pelo governo e a Igreja, massacrado por liderar cidadãos que,
como ele, queriam a liberdade.

Durante o Império é o que se poderia chamar um súdito sertanejo


exemplar. Vive com pouco, é extremamente religioso. Ajuda os padres
quando isso queria dizer ajudar também o governo: faz limpeza de
cemitérios, auxilia em casamentos e batizados, prega nas comunidades
distantes.
A República provoca uma mudança. Entre os vários instrumentos do
Poder Moderador transferidos para a sociedade, um é o padroado. Através
dele, desde 1418 o monarca português (e o brasileiro, por herança) cobra
impostos eclesiásticos (o dízimo entre eles), paga padres, cria bispados e
nomeia em todos os postos, da paróquia da vila ao representante no
Vaticano.
Também por isso os registros eclesiásticos eram registros civis:
certidões de batismo equivaliam às de nascimento, o casamento religioso
tinha efeitos civis, os registros de óbitos eram feitos por sacerdotes e os
cemitérios, controlados por padres. O governo provisório privatizou
grande parte de tudo isso, transferindo propriedades e pessoal para o
Vaticano — mas criou o casamento e os registros civis na esfera
governamental.
Os novos administradores vindos de Roma não têm apoio do governo,
de modo que precisam viver do dízimo e de esmolas. Não precisam
prestar os serviços de antes, de modo que repassam atividades como
controle de cemitérios e funerais. Não precisam da espécie de auxílio que
Antônio Conselheiro prestava.
Ao mesmo tempo, alguns governos estaduais recém-implantados
introduzem novos tributos para serem pagos pelos pobres, o que gera
revoltas. Antônio Conselheiro se intromete na situação de um modo muito
antigo: convencendo gente a mudar para mais fundo no sertão e se livrar
da ingerência do governo (e da nova administração da Igreja) em suas
vidas.
Em pouco tempo o arraial de Canudos recebe 30 mil habitantes — e
passa a sofrer oposição tanto dos proprietários locais, que perdem controle
sobre mão de obra, quanto dos recém-chegados administradores da
Igreja, que lutam para controlar fiéis. Ambas as partes fazem tentativas
fracassadas de desmontar o arraial.
É assim até o presidente em exercício Manuel Vitorino vender para a
imprensa a versão de que Canudos forma um reduto monarquista e
mandar o coronel Moreira César com um batalhão do Exército para
destruir a vila. Acontece um inesperado fiasco militar: 1.500 homens bem
armados são dizimados por sertanejos quase sem armas.
A população de Canudos passa a ser alvo militar e é massacrada pelo
Exército. Antônio Conselheiro lidera a resistência heroica até os últimos
dias, morrendo em meio aos combates. Os atos são narrados por
jornalistas — e a versão inicial do perigo monarquista é substituída pela
noção de um crime de Estado contra um grupo de cidadãos quase
indefesos.
Euclides da Cunha
★ Cantagalo, 1866 † Rio de Janeiro, 1909

A CONSCIÊNCIA DE REPÓRTER
Vai a Canudos como editorialista republicano, testemunha um
massacre; a reavaliação de seus valores gera Os sertões.

Aluno do líder positivista Benjamin Constant na Escola Militar, torna-se


um dos republicanos mais conspícuos da instituição — a ponto de ser
expulso do Exército por desacato a uma autoridade imperial. Readmitido
com a República, é promovido a oficial e se aproxima dos jacobinos que
cultuam Floriano Peixoto.
Quando ocorre o massacre da expedição Moreira César, é um dos que
difunde a versão do perigoso bastião monarquista dos sertões, escrevendo
editoriais no jornal O Estado de S. Paulo. Por conta deles, acaba sendo
convidado pelo proprietário, Júlio Mesquita, para cobrir os ataques ao
arraial, trabalhando como repórter.
Aceita. Embarca com as tropas enviadas para combater, vai escrevendo
artigos com tom de editorial pelo caminho, todos eles peças de
propaganda de suas crenças numa expedição para salvar a República. Mas
assim que desembarca em Salvador começa a cumprir um dos mais
elementares deveres de um repórter: falar com pessoas de convicções
contrárias às suas.
Bastam uns poucos dias e algumas entrevistas com prisioneiros para
que ele comece a perceber que estes apresentavam ideias coerentes e
críveis: não tinham posições políticas no que se refere a regimes de
governo, não eram fanáticos, não pensavam em mais do que viver
dignamente sua existência de pobres. O repórter faz o que deve: transmite
os argumentos ao leitor.
Chega a Canudos quando os últimos habitantes estavam sendo
trucidados. Fala com muitos sobreviventes e prisioneiros, interroga os
próprios colegas militares. Convence-se de que tinha defendido uma
posição errada. Mais que isso, obriga-se a escrever um livro no qual a
versão dos derrotados pudesse ser mostrada. O trabalho de composição é
longo e vai tomar os próximos anos, dividido com o trabalho de
engenheiro.
Os sertões sai publicado no fim de 1902. Contra as próprias expectativas
do autor, torna-se sucesso imediato e um dos grandes clássicos da
literatura brasileira. Coloca a nu o grande dilema dos propagandistas do
novo regime: república é uma coisa; democracia e respeito aos direitos do
cidadão, outra muito diferente — até porque ainda demoraria mais de
uma década para o Parlamento produzir um código civil que terminasse
com o enquadramento dos cidadãos com leis feitas para súditos do século
XVII.
O próprio Euclides da Cunha vai mudando suas concepções de mundo
depois da publicação do livro. Progressivamente adota posturas socialistas
em seus livros e artigos, escritos nos intervalos de várias missões como
militar pelo interior do país. Aprende a respeitar e notar os hábitos dos
pobres e analfabetos, uma raridade entre os escritores de seu tempo.
Morre assassinado pelo amante de sua mulher, Ana de Assis.
Campos Sales
★ Campinas, 1841 † Santos, 1913

REPUBLICANO DE CORTE IMPERIAL


Apesar da formação republicana, norteou sua ação na presidência
da República pelos cânones imperiais do pensamento
conservador.

Filho de um tropeiro que participara da Revolução de 1842, cresce entre


militantes liberais e se torna organizador do Partido Republicano Paulista
quando dividia seu tempo entre a imprensa, a advocacia e a defesa das
ferrovias que se formavam em São Paulo.
Ministro da Justiça no governo provisório de Deodoro da Fonseca, é o
responsável pela rápida separação entre Estado e Igreja, além de introduzir
o registro civil. Depois é eleito senador constituinte e, em 1896,
governador de São Paulo. Renuncia ao cargo no ano seguinte, para se
candidatar à presidência da República.
Para surpresa de muitos republicanos, desenha um perfil da
presidência inteiramente baseado nas concepções dos teóricos
conservadores do Poder Moderador, citados nominalmente em seu
primeiro discurso de abertura do Congresso. Rui Barbosa fica tão chocado
que responde com uma série de artigos intitulada “Resposta à Fala do
Trono”, para aludir ao título da resposta do Parlamento imperial ao
discurso de abertura da sessão feito pelo monarca.
A política econômica segue o mesmo figurino. Foi desenhada por
Joaquim Murtinho, ministro da Viação de Manuel Vitorino, vice-presidente
que ocupou a presidência quando Prudente de Morais precisou tirar
licença médica. Ele propôs como objetivo da política econômica a volta aos
ideais dos conservadores do Império: uma ação para combater a economia
monetária, estancar o desenvolvimento industrial e retroceder as relações
trabalhistas para aquém do trabalho assalariado.
Campos Sales lê o relatório e compra a ideia, chamando Murtinho para
o Ministério da Fazenda. Por sua iniciativa, o presidente eleito assina um
acordo draconiano com credores externos, conhecido como Funding Loan.
O ministro Murtinho administra a execução; não consegue acabar com a
indústria nem com a economia monetária, mas provoca uma recessão
cavalar no país.
Em meio a ela, no ano de 1900, o presidente mostra o passo maior de
suas convicções: desvela um esquema pelo qual apoia todas as falsificações
eleitorais de situacionistas estaduais em troca de apoio das bancadas
parlamentares a ele — a chamada política dos governadores. Com poucas
reações, o esquema que tira do eleitor o poder de escolher se impôs.
Por tudo isso, Campos Sales deixa o governo como um presidente
impopular, sendo vaiado por onde passa. Apesar de várias tentativas,
nunca mais consegue algo na política — perde até convenção de
candidato ao governo paulista. Mas é coerente: morre pobre, porque a
política recessiva adotada em seu governo provoca a derrocada de suas
atividades como fazendeiro de café.
Augusto Ramos
★ Cantagalo, 1860 † Rio de Janeiro, 1939

ESTATÍSTICA, CAFÉ E BONDINHO


A partir de conhecimentos numéricos do mercado mundial de
café ele desenha e ajuda a implantar uma política econômica
inovadora.

Engenheiro, é um dos primeiros professores contratados pela Escola


Politécnica de São Paulo. A partir de 1894 dá aulas de mecânica, construção
de máquinas e tecnologia agrícola. Aproxima-se de um grupo que reúne
industriais e produtores de equipamentos para a agricultura.
Em plena recessão do governo Campos Sales começa a divergir dos
economistas que defendem a política do governo sob a alegação de que
oferta e procura equilibrariam o preço do café no mercado brasileiro.
E discorda empregando argumentos estatísticos — algo inteiramente
desconhecido pelo pensamento econômico conservador brasileiro da
época. Explica que a oferta é irregular por causa das safras cíclicas (pelo
mundo todo, uma safra grande sempre é seguida de outras menores),
enquanto a demanda é constante e crescente. Sendo assim, o preço de
equilíbrio só pode ser determinado no nível mundial e a partir de médias
móveis que eliminem as flutuações sazonais da produção.
Descobrindo esse preço médio, Augusto Ramos sugere que a política
correta para o governo brasileiro deveria ser outra: proibir novas
plantações, aproveitar os preços baixos nos portos brasileiros para comprar
safras, formar um estoque e vendê-lo no momento futuro de alta.
O governador paulista Jorge Tibiriçá acha a ideia interessante. Em 1903
é aprovada uma lei estadual proibindo novos plantios; em 1904 ele envia
Augusto Ramos para estudar a possível reação dos países competidores;
em 1905, o Plano de Valorização do Café está pronto.
Augusto Ramos tem um papel crucial em sua implantação: cuida
primeiro de informar os políticos que negociam secretamente. Depois do
Convênio de Taubaté, toma a frente do debate público brasileiro,
vendendo a ideia no Rio de Janeiro, enfrentando a opinião conservadora
dominante. Passa a escrever artigos de jornal, participar de debates,
alimentar os parlamentares de informação.
Os anos de 1906 até 1908, quando enfim a implementação do plano é
completada, são dedicados a duros combates de ideias. Mas a vitória veio,
e trouxe doçuras: começa uma forte onda de crescimento da economia de
todo o país como há mais de um século não se via.
A essa altura, os antigos adversários do projeto se rendem — e
Augusto Ramos apresenta a alguns deles uma ousada ideia de engenheiro
para os tempos de fartura: montar uma empresa para explorar a atividade
turística, aproveitando a beleza da paisagem do Rio de Janeiro.
Como havia dinheiro, em pouco tempo reúne sócios para implantar
um serviço de bondes aéreos no morro do Pão de Açúcar. De novo ouve
que criava um plano lunático destinado ao fracasso — até a inauguração
em 1912 e o sucesso do empreendimento.
Jorge Tibiriçá Piratininga
★ Paris, França, 1855 † São Paulo, 1928

GOVERNO LOCAL, VISÃO MUNDIAL


Chefiando o executivo de um estado, além de modernizar a
administração ele muda para melhor as relações externas da
economia brasileira.

Filho de líder republicano, doutor em Agronomia na Suíça, governa São


Paulo modernizando a administração. Washington Luís, secretário da
Justiça, traz militares franceses para treinar a polícia de rua a lidar com
cidadãos, cria a carreira de delegado de polícia e faz concursos com vagas
estáveis para tornar o Judiciário independente. Carlos Botelho, secretário
da Agricultura, instala faculdades e institutos de agronomia enquanto
oferece pequenas propriedades a imigrantes, começando pelos primeiros
japoneses chegados ao Brasil. Albuquerque Lins, secretário da Fazenda,
busca novos financiadores na Europa.
Mas a grande aposta de seu governo é o Plano de Valorização do Café.
Como o presidente Rodrigues Alves é muito contrário à ideia, trata de não
brigar com ele enquanto vai trabalhando com discrição. Convence o
governador mineiro eleito, João Pinheiro, a adotar seu projeto; envia
Augusto Ramos para estudar os concorrentes; fala com empresários
amigos do governador fluminense Nilo Peçanha.
Em agosto de 1905 promove uma reunião secreta em Taubaté, na qual
emissários dos três governos estaduais acertam a assinatura de um
convênio — o máximo que podem fazer contra um presidente opositor. E
os três governadores se acertam secretamente com o candidato Afonso
Pena.
No início de 1906 tudo vem a público. Os governadores assinam o
Convênio de Taubaté, como forma de pressão para que o Congresso
aprove leis permitindo que os estados façam empréstimos para comprar
café e o governo adote uma Caixa de Conversão para defender um câmbio
baixo — o contrário do ideal conservador vigente, a política de valorizar o
câmbio.
Enquanto isso, ainda em segredo, manda Francisco Ramos, irmão de
Augusto Ramos, para a Europa. Como o governo estadual não tem
dinheiro, sua missão é achar especuladores dispostos a financiar a ousada
ideia. Num encontro em Baden-Baden, na Alemanha, ele convence o
maior agente mundial do mercado, Herman Sielcken, a apoiar o plano.
Sielcken encontra parceiros com dinheiro, de modo que o café é comprado
por um governo local financiado pelo mercado mundial.
Tudo isso acontece no ano de uma safra gigantesca: 20 milhões de
sacas, mais do que o dobro das boas safras nos anos anteriores. Lutando
contra adversários internos e externos, o governo paulista acaba estocando
8 milhões de sacas e conseguindo dinheiro para financiar o estoque. Em
1908 é dono do mercado — e a percepção disso gera um forte movimento
de alta. Vendendo café a preço maior do que comprou, após pagar as
dívidas o governo ainda é dono de 3 milhões de sacas — e a indústria,
setor para onde iam os lucros segundo o plano, se transforma no carro-
chefe da economia paulista.
João Pinheiro
★ Serro, 1860 † Belo Horizonte, 1908

INDUSTRIAL NO PODER

A atividade na empresa e a inovação técnica funcionavam para ele


como fontes de virtude para o exercício do poder político.

Filho de um funileiro italiano e de uma filha de professor, perde o pai com


10 anos e é educado por padres. Transforma-se em professor e paga seus
estudos de Direito em São Paulo dando aulas e trabalhando como zelador.
De volta a sua terra, combina a atividade de propagandista republicano
com a de empresário.
Tem 29 anos quando a República é proclamada. Eleito vice-governador
de Minas Gerais, torna-se governador com 30 anos de idade. É eleito
senador constituinte — e abandona a política com o golpe do marechal
Deodoro, em 1891.
Volta para Caeté e torna-se industrial, montando uma bem-sucedida
empresa de cerâmica. Crê em mudar o próprio sentido de fazer política:
“Substituamos a política sem objetivo pela emulação do trabalho. Cumpre
que o criador e o industrial inteligentes possam ver seus méritos reconhecidos.”
O governador Francisco de Sales reconhece: em 1903 chama João
Pinheiro para presidir um Congresso Agrícola, Industrial e Comercial. Os
dois saem dele com ideias comuns de proteção para a indústria e apoio à
valorização do café — e João Pinheiro acaba escolhido para a sucessão.
Uma vez no governo, implanta o plano do café e promove uma reforma
modernizadora do ensino, além de iniciar uma nova política de crédito.
Escolhido sucessor do presidente Afonso Pena, morre antes de concluído
seu mandato.
Afonso Pena
★ Santa Bárbara, 1847 † Rio de Janeiro, 1909

AMANTE DA INOVAÇÃO

Implantou Belo Horizonte, a primeira cidade moderna do país;


apoiou jovens com projetos políticos renovadores; presidiu o país
pensando no progresso.

Faz uma carreira de grande sucesso no Partido Liberal durante o Império,


sendo três vezes nomeado ministro. Torna-se um dos raros a sobreviver
politicamente na República. É o primeiro governador estadual eleito em
Minas Gerais; durante seu mandato é construída a primeira cidade
moderna e planejada do país, Belo Horizonte. Também é instalada uma
faculdade de Direito inovadora.
Político hábil, acaba vice-presidente de Rodrigues Alves e é apoiado por
este para sua sucessão — mesmo com ideias muito contrárias às do então
titular. Luta resolutamente pelo Plano de Valorização do Café; mesmo
antes de sua posse, que ocorreu em novembro de 1906, ajuda
discretamente na aprovação pelo Congresso das licenças para
empréstimos e na discussão da Caixa de Conversão — uma das primeiras
leis que assina, já que o antecessor se recusou a tanto.
Foi o único militante do antigo Partido Liberal a presidir o país. Fez
isso de modo inovador, trazendo jovens para os cargos importantes.
Consegue que a economia nacional entre em fase de grande progresso.
Mas isso atiça conservadores contra ele. A morte de João Pinheiro,
sucessor escolhido, abre uma brecha para manobras contra o novo
indicado, o ministro da Fazenda Davi Campista. Traído por ministros e
apoiadores, fica doente e morre no exercício do cargo.
Alberto Santos Dumont
★ Palmira (hoje Santos Dumont), 1873 † Guarujá, 1932

AVIADOR
Comanda dirigíveis sobrevoando Paris; é o primeiro a voar em
público num avião. Assim se transforma na primeira celebridade
moderna do Brasil.

Desde criança encontra uma espécie de paraíso: a oficina mecânica que


seu pai, engenheiro formado em Paris, mantém na fazenda de café de sua
propriedade em Ribeirão Preto. Ali o menino fabrica engenhocas de toda
espécie, conserta mecanismos, ensaia invenções. Nos intervalos aprende a
dirigir as locomotivas da ferrovia que atravessa as plantações.
Com 18 anos, em 1891, faz sua primeira viagem para a Europa. Três
anos depois conhece os Estados Unidos. Em 1897, já dono de uma fortuna,
muda-se para Paris e dedica-se inteiramente à aeronáutica.
Voa com balões de vários tipos, ao mesmo tempo que desenvolve
versões dos recém-inventados motores a combustão para mover hélices.
Junta balões com motores para construir um veículo dirigível. Justamente
nesse momento, em 1900, é estabelecido o prêmio Deustch: 100 mil
francos para quem, partindo de Longchamps, contornar a Torre Eiffel e
voltar ao ponto de partida em meia hora.
Santos Dumont vai realizando tentativas para melhorar seus dirigíveis
empregando o percurso marcado para o prêmio. Passa a voar sobre Paris,
exibindo a novidade do voo para as multidões. Volta e meia sofre acidentes
— e as pessoas nas ruas o ajudam várias vezes a se safar da morte.
Cria invenções de todo tipo. Uma delas é o primeiro relógio de pulso
— essencial para controlar o tempo de marcha sem desviar as mãos dos
comandos. Em julho de 1901 completa o percurso pela primeira vez, mas
excede o limite de tempo.
No dia 19 de outubro de 1901, o dirigível número 6, com 622 metros
cúbicos de gás e motor de 7 cavalos-vapor, parte de Longchamps,
contorna a Torre Eiffel e volta ao ponto de partida em menos de meia
hora. Alberto Santos Dumont torna-se celebridade mundial, recebendo
convites para visitar vários países da Europa e os Estados Unidos, onde foi
recebido pelo presidente Theodore Roosevelt.
A partir de 1904, com o estabelecimento de prêmios para quem fizesse
decolar e voar um aparelho mais pesado que o ar, Santos Dumont começa
a construir protótipos de aviões. Dois anos depois, com o 14-bis, é o
primeiro homem a decolar e voar em público com um avião.
Logo em seguida começa a desenhar modelos que pudessem se tornar
meios de transporte acessíveis — e fica famoso por decolar com seu
Demoiselle, aterrissar em gramados, participar de festas e voltar pilotando
para casa.
Em 1910, um problema de saúde encerra sua carreira de aviador.
Dedica-se aos estudos de astronomia — até ser preso em sua casa de
Trouville: em plena Primeira Guerra, a atividade foi confundida com
espionagem. Volta para o Brasil, constrói a casa na qual vive em Petrópolis.
João Cândido
★ Encruzilhada do Sul, 1880 † Rio de Janeiro, 1969

O ALMIRANTE NEGRO
Para atualizar oficiais que mantinham o chicote em navios de alta
tecnologia, ele se transforma em chefe de esquadra — e paga um
preço alto pela conquista.

Filho de escravos libertados, senta praça no Exército com 14 anos e no ano


seguinte passa para a Marinha. Navega pelo mundo todo em navios de
guerra brasileiros. Em 1908 acaba sendo um dos escolhidos para tripular
um dos dois encouraçados que o Brasil encomendara na Inglaterra.
A compra representava um grande salto tecnológico. Os navios tinham
12 canhões de dez polegadas, couraça de 24 centímetros de espessura. Era
muito poder de fogo, desde que houvesse destreza: o coice dos canhões
era tão violento que exigia ordem precisa de disparos; havia comportas a
serem manobradas de modo coordenado; era necessário controlar o uso
das quatro turbinas que moviam as belonaves.
A tecnologia influenciava até o desenho das relações internas dos
navios, batizados Minas Gerais e São Paulo. Eles foram projetados para
abrigar tripulações de formação técnica convivendo em espaços apertados.
Em vez da secular tradição de alojamentos e refeitórios separados para
oficiais e marinheiros, agora todos dividiam um único ambiente. João
Cândido é o encarregado de operar o radiotelégrafo, então novidade de
alta tecnologia.
A viagem inaugural do São Paulo é carregada de simbolismo: veio a
bordo um ilustre passageiro, o marechal Hermes da Fonseca, que vinha
assumir a presidência da República. O novo encouraçado aporta numa
baía de Guanabara coalhada de navios de guerra estrangeiros que
abrilhantavam os festejos da posse.
Na tarde de 22 de novembro de 1910 o comandante do Minas Gerais
reúne a tripulação para assistir a uma demonstração de que as novidades
tecnológicas não seriam acompanhadas de mudanças de comportamento:
todos olham a aplicação de 250 chibatadas num marinheiro. Terminada a
cerimônia, vai jantar a bordo de um cruzador português.
Enquanto está fora, João Cândido dá a ordem para o motim.
Marinheiros tomam controle dos encouraçados e do cruzador Bahia, ligam
os motores e começam a manobrar. A frota comandada pelo novo
almirante faz exibições de destreza em evoluções que nem os oficiais
sonhavam.
Pelo rádio é transmitida a única exigência dos amotinados: fim dos
castigos físicos na Marinha. A mensagem é ouvida na capital: a população
apoia, o Congresso também. O governo dá anistia solene aos marinheiros
e João Cândido se torna herói popular.
A vingança dos oficiais não tarda. Centenas de marinheiros são
fuzilados. Trancado numa cela com 24 pessoas, João Cândido é o único a
sobreviver — para ser processado e expulso da Marinha. O Minas Gerais
virou sucata em 1953 e seu grande comandante viveu como cidadão pobre
e digno até 1969.
Oswaldo Cruz
★ São Luiz do Paraitinga, 1872 † Petrópolis, 1917

SAÚDE PÚBLICA

Sua ação revolucionou definitivamente a abordagem do


tratamento da saúde pelos governos no Brasil.

Entra na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1887, forma-se em


1892. Em seguida faz um estágio de três anos no Instituto Pasteur, em
Paris. Em 1900, de volta ao Rio de Janeiro, funda o Instituto Soroterápico,
para produzir vacinas.
Em 1903 é nomeado diretor de saúde pública no Distrito Federal —
uma novidade republicana, pois até então só havia medicina particular no
Brasil. Para combater a varíola e a febre amarela, cria um batalhão de
funcionários que matam mosquitos enquanto começa a primeira
campanha de vacinação obrigatória no país.
O ambiente em torno não ajuda. O centro da cidade, que abriga a
maior parte da população pobre, é então quase área de guerra, com
demolições em massa e expulsão de moradores. Médicos convencem a
Igreja Positivista de que a vacinação era perigosa para a saúde e invasão de
privacidade; há polêmica pelos jornais. Tudo isso acaba gerando a Revolta
da Vacina, com tumultos e prisões durante vários dias.
Apesar da impopularidade, Oswaldo Cruz consegue sair do episódio
com seu instituto fortalecido e com capacidade para começar o estudo das
doenças tropicais em bases científicas — projeto que também acontecia
em São Paulo com Vital Brasil e o Instituto Bacteriológico.
Nos últimos anos de vida viaja pela Amazônia, estudando formas de
erradicar a febre amarela. Morre em 1917, mas a instituição continua.
Carlos Chagas
★ Oliveira, 1879 † Rio de Janeiro, 1934

UM CASO ÚNICO

Descobre sozinho um agente, uma doença, um transmissor e os


aspectos epidemiológicos a eles relacionados.

Começa a cursar Medicina no Rio de Janeiro em 1897 e forma-se em 1902.


Recebe uma formação em medicina tropical, dada pelos que vieram depois
de Oswaldo Cruz — com quem vai trabalhar.
Mandado para combater a malária no interior de São Paulo, ao mesmo
tempo faz sua tese sobre a doença e as formas de combatê-la. Mostra
gosto pelo trabalho de campo e é enviado para combater a doença em
vários pontos do interior — até a República, médicos importantes
raramente iam para o sertão.
Em 1907 está trabalhando em Lassance, Minas Gerais. Mora num
vagão de trem, também seu laboratório de pesquisas. Um dia, analisando
o sangue de um sagui, descobre um protozoário. Depois, alertado por um
funcionário de uma ferrovia, captura exemplares de um inseto
hematófago, o barbeiro, e detecta o mesmo protozoário em seu intestino.
Manda exemplares para o Rio de Janeiro, com instruções para
pesquisas mais aprofundadas — que confirmam a descoberta do novo
parasita. Passa então a estudar pessoas mordidas pelo inseto e acaba
fazendo uma descrição completa do complexo ciclo da doença que sofrem.
Até hoje seu trabalho é o único caso conhecido na medicina mundial:
um pesquisador descobrindo sozinho um agente, um transmissor, uma
doença e sua epidemiologia.
Pixinguinha
★ Rio de Janeiro, 1897 † Rio de Janeiro, 1973

A ALMA DO SAMBA GRAVADO


Instrumentista capaz, dominou a então nova tecnologia da
gravação e estruturou o samba como gênero nacional, além de ser
um grande compositor.

É filho de um pequeno funcionário dos Correios — mas também


instrumentista apaixonado pelo choro, um gênero praticado em vários
pontos da cidade do Rio de Janeiro. Aprende a tocar flauta ainda criança;
em 1912 já é músico profissional, trabalhando em cabarés da Lapa, então a
zona de prostituição carioca.
Torna-se amigo de Donga, filho de um pedreiro que toca bombardino,
e de Tia Amélia, uma das mais conhecidas mães de santo do Rio de
Janeiro. O casal mora na Cidade Nova, bairro que concentra a população
negra a ponto de ser chamado de “A Pequena África”.
O grande centro cultural ali fica na casa de Tia Ciata, com sua
organização peculiar: uma sala de visitas para receber pessoas ilustres na
frente; uma cozinha na qual percussionistas e cantores fazem suas
batucadas; um quintal nos fundos que sedia atos religiosos.
Nesse ambiente acontece uma mescla musical entre chorões e
músicos religiosos, que se completa em outro ponto bem diferente. Desde
1902, o empresário tcheco Frederico Figner mantém um negócio de gravar
discos na cidade. Paga pouco, procura gente capaz de registrar músicas
que façam algum sucesso. Pixinguinha e Donga vão se tornando músicos
cada vez mais capacitados nas sessões de gravação.
Em pouco tempo fazem mais que acompanhar: percebem que a
tecnologia permite criar uma nova forma musical, com a condensação das
músicas que tocavam nas reuniões em melodias curtas a ponto de caber
nos discos — que só registram algo como três minutos.
Em 1916, na ocasião da gravação de “Pelo telefone”, Donga emprega o
termo samba (de uso em rodas populares) para designar esse gênero de
música gravada.
Pixinguinha foi o grande responsável pela padronização do samba
gravado. Num primeiro momento cria um conjunto chamado Os Oito
Batutas, no qual é solista de flauta e Donga, de violão. O sucesso faz todos
acabarem, em 1922, numa temporada de vários meses em Paris.
De volta ao Brasil, é contratado como arranjador. Nas décadas
seguintes escreveria milhares de arranjos, todos com duas grandes
qualidades: boa técnica de escrita e registro da sonoridade dos músicos
intuitivos das rodas.
Com o tempo os arranjos de Pixinguinha fixam o chamado regional,
composto de flauta, cavaquinho, violão e percussão (especialmente o
pandeiro). Em torno dele são criadas variações expressivas pelas quais toda
a rica música dos brasileiros analfabetos se torna uma das mais
conhecidas expressões culturais do país.
Não bastasse tudo isso, compôs ele mesmo algumas das canções que
até hoje formam o cânone mental de todos os brasileiros — com destaque
para “Carinhoso” e “Lamento”.
Padre Cícero
★ Crato, 1844 † Juazeiro do Norte, 1934

MILAGRES, NEGÓCIOS E POLÍTICA NO SERTÃO


Em meio a tiroteios, plantações de algodão, milagres e romarias,
ele comanda a transformação de um vilarejo do sertão em cidade.

Forma-se como típico padre secular brasileiro: órfão que mantém


negócios enquanto estuda para fazer provas e padre sem paróquia que lhe
dê sustento. Sonha em ir para Fortaleza, mas acaba aceitando um convite
para rezar missas e pregar no então modesto arraial de Tabuleiro Grande.
Depois dos ofícios, na noite anterior à partida, Cícero Romão Batista sonha
com Cristo e os apóstolos indicando-lhe os pobres do lugar como missão.
Em 1873 muda-se com a família para o arraial. Em março de 1889
começa a se espalhar a notícia de um milagre feito pelo padre: uma hóstia
transformada em sangue. A história ajuda para baixo, com fiéis surgindo
para conferir, e atrapalha para cima. A administração da Igreja Católica no
Brasil passara do governo para o Vaticano. Os novos chefes da
administração não gostam de santos de casa fazendo milagres: após uma
inquisição, o feito é negado e o padre é proibido de administrar
sacramentos.
Volta-se para aquilo que lhe continua sendo permitido: fazer negócios
e política. Do lado econômico, a força de seu prestígio é suficiente para
fixar pequenos produtores ao redor do vilarejo, que se transforma em
centro de abastecimento regional e núcleo de produção de algodão. Como
político, se envolve com o cangaço e lutas armadas. Progride na carreira,
acaba vice-governador do Ceará e prefeito do recém-criado município de
Juazeiro do Norte. Em meio à turbulência, o progresso capitalista vai
chegando à região.
Parte desse progresso tem a ver com outra atividade. Mesmo proibido
de ministrar sacramentos, a fama de santo se espalha. Romarias vindas de
todo canto chegam sem parar, todas com fiéis ansiosos pela bênção do
padre Cícero. Eles dividem lugar na fila de conversa com candidatos em
busca de voto, ingleses compradores de algodão, comerciantes atacadistas
do Recife e pedintes de favores políticos.
O movimento é grande a ponto de criar outra atividade econômica em
Juazeiro do Norte: as indústrias da fé popular (santinhos, bentos,
recordações) e das instalações de turismo religioso (hotéis, restaurantes,
etc.) se multiplicam; o número de romeiros aumenta a ponto de levar o
padre a se mudar para uma casa de portas que se fecham, depois de 40
anos ocupando o mesmo casebre do dia de sua chegada.
Nem a hierarquia pode ignorar tanto movimento. Em 1916 o bispo do
Ceará recebe uma ordem para excomungar o padre Cícero; em vez disso,
prefere criar uma paróquia, restaurar parcialmente suas ordens e obter o
controle financeiro do santuário. A partir daí o padre volta a rezar suas
missas e pregar do púlpito.
O padre Cícero morre em 1934. Sua memória continua sendo cultuada
como a de um santo popular pelos romeiros.
Cândido Rondon
★ Santo Antônio do Leverger, 1865 † Rio de Janeiro, 1961

O MARECHAL SALVADOR
Tratando os ancestrais com respeito, ele foi o grande responsável
pela proteção do Estado, a garantia da terra e a sobrevivência dos
índios brasileiros.

Mameluco de quatro costados, seu pai morre antes de ele nascer; a mãe,
quando tem apenas 2 anos. Com o apoio de um tio, vai estudar no Rio de
Janeiro na forma possível: aluno aceito na Escola Militar. Republicano e
abolicionista, acaba ligado à versão mais branda do positivismo, a Igreja
Positivista. Ao contrário de uma ditadura, ela propunha o afastamento de
seus membros da política.
Com a República, aceita prontamente a primeira missão recebida:
instalar linhas telegráficas em Mato Grosso. Para fazer isso precisa viver
praticamente o tempo todo atravessando terras há milhares de anos
ocupadas apenas por povos indígenas: mesmo os sertanejos costumavam
andar somente pela modesta fração do território na qual dominavam as
tribos Tupi — e isso na virada para o século XX.
Descendente de Xavante, um povo Jê, Rondon desincumbe-se da
missão atuando em duas direções: implantar linhas que levavam o
progresso material, mas também mudar as já centenárias relações com os
índios. Considera-os donos dos territórios — e a si mesmo e seus
soldados como invasores. Trata-os com o respeito derivado dessa
consideração e traduzido num lema que é ordem invariável a seus
subordinados:
“Morrer se preciso for; matar, nunca.”
Na esteira desse respeito abre-se uma estrada para pessoas que
desejavam ver e pensar a realidade dos povos nativos da floresta tropical
na forma de um tempo de grandes novidades. Nas incursões de Rondon
seguem cineastas, antropólogos, militares, diplomatas, botânicos,
zoólogos, empresários, todos respeitando o princípio máximo do respeito.
Em 1913, o ex-presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt é um
dos convidados. Percorre 3 mil quilômetros de selva, tratando
respeitosamente o comandante como “Senhor Coronel Rondon”. Ao final
de tudo, providencia vários títulos de instituições americanas para seu
novo amigo.
A partir dos anos 1940, o militar percebe que os caminhos abertos não
servem apenas para criar uma relação mais respeitosa com os índios:
agricultores invadem as terras. Trata então de empregar todo o seu
prestígio como militar para tentar implantar uma política de garantia da
propriedade das terras pelos ocupantes milenares.
Para iniciar o reconhecimento da posse como propriedade garantida
pelo Estado republicano, propõe, em 1952, a criação do Parque Nacional do
Xingu, pouco antes de terminar os três volumes de seu livro Índios do
Brasil. Morre em 1958, e apenas três anos depois seu projeto se torna
realidade. Graças a ele, as matrizes imemoriais da natureza e da aliança
humana que fez um país chamado Brasil ganham lugar na civilização que
se construía.
Francisco Matarazzo
★ Castellabatte, Itália, 1854 † São Paulo, 1937

O PRIMEIRO IMPERADOR DA INDÚSTRIA


De fábrica em fábrica, o empresário atilado vai construindo o
primeiro grande conglomerado do mercado brasileiro.

Tem algum dinheiro quando chega ao Brasil, em 1881. Vai para Sorocaba,
sede nacional do negócio de tropas. Leva uma ideia singela: trocar a
embalagem da banha de porco, substituindo os pesados barris de madeira
por lata — mais leve, ela permitiria aos animais transportarem mais carga
de valor. Começa com uma fabriqueta de fundo de quintal; em menos de
uma década, possui três fábricas e vende banha para todo o país.
Na virada para o século XX, passa adiante o negócio para entrar em
outro maior: importar trigo bruto, moer e embalar localmente, evitando
perdas. Depois abre uma fábrica de sacos para transportar sua farinha,
amplia a produção para os tecidos, aproveita as sobras do processo para
fabricar sabão e forma uma rede de armazéns para distribuir tudo.
Em 1900 tinha construído uma fortuna avaliada em 2 mil contos de
réis — cem vezes o capital de seu primeiro investimento, feito na década
anterior.
Seguindo seu lema acaciano, “Uma coisa puxa outra”, o passo seguinte
é pegar o muito dinheiro em caixa para fundar um banco com capital de
2.500 contos, em 1905. Agora já se trata de uma sociedade anônima que
reúne os capitais de milhares de pequenos investidores espalhados pelo
interior de São Paulo, especialmente imigrantes italianos que estavam
formando poupanças.
A robustez financeira leva a uma multiplicação ainda maior de suas
indústrias, organizadas em 1911 numa sociedade anônima intitulada
Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo. O princípio da expansão é o
mesmo: empregar o trigo para montar uma fábrica de massas e biscoitos,
a necessidade de embalagens para montar uma metalúrgica, a fábrica de
tecidos para sustentar a empresa de fibras sintéticas, etc.
Quando a lista das expansões próprias se esgota, parte para a compra
do que havia em redor: fábricas de fornecedores, fazendas para produzir
matéria-prima, empresas de transporte terrestre e marítimo.
Em menos de uma década controla mais de uma centena de indústrias
novas. A expansão do mercado interno brasileiro é então de tal ordem que
absorve tudo — num claro indicativo de que os tempos de paralisia
econômica do regime monárquico haviam ficado para trás.
Mas Francisco Matarazzo faz questão de comandar os negócios
sozinho — e tem suas veleidades de imperador. Consegue do Vaticano um
título de conde e passa a apresentar-se como tal, com seus automóveis,
prédios de escritórios, mansões e muitos símbolos de riqueza industrial
que agora marcam a paisagem da cidade de São Paulo — símbolos que
centenas de milhares de operários olham de longe quando vão e vêm do
trabalho.
Júlio Mesquita
★ Campinas, 1862 † São Paulo, 1927

UM JORNAL PARA A VIDA MODERNA


As reportagens e notícias interligam o mundo urbano, com seus
contatos universais e comportamentos mais livres.

Filho de imigrantes portugueses pobres e analfabetos, constrói um destino


próprio aprendendo a ler sozinho aos 3 anos de idade e entrando na
faculdade de Direito aos 15. Como aluno tem três interesses básicos: teatro
(e festas com atrizes), abolicionismo (é um dos radicais que colabora com
Antônio Bento) e militância republicana (faz discursos contra a monarquia
até em inaugurações de estação de trem).
Em 1888, no momento em que completa 26 anos, vai trabalhar como
empregado do jornal do Partido Republicano Paulista, que tinha modestos
904 assinantes. Está entre os conspiradores pela derrubada do imperador;
no dia 16 de novembro torna-se também secretário do governador de São
Paulo, Prudente de Morais.
Toma uma decisão que parecia inusitada num tempo em que quase
todos os jornais vivem do dinheiro de governos: muda o nome da
publicação para O Estado de S. Paulo e desiste da posição dele como órgão
partidário. Quer fazer um periódico que tenha leitores de todo tipo.
A ideia desagrada aqueles que investiam no jornal pensando no acesso
ao governo, os que escreviam imaginando ser candidatos — e até alguns
novos governantes, que até ontem eram jornalistas da redação. Muitos
resolvem vender as ações, que o empregado compra com a fração de
lucros que passa a receber quando suas ideias se confirmam e as vendas
aumentam.
A separação do governo se fez num processo lento. O próprio Júlio
Mesquita mistura as coisas por algum tempo, fazendo carreira de
deputado e diretor de redação. Mas desde 1900, quando rompe com
Campos Salles no momento da política dos governadores, vai se tornando
um jornalista cada vez mais seguro — e dono da publicação após comprar
as últimas ações em mãos de terceiros.
Implanta um noticiário apartidário e atinge muitos públicos. A
cobertura da vida nas pequenas cidades do interior alimenta a curiosidade
dos parentes que vivem em outros lugares — e dos imigrantes que
querem saber onde afinal estão vivendo. O forte noticiário internacional
mata a saudade que os imigrantes têm de sua terra natal — e é lido com
avidez pelos matutos intrigados com as figuras diferentes que aparecem
toda hora. Esportes, aviação e artes completam as atrações.
Em 1927, quando Júlio Mesquita morre, O Estado de S. Paulo tem 48,6
mil assinantes e está organizado como uma grande empresa. O
crescimento das vendas é de 10,5% ao ano durante os 40 anos de sua
administração — o que dá uma ideia do ritmo de crescimento da indústria
na Primeira República.
Mas o jornal é também retrato de outra mudança: a vida moderna,
com a dissolução de tradições e o rearranjo das imagens primordiais da
aliança de gentes do Brasil.
Tarsila do Amaral
★ Capivari, 1886 † São Paulo, 1973

A INTUIÇÃO ANTROPOFÁGICA
Em plena Paris modernista, ela deixa afluir suas impressões da
infância rural e cria uma obra que inova radicalmente a postura do
ser artista brasileiro.

Em quatro anos, entre 1922 e 1926, sua vida pessoal sofre uma
transformação radical — e ela traduz a radicalidade em arte.
Filha de um grande empresário da indústria ferroviária e fazendeiro de
café, convive com pessoas de sua classe social e gênero — no padrão
republicano paulista: a infância na fazenda em meio a empregados vindos
do tempo da escravidão; a adolescência como interna de colégio no qual
se falava francês; a viagem para a Europa com a família aos 16 anos, com
direito a internação em uma escola de Barcelona, onde tem contato com a
pintura; o casamento aos 18 anos, uma filha aos 20 e a volta para a
fazenda.
Desvia do roteiro com 27 anos: separa-se do marido, vai morar em São
Paulo. Divide o tempo entre a criação da filha e os estudos de música e
pintura (com Pedro Alexandrino, um dos maiores pintores acadêmicos da
época). Em 1920 embarca com a filha para a Europa, onde passa dois anos.
De volta ao Brasil em junho de 1922, começa a relação com a arte
moderna de modo inusitado: recebe margaridas em penca, mandadas por
Mario de Andrade. Um dia depois, recebe a visita de Anita Malfatti e as
duas pintam as margaridas.
O quadro de Tarsila já traz as influências da amiga — que não se
limitam à pintura. Juntas, mais os escritores Mario de Andrade, Oswald de
Andrade e Menotti del Picchia, formam o autointitulado Grupo dos 5.
Discutem arte o tempo todo, e Tarsila começa um caso amoroso com
Oswald.
Em dezembro de 1922 embarca para a Europa, coloca a filha num
colégio interno e parte numa mistura de lua de mel, viagem de estudos e
imersão no modernismo. Em fins de março, fixando-se em Paris, Tarsila
começa a trabalhar no estúdio de André Lothe. Por intermédio dele o casal
conhece o poeta Blaise Cendrars, que os apresenta a seu grupo intelectual:
Constantin Brancuse, Fernand Léger, Erik Satie e Jean Cocteau, entre
outros. Tarsila escreve para a família sobre certos sentimentos trazidos pela
experiência:
“Sinto-me cada vez mais brasileira. Quero ser pintora da minha terra.
Como agradeço ter passado na fazenda a minha infância toda. As
reminiscências desse tempo vão se tornando cada vez mais preciosas para mim.
Quero, na arte, ser a caipirinha de São Paulo.”
A primeira grande expressão dessa ligação direta entre o sertão infantil
e a vanguarda da maturidade surge na tela A Negra, pintada em 1923. O
crítico Sérgio Milliet resume o impacto:
“O quadro prenuncia o movimento antropofágico. Essa antevisão irrompeu
solitária, ousadamente heterodoxa e confrontada aos ensinamentos formais de
Lothe e à poderosa influência de Léger. A sexualidade ostensiva desta figura
feminina, sua impávida, monumental e solene presença sobrepuja a lógica
cubista e nos remete ao mito primitivo do matriarcado.”

Na esteira de suas descobertas, os modernistas brasileiros


mergulham no sertão, na arte popular, na cultura produzida
antropofagicamente.

O quadro é contemporâneo de outro, Caipirinha. Os dois são


representações pictóricas que remetem diretamente à aliança original, à
mescla de povos. Mas fazem isso de um modo peculiar, tendo como foco
o lado feminino, o lado da mulher que recebe o marido de fora:
americanas (e depois africanas) que se casam com europeus e assim
constroem a marca original da sociedade do Brasil.
A arte da caipirinha de São Paulo impacta a vanguarda parisiense.
Blaise Cendrars gosta tanto que resolve aproveitar a volta do casal ao
Brasil para conhecer de perto o universo pictórico de Tarsila, o qual
Oswald começava a transformar em matéria de conhecimento. Os três,
acompanhados dos modernistas brasileiros, passam o carnaval no Rio de
Janeiro assistindo às manifestações populares. Na Semana Santa
percorrem as cidades históricas mineiras, acompanhando procissões,
enquanto Cendrars e Mario de Andrade se entusiasmam com a obra de
Aleijadinho, então quase esquecida; no início do segundo semestre vão
para uma fazenda da família de Tarsila, chamada Sertão, conhecer matas,
antigos escravos e caipiras.
Nos dois anos seguintes, Tarsila e Oswald alternam-se entre Paris e o
Brasil. Ela transforma os incentivos de Cendrars, Mario de Andrade e do
amado Oswald em ânimo para produzir uma série de quadros nos quais
desdobra suas impressões de infância pelas formas do modernismo.
Enquanto ela pinta, Oswald vai tentando formular, em seguidos
manifestos e textos, o papel da cultura do povo brasileiro analfabeto como
o dos verdadeiros modernizadores da sociedade.
Finalmente, em 7 de junho de 1926, às vésperas de completar 40 anos,
Tarsila do Amaral inaugura sua primeira exposição individual, com as 17
telas produzidas nesse fluxo sendo apresentadas em Paris, na Galerie
Percier. Consegue grande repercussão na imprensa, com considerações
positivas de alguns dos mais importantes críticos franceses. A Cuca é
adquirida para o Museu de Grenoble.
Abre a estrada da ligação direta entre um mundo secularmente
pintado como distante, selvagem ou primitivo e os conhecimentos mais
avançados — sem a intermediação de uma Corte, uma casta que
apresentava seu atraso temporal como virtude civilizatória. Em 1928 esse
projeto seria sintetizado na combinação da tela Abaporu com o texto do
Manifesto Antropofágico de Oswald.
A crise de 1929 provoca tanto a ruptura da circulação mundial de bens
materiais e simbólicos que embasavam o projeto como a devastação das
fortunas pessoais de Tarsila e Oswald que sustentavam as ligações diretas
entre sertão e vanguarda.
Separada de Oswald e casada com o crítico Luís Martins, Tarsila do
Amaral continua dando forma em seus quadros a uma síntese que se
tornava cada vez mais essencial.
Morre em 1973, sem conhecer toda a valorização que seria alcançada
por sua obra artística inovadora.
Tarsila do Amaral, A Negra, 1923.
Tarsila do Amaral, Caipirinha, 1923.
Tarsila do Amaral, Abapuru, 1928.
Tarsila do Amaral, Autorretrato I, 1924.
Tarsila do Amaral, Antropofagia, 1929.
Getúlio Vargas
★ São Borja, 1882 † Rio de Janeiro, 1954

O DITADOR COMO PAI DOS POBRES


Dos positivistas, ele herda a concepção de que o governante é um
ser superior e que está acima dos cidadãos, ditando-lhes os
destinos.

Sua infância corre em meio às violências da construção da ditadura


positivista do Rio Grande do Sul: a estância de seu pai é quartel dos
castilhistas. Seu primeiro discurso conhecido acontece num teatro, na
presença do corpo do ditador Júlio de Castilhos:
“É santo porque é puro, é puro porque é grande, é grande porque é sábio, é
sábio porque, quando outros estados, cobertos de andrajos e com as finanças
desmanteladas, batem às portas da bancarrota, o Rio Grande é o timoneiro da
Pátria, espargindo luz para o futuro. Tudo devemos ao cérebro genial deste
homem.”
Pouco depois, num texto do jornal da faculdade, define aquilo que
separaria o guia genial dos políticos comuns:
“Para manter o equilíbrio da sociedade, torna-se necessário o
estabelecimento de um poder superior que lhe dite as normas e as faça seguir.
Daí ser indispensável a existência do Estado conduzido por governos fortes, que
guiem os destinos coletivos.”
O grupo do qual fazia parte acaba enveredando pelo estudo dos
conservadores brasileiros e assim chega aos teóricos portugueses do
corporativismo nos séculos XVII e XVIII, que desenvolveram uma filosofia
política segundo a qual o Estado seria a cabeça pensante da sociedade e as
demais partes dela, os órgãos especializados que sustentam o centro
inteligente.
Tais ideias tinham um papel secundário fora do Rio Grande do Sul. Em
todo o período de formação de Vargas, apenas uma vez permitiram a
eleição de um presidente — o marechal Hermes da Fonseca — e sua
aplicação, com os chamados salvacionismos ou tentativas de recuperar o
domínio dos governos locais na escolha dos indicados pelo poder central.
Os resultados econômicos explicavam em parte a desimportância: a
indústria crescia de forma descentralizada, as soluções locais acabavam
prevalecendo — e o crescimento da economia gaúcha não chegava
propriamente a fazer dela um farol para o restante do país naquele
momento.
As limitações se refletem sobre a carreira política de Vargas, que por
um bom tempo foi apenas local. Só em 1923, aos 40 anos, consegue se
eleger deputado federal. Destaca-se a ponto de ser convidado para
ministro da Fazenda por Washington Luís, que pretendia impor uma
política econômica tão austera quanto a gaúcha. Em 1927 demite-se para
fazer campanha a governador do Rio Grande do Sul.
Nesse posto assiste ao início da Grande Depressão — e às reações
pouco adequadas do governo. Foi um cataclismo: as exportações caíram
de 97,4 para 49,5 milhões de libras entre 1928 e o final de 1930. A principal
receita do governo, o imposto de exportação, caiu 56% no mesmo período.
O comércio internacional, motor que sustentava o crescimento de todas as
economias do mundo, teve uma derrocada ainda maior, caindo a um
quarto do que era em 1929.

Em meio à crise de 1929, ele monta as estruturas que separam o


mercado interno dos problemas mundiais e permite décadas de
progresso.

Nesse cenário, as ideias de Getúlio Vargas sobre um poder centralizado


forte vão adquirindo importância galopante, a ponto de levá-lo a se tornar
o ditador que tanto imaginara, a partir de outubro de 1930. E ele sabe o
que fazer com o poder.
Estatiza a compra dos principais produtos de exportação brasileiros da
época, o café e o açúcar, criando autarquias que têm o monopólio da
venda no exterior. O governo paga em moeda nacional pelas compras e
recebe as divisas pelas vendas. Ao mesmo tempo, estatiza as operações de
câmbio no Banco do Brasil, passando a ter o poder monopolístico de
vender as divisas como lhe conviesse.
A prontidão da resposta recria uma barreira. O Estado, através dos
mecanismos de controle, passa a funcionar como elemento que separa o
mercado interno da conjuntura internacional. Era assim no Império e, por
causa da separação, o mercado interno não crescia — mas, dada a crise
internacional, os efeitos internos agora são opostos à pasmaceira imperial.
Num mundo em crise, o mercado interno cresce.
O indício mais evidente são os resultados da produção industrial. A
queda inicial de 23% do setor é bem inferior à de outros setores da
economia — e já em 1932, apesar de uma revolução em São Paulo, maior
centro industrial do país, a produção supera a de 1929.
Sobre a grande barreira estatal, Getúlio Vargas molda a ditadura —
sonho de consumo dos positivistas gaúchos. É hábil para manobrar, sabe
ouvir, conduz a marcha conforme o terreno. Consegue até deixar de ser
ditador para se tornar presidente constitucional entre 1934 e 1937 — mas
não perde tempo quando aparece a oportunidade para impor o modelo
castilhista no plano nacional, com o Estado Novo.
Persegue e manda matar comunistas, flerta com regimes fascistas — e
sabe também negociar a entrada do país na Segunda Guerra Mundial ao
lado dos Aliados. Faz boa propaganda, sustentada com técnicas modernas,
vendendo cada ato arbitrário como a maior das liberdades.
Ainda assim é obrigado a renunciar em 1945 — apenas para ver que,
na democracia que se restabelece, nenhuma das instituições
centralizadoras que montara são sequer arranhadas. Com elas sobrevivem
também os que o obedeciam. Transformam-se em políticos populistas,
hábeis no manejo de trocar favores vindos do alto da cabeça estatal pelos
votos agora necessários para se manter no poder.
Assim, o antigo ditador não tem grandes dificuldades para voltar ao
poder em 1950, como presidente eleito em regime democrático. Mas sofre
para lidar com o Congresso aberto e a imprensa sem censura —
novidades efetivas da democracia. Vai se atrapalhando pelo caminho, a
oposição aumenta e ele acaba prejudicado por um irmão que ordena algo
dos tempos das revoluções gaúchas: atirar num adversário político.
Enquanto a crise se intensifica, escreve e aperfeiçoa o texto de sua
carta-testamento. Suicida-se no dia 24 de agosto de 1954, ao lado de um
texto que termina com as palavras:
“Saio da vida para entrar na história.”

Getúlio Vargas em Itararé, durante a Revolução de 1930.


Desfile no dia 1 de maio de 1942 no Rio de Janeiro, durante a ditadura do Estado Novo.
João Guimarães Rosa
★ Cordisburgo, 1908 † Rio de Janeiro, 1967

ESCREVENDO O SERTÃO PARA O MUNDO


Ouve as histórias do pai caçador, de soldados, de anacoretas, de
vaqueiros, enquanto faz a vida, corre mundo, domina línguas — e
cria um universo.

Desde muito criança ouve os infinitos causos contados por seu pai,
Florduardo de nome, Seu Fulô por apelido, mistura de comerciante,
autoridade eleita e finório caçador de onças. Aos 7 anos aprende francês
sozinho, aos 8 inicia-se no holandês com um padre — e é mandado para
estudar em Belo Horizonte, onde termina o primário com 9. Entra na
faculdade de Medicina com 16, já dominando o alemão, o inglês e o
espanhol.
Casa-se após a formatura, com 22 anos. Vai ser médico em Itaguara,
vilarejo do sertão. Atende roceiros a cavalo, faz ele mesmo o parto de sua
filha. Fica amigo de seu Nequinha, anacoreta enfurnado nas brenhas em
Sarandi, que lhe ensina as conversas dos espíritos dos animais e das almas
dos viventes no sertão. Três anos depois, em 1933, torna-se médico do
Exército e começa a interrogar soldados sobre suas andanças e lutas com
jagunços. A essa altura domina algo como duas dezenas de línguas.
Um amigo o convence a prestar concurso para o Itamarati. Aprovado,
muda-se para o Rio de Janeiro. Em 1936 ganha um concurso literário da
Academia Brasileira de Letras com um livro de contos, publicado seis anos
depois com o título de Sagarana.
Em 1938 é nomeado cônsul em Hamburgo. Nos primeiros momentos
da Segunda Guerra ajuda judeus a fugirem do nazismo; com a entrada do
Brasil no conflito é confinado, até ser trocado por diplomatas alemães.
Mandado para Bogotá, a mistura de frio, solidão e ar rarefeito lhe produz
uma vivência de morte — que acentua ainda mais sua propensão aos
conhecimentos adquiridos com curandeiros, espíritas, astrólogos e
ocultistas.
Depois de uma temporada em postos europeus, em 1951 viaja pelo
Mato Grosso com o vaqueiro Manuelzão — e preenche em torno de 50
cadernos com anotações que iam das impressões de vozes de pássaros às
formas das nuvens, passando por ditados, causos e canções. O
companheiro resume: “Perguntava mais que padre.”
O material dos cadernos, retrabalhado pelas experiências de uma vida,
aparece em dois livros lançados em 1956. Em Corpo de baile na forma de
contos, a começar por Miguilim.
Já o romance Grande sertão: Veredas traz algo que, até então, era
impensável na literatura brasileira: uma narrativa tecida pela voz de um
sertanejo que fala na primeira pessoa e apresenta o universo inteiro do
sertão para o leitor. O livro faz sucesso imediato não apenas no Brasil.
Traduzido quase imediatamente para várias línguas, universaliza
litearariamente o mundo do sertão.
Em 1967 começa um movimento de seus editores no exterior para
indicá-lo ao Prêmio Nobel. Sua morte barra o projeto.
Juscelino Kubitschek
★ Diamantina, 1902 † Resende, 1976

PRESIDENTE BOSSA-NOVA
Empregando planejamento e gestão como ferramentas de
governo — e sorriso otimista como arma política —, ele comanda
mudanças.

Com seu proverbial bom humor e habilidade para convencer, começa a ser
notado por gente do poder quando se apresenta voluntário médico das
tropas que combatem os paulistas em 1932. Acaba se elegendo deputado
constituinte em 1934 e é nomeado prefeito em Belo Horizonte durante a
ditadura do Estado Novo.
Encontra uma forma de marcar sua gestão. De um lado, gasta com
obras urbanas; do outro, no Parque da Pampulha, mistura de área de lazer
com prédios públicos, o projeto de Oscar Niemeyer acaba ganhando
projeção para muito além do município.
Governador de Minas Gerais a partir de 1950, marca sua gestão pela
combinação de investimentos em infraestrutura (especialmente estradas e
hidrelétricas), feitos pelo governo, com a atração de empresas privadas
estrangeiras donas de capital suficiente para aproveitar as novas facilidades
(a maior delas montou uma indústria de aço).
Eleito presidente da República após a comoção gerada pelo suicídio de
Getúlio Vargas, faz algo inédito na esfera federal: administra seguindo um
projeto preciso (o chamado Plano de Metas), cuida das prioridades,
gerencia com foco — e entrega o que prometeu na campanha.
O pacote soma as linhas seguidas nas experiências anteriores no
poder. Na área de infraestrutura, os gastos se concentraram em grandes
rodovias cruzando o Brasil; na esteira deles, consegue atrair investimentos
privados de fabricantes internacionais de automóveis e eletrodomésticos
— que trazem capital suficiente para um crescimento anual de dois dígitos
do setor industrial.
Fiel ao lema “50 anos em 5”, Juscelino gasta dinheiro público para
construir uma capital inteira. Com planta do urbanista Lúcio Costa e todos
os prédios e palácios que Oscar Niemeyer desenhou, implanta Brasília. As
críticas são muitas e o presidente responde dançando em festas, cantando
em serestas e visitando obras.
Tanto otimismo, no entanto, não é suficiente para eleger um sucessor.
Transmite a faixa presidencial para Jânio Quadros no dia da inauguração
de Brasília, desenhada para simbolizar uma ruptura com o passado.
Mantém sua popularidade pessoal apesar da crise econômica crescente
que se instala na economia, que deglute a pesada onda de gastos.
Vota a favor dos atos que implantaram o regime de 1964 — entre
outras coisas, porque José Maria Alckmin, vice-presidente do primeiro
mandatário (o marechal Castelo Branco), é seu grande aliado político.
Sonha em ser candidato no ano seguinte, mas é marginalizado do poder e
cassado.
Participa da formação da Frente Ampla, uma tentativa frustrada de
juntar adversários do regime. Morre num acidente de automóvel em 1976,
quando ensaiava sua volta à política.
Oscar Niemeyer
★ Rio de Janeiro, 1907 † Rio de Janeiro, 2012

MODERNISMO DE ESTADO
Dá vida às curvas, empregando o concreto armado, e ganha fama
mundial projetando prédios públicos — especialmente os de
Brasília.

Ainda estudante de Arquitetura, começa uma grande parceria com Lúcio


Costa, indo trabalhar como voluntário em seu escritório. Seu mestre,
seguindo as pegadas dos modernistas brasileiros, ensaia a fusão do
barroco brasileiro e suas formas limpas com a arte de vanguarda europeia.
Mas implanta os conceitos em época de ditadura.
A oportunidade surge quando o ministro Gustavo Capanema resolve
contratar a construção de uma sede para a pasta da Educação e Cultura,
recém-criada, pensando explicitamente em mostrar o Estado como agente
modernizador de uma nação inerte e socialmente incapaz — o molde
autoritário que Getúlio Vargas segue. Para impor a proposição, ele anula
uma concorrência e chama Lúcio Costa.
Este reúne uma equipe de arquitetos que inclui o jovem Niemeyer,
Affonso Reidy e o franco-suíço Le Corbusier. Enquanto a obra é erguida,
Oscar Niemeyer realiza uma série de projetos privados nos quais seu estilo
pessoal começa a se firmar: leveza, curvas, uso intensivo do concreto
armado. Em 1939 finaliza outra encomenda estatal, um pavilhão para uma
feira em Nova York; a obra impressiona a ponto de ele merecer uma
condecoração do prefeito da cidade.
Em 1940, a convite de Juscelino Kubitschek, desenha o conjunto de
edificações para o Parque da Pampulha, em Belo Horizonte. A obra-prima
é a igreja de São Francisco de Assis, a primeira na qual o concreto é
empregado para tomar a forma de arco — que acabou propiciando ao
arquiteto fama internacional a partir de uma exposição do projeto em
Nova York. Ao longo dos anos seguintes, Niemeyer desenha prédios e
parques no Brasil, casas nos Estados Unidos, um museu em Caracas e
uma obra na Alemanha.
Tem o nome consolidado quando, em 1957, recebe novo convite de
Juscelino, agora para projetar os grandes prédios públicos de Brasília —
cidade com planta urbanística desenhada por seu mestre Lúcio Costa. Em
apenas alguns meses ele concebe as obras que marcariam a cidade: os
palácios do Planalto, da Alvorada, dos ministérios da Justiça e das Relações
Exteriores, a catedral e a sede do Congresso Nacional. O conjunto faria sua
reputação de projetista de monumentos estatais.
Militante comunista, sofre perseguições diretas do regime militar a
partir de 1964. Clientes desaparecem, a redação de sua revista é alvo de um
atentado. Exila-se em Paris e, nas duas décadas seguintes, faz projetos na
França, Argélia e Itália, entre outros países.
De volta ao Brasil nos anos 1980, faz dezenas de projetos para obras
que vão de uma arena de rodeios a conjuntos inteiros de edificações.
Deixa mais de 150 projetos executados.
Pelé
★ Três Corações, 1940

O MAIOR JOGADOR DE FUTEBOL DO MUNDO


Com 17 anos ganha seu primeiro título: campeão mundial de
futebol; em 20 anos de carreira acumula marcas que até hoje são
desafios a bater.

Estreia como jogador profissional aos 16 anos pelo Santos Futebol Clube
— então, mal e mal, um time regional; antes de completar um ano de
carreira já está jogando na Seleção brasileira — faz dois gols nas duas
primeiras partidas pelo time em 1957. Em março de 1958, tendo assistido a
uma partida dele no Maracanã, o cronista Nelson Rodrigues formula um
vaticínio:
“Verdadeiro garoto, anda em campo como uma dessas autoridades
irresistíveis e fatais, dir-se-ia um rei.”
Em 1958, com 17 anos, estreia numa Copa do Mundo. Em sua segunda
partida, contra o País de Gales, faz seu primeiro — e antológico — gol na
competição. Na quarta, ganha o primeiro título da carreira, nada menos
que o mundial.
Na volta para o Brasil arrasta o Santos da categoria de clube local para
a de um dos grandes times do planeta. No primeiro campeonato ganho
com a equipe, o Paulista de 1958, marca nada menos que 58 gols em 38
jogos — número que, até hoje, ninguém bateu.
Nos dez anos seguintes o time ganharia oito títulos estaduais (Pelé
venceria dez ao longo da carreira), quatro regionais, seis campeonatos
brasileiros (cinco consecutivos), duas Libertadores da América e dois
campeonatos mundiais de clubes. Nos intervalos entre um campeonato e
outro, o Santos disputa torneios e partidas de exibição em todo o mundo
tendo Pelé como grande atração.
A mesma elevação de nível aconteceria com a Seleção brasileira. Pelé
disputa 92 jogos com a camisa nacional, faz 77 gols. O desempenho mais
notável acontece nas 40 partidas que ele e Garrincha disputam juntos: 36
vitórias, quatro empates, nenhuma derrota.
Participa de quatro Copas do Mundo, ganha três. Na última delas, em
1970, comanda uma equipe que fez 19 gols em seis partidas — assistidas
pela primeira vez ao vivo em todo o planeta, na estreia das transmissões
mundiais via satélite. As imagens das vitórias o consagram definitivamente
como ídolo global.
Encerra a carreira na Seleção brasileira em 1971; no Santos, em 1974.
Volta a jogar no ano seguinte pelo Cosmos, de Nova York — até
aposentar-se definitivamente em 1977, como campeão norte-americano.
Em 21 anos de carreira disputou 1.367 partidas, marcou 1.282 gols —
uma média de nada menos que 0,94 gol por partida. Foram gols que
empregaram todos os fundamentos do esporte: com os dois pés, cabeça,
peito, de falta e penalidades.
O conjunto de sua obra futebolística permanece até hoje como um
padrão a ser atingido novamente — mas nenhum outro jogador do
planeta sequer esteve próximo de superar a quantidade de marcas
excelentes em todo tipo de competição e por um prazo tão longo.
Tom Jobim
★ Rio de Janeiro, 1927 † Nova York, Estados Unidos, 1994

“GAROTA DE IPANEMA” E OS OUVIDOS DO PLANETA


Refinando lentamente as formas do samba no estilo peculiar da
Bossa Nova, ele cria uma música de trânsito mundial.

Começa na carreira de músico com dois empregos simultâneos: pianista


de boate à noite e arranjador de gravadora durante o dia. Com o primeiro
trabalho, vai desenvolvendo um estilo próprio de tocar; com o segundo,
mantém contato direto com músicos e compositores que moldam o
samba sem o recurso da escrita, funcionando como tradutor das criações
orais para a linguagem fixa da partitura. Somando o salário dos dois,
sustenta a família, com quem mora no bairro de Ipanema.
Ao longo da década de 1950 vai se firmando também como
compositor, formando parcerias com profissionais da noite (Dolores
Duran é uma delas), e suas composições são gravadas por cantores que
faziam shows em boates, centro da vida noturna de Copacabana (Dick
Farney, por exemplo).
As experimentações culminam numa transformação radical quando
aparece o violonista João Gilberto, com sua batida peculiar. Em 1958 ele
grava “Chega de saudade”, parceria de Tom Jobim com Newton
Mendonça. A nova forma de interpretar o samba é reconhecida em todo o
Brasil como um novo gênero, logo intitulado Bossa Nova.
A expansão nacional dessa nova maneira de interpretar é rápida — e a
internacional, mais ainda. Em 1962 acontece um Festival de Bossa Nova
em Nova York, misturando músicos brasileiros e norte-americanos. O
sucesso entre os profissionais é imediato e as gravações de canções desse
estilo por artistas estrangeiros se multiplicam depressa.
Em 1963, Tom Jobim e Vinicius de Morais compõem “Garota de
Ipanema”. Desde o lançamento é um sucesso mundial. Influenciado por
ele, em 1967 Frank Sinatra chama Jobim para a gravação de um disco
conjunto, que abre com a composição. Acontece um salto de escala e
surgem centenas de outras gravações — a canção acaba sendo a segunda
mais tocada em todo o mundo (a primeira é “Yesterday”, dos Beatles).
A partir daí, Tom Jobim segue uma carreira global. Grava elepês que
são lançados internacionalmente e trazem a participação de músicos de
vários países. Seu modo de orquestrar leva o padrão nacional fixado por
Pixinguinha para uma escala muito maior, transformando a música criada
inicialmente pelos analfabetos de escrita e partitura em forma musical
reconhecível como identidade brasileira no mundo inteiro.
No fim da década de 1960 dedica-se a gravar com pequenas formações
instrumentais; a partir da década seguinte passa a empregar arranjos com
orquestras maiores, mostrando de maneira mais clara suas influências
eruditas. Também realiza gravações informais com amigos de longa data.
Todas essas variações são unificadas pela forma mundial de fazer soar o
Brasil que criou.
Antônio Ermírio de Moraes
★ São Paulo, 1928 † São Paulo, 2014

EMPRESÁRIO NO ESPAÇO INTERNO

Com os recursos limitados do isolado mercado de capitais


brasileiro, ele desenvolve indústrias de alta tecnologia.

Seu avô, o imigrante português Antônio Pereira Inácio, começa a trabalhar


com 9 anos em Sorocaba e forma um império têxtil; seu pai, o engenheiro
José Ermírio de Moraes, amplia a atuação do grupo para cimento e
química.
Segue a formação paterna, estudando Engenharia de minas nos
Estados Unidos. Volta para o Brasil em 1949 e recebe a incumbência de
montar uma indústria de alumínio, então uma metalurgia de alta
tecnologia. Vence as barreiras da ausência de capital concebendo uma
forma criativa de financiamento: gerir pequenas empresas, como uma
produtora de fósforos ou uma oficina mecânica, e aplicar os lucros na
construção da fábrica. Aproveita o pós-guerra para contratar engenheiros
europeus e dribla as limitações tecnológicas.
Em 1955, inaugura a fábrica da Companhia Brasileira de Alumínio, com
capacidade para produzir 4 mil toneladas anuais. Quando morre, em 2014,
a produção da empresa é de 400 mil toneladas anuais, uma das maiores
do mundo. Comanda a expansão para novos setores de metalurgia,
especialmente o níquel.
Agindo com métodos semelhantes, seus irmãos e um cunhado levam
o grupo Votorantim a ter 110 indústrias e, nos anos 1980, a entrar na área
financeira, chegando a se tornar o maior grupo privado brasileiro — tudo
feito com o parco capital disponível no mercado interno.
Walther Moreira Salles
★ Pouso Alegre, 1912 † Petrópolis, 2001

OPORTUNIDADES GLOBAIS

Com talento pessoal e relações internacionais, ele vence a barreira


estatal que separa a economia brasileira da mundial e monta um
grupo de negócios integrados.

Seu pai, João Moreira Salles, começa como comerciante, passa a


comissário de café em Poços de Caldas e abre uma casa bancária em 1924.
Walther torna-se sócio dele aos 21 anos. Por conta dos negócios de café,
viaja para os Estados Unidos em 1939. Descobre ali várias oportunidades
de negócios em associação com empresários norte-americanos.
De volta ao Brasil, convence o pai a reestruturar o negócio bancário, vai
morar no Rio de Janeiro e dali dirige o banco. Baseia sua estratégia de
negócios nas então muito raras oportunidades de juntar
empreendimentos no mercado interno com capitais reunidos no mercado
internacional. Cria empresas de tecnologia agrícola e de distribuição de
máquinas com sócios estrangeiros.
Em pouco tempo sua visão internacional chama a atenção de
governantes. É convidado para ser diretor, no Banco do Brasil, da Sumoc
(embrião do futuro Banco Central) e nomeado embaixador nos Estados
Unidos no segundo governo Vargas e por Juscelino Kubistcheck.
Integra as múltiplas tarefas, mais a paixão por arte, a uma vida social
intensa. É indicado ministro da Fazenda no governo de João Goulart.
Multiplica seus negócios em áreas como mineração e petroquímica. A
partir da década de 1970, passa o comando dos negócios para os filhos e
leva uma vida mais reclusa.
Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni
★ Osasco, 1935

BRASIL NA TELA
Com grande experiência na indústria cultural e obsessão pelos
detalhes, ele cria um padrão brasileiro de programação televisiva.

Filho de um músico de choro, cresce em meio à indústria cultural


brasileira. Começa a trabalhar nela com 15 anos, no Rio de Janeiro. Sendo
pobre que vem de baixo, faz de tudo no rádio: locutor, redator, vendedor
de anúncios, produtor, diretor. Em 1953 vai trabalhar na recém-implantada
televisão, como diretor e redator de programas musicais. Como o dinheiro
é pouco, faz bicos em gravadoras de discos e chega a fazer algum sucesso
como produtor.
Para ganhar mais, muda para a propaganda, criando anúncios para o
rádio e a televisão em diversas agências. Faz estágios nos Estados Unidos,
acaba diretor de produtoras de filmes publicitários. Na virada para os anos
1960 volta para São Paulo, torna-se diretor de grandes agências de
propaganda, funda a própria empresa, vende-a e torna-se diretor de
emissoras de televisão.
A vasta experiência profissional é vista como um ativo desejável por um
executivo em situação peculiar. Walter Clark recebera carta branca de
Roberto Marinho para tocar a Rede Globo de Televisão — realizara muitos
investimentos ali, mas o empreendimento não decolava.
O projeto de Clark é desenvolver a estrutura de uma programação
nacional num tempo em que as emissoras são basicamente locais.
Começa pelas novelas, cujos capítulos gravados passam um dia em cada
repetidora. Chama Boni — e os dois juntos implantam uma revolução,
aproveitando a montagem de uma estrutura de comunicação nacional em
ondas curtas.
Boni assume o cargo de diretor de programação em 1967; no ano
seguinte, está pronta a estrutura de uma programação nacional montada a
partir de pesquisas de mercado: programas infantis na parte da manhã,
variedades femininas ao longo da tarde, um grande jornal para a família
assistir durante o jantar, novelas para as mulheres, futebol ou filmes
depois delas para os maridos.
Obsessivo, Boni formata cada minúcia de cada aspecto dessa grade:
apresentação gráfica, intervalos, textos, fotografia, trilhas sonoras,
entonação nas locuções, figurinos — nada escapa a suas observações em
memorandos. O esforço maior vai para as novelas, que ganham a cara do
país e garantem os maiores índices de audiência.
Enquanto isso, Walter Clark cuida das relações externas da empresa.
Juntos, implantam aquilo que chamam de “padrão Globo”. A fortíssima
liderança de mercado que conquistam leva os concorrentes a correrem
atrás, copiando o que podiam, de modo que o padrão acaba se
generalizando como uma forma peculiar da televisão brasileira.
Clark deixa a direção geral da emissora em 1977; Boni continua por
mais duas décadas, já sob a supervisão dos proprietários. A partir daí
torna-se empresário, controlando retransmissoras da própria rede.
Caetano Veloso
★ Santo Amaro da Purificação, 1942

UNIVERSALISMO TROPICALISTA
Fusão, multiplicidade de fontes, alegria, reinvenção, justaposição:
procedimentos de uma arte local e universal, ao modo
antropofágico.

Sua formação intelectual coincide com a modernização promovida por


Edgard Santos na Universidade da Bahia nos anos 1950: intelectuais
vindos de fora convivem com produtores locais e a cultura popular, criam
inovações em vários campos e dão oportunidades para jovens receberem
doses sempre altas de novidades. Ele traduz essas múltiplas tendências
produzindo como crítico de cinema (é próximo a Glauber Rocha, que inicia
sua carreira), escrevendo trilhas sonoras para peças de vanguarda,
estudando filosofia e compondo músicas.
Torna-se conhecido em 1967 com a canção “Alegria, alegria” —
prenúncio de um disco-manifesto revolucionário lançado no ano seguinte:
Tropicália ou Panis et Circensis. Num único pacote, um mundo: músicas
tidas como de mau gosto misturadas com canções vanguardistas (a
influência da poesia concreta é visível em algumas das letras), ritmos locais
mesclados com as novidades do rock. Os arranjos do músico erudito
contemporâneo Rogério Duprat geravam as fusões de registros sonoros
que davam unidade e modernidade ao todo. Cantores e instrumentistas
vinham de tribos muitos diferentes: Nara Leão, da Bossa Nova; Os
Mutantes, do rock; Tom Zé, Caetano, Gal Costa e Gil, da Bahia. As roupas
e o design gráfico tinham fortes influências da arte pop, então uma
vanguarda.
Tudo isso explicitamente reunido na forma de um movimento
intitulado Tropicalismo, que não se resumia à música, embora esta fosse o
aspecto mais conhecido. Abertamente construídas para a dimensão do
mercado, as performances ao vivo incentivavam novidade e geravam
polêmica num momento de divisão.
A música “É proibido proibir”, baseada em slogans dos movimentos de
Paris, é vaiada duramente por estudantes de esquerda num festival ainda
em 1968 — e o autor, preso sem processo e exilado sem condenação pelos
militares que conduziam a ditadura.
Lança um disco criado a partir de gravações feitas na cadeia; parte para
viver em Londres. Ali continua sua obra experimental, montada segundo
os princípios do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade: justapõe
arcaico e moderno, alta cultura e arte primitiva — tudo respeitando a
cadência brasileira.
De volta ao país em meados dos anos 1970, multiplica sua produção
musical sem tanto apelo à organização de movimentos e à difusão de
princípios estéticos que caracterizam a vanguarda — mas sem deixar de
lado as polêmicas culturais nem a capacidade de transitar por múltiplos
universos culturais e musicais.
Assim vai compondo uma obra vasta e universal ao longo das décadas
seguintes. Seus mais de 50 discos e CDs contêm muito da cultura
brasileira e vários fizeram carreira internacional.
Ernesto Geisel
★ Bento Gonçalves, 1907 † Rio de Janeiro, 1996

MURO NA HORA DA MUDANÇA


Na globalização, reforça o muro estatal que separa a economia
brasileira do mundo — e o país começa a ter problemas de
desenvolvimento.

Filho de um pastor luterano que vivia em uma colônia de imigrantes


alemães no Sul, é o primeiro evangélico a presidir o Brasil — num
momento crucial do mundo: o fim do ciclo iniciado em 1929. Toma posse
tendo que avaliar seu passado e um futuro para o país.
Sua vida pública coincide com o período de maior poder do Estado
nacional. Em 1930 é tenente favorável à revolução e ganha seu primeiro
cargo, o de interventor na Paraíba; nos anos 1950 dirige uma refinaria da
Petrobras, na década seguinte se torna presidente da empresa — nos
intervalos faz carreira militar e tem experiência em postos ministeriais.
Nos primeiros anos da ditadura após 1964, vê a estrutura do governo
central ser muito reforçada; como proporção do Produto Interno Bruto, o
tamanho dessa parte do poder mais que dobra entre 1964 e 1970. Vê
também os resultados, expressos naquilo que a propaganda do regime
chama de Milagre Brasileiro: crescimento da economia na esteira dos
investimentos estatais.
Toma posse quando mudanças acontecem na economia mundial: o
fim do padrão-ouro, pelo qual as principais economias buscavam manter
câmbios fixos; o aumento dos preços do petróleo, que gerou imensos
fluxos financeiros internacionais (ia dinheiro para pagar a mercadoria,
voltavam capitais dos novos donos do dinheiro para investir); a mudança
de direção da economia chinesa, que abandonava o monopólio estatal da
riqueza e abria espaço para um incipiente setor privado.
Interpretando os sinais, Geisel comanda uma opção típica de
ditaduras. O governo cria empresas estatais — mais de 400 no mandato,
em média uma por semana. Essas empresas, com aval do governo, tomam
empréstimos no exterior para fazer investimentos, sempre no pressuposto
de que eles gerariam riqueza no mercado interno capaz de pagar os
empréstimos e ainda gerar lucros.
Há estatais para tudo: energia, usinas atômicas, ferrovias, metalurgia,
telecomunicações e até hotelaria. Num primeiro momento o esquema
funciona. O governo troca as divisas dos empréstimos, entrega moeda
nacional para as estatais tocarem seus projetos e dólares para a Petrobras
pagar pelo petróleo caro.
O cenário internacional evolui: a globalização ganha escala, os ganhos
em mercados mundiais se tornam maiores que os retornos no mercado
nacional. Quando deixa o governo, em 1979, aparecem sinais de que o
Brasil perdera a aposta: os resultados dos investimentos não pagaram os
empréstimos, o grande dique estatal passa a jogar a economia nacional
para baixo. A pesada conta aprece na década seguinte: recessão,
desemprego, crise da dívida externa. Enquanto isso, as nações que
apostaram na globalização começam a crescer.
Mário Juruna
★ Barra do Garças, 1943 † Brasília, 2002

PALAVRA DE ÍNDIO
Com um gravador, ele fixa a palavra inconstante do homem
urbano, inova no diálogo entre seu povo e o poder — e chega ao
Congresso Nacional.

Nasce numa aldeia Xavante de Mato Grosso. Cresce num grupo que tinha
conseguido se manter isolado no ambiente nativo das florestas tropicais.
Filho do cacique, herda a posição de liderança eleita num momento de
transformação radical. Quando tem 17 anos, vê um brasileiro pela primeira
vez: a frente de ocupação agrícola chegara ao território no qual o grupo
vive.
Responsável por tentar cuidar da sobrevivência de todos, implanta
depressa as estratégias possíveis: aprende português, descobre que as
decisões relevantes para seu grupo são agora tomadas num lugar
chamado Brasília, começa a viajar para lá e a tentar negociar.
Emprega inicialmente o método de sua cultura, aquele da palavra
empenhada. Demora pouco tempo para descobrir que a palavra dos
burocratas com quem dialogava vale muito pouco — e ele tem pouco
domínio da escrita, das leis e dos regulamentos nos quais esses burocratas
se escudam para dizer uma coisa a cada dia.
Reage com tecnologia. Compra um pequeno gravador, passa a
registrar nele todas as propostas que recebe das autoridades. Mostra a
palavra dos governantes para seu povo, cobra as promessas gravadas das
demais autoridades. Descobre a imprensa e passa a empregar contatos
com jornalistas para mostrar suas gravações e reforçar sua reinvindicação
pela terra.
Ganha notoriedade num momento especial: as oposições ao regime
militar avançam. Em 1982 o antropólogo Darcy Ribeiro, que conhece
Juruna, é candidato a vice-governador de Leonel Brizola no Rio de Janeiro.
A candidatura é relativamente marginal e faltam voluntários para disputar
cargos proporcionais. Juruna aceita um convite e vai fazer campanha.
Recebe 31 mil votos dos eleitores cariocas e torna-se o primeiro índio a
ser eleito para o Parlamento brasileiro — depois de quase cinco séculos
nos quais os diversos povos da floresta tropical, com destaque para os
Tupi, sustentam a formação do território e da nação.
Mário Juruna tem uma atuação relevante, criando uma Comissão
Permanente no Congresso Nacional para lidar com a questão indígena.
Mesmo sem conseguir se reeleger, continua atuando num momento em
que acontece uma grande reversão no tratamento nacional da questão,
com o início da demarcação de terras para os diversos povos.
Graças a essa mudança, vai cessando lentamente o antigo cenário de
massacres que dizimaram a maioria das 180 etnias que havia no Brasil e
começa uma tendência de crescimento das populações.
Juruna passa a dividir seu tempo entre o grupo que chefia e Brasília,
tornando-se um ativo interlocutor entre as culturas nas quais foi obrigado
a trafegar. Morre de diabetes em 2002.
Ulysses Guimarães
★ Rio Claro, 1916 † Angra dos Reis, 1992

DEMOCRATA
Líder da oposição durante o regime militar, forma um partido
nacional e comanda a transição para a democracia.

Em 1947, elege-se pela primeira vez deputado estadual pelo Partido Social
Democrático (PSD) em São Paulo. Sua carreira política, portanto, coincide
com o período de redemocratização pós-1945. Progride rapidamente no
PSD, o partido que reunia os grandes beneficiados com cargos estatais
durante a ditadura do Estado Novo.
Quatro anos depois, é eleito deputado federal — e seria reeleito para
mandatos sucessivos como representante da população de São Paulo até
1990. Participa de todos os movimentos importantes da política nacional.
É parlamentar da situação durante as presidências de Getúlio Vargas,
Juscelino Kubitschek e João Goulart.
Em 1965 o regime militar promulga um ato pelo qual os antigos
partidos políticos são extintos e dois novos eram criados: a Arena, para
apoiar o regime militar, e o MDB, para reunir os opositores ao regime.
Enquanto a maioria de seus colegas de agremiação adere ao governo,
Ulysses vai para a oposição.
No auge das arbitrariedades e do prestígio do regime, ele se torna
líder de um partido que tinha pouco mais de 10% dos parlamentares. Em
1973 lança-se como anticandidato à presidência da República, apenas para
denunciar a ditadura. Nos anos seguintes recebe um tratamento duro:
censurado na imprensa, perseguido quando vai falar.
Consegue organizar o partido, que obtém sua primeira grande vitória
nas eleições parlamentares de 1974. Ainda assim a oposição fica longe do
poder executivo, totalmente tomado por indicados pelos ditadores. Em
1978 Ulysses é recebido em Salvador por tropas armadas e cães atiçados
contra ele. Responde com uma frase: “Baioneta não é voto, cachorro não é
urna.”
Com o fim do regime militar, torna-se fiador do governo de José
Sarney, presidente do Congresso e grande articulador do texto da
Constituição de 1988. Consegue impor sua visão, resumida numa frase do
discurso realizado no dia da promulgação: “Tenho ódio e nojo das
ditaduras.”
Por conta desse sentimento e pensando em garantir a sociedade
contra o governo, a constituição, embora democrática, mantém a
legislação herdada da ditadura e amplia ainda mais as capacidades do
governo central para operar como dique entre o mundo externo e a
sociedade interna.
O mundo corria na direção oposta: em 1989, o Muro de Berlim foi
derrubado e as diferenças ideológicas da Guerra Fria ruíram. Nesse
mesmo ano, Ulysses Guimarães é novamente candidato a presidente da
República, apresentando o tradicional programa populista de resolver
problemas com favores do governo central. Termina num modestíssimo
sétimo lugar no primeiro turno, com 4,7% dos votos. Reeleito deputado
federal no ano seguinte, morre logo depois num acidente aéreo.
Fernando Henrique Cardoso
★ Rio de Janeiro, 1931

ESTABILIDADE PARA REFORMAR


Sua carreira intelectual é sólida. Professor de Sociologia na Universidade
de São Paulo, acaba exilado com o golpe de 64. A vida no exterior dá
impulso a sua obra: professor no Chile e na França, escreve o clássico
Dependência e desenvolvimento na América Latina, imediatamente traduzido
em várias línguas e passaporte de acesso para as principais universidades
do mundo.
Volta ao Brasil em 1968 e logo é cassado pelo regime militar. Forma o
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), instituto que reúne
profissionais perseguidos de várias áreas de conhecimento. A partir dele
formula para o MDB aquele que seria o programa de muitos opositores da
ditadura: combinar crescimento com igualdade social, fazendo o governo
intervir para equalizar renda.
Começa a carreira política em 1978, como candidato a senador. Em
1993, deixa o cargo de ministro das Relações Exteriores de Itamar Franco e
assume a pasta da Fazenda. Implanta o Plano Real, capaz de resolver o
problema crônico da inflação que vinha desde o governo Juscelino. A
estabilidade da moeda torna-o popular a ponto de se eleger presidente da
República em 1994.
Marca seu governo com uma série de reformas que visavam eliminar
progressivamente as barreiras estatais que separavam a economia
brasileira da onda de crescimento global. Para realizar cada uma delas
precisa enfrentar protestos e negociar a aprovação de mudanças
constitucionais — que permitem privatizações em setores como
telecomunicações, transportes e energia.
Em 1999 o governo finalmente anula o controle do câmbio, peça
central do controle estatal da economia mantida intacto desde a década de
1930. Todo o sistema financeiro é saneado, os bancos estaduais são quase
todos privatizados, a dívida pública é posta sob controle depois de décadas
de desacerto.
Esses movimentos foram combinados com investimentos na área
social — o maior ganho nesse setor foi o fechamento da multissecular
fábrica de analfabetos herdada da colonização portuguesa: o índice de
crianças na escola saltou de 86% para 99%.
Ruth Cardoso
★ Araraquara, 1930 † São Paulo, 2008

REVOLUÇÃO EM POLÍTICAS SOCIAIS

Antropóloga por formação, desde os anos 1970 estuda em detalhe as


formas de pensar e de agir dos brasileiros do tempo; pesquisa em favelas,
associações de bairro, grupos feministas e entidades políticas. Formula
alternativas de políticas sociais que não sejam clientelistas, isto é, nas
quais os benefícios sejam universais e as regras, claras.
Na condição de mulher de presidente, Ruth atua com as novas formas
de organização do mundo global: um conjunto de ONGs intitulado
Comunidade Solidária. Implanta maneiras renovadas de fazer política
social: cadastros informáticos, benefícios definidos, controle dos gastos. O
principal programa implantado, o Bolsa Escola, foi ampliado no governo
seguinte.
Lula
★ Garanhuns, 1945

OPERÁRIO E PRESIDENTE
Luta para chegar ao poder, aposta contra a globalização, entrega
com popularidade o cargo — mas indícios de corrupção levam a
reavaliar seu papel.

Tem a infância de um nordestino muito pobre de seu tempo: o pai migra


para São Paulo antes de ele nascer; quando o menino tinha 7 anos, a mãe,
Eurídice, carrega os filhos numa viagem de pau de arara que dura 22 dias.
Começa a trabalhar aos 7 anos, vendendo laranjas no cais de Santos e
catando siris no mangue. Entra para a escola pública, na qual é
alfabetizado. Muda-se com a mãe para São Paulo e, com 14 anos, tem a
carteira de trabalho assinada pela primeira vez. Quando está com 19, um
acidente com o torno mecânico o faz perder o dedo mínimo da mão
esquerda.
Em 1966 começa a trabalhar numa grande indústria, a Villares. Faz
carreira como operário e, mais tarde, como sindicalista. Em 1973 recebe
formação da central sindical norte-americana AFL-CIO. Destaca-se no
meio sindical propondo o fim da CLT e fazendo oposição às tradicionais
lideranças vindas do varguismo.
Torna-se um líder efetivo ao comandar as primeiras greves em mais de
uma década, enfrentando a dura repressão do regime militar. Em 1980
tem prestígio suficiente para ser a grande figura em torno da qual
gravitam os grupos que fundam o Partido dos Trabalhadores.
Constrói a imagem de seu partido e a sua como candidato a cargos
majoritários: governador de São Paulo em 1982 e quatro vezes candidato a
presidente da República a partir de 1989. Apenas uma vez se elege
deputado constituinte, em 1986.
Vence a eleição presidencial de 2002. A grande aposta de seu governo
é voltar atrás nas mudanças empreendidas por seu antecessor e apostar
novamente no isolamento estatal do mercado interno. O maior projeto é
na Petrobras: depois de uma renacionalização, a empresa controla os
investimentos no pré-sal com contratos concentrados em empreiteiras. O
BNDES fornece crédito subsidiado para empresas.
Ao mesmo tempo, aumenta os gastos sociais, com destaque para o
programa Bolsa Família. Ganha muita popularidade, é reeleito em 2006.
Em 2008 acontece uma crise internacional de porte e Lula aumenta a
aposta no mercado nacional, gastando agora através de incentivos e
subsídios.
Sua popularidade se mantém e é o grande eleitor de Dilma Rousseff, a
primeira mulher a presidir o país, em 2010. Ela banca as apostas de Lula
mesmo quando as contas públicas começam a se deteriorar, reelegendo-
se em 2014 ainda escorada no prestígio do antecessor.
Muda radicalmente a orientação no ano seguinte, quando começam a
surgir indícios crescentes de que — como nos anos 1970 — a aposta
contra a globalização poderia não ter vingado. Muitos desses indícios
envolvem corrupção generalizada, com o que a imagem positiva do ex-
presidente é posta em cheque.
Fernanda Montenegro
★ Rio de Janeiro, 1929

ATRIZ
Começando de baixo na indústria cultural, estrutura uma carreira
no teatro e faz todos os tipos de papel, de figuras populares a
clássicos milenares.

Cresce nos subúrbios pobres do Rio de Janeiro, então uma mistura de


zona rural com bairro popular. Com 12 anos passa a estudar secretariado e
línguas de dia e faz curso de madureza à noite. Aos 15, ganha um concurso
para se tornar locutora da rádio do Ministério da Educação. Logo descobre
um grupo de teatro numa faculdade das proximidades e começa a atuar
como atriz amadora.
Até se formar no curso, mantém as carreiras de locutora e atriz,
eventualmente fundindo as duas quando atua em radionovelas. Uma vez
formada, deixa de ser aluna para ganhar dinheiro também como
professora.
Casa-se aos 23 anos com o ator Fernando Torres, que conhecera no
grupo teatral — a essa altura já atua também como atriz da TV Tupi, a
primeira emissora do Rio de Janeiro. Ali adota o nome artístico de
Fernanda Montenegro.
O jovem casal muda-se para São Paulo. Na esteira da contratação de
diretores e técnicos europeus de peso, as produções teatrais da cidade
estavam se tornando cada vez melhores com a adesão de novos atores e
pessoas interessadas em se profissionalizar em várias áreas técnicas da
arte cênica.
Fernanda Montenegro trabalha por dois anos na Companhia de Teatro
Maria Della Costa e passa em seguida para o Teatro Brasileiro de Comédia,
atuando especialmente em peças dirigidas por Gianni Ratto. Faz papéis
tanto em clássicos de Pirandello como em textos de autores brasileiros,
como Jorge Andrade. Ganha muitos prêmios e se torna uma atração na
cidade.
De volta ao Rio de Janeiro nos anos 1960, faz seguidos papéis em
novelas de televisão e passa a atuar regularmente em cinema — sem
deixar de lado o teatro. Assim vai acumulando a capacidade de interpretar
uma gama gigantesca de personagens, desde as mulheres brasileiras da
periferia até rainhas da Antiguidade ou figuras de peças de vanguarda.
Além do volume, a imensa qualidade de seu trabalho faz com que ela
vá se tornando, ao mesmo tempo, uma figura querida, familiar e essencial
para todos os brasileiros. Fiel ao trabalho de atriz, recusa seguidos convites
para associar sua força a outro tipo de atividades — diz “não” ao
Ministério da Cultura em duas ocasiões.
Consegue coisas espantosas, como ser a única brasileira até hoje
indicada para concorrer ao maior de todos os prêmios mundiais de
cinema, o Oscar de melhor atriz — e isso por sua atuação num filme
falado em português: Central do Brasil, de Walther Salles, em 1998. Pela
mesma atuação, ganha o Urso de Prata no Festival de Berlim. Em 2013
recebe o Emmy por sua atuação televisiva na série Doce de mãe — e é
indicada novamente em 2015, quando completou 86 anos.
Posfácio
A TRAMA DO FIO DA VIDA E DO FIO DA HISTÓRIA

Está tudo uma bagunça a meu redor. Bem feito! Quem mandou mudar de
escritório? É a crise obrigando. A rede de computadores funciona aos
pulinhos, os livros espalhados pelas salas tornam cada busca uma tortura.
Toca o celular bem naquela horinha que os filhos, Violeta ou Júlio, às
vezes ligam. Esperançoso, olho para a tela. Mas não. Pânico: é tia Odete.
Danou. Desta vez não escapo!
Vou ter de explicar que tio Zé não é um dos 101.
Mas uma coisa de cada vez. Quem trabalhou comigo nas últimas
décadas sabe. A cada momento pode surgir a pergunta terrível: será que
tia Odete vai entender? Por causa dela, trechos trabalhados são reescritos
quando não respondem à pergunta essencial.
Ah sim. Falta apresentá-la formalmente. Ela se chama Odete Pires do
Rio Vieira de Mello, tem 91 anos e continua tão apaixonada por história
quanto foi sua irmã (Carmen, minha mãe, desde 1979 vivendo com os
ancestrais eternos). É de outra geração, pensa com seus valores. Mas lê
meus livros com seu ar maternal, sem nada de teorias ou quejandos.
Por isso me importo. Sei que ela vai ler. E este livro daria uma grande
oportunidade para deixá-la muito satisfeita — caso incluísse tio Zé entre
os escolhidos.
Há anos pesquiso sobre José Pires do Rio. Sei que o pai dele, Rodrigo
Pires do Rio, veio menino de Portugal para Parati, na década de 1850. O
patrão era um tio, José Pires do Rio. O menino deu duro: ia num navio
deste tio levar café para o Rio de Janeiro, carregava para o Nordeste,
recarregava com sal no Rio Grande no Norte. Quando batia de volta em
Parati punha o sal nas bruacas, as bruacas nas mulas, partia para o vale do
Paraíba, ia vendendo as cargas e comprando café, voltava para Parati,
prestava contas e recomeçava o ciclo.
Foi assim até 1877, quando a Ferrovia do Norte chegou a
Guaratinguetá. Morreu o negócio, o tio ficou na Parati dormente no
tempo. Aos 36 anos, Rodrigo mudou de vida: trocou 24 burros montados
por uma fazenda de café cuja varanda dava bem de frente para a capelinha
de Nossa Senhora Aparecida. Casou e em 1880 teve seu primeiro filho,
justamente o tio Zé — nome dado em homenagem ao pioneiro.
A vida dele vale uma história. Estudou Farmácia e Engenharia de
minas em Ouro Preto, ganhou um prêmio de viagem para a Europa.
Voltou para o Rio de Janeiro na virada para o século XX, foi trabalhar nas
obras do porto. Descobriu uma vocação errante. Trabalhou em minas de
carvão em Santa Catarina; supervisionou a Estrada de Ferro Madeira-
Mamoré e uma ferrovia em Goiás; deu aulas de Engenharia em Salvador;
percorreu todo o sertão nordestino de mula para achar os pontos nos
quais era possível construir açudes (e ajudou a construir Orós, o primeiro
deles). As noites nos canteiros de obras deviam ser longas: herdei a
Enciclopédia Britânica, edição de 1911, inteiramente lida e anotada a lápis
por ele.
Nos anos 1920 foi tirado dessa vida por Epitácio Pessoa, que o chamou
para ser ministro da Viação. Virou político, foi deputado federal e prefeito
de São Paulo, a partir de 1927. Tinha compreensível obsessão pelo papel
dos técnicos na administração pública e por planejamento.
Resolveu preparar São Paulo para o futuro. Começou as obras de
retificação dos cursos dos rios Tietê e Pinheiros, projetadas por Saturnino
de Brito, que previa um gigantesco parque ecológico de 25 quilômetros de
extensão. Mas apostou também na retificação do plano proposta pelo
engenheiro da prefeitura Prestes Maia, que traçou avenidas marginais para
automóveis no lugar dos parques — e em todas as beiras de rio da cidade.
Deixou a Prefeitura com a Revolução de 1930, já com as primeiras
obras que, para o bem ou para o mal, moldaram a cidade pelo gosto do
automóvel. Ficou desempregado três anos, morando na Vila Itororó (tia
Odete o visitava lá).
Convidado pelo conde Pereira Carneiro, foi dirigir o Jornal do Brasil, no
Rio de Janeiro. Diz a lenda que diagramou o famoso L de classificados na
primeira página. Foi ministro da Fazenda, morreu de cólera em meio a
uma viagem, na Índia.
Era padrinho de Tia Odete, que guarda não apenas sua papelada como
também a de toda a família. Aos pouquinhos, de conta-gotas, desconfiada
de que posso fazer besteira, foi me passando documentos como o
testamento do José Pires do Rio, o tio de Parati, feito em 1889.
Estudei a documentação com grande prazer, tentando reconstruir a
trajetória do herói familiar. Fiz pesquisas, descobri até sua ficha de
funcionário no Departamento de Obras contra a Seca. Mas nunca
consegui chegar até alguns papéis do JB para contar sua vida de jornalista.
Tudo isso passou pela minha cabeça no segundo entre ver o número
de tia Odete na tela do celular e atender. Ia explicar que ainda não foi
dessa vez, mas ela falou antes:
— Jorginho (ela é a única que tem o direito de me tratar assim, por
antiguidade), vou ter uma bisneta, vai se chamar Laura.
A genealogia das mulheres de Santos passou mais depressa que meus
pensamentos sobre o tio Zé: Vovó Catarina (alemã); vovó Clara (filha dela
com o inglês James Porter); vovó Odila (filha dela com o português
Thomaz Souto Corrêa); minha mãe Carmen (filha dela com Rodrigo Pires
do Rio Filho, irmão de tio Zé). E minha primeira mulher, Cynthia (filha de
italianos, de um lado; de norueguês e paraguaia, do outro), mãe da Violeta
(como todas as anteriores, nascida em Santos) e do Júlio, todos sendo
postos pelo fio da vida em geração anterior à da futura santista Laura.
A trama alegre da vida que virá me livrou de explicar o nome fora da
trama dos 101 que fizeram história. Desliguei o telefone, fiquei esperando
a ligação do Júlio ou da Violeta. Voltei ao papel de maior, às voltas com a
bagunça no escritório, a crise brasileira, o passe do idoso com o qual tento
me acostumar à passagem do tempo, os filhos que tocam suas vidas, os
netos (Lúcia, minha atual mulher, divide dois comigo) que um dia poderão
ler a história dos escolhidos para compor a lista possível — sem o tio Zé.
A ligação dos filhos não veio. Saí do escritório em silêncio, fui me
dissolvendo no fluxo da cidade, sonhando em ter equilibrado tudo em
palavras enquanto me despeço de você, amável leitor. Sei que é impossível
realizar o ideal: alguém sempre fica de fora, com minhas desculpas pela
impossibilidade de acertar tudo.

— Jorge Caldeira
Crédito das imagens

10 Ilustração Nelson Cruz


12 Ilustração Renato Alarcão
14 Adriana Varejão
17 Adriana Varejão
18 Ilustração Renato Alarcão
21 Ilustração Catarina Bessell
24 Reprodução do livro José de Anchieta. Fundação Emílio Odebrecht/ Sociedade Brasileira de
Educação. Patrocínio Tenenge Técnica Nacional de Engenharia S/A. Pe. Hélio Abranches Viotti S.
J. 1987 / p. 86
26 Ilustração Carlos Fonseca
28 Ilustração Nelson Cruz
30 Ilustração óleo sobre tela de Elon Brasil
33 Ilustração Catarina Bessell
36 Reprodução do livro Albert Eckhout: Visões do Paraíso Selvagem (Obra Completa), 2010, Capivara
38-45 Reproduções do livro Albert Eckhout: Visões do Paraíso Selvagem (Obra Completa), 2010,
Capivara
46-47 Acervo Iconographia
50 Ilustração Renato Alarcão
53 Reprodução do livro Mapa – Imagens da Formação Territorial Brasileira, 1993, Odebrecht
54 Reprodução do livro A Construção do Brasil 1500-1825, 2000, Gráfica Maiadouro / Portugal
56 Reprodução do livro A Construção do Brasil 1500-1825, 2000, Gráfica Maiadouro / Portugal.
Retrato de Salvador Correa de Sá (Escola Portuguesa), século XVII, óleo sobre tela, Florença,
Galleria Degli Uffizi.
59 Antiqua Print Gallery / Alamy / Glow Images
60 Ilustração óleo sobre tela de Elon Brasil
62 Ilustração Nelson Cruz
64 Ilustração Renato Alarcão
66 Ilustração Carlos Fonseca
68 Ilustração Nelson Cruz
70 Folhapress
72 Ilustração Renato Alarcão
74 Ilustração Catarina Bessell
76 Ilustração Nelson Cruz
78 Ilustração óleo sobre tela de Elon Brasil
82-85 Reprodução de pranchas de Viagem Filosófica, de Alexandre Rodrigues Ferreira
86 Reprodução de Milton Guran
88 Tiradentes esquartejado, de Pedro Américo. Óleo sobre tela, 1893.
90 Foto: Adam Jones / adamjones.freeservers.com. Fonte: Wikimedia Commons
93 Ricardo André Frantz – Tetraktys. Fonte: Wikimedia Commons
94-95 Luis Rizo. Fonte: Wikimedia Commons
96 Epitácio Pessoa / Estadão Conteúdo
97 Halley Pacheco de Oliveira. Fonte: Wikimedia Commons
98 Retrato de D. João VI, óleo sobre tela. Jean Baptiste-Debret, 1817. MNBA/Banco Santos catalogue,
São Paulo, 2002. Fonte: Wikimedia Commons
100 Retrato de José Bonifácio de Andrada e Silva (litogravura). In: SISSON, S. A. Galeria dos
Brasileiros Ilustres, 1861. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
103 (quadro) Acervo Iconographia
103 (carta) Fonte: Wikimedia Commons
104 Arte A Produções
105 Reprodução do livro Expedição Langsdorff ao Brasil 1821-1829 – Volume 2, Taunay, 1988,
Alumbramento / Livroarte
106 Portrait of Dom Pedro, Duke of Bragança, óleo sobre tela. Autor desconhecido (a partir de John
Simpson 1782-1847), c. 1835. Fonte: Wikimedia Commons
108 Pintura de Joseph Kreutzinger. In: SOUSA, Octávio Tarquínio de. A Vida de D. Pedro I. Volume II.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1972. Fonte: Wikimedia Commons
109 Retrato de Domitila de Castro Canto e Melo, Marquesa de Santos, óleo sobre tela. Francisco
Pedro do Amaral, c. 1826. Museu Paulista
109 Retrato de Dona Amélia, Duquesa de Bragança, óleo sobre tela, autor não identificado, c. 1839.
Museu Paulista
110 Ilustração xilogravura de Claudio Caropreso
112 Retrato de Diogo Antônio Feijó, óleo sobre tela. Miguelzinho Dutra, s.d. Museu Paulista
115 Retrato de Diogo Antônio Feijó (litogravura). In: SISSON, S. A. Galeria dos Brasileiros Ilustres,
1861. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
116 Acervo Iconographia
118 Keystone Brasil
120 Retrato de Joaquim José de Souza Breves, óleo sobre tela, François-René Moreaux, c. 1840.
Coleção Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Reprodução de Jaime Acioli
122 Retrato de Paulino José Soares de Sousa, Visconde do Uruguai (litogravura). In: SISSON, S. A.
Galeria dos Brasileiros Ilustres, 1861. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
123 (Visconde Itaboraí) Museu Imperial/ Ibram/MinC
124 Luís Alves de Lima e Silva, Duque de Caxias, óleo sobre tela, Carneiro & Gaspar, c. 1861. In:
SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: memórias & imagens. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca
Nacional, 2003. Fonte: Wikimedia Commons
126 Pedro II, Imperador do Brasil: retrato, 1883. Fotografia: platinotipia por Joaquim Insley Pacheco.
Acervo FBN, coleção D. Teresa Cristina Maria.
129 (aclamação) Acervo Iconographia
129 (D. Pedro II) Museu Imperial/Ibram/MinC
130 Reprodução. In: CANDIDO, Antonio. Um Funcionário da Monarquia: ensaio sobre o segundo
escalão. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2002. Fonte: Wikimedia Commons
133 (quadros) Reprodução. In: CALDEIRA, Jorge. Mauá, empresário do Império. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995
133 (retrato) Detalhe de Irineu Evangelista de Sousa, Barão de Mauá (litogravura), S. A. Sisson, c.
1858. In: Grandes Personagens da Nossa História. São Paulo: Abril Cultural, 1969
134 Coleção Correio da Manhã/Arquivo Nacional
136 Retrato de André Rebouças, óleo sobre tela. Rodolfo Bernardelli, 1857. Coleção UFRJ.
Reprodução de Jaime Acioli
138 Retrato de Ana Clara Breves de Moraes Haritoff, óleo sobre tela. Gustav Richter, s.d. Museu
Nacional de Belas Artes/ Ibram/MinC
139 Retrato de Eufrásia Teixeira Leite, óleo sobre tela. Carolus Duran, Paris, França, 1887. Museu
Casa da Hera/Ibram/ MinC
140 Retrato de Joaquim Maria Machado de Assis. Fotografia de Marc Ferrez, 1890. Fundação
Biblioteca Nacional
143 Machado de Assis, aos 57 anos, c. 1896. Fundação Biblioteca Nacional
143 Machado de Assis, aos 25 anos, 1864. Arquivo ABL
143 Cópia da capa de Memórias Póstumas de Brás Cubas com dedicatória feita pelo autor para a
Biblioteca Nacional. No manuscrito se lê: “À Bibliotheca Nacional offerece Machado de Assis”.
Fundação Biblioteca Nacional/Fonte: Wikimedia Commons
145 Reprodução. In: LAGO, Bia e Pedro Corrêa do. Coleção Princesa Isabel – Fotografia do séc. XIX. Rio
de Janeiro: Capivara, 2008
146 Acervo Iconographia
149 (matéria) Acervo do jornal O Estado de S. Paulo.
149 (retrato) Arquivo ABL
150 Museu Julio de Castilhos /Secretaria de Cultura e Estado RS
151 Reprodução. In: NETTO, João Natale. Floriano, o Marechal Implacável. São Paulo: Novo Século,
2008
152 Acervo Iconographia
155 (Prudente) Acervo Iconographia
155 (grupo) Reprodução. In: Grandes Personagens da Nossa História. São Paulo: Abril Cultural, 1969
156 Vasquez, Pedro Karp. O Brasil na fotografia oitocentista. São Paulo: Metalivros, 2003
158 Arquivo ABL
161 Acervo Iconographia
162 Acervo CCAPA
165 Museu Paulista
166 Arquivo Público Mineiro
167 Foto oficial de Afonso Pena, presidente do Brasil entre 1906 e 1909, c. 1906. Fonte: Wikimedia
Commons
168 Retrato de Alberto Santos-Dumont, Zaida Ben-Yusuf, c. 1902. Acervo The Library of Congress
(USA)
170 Na fotografia, vê-se, à esquerda, o secretário do chefe dos reclamantes da Revolta da Chibata, e,
à direita, João Cândido, chefe dos reclamantes. Augusto Malta, 26/11/1910. MIS-RJ
172 Reprodução. In: FRAGA, Clementino. Vida e Obra de Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro: J. Olympio;
Brasília: INL, 1972
173 Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação
174 Coleção Almirante / MIS-RJ
176 Padre Cícero Romão Baptista (reprodução). Fundação Biblioteca Nacional
178 Acervo do Museu do Índio /FUNAI – Brasil
180 Museu Histórico Municipal Conde Francisco Matarazzo
182 Arquivo Estadão Conteúdo
184 Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade, código do
documento: MA-F-0126
187-191 Reproduções do livro Catálogo Raisonné de Tarsila do Amaral – Volume 1, de Saturni, Maria
Eugênia, Base 7
192 CPDOC/FGV
195 As duas imagens são reproduções da revista Nosso Século
196 Arquivo ABL
198 Arquivo Agência O Globo
200 Arquivo Público do Distrito Federal
202 Domício Pinheiro / Estadão Conteúdo
204 MIS-RJ
206 Fabio M. Salles / Folhapress
207 Reprodução do livro História do Unibanco, Instituto Moreira Salles (IMS), 1994.
208 Foto de Adir Mera/Agência O Globo
210 MIS-RJ
212 Photoshot/Keystone Brasil
214 Foto Sérgio Marques / Agência O Globo
216 Fundação Ulysses Guimarães
218 Getúlio Gurgel / Acervo Pres. F. H. Cardoso
220 Ricardo Stuckert / PR – Instituto Lula
222 Fotografia: Murillo Meirelles
Styling: Marina Franco
Beleza: Vini Kiless
Tratamento de Imagem: Alex Wink (Studio AW)
Todos os esforços foram feitos para creditar devidamente todos os detentores dos direitos das imagens que
ilustram este livro. Eventuais omissões de crédito e copyright não são intencionais e serão devidamente
solucionadas nas próximas edições, bastando que seus proprietários entrem em contato com os editores.
 
JORGE CALDEIRA

Nasceu em São Paulo, em 1955. É doutor em Ciência Política,


mestre em Sociologia e bacharel em Ciências Sociais (FFLCH–
USP). Sócio-fundador da Mameluco Edições e Produções
Culturais, é escritor e possui ampla experiência profissional na
área jornalística e editorial. Foi publisher da revista Bravo!,
consultor do projeto Brasil 500 Anos, da Rede Globo de
Televisão, editor-executivo da revista Exame, editor do caderno
Ilustrada e da Revista da Folha, do jornal Folha de S.Paulo, editor
de economia da revista IstoÉ e editor da revista Estudos Cebrap.
É autor de Noel Rosa: de costas para o mar (Brasiliense), Mauá:
empresário do Império e Viagem pela história do Brasil
(Companhia das Letras), A nação mercantilista e Ronaldo: glória e
drama no futebol globalizado (Editora 34), O banqueiro do sertão,
A construção do samba e História do Brasil com empreendedores
(Mameluco), além de organizador dos volumes Diogo Antônio
Feijó e José Bonifácio de Andrada e Silva, que integram a coleção
Formadores do Brasil (Lance!/Editora 34), e do livro Brasil: a
história contada por quem viu (Mameluco). Ocupa a cadeira no 18
da Academia Paulista de Letras.
Estação Brasil é o ponto de encontro dos
leitores que desejam redescobrir o Brasil.
Queremos revisitar e revisar a história,
discutir ideias, revelar as nossas belezas e
denunciar as nossas misérias. Os livros da
Estação Brasil misturam-se com o corpo e a
alma de nosso país, e apontam para o
futuro. E o nosso futuro será tanto melhor
quanto mais e melhor conhecermos o nosso
passado e a nós mesmos.

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