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Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-85-5608-011-0 (recurso eletrônico)
1. Brasil - Biografia. 2. Livros eletrônicos. I. Título: Cento e um
brasileiros que fizeram história.
16-33583
CDD: 920
CDU: 929
— Eduardo Bueno
Curador da coleção Brasil 101
Afonso Ribeiro
★?†?
Adriana Varejão
Detalhe de Kindred Spirits IV, 2015 óleo sobre tela
Políptico composto por 4 retratos
52 x 45,5 cm cada
Foto: Jaime Acioli
Na primeira parte de sua vida com Caramuru ela garante, nos
padrões da cultura Tupi, uma aliança poligâmica de negócios com
europeus.
CAPITOA E GOVERNADORA
O ADÃO PERNAMBUCANO
GADO E SERTÃO
Num tempo em que padres católicos ainda podiam casar, Mem de Sá era
filho do cônego da catedral de Coimbra — pai também, num casamento
anterior com outra mulher, do jurista e poeta Sá de Miranda, um dos
maiores literatos portugueses de seu tempo. A fama do irmão ajuda a abrir
portas na corte e em torno dela faz sua carreira.
Funcionário da alta burocracia, ao longo da carreira é juiz de instâncias
superiores, legislador, administrador. Tem já 58 anos de idade — bem
mais que a média de vida da época — quando é designado governador-
geral do Brasil. Em 1558 deixa Portugal pela primeira vez e desembarca em
Salvador. Antes de tomar posse interna-se no convento dos jesuítas para
um retiro espiritual. Sai de lá com um plano de ação comum a ambos.
Uma das primeiras medidas, em 1559, é a modificação de tarifas
alfandegárias: reduz em 40% a alíquota para a entrada de escravos
africanos. A tarifa menor incentiva a circulação maior da mercadoria
humana — numa economia em que as receitas do governo dependiam
das taxações alfandegárias sobre mercadorias transportadas entre
continentes de navio. Ganham também aqueles que passam a pagar
açúcar com escravos, pois precisam desembolsar menos dinheiro que
antes, quando pagavam a totalidade do valor na compra da produção feita
por indígenas. Perdem os produtores que empregam mão de obra nativa.
Essa lógica estava por trás do que viria a seguir: as leis que implantam
a política de liberdade para os índios e o instituto dos aldeamentos
transferem parte do domínio sobre nativos e o produto de seu trabalho
para os jesuítas — e para o governo que legisla. Aumenta o poder do
governo à custa dos moradores.
Mem de Sá emprega o poder do governo-geral para iniciar uma nova
política militar. Em 1560 reúne, pela primeira vez sob comando do
governo-geral, tropas de nativos para transformar as guerras tribais em
conflitos nacionais.
Forma e financia um exército de Tupi aliados na Bahia e no Espírito
Santo para atacar um estabelecimento francês na baía da Guanabara. A
expulsão do grupo oficial de comando foi rápida. Mas a ela segue-se uma
revolta dos Tamoio (esse o nome dado aos Tupi da região aliados aos
franceses). O conflito se generaliza, e o governador arregimenta tropas de
índios por todo o espaço da aliança entre Tupi e portugueses para lutar
contra seus aparentados.
No comando delas, em 1565, Estácio de Sá (sobrinho do governador)
ataca e expulsa os Tamoio da Guanabara. Funda a vila de São Sebastião do
Rio de Janeiro. A aliança entre portugueses e Tupi passa a ser a única
relevante no Sul do Brasil. Mem de Sá morre ainda no cargo, no qual
serviu por quase 15 anos.
Antonio Knivet
★?†?
SENHOR DO AMAZONAS
Tupi nascido na virada para o século XVII. Em 1614 vive num aldeamento
jesuítico e é batizado, trocando o nome Poti (camarão, em sua língua natal)
para Antônio Felipe. Aprende a ler e escrever, domina rudimentos de latim
e acaba conhecido pela gravidade de sua fala.
Desde o início da ocupação holandesa, em 1630, passa a chefiar um
exército de Tupi composto de homens e mulheres combatentes (uma delas
é Clara Camarão, sua esposa). As tropas sob seu comando lutam o tempo
todo, primeiro defendendo territórios, depois mantendo um esforço
permanente de guerrilhas. Por isso recebe, em 1635, o hábito da Ordem de
Cristo, tornando-se fidalgo.
Tem papel fundamental na primeira batalha de Guararapes, em 1648.
Morre em decorrência dos ferimentos recebidos em combate, um mês
depois de terminada a luta.
Henrique Dias, o negro
★ Recife, ? † Recife, 1662
Chefiou a grande incursão pelo oeste dos domínios Tupi até o vale
do Amazonas — façanha que Vieira viu como uma das maiores
viagens da humanidade.
O IMPERADOR DA LÍNGUA
Sua vida movimentada o levou a pregar nas selvas mais profundas
e nas cortes mais sofisticadas e a renovar o modo de escrever em
português.
COMANDANTE DE QUILOMBO
Na esteira da ocupação holandesa, escravos africanos fugidos
conseguem renovar a produção no sertão — e resistir sob o
comando de um líder forte.
BRASILEIROS EM LETRAS
Escritor passa a viver entre o povo mestiço, festeiro e negociante;
surge o primeiro grande retrato em palavras da realidade
brasileira.
O BANQUEIRO DO SERTÃO
A partir de um empreendimento siderúrgico, financiou
descobridores de ouro e montou um peculiar banco num palácio
em pleno sertão.
DE ASSASSINO A FIDALGO
Um criminoso fugido vira autoridade num passe de mágica
quando se dispõe a colaborar com os cobradores de impostos
reais.
Nascido na vila que era o porto de São Paulo, faz seus estudos básicos com
os jesuítas — os únicos educadores disponíveis. Matricula-se em 1712 no
curso de Direito da Universidade de Coimbra. Dois anos depois recebe sua
grande oportunidade: acompanhar o conde da Ribeira Grande, enviado
como embaixador à França por D. João V.
Seu trabalho principal seria o de assessorar o embaixador, mas não se
limita a isso. Para começar, vence as limitações financeiras do modo que
pode; entre outras atividades, trabalha num cassino. Arranja dinheiro
suficiente para, ao longo de sua estadia de cinco anos na França,
frequentar o curso de Direito da Sorbonne. Em 1719 retorna a Portugal e
obtém o diploma de bacharel em Coimbra.
Cai nas graças de D. João V, que o envia para Roma, onde passa sete
anos. De volta a Portugal, torna-se secretário do rei, dedicando-se à
política externa. Começa a desenvolver uma nova ideia para o Brasil, capaz
de adequar a colônia à situação de grande produtora de riquezas. Organiza
o povoamento do Sul com a pretensão de ocupar o território até o rio da
Prata, mandando para Santa Catarina grandes contingentes de moradores
dos Açores.
É nomeado em 1743 para o Conselho Ultramarino, a mais alta instância
de governo do mundo colonial português. Começa um trabalho de
pesquisas no arquivo da instituição, com uma estratégia clara: buscar
todas as evidências documentadas das andanças pelo sertão de todos os
grupos da aliança entre Tupi e portugueses que encontrasse.
Marca os pontos geográficos citados nos documentos em mapas, até
chegar a uma demarcação de território contínua. Encomenda pareceres a
juristas para fundamentar as pretensões de domínio sobre o território.
Manda espiões para confeccionar mapas favoráveis em zonas fronteiriças.
Convence o rei a apoiar sua estratégia. Em 1747 é nomeado para
negociar as fronteiras entre os territórios americanos de Espanha e
Portugal. Apresenta mapas e documentos, argumenta com a paz derivada
do reconhecimento mútuo daquilo que era apenas posse. Consegue seus
objetivos: o Tratado de Madri, assinado em 1750, emprega o critério da
posse efetiva do território para a demarcação de fronteiras.
Faz-se assim o reconhecimento jurídico daquilo que os aliados luso-
Tupi moldaram em séculos de andanças. Os muitos casamentos entre
mulheres nativas e lusitanos, apoios dos chefes aliados aos genros e vice-
versa, incursões de guerra, escravidão ou negócios, destruição de outras
etnias, controle de espaços, adquirem uma nova realidade a partir do
trabalho de Alexandre de Gusmão: o Brasil ganhava um território
demarcado em mapas e reconhecível pelo Direito internacional.
Alexandre Rodrigues Ferreira
★ Salvador, 1756 † Lisboa, Portugal, 1815
O MÁRTIR DA INDEPENDÊNCIA
Republicano sem medo de sua posição, é o único de um grupo de
conspiradores mineiros a ter a pena executada por lutar pela
soberania do Brasil.
Filho de pequeno proprietário rural, fica órfão aos 9 anos e é educado por
um de seus irmãos, o padre Domingos da Silva Xavier. Aprende noções
práticas de medicina e odontologia. Ganha o apelido pela habilidade com
que extraía dentes.
Sem dinheiro para seguir adiante nos estudos, faz a vida como tropeiro
e mascate. Consegue um pouco mais de estabilidade ao obter um posto
de alferes nas milícias. Depois de sete anos de serviço, cansado de esperar
por uma promoção, pede baixa.
Em 1787 vai para o Rio de Janeiro. Já era, nessa época, grande defensor
dos ideais republicanos e apaixonado pela independência dos Estados
Unidos, cuja Constituição estudaria bastante. Em 1788 conhece José
Álvares Maciel, que acaba de voltar de uma viagem pela Inglaterra.
A partir daí vai sendo introduzido nos círculos de conspiradores da
elite, quase todos ligados à Maçonaria, instituição secreta que disseminava
projetos na terra sem livros. Entusiasmado, Tiradentes nunca se adapta
plenamente ao regime de segredo. Comenta abertamente suas ideias e
divulga projetos republicanos e de independência sem atentar para sua
segurança.
De volta a Minas, acaba aceito num grupo de antigos governantes
apeados do poder pelo rei. O grupo inclui militares de alta patente,
secretários do governador, juízes, ouvidores e mineradores muito ricos
que se tornam conspiradores pensando numa volta ao poder. Tiradentes é
aquele de posto mais modesto no grupo e um dos mais entusiasmados.
Quando é preso, a princípio nega sua participação na conjura, mas,
confrontado com testemunhas e as confissões dos companheiros,
reconhece que contribuíra para a organização do movimento e defende
publicamente suas ideias republicanas. É condenado à morte, e o único de
todo o grupo a ter a sentença executada.
No sábado, 21 de abril de 1792, depois de beijar os pés do carrasco,
veste a alva de condenado. Vai na frente do cortejo, seguido por nove
padres franciscanos e membros de várias irmandades, todos recitando
salmos. Atrás seguem os irmãos da Misericórdia e cavalarianos em
uniforme de gala.
Depois de três horas de desfile chega ao cadafalso. Faz um único
pedido: que lhe seja abreviado o suplício. Depois de rezar o “Credo”, o
carrasco o empurra. Morto, tem a cabeça cortada e o corpo dividido em
quatro partes. O sangue serve de tinta para a lavratura de sua certidão de
óbito.
Os restos mortais, metidos em salmoura, são enviados para os lugares
onde o condenado pregara a independência. A cabeça fica exposta na
praça de Ouro Preto, onde o governador ordena três dias de festas para
comemorar o malogro da conspiração.
Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho
★ Ouro Preto, 1738 † Ouro Preto, 1814
UM GÊNIO DA ESCULTURA
Apesar dos desequilíbrios sociais, na região mineradora foi
possível juntar riqueza suficiente para manter o trabalho de um
escultor de talento.
A REACIONÁRIA
Carta de José Bonifácio a D. Pedro, datada de 1 de setembro de 1822. Acervo do Museu Paulista.
Sebastiana
★ Chapada dos Guimarães, c. 1815 † ?
A VIA REVOLUCIONÁRIA
Defensor da liberdade e do federalismo, por duas vezes encontra
apenas nas armas a possibilidade de ver respeitadas suas ideias.
Ingressa cedo na Ordem dos Carmelitas, uma das mais ricas e tradicionais
— e também das que mais dificuldades impunham à entrada de mestiços.
Em 1796, ordena-se como frei Joaquim do Amor Divino, mas faz questão
de acrescentar o Caneca, homenagem ao pai tanoeiro. Fica famoso por
devorar livros de toda espécie. Torna-se conhecido em Recife como
professor de retórica, filosofia e geometria.
Também discute muito política. Como tantos pernambucanos, sente
uma mudança. A transferência da Corte para o Rio de Janeiro cria um novo
fluxo econômico: o dinheiro que antes ia para a metrópole via impostos
agora é levado para a capital, criando desigualdades regionais.
Pernambuco foi uma das capitanias mais prejudicadas. Em 1817
acontece uma resposta: a Revolução Pernambucana, que tem frei Caneca
como um dos líderes. Preso, é transferido para Salvador. Anistiado em
1821, retorna para o Recife, para as aulas e para a atividade política.
Na prisão, amadurece suas posições nativistas. Numa das polêmicas
que mantém, acusado de ser filho de “dois pardos comedidos”, faz
questão de mostrar sua ascendência, na qual, afora portugueses, haveria
apenas uma trisavó que “poderia ser uma Tapuia, Petiguari, Tupinambá”
ou, “se fora alguma rainha Ginga, nenhum mal me fez, pois já está à porta
o tempo de nos honrarmos do sangue africano”.
Libertado da cadeia com a Independência, apoia inicialmente a
fórmula monárquica brasileira — mas, ao modo de José Bonifácio, com a
ressalva de que o poder imperial deveria ser muito limitado pela
constituição. É também federalista, defendendo a autonomia provincial —
e por isso critica a ideia do ministro de constituir um poder central forte.
Supunha que o imperador seria bem mais liberal.
Em 1824 foi desmentido: recebe a notícia do exílio de Bonifácio e da
dissolução da Constituinte. Defende uma posição radical, que foi aceita
pelo governo pernambucano: pegar em armas contra o atentado à
liberdade. Torna-se um dos principais líderes da Confederação do
Equador, com esperanças de obter adesão de várias províncias.
O apoio não vem, a situação se torna crítica. Recife é atacada, ele foge
para o sertão na direção do Ceará. Entre agosto e novembro de 1824,
participa de vários combates contra as tropas do governo.
Preso em 29 de novembro, é levado para Recife, julgado por comissão
militar e condenado à morte na forca. A execução da sentença fica
marcada para o dia 13 de janeiro de 1825, mas nenhum carrasco se
apresenta para executá-la. É necessário comutar a pena para fuzilamento,
que acaba sendo realizado pelos militares encarregados da repressão.
Diogo Antônio Feijó
★ São Paulo, 1784 † São Paulo, 1843
LÍDER NA CABANAGEM
Jovem empresário se vê compelido a entrar na luta política e se
torna líder dos cabanos na mais violenta revolução da história
brasileira.
Nascido no Ceará, muda-se para Belém com os pais que fugiam da seca
em 1827. A cidade vive momentos agitados desde a Independência, por
duas razões locais importantes. Em primeiro lugar, ao contrário do
restante do país que se formava, a escravidão africana era pouco relevante
na economia — e não existiam comerciantes que acumulavam vendendo
escravos e comprando produção local. Tudo era produzido por índios.
Em segundo lugar, a região esteve ligada administrativamente a
Lisboa, e não ao Rio de Janeiro. A medida tinha lógica: dado o regime de
ventos, as viagens de navio a vela duravam 20 dias até a metrópole e 90
dias até o Rio de Janeiro.
A trajetória inicial de Eduardo Nogueira é marcada por essa realidade.
Desde muito jovem mostra talento para negócios. Torna-se comerciante
— a profissão dos ricos desse tempo — mas logo desiste, para montar
uma roça em terras arrendadas.
A passagem parecia inusitada, mas tinha sentido. O comércio com
Lisboa desaparecera com a Independência, sem ganhar substituto vindo
da nova capital. Assim a produção local ia passando para o centro da cena
econômica — com duras consequências políticas.
Os governos anteriores à Independência eram dominados por
comerciantes ligados à metrópole. Já os representantes políticos indicados
pelo Rio de Janeiro procuravam cumprir as funções de arrecadar impostos
e manter a ordem — algo que não ajudava em nada a economia local.
Sem comerciantes com meios de articular a produção nessa realidade,
instalam-se a decadência econômica e violentas disputas por poder
político. Em meio a elas, Eduardo Nogueira ganha o apelido de Angelim,
dadas as qualidades de dureza e resistência dessa madeira.
No processo, vai deixando a condição de empresário e ganhando a de
líder de uma revolução popular que recebe o nome de Cabanagem. No
comando de uma tropa de caboclos e índios, toma a cidade de Belém em
agosto de 1835.
Tem apenas 21 anos quando passa a comandar uma revolução que
domina todo o interior da Amazônia. Quando tropas e enviados do
governo central tomam Belém, em abril de 1836, ele continua a lutar no
interior.
Preso em outubro, é mandado para o Rio de Janeiro e daí para o exílio
em Fernando de Noronha — enquanto algo como 30 mil cabanos (numa
população total de 150 mil pessoas) são massacrados. A economia é tão
dizimada quanto a população — mas os impostos para o governo central
passam a ser cobrados com regularidade da população local.
Apesar da anistia de 1839, Eduardo Angelim só pode voltar para a
Amazônia em 1851. Morre em 1882, já na decadência do Império.
Anita Garibaldi
★ Laguna, 1821 † Ravena, Itália, 1849
A GUERREIRA E O MARINHEIRO
Amor à primeira vista e aventuras revolucionárias em sequência
compõem a história intensa de um casal de apaixonados.
Ana Maria de Jesus Ribeiro nasce numa família pobre que trafegava entre
Laguna e Lages — o litoral e o sertão tropeiro de Santa Catarina. Seu pai
morre quando ainda era muito jovem, deixando seis filhas e quatro filhos.
Por insistência da mãe, casa-se aos 14 anos — mas o marido a deixa ao se
alistar no Exército.
No dia 25 de julho de 1839, está na rua assistindo à chegada de uma
esquadra que invadia a cidade quando um marinheiro a bordo de um
navio assesta a luneta sobre ela.
Chama-se Giuseppe Garibaldi, tem 32 anos de idade, 17 dos quais
percorrendo mares do mundo em todo tipo de aventura militar, comercial
e de pirataria. Por conta delas vai dar no Rio de Janeiro. Aceita a condição
precária de oficial de marinha do governo dos farroupilhas gaúchos — e
se torna um dos comandantes na modestíssima frota naval que invade
Laguna para fundar a República Juliana. Olhando a mulher pela luneta,
toma decisões que pouco têm a ver com seus deveres militares.
Desembarcando na cidade, o marinheiro vai atrás daquela que o
encantara. Assim que a encontra, declara seu amor e afirma que quer tê-la
a seu lado. Convence. Em outubro, Anita embarca com o companheiro
numa lua de mel que é também expedição de corso para Cananeia. Mal
atingem Imbituba, o navio é atacado.
Com menos de um mês de união voltam para Laguna, que é atacada
por uma esquadra do governo. Expondo a vida, Anita se encarrega de
cruzar várias vezes a linha de fogo num escaler, para buscar munição e
manter a luta. O casal consegue escapar para o interior.
Chegam a Lages em dezembro, acossados por tropas. Em janeiro,
Anita é presa em combate. Convence os captores a deixá-la procurar o
corpo do companheiro, dado como morto. Escapa e acaba se unindo a ele
depois de atravessar o rio Canoas a nado.
Em setembro de 1840 nasce o primeiro filho do casal; doze dias depois
do parto ela escapa de um cerco a cavalo com seu recém-nascido e tem
um papel relevante na fuga do grupo através da região tropeira, até chegar
ao Rio Grande do Sul.
Garibaldi consegue ganhar uma boiada por seus serviços e parte com
Anita para Montevidéu. Ali os dois se casam, em 1842, enquanto o marido
presta pequenos serviços mercenários para os governos locais.
A situação de relativa tranquilidade dura até 1848, quando Garibaldi
consegue mudar com a família para sua cidade natal, Nice. Em fevereiro
de 1849 o marido vai para Roma, onde é proclamada a República. Mas logo
aparecem tropas para perseguir os revolucionários. Anita, grávida, deixa a
segurança de Nice e vai acompanhar o marido em mais uma mistura de
fuga e batalhas. Morre de febre, em 4 de agosto — com apenas 27 anos.
Joaquim José de Souza Breves
★ São João Marcos, 1804 † Passa Três, 1889
IMPERADOR
Ganha poder por suas qualidades: manter um parlamentarismo
inexistente nas leis, ficar atento à alternância do poder, ser austero
e atento ao bem comum.
Aclamação do jovem Pedro II como imperador do Brasil, a 9 de abril de 1831, por Jean-Baptiste
Debret.
Irineu Evangelista de Sousa, barão e
visconde de Mauá
★ Arroio Grande, 1813 † Petrópolis, 1889
EMPRESÁRIO CAPITALISTA
Trabalhando desde os 9 anos, aos 22 se torna o homem mais rico
do Brasil — sem nunca usar trabalho escravo nem buscar clientes
dependentes.
Sua mãe é uma negra livre, da nação Nagô, vendedora de alimentos nas
ruas e ligada a organizadores de insurreições escravas; o pai é descendente
de portugueses, rico, apreciador de cavalos e jogos. Quando tem 7 anos,
depois da Revolta dos Malês, sua mãe é obrigada a fugir para o Rio de
Janeiro. O pai perde mais do que tinha no jogo. Para pagar a dívida, vende
o filho como escravo.
Trazido para o Rio de Janeiro, é revendido para um traficante que
forma lotes, põe o grupo em viagem e vai ofertando a “mercadoria” de
cidade em cidade. Acaba comprado em Campinas para ser escravo
doméstico. Quando tem 17 anos um hóspede da casa ensina-o a ler e
escrever.
Foge, alista-se como soldado. Acaba secretário de um professor de
Direito. Consegue um emprego público — mas é despedido numa das
derrubadas pré-eleitorais pelos conservadores.
Com ajuda de amigos maçons acaba se tornando rábula. Em pouco
tempo especializa-se em ajuizar causas de alforria, com um método muito
moderno para a época. Suas petições vêm com pareceres de professores
da faculdade de Direito e ele mesmo se encarrega de escrever reportagens
em jornais noticiando a causa.
Ganha desenvoltura, passa a processar pessoas conhecidas. As causas
ganham repercussão, a notícia chega a muita gente. Sua casa passa a ter
fila diária de escravos em busca de liberdade, seu escritório na cidade
recebe movimento intenso.
Cria uma rede abolicionista informal, cujo tamanho e influência só é
medido no dia de sua morte, em 1882. Num tempo em que São Paulo
tinha 30 mil habitantes, mais de três mil aparecem para o enterro. No
meio do caminho para o cemitério, negros que ele libertara tomam o
caixão nos braços. Os discursos à beira do túmulo são muitos, o enterro só
acontece à noite.
Antônio Bento
★ São Paulo, 1843 † 1898
ABOLICIONISMO ARMADO
ESCRITOR PROFISSIONAL
Pais de origens diversas, misturas sociais novas na capital do país,
oportunidades modestas de trabalho assalariado: assim se faz o
escritor completo.
Seu pai, Francisco José de Assis, é mulato livre e pintor de paredes; a mãe,
Maria Leopoldina da Câmara Machado, é portuguesa dos Açores e
lavadeira. Cresce em meio a outro processo de amalgamento: os pais
vivem no terreno de uma antiga chácara que era parte da zona rural, mas
progressivamente vai sendo loteada, tornando-se parte do tecido urbano
do Rio de Janeiro.
A urbanização traz novos serviços, entre eles uma escola gratuita na
qual o menino estuda sem mostrar muito interesse. Mas certas tradições
continuam: há uma capela, ponto de maior atração; além de coroinha nas
missas e carola, Machado de Assis acaba se interessando pelos estudos a
partir do latim aprendido com o padre Sarmento.
Quando tem 10 anos a mãe morre e seu pai casa-se com uma
quituteira que mora em São Cristóvão e muda para a casa da nova mulher
(a regra Tupi de moradia). Mais perto do centro, quando se torna
adolescente o rapaz encontra uma oportunidade de formação intelectual
possível apenas em cidades: frequentar a biboca de Francisco de Paula
Brito, mistura de tipografia, livraria e loja de conveniências, além de ponto
de encontro de interessados em cultura do bairro.
Com 17 anos transforma a formação eclética no meio de vida possível:
é contratado como revisor e tipógrafo na Imprensa Nacional, iniciando a
dupla carreira de homem de imprensa e funcionário público. Dessa
posição profissional começa também a carreira de escritor, nas formas
acessíveis: publicando poemas na revista do amigo livreiro, traduzindo
libretos de óperas, escrevendo noticiário anônimo de jornais.
Assim, vai misturando profissão e formação intelectual. Trabalha como
jornalista para Quintino Bocaiúva e Saldanha Marinho, futuros líderes
republicanos. Frequenta teatro e escreve peças de pequena repercussão.
Publica um livro de poemas. Ganha promoção na repartição.
Casa-se em 1869 com Carolina Xavier de Novais, imigrante portuguesa
que tem 35 anos — muito além da idade média de casamento das
mulheres na época. Culta e alfabetizada, ela é parceira intelectual,
introdutora de novidades, comentadora e eventualmente revisora de
textos. O casal, que não teria filhos, vai morar no Cosme Velho.
A partir de 1872 inaugura outra atividade e outra forma de renda:
escrever romances. À medida que vai acumulando sucessos no mercado
de literatura que se formava na cidade (e recebendo direitos autorais),
torna-se também um escritor profissional reconhecido — o primeiro do
Brasil a viver primordialmente daquilo que escrevia.
Apenas no Rio de Janeiro combinam-se as possibilidades necessárias
para isso. Em primeiro lugar, há um contingente já apreciável de
alfabetizados — uma raridade num império que dedica muito pouco
esforço para superar o atraso recebido da miserável política cultural da
metrópole portuguesa: mesmo no final do regime monárquico, o índice
de analfabetos é de 87% da população e o ensino superior se resume a
umas poucas faculdades isoladas, sem nenhuma universidade.
MODERNIZAÇÃO E RANCOR
Num único dia, atualiza séculos: liberta empresários da tutela do
Estado, permite a garantia de créditos, formata o crescimento do
setor privado.
Rui Barbosa em São Paulo, durante a campanha presidencial de 1908. Esta foi a primeira fotografia
feita em um dia e publicada no dia seguinte na imprensa brasileira, no jornal O Estado de S. Paulo.
Júlio de Castilhos
★ Cruz Alta, 1860 † Porto Alegre, 1903
DITADOR POSITIVISTA
O MARECHAL DE FERRO
Foto do cadáver de Antônio Conselheiro em Canudos, feita no dia 6 de outubro de 1897 por Flávio
de Barros.
A CONSCIÊNCIA DE REPÓRTER
Vai a Canudos como editorialista republicano, testemunha um
massacre; a reavaliação de seus valores gera Os sertões.
INDUSTRIAL NO PODER
AMANTE DA INOVAÇÃO
AVIADOR
Comanda dirigíveis sobrevoando Paris; é o primeiro a voar em
público num avião. Assim se transforma na primeira celebridade
moderna do Brasil.
O ALMIRANTE NEGRO
Para atualizar oficiais que mantinham o chicote em navios de alta
tecnologia, ele se transforma em chefe de esquadra — e paga um
preço alto pela conquista.
SAÚDE PÚBLICA
UM CASO ÚNICO
O MARECHAL SALVADOR
Tratando os ancestrais com respeito, ele foi o grande responsável
pela proteção do Estado, a garantia da terra e a sobrevivência dos
índios brasileiros.
Mameluco de quatro costados, seu pai morre antes de ele nascer; a mãe,
quando tem apenas 2 anos. Com o apoio de um tio, vai estudar no Rio de
Janeiro na forma possível: aluno aceito na Escola Militar. Republicano e
abolicionista, acaba ligado à versão mais branda do positivismo, a Igreja
Positivista. Ao contrário de uma ditadura, ela propunha o afastamento de
seus membros da política.
Com a República, aceita prontamente a primeira missão recebida:
instalar linhas telegráficas em Mato Grosso. Para fazer isso precisa viver
praticamente o tempo todo atravessando terras há milhares de anos
ocupadas apenas por povos indígenas: mesmo os sertanejos costumavam
andar somente pela modesta fração do território na qual dominavam as
tribos Tupi — e isso na virada para o século XX.
Descendente de Xavante, um povo Jê, Rondon desincumbe-se da
missão atuando em duas direções: implantar linhas que levavam o
progresso material, mas também mudar as já centenárias relações com os
índios. Considera-os donos dos territórios — e a si mesmo e seus
soldados como invasores. Trata-os com o respeito derivado dessa
consideração e traduzido num lema que é ordem invariável a seus
subordinados:
“Morrer se preciso for; matar, nunca.”
Na esteira desse respeito abre-se uma estrada para pessoas que
desejavam ver e pensar a realidade dos povos nativos da floresta tropical
na forma de um tempo de grandes novidades. Nas incursões de Rondon
seguem cineastas, antropólogos, militares, diplomatas, botânicos,
zoólogos, empresários, todos respeitando o princípio máximo do respeito.
Em 1913, o ex-presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt é um
dos convidados. Percorre 3 mil quilômetros de selva, tratando
respeitosamente o comandante como “Senhor Coronel Rondon”. Ao final
de tudo, providencia vários títulos de instituições americanas para seu
novo amigo.
A partir dos anos 1940, o militar percebe que os caminhos abertos não
servem apenas para criar uma relação mais respeitosa com os índios:
agricultores invadem as terras. Trata então de empregar todo o seu
prestígio como militar para tentar implantar uma política de garantia da
propriedade das terras pelos ocupantes milenares.
Para iniciar o reconhecimento da posse como propriedade garantida
pelo Estado republicano, propõe, em 1952, a criação do Parque Nacional do
Xingu, pouco antes de terminar os três volumes de seu livro Índios do
Brasil. Morre em 1958, e apenas três anos depois seu projeto se torna
realidade. Graças a ele, as matrizes imemoriais da natureza e da aliança
humana que fez um país chamado Brasil ganham lugar na civilização que
se construía.
Francisco Matarazzo
★ Castellabatte, Itália, 1854 † São Paulo, 1937
Tem algum dinheiro quando chega ao Brasil, em 1881. Vai para Sorocaba,
sede nacional do negócio de tropas. Leva uma ideia singela: trocar a
embalagem da banha de porco, substituindo os pesados barris de madeira
por lata — mais leve, ela permitiria aos animais transportarem mais carga
de valor. Começa com uma fabriqueta de fundo de quintal; em menos de
uma década, possui três fábricas e vende banha para todo o país.
Na virada para o século XX, passa adiante o negócio para entrar em
outro maior: importar trigo bruto, moer e embalar localmente, evitando
perdas. Depois abre uma fábrica de sacos para transportar sua farinha,
amplia a produção para os tecidos, aproveita as sobras do processo para
fabricar sabão e forma uma rede de armazéns para distribuir tudo.
Em 1900 tinha construído uma fortuna avaliada em 2 mil contos de
réis — cem vezes o capital de seu primeiro investimento, feito na década
anterior.
Seguindo seu lema acaciano, “Uma coisa puxa outra”, o passo seguinte
é pegar o muito dinheiro em caixa para fundar um banco com capital de
2.500 contos, em 1905. Agora já se trata de uma sociedade anônima que
reúne os capitais de milhares de pequenos investidores espalhados pelo
interior de São Paulo, especialmente imigrantes italianos que estavam
formando poupanças.
A robustez financeira leva a uma multiplicação ainda maior de suas
indústrias, organizadas em 1911 numa sociedade anônima intitulada
Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo. O princípio da expansão é o
mesmo: empregar o trigo para montar uma fábrica de massas e biscoitos,
a necessidade de embalagens para montar uma metalúrgica, a fábrica de
tecidos para sustentar a empresa de fibras sintéticas, etc.
Quando a lista das expansões próprias se esgota, parte para a compra
do que havia em redor: fábricas de fornecedores, fazendas para produzir
matéria-prima, empresas de transporte terrestre e marítimo.
Em menos de uma década controla mais de uma centena de indústrias
novas. A expansão do mercado interno brasileiro é então de tal ordem que
absorve tudo — num claro indicativo de que os tempos de paralisia
econômica do regime monárquico haviam ficado para trás.
Mas Francisco Matarazzo faz questão de comandar os negócios
sozinho — e tem suas veleidades de imperador. Consegue do Vaticano um
título de conde e passa a apresentar-se como tal, com seus automóveis,
prédios de escritórios, mansões e muitos símbolos de riqueza industrial
que agora marcam a paisagem da cidade de São Paulo — símbolos que
centenas de milhares de operários olham de longe quando vão e vêm do
trabalho.
Júlio Mesquita
★ Campinas, 1862 † São Paulo, 1927
A INTUIÇÃO ANTROPOFÁGICA
Em plena Paris modernista, ela deixa afluir suas impressões da
infância rural e cria uma obra que inova radicalmente a postura do
ser artista brasileiro.
Em quatro anos, entre 1922 e 1926, sua vida pessoal sofre uma
transformação radical — e ela traduz a radicalidade em arte.
Filha de um grande empresário da indústria ferroviária e fazendeiro de
café, convive com pessoas de sua classe social e gênero — no padrão
republicano paulista: a infância na fazenda em meio a empregados vindos
do tempo da escravidão; a adolescência como interna de colégio no qual
se falava francês; a viagem para a Europa com a família aos 16 anos, com
direito a internação em uma escola de Barcelona, onde tem contato com a
pintura; o casamento aos 18 anos, uma filha aos 20 e a volta para a
fazenda.
Desvia do roteiro com 27 anos: separa-se do marido, vai morar em São
Paulo. Divide o tempo entre a criação da filha e os estudos de música e
pintura (com Pedro Alexandrino, um dos maiores pintores acadêmicos da
época). Em 1920 embarca com a filha para a Europa, onde passa dois anos.
De volta ao Brasil em junho de 1922, começa a relação com a arte
moderna de modo inusitado: recebe margaridas em penca, mandadas por
Mario de Andrade. Um dia depois, recebe a visita de Anita Malfatti e as
duas pintam as margaridas.
O quadro de Tarsila já traz as influências da amiga — que não se
limitam à pintura. Juntas, mais os escritores Mario de Andrade, Oswald de
Andrade e Menotti del Picchia, formam o autointitulado Grupo dos 5.
Discutem arte o tempo todo, e Tarsila começa um caso amoroso com
Oswald.
Em dezembro de 1922 embarca para a Europa, coloca a filha num
colégio interno e parte numa mistura de lua de mel, viagem de estudos e
imersão no modernismo. Em fins de março, fixando-se em Paris, Tarsila
começa a trabalhar no estúdio de André Lothe. Por intermédio dele o casal
conhece o poeta Blaise Cendrars, que os apresenta a seu grupo intelectual:
Constantin Brancuse, Fernand Léger, Erik Satie e Jean Cocteau, entre
outros. Tarsila escreve para a família sobre certos sentimentos trazidos pela
experiência:
“Sinto-me cada vez mais brasileira. Quero ser pintora da minha terra.
Como agradeço ter passado na fazenda a minha infância toda. As
reminiscências desse tempo vão se tornando cada vez mais preciosas para mim.
Quero, na arte, ser a caipirinha de São Paulo.”
A primeira grande expressão dessa ligação direta entre o sertão infantil
e a vanguarda da maturidade surge na tela A Negra, pintada em 1923. O
crítico Sérgio Milliet resume o impacto:
“O quadro prenuncia o movimento antropofágico. Essa antevisão irrompeu
solitária, ousadamente heterodoxa e confrontada aos ensinamentos formais de
Lothe e à poderosa influência de Léger. A sexualidade ostensiva desta figura
feminina, sua impávida, monumental e solene presença sobrepuja a lógica
cubista e nos remete ao mito primitivo do matriarcado.”
Desde muito criança ouve os infinitos causos contados por seu pai,
Florduardo de nome, Seu Fulô por apelido, mistura de comerciante,
autoridade eleita e finório caçador de onças. Aos 7 anos aprende francês
sozinho, aos 8 inicia-se no holandês com um padre — e é mandado para
estudar em Belo Horizonte, onde termina o primário com 9. Entra na
faculdade de Medicina com 16, já dominando o alemão, o inglês e o
espanhol.
Casa-se após a formatura, com 22 anos. Vai ser médico em Itaguara,
vilarejo do sertão. Atende roceiros a cavalo, faz ele mesmo o parto de sua
filha. Fica amigo de seu Nequinha, anacoreta enfurnado nas brenhas em
Sarandi, que lhe ensina as conversas dos espíritos dos animais e das almas
dos viventes no sertão. Três anos depois, em 1933, torna-se médico do
Exército e começa a interrogar soldados sobre suas andanças e lutas com
jagunços. A essa altura domina algo como duas dezenas de línguas.
Um amigo o convence a prestar concurso para o Itamarati. Aprovado,
muda-se para o Rio de Janeiro. Em 1936 ganha um concurso literário da
Academia Brasileira de Letras com um livro de contos, publicado seis anos
depois com o título de Sagarana.
Em 1938 é nomeado cônsul em Hamburgo. Nos primeiros momentos
da Segunda Guerra ajuda judeus a fugirem do nazismo; com a entrada do
Brasil no conflito é confinado, até ser trocado por diplomatas alemães.
Mandado para Bogotá, a mistura de frio, solidão e ar rarefeito lhe produz
uma vivência de morte — que acentua ainda mais sua propensão aos
conhecimentos adquiridos com curandeiros, espíritas, astrólogos e
ocultistas.
Depois de uma temporada em postos europeus, em 1951 viaja pelo
Mato Grosso com o vaqueiro Manuelzão — e preenche em torno de 50
cadernos com anotações que iam das impressões de vozes de pássaros às
formas das nuvens, passando por ditados, causos e canções. O
companheiro resume: “Perguntava mais que padre.”
O material dos cadernos, retrabalhado pelas experiências de uma vida,
aparece em dois livros lançados em 1956. Em Corpo de baile na forma de
contos, a começar por Miguilim.
Já o romance Grande sertão: Veredas traz algo que, até então, era
impensável na literatura brasileira: uma narrativa tecida pela voz de um
sertanejo que fala na primeira pessoa e apresenta o universo inteiro do
sertão para o leitor. O livro faz sucesso imediato não apenas no Brasil.
Traduzido quase imediatamente para várias línguas, universaliza
litearariamente o mundo do sertão.
Em 1967 começa um movimento de seus editores no exterior para
indicá-lo ao Prêmio Nobel. Sua morte barra o projeto.
Juscelino Kubitschek
★ Diamantina, 1902 † Resende, 1976
PRESIDENTE BOSSA-NOVA
Empregando planejamento e gestão como ferramentas de
governo — e sorriso otimista como arma política —, ele comanda
mudanças.
Com seu proverbial bom humor e habilidade para convencer, começa a ser
notado por gente do poder quando se apresenta voluntário médico das
tropas que combatem os paulistas em 1932. Acaba se elegendo deputado
constituinte em 1934 e é nomeado prefeito em Belo Horizonte durante a
ditadura do Estado Novo.
Encontra uma forma de marcar sua gestão. De um lado, gasta com
obras urbanas; do outro, no Parque da Pampulha, mistura de área de lazer
com prédios públicos, o projeto de Oscar Niemeyer acaba ganhando
projeção para muito além do município.
Governador de Minas Gerais a partir de 1950, marca sua gestão pela
combinação de investimentos em infraestrutura (especialmente estradas e
hidrelétricas), feitos pelo governo, com a atração de empresas privadas
estrangeiras donas de capital suficiente para aproveitar as novas facilidades
(a maior delas montou uma indústria de aço).
Eleito presidente da República após a comoção gerada pelo suicídio de
Getúlio Vargas, faz algo inédito na esfera federal: administra seguindo um
projeto preciso (o chamado Plano de Metas), cuida das prioridades,
gerencia com foco — e entrega o que prometeu na campanha.
O pacote soma as linhas seguidas nas experiências anteriores no
poder. Na área de infraestrutura, os gastos se concentraram em grandes
rodovias cruzando o Brasil; na esteira deles, consegue atrair investimentos
privados de fabricantes internacionais de automóveis e eletrodomésticos
— que trazem capital suficiente para um crescimento anual de dois dígitos
do setor industrial.
Fiel ao lema “50 anos em 5”, Juscelino gasta dinheiro público para
construir uma capital inteira. Com planta do urbanista Lúcio Costa e todos
os prédios e palácios que Oscar Niemeyer desenhou, implanta Brasília. As
críticas são muitas e o presidente responde dançando em festas, cantando
em serestas e visitando obras.
Tanto otimismo, no entanto, não é suficiente para eleger um sucessor.
Transmite a faixa presidencial para Jânio Quadros no dia da inauguração
de Brasília, desenhada para simbolizar uma ruptura com o passado.
Mantém sua popularidade pessoal apesar da crise econômica crescente
que se instala na economia, que deglute a pesada onda de gastos.
Vota a favor dos atos que implantaram o regime de 1964 — entre
outras coisas, porque José Maria Alckmin, vice-presidente do primeiro
mandatário (o marechal Castelo Branco), é seu grande aliado político.
Sonha em ser candidato no ano seguinte, mas é marginalizado do poder e
cassado.
Participa da formação da Frente Ampla, uma tentativa frustrada de
juntar adversários do regime. Morre num acidente de automóvel em 1976,
quando ensaiava sua volta à política.
Oscar Niemeyer
★ Rio de Janeiro, 1907 † Rio de Janeiro, 2012
MODERNISMO DE ESTADO
Dá vida às curvas, empregando o concreto armado, e ganha fama
mundial projetando prédios públicos — especialmente os de
Brasília.
Estreia como jogador profissional aos 16 anos pelo Santos Futebol Clube
— então, mal e mal, um time regional; antes de completar um ano de
carreira já está jogando na Seleção brasileira — faz dois gols nas duas
primeiras partidas pelo time em 1957. Em março de 1958, tendo assistido a
uma partida dele no Maracanã, o cronista Nelson Rodrigues formula um
vaticínio:
“Verdadeiro garoto, anda em campo como uma dessas autoridades
irresistíveis e fatais, dir-se-ia um rei.”
Em 1958, com 17 anos, estreia numa Copa do Mundo. Em sua segunda
partida, contra o País de Gales, faz seu primeiro — e antológico — gol na
competição. Na quarta, ganha o primeiro título da carreira, nada menos
que o mundial.
Na volta para o Brasil arrasta o Santos da categoria de clube local para
a de um dos grandes times do planeta. No primeiro campeonato ganho
com a equipe, o Paulista de 1958, marca nada menos que 58 gols em 38
jogos — número que, até hoje, ninguém bateu.
Nos dez anos seguintes o time ganharia oito títulos estaduais (Pelé
venceria dez ao longo da carreira), quatro regionais, seis campeonatos
brasileiros (cinco consecutivos), duas Libertadores da América e dois
campeonatos mundiais de clubes. Nos intervalos entre um campeonato e
outro, o Santos disputa torneios e partidas de exibição em todo o mundo
tendo Pelé como grande atração.
A mesma elevação de nível aconteceria com a Seleção brasileira. Pelé
disputa 92 jogos com a camisa nacional, faz 77 gols. O desempenho mais
notável acontece nas 40 partidas que ele e Garrincha disputam juntos: 36
vitórias, quatro empates, nenhuma derrota.
Participa de quatro Copas do Mundo, ganha três. Na última delas, em
1970, comanda uma equipe que fez 19 gols em seis partidas — assistidas
pela primeira vez ao vivo em todo o planeta, na estreia das transmissões
mundiais via satélite. As imagens das vitórias o consagram definitivamente
como ídolo global.
Encerra a carreira na Seleção brasileira em 1971; no Santos, em 1974.
Volta a jogar no ano seguinte pelo Cosmos, de Nova York — até
aposentar-se definitivamente em 1977, como campeão norte-americano.
Em 21 anos de carreira disputou 1.367 partidas, marcou 1.282 gols —
uma média de nada menos que 0,94 gol por partida. Foram gols que
empregaram todos os fundamentos do esporte: com os dois pés, cabeça,
peito, de falta e penalidades.
O conjunto de sua obra futebolística permanece até hoje como um
padrão a ser atingido novamente — mas nenhum outro jogador do
planeta sequer esteve próximo de superar a quantidade de marcas
excelentes em todo tipo de competição e por um prazo tão longo.
Tom Jobim
★ Rio de Janeiro, 1927 † Nova York, Estados Unidos, 1994
OPORTUNIDADES GLOBAIS
BRASIL NA TELA
Com grande experiência na indústria cultural e obsessão pelos
detalhes, ele cria um padrão brasileiro de programação televisiva.
UNIVERSALISMO TROPICALISTA
Fusão, multiplicidade de fontes, alegria, reinvenção, justaposição:
procedimentos de uma arte local e universal, ao modo
antropofágico.
PALAVRA DE ÍNDIO
Com um gravador, ele fixa a palavra inconstante do homem
urbano, inova no diálogo entre seu povo e o poder — e chega ao
Congresso Nacional.
Nasce numa aldeia Xavante de Mato Grosso. Cresce num grupo que tinha
conseguido se manter isolado no ambiente nativo das florestas tropicais.
Filho do cacique, herda a posição de liderança eleita num momento de
transformação radical. Quando tem 17 anos, vê um brasileiro pela primeira
vez: a frente de ocupação agrícola chegara ao território no qual o grupo
vive.
Responsável por tentar cuidar da sobrevivência de todos, implanta
depressa as estratégias possíveis: aprende português, descobre que as
decisões relevantes para seu grupo são agora tomadas num lugar
chamado Brasília, começa a viajar para lá e a tentar negociar.
Emprega inicialmente o método de sua cultura, aquele da palavra
empenhada. Demora pouco tempo para descobrir que a palavra dos
burocratas com quem dialogava vale muito pouco — e ele tem pouco
domínio da escrita, das leis e dos regulamentos nos quais esses burocratas
se escudam para dizer uma coisa a cada dia.
Reage com tecnologia. Compra um pequeno gravador, passa a
registrar nele todas as propostas que recebe das autoridades. Mostra a
palavra dos governantes para seu povo, cobra as promessas gravadas das
demais autoridades. Descobre a imprensa e passa a empregar contatos
com jornalistas para mostrar suas gravações e reforçar sua reinvindicação
pela terra.
Ganha notoriedade num momento especial: as oposições ao regime
militar avançam. Em 1982 o antropólogo Darcy Ribeiro, que conhece
Juruna, é candidato a vice-governador de Leonel Brizola no Rio de Janeiro.
A candidatura é relativamente marginal e faltam voluntários para disputar
cargos proporcionais. Juruna aceita um convite e vai fazer campanha.
Recebe 31 mil votos dos eleitores cariocas e torna-se o primeiro índio a
ser eleito para o Parlamento brasileiro — depois de quase cinco séculos
nos quais os diversos povos da floresta tropical, com destaque para os
Tupi, sustentam a formação do território e da nação.
Mário Juruna tem uma atuação relevante, criando uma Comissão
Permanente no Congresso Nacional para lidar com a questão indígena.
Mesmo sem conseguir se reeleger, continua atuando num momento em
que acontece uma grande reversão no tratamento nacional da questão,
com o início da demarcação de terras para os diversos povos.
Graças a essa mudança, vai cessando lentamente o antigo cenário de
massacres que dizimaram a maioria das 180 etnias que havia no Brasil e
começa uma tendência de crescimento das populações.
Juruna passa a dividir seu tempo entre o grupo que chefia e Brasília,
tornando-se um ativo interlocutor entre as culturas nas quais foi obrigado
a trafegar. Morre de diabetes em 2002.
Ulysses Guimarães
★ Rio Claro, 1916 † Angra dos Reis, 1992
DEMOCRATA
Líder da oposição durante o regime militar, forma um partido
nacional e comanda a transição para a democracia.
Em 1947, elege-se pela primeira vez deputado estadual pelo Partido Social
Democrático (PSD) em São Paulo. Sua carreira política, portanto, coincide
com o período de redemocratização pós-1945. Progride rapidamente no
PSD, o partido que reunia os grandes beneficiados com cargos estatais
durante a ditadura do Estado Novo.
Quatro anos depois, é eleito deputado federal — e seria reeleito para
mandatos sucessivos como representante da população de São Paulo até
1990. Participa de todos os movimentos importantes da política nacional.
É parlamentar da situação durante as presidências de Getúlio Vargas,
Juscelino Kubitschek e João Goulart.
Em 1965 o regime militar promulga um ato pelo qual os antigos
partidos políticos são extintos e dois novos eram criados: a Arena, para
apoiar o regime militar, e o MDB, para reunir os opositores ao regime.
Enquanto a maioria de seus colegas de agremiação adere ao governo,
Ulysses vai para a oposição.
No auge das arbitrariedades e do prestígio do regime, ele se torna
líder de um partido que tinha pouco mais de 10% dos parlamentares. Em
1973 lança-se como anticandidato à presidência da República, apenas para
denunciar a ditadura. Nos anos seguintes recebe um tratamento duro:
censurado na imprensa, perseguido quando vai falar.
Consegue organizar o partido, que obtém sua primeira grande vitória
nas eleições parlamentares de 1974. Ainda assim a oposição fica longe do
poder executivo, totalmente tomado por indicados pelos ditadores. Em
1978 Ulysses é recebido em Salvador por tropas armadas e cães atiçados
contra ele. Responde com uma frase: “Baioneta não é voto, cachorro não é
urna.”
Com o fim do regime militar, torna-se fiador do governo de José
Sarney, presidente do Congresso e grande articulador do texto da
Constituição de 1988. Consegue impor sua visão, resumida numa frase do
discurso realizado no dia da promulgação: “Tenho ódio e nojo das
ditaduras.”
Por conta desse sentimento e pensando em garantir a sociedade
contra o governo, a constituição, embora democrática, mantém a
legislação herdada da ditadura e amplia ainda mais as capacidades do
governo central para operar como dique entre o mundo externo e a
sociedade interna.
O mundo corria na direção oposta: em 1989, o Muro de Berlim foi
derrubado e as diferenças ideológicas da Guerra Fria ruíram. Nesse
mesmo ano, Ulysses Guimarães é novamente candidato a presidente da
República, apresentando o tradicional programa populista de resolver
problemas com favores do governo central. Termina num modestíssimo
sétimo lugar no primeiro turno, com 4,7% dos votos. Reeleito deputado
federal no ano seguinte, morre logo depois num acidente aéreo.
Fernando Henrique Cardoso
★ Rio de Janeiro, 1931
OPERÁRIO E PRESIDENTE
Luta para chegar ao poder, aposta contra a globalização, entrega
com popularidade o cargo — mas indícios de corrupção levam a
reavaliar seu papel.
ATRIZ
Começando de baixo na indústria cultural, estrutura uma carreira
no teatro e faz todos os tipos de papel, de figuras populares a
clássicos milenares.
Está tudo uma bagunça a meu redor. Bem feito! Quem mandou mudar de
escritório? É a crise obrigando. A rede de computadores funciona aos
pulinhos, os livros espalhados pelas salas tornam cada busca uma tortura.
Toca o celular bem naquela horinha que os filhos, Violeta ou Júlio, às
vezes ligam. Esperançoso, olho para a tela. Mas não. Pânico: é tia Odete.
Danou. Desta vez não escapo!
Vou ter de explicar que tio Zé não é um dos 101.
Mas uma coisa de cada vez. Quem trabalhou comigo nas últimas
décadas sabe. A cada momento pode surgir a pergunta terrível: será que
tia Odete vai entender? Por causa dela, trechos trabalhados são reescritos
quando não respondem à pergunta essencial.
Ah sim. Falta apresentá-la formalmente. Ela se chama Odete Pires do
Rio Vieira de Mello, tem 91 anos e continua tão apaixonada por história
quanto foi sua irmã (Carmen, minha mãe, desde 1979 vivendo com os
ancestrais eternos). É de outra geração, pensa com seus valores. Mas lê
meus livros com seu ar maternal, sem nada de teorias ou quejandos.
Por isso me importo. Sei que ela vai ler. E este livro daria uma grande
oportunidade para deixá-la muito satisfeita — caso incluísse tio Zé entre
os escolhidos.
Há anos pesquiso sobre José Pires do Rio. Sei que o pai dele, Rodrigo
Pires do Rio, veio menino de Portugal para Parati, na década de 1850. O
patrão era um tio, José Pires do Rio. O menino deu duro: ia num navio
deste tio levar café para o Rio de Janeiro, carregava para o Nordeste,
recarregava com sal no Rio Grande no Norte. Quando batia de volta em
Parati punha o sal nas bruacas, as bruacas nas mulas, partia para o vale do
Paraíba, ia vendendo as cargas e comprando café, voltava para Parati,
prestava contas e recomeçava o ciclo.
Foi assim até 1877, quando a Ferrovia do Norte chegou a
Guaratinguetá. Morreu o negócio, o tio ficou na Parati dormente no
tempo. Aos 36 anos, Rodrigo mudou de vida: trocou 24 burros montados
por uma fazenda de café cuja varanda dava bem de frente para a capelinha
de Nossa Senhora Aparecida. Casou e em 1880 teve seu primeiro filho,
justamente o tio Zé — nome dado em homenagem ao pioneiro.
A vida dele vale uma história. Estudou Farmácia e Engenharia de
minas em Ouro Preto, ganhou um prêmio de viagem para a Europa.
Voltou para o Rio de Janeiro na virada para o século XX, foi trabalhar nas
obras do porto. Descobriu uma vocação errante. Trabalhou em minas de
carvão em Santa Catarina; supervisionou a Estrada de Ferro Madeira-
Mamoré e uma ferrovia em Goiás; deu aulas de Engenharia em Salvador;
percorreu todo o sertão nordestino de mula para achar os pontos nos
quais era possível construir açudes (e ajudou a construir Orós, o primeiro
deles). As noites nos canteiros de obras deviam ser longas: herdei a
Enciclopédia Britânica, edição de 1911, inteiramente lida e anotada a lápis
por ele.
Nos anos 1920 foi tirado dessa vida por Epitácio Pessoa, que o chamou
para ser ministro da Viação. Virou político, foi deputado federal e prefeito
de São Paulo, a partir de 1927. Tinha compreensível obsessão pelo papel
dos técnicos na administração pública e por planejamento.
Resolveu preparar São Paulo para o futuro. Começou as obras de
retificação dos cursos dos rios Tietê e Pinheiros, projetadas por Saturnino
de Brito, que previa um gigantesco parque ecológico de 25 quilômetros de
extensão. Mas apostou também na retificação do plano proposta pelo
engenheiro da prefeitura Prestes Maia, que traçou avenidas marginais para
automóveis no lugar dos parques — e em todas as beiras de rio da cidade.
Deixou a Prefeitura com a Revolução de 1930, já com as primeiras
obras que, para o bem ou para o mal, moldaram a cidade pelo gosto do
automóvel. Ficou desempregado três anos, morando na Vila Itororó (tia
Odete o visitava lá).
Convidado pelo conde Pereira Carneiro, foi dirigir o Jornal do Brasil, no
Rio de Janeiro. Diz a lenda que diagramou o famoso L de classificados na
primeira página. Foi ministro da Fazenda, morreu de cólera em meio a
uma viagem, na Índia.
Era padrinho de Tia Odete, que guarda não apenas sua papelada como
também a de toda a família. Aos pouquinhos, de conta-gotas, desconfiada
de que posso fazer besteira, foi me passando documentos como o
testamento do José Pires do Rio, o tio de Parati, feito em 1889.
Estudei a documentação com grande prazer, tentando reconstruir a
trajetória do herói familiar. Fiz pesquisas, descobri até sua ficha de
funcionário no Departamento de Obras contra a Seca. Mas nunca
consegui chegar até alguns papéis do JB para contar sua vida de jornalista.
Tudo isso passou pela minha cabeça no segundo entre ver o número
de tia Odete na tela do celular e atender. Ia explicar que ainda não foi
dessa vez, mas ela falou antes:
— Jorginho (ela é a única que tem o direito de me tratar assim, por
antiguidade), vou ter uma bisneta, vai se chamar Laura.
A genealogia das mulheres de Santos passou mais depressa que meus
pensamentos sobre o tio Zé: Vovó Catarina (alemã); vovó Clara (filha dela
com o inglês James Porter); vovó Odila (filha dela com o português
Thomaz Souto Corrêa); minha mãe Carmen (filha dela com Rodrigo Pires
do Rio Filho, irmão de tio Zé). E minha primeira mulher, Cynthia (filha de
italianos, de um lado; de norueguês e paraguaia, do outro), mãe da Violeta
(como todas as anteriores, nascida em Santos) e do Júlio, todos sendo
postos pelo fio da vida em geração anterior à da futura santista Laura.
A trama alegre da vida que virá me livrou de explicar o nome fora da
trama dos 101 que fizeram história. Desliguei o telefone, fiquei esperando
a ligação do Júlio ou da Violeta. Voltei ao papel de maior, às voltas com a
bagunça no escritório, a crise brasileira, o passe do idoso com o qual tento
me acostumar à passagem do tempo, os filhos que tocam suas vidas, os
netos (Lúcia, minha atual mulher, divide dois comigo) que um dia poderão
ler a história dos escolhidos para compor a lista possível — sem o tio Zé.
A ligação dos filhos não veio. Saí do escritório em silêncio, fui me
dissolvendo no fluxo da cidade, sonhando em ter equilibrado tudo em
palavras enquanto me despeço de você, amável leitor. Sei que é impossível
realizar o ideal: alguém sempre fica de fora, com minhas desculpas pela
impossibilidade de acertar tudo.
— Jorge Caldeira
Crédito das imagens