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Maria Rodrigues

Salvador (Dom ingas), nascida


em Monte Carmelo - MG, em 26 de
maio de 1940, quarta filha do militar
José Rodrigues e Sabina Rodrigues,
viúva do Cabo Abel Salvador desde
1971. Foi funcionária pública
estadual aposentada em Pedagogia
na Área da Educação.
Desde 1964, exercia suas
atividades mediúnicas no Templo
Espírita “ Casa do Cinza” , em
Uberaba-MG.
Trabalhava em Auxílio ao
Enfermo na Casa Espírita “ Jesus de
Nazareth” , na mesma cidade,
exercendo também a divulgação
doutrinária no Lar Espírita “ Pedro e
Paulo” e em diversas outras
entidades congêneres.
Exerceu, durante 13 anos,
a direção do Departamento Artístico
da União da Mocidade Espírita de
Uberaba, emprestando devotada e
esclarecida contribuição intelectual
às r euni ões liter o - m ú s ico -
doutrinárias mensais.
LIVRARIA ESPÍRITA EDIÇÕES
“ PEDRO E PAULO”

Carlos A. Baccelli
(Domingas)
Revisão gramatical: Fausto De Vito

Arte Final da Capa: Paulo Moran

Projeto Gráfico: VITORIA


1ESÍTORÀ&G^FlCff

FICHA CATALOGRÁFICA
(Preparada na Editora)

Domingas (Espírito).
Eu, Espírito C om um / [pelo espírito] Domingas ;
[psicografado por] Carlos A. Baccelli, - Uberaba, MG :
Livraria Espírita Edições “Pedro e Paulo”, 2006.
256p. ; 14x21 cm.

ISBN 85-88429-27-6

1. Obras psicografadas. 2. Espiritismo


I. Baccelli, Carlos A. II. Título
CDD-133.93

Copyright 2006 by ©
LIVRARIA ESPÍRITA EDIÇÕES “PEDRO E PAULO”
Avenida Elias Cruvinel, 1202 - Bairro Boa Vista
Telefax (0xx34) 3322-4873 - 38070-100 - Uberaba, MG
E-mail: leepp@terra.com.br - www.leepp.com.br

O s direitos autorais deste livro foram doados às obras assistenciais da Livraria


Espírita E d içõ es “Pedro e P a u lo ”, U beraba-M G .

39 Edição - Do 11Q ao 139 milheiro


Novembro/2011

Impresso no Brasil
P rinted in B razil
Logo que se reconheceu no M undo Espiritual, nossa
irmã Domingas - M a ria Rodrigues Salvador recém-
liberta do corpo físico, após cumprir laboriosa existência
na Terra, servindo com denodo à causa da Doutrina Espírita
por cerca de quatro décadas, solicitou-nos permissão para,
tanto quanto possível, continuar fazendo sentir-se junto
aos companheiros de Ideal, dos quais, obviamente, não
desejaria ter-se afastado.
E sta n d o a in d a em c o nvalescen ça, com a
espontaneidade que lhe é característica, indagou-nos
oportunamente:— “ Seria viável a um espírito comum como
eu algo escrever, através dos canais da mediunidade, dando
n o tíc ia s de m in h a chegada ao A lé m aos am igos
saudosos?” .
D a í, sob a tutela de diversos Benfeitores, ter nascido
este liv ro que ora fazem os v ir a lum e, esperando que ele
seja de real p roveito para os estudiosos das diferentes
facetas da V id a , que prossegue, sem alteração, para além
das fronteiras do tú m u lo .

C ontando com a condescendência dos estimados


leitores que se dignarem de perpassar os olhos sobre estas
páginas singelas, rogamos ao Senhor fortaleça nossa irmã
D om ingas, a fim de que ela continue a inspirar-nos com
seus exem plos de boa vontade e amor ao trabalho, no
melhor aproveitamento do tempo que nos é concedido para
servir-mos aos propósitos Daquele a quem tudo devemos!

U b e ra b a -M G , 17 de agosto de 2006.

O dilon Fernandes
ín d ic e /

1 - Primeiras Palavras.........................................................09
2 - Tomando Consciência.................................................. 15
3 - Entre A m ig o s.................................................................22
4 - Minha M ãe.....................................................................28
5 - Fisioterapia....................................................................34
6 - Pérolas aos Poucos....................................................... 40
7 - Melhorando................................................................... 46
8 - Sabendo M a is ................................................................53
9 - Espíritos Criadores........................................................59
10 - Amor e Evolução......................................................... 65
11 - Com D. Maria M odesto............................................... 71
12 - Outros Esclarecimentos................................................ 77
13 - Coligindo Anotações..................................................... 84
14 - Passeio M a tin a l............................................................ 91
15 - “Tia” Nair e D. Horizonta............................................. 97
1 6 - 0 Caso Benvindo...................................................... 103
1 7 - 0 Espírito é T u d o !.................................................... 109
18 - Passado Obscuro..................................................... 115
19 - M ediunidade............................................................. 12 j
20 - Ainda Mediunidade...................................................... 227
21 - Transcendência.............................................................
22 - Mentalização.................................................................
23 - Doutrinação e Prece................................................... 145
2 4 - 0 S onho..................................................................... 151
2 5 - 0 Primeiro C u lto ..................................................... 157
26 - Recreio Espiritual........................................................163
27 - “ Céu Espírita” ........................................................... 170
28 - “ Cigana” ...................................................................... 176
29 - Na Periferia da Caridade........................................... 182
30 - Conhecendo Labélius................................................. 188
31 - “ O Código Da Vinci” ................................................. 194
32 - Abrindo um Parêntese................................................. 200
33 - Os Elementais............................................................. 206
34 - Graças a Deus!............................................................ 212
35 - Importante Ousadia..................................................... 218
36 - Árvore da Mediunidade.............................................. 224
37 - Rumo ao “Liceu” ........................................................ 230
38 - A Natureza no A lé m .................................................... 236
, 943
39 - Convite Inesperado...................................................
249
40 - Singelo Depoim ento.....................................................
primeiras (Pafavras

De início, peço-lhe desculpas pela minha insistência


em escrever, narrando, por seu intermédio, as minhas
impressões de além-túmulo. Os amigos compreenderão
que ainda estou em estado de convalescença e não exigirão
muito de mim, ansiosa que me encontro por dar seqüência
ao trabalho de que necessito, ou melhor, de que todos
necessitamos. Abençoada Doutrina que não nos permite
ficar por muito tempo na horizontalidade!
Sinceramente, eu tinha certo receio de desencarnar
(não se importe tanto com as palavras, não as escolha
demais), porque temia, não a morte em si, mas a condição
em que haveria de chegar ao Outro Lado da Vida; você
sabe, por mais façamos, a gente nunca faz o que deve, da
maneira como deve... Eu tinha medo, principalmente de
que o meu passado voltasse.
Graças a Deus, assim que cerrei os olhos do corpo
em definitivo e, depois, pude abri-los, um dos primeiros

9
c& a'doS' SÂ. ^ a c c e ííi/ / ^ b o m in g a s '

semblantes que divisei fo i o de nosso caro Dr. Odilon


Fernandes, que me saudou, descontraído:
— Olá, Dom ingas! H á quanto tempo, minha filha!
Não se preocupe, estamos aqui. Tente relaxar e dormir um
pouco; não resista ao sono reparador... Você lutou muito e
precisa se refazer. Velaremos por você. Durma!...
Seria tudo aquilo realidade? Eu queria, aliás, era tudo
o que sempre quis, mas não merecia tanto. Será que, de
fato, havia desencarnado? N ão se tratava de um sonho, de
visões facilitadas pelo meu estado de abatimento? Há
praticamente dois anos, eu vin h a lutando com sérios
problemas de saúde e... Bem , sentindo a destra do Dr.
Odilon pousar sobre a minha fronte, um torpor foi tomando
conta de m im , ao mesmo tempo em que estranha sensação
de leveza me fazia flu ir para fora do corpo - era como se,
de repente, a gravidade tivesse desaparecido para mim.
Custou-me ceder, pois, afinal, eu queria registrar tudo,
conferir a m inha própria experiência de espírito recém-
desencarnado ou ainda em processo de desencarnação,
com as informações da literatura espírita; não - é óbvio -
que duvidasse do relato de diversos companheiros que
nos trouxeram o seu testemunho, mas desejava, por mim
mesma, acompanhar todas as etapas de meu reingresso ao
M u nd o dos Espíritos. Sempre fu i extremamente curiosa e,
antes da desencarnação, pensava que, se me fosse dada
oportunidade, assim que possível, procuraria um médium
- um ou mais de um, tentando estabelecer melhor sintonia.
Compreendam os nossos amigos, os que, porventura,
vierem a correr os olhos sobre estas linhas, que escrevo

10
^§u/, cêsfiíútQ'C
^omum'

sem nenhum a preocupação cronológica com os


acontecimentos. O Dr. Odilon, que continua a me orientar,
me disse: — “M inha filha, não se aflija, para não afligirmos
o médium... Tudo o que você puder alinhavar no papel
será interessante. Escreva como se você estivesse
conversando; nada de idéias rebuscadas...”
Por mais quisesse permanecer no corpo, houve um
instante - uma fração de segundo! - , em que perdi o controle
do pensamento, sim, porque eu monitorava o corpo o tempo
todo, não querendo deixar de me sentir encarnada... A
verdade é que eu não queria partir, pois, se o quisesse,
tivera doenças de sobra para fazê-lo antes. Os Espíritos
têm razão quando nos dizem que um minuto a mais de vida
no corpo físico é uma bênção! As vezes, aquele minuto é
decisivo para a nossa maior conscientização quanto às
realidades que nos esperam no A lé m - quanto mais
morremos sabendo que estamos morrendo, mais haveremos
de viver sabendo que estamos vivendo! Não sei se estou
conseguindo me expressar com clareza; se não, vocês
discutam o assunto entre si e cheguem à conclusão que
desejarem.
Conform e ia lhes dizendo, fo i numa fração de
segundo, num piscar de olhos, que tudo aconteceu... De
repente, eu não estava mais imantada ao corpo - por assim
dizer eu havia me deslocado, perdendo o comando da
situação. Pronto! Não dava para voltar... Determinados
filamentos ainda me jungiam à minha forma - literalmente,
à minha forma - ou à minha representação física, mas o
processo de meu desenlace se fizera irreversível, sem a

11
ci£(vdas' €Á. cfâaccelli / &)amin4as>

m ínim a sensação de dor. Morrer, o ato de morrer, não dói


no corpo, dói na consciência.
N u m átimo (este termo, não sei se é meu ou se é do
médium, porém não im porta), eu me colocara entre as Duas
Vidas; a derradeira coisa que percebi do mundo - graças
a Deus! - fo i a presença de amigos ao redor de meu leito,
orando e m e transm itindo o passe... Com o descrever isto?
D if íc il; agora, não encontro um a im agem a que possa
recorrer... E u me sentia suspensa no ar, transitando de uma
esfera para outra; creio ser este, talvez, o único momento
em que o espírito se vê, ao mesmo tempo, de um lado e de
o u tro ... A lu m in o s id a d e do q u arto do h o sp ita l,
gradativamente, se apagava para m im - tudo na Terra ia
ficando cada ve z mais distante... Quem já viajou de avião,
lembrando-se do m om ento da decolagem, terá uma idéia
do fenômeno que eu experimentava. Curioso: a cada batida
do coração, que claudicava, eu me sentia puxada para
baixo\ Quando respirava, enchendo os pulmões de oxigênio,
ou melhor, um dos pulmões (o outro desapareceu sob a
ação do tum or), o corpo me prendia; quando expirava, ele
me soltava... Por este m otivo, de quem morre, as pessoas
d iz e m que “ e x p iro u ” ; morrer, de fato, é expirar em
d e fin itivo .
Lamentei, sim, a m inha desencarnação, quando - é
claro - pude fazê-lo. Sinceramente, eu queria viver mais
para trabalhar e v ir em melhores condições; espiritualmente,
desencarnei em m inha m elhor fase. Graças a Deus, que foi
assim, porém... N o entanto, pior, m uito pior, se eu tivesse
deixado o corpo numa daquelas crises obsessivas que me

12
^ ia/, ^ s jtm io y <^o m u m '

vitim aram no começo. O Espiritismo ou, por outra, o


Evangelho de Jesus operou em m im uma transformação
extraordinária: deixei de ser um doente crônico, para ser
um doente em recuperação... Tudo devo ao trabalho, ao
esforço, à perseverança. Se tive algum, o mérito que tive
foi o de justamente ter perseverado; nunca pensei em
abandonar nada por causa de melindre, ciumeira, ofensa...
Sentimentos menores que a morte pulveriza! Quanto a gente
se arrepende deter valorizado tantas coisinhasL. O espírita,
em geral, lembrando-me agora de uma colocação do nosso
caro Dr. Inácio Ferreira, é muito bobo ou, para amenizar,
ingênuo, pois perde um tempão danado com querelas e
picuinhas. Ah, quanto estamos iludidos! Meus irmãos, não
se iludam, trabalhem. O trabalho no Bem é a única coisa
que conta, a única coisa que fica! V ig ie m a palavra
invigilante, a insinuação maledicente.
Graças a Deus que, em minha retrospectiva, eu tive
muitas coisas boas de que me lembrar - os meus melhores
momentos no mundo foram os que pude dedicar à Caridade!
A Caridade, nada se compara. F iz palestras, escrevi livros,
incorporei espíritos, mas nada, absolutamente nada nos
proporciona tanta alegria íntima quanto o menor gesto
espontâneo em favor de alguém. Eu trocaria todas as minhas
palestras por mais um prato de sopa que, de minhas mãos,
alguém tivesse recebido! Falarão em caridade moral, tudo
bem, mas é uma questão de foro íntimo. Se há quem
verdadeiramente se contente em apenas falar ou escrever...
Com que objetivo, afinal, falamos ou escrevemos? O
esclarecimento é luz, todavia, até onde posso alcançar,

13
c€s»'ilas' SÁ. cHacceÁÍÀy / ÇôaminciíiS'

ainda há m uita vaidade e personalism o permeando as


nossas iniciativas intelectuais. Positivamente, há menos
vaidade em se visitar um doente ou doar algo de natureza
material a alguém do que assomar a tribuna para uma
conferência ou lançar um livro com sessão de autógrafos.
E o que penso. Se estou errada, me perdoem. Não é o meu
intuito efetuar julgamentos. Cada qual faça o que puder,
como e onde puder.
Eu estava me referindo à chamada visão panorâmica ,
que, sem dúvida, se trata de um fenômeno que transcende
qualquer explicação. O Dr. O d ilo n me disse que, nos
espíritos mais conscientes, os seus contornos são ainda
mais nítidos, com detalhes impressionantes. Com certeza,
de maneira providencial, muitos detalhes do que fiz ou
deixei de fazer me escaparam; se assim posso me expressar,
eu via apenas as imagens paradas, os clichês estampados
em meu cérebro... A h , quem suportaria todas as suas
intenções devassadas! A o invés de uma, a consciência
haveria de nos pesar duas toneladas... Não, eu não quero
saber o que fu i e o que f iz no passado rem oto; as
reminiscências de ontem já me incomodam o suficiente...
Deste Outro Lado, acreditem, o esquecimento do passado
continua sendo uma bênção! E chegar a pensar que, quando
encarnados, a curiosidade em relação ao que fomos é quase
incontrolável... Por isto, quando os questionávamos, os
Espíritos respondiam com evasivas, quando respondiam.
É lógico, reporto-me aos Espíritos com E maiusculo, ou
seja, àqueles que sabem e podem.

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gomando C onsc^ncia

Antes de continuarmos, convém que eu faça uma


ressalva: existem espíritos, que, evidentemente, não sabem
nem de seu próprio passado, quanto mais dos outros! Os
Espíritos, com E maiúsculo, aqueles que nos podem acessar
o inconsciente, nem sempre consideram oportuna qualquer
revelação concernente às nossas vidas anteriores, que, aliás,
nos pertencem e fazem parte de nossa intim idade
indevassável. Os médiuns que ousam vasculhar o pretérito
de alguém, na maioria das vezes, agem por conta própria,
e o que dizem não merece assim tanto crédito, pois muitos,
infelizmente, são movidos por escusos interesses pessoais
que, agora, não vem ao caso comentar.
Retomando a narrativa de meu desenlace (vocês me
perdoem se for repetitiva), digo-lhes que, quando me
encontrava naquela situação, transitando entre uma e outra
dimensão, tive oportunidade de ouvir um diálogo que se
travava a certa distância de mim. Não, o que escutava não

15
c&m ia£t sA. cfà a c c e ili / ^bam ingas'

era fruto de m inha imaginação sobreexcitada: as palavras


soavam com nitidez aos meus ouvidos e, naquele instante,
cheguei a temer sobre a m inha vida, além da morte.
— E ela? - perguntava, irônica, uma voz masculina.
— Sim, é ela - respondia um outro daquele grupo de
três ou quatro entidades que eu não conseguia ver; a minha
impressão era que perm aneciam nas proxim idades, à
espreita, na expectativa de que algo de m im sobrasse para
eles.
— E um a pena - lamentava um terceiro está sob
proteção... E la era nossa, e a perdemos!
— Incom petência de quem agiu antes de nós! -
prosseguiam falando.
— E la fo i nos escapando aos poucos...
— Fizemos a nossa parte; não lhe dávamos trégua,
mas ela não nos dava brecha...
— N em quando se debilitou fisicamente...
— Fizemos o possível!...
E, de fato, haviam feito mesmo. Quantas vezes, ao
saber da presença do tumor em meu organismo, eu estivera
a ponto de vacilar!... Graças a Deus, a ação dos Espíritos
Benfeitores e dos amigos encarnados, que não me deixavam
dia nenhum sem a assistência da oração e do passe, pude
resistir ao assédio daquelas idéias pessimistas, que me
visitavam com freqüência. A minha proteção maior advinha
do trabalho, das tarefas, inclusive mediúnicas, às quais
comparecia me arrastando, literalmente arrastando o meu
corpo pesado e doente. Pensava em Chico Xavier, que,
aos 92 de idade, de saúde extremamente frágil, não faltava

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às reuniões no “ Grupo Espírita da Prece”, sendo que, às
vésperas de sua desencarnação, estivera, num sábado, em
visita aos irmãos carentes da periferia.
O Mundo Espiritual me socorreu de todas as formas
possíveis e imagináveis, só não me livrando do câncer,
que, afinal, era o meu carma. Mesmo assim, desencarnei
em conseqüência dele, mas não por ele... Eu sofrera muito
com a químio e com a radioterapia, nas poucas aplicações
às quais me submeti, e não mais queria me submeter àquele
tipo de tratamento - orava para que, neste sentido, não
tivesse que voltar ao hospital. Fui atendida - sem mérito
algum de m inha parte, reconheço, fu i atendida.
Compreendam, não era por preconceito ou vaidade... A
radioterapia me queimara o esôfago todo e a químio parecia
introduzir uma entidade estranha no meu organismo; o mal-
estar era tão grande, que, sinceram ente, eu teria
desencarnado antes, não tendo aqueles dois anos de forçosa
moratória pela frente.
Faço questão de registrar o fenômeno das vozes, ao
qual me referi, para que ninguém suponha que eu,
Domingas, espírita e médium de muitos anos, freqüentadora
de diversas casas espíritas em Uberaba, tenha merecido
algum privilégio. Os nossos fantasmas do passado, quando
não completamente exorcizados, um dia voltam para nos
atormentar... Se eu, por exemplo, tivesse me curado da
obsessão e da epilepsia, mas não tivesse abraçado a
Doutrina, a história, em seu desfecho, teria sido diferente:
com certeza, aquelas entidades oportunistas teriam me
arrebatado o espírito...

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c€tnlo& s4 . cfâacoeM í / S>am út^a s-

Sei que muitos irmãos e irmãs ficaram como que


meio decepcionados com o meu desenlace, questionando,
em silêncio, a eficácia da terapêutica espiritual do passe -
nos períodos da crise, em que sofria com falta de ar e
insônia, os médiuns iam à minha casa três vezes por dia.
Preciso, no entanto, dizer-lhes que os espíritos que nos
perseguem, nossos adversários de outrora, se valem de
todas as circunstâncias para nos inocularem “nas veias” o
veneno da descrença... Não, eu fui muito bem assistida, e
nada, absolutamente nada me faltou. Sou imensamente grata
a todos e, se desencarnei, é porque meu tempo havia, sim,
expirado! Vejam comigo: pude editar as obras que havia
psicografado e organizar as atividades que começamos no
“ Jesus de Nazaré” , deixando o grupo estruturado e coeso.
O Dr. O dilon Fernandes não me faltou, o Dr. R u d o lf von
M ü ller e tantos outros amigos da Vida M a ior que eu sequer
conseguiria nomear! E m parte, não o faço por me sentir
envergonhada, pois, com toda a sinceridade, eu não merecia
e não mereço nada do que recebi e venho recebendo. Sinto-
me e ndivid ad a e com a responsabilidade de m elhor
corresponder ao carinho com que todos me cercaram.
Vocês sabem quem está sendo meu enfermeiro deste
Outro Lado da Vida? O Abel, o Abel Salvador, meu marido!
Não, eu não tenho palavras para descrever a emoção que
experimentei, quando, depois de muitos anos, pude vê-lo
ao meu lado: jovem , robusto, simpático e, o que é mais
importante, sem estar embriagado. Ele me sorriu e eu lhe
disse:

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^SfiwMa’C&omunv

— A b e l, mas eu estou tão descomposta, tão


desajeitada...
— Você pensa que está assim - respondeu-me.
— Eu não esperava encontrá-lo tão bem...
— Devo isto a você, pois, mesmo depois de morto,
você continuou a me doutrinar... Graças a Deus e a você,
deixei de beber!
Ainda enfraquecida, a minha voz não saía; os efeitos,
as seqüelas da enfermidade que me acometera, com tantas
complicações, permaneciam comigo.
— Abel - perguntei, tentando manter o bom humor - ,
será que desencarnei mesmo? Foi rápido demais!...
— Qual a razão da dúvida? - questionou-me.
— E que eu posso estar apenas vendo o seu espírito...
Você se esqueceu de que sou médium ou, pelo menos,
era?
— Mas, pela vidência, você nunca me viu assim com
tanta nitidez...
— E verdade - redargúi - , principalmente tão jovem
e tão bonito, ao ponto de já me deixar com ciúmes...
Antes que me esqueça (são tantas as informações
que desejo transmitir!), preciso dizer que é muito comum
ao recém-desencamado, mesmo tendo sido ele espírita, a
incerteza quanto à sua nova situação, de vez que, a rigor,
de início, muito pouca coisa muda na vida de além-túmulo:
a mudança brusca deixaria em estado de perturbação o
espírito não convenientemente preparado para ela. Por este
motivo, por enquanto, para salvaguardar o meu equilíbrio,

19
c€xt'tlo& sA . cí% a c o M i / ^Jòamiruia&

sem saber se vou descer ou subir, estou por aqui... Espero


que entendam.
Im ag ine m o s, para m e lh o r entender o que estou
dizendo, que alguém nos seqüestre e nos dê um sonífero:
acordamos completamente desnorteados, sem qualquer
noção de espaço e de tem po... A o abrirmos os olhos,
haveremos de nos indagar: Onde estamos? Que dia é hoje?
Que lugar é este? Lem bro-m e de que, certa vez, após ter
dormido profundamente, numa tarde, despertei, tendo que
olhar no calendário para conferir a data e, assim mesmo,
tive que confirm á-la com uma de minhas irmãs. A gente se
o rie n ta p o r certos p o n to s de re fe rê n c ia , quando
momentaneamente os perde...
Agora, somente agora, é que compreendo melhor a
fin a lid a d e ou u m a das fin a lid a d e s da re u n iã o de
desobsessão, que, para m u ito s e sp írito s que a ela
comparecem, são autênticas sessões de reorientação
espacial. A ssim como os homens têm dificuldade para se
aceitarem na condição de espíritos reencamados, nós, os
homens fora do corpo, relutamos em adm itir a própria
desencarnação. N em todos os que morrem acompanham,
ou aceitam, as evidências oriundas de seu velório, féretro
e sepultamento.
Por saber que estava m al e com câncer, não me foi
tão d ifíc il concluir pela realidade. D o ponto de vista
espiritual, é m elhor que a desencarnação nos chegue de
maneira gradativa, a fim de que, através do pensamento,
nos antecipemos à chegada da morte para o coipo. Ninguém

20
gosta de sofrer; eu também nao gostava e nâo gosto, mas
o sofrimento, sem contradita, tem as suas vantagens.
Espero estar sendo suficientemente clara e que vocês
possam me reconhecer nestas palavras, que, como médium,
eu estava longe de supor que ao espírito comunicante fosse
tão complexo transmitir.
(Entre y^miflos

— Dr. O d ilo n — disse eu ao dileto amigo, assim que


melhor pude me expressar —, sinto-me cansada, com falta
de ar... Por que, se desencarnei?
— É assim mesmo, m inha filha - respondeu-me em
tom p a te rn a l durante a lg u m tem po, sofrem os as
consequências dos desgastes do corpo... Não se preocupe.
A tendência agora é de melhora a cada dia. A gente leva
algum tempo para desencarnar a mente...
— S ig n ific a que o meu perispírito também está
doente? - perguntei um tanto ofegante.
— N ão mais... Você está íntegra, mas, é claro, será
convenientemente examinada e, se necessário, medicada.
— Q u e r d ize r que trazem os para cá as nossas
enfermidades?
— Habitualmente, trazemos, mais na cabeça que no
corpo...
— Esta falta de ar me incomoda...

22
<=ê>lA/, ^SfíÚUlQy^Omum/

— Am anhã começaremos com sessões de


fisioterapia.
— Fisioterapia?! - exclamei, surpresa.
— Exercícios respiratórios, D om ingas; temos
profissionais muito competentes...
— Estou com sede e fome... Nos últimos dias, nada
me parava no estômago; até mesmo água, eu tinha que
beber em pequenas quantidades...
— Você se alimentará.
— Que coisa! Onde é que eu estou?
— Num dos hospitais do Mundo Espiritual; a vida,
literalmente, continua... O xerox de tudo está lá embaixo,
na Terra!
— Que cidade é esta, se é que estou em alguma
cidade?
— Uberaba - residimos em Uberaba e adjacências...
— Uma Uberaba no Além?!...
— Ora, você sabia disto...
— Sabia, mas...
— Não pensava que fosse exatamente assim, não é?
- observou, auxiliando Abel a me ajeitar as almofadas à
guisa de travesseiros.
— O corpo inteiro me dói - reclamei, gemendo com
a discrição possível. — Eu tinha esperança de...
— ...sair do corpo volitando!
— Mais ou menos - respondi, feliz por dentro e
péssima por fora. — Que alegria, a constatação da realidade
espiritual! Não estarei sonhando? Temo acordar e verificar
que é fruto da minha imaginação...

23
SÂ . cfà a c c M i/ / <
S b o m in (ía &

— Você já teve um sonho assim tão nítido?


— Não e nem tão longo...
— Há quantos dias desencarnei?
Abel, adiantando-se, esclareceu:
— Há exatamente duas semanas...
— Ainda sinto sobre m im o meu corpo macilento; é
uma sensação estranha... Quando poderei me levantar?
— Por enquanto, não lhe convém semelhante esforço
- advertiu-me o companheiro, que, agora, eu nem sabia
mais o que era meu: se esposo ou irmão.
— Abel, o seu livro... - tentei explicar.
— M eu, não, o nosso; sozinho, eu não teria escrito
uma linha... Estou estudando, Domingas! Você sabe, eu
era quase analfabeto... O Dr. Odilon é que me ajudou a
escrever “ O Despertar de um Alcoólatra5’.
— Eu não queria ter desencarnado ainda...
— Com raríssimas exceções, m inha filha, todos
deixamos o corpo antes da hora... E preciso que se tenha
mérito para que se viva no corpo longamente. Abusamos
muito e...
— Quer dizer que eu?... E o meu carma?
— Digamos que tenha sido antecipado em 10, 15
anos!
— O quê?!...
— Não se assuste; eu também tive o meu antecipado
- pelo cigarro!
— Eu também! - disse, com o indicador da mão
direita para cima, o nosso caro Dr. Inácio Ferreira. —
Estou convencido de que o cigarro me tirou mais de 10
anos...

24
c<c>w, <=èspMÁio/<:^amam/

— Eu nunca fumei...
— Mas, nos bons tempos, chegou a pesar quase uma
tonelada! - gracejou o admirável companheiro de tantas
lides no Sanatório.
Foi a primeira vez que sorri, depois de morta, a
saculejar-me toda.
— Cuidado, que você me quebra a cama, Domingas...
— Doutor, vim parar no seu hospital - no hospital
dos médiuns loucos?...
— Uns mais, outros menos, mas todos igualmente
loucos, inclusive os médicos e os enfermeiros. O único
sadio aqui é o Odilon...
— Doutor, que alegria - disse, apertando-lhe a mão
de encontro ao peito sempre tive pelo senhor um carinho
muito grande...
— Epa! Declaração de amor na frente de seu marido!
Por favor, não me comprometa...
— O Dr. Inácio, Domingas... - começou a explicar o
Dr. Odilon, participando da descontração.
— O tiro me saiu pela culatra!
— ...depois que vem escrevendo para a Terra,
arranjou uma legião de admiradoras.
— Quase todas da 3.a ou da 4.a idade; todo dia chega
uma aí me procurando... O hospital está entupido de gente
- até quem nunca foi médium quer vir para cá. Não sei
mais o que fazer...
— O nosso caro Irmão José já disse ao senhor...
— É, vou ter que abrir filiais; estou recrutando gente...
Você trate de melhorar logo, minha irmã. Meu Deus, antes

25
'Oadafr s4. ^ZacceUí /

eu tivesse ficado quieto, com aqueles livrinhos no mundo


que mais ninguém lê!... Fui inventar moda...
— Que livros fantásticos, D ou to r! (Engraçado,
conversando daquele jeito, com aquela alegria espontânea,
eu me esquecera completamente da falta de ar!)
— Exagero seu.
— O senhor me permite uma pergunta?
— Até mais de uma...
— Aquilo é tudo verdade, Doutor?
O Dr. Odilon não se conteve e, por instantes, tive a
impressão de vê-lo, de novo, à porta da “ Casa do Cinza”,
ao término de uma de nossas inesquecíveis reuniões, com
aquele seu sorriso contagiante.
— O que devo responder para a sua pupila, Odilon?
— A pergunta, Inácio, não foi endereçada a mim -
esquivou-se o querido Instrutor.
— Pois muito bem: levando em consideração que
você se encontra em estado de convalescença, adiarei o
meu puxão de orelha, apertando apenas as suas bochechas
- disse, pressionando-me o rosto, de ambos os lados,
suavemente.
Neste ínterim, adentrando o amplo e arejado quarto,
aproximou-se um senhor elegante, vestido com sobriedade,
acompanhado por uma jovem senhora, que, pegando as
minhas mãos entre as suas, me perguntou:
— Não está nos reconhecendo, minha irmã?
— Desculpem-me, mas... -respondi, solicitando com
os olhos que o Dr. Odilon me socorresse a memória falha.
— Esta é a nossa M aria Modesto Cravo, Domingas,
e este é o Manoel Roberto da Silva!

26
^U/, ^s-pJAÍlO'C€Àxmunv

— Viemos trazer a sua primeira refeição - explicou


o devotado amigo do Dr. Inácio, pedindo ao Abel que o
auxiliasse com pequena bandeja.
— Um saboroso “ caldo reconfortante” ! - enfatizou
D. Modesta, como a prefere chamar o Dr. Inácio e como,
doravante, a chamaremos também. — Sabemos que você
aprecia muito um pedaço de carne, mas aqui é só um
caldinho...
— Que alegria tê-los!... A senhora - frisei - é a minha
primeira visita feminina. Manoel Roberto, que prazer! Eu
não me lembrava mais de seu semblante...
— E, depois que morreu, ele acabou m u ito -
aparteou o Dr. Inácio, não perdendo oportunidade de
esculhambar com o amigo.
— Doutor, na “ Casa do Cinza” a gente tinha medo
do senhor, porque o Dr. Odilon nos dizia assim: — “ Se
vocês não se disciplinarem e não trabalharem, o Sanatório
fica perto - médium é aqui ou lá!” Às grades do Sanatório,
eu preferia as da “ Casa do Cinza” ...
— E assim mesmo terminou vindo, não é, minha irmã?
Demorou, mas veio...
— De fato! - exclamei, tomando a primeira colherada
de alimento depois de não sei quantos dias sem comer,
não experimentando nenhuma espécie de enjôo que me
fizesse regurgitar.
— Que delícia! De que é feito?
— Em essência - respondeu-me D. Modesta, pondo
em minha boca uma segunda porção - , é sopa de centro
espírita...

27
ÇAQtiFia

No outro dia (força de expressão, figura literária, já


que não posso precisar por quanto tempo tomei a dormir,
após ter me alimentado pela primeira vez), sentindo-me
bem mais disposta, a respiração um tanto mais tranqüila,
quase sem nenhuma dor pelo corpo, A b e l anunciou,
sorridente:
— A sua segunda visita feminina, Domingas.
— Mamãe! - exclamei ao vê-la com a sua aura de
bondade, caminhando em minha direção, abraçando-me
no leito.
— Que saudade, minha filha! Eu estava tão aflita por
você... Graças a Deus! Vamos, conte-me tudo...
— Conte-me a senhora-redargüi, observando quanto
ela havia rejuvenescido. — E o papai?...
— Está tudo bem, não se preocupe, afinal estamos
todos “ sãos e salvos” ... Você tinha razão! O Espiritismo é

28
^Sf2MÀlO'<:&QmunV

uma grande verdade... E as suas irmãs, seus irmãos? Que


notícias que você me dá?...
— A senhora não sabe deles?
— Não, com detalhes; não é sempre que podia ir ao
encontro de vocês... Mantinha-me relativamente informada,
mas...
— Compreendo.
— Quando soube que você estava para voltar,
solicitei permissão para ir vê-la, e o nosso Dr. R u d o lf me
acompanhou. Pude estar com você apenas duas vezes, a
primeira delas quando começou a fazer quimioterapia...
— E a segunda?
— Você se lembra, filha, quando fo i acometida por
forte falta de ar, certa noite?
— Sim, pensei que a minha hora havia chegado...
— E teria mesmo, mas o Dr. Rudolf, observando a
sua aflição e desespero, me pediu que eu a abraçasse, que
me jungisse ao m áxim o ao seu espírito, enquanto ele
providenciava para que as batidas de seu coração se
regularizassem... Embora consciente de tudo, vendo-a
naquela situação, fiquei apavorada. Ele, o Dr. Rudolf, orava
em voz alta, enquanto agia, de olhos postos no Céu:
— Não, ainda não é hora... Senhor, não consinta que
seja agora!... A nossa irmã precisa um pouco mais de
tempo... Concede-lhe, Senhor, concede-lhe!...
— Como dei trabalho a todos vocês - lamentei,
entristecida.
— Desde então, filha, os nossos Mentores acharam
melhor, inclusive o Dr. Odilon, que eu a esperasse; foi

29
C€cvda&' s4 . cfàacaMÀ// Oíornàuias'

d if íc il para m im , p o rqu e tin h a receio que você se


desesperasse, não sei...
— Não, mamãe, graças a Deus, nunca nada de ruim
me passou pela cabeça e, no fundo, eu alimentava, sim, a
esperança de v iv e r um pouco mais - aproveitar o meu
tempo no corpo um pouco mais. A senhora se lembra de
que, desde pequena, eu imaginava que fosse desencarnar
aos 64 de idade?...
— Você, ainda menina, chegava a escrever no chão,
a carvão, os números 6 e 4...
— Passei um pouquinho, não é?
— M as, e os seus irmãos, conte-me, estou ansiosa...
— Estão bem, no entanto, estão na mesma; falta de
insistir com um e com outro, não foi... Pelo menos, pararam
de implicar comigo, com as minhas manias, com as minhas
idéias espíritas... Nos quase dois anos em que estive doente,
eles lucraram muito, espiritualmente; acho que nunca viram
tanta rezação em casa e tanta solidariedade dos amigos.
— Filha, você me perdoe...
— U m a filh a não tem absolutamente nada o que
perdoar em sua mãe! A o contrário, a senhora é que me
desculpe certa intolerância - amadureci m uito devagar...
— Se uma filh a nada tem a perdoar em sua mãe,
m uito menos uma mãe a perdoar em sua filha!
Abraçamo-nos, comovidas, e insisti, perguntando:
— E o papai? A senhora ainda não me respondeu...
— O seu pai, mais tarde, virá vê-la; de quando em
quando, nos encontramos. E le está se preparando...
— Se preparando para quê?

30
c§u/, ^spMÃÍO/c^atnum/

— Você sabe, para aqueles que, depois da morte,


não encontram o Céu, nem o Inferno, não resta alternativa...
— Quer dizer que a senhora já aceita a Reencamação?
— Filha, confesso a você que a minha cabeça ainda
vacila. Tenho participado de algumas conferências... N ão
sei; por m im mesma, ainda não cheguei a qualquer
conclusão. Voltar ao mundo, sinceramente, não é uma idéia
que me agrada - continuar sofrendo, começar tudo de novo,
criar família, lutar com dificuldades, esquecer, como dizem
que a gente esquece... Mas, afinal, onde estou? Isto aqui
não pode ser o Purgatório!
— A vida - a senhora se lembra do que o Dr. O dilon
nos dizia? - , continua com naturalidade...
— Não é possível que milhões e milhões de adeptos
de outras religiões estejam enganados... É um absurdo!
Trata-se, na minha opinião, de uma das maiores distorções,
deliberadamente provocada nas mentes humanas.
— Concordo. Não pense que, mesmo para nós, os
espíritas, seja fácil pensar de maneira diferente do que,
milenarmente, temos sido ensinados a pensar.
— Domingas, na companhia de amizades que fiz aqui,
há pouco estive numa cidade que é um santuário...
— U m santuário?...
— Sim , como a cidade de Aparecida do Norte.
Visitamos uma basílica enorme, onde verdadeira multidão
se aglomerava, orando, cantando, como a gente costumava
ver na televisão...
— Que coisa complicada!
— O que vocês chamam de M u n d o Espiritual é
constituído de diversos mundos.

31
cQaila&> s 4 . cfô a c c e lti'/ Çbom im aS'

— Isto, mais ou menos, eu sei.


— O Dr. Odilon, nosso amigo, me explicou, por alto,
que os espíritos que se assemelham pela forma de pensar
se atraem, constituindo verdadeiras comunidades; e mais,
que, assim reunidos, pela força do pensamento eles
plasmam o mundo em que desejam viver... Então, eu fico
imaginando...
— O quê?...
— Com quem está a Verdade?
— Posso dizer à senhora o seguinte: estou chegando
agora e não sei praticamente nada, mas uma única coisa
sempre é certeza e sobre ela não discuto - o Cristo é a
Verdade! Quanto ao resto, a gente pode até conversar e
terá muito pano para mangas...
Notando que m inha mãe ensimesmara, procurei
mudar um pouco de assunto.
— O que está achando de m im ? - perguntei, passando
a mão nos cabelos e olhando os músculos flácidos dos
braços.
— Emagreceu um pouco; você está bem, mas ainda
há de ficar melhor... Não se preocupe. Quando deixei o
corpo...
— Quando desencarnou...
— E... faleci, desencarnei, morrí... Eu não vim para
este hospital. D orm i m uito mais do que você...
— A senhora me mandou uma mensagem no “Pedro
e Paulo” ...
— Não sei como aquilo aconteceu. O Dr. Odilon me
levou até lá, me colocou perto de um rapaz que estava
escrevendo...

32
C(oiA/, ^SflúiM&^êomiwp

— O Carlos, esposo da Márcia, filha do Prof. José


Thomaz e de D. Therezinha, vizinhos nossos de muitos
anos...
— Sim, conheço o Prof. José Thom az, filh o do
Joaquim Cassiano.
— Então, ia dizendo, pegou a mão dele e escreveu?...
— Não, não foi assim. O Dr. Odilon me pediu apenas
que eu pensasse com força sobre o que eu gostaria de
dizer a você e aos seus irmãos; foi o que fiz, sem maior
noção do que estava acontecendo...
— Fiquei muito feliz com as notícias da senhora.
— Domingas, a Vida para m im cada vez mais é um
m istério... Q uando com eço a pensar, a querer me
aprofundar, fico com a cabeça cansada.
— Então, não pense, mamãe.
— Prefiro as minhas costuras e, para dizer a verdade,
não querendo ofender você, até os meus terços: é mais
fácil, mais simples...
— Eu não vejo a hora de me levantar daqui.
— Sem ordem médica?...
— Não estou agüentando mais esta cama; preciso
trabalhar...
— Fazer o quê, minha filha?
— Qualquer coisa. Chega de ser tão paparicada...
Estou perdendo m u ito tem p o! Isto v a i acabar me
acostumando mal.

33
fisioterapia

Quando m inha mãe se retirou, ainda sonolenta e


cansada, alternando estados de euforia e certa tristeza,
adormeci. Eu não conseguia desligar o pensamento das
coisas, dos amigos e das tarefas que havia deixado.
O espírito na m inh a condição dorme e também
sonha... Cerrando as pálpebras que me pesavam, vi-me
com o se estivesse a vagar pelos caminhos da Terra,
percorrendo a mesma trajetória de quase sempre: “Casa
do C inza” , Lar “ Pedro e Paulo” , “ Jesus de Nazaré” , Centro
Espírita “ Uberabense” , Lar dos Velhinhos “ Bezerra de
M e n e ze s” ... E m m inha mente, amigos mortos e vivos
desfilavam, silenciosos, sem que eu pudesse trocar com
eles qualquer palavra.
Será que aquelas imagens percebidas por m im eram
fruto da m inha mente ou, de fato, eu saía de meu corpo
espiritual, voltando ao mundo a procurar os ambientes entre
os quais me movimentara pela maior parte da existência?

34
<^§u>, ^s-pÁ/ilto; c^amufn/

— M eu Deus - monologava será que desencarnei


mesmo?! Quem sabe?... Eu estou tão fraca!... Talvez eu
esteja sendo vítim a de uma ilusão. O meu cérebro pode
ter sido afetado pelo tumor...
E cam inhava, c a m in h a va , com o um n á u fra g o
bracejando contra a correnteza.
Acordei ensopada de suor, com o A bel a me observar,
sereno.
— Está tudo bem, acalme-se - disse-me, enxugando-
me o rosto com uma toalha.
— Eu estava sonhando antes ou estou sonhando
agora? - perguntei, sentindo-me estranhamente mais leve,
tão leve ao ponto de quase flutuar da cama.
— Antes, Domingas... É assim mesmo. Com você,
ainda é sonho; comigo era pesadelo...
— Falta de avisar, não fo i, A b e l! - contrariada,
repreendi-o, uma vez mais, pelo passado.
— Eu sei, eu sei - redargüiu, humilde, abaixando a
cabeça.
— Perdoe-me - solicitei - , eu não quis magoá-lo; é
que me sinto assim tão vazia... N o fundo, eu tinha esperança
de desencarnar uma pessoa m elhor; im aginava que,
largando o corpo, esqueceria tudo... Como é difícil!
— Considere-se privilegiada...
— Por quê? - perguntei, ingênua.
— Ora, você sabe; a sua recuperação, segundo ouvi
do próprio Dr. Odilon, em conversa com o Dr. Inácio, vem
sendo das mais rápidas.
— Mas - insisti - , se eu já estou morta, por que não
posso me levantar? Admito, fisicamente, ou sei lá o quê,

35
rEazia& s 4 . ^ a c c e U l/ (3b am im as'

sinto-me melhor: não tenho dores, no entanto estou fraca...


Será que é falta de me alimentar de forma conveniente?
Por favor, um copo d’água, do tamanho desses que são
utilizados nas salas de passes.
— Não - brinquei, após sorvê-la, buscando retomar
o bom humor - , não quero água fluidificada. Eu quero é
água mesmo, para m atar a sede; do je ito que estou
desidratada,...
— Você desidratou o corpo inteiro, Domingas!
— ...eu bebo um litro! - completei, sem, no momento,
conseguir atinar com a inteligente observação.
— Bem - indagou-me - , você está preparada?
— Para quê?...
— Para as sessões de fisioterapia.
— Vou precisar mesmo?
— O Dr. Inácio as prescreveu, e dou-lhe um conselho:
não convém contrariá-lo.
— N ão precisa dizer mais nada; vamos a elas...
Quando começo?
— Amanhã, logo cedo.
N o outro dia, depois de uma noite de sono mais
tra n q ü ilo , um a jo v e m , acom panhada por um rapaz
sorridente, veio me tirar da cama.
— De pé, D . Domingas!
— Como?...
— Para o banho primeiro...
Falou, me pegando pelos braços, um de cada lado, e
me fazendo dar alguns tímidos passos no quarto.
— Estou com medo de cair...

36
— Não se preocupe: está segura...
— Se eu cair, posso me machucar?
— Pode, mas não acontecerá. O A frânio e eu não
deixaremos.
— Quem são vocês?
— Fisioterapeutas.
— Eu nunca pensei...
— Nem eu - disse, fazendo-me mergulhar numa
banheira de água fria, que, gradativamente, esquentava e
voltava a esfriar.
— Está quente... Está frio... - ia reclamando, quando
a temperatura oscilava demais.
— O choque térmico é importante para o seu melhor
e mais pronto refazimento.
— Qual é o seu nome? - perguntei, tendo o corpo
todo trêmulo.
— Celina!
— O Afrânio?...
— É meu esposo.
— Esposo.
— E, casamo-nos aqui.
— Casaram-se aqui?
— D. Domingas, respire pela boca e solte pelo nariz.
Vamos contar 30 vezes... Hoje, serão duas sessões; amanhã,
mais duas. Depois de amanhã, caminharemos pelo jardim.
— Pegue leve comigo, minha filha! - pedi, quase
morta de novo.
— A frâ n io , pressione-lhe as costas à altura dos
pulmões; precisamos desencarcerá-los...

37
cEa'do$' & t. c$)accellt’/ ! <
3b om im as'

— O que é isto? - quis saber, com a respiração


ofegante.
— U m deles, o direito, ficou quase todo atrofiado, e
o outro, o esquerdo, está com a tonicidade prejudicada.
— Chega - solicitei, ofegante.
— Force mais um pouquinho; está terminando: 28,
29, 30!... Ótimo!
— A i! - gemi. Estou morta...
— Literalmente, D. Domingas; aliás, todos estamos
m ortos - retrucou C e lin a , pedindo a A fr â n io que a
auxiliasse a me fazer sair da banheira.
— E sto u m e io zo n za - re c la m e i - ; eu tenho
labirintite... Eu sempre fui uma mulher muito achacada.
— Labirintite e...
— Alergia, extremamente alérgica, principalmente a
perfume.
— A um bom perfume francês, não é?
— Não; só a perfume barato...
— A senhora é alegre - comentou Afrânio, enquanto
a esposa me fazia entrar num roupão estampado.
— N o Espiritismo, a gente aprende a sorrir da própria
desgraça... Desculpem-me pelo termo - disse com a voz
entrecortada - ; mas é o ditado...
— Que termo?...
— A minha mãe não gostava que a gente pronunciasse
essa palavra - expliquei.
— Ora, palavras são letras que se ju n ta m para
expressar idéias - aparteou a competente fisioterapeuta,
que, pelo jeito, trazia o marido ali, ó...

38
^u/, ^SfUAltO'cêomcun/

— Você me parece ciumenta, Celina.


— D. Domingas, a senhora não sabe de certas coisas
que se passam por aqui...
— Se é assim, minha filha, não sei mesmo. Os livros
em que estudamos na Terra...
— São livros de reza, D. Domingas, livros de reza!...
— Você é espírita?
— O A frâ n io , mais ou menos; já eu estou me
definindo...
— Como foi que você desencarnou?
— Um acidente na rodovia Uberaba - Uberlândia...
— Na BR-050!
— Não sei; estava escuro, chovia, um caminhão
parado na pista...
— E o Afrânio?...
— Um colapso, enquanto jogava futebol de salão;
caí na quadra, me levaram para o hospital, fiquei mais de
uma semana na U T I com morte cerebral...
— Há quanto tempo morreram ?
— Eu, há nove anos; o Afrânio...
— ...há pouco mais de cinco! - atalhou o rapaz de
temperamento dócil.

39
ÇPérotas aos Ttoucos

Entre uma sessão de fisioterapia e outra, o Dr. Odilon


apareceu para uma nova visita. Interessante: somente de
vê-lo, eu me sentia bem mais animada. Então, disse-lhe:
— A presença do senhor, para m im , é mais que a
visita de um médico...
— Ora, minha filha - respondeu, desconversando -,
quem sou eu?! A m inha presença é apenas a de um
companheiro...
— Será verdade mesmo que desencarnei? Não estou
acreditando... Tudo é perfeito demais para ser verdade!
Se eu soubesse que havería de ser exatamente assim...
— Você sabia, eu sabia, os nossos irmãos sabem...
— C om o o pensamento da gente vacila, quando
estamos no corpo! Por que será, meu Deus? Preciso
confessar ao senhor uma coisa: eu era médium, mas, no
fundo, tinha uma pontinha de dúvida...

40
^§>tA/, ^sf2ÁútO'C@omum'

— Todos somos assim, ou melhor, todos éramos


assim...
— O senhor tam bém d u vid a va ? - a tre v i-m e a
perguntar.
— Às vezes, como você disse, eu imaginava que a
Vida, conforme a Doutrina no-la explica, é perfeita demais...
— Não, o senhor era um homem convicto - tinha fé
para si e para nós, que lhe demos tanto trabalho!
— Vocês me deram oportunidade de trabalhar - é
diferente.
— Perdoe-me, mas, repito, no fundo, ouvindo-o, tantas
vezes, discorrer sobre os pontos fundamentais da Doutrina,
eu dizia a m im mesma: — “ Q ue bom , se tudo fosse
exatamente assim: sem morte, o espírito evoluindo, a
Reencamação, o intercâmbio mediúnico, a felicidade um
dia, a Terra - mero orbe de transição, o destino em nossas
mãos!” ...
Ante o silêncio do Mentor, acrescentei:
— Eu não sei se perseverava, porque tentava me
convencer de que, somente se fosse assim, a Vida teria
sentido...
— Domingas, com raras exceções, as pessoas ainda
não estão preparadas para crer sem vacilos - a rigor, não
possuímos nem cérebro para tanto... Vejamos: os que
lograram se desapegar totalmente dos bens materiais foram,
à época em que v iv e r a m , considerados lo u c o s,
visionários... Se todos, de repente, nos desinteressássemos
das coisas do mundo!...
— O senhor tem razão: a fé há-de ser uma conquista
gradativa...

41
cEai£a&' £Á. ctíaccM l / ÇôamUiQaS'

— A fin a l, disse-nos o Cristo que ninguém levanta


uma construção sólida sobre a areia, não é?
— Muitas vezes, cheguei a pensar em renunciar ao
que havia me sobrado...
— Não é assim, minha filha, que a gente melhora e
se espiritualiza. Há pessoas que, aparentemente, vivem
afastadas do mundo - aparentemente! Ora. não conseguimos
nos desprender nem depois de m ortos!... Quantos, por aqui,
continuam a viver em função da vida que construíram na
Terra?
— E verdade...
— Não basta que, fisicamente, nos distanciemos disto
ou daquilo: precisamos desapegar o coração, ou seja, não
olharmos para trás, como, no exemplo bíblico, a mulher de
Lot, que acabou transfigurada em estátua de sal...
— Dr. Odilon, eu...
— Não querendo interrompê-la, você reparou, minha
filha, quantas vezes neste diálogo nosso pronunciou o termo
“ eu” ?...
— Não! - exclamei, como quem, naquele instante,
despertasse um pouco mais da hipnose...
— Quem é você, Domingas, o seu corpo, a sua forma
exterior?
— Eu?...
— Sim, o seu “eu” verdadeiro! Quem é ou, com maior
propriedade, o que é?
— Sou - respondi, como se estivesse efetuando um
profundo mergulho - , filha de Deus...
— Filha ou filho?

42
— Não sei; sou espírito!...
— Ótimo! Porém melhor ainda se tivesse respondido:
“ Sou essência!”
— Quer dizer que este meu estado de debilidade,
após a desencarnação...
— ...significa que, mentalmente, você se fixo u em
demasia nas coisas que aparentam ser, inclusive no seu
corpo.
— N a minha obesidade, na cor morena da m inha
pele, dos meus olhos...
— ...nos pontos de referência que nos “ garantem” a
identidade.
— Dr. Odilon, eu não tenho cabeça para isto, não!...
— Tem e, se não tiver, tem que ter.
Efetuando ligeira pausa, prosseguiu:
— Por isto, Domingas, quando desencarnamos, temos
que encontrar uma cidade edificada, sendo que, alguns -
para não dizermos, a m aioria — carecem de pontos de
referência ainda mais sólidos, palpáveis, onde se deparem
com condições de existência em quase tudo semelhantes à
vida que deixaram...
— Dizendo isto a m im - redargüi com um sorriso -
, o senhor está atirando pérolas aos porcos...
— Pérolas aos poucos!...
— Que expressão linda - pérolas aos poucos!...
— Não se menoscabe... Você é um espírito antigo,
que possui uma vivência extraordinária! De fato, perto do
que somos, não estamos sendo nada, mas não é todo o
mundo que tem cabeça para assimilar as coisas que o
Espiritismo nos ensina, não.

43
cdaalos> s 4 . cíia c c e iib / ÇÂiamúigas-

— 0 senhor me fez lembrar do que Chico Xavier,


certa vez, nos disse, quando comentou conosco que os
que aceitam a Reencamação não são espíritos da Terra...
Fiquei assim por entender...
— Talvez estivesse querendo dizer que a tese da
Reencamação não é uma idéia facilmente assimilável por
espíritos que têm feito a sua evolução apenas no orbe
terrestre; a Reencamação, que cérebros brilhantes, como
Pitágoras, por exemplo, chamavam de metempsicose, era
pregada pelos espíritos egressos de Capela - de um dos
orbes do sistema de Capela, bem entendido!
— Pitágoras acreditava...
— ...que, por punição, o espírito humano podia
reencamar no corpo de um animal.
— Eu me lembro de ter lido algo a respeito em um
dos livros da lavra de Chico; se não me engano, o autor é
Emmanuel...
— Exato! “A Caminho da Luz” , aliás uma obra que,
infelizmente, os espíritas, de um modo geral, têm consultado
pouco.
— Os jovens, principalmente. Como o senhor acha
que há-de ficar essa situação? - indaguei, sinceramente
preocupada com o que, quando encarnada, era objeto de
várias conversas minhas com os confrades.
— Digo-lhe que as trevas têm interesse em que as
obras de Chico Xavier sejam relegadas ao esquecimento,
porque, além de serem o com plem ento natural da
Codificação, dão ênfase ao aspecto religioso da Doutrina,
conscientizando as criaturas quanto à necessidade de se
renovarem interiormente.

44
^U/, ^spváL&^fjamum/

— A obra mediúnica de Chico Xavier...


— ...representa o vínculo d efin itivo da D outrina com
o Evangelho de Jesus!
— Contrariando inúmeros interesses, não é?
— Inúmeros e variados, Dom ingas!
— Uma página de Emmanuel...
— Com todo respeito a Em m anuel, espírito do qual
nos encontramos infinitam ente distantes (e vamos colocar
um pouco mais de distância nisto) não creio que tenha
sido ele o autor pessoal das obras que assinou - nem ele
e, em essência, nenhum dos dem ais In strutores que
escreveram para a Terra pelas mãos de Chico X a vie r!
— Não?...
— Não! É crença entre nós - entre muitos de nós -
que a obra mediúnica de Chico X a v ie r é de autoria do
próprio Cristo!...
— Eu sempre pensava nisto, mas... não falava!
— A Codificação não fo i obra pessoal de Kardec: o
que está exarado em “ O L ivro dos Espíritos” , vem de muito
mais alto, inclusive de um P la n o superior ao que os
Espíritos que se colocaram em contato com ele se situavam.
— O Espírito da Verdade?...
— Era médium do Senhor, e os demais Espíritos,
médiuns dele!...

45
ÇMçKiorancío

O diálogo com o Dr. Odilon me ilustrava e distraía,


fazendo com que eu me esquecesse um pouco mais do
que deveria deixar para trás.
— O senhor tem sido um pai para m im - disse, com
os olhos se me enchendo de lágrimas eu não sei o que
teria sido de minha vida, caso não o tivesse conhecido...
Dei-lhe tanto trabalho! Como me envergonho!...
— Trabalho nenhum, minha filha, você ou nossas
irmãs que, valorosas, continuam à frente das atividades da
“ Casa do Cinza” ... Não se preocupe.
— A i, meu Deus - tomei a gemer, imagine será
que tudo isto é verdade? Não pode ser. É mais do que eu
esperava e, com certeza, que merecia e mereço... D ifíc il
acreditar que realizei a Travessia sem maiores problemas.
H á quanto tempo desencarnei? O senhor poderia me
dizer?...

46
<=§>u>, cèsjxíãÁlo/c^amum/

— Domingas, há pouco mais de um mês...


— A inda me sinto trêmula, fraca; às vezes, penso
que deliro - as idéias se confundem na minha cabeça...
— É assim m esm o; considere-se em excelente
recuperação... Existem espíritos que, antes de se mostrarem
aptos a qualquer socorro de nossa parte, perambulam por
mais de dez anos na Terra, sendo que muitos ficam por lá
mesmo e reencarnam...
— Reencarnam?...
— Reencarnam, sem, propriamente, virem ao Plano
Espiritual...
— Como desencarnar e não v ir ao Plano Espiritual?!
- perguntei, tentando entender m elhor a colocação do
Benfeitor.
— Claro, trata-se de uma força de expressão, todavia
espíritos existem - milhares - que, mentalmente, não
conseguem acessar a realidade da Vida, após a morte do
corpo... A lucidez espiritual é de poucos. Inclusive, muitos
espíritas, em deixando o corpo, não logram enxergar a
verdade nem como ela lhes fo i revelada ou lhes está
revelada nos livros.
— N o fundo, a nossa esperança de Céu?...
— Permanece, oriunda de arraigadas concepções
religiosas que sustentamos desde muitas existências.
— Dr. Odilon, e pensar no que André Luiz, através
de Chico Xavier, nos fala no livro “Libertação” , que a
criatura h u m ana está lid a n d o com a razão há,
aproximadamente, 40.000 anos!

47
c€atloS' s4. cfà a c e M i/ ! ^ a m in o a s /

— É tempo demais e, ao mesmo tempo, não. É o


Ministro Flácus que, em belíssima preleção, nos fala sobre
o assunto - o espírito, vinculado à evolução do orbe
terrestre, atingiu a láurea da razão, ou seja, a possibilidade
do pensamento contínuo, há 40.000 anos!
— E tempo que não acaba mais... O senhor não acha
que progredimos pouco? A minha cabeça chega a rodopiar...
Ante o meu desembaraço de afastar as cobertas e,
sozinha, sentar-me na cama, sem me aperceber da manobra
que fizera, o M entor sorriu e elucidou:
— Filha, no Evangelho de João, capítulo 17, versículo
5, está escrito: “ Agora, glorifica-me tu, ó Pai” - disse o
Mestre, em oração - , “junto de ti mesmo, com aquela glória
que eu tinha contigo, antes que o mundo existisse” .
— O que quer dizer?
— Sabemos, in clusive pelo que Em m anuel nos
informa em “ A Caminho da L u z” , que o Senhor presidiu a
formação da Terra, desde quando ela se desprendeu da
nebulosa solar, fixando-se no espaço que lhe cabia dentro
do Sistema...

— S egundo c á lc u lo s a p ro xim a d o s de alguns


cientistas, a Terra existe há 4 bilhões e 700 milhões de
anos...
— E Jesus...
— ...já era Jesus!...
— M e u D eus! - exclam ei, saltando da cama e,
auxiliada pelo Dr. Odilon, procurando escorar-me numa

48
^u/, ^spM ÍlO '(:&Qmunv

poltrona ao lado. — Quanto temos nos atrasado! Não é


possível!... Como a evolução é lenta!...
— Temos, séculos e séculos, para não dizer milênios,
andando em círculo s, entrando e saind o do corpo,
incontável número de vezes, como quem entra numa casa
pela porta da frente e sai pela porta dos fundos, sem maiores
conseqüências.
— “Andando em círculos” , literalmente - observei,
questionando em seguida, surpresa comigo mesma: “ Onde
será que arranjei esta palavra - literalm ente! - e fui capaz
de empregá-la em sentido correto?”
— Você, aos poucos, será capaz de muito mais; não
se espante com o domínio alcançado sobre o significado
de uma única palavra, pois, afinal, nem que tenha sido
adquirido por osmose, alguma coisa, nestes 40.000 anos...
— “ Osmose” ... - interrompo o Instrutor, apreendendo,
num átimo, o sentido do termo. — Que coisa engraçada!
Eu o u via esta p ala vra na boca de m u ita gente, de
conferencistas espíritas mais cultos, e ficava imaginando...
Acnava-a bonita, mas não sabia como empregá-la. Daqui
há pouco, estarei falando francês ou... alemão!
— Não se entusiasme em excesso; também não é
assiir - aliás, tomara que não seja assim.
— Por quê?
— Porque as nossas reminiscências, em relação ao
passado, não acontecem de maneira seletiva - não nos
recordamos apenas dos fatos positivos...
— Compreendo; se é assim, é melhor que eu continue
ignorando o vernáculo... M eu Deus, escapou! O que é

49
c& a'ilaS' sA. cljacceJilv / Q)amUuia&

isto: vernáculo?... Não, por favor, Dr. Odilon, eu não quero;


o senhor dê um jeito na minha cabeça...
— Esta parte do corpo, Domingas - cabeça! - , é com
o Dr. Inácio; eu só posso ajudar você com mediunidade...
— Desculpe-m e. Voltem os à conversa anterior...
Vamos fazer as contas: há quase 5 bilhões de anos, o Cristo
já era o Cristo, e nós...
— Com sorte, não passávamos de simples mônadas...
— “ M ô n a d a s ” ? H u m !..., en te n d o - redargüi,
estranhando a m inha facilidade em saber o significado de
palavras complicadas.
— ...de simples princípio inteligente!
— Quando o Cristo já era Ele mesmo, “ antes que o
mundo existisse” ... Ora, se o mundo não existia ainda, a
gente sequer era pedra! Doutor, valha-me!...
— Valha-nos quem pode, minha filha!
— Agora estou entendendo por que Chico se dizia
um “ cisco” ... Não era só por humildade, não.
— D ia n te da grandeza do Senhor, de fato, não
passamos de vermes rastejantes!
— Chico falava que 2.000 anos de Evangelho, para
os projetos de Jesus ju n to à Humanidade, representava
uma faixa de tempo muito estreita...
— Por este motivo, não devemos perder a esperança
no futuro da Humanidade. A tendência é que, doravante, o
nosso progresso se acelere um pouco...
— E, as coisas lá embaixo estão acontecendo muito
depressa - estão se precipitando, de maneira vertiginosa...

50
A Terra está parecendo uma casa em reforma, um campo
todo revolvido.
— Por aqui, as coisas não estão diferentes, mormente
nas regiões espirituais inferiores.
— E x is te m e sp írito s - in d a g u e i - sendo
deportados?...
— Sim, o grande êxodo espiritual já começou e há
de se acentuar gradativamente.
De súbito, embora recostada em confortável poltrona,
experimentei rápida vertigem e, assustada, vomitei uma
substância escura.
— Dr. Odilon...
— Não se preocupe; você se esforçou muito... É
natural.
— Será ainda o tumor em atividade?
— Não, minha filha. Digamos assim: são toxinas
remanescentes que o seu organism o espiritual está
expelindo...
— Que coisa ruim! Voltam todas as lembranças de
meus tempos últimos...
— Pelo menos, você já começa a se referir ao corpo
como uma experiência passada.
— E mesmo; um sonho ou um pesadelo não poderia
durar tanto... Estou convencida de que morri.
— Se você não se convenceu - disse o Dr. Inácio,
adentrando os aposentos onde me encontrava
confortavelmente instalada-, poderemos providenciar uma
visita ao cemitério; você é minha vizinha de quadra...

51
c(iaãlo& éA. cfâ a e c e lli / <
3bam inga&

— U m a visita ao cemitério, Doutor?!


— É, com pouco mais de um mês debaixo da terra, o
seu antigo “ casulo” ...
— Não, Deus me livre!
— Deus a livre, de quê? U m a coisa tão natural: o
que é pó vira pó!...
gabentfo ^Hais

— Você, minha cara - continuou o médico já, pelo


menos, sonhava conosco antes? Com o Odilon, é possível,
mas comigo, creio que não, pois, quando ambos encarnados,
não tínhamos tanto relacionamento assim...
— E verdade; sempre tive grande admiração pelo
senhor, no entanto, nunca trabalhamos juntos, aliás, pouco
nos víamos. Eu não sei se se lembra de que, certa vez, não
quis o meu concurso como médium no Sanatório...
— E claro que me lembro... Desculpe-me. Eu ficara
mal-acostumado com a Modesta... O Odilon me falou de
você...
— Estivemos lá, meu caro; a Domingas participou
de uma sessão - disse o Mentor - , mas, à época, de fato,
era muito imatura.
— Im atura ou im p u ls iv a - emendei - ; estava
começando a sair de uma obsessão que me acompanhara
desde jovenzinha - ainda tinha crises epilépticas horríveis!

53
cda vtaS' SÁ. cif& a c c e lli/ d o m in g a s -

— Pois é, minha filha, se você não se convencer de


que está morta, ante tudo o que está vendo e o que estamos,
detalhadamente, conversando, teremos mesmo que, em seu
benefício, deixá-la trancada por algum tempo. Não podemos
permitir que saia vagando por aí...
— Vagando?...
— E, vagando, porque, para o seu antigo corpo, lhe
é impossível voltar, e, depois, estaria à mercê de algum
obsessor remanescente, sem contar, é ó b vio, com os
adversários gratuitos da Causa que abraçamos.
— O Espiritismo tem muitos inimigos assim, doutor?
— M ais do que eu e você possamos imaginar juntos,
dos Dois Lados da Vida!
— Sinceramente, eu nunca consegui entender... Os
espíritos, frente a frente com a realidade espiritual,
persistindo no erro...
— Filha, vejamos o seu caso... Há quantos anos
estava e está na Doutrina e na mediunidade?
— Ah!, uns 40 anos, não é, Dr. Odilon?
— Sim, você, quando nos procurou na “ Casa do
Cinza” , não completara os 30 de idade.
— E com todo o seu relativo conhecimento, na lida
praticamente diária com a mediunidade, reluta em aceitar
a simples verdade de que morreu, sendo que o seu processo
desencamatório se desencadeou há dois anos atrás, quando
do diagnóstico de tumor no pulmão...
— É...
— Agora, admitir o desenlace do corpo de carne não
é o mais problemático, porque, com o tempo, o espírito vai

54
C^)U/, ^S4z0iito/C€ximim)/

ficando sem saída, sem argumento; o p io r é quando,


convencido de que morreu, o homem, deste Outro Lado
da Vida, persiste na ilusão, nos conceitos equivocados...
Todos os dias - prosseguiu o Dr. Inácio - , me defronto
com espíritos que me questionam: — “Por que tem que
ser como o senhor está me dizendo que é?”
— Insanidade! - exclamei, sem perceber que rotulava
a mim mesma.
— Insanidade, da qual, com poucas exceções,
estamos caminhando rentes. O que dela nos separa é uma
tênue linha divisória... A s idéias nas quais o Espiritism o
está nos auxiliando a pensar são m uito novas para nós. O
Mundo Espiritual - parece um contrasenso - ainda não se
mostra suficientemente espiritualizado...
— Se fosse maior o contraste entre a vida e a morte...
— Com o, se a vid a que nos rodeia aqui é uma
projeção de nossas mentes?
— Que coisa complexa, Doutor!
— A vid a do hom em sobre a face da Terra é a
materialização de seus pensamentos; ele plasma com as
mãos as idéias que concebe — o exterior há sempre de nos
refletir o interior. N inguém verdadeiramente conseguirá
mudar a vida em tomo, se não efetuar mudanças substanciais
no mundo de si mesmo.
— Quer dizer?...
— Atente, minha filha, para o que, com a permissão
do nosso Odilon, vou lhe dizer: Deus criou o Bem; já o
Mal, em todas as suas manifestações, é criação do homem...
— Em todas as suas manifestações?
cda ila & sA. c$>acceltl / Çòaminqas-

— Sim, em todas. A mente humana é um fragmento


da Mente D ivina e, portanto, criadora.
— Um tumor, por exemplo, como o que tive, não é
criação de Deus?
— A rigor, não! Tudo o que é transitório reflete a
imperfeição do ser.
— Dr. Inácio, mas os microorganismos patogênicos,
os agentes de tantas doenças que se espalham pelo mundo,
os vírus, as bactérias?...
— Excrescências da mente em desequilíbrio...
— Que se materializam e tomam forma?!...
— E se voltam contra o seu criador... O mal sempre
toma à sua fonte de origem.
— O meu tumor de pulmão?...
— Os nossos diversos corpos, ao longo das vidas
sucessivas, podem nos ser representados como os antigos
“mata-borrões” , através dos quais, a pouco e pouco, as
nossas imperfeições vão se escoando... Toda doença no
corpo é processo de cura espiritual.
— O meu câncer?...
— Toda p a to lo g ia físic a é precedida por uma
patologia de natureza psicológica.
— Não obstante - argumentei, cada vez mais surpresa
com o número de palavras novas que se me incorporavam
ao vocabulário - , todas as pessoas adoecem e morrem... E
Jesus, um Espírito Puro?!
— Jesus não morreu, foi morto... Aliás, salvo melhor
juízo, o único espírito sobre a Terra que, caso não tivesse
sido morto, não se sabe como viria a m orrer...

56
^sfzínU&c&omum/

— Estou com a cabeça cansada - queixei-me.


— Então, vamos parar...
— Não, não, por favor, conversemos um pouquinho
mais... Se não estou morta, quero estar!
Ambos, o Dr. O dilon e o Dr. Inácio, sorriram e o
diálogo prosseguiu.
— A s guerras, os desa rra n jo s no c lim a , as
epidemias?... - insisti, ávida de novos conhecimentos.
— A argúcia mental do homem concentrado no mal,
movimentando, de maneira consciente ou inconsciente, a
sua capacidade de criar, sempre dará origem a novos
agentes de enfermidade que dizimarão milhões de vidas
no Planeta; neste instante, minha filha, em que estamos
conversando, cientistas se encontram re u n id o s em
laboratórios fabricando sofisticados engenhos de destruição
e morte...
— E sto u im p re ssio n a d a ! E as va c in a s, os
medicamentos de combate?...
— São o sinal da Providência D ivin a , pois, caso
contrário, a vida terminaria por se inviabilizar no orbe
terrestre.
— Repita, por favor, Doutor...
— Odilon, providenciemos para a nossa Domingas
algumas laudas de papel, você não acha?
— Sim, já percebi.
— Doutor - insisti - , os vírus?...
— M entes altamente intelectualizadas realizam
ensaios no mal!
— Eu nunca tinha ouvido nada semelhante...

57
c(La>tJLo&SA. c$>accelló/ <
ãbominqas'

— Os pensamentos doentios da Humanidade, como


um todo, têm sido um excelente “ meio de cultura” , para
que tais criações se desenvolvam e se reproduzam.
— Em um M u nd o de Regeneração?...
— Terem os, sem d ú vid a , m enos doenças. Por
enquanto, a doença surge prim eiro, o remédio aparece
depois: o mal segue adiante e o Bem no seu encalço... A
M edicina do futuro será mais preventiva!
— O senhor disse que a argúcia mental do homem,
movimentando de maneira consciente...
— O homem cria de maneira direta ou indireta.
— Existem espíritos que...
— ...operam no mal conscientemente, é claro, sem
total consciência do mal que fazem a si próprios, porque,
em última instância, o mal é loucura, e os que estão loucos...
— ...não ficam apenas inspirando idéias negativas?
— Não, vão muito mais longe, chegando, digo-lhe, a
disputar entre si quem é capaz de criar uma forma mais
letal de agente nocivo à saúde humana; o seu intuito é o de
estabelecer uma nova ordem nas coisas, a partir de suas
insanas concepções da Vida...
— E, mas são incapazes de criar para o bem...
— Transitoriamente, sim, absolutamente incapazes:
podem, por exemplo, conceber um vírus, mas não uma
espécie da mais diminuta e delicada flor do campo!...

58
(Espíritos C r*adores

— Está aí - disse - uma coisa que sempre me intrigou:


existem espíritos que se dedicam à criação de formas e
expressões de vida de ordem superior? Não sei se estou
conseguindo form ular a pergunta com clareza... Por
exemplo, as diversas espécies de flores, árvores, frutíferas
ou ornamentais enfim, até mesmo os animais, apareceriam
aleatoriamente?
Foi o Dr. Odilon que tomou a iniciativa da resposta.
— Domingas, herdeiro do Criador, o espírito, seja
ele qual for, igualmente não cessa de criar, aperfeiçoando
sempre a obra de sua autoria. Você sabe: basicamente,
pensar é criar... A Natureza é prodigioso laboratório de
infinitas experimentações. Existem, sim, espíritos que se
dedicam aos mais diversos campos de pesquisa, no campo
da Botânica, da Zoologia, da Genética Humana e Anim al.
Se nos deparamos com os que engenham para o mal, temos
os que se exercitam na arte de diversificar para o bem.

59
c€a'UoS' sA. cfàaccell(/ / ÇÈominqaS'

— O que os h o m e n s cham am de “ geração


espontânea” - aparteou o Dr. Inácio - nada mais é do que
a semente de uma idéia de vida ardorosamente acalentada.
— Sempre me chamou a atenção a diversidade e a
exuberância de vida no fundo dos oceanos...
— E m todos os mundos, físicos e extrafísicos, os
espíritos criadores, ou, se você preferir, co-criadores, se
empenham em criar, ornamentando a Criação Divina...
Veja: quando falamos em criar, é óbvio que toda idéia
original, neste sentido, emana de Deus - o homem nada
mais é que o seu intérprete...
— O seu médium...
— Que, não raro, descaracteriza a Mensagem que é
chamado a intermediar para o B om e para o Belo!
— Deus inspira e o homem processa - esclareceu o
Dr. Inácio, continuando. À medida que se eleva, o espírito
vai se identificando com o Pensamento do Criador. Um
dia, o lar da criatura redim ida há de se transformar no
Jardim do Éden!
— O objetivo da Evolução - tom ou o Dr. Odilon -
é criar e, incessantemente, aperfeiçoar para o Supremo
Bem ; por este m otivo, até que colim em o propósito da
Vida, todas as formas são transitórias - umas haverão de
suceder as outras...
— Inclusive a raça humana? - indaguei.
— Sim, o homem também está sob experimentação;
o corpo físico está longe de ser uma obra acabada...
— A liás, Domingas, o próprio corpo espiritual, ou
perispírito, se encontra em fase de elaboração; tudo o que

60
a£>iv, ^SjíOviÍQyC€xxmum/

nos é periférico vem sendo plasmado pela nossa capacidade


de refletir a Inspiração D ivina...
— Quer dizer que o U niverso ainda vem sendo
pensado?
— Não por Deus, que, desde toda a Eternidade, já o
tem definitivamente concebido, mas pelo espírito, que,
tendo alcançado a láurea da razão, vem brincando de criar,
como uma criança que modela em cera, para, em seguida
destruir as formas imaginadas... D a simples modelagem
em cera, passará, m ais tarde, a arro jad o s p ro je to s
arquitetônicos...
— À tela primorosa, à pauta musical, à escultura...
— Sim, tudo, digamos, é coisa que homem de gênio
apreende da Mente Divina... Tudo permanece vibrando no
Cosmos, à espera de que alguém entre em sintonia com o
já existente e lhe dê forma, graduando-lhe as manifestações
aos sentidos humanos.
— Mozart?...
— Todos eles, Mozart e Beethoven, D a Vinci e Renoir,
Michelangelo e R odin, todos os expoentes da cultura
humana, no campo da intelectualidade e da emoção -
Francisco de Assis e Teresa d’Á vila , Chico X a vie r e Madre
Teresa de Calcutá - desentranharam, traduziram, em suas
obras e ações, o Pensamento de Deus, sendo, portanto,
potencialmente médiuns!
— Lembro-me, Doutor - comentei, embevecida - ,
de uma história que li sobre Michelangelo, acerca de uma
pergunta que alguém lhe fez, quando, pacientemente, ele
esculpia uma pedra de mármore...

61
’'(janlafv £Á. c$>accMi/ / 'òbamu^a^

— A célebre resposta de M ichelangelo! - exclamou


o Dr. Inácio, empostando a voz: — “H á um anjo preso
dentro desta pedra e eu tenho o compromisso de libertá-
lo...”
— O senhor me fez lembrar agora...
— De nosso caro Prof. Fausto De V ito , que bem
gostaríamos de ter aqui, ao nosso lado. Sabemos, porém,
que as Editoras para as quais ele trabalha, como Revisor,
vivem pedindo a Deus que lhe conceda interminável
moratória. Sim, porque ele reúne em si duas vantagens,
além da dedicação e presteza: tanto é versado em Gramática
quanto em Doutrina.
— Quando ainda eu encarnada, ele fez a revisão
completa de meus dois livros narrativos: “Nosso Álbum
de Lembranças” e “ O Despertar de um Alcoólatra” , sabem?
Doutor, possivelmente, ele haverá de rever também estas
anotações...
— Anotações? - perguntei, curiosa. Que anotações?
— As que você, minha filha, com certeza haverá de
fazer...
— Escrever?!...
— E - adiantou-se Dr. Inácio - , escrever como
espírito, para que você sinta a dureza que é lidar com
médium...
— Coitada de mim! - exclamei, reacendendo como a
chama semi-apagada de uma vela.
— Ora, Domingas, não se faça de rogada; e, depois,
precisamos dividir com você... O seu depoimento será
interessante.

62
^sp,ÍMÀ&cQomum/

— Mas - ponderou Dr. O dilon - antes de falarmos


sobre este assunto, voltem os à questão dos Espíritos
criadores.
— É um assunto fascinante; às vezes, com tantas
flores que chegavam à minha casa, enviadas pelos amigos,
rosas e orquídeas, lírios e flores do campo, eu ficava me
questionando a contemplá-las: meu Deus, quem será que
as criou assim tão belas?... De quando em quando, um
pássaro pequenino... Oh, deu-me um branco, agora! Com o
é mesmo o seu nome?...
— Beija-flor! Colibri! - socorreu-me o Psiquiatra.
— Exatamente. N ão sei como não consegui me
lembrar...
— Para você não se entusiasm ar m u ito com a
flexibilidade intelectual que está tendo, ante o reavivamento
da memória, após o desenlace do corpo. A isquemia
cerebral pode reativar algumas áreas do cérebro e apagar
outras.
— Um beija-flor, crendo-as, certamente, ainda presas
à haste, pairava sobre elas, na tentativa de sugar-lhes o
nectár...
— Domingas - interveio o Dr. Inácio - , a pronúncia
correta é néctar! Trata-se de uma palavra paroxítona...
— Hem?! O senhor está falando grego?... - gracejei.
— Esta é das nossas, O dilon - retrucou o simpático
ex-velhinho, de bem melhor aparência que a minha.
— Iremos fazer um verdadeiro forfé por aqui, Doutor!
Estou me sentindo meio combalidazinha, mas logo, logo...
— O que você ia falando a respeito do beija-flor,
filha? — perguntou o Mentor, tentando colocar ordem na
conversa que, de minha parte, descambaria.

63
c€a?ito& s ft. c^)accalló / ’^ bam iruja^

— Ao ver aquele pássaro tão gracioso, rente à corola


de uma orquídea, eu me extasiava, questionando em
silêncio: — “ M eu Deus, que espírito o terá criado?” Agora,
dialogando com os senhores...
— Nos Planos Superiores, os espíritos ocupam parte
de seu tempo em conceber o Belo, em sublimada disputa
na divina arte de criar, reunindo-se, periodicamente, e
apresentando uns aos outros o re su lta d o de suas
concepções.
— Então, é assim que surgem uma profusão de
espécies vegetais diferentes, como se já existissem no seio
da terra, à espera do momento propício para eclodir?
— Espécies vegetais, animais e, vamos mais longe,
minerais também.
— Minerais também?
— O simples átomo de um corpo inorgânico anseia
por se transformar em célula... Tudo evolui e vive em
transição, da forma rudimentar para outra mais perfeita.
— Já ouvi diversas referências a este importante
assunto - aduzi. — Onde o senhor me diz que poderia
conhecê-lo melhor - nos domínios da Doutrina Espírita, é
claro?
— M ais tarde, quando estiver em condições mentais
favoráveis, poderá estudá-lo em “ O L ivro dos Espíritos”
(capítulo II e IV ) e, principalmente, em “A Gênese”
(capítulo X ). A llan Kardec, ainda que limitado à ciência
do seu tempo, também nestas Obras Básicas se revela o
sábio Codificador do Espiritismo.

64
^\m or e (E \’ofução

Entre o Dr. Odilon e o Dr. Inácio, eu me sentia como


quem se visse sob um fogo-cruzado de luz ou pesada
artilharia de conhecimentos.
— Não entendo - falei desculpem-me, por que
vocês estão me confiando tantas informações...
— Primeiro, minha filha - adiantou-se o primeiro,
em resposta - , porque você pergunta muito, e, depois,
porque o seu cérebro precisa ser estimulado.
— E este é o m om ento - emendou o segundo,
alternando palavras e opiniões com o amigo.
— De fazermos os neurônios de seu cérebro espiritual
funcionarem...
— Não se esqueça de que você está “nascendo” de
novo e, qual ocorre com o cérebro em expansão das crianças,
que carecem, nos primeiros anos de vida, de suficientes
estímulos externos para se desenvolverem a contento...

65
çêaãlos> sA. ^acceMl / <
Ê)omincw&

— Quando vo lta m os para cá, necessitamos de


“lubrificar” as engrenagens...
— O processo, semelhante, ocorre de maneira inversa.
Compreende?
— M ais ou menos. Quer dizer que...
— As primeiras semanas e meses do espírito que
volta à Pátria Espiritual são decisivos para a sua melhor
adaptação à realidade.
— Não nos esqueçamos de que ele, ou seja, nós,
sempre reencamamos e desencarnamos com outros olhos...
— Por este motivo, tanto de um Lado quanto de outro,
a paisagem nos parece diferente - estamos sempre
enxergando um pouco mais!
— De fato - concordei - , parece que nunca estive
por aqui...
— E não esteve mesmo, porque nada disto existia
antes e, quando reencamar, daqui a uma semana...
— Eu, reencamar, daqui a uma semana?!... O senhor
está brincando, não é? D eixei por lá excelentes amigos,
mas não pretendo voltar tão cedo... Deus me livre! Escapei
por um triz... Não fosse o Espiritismo em minha vida, o
Dr. Odilon, a minha encarnação teria sido um desastre...
— Então, corrigindo, quando reencamar, daqui a uns
100 anos...
— Melhorou!
— ...o mundo, para você, estará irreconhecível.
— Espero que positivamente...
— Está difícil, mas nós também - enfatizou o Dr.
Odilon.

66
^w , ^sfztyUtO'C€omiwv

— Gostaria - disse - de lhes fazer uma pergunta.


— Domingas, como você é curiosa! - brincou o Dr.
Inácio.
— Tudo bem: o espírito desencarna, reencama, evolui
um pouquinho, mas... estamos aqui, deste Outro Lado,
quase na mesma. N o que me d iz respeito, deveria até
regredir, no entanto os senhores dois... Quando, afinal,
ascenderemos?
— Eis a questão! Odilon, você tem a palavra...
— A resposta é aquela que já sabe ou que já sabemos:
não nos resgataremos da Terra, ascendendo a Planos
Superiores, enquanto não aprendermos a amar!...
— O conhecimento, por si só, não basta.
— Nunca, em tempo algum, soubemos tanto sobre a
nossa destinação...
— Não obstante, o grande desafio é amar! N u m
cálculo excessivamente otimista, em cada um milhão...
Não, este cálculo está otim ista demais: em cada dez
milhões, um ama ou está começando a amar!...
— O A m or é o único caminho para os Cimos.
— C onhecim ento pode não passar de sim ples
informação... Se apenas isto fosse suficiente, o Céu estaria
repleto de computadores!
Parecendo-me treinados naquela técnica de diálogo,
um complementando a frase do outro e falando de modo
reticente para motivar a quem os ouvisse a raciocinar, ambos
prosseguiam a ltern an d o conceitos, que eu ousava
interromper.

67
c€a'daS' SÁ. ctia c c e ll<s/ <
S bomi*uiaS'

— Dr. Odilon, em uma de suas obras mediúnicas,


agora não me ocorre qual o títu lo , o senhor define o
Espiritismo como sendo a “R eligião do L iv ro ” ...
— Domingas, tudo o que nos é dado aprender em
tomo da Verdade é com o único objetivo de que saibamos
amar, pois, sem amor, a própria V ida careceria de sentido.
— O A m o r é o sentido da Vida! Quem não ama,
participa de m ovim ento inverso ao propósito da Criação,
co lo c a -se à m a rg e m , salta para fora do contexto,
contrariando, assim, a sua natureza divina. Ninguém foi
criado para o ódio, para a aversão, para o mal... O problema
do homem, basicamente, é de sintonia com o seu “eu”
profundo, de mais plena identificação consigo mesmo,
abandonando a vida fictícia em que intenta viver.
— A h - lamentei - , o A m or nos parece tão inacessível!
Sinceramente, não me recordo de uma única vez em que
tenha sido impulsionada por ele em qualquer atitude, em
relação ao próxim o. Praticava, sim, a caridade, mas...
— Eu também, m inha filha - confessou o Dr. Inácio,
pela primeira vez com certo entono de desencanto - , não
me lembro de ter sido impulsionado pelo verdadeiro amor...
— Doutor - retruquei, sem deixá-lo concluir - , o
senhor tratava os seus pacientes como se fossem filhos -
sou testemunha do carinho que lhes devotava... Não fale
assim, porque eu vou me sentir mais deprimida ainda.
Coitadinha de m im ! Se houver um tapete por aqui, vou ter
que me esconder debaixo...
— A vaga é m inha; você vai ter que se esconder
noutro lugar... De quando em quando, eu saio, mas logo
volto para lá...

68
c$oU/, (^sfiOM &c&amuin'

— A caridade...
— A caridade - pontificou o Dr. O dilon - é a nossa
iniciação espiritual no aprendizado do A m or; é exercício
de desprendimento gradativo, porque sem crescente
desapego não há quem, por fim , consiga se doar por inteiro.
— A gente começa doando ín fim a parte do que tem
no bolso; Deus, no entanto, não se contenta - E le quer
tudo: o que temos no bolso, o próprio bolso, o coração...
— Doutor!...
— Estou mentindo, Odilon? Ora, quantas vezes eu
enfiava a mão no bolso, escolhendo a cédula de menor
valor para o pedinte que me interceptava na rua... — “Inácio
- a consciência me questionava, mal tinha virado as costas
- , você não se envergonha?” Não, respondia. — “Pois,
deveria...” Quando dava uma cédula um pouco maior - eu
fazia o teste! - , era a mesma coisa. — “ Inácio, você não se
envergonha?” Não - tomava a responder. — “Pois, deveria;
você mora num sobrado, tem carro na garagem, conta no
banco...”
— Sorri, sem conseguir me controlar.
— O senhor me desculpe... Com igo também era a
mesma coisa: Deus queria até a minha cama... Eu já não
tinha nada dentro de casa, só alguns poucos móveis velhos...
— E Ele queria, não é?
— Queria, mas eu não dava...
— E com você, Odilon?
— Inácio, eu não tinha nada - tudo era de minha
esposa e de meus filh o s ... A g o ra , vocês dois eram
praticamente sozinhos, não? A Domingas casou-se, ficou
viúva, sem filhos...

69
S jW o a - SA. c$ > a c c e lló / & )om in<ia&

— E com uma pensão que o A bel me deixou!... 0


senhor casou-se...
— Pois é, minha filha, ainda temos que agüentar isto...
Cheguei ao fim da vida literalmente quebrado, no mais
amplo sentido da palavra - quebrado e alquebrado, e Deus
me pedia os cacos! Resolvi largar tudo - pronto, não tenho
mais coisa alguma. Agora, Ele está pedindo o meu tempo:
tomou-me o que tinha, despojou-me de tudo, agora quer a
mim... A gente dá um dedo, Ele quer a mão; dá a mão, Ele
quer o braço... Resistir, como escreveu o poeta de “Visita
à Casa Paterna” , quem há-de?...
— Doutor, como o senhor é bacana!...
— Bacana?!... Nunca ninguém me chamou por este
termo.
— N o bom sentido, é claro; o senhor ensina a gente
de uma maneira...
— ...só dele, Domingas, só dele! O nosso Doutor é
dono de um coração imenso... - aparteou o Dr. Odilon.
— Coração?! Que coração?!... Eu não tenho mais
nada, não, e nem quero ter, estou bem... E, minha cara -
concluiu com especial inflexão de voz - , o que é pior: nem
assim sei o que é o Am or! Estou esperando... Quem sabe,
um dia, algo aconteça, daqui uns m il e... novecentos anos,
não é?
— O senhor não acha que está sendo otimista demais?
- perguntei.
— Odilon, a Domingas é das nossas!...

70
Com (J). ÇHaria ÇKptíesto

D ecorrida m ais um a semana, eu já estava me


movimentando, dentro do quarto, com maior desembaraço,
e, confesso, cada vez mais curiosa quanto aos detalhes de
tudo o que me rodeava, inclusive de que material eram
feitos os objetos e utensílios à minha disposição: cama,
poltrona, uma pequena mesa adornada por um vaso de
flores, quadros na parede, roupas de cama e banho...
— M eu Deus, esta cadeira - pensava, tateando-a do
encosto aos pés bem trabalhados - , aos meus olhos e
sentidos, é uma cadeira comum, não tem nada de diferente
- não é muito mais leve, nem mais pesada das que eu tinha
em casa... A existência de uma cadeira no Mundo Espiritual
seria de causar espanto aos próprios espíritas ortodoxos!
E, analisando-a de perto, ia deduzindo:
— Ora, para que serve uma cadeira no A lé m ?
Obviamente, não se trata de simples objeto de decoração...
Ela existe mesmo - não se trata de criação mental! Até

71
^dailoa sA. accelli / ’^òanümas'

prova em contrário, cadeira é para se sentar... como cama


é para a gente se deitar.
Experimentando a sua comodidade, prosseguia:
— Uma simples cadeira, depois da morte do corpo,
é um problema que transcende. Engraçado: houve época
em que eu supunha que o M undo Espiritual fosse vazio,
que os objetos se plasmassem pela força da mente e se
desfizessem, de modo quase instantâneo... Mas não, esta
cadeira é firme para me suportar o peso e está aqui ao meu
lado o tempo todo. Coisa da minha cabeça, não é! Esta
cama, esta poltrona, esta mesa — tudo consistente.
A p r o x im e i-m e do delicado vaso com flores e,
tocando-as, falei como quem estivesse conversando a sós:
— Flores, lindas e reais! Não são artificiais... De
uma espécie que não conheço! Não são rosas, não são
cravos... Que perfume agradável!
Olhando em torno: — Madeira imitando madeira,
mas não é madeira; plástico imitando plástico, mas não é
plástico... E matéria: posso pegar, sentir a consistência...
Estes lençóis, o meu roupão... Fios de algodão, porém
diferentes, translúcidos, leves...
A proxim ei-m e de um copo com água, ergui-o contra
a luminosidade que vinha, intensa, varando os vidros da
janela, e examinei-o:
— Agua! Esta, sim, podemos chamar de levíssima,
um orvalho eterizado!... D eixe-m e sorver esta linfa... Não,
na Terra não há sequer uma fonte, por mais cristalina, de
que jorre água semelhante!...

72
^u/, ^sj2ÍúÍQ /C&xmum/

— Olá, D om ingas! - interrom peu-m e D . M a ria


Modesto, adentrando o quarto do qual eu ainda não
conseguira sair. Surpresa, não é?
— Eu estava sentindo os objetos, inclusive o meu
corpo: que coisa, parece carne!...
— Aos nossos olhos, tudo parece ser o que não é...
— O perispírito é feito de carne?
— Recorramos a “ O L ivro dos Espíritos” ... Você se
lembra?
— Mais ou menos...
— Deus, espírito e matéria! Deus, o Criador; o
espírito, o elemento inteligente da Criação: a matéria -
bem, a matéria é energia, que vive em metamorfose...
— O perispírito é carne? - perguntei, de novo.
— Por que você não pergunta se o corpo de carne, o
corpo físico, é perispírito?
— E é?...
— E lógico! O corpo somático é, por assim dizer, a
porção mais grosseira de nossos diversos invólucros
espirituais - quando encarnados, é o nosso corpo
periférico...
— Corpo de periferia?...
— Sim, para um mundo de periferia!...
— Então, não estou enganada: é carne?
— Não, evidentemente, como diria o nosso Dr. Inácio,
uma came dessas que não cozinham nem em panela de
pressão, o dia inteiro ao fogo, mas é carne.
— Desalentador!
— Por quê?

73
<-(ía'do& éA. cíja a o M il (5 bom im aS'

— Porque, se é carne, é passível de adoecer e...


morrer outra vez!
— Tornarmo-nos espírito puro significa tomarmo-
nos puro espírito, livres de toda e qualquer excrescência.
Neste instante, acometida por uma crise de maior
vertigem, estive, por assim dizer, “ fora de m im ” por alguns
instantes. E u me percebia estática, com o se o meu
pensamento se projetasse a longa distância, em um desses
devaneios aos quais nos entregamos sem perceber.
Quando, após, tornei à consciência, sentindo-me
enfraquecida, D . Modesta me chamava pelo nome com
delicadeza, auxiliando-me a sair daquele torpor:
— Domingas, minha irmã! Domingas!...
— O que aconteceu? Tive a impressão de que...
— De que alguém se apropriou de seu pensamento!
— Exatamente; que coisa estranha!...
— São os nossos irmãos da Terra, os companheiros
saudosos de você...
— Como?! - perguntei, tomando um gole d’água, a
respiração um tanto ofegante como se estivesse saindo de
um transe.
— Você se comunicou, Domingas...
— O quê? - indaguei mais surpresa ainda.
— É, o seu pensamento foi rastreado ou, por outra, o
seu espírito foi fortemente evocado por algum dos médiuns
do grupo...
— Isto pode acontecer, sem a participação da minha
vontade?
— Você não queria?...

74
C(oiA/, ^sjzUUo/^^omunv

— Bem, queria e quero, mas...


— Os irmãos reunidos estão pensando em você,
sentindo a sua falta... A mente do m édium , em certas
circunstâncias, pode requisitar o pensamento do espírito,
principalmente quando coadjuvada por outras mentes em
atitude de oração.
— Entendo... Quer dizer que eu me comuniquei?
— Q uando, em nossos c írc u lo s de a tiv id a d e ,
desencarna um tarefeiro como você, todo o grupo fica
sugestionável... É natural.
— Não se trata de mistificação?
— Absolutamente; pode, sim, até ocorrer, mas aqui
não é o caso... O grupo...
— Qual deles especificamente me chamou?
— O “Jesus de Nazaré” , onde, por último, você vinha
centralizando as suas atividades mediúnicas.
— E será que eu disse algo a eles?
— E provável que, uma ou outra palavra, tenha
pronunciado de maneira indireta.
— Como médium, eu?...
— S im , você, eu e tantos outros já operamos
mediunicamente assim; não nos esqueçamos de que o
médium, sobretudo, é altamente im pressionável... O
inconsciente dos demais companheiros pesa sobre o dele
e, então, se sente induzido a sair procurando.
— Uma mensagem forjada?
— Não.
— Mas eu não me lembro de nada...

75
c& a-ilo& s 4 . c$>acad lv / Çè>otmn^aS'

— 0 espírito pode se manifestar com maior ou menor


grau de lucidez.
— Insisto: um mistificador não poderia tomar meu
lugar?
— Poderia e, repito, nos grupos invigilantes, o
fenômeno acontece com certa freqüência, mormente quando
o médium se deixa levar pelo personalismo.
— Quando o nosso Chico X a vie r desencarnou, muitos
médiuns começaram a receber mensagens dele ou atribuídas
a ele...
— Você colocou bem: atribuídas a ele, o que não
s ig n ific a que, todas, necessariam ente, tenham sido
transmitidas por ele.
— Algum as mais e outras menos autênticas?
— Sim, de acordo com a capacidade do médium em
registrar-lhe o pensamento... Domingas, o pensamento de
nosso Chico está por aí - não nos esqueçamos de que o
pensamento tem comprimento de onda, é uma força que se
propaga através do éter. Mediunidade - nunca será demais
repetir - é sintonia, que se traduz por “ entrar na mesma
fa ixa ” ...
— O espírito nem sempre “va i” ao médium?
— A mediunidade é uma via de mão dupla, pela qual
o espírito e o médium trafegam sob os mais diferentes
impulsos.
— Estarei, agora que desencarnei, sempre sujeita a
isto?
— Até que, pelo menos, a comoção dos companheiros
a deixe com independência relativa.

76
Outros <Esc[arecimentos

— Independência relativa? - questionei, interessada


em me aprofundar. — O que quer dizer?
— Sim, minha irmã, porque, afinal, quem, nisto ou
naquilo, pode se ufanar de completa liberdade de atitude?
Estamos sempre agindo segundo as conveniências pessoais,
não raro sequer claramente detectadas por nós.
— D. Modesta, um espírito pode ser atraído a uma
reunião...
— Domingas, utilize o termo que você queria, em
vez de “ atraído” ...
— A palavra que, primeiro, me veio à mente foi
“ constrangido” ...
— Então, refaça a pergunta: “ um espírito...”
— ...pode ser constrangid o a uma reunião, a
comparecer a uma reunião, pelos seus familiares?

77
c€a'ita& s4 . c$>ac celli// 'Sbominqas'

— Os espíritos não se sentem evocados apenas e


tão-somente por palavras formais. Vejamos, nas reuniões
de desobsessão...
— Sim, eu ficava sem entender a presença dos
obsessores, que compareciam com a finalidade de serem
doutrinados. Ora, se eu fosse um obsessor, passaria longe...
— Temos, aí, que levar em consideração vários
fatores: a prece em conjunto cria poderoso campo
magnético de atração, dentro do qual operamos; como a
limalha de ferro se sente atraída pelo imã...
— As trevas se sentem atraídas pela luz!
— Os esp íritos obsessores, em m a io ria , não
comparecem voluntariamente às sessões mediúnicas de
esclarecimento espiritual; em se associando às mentes dos
Espíritos Mentores, os médiuns psicofônicos ou portadores
de outras faculdades vão até eles e...
— ...os coagem a comunicar-se!
— A revelarem-se em suas intenções...
— Não são todos conduzidos pelos Benfeitores?
— Às vezes, sequer se encontram no recinto
constituído pelo espaço físico da reunião.
— Mediunidade...
— É um pensamento emocional, atuando dentro e
fora do espaço e do tempo!
— Pensamento em ocional...
— O espírito não é só pensamento.
Respirando de maneira mais tranqüila, após aquele
“transe indireto” , indaguei, preocupada:

78
^spm lQ 'C^omwn/

— D . M o d e s ta , eu era “ p io lh o ” de centro em
Uberaba...
— Eu sei.
— De repente, se todo m édium amigo me quiser
“receber” , estarei frita...
— Precisamos, filha, ponderar quanto ao seu atual
estado de fragilidade psíquica - você aprenderá a se isolar...
Se nós, os desencarnados, incomodamos os médiuns, é
natural que eles nos incomodem. Estamos dentro de nosso
“m étier” ...
— Nossa! - exclamei. — D e mediunidade, a gente
não sabe nada...
— Nem a gente lá embaixo nem a gente aqui em
cimal
— Fico pensando no quanto aborreci os espíritos: o
Dr. Odilon, o Dr. R udolf, Irmão José e mesmo a senhora...
— Existem espíritos que dão procuração aos médiuns
ou a outros espíritos, e pronto.
— Procuração?
— Força de expressão. Os nossos irmãos entendam
como puderem ou quiserem!
— Que irmãos? - questionei, ingênua.
— Os irmãos aos quais você irá escrever!
— Eu?!...
— Você mesma, M a ria Rodrigues Salvador, mais
conhecida por Domingas. Você adora escrever, minha filha!
— Adorar, adoro, mas... escrever para a Terra!...
— Orientações são orientações - disse D. M aria
Modesto, entregando-me como se fosse um calhamaço.

79
c€ a 'd o S '£ /(. cfôacc& lló / Q )am uiq(t&

— O Dr. Odilon pediu-me que lhe passasse este material:


vá anotando tudo o que considera mais interessante...
— Tudo é interessante! Estou respirando - eu não
supunha que, no Além , existisse oxigênio; a minha carne,
que coisa!
— Depois, o Dr. O dilon revisará, considerando o
que é e o que deixa de ser conveniente publicar.
— Mas eu não sei me expressar...
— Não se preocupe com as palavras; o que importa
é a informação...
— A senhora não estaria mais apta para tanto?
— Filha, dedico-me a outras atividades e, por serem
recentes, as suas im pressões haverão de ser mais
interessantes; não sei se feliz ou infelizmente, pouca gente
lá embaixo ainda pensa em mim... Como diz o nosso caro
Inácio, você é um defunto fresco!
— Ele é terrível! Como se dará a transmissão destas
minhas notícias? Eu mesma poderei fazê-lo?
— Provavelmente, sim; trata-se de um detalhe de
somenos... Os que duvidam sempre haverão de duvidar,
ao passo que, para os que crêem, tudo é admissível.
— Alguém poderia escrever em meu nome?
— E claro, sem nenhum problema.
— Já que estamos tratando de assunto tão
interessante, perm ita-m e perguntar: o m é d iu m , em
desdobramento, pode se programar previamente? Não sei
se estou me expressando bem. Quando encarnada...
D. Modesta sorriu.

80
^sm üto/^^om unv

— O que fo i? - indaguei, im aginando que, sem


perceber, tivesse dito alguma impropriedade.
— A naturalidade com que você começa a se referir
ao próprio desenlace... M as continue.
— Quando encarnada, eu tinha a impressão de que,
durante a noite, me entrevistava com os espíritos que, no
dia seguinte, haveriam de se expressar por meu intermédio...
Pode acontecer?
— Com bastante freqüência. Esse entendim ento
prévio entre médium e espírito facilita a sintonia. Vejamos
bem: raras vezes, por exemplo, um p intor concebe um
quadro sem antes esboçá-lo sobre a tela; um pianista não
se apresenta para determinado concerto, sem exercitar-se
por horas a fio; um cirurgião não se atreve a intervir com
o bisturi sobre um organismo vivo , sem aulas de dissecação
em cadáver; os maiores escritores rascunharam as suas
obras, aprimorando a redação dos textos...
— A instantaneidade?...
— E a da idéia original. D eixe-m e ser mais clara: o
espírito é o autor da idéia; a sua apresentação corre por
conta do médium...
— Somente a apresentação ou será lícito ao médium
desenvolvê-la?
— O médium é co-autor!
— Para enriquecer um trabalho, ele pode pesquisar?
— Pode e deve, sem nenhum escrúpulo.
— Eu gostaria, no entanto, se possível, de eu mesma
escrever através do médium...

81
r~&a'ilo-S' éA. ^fyaocetto / ÍÒummcms

— ü seu pensamento o fará escrever você não


escreverá.
— Quando eu incorporava o Dr. Rudolf?..
— O pensamento do Dr. R u d o lf sensibilizava o seu
- mediunidade é isto! Na verdade, nunca será demais
repetir: o espírito manifestante se utiliza do espírito do
médium; e não propriamente de seu corpo. O médium é
uma espécie de tradutor de idiomas, consentindo que
alguém se expresse pela sua boca...
— D. Modesta, e aqueles espíritos enfermos que a
gente recebia nas sessões de desobsessão? Choravam por
nosso intermédio, sentiam dores, mutilações, às vezes,
esbravejavam...
— Domingas, ao processo intelectual de transmissão
da idéia junta-se o processo do envolvimento emocional,
de acordo, é óbvio, com o grau de sensibilidade ou de
passividade de cada medianeiro. Existem espíritos que,
embora chorem copiosamente, não conseguem verter uma
única lágrima através dos olhos do médium de que está se
valendo... O médium deve estar para o espírito como um
ator está para o seu personagem em cena!
— A gente oferece m uita resistência, não é? Por
preconceito, excesso de desconfiança...
— Precisamos buscar o meio-termo, a moderação,
porque, evidentemente, não podemos nos descurar da
disciplina. Se se manifestassem eles mesmos, sem nenhum
controle da parte do médium ou dos Benfeitores que os
conduzem, certos espíritos haveriam de inviabilizar o
proveito da reunião, constituindo-se, inclusive, em ameaça

82
^spíiUo/^&im um ,

à integridade física de seus participantes. O centro espírita


é uma casa de caridade, mas nem por isto deve-se consentir
que vândalos a in va d a m ; a caridade do “ não” é tão
importante quanto a do “ s im ” - cabe-nos discernir o
momento de uma ou de outra!
Coligindo ^notações

Quando nossa irmã D . Modesta saiu, iniciei o trabalho


de coligir anotações sobre as experiências que estava
vivenciando, transferindo, depressa, para o papel algumas
impressões básicas, com o intuito de que não viesse a
perdê-las; tive medo de que, qual nos ocorre quando
sonhamos na Terra, fosse acometida de qualquer amnésia
quanto a certas lembranças que julgasse essenciais... E,
depois, embora certa desenvoltura intelectual comigo, eu
não me sentia totalmente recuperada da isquemia cerebral
de que fora acometida.
— Por onde começar? - questionei, articulando as
palavras, com a mão estática sobre a primeira lauda. Uma
forte emoção apoderou-se de m im e, pensando nos amigos
que deixara, consenti que algumas lágrimas me viessem
aos olhos. A h, como gostaria de lhes transmitir uma prova
irrefutável de minha sobrevivência! Quantas vezes, na
condição de reles mortal, eu suspirara por um comunicado

84
<~i§u/, ^spMUO'C^omunv

de além-túmulo que me repletasse o coração de esperança


e me satisfizesse todas as exigências da razão!...
Num átimo, vi-m e, em espírito, de novo participando
das reuniões no Lar Espírita “ Pedro e Paulo” , em Uberaba,
aos sábados e domingos pela manhã, sendo testemunha
auricular dos espíritos que, escrevendo através do médium,
sempre e n fa tiz a v a m as d ific u ld a d e s na ta re fa do
intercâmbio... Seriam, de fato, tão grandes assim? -
perguntava, esquecendo-me de que também era médium,
e que, em outros dias da semana, as dificuldades eram
comigo, quando me d isp u n h a a in te rm e d ia r os
desencarnados. M a rc a ra -m e , p ro fu n d a m e n te , o
comunicado de um jo ve m aos seus genitores, escrevendo
mais ou menos assim: — “ Mamãe e papai, se pudesse,
haveria de me materializar aos olhos de vocês, ensejando
que me pudessem tocar com as mãos, de forma que não
lhes pairasse qualquer d ú vid a em relação à m inha
sobrevivência... Entretanto, não conto com nada além de
uma caneta e algumas folhas em branco para lhes falar do
meu amor e saudade, na expectativa de que vocês não
duvidem de que aqui, nestas linhas, sou eu mesmo, o filho
que não morreu!...”
— M eu Deus! - exclamei, limpando com as mãos as
lágrimas que me banhavam o rosto. — O que, igualmente,
poderei fazer com caneta e papel, já que, agora, não
disponho de recursos mais diretos e convincentes a fim de
me dirig ir aos que, talvez, esperam, de minha parte,
manifestações retumbantes?

85
sA. c$>accM i/ / Çbomwujas-

Deixando, por instantes, a caneta de lado, orei pedindo


a Jesus que me arredasse do espírito qualquer pretensão,
incompatível com a minha indigência espiritual - que eu
não almejasse o que não estivesse à altura de minhas
possibilidades, compreendendo que tudo tem o seu curso
natural e que a aceitação ou não do que viesse a escrever,
era questão concernente a cada um.
Ao terminar a ligeira prece, comecei a rascunhar
palavras, selecionando informações que, de fato, fossem
de interesse prático para os seus possíveis leitores, os
irmãos encarnados, sempre tão ávidos por notícias do Plano
Espiritual. Recordei-me de que eu mesma, quando uma
nova obra mediúnica me vinha ter às mãos, percorria as
suas páginas com sofreguidão, na expectativa de novidades
que me ilustrassem e fortalecessem a fé na Imortalidade.
Que poderia dizer de diferente, se pouco ou quase nada eu
constatava de diferente em m im e à minha volta? A vida.
no Plano em que me situo, me parecia, quanto me parece,
tão igual à existência que v in h a de deixar no corpo
grosseiro!... Como - questionava-me - , na Terra, olhando
para o Espaço aparentemente vazio, podemos não enxergar
uma v id a tão concreta e tão p a lp á ve l? D e sentidos
obliterados, não temos cérebro programado para enxergar
além do que os nossos olhos foram habituados, nem para
registrar ouvidos acima ou abaixo de nossa capacidade
auditiva.
A luz da Verdade não vara as sombras da ignorância
humana, senão muito lentamente - pensei. O que posso
fazer se, à semelhança de tantos outros, não lograr sair do

86
^w , ^sw uio/^íam um

lugar-comum? Pela primeira vez, compreendi a dificuldade


dos espíritos que se colocam em contato com os homens
e, com freqüência, se queixam da pobreza do vocabulário
para se expressarem com maior clareza de idéias.
Estava já quase desistindo, quando um jovem , cujo
semblante não me era de todo estranho, veio me visitar.
— Domingas, minha irmã. como vai passando?
— Você é o...
— Paulino Garcia!
— Que alegria, é um prazer apertar a sua mão
pessoalmente! Sou fa incondicional de suas obras...
— Pálidos esboços, Domingas - nada mais do que
isto.
— Eu as comentava com entusiasmo em minhas
palestras; a sua linguagem é muito acessível...
— Não dou conta de c o m p lic a r... É um a das
vantagens da falta de erudição.
— Modéstia sua.
— O Dr. Odilon me disse que você...
— É, estou aqui, semi-analfabeta, mal sabendo falar,
tentando escrever... Sempre fui um espírito atrevido. Hoje,
me envergonho... M eu Deus, quando me levantava para
uma palestra espírita, devia estar m ediunizada - não
encontro outra explicação para a minha coragem.
— Não. Escutei-a muitas vezes no “Pedro e Paulo” ;
você falava embasada no currículo de sua experiência de
vida; falava com o coração.
Aproximando-se, com discrição, da mesa em que me
encontrava apoiada, com o olhar perdido no horizonte, à

87
cd a 'ila s> S 4. c$ )a c c M i ! ^ a m in g a &

espera da inspiração que custava a chegar, Paulino


perguntou-me:
— Bem, como está se saindo em sua nova tarefa?
— O pensamento não deslancha - queixei-me está
difícil...
— Escreva sem preocupação.
— O pessoal lá embaixo é m uito exigente, crítico...
— Façam melhor!
— Este era o meu argumento preferido, quando...
Percebendo que eu não terminara a frase, o simpático
pupilo do Dr. O dilon emendou sem evasivas:
— ...quando alguém me criticava, não é?
— Estou encantada com a sua presença - disse,
procurando desconversar. — Você é real?...
— Se quiser, pode me apalpar - redargüiu com jovial
sorriso nos lábios.
— Se eu não me sentisse comprometida... Paulino,
lembro-me muito de seus pais, no “Pedro e Paulo” - de
seus irmãos, um pouco menos.
— Estão todos lu ta n d o ... R e a lm e n te , quando
encarnados, não é fá c il nos desem baraçarm os das
circunstâncias da vida material, as quais, quanto mais nos
entregamos a elas, mais nos fragilizam.
— Você tocou num ponto...
— Tudo pede cultivo. N inguém se espiritualiza a
contento, fazendo concessões ao imediatismo. Trata-se de
uma escolha complexa e, naturalmente, de foro íntimo.
Q uem somos para so lic ita r m a io r cota de renúncia,
desapego de nossos irmãos no corpo?...

88
^ w , ^spM Uo/c&amum/

— A questão, Paulino, estou chegando recentemente


da Terra e sei, é que o hom em não consegue deixar de
pensar em seu saldo bancário - ele tem um medo terrível
do futuro! Também, com a falta de solidariedade que grassa
no mundo...
— Todavia os pássaros não morrem de fome!...
— Eu não posso me queixar, os amigos me ajudaram
muito, mas de modo geral... U m dos médicos que me
atenderam chegou a me fazer a seguinte pergunta, para
justificar o dinheiro que me pedia por fora de meu convênio:
— A senhora veio aqui para se curar ou para morrer? O
seu convênio só cobre tal medicamento...
Fiz uma pausa e acrescentei, hilária:
— Um dos m otivos de eu estar me convencendo de
que estou morta é que, até o presente momento, ninguém
falou aqui em dinheiro comigo: não me perguntaram sobre
plano de saúde, não me pediram para assinar nenhum
documento... É, estou “ mortinha da silva” ! Internação de
graça, remédio de graça, comida de graça, nos hospitais da
Terra?!...
— Idéias originais... Gostei! Coloque-as no papel.
— Dirão assim: — “Domingas, escritora?! Aquela
obsediada, que v iv ia correndo nas ruas de Uberaba,
apaixonada por um soldado bêbado?!...”
— Falaram e falam de m im : — “Aquele filhinho-de-
papai, agora metido a autor de obras espíritas?! V iv ia
correndo de moto nas ruas de R io Preto, freqüentando
boates, namorando a granel...”

89
c€a^loS' éÂ. ^fâaccelli// S)<k w i ^ h>

— Há tanto tempo que eu não namoro, que até me


esqueci de como é, mas deve ser bom, não é, Paulino?
Gente m orta tem o direito de namorar? - perguntei com
uma ponta de ironia.
(Passeio £7V^atinaf

Antes de prosseguir, faço questão de esclarecer que.


para mim, a palavra namoro nunca teve a conotação que,
modemamente, se lhe vem dando, chegando a deturpar-lhe
o significado romântico, se bem que, não sei a causa, se
pensa que o espírito é um ser assexuado... Se o simples
fato de desencarnarmos equacionasse os nossos problemas
afetivos, a chamada morte seria muito mais eficiente do
que a Vida, no que tange à nossa reforma interior.
Afrânio e Celina, os fisioterapeutas, haviam, por
orientação do Dr. Inácio, vindo me acompanhar em meu
primeiro passeio matinal. Pela primeira vez, depois de não
sei quantos dias, eu sairia do quarto.
— D. Domingas - anunciou Celina, auxiliando-me
com uma roupa mais apropriada - , vamos dar uma volta
pelo pátio...
— Os jardins do hospital são muito bem cuidados -
emendou Afrânio a senhora vai gostar.

91
c&a'itoS' sA. c!f&accelli j dom ingas’

— Será que as minhas pernas vão agüentar? Eu tinha


um problema terrível nos joelhos...
— Esqueça; não pense nisto!... Pelo menos, da dor
em suas articulações, a desencarnação deve tê-la livrado.
— Pelo menos! - concordei. — Se não for assim,
morrer não vale a pena... D e ixe m -m e tentar caminhar até
a porta. Vamos ver se não manco... Era uma dor que, dos
joelhos, me subia até aos quadris, quase me entrevando.
Engraçado, eu ainda não tinha prestado atenção -
preocupada com os meus pulm ões, a questão articular
crônica se fizera obsoleta.
— V ê que c o isa ? E s to u m a is lé p id a , quase
volitando...
— Vamos com calma; falta m uito para a senhora
chegar lá - d isse -m e C e lin a , acom panhando-m e os
movimentos desenvoltos.
— Sério mesmo: estou me sentindo mais leve...
— A mente é a últim a parte do espírito a desencarnar!
— Podemos sair? - perguntei. — Estou ansiosa por
ver gente...
— Quer dizer que nós, D . Domingas?...
— Não, vocês não entenderam... Ou entenderam -
não sei.
Im po ssível descrever um dos m uitos jardins do
hospital, todos eles muito bem cuidados e constantemente
floridos.
— Que maravilha! Sim - comentei, descontraída -,
devo estar mesmo morta, porque, em Uberaba, eu nunca
vi nada igual: lá no Sanatório, então, ultimamente o mato

92
^ u /, ^ sizíú t& cQomu4ri/

vinha invadindo tudo... N ão se trata de crítica, mas, se


entenderem assim, tudo bem, assumo o que estou dizendo
e seja o que Deus quiser - o pau irá cantar na m inha e,
p rincipalm ente, na cabeça do m é d iu m : não te m
importância...
C a m in h a n d o p elas a la m e d a s, re sp ira n d o o ar
balsâmico daquela manhã, extasiava-me com a beleza e a
exuberância das flores.
— Que azaléias lindas, rosas e hortênsias!
— Não merecemos tanto, não é, Dom ingas? - ouvi
uma voz que me pareceu extremamente familiar.
Quando me virei, para ver quem tinha pronunciado o
meu nome, fui tomada de indefinível emoção.
— D. Geralda! - exclamei, embargada. — É mesmo
a senhora?...
— Em came e osso, Domingas!
— Não, não é possível! Agora me convenci de vez...
— ...de que está morta, não é?
— Por favor - pedi - , quero ganhar um abraço...
Que saudade! Que alegria! Com o a senhora está bem!...
— M e lh o ra n d o , m e lh o ra n d o ... C o n te -m e as
novidades.
— Eu é que quero ouvi-la... C om o é que está se
arranjando o nosso pessoal?...
— Na luta de sempre - devagar, quase parando, mas,
com a proteção de Jesus, não há de parar!
— E nem pode, minha irmã. Vamos nos sentar um
pouco - convidou, tomando-me as mãos entre as suas,
logo após, com o olhar, ter solicitado a aprovação de
Affânio e Celina.

93
<
iía/Uaíy éÂ. cfhaccMo/ ÇÉomuuiU-s.

— Estou sem palavras...


— E, assim que os meus olhos se descerraram por
aqui, estas paragens, eu também fiquei; depois, a gente vai
se acostumando... Façamos de conta que mudamos de país,
que estamos v iv e n d o entre pessoas um pouco mais
civilizadas, morando numa cidade sem vandalismo, sem
corrupção política...
— D. Geralda, isto, até fazer de conta, é difícil.
— Estou feliz por você, Domingas... O pessoal tem
comentado...
— Comentado o quê? Já estão fofocando com o meu
nome? Eu mal cheguei...
— Não - redargüiu, sorridente há muito espírita
por aqui, mas não é fofoca, não... O Dr. Inácio, que não
brinca em serviço, manda trancafiar a turma. O pessoal
está dizendo que você se houve m uito bem...
— Em quê?! Coitada de m im !... A minha vida foi
sempre muito atribulada - a senhora sabe. Eu não sei se
era m édium de desobsessão ou se tinha obsessão de
médium...
— Pode, vá lá, concordo, ter se equivocado em um
ou outro detalhe, porém, no geral, foi vitoriosa; investindo
na caridade, você agiu com sabedoria, Domingas! O mesmo,
infelizmente, não posso dizer a meu respeito...
— Por que, não? A senhora nos deu verdadeiros
exemplos de fé, de amor à Causa...
— P re o c u p e i-m e em excesso com a fam ília,
desperdiçando muita energia com o pessoal à minha volta;
não me c o nvé m e sp e c ific a r... A verdade é que.
espiritualmente, eu poderia ter deslanchado mais.

94
<
~èiA', ^spíwA&^ÇLomiwi

- Eu não penso assim...


— Mas a minha consciência pensa.
— D. Geralda, a senhora foi extraordinária! Somente
a sua presença entre nós...
— Vamos deixar de comentários tristes - quis mudar
o rumo da conversa. — O certo é que agora estou me
sentindo mais livre; pelo menos, não abandonei minha cruz..
— De forma alguma! A senhora era um dos nossos
pontos de referência moral... Não fique assim. O que há
de sobrar para mim ou para os nossos amigos lá embaixo
que continuam quebrando a cabeça?
— Domingas, minha filha, a coisa aqui é feia: isto é
uma imensidão! Para todo lado que a gente vire, tem espaço
incomensurável... A ilusão de sairmos do corpo volitando...
— E, eu sei: sair do corpo volitando, viajar pelo
Cosmos com a força do pensamento, adquirir poderes
‘sobrenaturais” ...
— A morte é um passo adiante... no tempo! Em relação
aos que ainda se encontram encarnados, estamos vivendo
no futuro.
— Que, para nós, é Presente e, para os que já se
adiantaram, é Passado!
— Reencamar, de certa forma, é viajar ao Passado...
— Desencarnar, um salto quântico ao Futuro!
"Salto quântico” ? Domingas, onde você aprendeu
isto? Eu não sabia que tinha estudado Física...
— Nem eu! D e quando em quando, isto vem à minha
cabeça... Eu tomava muito “M elhorai” , não é, D . Geralda?
Todo dia!

95
cHa'tlo&' £Á. c$>accelÍL / domingas'

— U m “ M elhorai” pela manhã, todo dia! Para alguma


coisa, o remédio deve ter servido...
— M as, como íamos falando - retomou o assunto -
, isto aqui é inim aginável: se, na Terra, a gente se sentia
nada, aqui a gente nada se sente... Tenho conversado com
o Dr. Inácio, para ver se ele põe a m inha cabeça no lugar
- não é que eu esteja ficando louca, não! É que, por mais
tentasse fazer idéia...
Chamando a m inha atenção para alguns pássaros que
trinavam nas ramadas, alimentando os filhotes recém-saídos
dos ninhos, D . Geralda Andrade Freitas considerou:
— Bem , você está se refazendo e eu... Desculpe-
me.
— Desculpá-la, de quê? Está sendo ótimo... Estou
felicíssima por reencontrá-la! N ão podemos nos encontrar,
depois da morte, para apenas ficarmos falando das flores
e dos pássaros - gosto m uito de flores, mas a Verdade me
interessa mais! Sou curiosa, quero observar cada detalhe...
Por exemplo: a pele de seu rosto, as rugas desapareceram;
os cabelos se tomaram mais sedosos; os olhos estão mais
vivos; os seus ombros não se mostram arqueados como
antes - a senhora rejuvenesceu!
— Pelo menos, por fora, parece que sim...
— O seu porte, a sua elegância... Eu, com os quilos
que perdi, vou ter que recorrer à um cirurgião plástico. A
senhora sabe me dizer se o Dr. Pitanguy já desencarnou?
Sorrimos e continuamos a dialogar.

96
“(Jia” (]% ir e <J). (Horigonta

— D. Geralda, conte-me...
— Domingas, não é preciso estar me chamando de
D. Geralda! Essas convenções ficaram por lá...
— É força do hábito; vai ser d ifíc il eu me acostumar
- respondi.
— Somos esp írito s, sem idade, sem q ualquer
formalidade no relacionamento, até, para dizer a verdade,
sem uma face definida, sem lado...
— O corpo de carne continua nos assombrando, não
é?
— E como nos assombra, m in h a filh a ! - disse
simpática companheira se aproximando, envolta num halo
de suave luminosidade.
— Quem é? - perguntei, curiosa.
— Vam os ve r se a d iv in h a ... C o lo q u e a sua
mediunidade para funcionar.
— A sua fisionomia não me é estranha...

97
c(la'iloj&> SA. cí$acce£li' / (s£>aminqaS'

—- Ora, Dom ingas! - aparteou D . Geralda. — É a


“tia” Nair...
— D . N a ir Dorça, do “ A C am inho da L u z ” ?!
— Ainda, como você, m inha filha, em carne e osso.
literalmente.
— Que alegria! - disse, levantando-me do banco para
abraçá-la.
— Soube que você tinha chegado e v im lhe dar boas-
vindas, em meu nome e no de m uita gente nossa, que, aos
poucos, você reencontrará.
— “T ia ” Nair, morrer assim é m uito bom; é quase
como estar no Céu...
— M as não se iluda, não estamos. A qui, é apenas a
outra metade da laranja ou, se preferir...
— ...da jaca!
— Isto mesmo.
— Quem fo i que lh e deu a n o tíc ia de meu
passamento? - indaguei. — Credo! como as novidades se
espalham...
— “ Credo” ! U m termo bem humano. Gostei.
— Fomos informados antes que você estava prestes
a deixar a carcaça e ficamos na torcida...
— Para que eu me recuperasse, não é?
— Não, para que viesse logo! Depois de certa idade,
Domingas, a gente começa a marcar passo; o negócio é
começar de novo...
— Começar de novo, trabalhando com mais proveito
- falou outra irmã, vindo se juntar ao nosso pequeno grupo.
— A senhora?... - questionei reticente, francamente
incapaz de identificá-la.

98
^SfiOdLo/^ftamum/

— A senhora, não, você! Horizonta Lemos, ao seu


dispor.
— D. Horizonta! Não é possível!
— Dona, eu?! M ais jo v e m que você?!...
— Como vocês estão todas bem e eu neste estado:
gorda, feia e, alguns meses antes, careca - a quimioterapia
derrubou os meus cabelos!
— O corpo de carne é uma tapera que vai ruindo
devagar...
— Vocês se organizaram em algum grupo? Quero
participar... Posso? E stã o estu d a nd o a D o u tr in a ,
trabalhando?
— Estudando e trabalhando como nunca - elucidou
“tia” Nair - , tentando esquecer o que fomos...
— Para quê? Esquecer o que fomos?
— Para não ficarmos na suposição de que fizemos
algo...
— O pessoal nos cultua, os nossos amigos e, às vezes,
até os nossos familiares - cultuam a nossa memória, o
nosso esforço insignificante... Ora, o que fo i que fiz? -
questionou D . H o rizonta. N ada! C onstruir um a casa
espírita? R e u n ir pedras e tijo lo s ? ... F a ze r sopa na
periferia?... Sinceramente, estou empenhada em esquecer
que fui Horizonta!
— Interessante.
— A gente precisa se identificar, mas...
— A trajetória que, neste sentido, precisamos imitar
- comentou “tia” N air - é mesmo a do nosso Chico Xavier:
de Francisco, passou a Chico; de Chico, a “ cisco” e, de
“cisco”, virou luz!

99
c€xi%la&' SÁ. cfâ a c c e lli/ / <
Sbamincia&>

— Por onde será que anda? - perguntei.


— Por aí, minha filha, por aí.
— Vocês já o viram?
— Nós, ainda não; outros, sim.
— A h, eu queria vê-lo!...
— Quem sabe, não é? D e repente, a luz pode se
tangibilizar...
— Antes de vocês chegarem, estava conversando
com D . Geralda do Capitão Sabino, tentando entender...
Não sei, à medida que o tempo vai passando, a experiência
que viv e n c ie i na Terra, em bora recente... Não tenho
palavras para explicar. D e repente, eu não quero ficar
pensando... Penso em tudo, menos no trabalho, é claro,
com certa indiferença. M e u Deus, como nos prendemos
ao transitório! E u não sei como pode haver espírito que
fica retido, preso a posses e sensações efêmeras!...
Enquanto no corpo...
— A gente não quer m orrer de je ito nenhum! -
completou D . Horizonta.
— É, mas, depois de morrer, acha que deveria ter
morrido há mais tempo!
— Não é o que todos pensam, Dom ingas - apressou-
se em esclarecer “tia” N air a impressão que você retrata
demonstra já um certo grau de amadurecimento do espírito,
na gradativa independência que vem conquistando sobre a
matéria. Compreenda, não estamos nos colocando, em
relação aos demais, nos colocando - repito - numa condição
superior; não fosse o Espiritismo em nossas vidas!...
— N em fale, N air! - atalhou D on a Geralda, que
acompanhara o nosso diálogo em silêncio. Não fosse o

100
c<oiA/, ^ s jiíú la 'C^am unu

conhecimento da D outrina, meu D eus!, eu estaria na


mediocridade, ou melhor, na mais completa mediocridade.
— Quanto a m im - concordei - , seria uma louca
correndo pelas ruas...
— O Espiritismo nos coloca nos trilhos da evolução
- observou D. Horizonta com ele, a gente começa a
crescer...
— Existe companheiro que afirma que ser espírita é
uma condição de merecimento...
— Merecimento, não; necessidade, sim - redargüiu
“tia” Nair. Para mim, conhecer a Doutrina foi como nascer
de novo na própria existência física!
— O Espiritismo nos acorda, não é? Sinceramente,
eu não consigo enxergar o meu passado - é como se ele
não existisse ou não valesse a pena e xistir. E stou
começando a viver agora...
— M uito bem, Domingas - falou D . Geralda - , você
se expressou com clareza. Tenho a impressão de que o
meu parto e sp iritu a l fo i re a liza d o pela D o u trin a ...
Espiritualmente, nasci na minha derradeira encarnação!
Todavia...
A querida irmã, de mãos cruzadas sobre o colo,
suspirou fundo e, de semblante anuviado, completou:
— ...sinto que estou perdendo tempo; mesmo assim,
estou perdendo tempo! Eu preciso me animar, entregando
o meu pessoal um pouco mais à D ivin a Providência; ainda
me preocupo muito... Tenho pena deles!
— Ora, Geralda! - comentou “tia” Nair - , se continuar
assim, de coração preso, não dem ora você estará

101
cQw ito& <s4. cífb a c c M i / ÇJbomiruiaS'

reencamando. Não é momento disto; as coisas precisam


melhorar um pouco, pois, caso contrário, voltará quase
para a mesma situação... Desapegue-se! Os filhos, netos e
familiares outros são de Deus e não nossos.
— A “tia” N air tem razão, D ona Geralda - disse,
tentando confortar a querida irmã, a quem considerava por
minha própria mãe. Os nossos Instrutores esclarecem que
a saudade e a tristeza, em relação aos que deixamos no
mundo, quando excessivas, fazem precipitar o regresso do
espírito à experiência física. A senhora, todos somos
testemunhas disto, cumpriu, e muito bem, o seu papel de
esposa, de mãe, de avó. D eu a sua cota; agora, é com eles,
que precisam aprender a se virar...
— O que vocês me aconselham, para não continuar
com a sensação de que estou perdendo tempo?
— Geralda, m inha irmã - esclareceu “tia” Nair
essa sensação é de todos nós: por mais façamos, sempre
estaremos aquém de nossas possibilidades... O integral
aproveitamento do tempo é conquista dificílim a. Dias atrás,
conversando a respeito com o nosso caro Dr. Inácio, ele
nos disse: — “ Mantenhamo-nos em atividade produtiva,
sempre procurando u m m o d o de sermos úteis aos
semelhantes; o segredo é não paralisarmos as mãos, ainda
que seja costurando ou varrendo...”
— D . D om in g as - cham ou-m e, discretamente,
Afrânio, o fisioterapeuta - , peçamos licença às nossas
irmãs... Precisamos seguir.
— Vamos nos reunir-convidei-as - , como fazíamos,
para o culto do Evangelho... Que tal?

102
O C aso ^Benvintfo

— Será ótimo, Domingas! - alegrou-se D . Geralda.


— Outros poderão participar conosco - acrescentei.
— Creio que o Dr. Inácio nos cederá uma sala... Poderemos
nos reunir uma vez por semana, não só refletindo sobre as
lições do Evangelho, quanto conversando em torno das
experiências que temos vivenciado, no corpo e, agora, fora
dele.
— Excelente idéia - aprovou “ tia” Nair. — Você já
chegou querendo movimentar as coisas, não é?
— Vejam bem, não estou querendo coordenar nada...
— Não, não foi o que eu quis dizer; estou admirada
de seu dinamismo e disposição para o trabalho... Que falta
você deve estar fazendo aos nossos irmãos encarnados! O
seu entusiasmo é contagiante.
— Eu não sei fazer outra coisa, “tia” Nair. Não sei
ser mãe, esposa, não sei cozinhar, não sei mexer com
dinheiro, não tenho nenhuma vocação artística... A única

103
c(La'ilo& s4 . cH%accelíí/ / ’j& om inqas'

coisa que aprendi a ser, mais ou menos, fo i ser espírita e


médium! Se, um dia, tiver que reencamar para ser mãe ou
pai, vai ser um problema. O A b e l está me rodeando de
novo, mas... O Espiritismo é a m inha praia! Eu gosto é de
reunião, espírito comunicando-se, dar passes em doentes...
E disto que gosto! V ivendo assim, estou feliz, não quero
mais nada.
— D. Domingas, vamos - fo i a vez de Celina insistir
comigo.
— Apareçam! Tragam mais gente!
Despedimo-nos e, assim que me v i a sós com os
fisioterapeutas que me acompanhavam naquele passeio
matinal, perguntei:
— Vocês acham que estou com a cabeça afetada?
Sempre me achei um pouco exagerada... D o que mais me
chamavam era “ fanática” e “ obsedada” - gente que se
dizia espírita!
— A senhora...
— Desculpem-me: estou, confesso, deslumbrada com
tudo! A vida depois da morte é m uito mais interessante
que eu im aginava: nada de espírito voando, de corpo
espiritual diáfano (eis aqui outra palavrinha que eu nunca
sequer soube pronunciar!), de construções suspensas...
Certa vez, um espírito escreveu lá no “ Pedro e Paulo” que,
para ele, o fenômeno da morte era como entrar numa casa
pela porta dos fundos e sair pela porta da frente, ou vice-
versa: a uns conduz ao jardim , a outros, ao quintal!...
— A senhora vai acabar nos doutrinando - gracejou
A ffânio.

104
<=&u/, ^sfzí)Uto'ClEamum/

— Eu?! Imagine!... N ão tenho a intenção disto, não.


Se vocês estão a q u i, são e s p írito s e a in d a não se
convenceram da re a lid a d e , lo n g e de m im q u alq u e r
pretensão. Aliás, sinceramente, eu não entendo...
— O quê, D . Dom ingas? - inquiriu-m e Celina.
— Vocês não a c re d ita re m na R e e n c a rn a ç ã o !
Perdoem-me a franqueza. D ois jovens inteligentes... N ão
sei o que se passa. Sabem que m orreram , que não
encontraram o Céu...
— E, graças a Deus, nem o Inferno! - apressou-se
Afrânio em dizer.
— Como explicam isto tudo? Estão aqui, form am
um casal, um lindo casal, estão trabalhando... A fin a l, como
entendem a Vida? Quais são as suas perspectivas em
relação ao futuro?
— A senhora mesma - alegou o fisioterapeuta - , que
se confessa espírita...
— Lidei com espíritos a vida inteira!
— Pois é, ainda há pouco vacilava em aceitar os
fatos que considera coerentes com a própria crença. A
Reencarnação é uma idéia interessante, mas d ifíc il de
assimilar...
— É uma lógica absurda! - interveio Celina. — O
Afrânio, conforme disse, é simpático ao Espiritismo e eu
também sou. A dm iro os espíritas e tudo mais, porém ainda
não dei conta de aceitar a D outrina plenamente, mesmo
porque eu não gostaria de voltar à Terra.
— Desconfio que o Espiritismo esteja com a Verdade,
se não toda, pelo menos com boa parte dela...

105
c(lanla& SÁ. cfàaecellL / Ç&aminqas'

— Vocês me baratinam a cabeça - falei sem rodeios.


— Trabalham numa instituição espírita...
— Isto não quer d ize r nada, D . D om in g as. A
contradição parece ser da natureza humana... O Dr. Inácio
Ferreira, em suas preleções aos internos, vive dizendo que,
na condição de espíritas e médiuns que muitos são, eles
precisam ter mais fé.
— Hum !... Este é um ponto para análise, sobre o
qual precisamos obter m elhores respostas. Não estou
satisfeita. Se vocês dois estivessem vagando nas trevas,
ainda vá lá, mas não: estão aqui...
Não cam inham os m u ito e m e deparei com um
companheiro de lides espíritas de Uberaba, que mal me
reconheceu, sendo que nos encontrávamos com relativa
freqüência.
— Benvindo (o nome é fictício, de vez que não me
convém identificá-lo), como está? - perguntei, estranhando
a sua alienação.
— Você é a...?
— Domingas! Não me reconhece?
— Ah, sim! M e lembro... Você desencarnou? Eu não
sabia - falou dispersivo, olhando de um lado para outro.
— Desencarnei! Não estou aqui desdobrada, não..
— Acho que nem eu.
— Benvindo, o que está havendo? Recebeu alguma
pancada na cabeça que lhe causou amnésia?
— Hem?...
— M eu Deus!
— Eu preciso ir, depois a gente se fala mais. Até
logo! - despediu-se, deixando-me sem reação.

106
^spMMa/^&xmunv

— Não se aflija, m inha irmã - disse o Sr. M anoel


Roberto da Silva, vindo ao meu encontro.
— Ele...
— Há muita gente assim por aqui.
— Nós nos conhecem os bem ; ele não saía das
reuniões lítero-músico-doutrinárias da “U nião” , aos últimos
sábados. A giu como se nada tivesse acontecido. Estou
impressionada!
— O Dr. Inácio nos diz que o problema não é tão
raro quanto supomos.
— Qual é a explicação? Estou pasma... E le me
parecia uma pessoa normal.
— A í é que está: no corpo, a gente aparenta muita
coisa que não é.
— Como pode? Benvindo...
— O corpo de carne, D om in g as, pelas naturais
limitações dos sentidos, nos protege de nós mesmos.
Reencamamos para colocar ordem em nossa casa mental.
— Compreendo, mas...
— Quando não conseguimos satisfatório equilíbrio
das emoções e dos pensamentos, nos vemos, deste Outro
Lado, sem autocontrole. H á considerável diferença entre
se conduzir um velocípede e um automóvel, você não acha?
— O corpo físico?...
— Podemos, grosseiram ente, com pará-lo a um
velocípede; crianças que ainda somos, não temos maior
problema para lidar com ele...
— O corpo da ressurreição, ou seja, o corpo
espiritual?...

107
cfía'das' s4 . cí& accM i/ / SÒomin^os-

— É um automóvel com painel eletrônico de última


geração.
— Em Benvindo?...
— A interação mente-cérebro não está funcionando
bem.
— É uma patologia mental?
— Não propriamente. Por este m otivo, muitos não
se ajustam à realidade espiritual: têm cérebro pronto para
viverem na Terra, mas não nas Dimensões da Vida além
da morte...
— O que é? - quis saber. — Falta de maturação
psíquica? B e n v in d o era m ais ou m enos assíduo às
reuniões...
— Isto, você sabe, não quer dizer nada. Em certos
espíritos, quanto maior o seu distanciamento do corpo
somático, maior a alienação.
— Está clareando um pouco.
— O Dr. Inácio poderá lhe explicar melhor.
Olhei para Afrânio e Celina, refleti sobre a minha
própria situação de recém-desencamada e fiquei pensando:
— “M eu Deus, que pobreza a nossa! Que atraso!... Quando
encarnados, não temos cabeça para a V ida Espiritual, e,
uma vez desencarnados, continuam os a não ter... A
imperfeição é mesmo uma insanidade!”
— Em nossa atual condição evolutiva - esmerou-se
M a n o e l R oberto em elu c id a r a grave questão que
examinávamos - , a vida no corpo de carne é um estado
mais consentâneo com a nossa realidade intrínseca.

108
O (Espírito *Qpdoí

— Em “ O L ivro dos Espíritos” - argumentei na


questão 85, “ Qual dos dois - o mundo espírita ou o mundo
corpóreo é o principal na ordem das coisas?” , Kardec obteve
a seguinte resposta: “ O m undo espírita; ele preexiste e
sobrevive a tudo” .
— Correto, Domingas, a vida do espírito em contato
com a m atéria densa é a n tin a tu ra l, não obstante,
indispensável ao seu despertar. Enquanto o mais tênue
invólucro revestir o espírito...
— A nossa vida aqui, no Além ?...
— Ainda é antinatural, embora, convenhamos, mais
compatível com a nossa natureza íntim a. O Dr. Inácio
costuma dizer que a mente constrói o cérebro, que, por sua
vez, enseja a sua própria expansão.
— O cérebro humano?
— Está em evolução e há de se tomar cada vez mais
complexo; a tendência é que o corpo, por um processo de

109
<~&w I qS'£Á . cÍç>acoe£lo / ^òam úujas'

seleção natural, vá perdendo os seus apêndices, ou


implementos.
— Os Espíritos Superiores?
— Você citou “ O L iv ro dos Espíritos” . Pois bem.
Vejamos a questão 8 8 : “ Os E sp írito s têm uma forma
determinada, circunscrita e constante?” Resposta: “Aos
vossos olhos, não; aos nossos, sim. Eles são, se o quiserdes,
uma flama, um clarão ou uma centelha etérea.” Adiante,
respondendo à pergunta de número 249-a: “ A faculdade
de ouvir, como a de ver, está em todo o seu ser (espírito)?”,
os Mentores esclareceram: “ Todas as percepções são
atributos do espírito e fazem parte do seu ser; quando ele
se reveste de um corpo material, elas não se manifestam
senão pelos meios orgânicos; mas, no estado de liberdade,
não estão mais localizadas” .
— “Não estão mais localizadas” - repeti, com ênfase.
— Temos m uito a caminhar, deixando, à feição das
naves que os homens lançam ao espaço, módulos para
trás, reduzindo-nos à cápsula original.
— Módulos para trás significa: pernas, braços, órgãos
que perdem a função...
— Quanto mais leveza, mais nos aproximaremos de
nosso Centro Gravitacional!
— Deus!...
— Exatamente.
— Sr. M a n o e l, vo cê se im p o rta de eu tentar
compreender um pouco melhor? Benvindo...
— C o m variaç õ e s, D o m in g a s , ele é um caso
relativamente comum.

110
<~á?u/, '^sp.íxitO' cftamum/

— Sr. M anoel - atalhou A frânio, que acompanhava


o diálogo com interesse permita-me. O meu caso e o de
Celina...?
— M eu irmão, comparemo-nos a sementes lançadas
sobre extensa gleba... Potencialmente, todas são iguais, no
entanto, cada qual germinará a seu tempo.
— A seu tem po, quer dizer? - to rn o u o jo v e m
fisioterapeuta.
— Segundo o seu posicionamento ao, por exemplo,
receber a luminosidade do Sol, a maior ou menor fertilidade
do trato de chão em que, finalmente, se enraíza, as benesses
da chuva - resumindo, as circunstâncias que aceleram ou
retardam a sua eclosão.
Fazendo uma pausa, aduziu:
— E o mais importante, é óbvio: a resposta da semente
aos estímulos naturais que receba!
— “Estímulos naturais” ? - perguntei.
— A força das coisas ou à ação conjunta das Leis
que regem os princípios da V ida no Universo.
— Circunstâncias que aceleram ou retardam a
eclosão da semente... Não há favorecimento a uma, em
detrimento de outra?
— A Lei de Compensação se encarrega, digamos, de
reparar p o ss ív e is “ p r e ju íz o s ” causados p elas
circunstâncias. A Justiça é indefectível. N o tempo, todos
são favorecidos exatamente pelas mesmas oportunidades...
— O assunto transcende! - exclamei, novamente
admirada da palavra que, quando encarnada, algumas vezes
eu pronunciava sem atinar com o seu significado. —
Precisamos estudar um pouco mais...

111
<~Oa'ilo&' €Á. cfâacceltõ / <
^arninqa&

— Estudar e refletir, m inha irmã!


— 0 que acontecerá com B envindo? - perguntei,
penalizada.
— L o g o , ele será e n c am in h ad o a n o vo estágio
reencarnatório. Temos equipes que selecionam casos e
procuram localizar com m aior proveito espíritos na carne...
— Por favor, Sr. M anoel, explique melhor.
— Não temos técnicos em quantidade suficiente para
cuidar do encaminhamento de todos; por aqui, igualmente,
a seara é grande e poucos os seareiros... O hospital conta
com um grupo que vem se dedicando, com a supervisão
do A lto, a promover reencamações de “ qualidade” ...
— D e “ qualidade” ?...
— Força de expressão, Dom ingas, já que, a rigor,
toda experiência no corpo físico é abençoada ensancha de
aprendizado. B e nvin d o tem demonstrado interesse em
crescer, e, p o r este m o tiv o , m u ito provavelm ente
reencamará na condição de filh o de pais que algo possam
lhe acrescentar, inclusive geneticamente.
— Com plicou - comentei com espontaneidade. —
O cérebro espiritual não é a m atriz do cérebro físico? Ou,
por outra, o corpo não é uma construção do espírito?
— E m linhas gerais, sim , todavia nem sempre o
espírito consegue se im por à matéria.
— N ão sei se vou entender...
— E nem eu, se vou conseguir explicar a contento.
V e ja m o s : e x is te m e s p írito s que se constrangem a
reencamações dolorosas, do p o n to de vista físico -
renascem com limitações, com o cérebro danificado... A

112
culpa, consciente ou in c o n sc ie n te , age, de m an eira
determinante, sobre as leis biológicas; trata-se de um
reajuste transitório...
— Nem sempre - falei - filhos de pais inteligentes
são inteligentes.
— O carma é predominante, o mérito, a necessidade...
— Benvindo...
— Carece de uma instrumentação física que lhe
favoreça o aprendizado: um cérebro em condições de ser
mais bem utilizado, notadamente no campo da memória...
— Um atleta?...
— Reencamará, de preferência, descendendo de uma
família que, ao longo das vidas sucessivas, vem cuidando
dos reflexos, do desenvolvim ento motor, da explosão
muscular...
— Um músico...?
— É a mesma coisa.
— Um médium...?
— Também.
— Todavia o espírito de vontade firm e poderá se
impor sobre possíveis adversidades genéticas?
— Sem dúvida. O espírito é tudo!
— Eu - observei, quase em tom de lamento - não fui
muito favorecida fisicamente, não: um corpo desengonçado,
obesa, memória falha, d ificuld ad e para me fix a r nos
estudos...
— Às vezes, Domingas, a L e i nos protege de maneira
diferente, não é? Já imaginou se tivesse tido um corpo de
modelo?...

113
cd m la& S /l. cfà a c c e lli' / Ç èam inaa&

— U m desastre!
— Ou fosse muito inteligente?...
— Vaidosa do jeito que era...
— Há certas coisas que, prim eiro, a gente precisa
aprender a usar, para depois ter!
— Concordo. A m inha existência parece ter sido
programada para m exer com E spiritism o: eu só tinha
alguma facilidade para as coisas da Doutrina.
— Voltando ao nosso Benvindo, ele, possivelmente,
reencamará tendo um cérebro que lhe permita fixar lições,
prontidão intelectual... E, ao desencarnar, trará consigo
maior lucidez. Existem níveis de despertamento que são
ou não consentidos pelo cérebro.
— Eu conheço gente de bom coração, de raciocínio
prático, que, no entanto, não é capaz de guardar o número
de um telefone - às vezes, do próprio telefone!
— Bem - despediu-se o Sr. M anoel - , espero que
você aproveite a caminhada... Preciso ir. O Dr. Inácio está
à minha espera e não devo me atrasar.
— A conversa com você fo i interessante.
— Estou admirado de seu vocabulário, Domingas,
se expressando bem, sem tantos erros de concordância...
— Deu para notar?
O Benfeitor sorriu e arrematou:
— Nada se perde; vai ficando tudo arquivado, não
é? Quando a gente, ao desencarnar, não sai de uma camisa-
de-força para outra que nos tolhe mais ainda os movimentos,
tudo melhora.
— A gente fica até mais inteligente - brinquei.

114
^Passado O&scuro

A cada dia, embora a saudade dos familiares e dos


amigos, dos companheiros de tarefa que havia deixado na
Terra, dos irmãos e das irmãs que sempre estavam comigo,
me apoiando em minhas humildes iniciativas mediúnicas
e doutrinárias, eu estava me sentindo melhor. Crescia em
mim o desejo de ser mais útil e, de certa forma, voltar, para
dar o meu testemunho e concorrer para o fortalecimento
da fé dos que ainda se mostravam vacilantes.
Atenta às recomendações recebidas, passava horas,
dentro do quarto, lutando com as palavras, no sentido de
alinhavar idéias sobre o papel, aborrecida por não lograr
traduzir, com fid e lid a d e , a grandeza de tudo. Sem
desencarnar, n in g u ém há de com preender o M u n d o
Espiritual; e digo mais: sem olhar as coisas por aqui com
outros olhos que não os da Fé Raciocinada, pouco perceberá
da realidade.

115
cfíaiJLo& SÃ. cfâ a c c e llb / <
S bam ingú&

F o i um dia destes, quando estava anotando as


experiências e impressões da véspera, que o nosso caro
Dr. Odilon veio me visitar.
— Como é, Dom ingas - saudou-me, sorridente -,
interrompo?
— Que é isto, Doutor, o senhor nunca interrompe.
Não imagina a minha alegria em recebê-lo! Conheço muitos
e muitas que gostariam de desencarnar, só para estarem
em meu lugar, agora. Desde, é claro, que tivessem certeza
de reencontrá-lo...
— Ora, não seja exagerada!
— E verdade, o senhor aqui ao meu lado, puxando
uma cadeira para se sentar, sem aquela ciumeira de
outrora... Dr. Odilon, morrer assim é ótimo! Se soubesse,
não teria lutado tanto contra o câncer...
— Bem que não sabia, pois era preciso que lutasse
por você e pelos nossos irmãos que lhe acompanharam o
drama.
— É brincadeira; estou sentindo falta da turma...
— E a turma, de você. Se soubesse, Domingas, o
número de reclamações que temos recebido...
— Reclamações?
— Mentais... O pessoal, em seus pensamentos e
preces, tem lamentado muito a sua ausência.
— Eu, uma m ulher completamente bronca, sem
predicado algum... A h, eles são extremamente carentes!
Ficamos sem o senhor, sem o L ilito Chaves, sem o nosso
Chico... Eles têm que se arranjar com os que ficaram, não
acha? Se eu não tivesse morrido há pouco, teria que morrer
depois... M elhor assim, pronto: a Dom ingas já era!

116
''êu/, ^sf2MUo'C^tamunv

— Já era?!... Você não sabe o que a espera: a festa


está apenas começando... A Vida, minha filha, é sinônimo
de serviço, cada vez mais. D aqui para a frente, noutras
encarnações e tudo... Antes de sabermos das coisas, a
gente trabalha descansando. A gora, porém, descansa
trabalhando...
— Não dá - perguntei - para a gente realizar uma
excursãozinha, visitando outros mundos? Sonhamos tanto
com isto, quando encarnados!...
— Até que dá, uma excursão de aprendizado e
trabalho. Estrela não é trapézio!...
— Nem trampolim de piscina, não é?, para a gente
dar um mergulho no Oceano do Infinito...
— E as suas anotações? - inquiriu, sem tempo para
continuar jogando conversa fora comigo.
— Estão indo, Doutor, com extrema dificuldade:
escrevo, risco, escrevo de novo, tom o a riscar... Eu não
tenho nenhum pendor literário.
— Matricule-se. Temos boas escolas por aqui...
— A i, meu Deus! Que preguiça de estudar e, ainda
por cima, Português!
— Não há recurso, minha filha: não se dá osmose de
oxigênio nas narinas nem de livro debaixo do travesseiro...
0 ar é absolutamente de graça, mas a leitura propõe estudo.
O resto requer esforço, pois quem não realiza na Terra tem
que realizar aqui!
— E as nossas conquistas passadas, não afloram,
não?
— Quais, Domingas? Somos filhos da Terra, que
somente agora, de um século ou dois para cá, está saindo

117
cfla/iho& sA. cfâ a c c M <// <
zèatm nqa&

da ignorância... O nosso acervo está vazio - dentro de


nós, sucata, moral e intelectual, a ser reciclada.
— Cruzes!...
O Dr. Odilon sorriu e emendou com inteligência:
— R im a com luzes...
— O senhor disse algo sobre o passado que, de fato...
— Bem... N ão querendo interrompê-la, mas já a
in te rro m p e n d o , o p re té rito , nas e xp eriên cias que
vivenciamos, pesa mais contra nós que a favor... Não estou
generalizando; pode ser, e com certeza é. que, com um ou
outro, seja diferente. A nossa derradeira romagem na carne
foi, sem dúvida, a melhor e a mais proveitosa...
— Os nossos irmãos encarnados?...
— Estão tendo, como tivemos, a sua mais preciosa
oportunidade de ascensão, e isto desde que os seus espíritos
foram criados. E u não entendo como o pessoal vive
querendo vasculhar o que foi em vidas que se foram...
— Se é assim, melhor deixar quieto.
— E muito quieto, Domingas.
— Eu, às vezes, alimentava a esperança de...
— O quê?...
— Ter sido uma personagem ilustre da História.
— Um a personagem ilustre é até provável; agora...
Poupando-o de concluir, comentei:
— Certa vez, uma senhora, ao término de uma das
reuniões de Chico, perguntou-lhe: — “Estão dizendo que,
na vida anterior, eu fui uma rainha francesa... O que o
senhor acha?” Sem pestanejar, com o intuito talvez de livrá-
la daquela obsessão, o médium respondeu, jogando uma

118
*7%u/,

pá de cal sobre o assunto: — “ A h, m inha filha, uma rainha


francesa?... Deve ter sido mesmo, porque as lavadeiras
estão todas no Céu” .
— Os espíritos redimidos e os que se redimem não
aparecem com tanta freqüência no cenário terrestre...
— É mesmo! - exclamei. — Esse pessoal some da
gente...
— Regressam ou ascendem a Planos Superiores. Não
se desinteressam de nós, mas não ficam se expondo às
lutas e às tentações do mundo, das quais triunfaram...
— ...ou se safaram, não é?
— Eu não quis empregar o verbo, que, em muitas
circunstâncias, talvez fosse mais apropriado.
— Recordo-me de A lcíone, no livro “ Renúncia” , da
lavra mediúnica de Chico...
— Ah, sim!
— Quando decide voltar à Terra, o Instrutor Antênio,
lhe diz:— “Já ponderaste nos obstáculos imensos? Lembra
que o próprio Jesus, penetrando na região terrena, foi
compelido a se a n iq u ila r em sa crifícios pungentes.
Recorda...”
Dr. O d ilo n , p o ssu id o r de excelente m em ória,
completou:
— “ ...que as leis planetárias não afetam somente os
espíritos em aprendizado ou reparação, mas, também, os
missionários da mais elevada estirpe” .
— “ Conheço numerosos irmãos - aduzi com voz
pausada - que, depois de pedirem missões arriscadas como
esta, voltaram onerados de m il problemas a resolver,
retardando assim preciosas aquisições.”

119
c4tailo& sA. c$>accM i /

— Alcíone, segundo Emmanuel, o autor espiritual


da referida obra, se encontrava ligada a trabalhos no sistema
planetário de Sírius...
— Se falhasse, ela poderia regredir? - perguntei.
— Regredir propriamente, não; o espírito não perde
as aquisições que tenha efetuado, não retrograda, mas, do
ponto de v ista cárm ico, pode criar v ín c u lo s que o
constranjam a repetir experiências das quais já se tenha
liberado...
— E de dar medo.
— Felizmente ou infelizmente, porém, este não é o
nosso caso, que não passamos de girinos em processo de
metamorfose no charco, que é o nosso habitat natural...
— Estamos querendo criar peminhas para virarmos
sapo... Refiro-m e a m im e não ao senhor! Desculpe-me!
Fiquei empolgada.
— Ora, Domingas! Eu ainda estou coaxando na beira
da lagoa...
— Lá no livro, Doutor, A ntênio diz a Alcíone que,
daquela hora em diante... Como é mesmo?
— “ ...ficas desde já desligada de tuas obrigações
nesta esfera, a fim de te adaptares, vencendo as situações
adversas das regiões inferiores que nos separam do mundo,
no que, pressinto-o, deverás gastar quase dez anos
terrestres” !...
— Dez anos, Doutor, de adaptação, para reencamar?!
— Eu não voltaria de je ito nenhum! - proclamou o
Dr. Inácio Ferreira, que acabava de entrar, vindo juntar-se
a nós.

120
ffigdiunidade

— Depois de me safar da boca do vulcão?... Pelo


amor de Deus! - descontraía-se, como sempre, o admirável
companheiro, que, aliás, nos infundia enorme respeito.
— Inácio...
— O dilon, você fica assustando as m enininhas,
contando essas histórias de terror... Não faça isto - já pedi
a você. A coisa é bem mais feia do que a gente pinta, mas
não podemos falar...
O Dr. Odilon sorria, meneando a cabeça.
— A coisa é ainda mais feia, Doutor? - perguntei,
provocativa.
— Se contarmos como é, o pessoal lá embaixo
desiste... Maneire nos seus escritos, hem, Domingas! Nada
de fazer concorrência comigo... O “ lobo mau” sou eu; você
é a “vovozinha” ou o “ Chapeuzinho Vermelho” - pode
escolher; o Odilon é o “ caçador” ...
— O senhor não voltaria mesmo?

121
c(Lanlo& éA. cfâaccxMó/ ’SbamingaS'

— Eu, depois de estar em S íriu s ? ! C om todo o


respeito à nossa Alcíone, é gostar m uito de sofrer...
— Inácio! - ergueu a mão, franzindo o cenho, o Dr.
Odilon, como a repreendê-lo.
— Domingas, a coisa aqui está de um jeito, que nem
m ais podem os fazer piada. D a q u i a pouco, vamos
transformar isto aqui em Céu, com harpas e anjos cantando
e tudo o mais! Se virar Céu, já sabem, não contem comigo:
o meu destino é outro...
— Inácio - falou o nosso Mentor, pegando uma das
folhas nas quais eu havia feito algumas anotações - , a
Domingas, ao que me parece, está indo bem...
— Seja original, minha filha! Abra o coração e...
— Eu ia dizer a ela que a transmissão mediúnica...
— E uma calamidade! Escreva muito, escreva o mais
que você puder, para ver se, pela estreiteza da porta da
cabeça do m é d iu m , passa pelo m enos um pouco...
M ediunidade é porta estreita! Inventaram uma tal de
filtragem. Fica tudo retido...
— Ué! Eu não vou conseguir...?
— D ita r p a la v ra p or p a la vra ? Esqueça. Em
mediunidade, isto não existe. Você foi médium e sabe...
— Um médium mecânico...
— M édium mecânico é o que conserta carro...
O Dr. Odilon e eu sorrimos.
— A questão da filtragem ... - quis comentar.
— Uns filtram de mais, outros filtra m de menos...
Nós, os desencarnados, espíritos escrevinhadores, quase
batedores, que, no jogo da transmissão mediúnica, vamos
perder, vamos. Agora, é tentar não perdermos de goleada...

122
^u/, ^spÁúL&^ttamunv

— Dr. Odilon, quando o senhor se expressava por


mim... Como era?
— A idéia ia, Dom ingas; a idéia passava!...
— Não a c re d ite , m in h a f ilh a , ele é m u ito
condescendente... Olhe que tenho me esforçado: mentalizo,
mentalizo, me aproximo do m édium , tento influenciá-lo
durante o sono, oro por ele, vig io-o quando sai à rua, procuro
sugestioná-lo, estou m e tornando expert em clichês
mentais...
— M e d iu n id a d e é pensam ento a pensam ento -
elucidou o Mentor. — Estabelecer sintonia é difícil...
— Mais difícil ainda é sustentá-la! - observou o autor
de “A Psiquiatria em face da Reencamação” . — A coisa
vai até indo bem, de repente... É impressionante como a
mente m ediúnica o sc ila - extrem am ente sensível a
interferências de natureza negativa.
— Em Chico Xavier, o transe me parecia linear...
— Domingas, deixemos Chico de lado! Ele não serve:
a cabeça dele, a constituição físic a e psíquica eram
completamente diferentes.
— Sim...
— E m toda e q u a lq u e r fa c u ld a d e de e fe ito s
intelectuais, o e sp írito c o m u nicante está sujeito às
condições em que o médium se oferece para o serviço de
intercâmbio - esclareceu o Dr. Odilon.
— O médium mecânico, a passividade mediúnica?...
— Domingas - sabatinou-me o Dr. Inácio - , permita-
me: você já leu “ O L ivro dos M édiuns” ?
— Já, nós o estudávamos no “ Cinza” , com o Dr.
Odilon; eu o li mais de uma vez, acho...

123
ç(La'JLQ& éA. c!f&acceÁló / <
Sbam Uuja&

— Leu, desculpe-me, como eu mesmo o li, mas não


entendeu.
— A gente discutia...
— Discutia, não; dispersava a conversa...
— O senhor tem razão.
— N o c a p ítu lo X I X , “ P a p e l do M é d iu m nas
Comunicações Espíritas” , vejamos apenas a questão 10,
no item 223: “ Parece resultar destas explicações que o
espírito do médium nunca é completamente passivo?” A
resposta nos pede atenção. “ É passivo quando não mistura
suas próprias idéias às do espírito estranho; oorém jamais
é absolutamente nulo; seu concurso é sempre necessário
como intermediário, mesmo nos que vocês chamam de
médiuns mecânicos” (grifei).
— Eu não me lembrava deste tópico.
— Quase ninguém se lembra, no entanto, está lá, há
quase 150 anos!
— E dizem que Kardec está ultrapassado...
— U ltra p a ssa d o s p o r K a rd e c estam os nós; o
E sp iritism o se nos antecipa no tem po... Precisamos,
Domingas, saber ler o que está na Codificação.
— É bom o senhor estar dizendo assim, porque eu
não sei se sabe...
— Sei!
— O que andam dizendo?
— Que os meus livros são antidoutrinários!
— Tem-se chegado a proibir a comercialização deles
em algumas livrarias... Discuti m uito por causa do senhor,
defendendo-o.

124
^êu/, cêsf2trilo/cêomum'

— Agradeço, mas você sabe qual o único equívoco


cometido p e lo C ria d o r, em re la ç ã o às c ria tu ra s?
Figuradamente, é lógico...
— Não.
— Proibir A dão e E va de comerem “ do fruto da
árvore que está no meio do ja rd im ...”
— Da maçã?...
— Não sei se maçã, jabuticaba ou amora... A in d a se
fosse jaca! Aliás, aproveitemos para reparar uma injustiça:
uma jaca madura é uma delícia!
— E uma fruta meio enjoativa, Doutor.
— Para quem quer com ê-la inteira! Experim ente
comer um cacho de bananas...
Sorri, lembrando os meus exageros, e o Dr. Inácio
voltou a considerar, retomando o assunto da mediunidade.
— Você escreva bastante e, depois, se contente com
pouco - se o médium conseguir filtrar, digamos, de um a
dois por cento...
— O que é isto, Inácio? - corrigiu o Dr. Odilon. —
De dez a vinte por cento, temos conseguido...
— Você; eu não! Quanto mais caraminholas colocam
na cabeça dele, mais ele se me retrai... É interessante como
a própria Humanidade vive a regular a quantidade de luz
que se lhe projeta do A lto - está imersa nas trevas, clama
por luz e não a quer!
— Inácio, uma ressalva...
— Sim, Odilon, vou fazê-la. Escreva aí, Domingas,
que a luz não sou eu, porque, caso contrário, iremos municiar
os adversários... Refiro-m e à luz da Revelação: a gente

125
cêaita& s 4 . acceíli>/ Çbaminqa&

permanece na expectativa de que a Verdade se nos


descortine em novas nuances, todavia, quando a ponta do
véu começa a ser levantada, pegamos aqueles que se
atrevem e os enviamos à fogueira...
— A s fogueiras da Inquisição já se apagaram -
considerei.
— Mas as do escárnio continuam a crepitar no mundo
- as da injúria, as da maledicência, as da ortodoxia... São
tantas! Todas elas, ávidas por vítimas.
— Dr. Inácio, então, se é, assim, a transmissão
mediúnica tão deficiente, é melhor eu não escrever nada...
— Seja humilde!
— O pessoal vai me malhar...
— E daí? Você não in c o rp o rava o O dilon, o
Rudolf?... Até a m im , chegou a incorporar!...
— Por que está dizendo assim? Não era o senhor,
não?...
— Era até mais do que eu - respondeu, deixando-me
apensar-, e agradeço o fato de me ter albergado o espírito...
Aliás, presentemente, há muita gente me recebendo, e a
todos sou grato. Eu não me importo que me atribuam a
autoria do bem de que nem sempre sou o autor direto!

126
y\intfa ffipdiu

— Dr. Odilon, me socorra! - solicitei. — É muita


filosofia para a minha cabeça...
— Domingas, uma vez mais, recordemos “ O L ivro
dos Médiuns” , capítulo X X I V , “ Identidade dos Espíritos” .
A certa altura, A lla n Kardec escreveu: “ ...desde que o
espírito diz apenas boas coisas, pouco importa o nome
sob o qual as deu.” U m pouco adiante, acrescenta de forma
magistral: “A medida que os espíritos se purificam e se
elevam na hierarquia, oscaracteres di
personalidade se confundem na uniformidade da perfeição
(g rife i) e, c o ntud o , não d e ix a m de conservar sua
individualidade (...) Nesta posição, o nome que tinham na
Terra, em uma das m il existências corporais efêmeras pelas
quais passaram, é uma coisa totalmente insignificante” .
— M eu Deus! É tanta coisa para perguntar!...
— Devagar, senão atropela...

127
c
Í
íaa
la
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Á.c
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cce
lt
ò / Ç
ôomin
oas
'

— É, atropelamos o pessoal lá embaixo: hão de ficar


feito a Pantera Cor-de-Rosa, estirados no asfalto!
— “U m a das m il existências corporais efêmeras"\...
Quantas será que tivemos? Fico me sentindo uma libélula...
F o i o Dr. Inácio quem se adiantou, respondendo:
— Se le va rm o s em co nsid e ra ç ão as hipóteses
levantadas pelo H induísm o, que deriva do Bramanismo,
as mônadas, que somos nós. apenas no que se denomine
de “ encarnações terrenas” , ou seja, em ordem progressiva:
numerosas variedades de partículas de pó; creia, seixos,
pedregulhos e rochas; os vários metais; as várias pedras
preciosas; argila, enxofre e os vários sais - permanecem
nessas formas p rim itiva s “ por períodos que vão desde
menos de um segundo até 2 2 .0 0 0 anos e, enquanto
permanecem nesse nível, podem chegar a viver até 700.000
encarnações” !
— O senhor acredita nisto?
— Digamos que não duvido; se me fosse permitido,
sugeriria apenas pequena revisão nos cálculos numéricos...
Dr. O dilon sorriu descontraidamente.
— E m seguida, temos as “ encarnações aquáticas”,
as “ encarnações vegetais” , as “ ígneas” , as “ eólicas” ; depois,
os seres com dois sentidos, três, quatro, cinco; os animais
aquáticos, terrestres e aéreos, até chegarmos à espécie
humana...
— Chega, Doutor! Eu fiz uma perguntinha à toa...
— Veja você, minha irmã, como o nosso egocentrismo
é natural ou, pelo menos, explicável: a gente tem vivido
tanto sem identidade, que, de repente, eu sou Inácio Ferreira!

128
c~êiv, ^sfM ilo/^o m u n v

Ora, que Inácio Ferreira, que nada!... Ficamos olhando o


nosso retrato e fixamos a nossa cara... É um retrocesso
acharmos que temos a cara da fotografia!
— Meu caro, a gente tem que se fixar, porque senão...
— Eu sei, Odilon, mas deixe-m e esculhambar com
isto...
— Eu, de m im , já não sei mais nada... D iante do
exposto - falei, desanimada, apalpando-me para ver se,
pelo menos, ainda estava ali.
— Precisamos fix a r certos ^aracteres, para nos
conscientizarmos de nossa individualidade, para, depois...
— ...a perdermos!
— Primeiro, nos identificamos como seres humanos,
para, daqui há milhões de anos, nos identificarmos com o
Divino - mas não é com o D iv in o José da Silva, não, um
amigo que sempre ia me pedir uma caneca de café e um
cigarro aceso: e aceso, porque nem fósforos ele tinha...
— E a nossa c o n ve rsa estava sendo sobre
mediunidade! - exclamei, ante aquela verdadeira avalanche
de informações. — Conversávamos sobre a identidade
dos espíritos... Nem sei mais se era mesmo sobre isto!
— Domingas, esta questão da identidade do espírito
comunicante é relativíssima, m inha filha.
— O problema é que os nossos irmãos encarnados
fazem questão, não é, Inácio? N o entanto, admito difícil,
extremamente difícil a plena identificação de um espírito
qualquer e qualquer médium.
— Eu diría impossível! Dá-se mais valor à cédula de
identidade do defunto que ao que, verdadeiramente, o

129
c€ziila&' sA. cfâacceMv / Sóominqas.-

id e n tific a : o seu pensam ento! Se o comunicado está


permeado de detalhes absolutamente desconhecidos do
m édium , aceita-se o m esm o por autêntico. Isto acaba
estimulando a mistificação...
— E verdade, a gente, enquanto médium, se sente
pressionado, na obrigação de fornecer provas contundentes
da sobrevivência.
— N e n h u m m é d iu m - O d ilo n , desculpe-me se
radicalizo - está apto a tanto! A lla n Kardec foi genial: a
nossa fé é raciocinada!
— Estudo profundo, este - observei. — Se os nossos
irmãos da Terra me solicitarem, através de médium com o
qual tenho certa afinidade, o número do meu R G e do meu
CIC ... Se bem que eu nunca os tive de cor!
— Carecem os de parar com hipocrisia... Você,
Domingas, não os tem memorizados, mas muitos os têm, e
mesmo estes não seriam capazes de transmiti-los via
médium.
— A mediunidade tem limitações.
— P recisam o s a d m itir e reconhecer que sim,
estudando o tema do ponto de vista científico. A entrosagem
entre médium e espírito é relativa. Estamos trabalhando
para estreitar os laços, aproximando as Duas Dimensões,
porém, se os médiuns e os espíritas não se dispuserem a
nos auxiliar...
— E depois, Inácio - aduziu o M entor o pessoal se
esquece de uma equação m uito simples, elaborada pelo
Codificador, e que Emmanuel sintetizou em “ Seara dos
M édiuns” , obra de sua lavra: “ Toda produção medianímica

130
é a soma do mensageiro espiritual com o m édium e as
influências do m eio” !
— Excelente lembrança - endossou o Dr. Inácio.
— Kardec, em “ O L iv ro dos M é d iu n s” , dedicou um
capítulo inteiro, o X X I , à questão da “ influência do m eio” .
— Não é só ficar na expectativa de colher...
— Colher sem semear, como?! O m édium é produto
final do m eio - das e xp e cta tiva s, dos anseios, dos
interesses.., O médium é o ponto de contato que o m eio
oferece à Espiritualidade, para o serviço de intercâmbio.
— Se o meio duvida e se retrai...
— O médium se retrai e duvida!
— E, conseqüentemente, o espírito...
— Literalmente, bate com a cara na porta!
— A h - disse, lamentosa - , o nosso pessoal não está
preparado... E uma pena! Cum ula o médium de exigências
e... oferece pouco; transfere, para o médium e para o espírito
- mais para o medianeiro - , toda a responsabilidade do
comunicado. A influência do meio...
— ...direta e indiretamente, é decisiva, Domingas -
enfatizou o antigo Presidente da “ Casa do Cinza” . — Ele
tanto acrescenta, motiva e inspira, quanto retira, desalenta
e anula. Se o médium e o espírito são chamados a operar
em um meio doutrinário e culto, sentem-se, naturalmente,
requisitados a se esmerarem na produção. Comunicações,
digamos, sofríveis, denotam um meio pouco exigente e
esclarecido, dando azo às mistificações.
— Perm ita-m e perguntar - solicitei. — O m eio
interfere in te le c tu a l e m o ra lm en te no conteúdo da

131
c&»/ito& éA. c!fbaccelL>/ Shom inoas>

mensagem? Isto não é algo afeto tão só à dupla médium e


espírito?
— Não resta dúvida que, em qualquer processo de
transmissão, emissor e receptor são fatores determinantes.
H á que se c o nsid e ra r, c o n tu d o , as interferências
ambientais...
— Dr. Odilon, o senhqr poderia ser mais claro?
— R e c o rra m o s, o u tra v e z , ao “ O L iv ro dos
M édiuns” ...
r

— E bom mesmo, O d ilon - aparteou o Dr. Inácio,


pois, caso contrário, irão dizer que é teoria sua.
— N o capítulo X I X , já referido, encontramos notável
colocação sobre a qual os estudiosos carecem se debruçar:
“ Vocês não se dão bem conta do papel que desempenha o
médium; há nisso uma lei que vocês ainda não apanharam
(grifei). Lembrem-se de que, para conseguir o movimento
de um corpo inerte, o espírito precisa de uma porção de
fluidos animalizados que ele empresta do médium para
animar momentaneamente a mesa, a fim de que esta obedeça
à sua vontade; pois bem! Compreendam também que para
um a com u nic a çã o in te lig e n te ele necessita de um
intermediário inteligente e que este intermediário é o espírito
do m édium ” .
— D eixe-m e ver se entendo: mesmo nos fenômenos
físicos inteligentes, ou seja, dos quais um comunicado
racional transparece...
— O m é d iu m de efeitos físic o s, para além da
obtenção de simples ruídos, fenômenos de pirogenia, etc.,
o é também de efeitos intelectuais - não é só pura e
simplesmente uma questão de ectoplasmia!

132
transcendência

Continuando, ante o meu interesse e o do próprio Dr.


Inácio, o Mentor aduziu:
— K ardec, ao fim da c o lo c a ç ã o m encionada
anteriormente, argumentou: “ Isto não parece aplicável ao
que chamamos de mesas falantes; porque, quando os
objetos inertes, como mesas, pranchetas e cestinhas, dão
respostas inteligentes, parece que o espírito do médium
nisso em nada toma parte” .
— É razoável...
— Analisem os, no entanto, D om ingas, a palavra
incisiva dos Espíritos, na seqüência: “ É um erro; o espírito
pode dar ao corpo inerte uma vida factícia momentânea,
mas não inteligente; jam ais um corpo inerte foi inteligente.
E então o espírito do médium que recebe o pensamento
sem o saber (grifei) e o transmite pouco a pouco com o
auxílio dos diversos intermediários” .

133
r(la'ila& éA. cHacceHi / <
dharnintja&

— Nossa! Fomos longe demais! A minha cabeça está


em rodopios... Fluidos inteligentes!
— N o fenômeno das mesas que batiam, os médiuns
passavam batidos - fez o Dr. Inácio o trocadilho (eis aqui
outra palavrinha - que coisa intrigante! - que eu nunca
soube empregar).
— E, pelo je ito - emendei estão passando batidos
até hoje, apanhando da mediunidade...
— Os mais eruditos, ou que assim se consideram,
levando uma tremenda surra!
— Não é só ectoplasmia, não é?
— N ã o , D o m in g a s ! A m atéria intelectual dos
médiuns, no fenômeno das chamadas “ mesas girantes”,
era utilizada pelos espíritos, com ou sem conhecimento
dos sensitivos...
— ...e dos próprios espíritos! “...há nisso uma lei
que vocês a in d a não a p a n h a ra m ", quer dizer, não
entendemos claramente.
— Eu acho que, por hoje, está bom - redargüi como
quem conclui que nada sabe de coisa alguma. Eu vivi com
“ O L ivro dos M édiuns” nas mãos...
— Consinta-me apenas clarear, sem a pretensão de
explicar, porque, confesso, igualmente não passo de mero
aprendiz.
— Odilon, como você sabe ofender com classe -
alfinetou o Dr. Inácio no fundo, você gosta de humilhar...
“ M ero aprendiz” ! Hum !...
— Sem comentários. Vamos ao texto, na pergunta
seguinte formulada pelo Codificador: “Parece resultar

134
<=<aw, ^spPdU v^^am um /

destas explicações que o espírito do médium nunca é


completamente passivo? ” (g rife i) Resposta: “ E passivo
quando não mistura suas próprias idéias às do espírito
estranho; porém ja m a is é absolutam ente n u lo ; seu
concurso é sempre necessário como intermediário, mesmo
nos que vocês chamam de médiuns mecânicos” .
— Nós é que rotulamos os médiuns de mecânicos?...
— D edu z-se que s im . N ã o e xiste p a ssivid a d e
intelectual!
— Ai!... - gritou o Dr. Inácio, levando a mão à perna.
— O que foi, Inácio?
— Você chutou-me a canela...
— Esse Dr. In á c io !... A gente quase nunca sabe
quando ele está falando sério.
— O d ilo n , na nossa atual condição e vo lu tiv a ,
seriedade demais é loucura.
— No médium, não existe passividade intelectual? -
perguntei.
— Absoluta, não.
— Não sei o que vou fazer para anotar tudo isto -
falei, espiando as laudas espalhadas na mesa.
— E depois, Dom ingas (não se esqueça de escrever),
eu é que sou polêmico...
— “...há nisso uma le i que vocês ainda não
apanharam”...
— O nosso pensamento reverbera no Pensamento de
Deus! Sem o Pensamento D ivin o , o pensamento humano
não se propaga!...
— Explique, Doutor - solicitei ao incansável Mentor.

135
c&vila& £Á. cHaccMi/ / <
ifL)omitufa&

— A Inteligência do Criador é que toma viável a


inteligência nas criaturas. N o fenômeno específico em
análise, das “ mesas girantes” , a vontade, ainda que sutil e,
portanto, inconsciente, dos médiuns e dos espíritos é a
causa inteligente.
— A Física moderna está descobrindo um tipo de
“ inteligência” nas partículas - observou o Dr. Inácio.
— Tudo é mediunidade!
— Que beleza! Que transcendência, Dr. Odilon! Fico
fe liz em saber que, como instrumento, eu nunca inventei
nada... Eu era médium mesmo!
— Somos todos médiuns, mesmo!
— Agora, deixem esta parte comigo. Você, Domingas,
eu, o nosso caro O d ilo n e outros mais, de fato, somos
médiuns de alguém ou de alguma coisa - somos intérpretes,
mas a interpretação é que faz a diferença, a sublimidade
ou a vulgaridade do fenômeno!
— Você resumiu tudo - concordou o Instrutor. 0
intercâmbio não é mais uma possibilidade: é uma certeza.
Todos os seres e todas as Dimensões jazem entrelaçados,
agindo e reagindo, sem pausa, uns sobre os outros. Há
inegável empatia entre o grão de areia e a estrela que brilha
no firmamento, entre o ser angelizado que paira nas Alturas
e o verme que se arrasta no subsolo!
Após pequeno intervalo, já preparando para se retirar,
o Dr. Odilon rematou:
— Não estranhe, m inha filha, se eu lhe disser que o
nosso contato com as pessoas em geral ainda acontece
mais em n ív e l de inconsciência que de consciência:

136
C(oLt/, ^sfM ÍtO 'CEomum/

pensamos, falamos, agimos, mas não nos apercebemos do


nosso relacionamento inconsciente com a V ida que nos
rodeia, do que somos capazes de fazer desencadear, perto
ou longe de nós, sem clara noção do que protagonizamos.
— O inconsciente, in d ivid ua l e coletivo, de Jung -
pontificou o ilustre escritor espírita.
— O que Kardec, em “ A Gênese” , chamou de “ alma
do m undo” , a resultante dos anseios conscientes e
inconscientes da Humanidade, determinando os rumos da
Evolução, os avanços e os aparentes retrocessos do homem
como ser coletivo.
— A interdependência dos reinos, em incomensurável
perspectiva - dos reinos mineral, vegetal, animal, hominal
e espiritual! Sendo que a abrangência do que, genericamente,
denominamos R eino Espiritual não cabe na mais fértil
imaginação humana, superando a mais ousada das ficções.
— Estou me sentindo uma lagartixa - brinquei.
— Eu, minha filha, o rabo da lagartixa! - retrucou o
Psiquiatra, que, para m im , fazia questão de se ocultar em
sua verdadeira grandeza de inteligência e coração.
— Dr. Inácio - pedi, valendo-me do ensejo - , o senhor
nos cederia um espaço para a realização do culto do
Evangelho com um grupo de amigos? É uma das atividades
das que mais tenho sentido falta, pois, nas noites de
domingo, o pessoal se reunia na minha casa...
— Não há problema, porém vocês terão que pagar o
aluguel...
— Como?...

137
c€a'itos/ SÁ. cfâaccellò / Ç òam infas'

— Precisamos de voluntários por aqui; a maioria,


depois que recebe alta, dá no pé... Quase ninguém quer
assumir compromissos.
— Por aqui, também?
— A V ida continua, m inha filha! Não se trata de
simples força de expressão. O pessoal, assim que melhora,
quer ascender... Ora, só se for acender sem o í - acender
a ponta do meu cigarro, por exemplo!
— O senhor ainda fuma? - perguntei, ingênua.
— Fumo, fum o cigarro, charuto, cachimbo...
— Ele está brincando, Domingas - interferiu o Dr.
Odilon.
— Cheiro rapé, masco fumo... Ninguém tem nada
com os meus vícios. Você não acha que seria preferível
fum ar que m entir, roubar, corromper, ser orgulhoso,
insensível, metido a intelectual?... Arre! Chega a me dar
urticária - disse, olhando os braços como se estivessem
empolando.
— Quem, Doutor, ou o quê chega a lhe dar urticária?
— É quem mesmo... Essa gente que continua apegada
à letra que mata, os espíritas moralistas, que acham que
espírito não fuma, não bebe, não come, não dorme, não...
— Inácio!...
— Não, O dilon, eu não vou extrapolar, estou sob
controle.
— Vocês me desculpem - atalhei - , mas estou
apertada para ir ao banheiro...
— A h, que beleza! - ironizou o Dr. Inácio. — Um
espírito humano! Está cheio de gente na Terra pensando
que vai chegar sem intestinos e bexiga por aqui!...

138
ÇHpntafização

Na outra semana, eu estava me sentindo bem melhor.


As sessões de fisioterapia estavam se espaçando e já me
era permitido caminhar sozinha por certas dependências
do Hospital.
— Olá, Domingas! - saudou-me M anoel Roberto, o
Administrador responsável pela Instituição.
— Olá! - respondi, estendendo-lhe a mão. — Estou
admirando a organização, a limpeza, o bom gosto...
— Você sabe como o Chefe é exigente, não é?
— Eu não o vejo há dias... O Dr. Inácio deve ser um
homem muito ocupado: além de cuidar disto tudo, encontra
tempo para escrever - a produção dele...
— De fato, ele não descansa, fazendo ainda questão
de acompanhar pessoalmente o caso de alguns pacientes,
os de maior gravidade; está sempre se superando em sua
capacidade de trabalho e, para não ficarmos muito para
trás...

139
cfLanla&' c$>accelli / ^a trxlng a ^

— Sr. Manoel, ele lhe falou a respeito de uma sala


para a realização que pretendemos do culto do Evangelho?
— Sim, temos diversas. N ão estão ociosas, mas, como
não se encontram o tempo todo ocupadas, você poderá
escolher. A lg u m a s dão para o ja r d im do complexo
administrativo e permitem maior recolhimento e segurança.
— Segurança?!
— É , não se esqueça de que m uitos de nossos
internos, como é natural, se mostram em grave estado de
alienação...
— Tentam se evadir?
— A to d o m o m e n to . O H o s p ita l conta com
s o fis tic a d o siste m a de v ig ilâ n c ia ; tem os câmeras
espalhadas pelos corredores, mas, mesmo assim...
— L i a respeito - disse, reportando-me a obras como
“D o Outro Lado do Espelho” , “N a Próxima Dimensão”,
“ Infinitas Moradas” ... Inclusive, a pressão externa sobre a
Instituição...
— Estamos localizados um pouco acima da Crosta
e, a rigor, a nossa situação não é m uito diferente dos
presídios da Terra.
— Os que estão do lado de fora?...
— Se pudessem, invadiriam. Dom ingas, a morte,
como está verificando in loco...
— Sr. Manoel, confesso-lhe que (não vá comentar
com o Dr. Inácio), quando lia as descrições dele, eu ficava
meio assim... Não era possível!
— Agora, está vendo, ou melhor, começando a ver
que é.

140
— Começando a ver em m im mesma que, com a
desencarnação, apenas perdi aquele corpanzil - aquela
“entidade” que me obsidiava...
— Nos presídios de segurança m áxim a...
— Eu sei, os bandos se o rg a niza m , corrom pem
policiais, comandam o trá fic o , p la n e ja m assassinatos,
destroem, matam, fa lam uns com os outros através de
celulares...
— Sabemos de espíritos de alto poder de mentalização
para o mal que vibram o tem po todo sobre a Instituição:
muitos de nossos pacientes caem em transe natural e...
— Chegam a ficar mediunizados?
— Sim, potencializando o seu grau de agressividade.
Temos feito o p o ssíve l: instalam os m úsica ambiente,
improvisamos cascatas, no sentido de atrair um número
maior de pássaros, melhoramos a iluminação ambiente...
— Tudo com o propósito...
— ...de dificultar a conexão mental com as trevas. O
Dr. Inácio determ inou que os internos sejam sempre
remanejados de seus aposentos, que não permaneçam
inativos, enfim, que se ocupem e sejam ocupados em sua
atenção, inviabilizando a sintonia com as entidades que se
opõem...
— ...ao Cristo!
— Sem dúvida, porque se trata de estabelecer o
império do caos. N ão temos, em nossa Causa, inimigos
pessoais: toda oposição é direcionada ao Evangelho e,
evidentemente, ao que ele representa para a Humanidade.

141
cEa'tlas/ €Á. c!fòaccelli / Q tom ingas’

Falávamos assim, quando, às pressas, um auxiliar


veio requisitar a presença do Sr. M anoel Roberto num dos
pavilhões contíguos.
— Você está preparada? - indagou-me.
— Estou - respondi titubeante, sem ao menos saber
ao certo para quê.
— Então, venha, mas conserve-se atenta; não entre
na faixa... U m dos internos está em crise: é a terceira vez
esta semana. Richard foi um médium que, infelizmente, se
perdeu.
Chegando ao quarto, onde dois outros auxiliares
procuravam conter o paciente em fúria, deparamo-nos com
um quadro desolador: Richard, completamente nu, havia
defecado e urinado no chão, de maneira incomum; olhos
arregalados e uma secreção pastosa a lhe escorrer do canto
da boca, proferia toda espécie de impropérios e palavras
de baixo calão...
O diligente Administrador se aproximou, contendo o
meu avanço espontâneo, recomendando-me de novo:
— Não chegue muito perto! Não entre na faixa...
— Safado! - vociferou a entidade, contorcendo-se.
Não entre nafaixa... Esta vadia! Sabemos que você chegou,
sua... Louca! Quem está pensando que é? Epiléptica-
Veio se juntar aos cordeirinhos, não é? Faz meia-dúzia de
rezas lá embaixo e quer o Céu... Venha cá!... Chegue perto
de m im ! Não tenha m edo!... - disse, assumindo um
comportamento lascivo.
O Sr. M a n o e l Roberto me acenou com a mão,
solicitando-me silêncio.

142
^spíztíO 'Cl£amum'

— Você é igual a este aqui, ó - prosseguiu a entidade,


debochando da situação de Richard. — E le era médium...
Hum!... Vagabundo, mentiroso... M é d iu m , eu sei do quê!...
0 que ele aprontava! A liá s , todos vocês aqui... A quele
médico sarnento... Onde está, que não aparece? Soltem-
me, que eu quero lhe dar u m sopapo... “ H ospital dos
Médiuns” !... H um !... Que coisa! Vamos acabar com isto
tudo, tirar a máscara da cara de vocês!...
— M eu irmão - começou a argumentar o Benfeitor,
pousando-lhe, com c u id a d o , a destra sobre a fronte
empastada de suor. — A c a lm e -s e ! V ocê conhece a
realidade... Não resista, não se oponha ao Bem. É inútil a
revolta! Estamos deste Outro Lado da Vida... Somos filhos
de Deus, que nos ama a todos. N ã o prolongue o seu próprio
sofrimento... Reconsidere!
— Reconsiderar?! Vocês não têm uma argumentação
mais inteligente?... Im plicam -se conosco, perseguem-nos,
querem transformar-nos — falam em caridade e querem
nos obrigar a ser o que não somos! Marginalizam-nos,
rotulam-nos de espíritos das trevas... Ora, vamos deixar
debabaquice! Pelo menos, somos mais autênticos... Onde
é que está aquele médico, que não se digna de vir falar
conosco? Sim, constituímos, ou melhor, continuamos a ser
“legião” ...
— M eu irmão, quem é que está molestando quem?
Porventura, somos nós que estamos desrespeitando a
liberdade de vocês?... A nossa casa é um abrigo para os
que sofrem e querem, de livre e espontânea vontade, mudar
de vida; não constrangemos a quem quer que seja...

143
cQm lo& sA. cfà a c c M i / ÇbamituiaS'

Compreenda! Não podemos nos negar a quem nos bate à


porta... Se, um dia, se decidir a vir, será bem-vindo - você
e qualquer um.
— Era só o que faltava, tentar me enredar com
palavras melífluas!... Vocês nos humilham, fazendo pouco
da nossa capacidade de raciocinar. Deixem-nos! Este aqui,
ó, este aqui é meu, e essa aí não há de ficar com vocês por
m u ito tem po... Veja se tem cabim ento: querem nos
evangelizar!... Hum!... Será que não se enxergam?
— O que Jesus fez para que os homens fizessem o
que fizeram com E le ? - ponderou o companheiro,
transfigurado pela inspiração. — Curava os doentes,
socorria os necessitados, defendia os oprimidos, alimentava
os famintos... O que podemos ter contra isto, meu irmão?
Por que, passados dois m il anos, continuamos a esbofeteá-
lo? “ Se falei mal” - adverte-nos o Senhor, na pergunta que
não se cala em nossas consciências - , “dá testemunho do
mal; mas se falei bem, por que me feres?” A luz incomoda
os olhos de quem se habituou à escuridão... Seria lícito
que impedíssemos a claridade? Queremos tomar o lugar
de Deus na Criação? Que sabe o verme da estrela?... Por
que não somos capazes de amar, da mesma forma que
odiamos? Você poderia nos responder?...

144
<J)outnnflção e CP

Ante a segura argumentação de Manoel Roberto, a


entidade que mentalizava sobre Richard, mediunizando-o,
se retraía e passava a responder com gestos obscenos.
— M e u irm ã o - p ro sse g u ia o evangelizador,
tranqüilo procure refletir... Todos sabemos que, muito
em breve, haveremos de voltar à Terra, em novo corpo. A
Lei é in d e fe c tív e l; de re p e n te , o espesso véu do
esquecimento se fará sobre nós e, então, nos veremos
colhendo o semeado... N ã o acredite nos engodos de
quantos procuram enganá-lo, com o objetivo de tê-lo à
mercê de sua vontade revel: im possível nos opormos,
indefinidamente, aos Desígnios D ivinos! Todos nós, mais
cedo ou mais tarde, experimentaremos, no âmago do ser, a
necessidade de renovação... Ninguém há de pennanecer
para trás, porque o Criador não se frustra em nenhuma de
suas criaturas. O amor é um sentimento espontâneo, ao
passo que o ódio impõe tremendo sofrimento ao espírito

145
<~(Laãko& SÁ. c!fiaocM Á/ ! Q)om inga&

que se equivoca ao sustentá-lo... A fonte desliza cantante,


a flor se abre em perfume, o pássaro trina esvoaçando no
céu!
— Chega, chega! - gritou a entidade, debatendo-se e
dando-me a impressão de que queria partir e, ao mesmo
tempo, ficar. — Cale-se! Não quero ouvir... Cão insolente!
Você tem sido treinado por aquele... maldito doutor! Ele
os hipnotiza e manobra. A h, existe uma grande recompensa
pesando sobre a cabeça dele... Vocês sabiam? Quem a
apresentar numa bandeja aos nossos superiores será
regiamente recompensado...
— Não, ouça um pouco mais; já que veio ter conosco,
aproveite a oportunidade - insistia o confrade, valendo-se
da ensancha que vislum b rara de in c u tir idéias que
persistissem trabalhando o pensamento da entidade que se
manifestava por Richard. — Liberte-se! Com a revolta
cristalizada na mente, em que condições se dará o seu
renascimento? Quem o receberá, na Terra, como seus
genitores, protegendo-o dos perigos a que, com certeza,
estará exposto na infância e na adolescência? Quantos
abusos e distorções de caráter pode padecer o espírito na
idade infantil, crescendo à mercê das circunstâncias de um
mundo de provas e expiações! A sua situação poderá se
complicar muito...
— Ainda ousa me ameaçar?!... Cale-se, seu... Então,
não sabe que temos quem cuida de nós? Haverei de me
antecipar à Lei a que você se refere - planejarei a minha
volta e... Ah, ah, ah!... Serei filho de um casal rico, morarei
numa mansão e curtirei a vida, ao máximo. Se perder o

146
corpo, não importa; o que me interessa é o prazer!... Acaso,
não terei o direito que tem um cachorro de madame? Não
terei pediatras, enquanto tantos cães têm veterinários e
são tratados em salões de beleza?... Ora!...
— M eu irmão, as coisas não são exatamente assim...
0 mal termina por punir a si próprio! Você acha que os
seus superiores haverão de favorecê-lo com privilégios -
de privilégios que disputam, acirradamente, entre eles? O
dinheiro fácil o levaria à droga, e o vício à conseqüente
suicídio... Recue! H á sempre um abismo mais profundo
no qual podem os nos p recip itar. Somente em Jesus
conheceremos a verdadeira paz! Depois que lhe sugarem
todas as energias, você será abandonado... Veja a situação
dos que aqui se encontram, em tratamento e, o que é pior,
daqueles que ja z e m caídos lá fora, rentes aos que os
observam com indiferença... H á algum bom samaritano
por aí? Porventura, existem hospitais em que vocês se
tratam uns aos outros?...
— Não, não temos hospital algum! Não precisamos,
não somos doentes!
— Não negue o que os seus olhos constatam...
— Estou indo embora... Cale-se! Não me prenda...
Solte-me! Que sortilégios fez contra mim? Veneno, veneno
- eis o que está inoculando na m inha mente. Casa de
loucos... Isto aqui é um hospício, uma Sodoma sob disfarce!
Vadios... D eixe-m e ir ou estouro a cabeça deste infeliz...
— Senhor Jesus - começou a orar o experiente
doutrinador, erguendo a fronte para o A lto - , que as Tuas
bênçãos se façam sobre nós neste instante... Todos

147
c(La'ito£' c$ba<xel!À/ / ^bominqas/

carecemos de Tua misericórdia! Não nos deixes a sós...


Fortalece-nos a vontade de sermos bons! Auxilia-nos a
identificar os próprios erros e encoraja-nos a repará-los.
Mestre, nos reconhecemos destituídos de todo e qualquer
mérito para tanto, mas, se não caminhares conosco, não
lograremos chegar a parte alguma... Escora-nos em nossa
fragilidade espiritual, na inevitável jornada de nossa
redenção. Queremos a cruz!... Não nos deixes maldizê-la;
ao contrário, que possamos acariciá-la, como acariciaste
o madeiro que Te impusemos aos ombros... Es a nossa
alegria e esperança!... Contigo, o nosso coração se aquieta
e a sombra em tomo, aos poucos, se dissipa. Compadece-
Te de nossas dores, oriundas da rebeldia e ignorância
milenares... Confiamos exclusivamente em Ti! Es nosso
abrigo e aconchego!... Sê conosco, hoje e para sempre!...
A entidade, retirando-se sem sequer mais uma
palavra, deixara Richard, o médium, extenuado. Enquanto
os auxiliares se encarregavam de limpá-lo, providenciando,
inclusive, a assepsia do quarto, o Sr. Manoel Roberto,
que, devagar, se recompunha das emoções da sentida prece
que pronunciara, entrava em pausada conversação comigo.
— Você está bem? - perguntou-me.
— Não se preocupe - respondi como se, de certa
maneira, também estivesse envolvida naquele processo,
semelhante a tantos outros dos quais, na condição de
médium psicofônica, havia participado por minha vez.
— O Richard, Domingas...
— Impressionei-me com a sua passividade.
— Vemos que os médiuns em desequilíbrio são
extraordinariamente passivos para... o mal. A qualidade e

148
a elevação do fenômeno é uma questão de onde se nos
situa o pensamento.
— O espírito comunicante, ao que constatei, não
estava aqui...
— E nem haveria necessidade - esclareceu. — Uma
notícia viaja milhares de quilômetros e nos influencia...
Uma pessoa conversa com outra pelo telefone e se faz
presente. A mediunidade, por assim dizer (desculpe-me se
não sou claro), é a globalização do pensamento.
— E um universo, não?
— Ainda a ser convenientemente desbravado.
— O espírito, ou melhor, o médium não precisa sentir
o espírito ao seu lado...
— Fisicamente, o espírito nunca está ao lado do
médium; a menos, é óbvio, que se apresente materializado.
— Quer dizer que eu, na condição de médium, quando
anunciava a presença do Dr. Odilon ou do Dr. Rudolf?...
— Não estava faltando com a verdade; apenas não
se expressava bem...
— Preciso rever muitos conceitos.
Saindo, agora, dos aposentos de Richard, que se
entregara a profundo estado de sonolência, continuamos a
conversar.
— Sr. M anoel, a comunicação que presenciamos...
Richard, espírito, incorporou...?
— U m espírito!
— Habitante desta Dimensão?
— Sim, como se fosse intercâmbio mediúnico entre
encarnados...

149
cfla'ilo & s 4 . cfç>accelli / ÇÈaminqas'

— Isto é mediunidade? Não está mais para animismo,


ou mistificação?
— Domingas, o médium, no momento do transe, com
raríssimas exceções, é um receptor de idéias provenientes
de todos os lados. Numa sessão mediúnica, há interferência
também dos encarnados...
— Dos integrantes da reunião?
— Não apenas. O médium é suscetível de captar
vibrações - idéias e emoções - dos presentes e dos
ausentes, que, principalmente, estejam de atenção voltada
para a sessão em andamento.
— Familiares, amigos...
— Vizinhos, curiosos que passam na rua!...
— Você disse, “ raríssimas exceções” ... Como
acontecem?
— Com o médium e o espírito treinados na sintonia,
que trabalham em maior regime de comunhão de propósitos
e pensamentos, estreitando laços de afinidade ao longo do
tempo.
— Mediunidade em diferentes níveis de sintonia!
— Correto. Veja, um espírito a procura para um
primeiro contato... Falta entrosamento, confiança - a
reciprocidade não acontece apenas em nível fluídico,
vibratório.
— A gente nem conversa direito com uma pessoa
que está vendo pela vez primeira, e nem costuma se abrir
com um amigo de muitos anos!

150
O iSonh°

Após ter acertado com o Sr. Manoel Roberto a sala


para a realização do culto do Evangelho, voltei para o meu
quarto, sentindo necessidade de repousar. As forças, de
repente, se me esvaíram e indefinível sensação de fraqueza
apossara-se de m im . A verdade é que eu ainda não me
achava completamente adaptada à nova situação.
Comunicando ao amigo o súbito mal-estar de que
me vira acometida, ele se prontificou em me acompanhar
aos aposentos, oferecendo-me o braço por apoio.
— N ão se preocupe, Domingas - explicou. — É
assim mesmo: as seqüelas da desencarnação podem nos
afetar p o r-u m te m p o m ais ou menos longo. A sua
recuperação nos tem sido surpreendente... O próprio Dr.
Inácio, em comentário conosco, se mostrava admirado.
Descanse um pouco, tentando relaxar, num rápido cochilo...
— Eu não durmo, nunca dormi no período da tarde -
acho um desperdício de tempo. Já temos a noite e...

151
c€a4ÍaS' s4. ctfbaccM i / <
Sbomin^aS'

— De qualquer forma, deite-se, pois não lhe convém


abusar. Os seus vínculos sentimentais com os nossos
irmãos encarnados...
— E, eu tenho pensado muito neles; não consigo me
admitir fora de combate...
— Mas você não está fora de combate; ao contrário,
veio para a linha de frente...
— S in to -m e , no entanto, como quem tivesse
desertado... Tínhamos tantos planos! Fizeram tanto por
m im e tencionava retribuir, a cada um deles, com a minha
amizade. N o fundo, eu esperava ficar bem...
— Faz parte do contexto de nossas provas a nossa
frustração no bem que anelamos concretizar. Em vidas
anteriores, quando tínhamos saúde e oportunidade ao nosso
dispor, não aproveitamos: malbaratamos o tempo, fugimos
à responsabilidade, desprezamos circunstâncias favoráveis,
agora...
— Considero que desencarnei em minha fase mais
produtiva, apesar dos 65 de idade!
— Antes assim - respondeu, auxiliando-me a deitar.
— Vou diminuir a claridade e recomendar que ninguém
entre no quarto, nas próximas três horas. Tente dormir e, se
possível, sonhar...
Quando o Benfeitor se retirou, comecei a refletir,
dialogando com o eco de meus pensamentos.
— Tudo é uma questão de fragilidade espiritual, com
repercussões na minha mente e no meu organismo - se
fosse um espírito mais consciente, não estaria sujeita às
limitações que, mesmo depois de morta, me trazem para a

152
^u/, ^spíúl&^&amum'

cama... Ora, com tanto trabalho à minha espera! Estou


envergonhada... Deste Outro Lado, o nosso envoltório
continua a nos constranger, não importando que tenha o
sofisticado nome de perispírito. Eu imaginava que, uma
vez liberta do corpo de carne, volitaria, e distância alguma
se me constituiria em embaraço. Ledo engano! Será que,
um dia, voarei? Estou aqui, não sei há quanto tempo e, até
o presente momento, não v i ninguém volitando - é pé no
chão mesmo!
Mergulhada em tais devaneios, cochilei e me vi fora
do corpo, sem saber lhes dizer para que Dimensão me
transferira. Teria, por instantes, me transportado para o
ambiente terrestre, ou ascendera a paisagem mais eterizada?
Os desdobramentos sempre me intrigavam, embora, a rigor,
eu nunca soubesse interpretá-los em sua possível mensagem
- quando alguém se aproximava de mim para narrar uma
experiência onírica (de onde agora é que me vem esta
palavra -o n íric a ! - , que, tenho certeza, jamais pronunciei
na vida?), confesso, era acometida por certa crise de
preguiça em ouvi-la... Escutava apenas por educação. Certa
vez, sorri muito de um amigo, quando eu mesma me dispus
a contar-lhe um sonho que tivera na véspera. Ao terminar,
com entusiasmo, a narrativa longa, na esperança de que
me decifrasse as visões, ele simplesmente respondeu: —
“Domingas, eu não sou José do Egito e nem tampouco o
profeta Daniel... Sonho, para mim, é ou não é - desculpe-
me, mas não me dou o trabalho de interpretá-los” . — “Eu
pensei” - disse-lhe — “ que, pelo menos, você fosse me dar
um palpite para jogar no bicho...” — “Nem isto” - retrucou

153
r~fíaãlo& sA. cH a c c M i/ / ^)cumn^as>

;‘uma vez sonhei, nitidamente, com o número 4... Joguei


seguidamente, durante um mês, na borboleta, e... nada:
dava o zoológico todo, menos a borboleta!...”
Bem, seja como for, o certo é que espírito também
sonha, sai do corpo, desdobra-se - não sei para onde, mas
desdobra-se e faceia uma outra realidade.
Esperando contar com a paciência de vocês, digo-
lhes que (vou resumir para não cansá-los), naquela tarde,
em que cochilara, me v i diante de uma assembléia,
composta por gente viva e gente morta, reunida para ouvir
uma conferência minha.
— Meus irmãos - lembro-me de lhes ter falado - , o
Espiritismo, em nossas vidas, se assemelha a exímio
cirurgião a extirpar-nos do cérebro o tumor de nossa milenar
ignorância... O conhecimento espírita é uma espécie de
bisturi agindo em nossa mente, ampliando-nos a capacidade
de enxergar e compreender a Verdade, para a qual, desde
muito, nos temos feito cegos! Precisamos estudar a
Doutrina, que é luz, porque mais luz significa mais visão.
A nossa Fé é raciocinada. Antes, não sabíamos pensar...
Apegados à letra, não atinávamos com o espírito do
ensinamento. O liv ro espírita em nossas mãos é um
privilégio; o trabalho, uma bênção... Por mais façamos
pela causa do Evangelho Redivivo, jamais estaremos sendo
suficientemente gratos a Jesus! Precisamos ser mais úteis
aos propósitos do D ivino Mestre. Renunciemos um pouco
mais aos nossos projetos de felicidade pessoal, porque
não há ventura maior que a de servir... Não nos entreguemos
a conflitos estéreis, submetendo-nos às sugestões das

154
^u/, ^spúUt&<REomunv

trevas. P o lê m ic a , quase sem pre, é perda de tempo.


Carecemos de abrandar o coração, consentindo que o
Espiritismo trabalhe os nossos sentimentos... Unamo-nos!
Não há quem faça mais pela D outrina do que aquele que
procura dar o exem plo...”
Meu Deus, ocorre-me agora, enquanto escrevo: estaria
eu falando incorporada ?! Aqueles conceitos não poderiam
ser exclusivamente meus!...
Despertei, procurando um papel para anotar, às
pressas, as idéias centrais da preleção, com receio de que
se me apagassem da m e m ó ria , o que, efetivamente,
acontecia, à medida que m e esforçava para lembrá-las.
O repouso vespertino me fizera bem. Revigorada,
sentia que, estranhamente, mais uma parte de mim havia
desencarnado... Respirava melhor, de coração aliviado.
Enganam-se quantos im a g in a m que morrer seja um
processo instantâneo. N ão! A desvinculação psíquica do
espírito acontece de maneira gradativa e não poderia ser
diferente. Deixar o corpo pela desencarnação não se traduz
por simples “ virar as costas” para os problemas e laços
afetivos da retaguarda - sair do corpo é uma coisa, afastar-
se do mundo é outra... Adm inistrar emoções do Outro Lado
da Vida é um dos maiores desafios ao espírito recém-
desencamado.
Graças a Deus, as m inhas ocupações e os meus
anseios de trabalho na existência nova não me permitiam
debruçar, em excesso, sobre o passado. Pensava, como
ainda penso, freqüentemente, nos familiares e amigos, mas
estava consciente, como estou, de que, para auxiliá-los,

155
cttm lo & s 4 . cfô a c c e lli' / Q>om inqa$'

precisava me fortalecer, ganhando maior independência


de movimentos.
Algo, no entanto, necessito declarar, com o único
p ropósito de a d ve rtir os c o m p anheiros: por ter
desencarnado e estar, sem merecimento algum de minha
parte, convivendo com amigos queridos nas regiões do
A lé m , não concluam que eu já tenha superado
completamente os meus conflitos de natureza íntima. Não!
Por vezes, pensamentos que me entristecem ainda me
acodem ao cérebro... Não pretendo me justificar, mas é
assim com a maioria. E é natural que assim seja, sem
significar, contudo, que mereçamos o rótulo de espíritos
apegados à matéria. Quando vocês desencarnarem,
compreenderão o que digo... Esperem e verão!
Nós, os espíritas, não poucas vezes nos referimos
pejorativamente aos irmãos de ideal que nos antecederam
na Grande Viagem : Fulano não está bem, esteve se
comunicando lá no Centro e não está bem; Sicrano está
enfrentando dificuldades no Mundo Espiritual; Beltrano
está chorando muito, lamentando os erros - falta de aviso
não foi, pois ele conhecia a Doutrina...
Querem um conselho? Se não querem, vou dá-lo do
mesmo jeito: fiquem quietos, calados, não julguem ninguém,
vocês não sabem nada... “ Olhem para si próprios e orem
pelos outros” - eis uma das frases que o nosso caro Dr.
Inácio mandou escrever, em letras garrafais, numa das
paredes do Hospital.

156
O (prim
eiroC u^o

Foi uma alegria a realização de nosso primeiro culto


do Evangelho, em arejada sala das dependências do
Hospital. Donas Geralda, N a ir Dorça e Maria Modesta, o
Sr. Manoel Roberto, o Dr. Inácio e o Dr. Odilon estiveram
presentes, participando daqueles instantes de oração, à luz
das lições ofertadas por “ O E va n g e lh o Segundo o
Espiritismo” e “ O L iv ro dos Espíritos” .
— Interessante - disse, logo após D . N a ir ter
proferido a prece de abertura eu imaginava que, deste
Outro Lado, outros livros doutrinários de conteúdo mais
profundo e abrangente estariam à nossa disposição, mas
não, aqui estamos a estudar as mesmas obras...
— E natural, Dom ingas - observou D. Modesta
digo-lhe por m im mesma, que, confesso, quando encarnada,
pouco assimilei das verdades da Doutrina.
— A senhora?! - exclamei, evidenciando sincera
surpresa.

157
c€ a ila S ' s 4 . c^acceííO / ÇÈafnúuja&

— Sim, e não me pejo de fazer tal confissão. Eu era


médium, minha irmã, e, de certa maneira, como quase todos
os médiuns, me julgava talvez dispensada de estar sempre
estudando e renovando conhecimentos.
— Modesta - aparteou o Dr. Inácio, discordando -,
não era tanto assim, você lia muito: em sua casa, eu sempre
a surpreendia com uma das Obras Básicas nas mãos!
— Mas não as lia, Inácio, com aquele espírito de
seqüência, com método e disciplina; compulsava-as
aleatoriamente, como, infelizmente, a maioria faz: uma
página aqui, outra ali...
— Neste sentido - falou D. Nair - , eu também perdi
muito tempo. Aprendia mais ouvindo palestras, que
estudando por mim mesma, o que, reconheço, foi um erro,
já que os temas comentados se repetiam com bastante
freqüência. É claro, a gente precisava de ouvi-los, mas...
— A nossa velha desculpa de falta de tempo, não é?
- comentou D. Geralda. Se com vocês, que considerava
estudiosos da Doutrina, era assim, comigo então... A luta,
não raro, se fazia tão grande, que eu não tinha cabeça -
chegava a cochilar com o livro aberto nas mãos! Não sabia
se lia ou se orava pelos meus, em tantas provas que
enfrentávamos, deixando-me com extremo desgaste. Você
se lembra, não é, Domingas?
— A senhora pelejava muito... Sinceramente, não
sei como conseguia administrar tantos problemas!
— Ouvindo o depoimento de vocês... - tomou a
palavra o Sr. Manoel Roberto. Eu achava que só o fato de
trabalhar no Sanatório e conviver com o Dr. Inácio me
seria suficiente...

158
cèu/, ^spúUi&^&Qmum/

— Para quê? - perguntou este.


— Para conhecer a Doutrina...
— Tenha a santa paciência, M anoel! Não me envolva
nisto. Eu v ivia insistindo com vocês...
— É verdade, Doutor. V iv ia nos presenteando com
exemplares de livros: no Natal, no aniversário, nas festas
de confraternização...
— Não seja injusto comigo. Eu não os presenteava
apenas com livros... Se for preciso, evocarei o testemunho
de outros defuntos: irei atrás deles e os trarei, de onde
estiverem, até aqui! - brincou, parecendo indignar-se com
seriedade.
— Permitam-me falar - solicitei. — Eu adorava ler
- adoro! - , porém entender mesmo, que é bom... Que
dificuldade! L ia uma página, duas, três, quatro vezes, para
ver se alguma coisa ficava retida na minha cabeça, e não
conseguia memorizar sequer uma questão de “O Livro dos
Espíritos” ! Invejava os companheiros que, assomando a
tribuna, citavam trechos inteiros de cor...
— Domingas - ponderou o Dr. Odilon - , o importante
é assimilar a essência, que se traduza em nossas ações
cotidianas. O resto, sem o propósito de querer diminuir o
esforço de ninguém, é fenômeno mnemónico.
— Concordo e não concordo, Odilon - interveio o
autor de “N ovos Rumos à Medicina” - , pois, se a gente
não consegue fixar a Verdade como aplicá-la?
— Caímos no velho confronto entre teoria e prática,
não é? Não padece dúvida: o estudo é fundamental, Inácio,
todavia, conforme se sabe...

159
% a d o *,£ A . ct%)accMó / ‘S bam ituia^

— ...muitos se preocupam tão-somente em conhecer!


Vaidade intelectual... O espírita corre semelhante risco,
ainda mais agora com tanta ênfase ao aspecto científico da
Doutrina. Compreendo, Odilon, a sua advertência, e você
tem razão.
— Conhecer Doutrina é uma coisa; saber Doutrina
é outra - enfatizou o Mentor. Conhecê-la teoricamente é
tarefa da inteligência; sabê-la diz respeito à inteligência e
ao coração...
— O que conhece é adepto; o que sabe é tarefeiro...
— Dr. Odilon - indaguei - , é possível se saber algo
da Verdade, sem, digamos, conhecê-la integralmente?
— O conhecimento da Verdade que liberta é o que
se acresce de sua vivência. Conhecimento é o encontro
específico da informação que se busca; sabedoria é a
intuição abrangente... O conhecimento se transmite, a
sabedoria se adquire!
— O livro transmite conhecimento...
— Mas não sabedoria!
— Ler muito?...
— É importante, todavia não basta! Só quem reflete
sobre o que lê e se empenha em transformar teoria em
prática alcança a luz do saber.
— Às vezes, o pessoal, nos cultos semanais
realizados em minha casa, reclamava que demorávamos
muito com tal ou qual livro - ficávamos uma hora discutindo
uma única questão de “ O Livro dos Espíritos” !...
— E por isto, Domingas - exclamou Dr. Inácio, indo
ao cerne da questão - , que quase ninguém sabe nada de

160
^spXãüo/c^amuni/

Doutrina! A s Obras Básicas, principalm ente, carecem de


ser dissecadas... “ O L iv ro dos M édiuns” é o exemplo de
obra que está passando sem ser conhecida e, o que é pior,
dos médiuns! “ O Céu e o In ferno ” , então...
— Com o é o nom e? - fo i m inha vez de brincar,
ironizando a m im mesma. — “ O Céu e o Inferno” ? M u ito
prazer em conhecer... D e quem é?! D e A lla n Kardec ou de
Chico Xavier?...
— Dos dois e de um só! - respondeu o Dr. Inácio. —
E de Kardechico...
— Estou com ve rg o nh a , mas este, “ O Céu e o
Inferno” ..., devo tê-lo aberto poucas vezes na vida!
— Ixe!... O pessoal lá embaixo vai bordoá-la... Como
se atreve a escrever sobre E spiritism o para os vivos, sendo
ré confessa?!... E “ A Gênese” , então?
— “A Gênese” , nem passei perto...
— N ão se preocupem - interferiu o Dr. Odilon,
amenizando o conhecim ento do Pentateuco é para 5
gerações...
— 5 gerações de 100 anos cada, não é? É para 500
anos!... Sendo que, a rigor, ainda não completamos nem a
l.a geração...
— E dizem que Kardec está ultrapassado, Inácio!
— Trata-se de pequeno equívoco: em vez de Kardec
ultrapassado, é Kardec ultrapassou! Não é ignorância
doutrinária: é gram atical!...
— Inácio, o M und o Espiritual não poderia existir
sem você. Ficaria mais pobre e sem graça! Você fala sem
rodeios...

161
cE m los' s4 . cfà a c c e ltl / d om ing as'

— É um a das vantag ens de não ser espírito


missionário!
— Inácio! Bem !...
— O dilon!... - replicou o companheiro, simulando
entrevero com o Instrutor, para, em seguida, sorrir com
descontração.
— Temos, no entanto - perguntei - , outras obras de
cunho doutrinário por aqui, não temos?
— Sim - esclareceu o fundador da “Casa do Cinza” o
pessoal afeito à Literatura continua escrevendo, autores e
médiuns espíritas prosseguem produzindo.
— Na Biblioteca do Hospital, você poderá ter acesso
a diversas delas. Compreenda, porém - elucidou o Dr.
Inácio - , que, para nós, espíritas no corpo e fora do corpo,
o Evangelho de Jesus e os livros fundamentais da Doutrina
se constituem de imutáveis revelações para todos os Planos
em que a vida humana se manifesta. O Evangelho é a
Verdade Universal, e os princípios kardequianos, que nele
se alicerçam, refletem -lhe a sublime claridade.
— Nada de novo, então?
— A o contrário, m inha filha, para o homem velho
que somos, tudo permanece inédito. Você quer algo de
mais inédito para as pessoas do que o Am or? O que poderia
superá-lo? Quem ama realiza o Reino dos Céus em si e...
pronto! O Am or é a síntese de toda a Verdade que pode ser
apreendida!

162
(J^ecmo ^Espiritual

— Aprendida, Dr. Inácio? - perguntei, supondo que


não o tivesse escutado pronunciar corretamente a palavra.
— Apreendida, D om ingas - repetiu - com dois ee;
quer d izer: a s s im ila d a , apanhada, incorporada ao
patrimônio intelectomoral...
— Quantas vezes quis utilizar este termo em minhas
palestras e não encontrava je ito de encaixá-lo... Agora,
aprendi.
— Aprendeu, porque apreendeu! A gente só aprende
o que apreende, ou seja, o que compreende, o que abrange...
Muitos aprendem Espiritismo, mas não o apreendem...
— O que quer dizer?
— Não logram assimilar o espírito da Doutrina, a
essência da mensagem! Por exemplo, aprender o caminho:
significa conhecê-lo, localizá-lo...
— Apreender o caminho?...

163
% m lo * sA. c$>aac<dló / ÇèomUufaS'

— S ig n ific a saber tr ilh á -lo ... Q uem aprende o


caminho, percorre-o de olhos abertos; quem o apreende,
palmilha-o de olhos fechados...
— Aprender Espiritism o?...
— Não basta! Aprender é teorizar, discutir, porque
se está informado; apreender é intuir, sentir o que, nem
sempre, se consegue dizer - é formação espiritual!
— Coitada de m im , que não aprendi nem apreendi!..
— Com os olhos da carne, se aprende; com os olhos
do espírito se apreende...
— Por enquanto - enfatizei - , a única coisa que
aprendi e apreendi é que não sei nada...
— Você está chegando a Sócrates, Domingas!
— É aquele que bebeu soda cáustica, não é?
— Ele bebeu soda cáustica e você está compondo
um novo “ samba de crioulo doido” ...
Até D . M aria Modesta não agüentou e sorriu a valer.
— Consertem isto aí - solicitou o Dr. Odilon - , caso
contrário...
— Ora, O dilon, todo o mundo sabe que Sócrates
bebeu formicida... - brincou o Dr. Inácio, piscando um
olho.
— Foi obrigado a tomar cicuta, Inácio! Por favor...
— A fin a l - perguntou D . Geralda - , o que foi mesmo
que ele tomou?
— Foi condenado à morte mediante sorver, à vista
do povo, uma taça de cicuta, veneno letal extraído de certa
planta - aduziu o Mentor, apreensivo. — O Dr. Inácio e a
Domingas estão formando uma bela dupla...

164
^CotA/, ^Sf2vut(>c^am um /

— Desculpe-m e, D r. O d ilo n , reconheço que excedi...


A única coisa em que posso tentar corresponder é no bom
humor, no mais, coitada de m im , quem sou eu?...
— Agora, você está chegando a C hico X a vie r... Que
é isto, Dom ingas?! Q ue síndrom e é essa? - questionou-m e
o Dr. Inácio, fazendo cara de sério.
— Síndrome da “ponta de unha” - o senhor já ouviu
falar? Não? Pois é, se m anifesta de m aneira inconsciente...
— Pronto! Está querendo chegar a psiquiatra; quer
me desempregar...
— A h! - disse eu, por fim - , quem me dera ser, pelo
menos, uma lasquinha de unha de qualquer um desses
luminares, inclusive do senhor?!...
— E porque você não sabe o estado das minhas unhas,
todas encravadas e atacadas p or m icose!
— Esse Dr. In á c io !... - exclam ou “ tia” Nair.
— A fin a l, isto aqui está sendo um culto ou...?
— E a hora do recreio, O d ilo n ; as nossas irmãs
precisam sorrir... N ão há m aldade em nossas brincadeiras
- você sabe d is to , e esp ero que os com p anheiros
encarnados tam bém saibam . Elas lutaram m uito, sendo
verdadeiras heroínas da fé. A m aior dádiva que um amigo
pode oferecer a outro é a da alegria!
O Dr. Inácio, em ocionado, se transfigurara.
— E u sem pre tiv e m u ita pena das m ulheres -
continuou, com lágrimas suspensas nos olhos que brilhavam
das que se fazem esposas abnegadas, mães extremosas,
avós que se transform am em anjos de ternura na vida dos

165
c€a^íoS' & i. cíi)a c c e lli/ / r3òaminxia&

netos... Oprimida e marginalizada pela sociedade, a mulher


é o sustentáculo espiritual da fa m ília - sem a sua renúncia
de todos os dias, o lar não existiria! Cortava-me o coração,
quando um marido, quase sempre um tirano doméstico,
chegava para internar a esposa no Sanatório... A minha
vontade, confesso, era a de trancafiá-lo, e não a ela, que,
na maioria das vezes, se conturbara mentalmente sob as
torturas afetivas a que fora submetida pelo homem que
recebera para ser pai de seus filhos.
Fez ligeira pausa, enxugou os olhos molhados, com a
ponta do próprio jaleco, e aduziu:
— As nossas queridas Modesta, Geralda, Nair e
Dom ingas ainda trazem feridas abertas no coração...
Sabemos quanto lhes custou o testemunho. Sem a mulher
espírita, o Espiritismo, ou melhor, o M ovim ento Espírita
seria um ja rd im desprovido de flores. Não estou me
referindo à graciosidade fem inina... O ideal do amor é
muito mais forte na mulher do que no homem! São elas,
em maioria, os instrumentos mais dóceis da Espiritualidade
Superior - são elas, Odilon, que incorporam os espíritos
sofredores, que se dispõem à abençoada tarefa do passe,
que sustentam as obras assistenciais na casa espírita, que
evangelizam as crianças... O homem, não! O homem quer
brilhar na tribuna, conflitar-se por cargos administrativos,
polemizar por detalhes doutrinários de somenos, exibir-se
mediunicamente - com exceções, é claro! Mas, dentre os
homens, as exceções, quase todas, ficam por conta de almas
sensíveis, ou seja, daqueles cujo p siq u ism o não se

166
caracteriza propriamente pela sua condição de macho da
espécie - os seus espíritos já começam a transcender os
limites da forma...
O Dr. O d ilo n e o Sr. M a n o e l Roberto permaneciam
em silêncio, tocados, tanto quanto nós, pelas enérgicas
palavras do Dr. Inácio.
— M esm o e n tre os e s p írita s , im p e ra certo
machismo... Cita-se, com ffeqüência, o nom e de veneráveis
Mentores, esquecendo-se, por exem plo, de se relacionar
Anália Franco, Ism én ia de Jesus, Benedita Fernandes,
Yvonne do A m a ra l P ereira, A d e la id e Câm ara, C orina
Novelino, Antusa Ferreira M artins... A lista é infindável.
Para mim , D . A m é lie B oudet sempre esteve no mesmo
patamar do Prof. R iv a il, o nosso A lla n Kardec! A renúncia
daquela senhora é com ovente, a sua defesa da Doutrina,
inclusive sentando-se no banco dos réus, no famigerado
processo m ovido contra os espíritas na França... Esquece-
se isto com facilidade. N ão podemos! A m ulher espírita é
a alma da própria D outrina. Se os homens que estão no
poder, corrom pendo-se e fazendo guerra, destruindo a
Natureza e com prom etendo o futuro da Hum anidade,
cedessem lugar às m ulheres, tudo haveria de ser diferente
- a paz seria re a lid a d e na T erra e não sonho que,
infelizmente, nos parece cada vez mais distante.
— Obrigadas, Doutor, pela defesa veemente que o
senhor está fazendo de nós...
— N ão, D om ingas... A in d a há pouco brincamos;
agora, porém estou falando sério. Nós, os homens, é que

167
<&zalas' s 4. ^ a c c e é li// Çèomuigas'

precisamos im itá-las, e não vocês a nós! F oi anônima


pitonisa, em Delfos que despertou Sócrates para a missão
que viera cumprir no campo da F ilo so fia; Emmanuel, em
verdade, era o tutor espiritual de Chico Xavier, mas quem,
primeiro, lhe incutiu a fé em Deus, ensinando-o a orar, foi
D. M aria João de Deus... D izem que atrás de um grande
homem há uma grande mulher. Eu diria: uma grande mãe!
Uma grande esposa! Um a grande avó! E nfim , uma grande
companheira!...
O lhou o relógio, bateu com ambas as mãos nos
joelhos, preparando-se para levantar, e, como não poderia
deixar de ser...
— Não pensem, todavia - disse - , que eu queira ser
mulher na próxima encarnação!
— Ah, Doutor!, eu já estava pensando...
— Eu sei, Manoel, o que se passa na sua cabeça. Por
isto me antecipei... Como mulher, eu seria um desastre; se
bem que mamas avantajadas eu tinha...
— O seu tórax, Inácio, é que era estreito para elas!
— Obrigado, Modesta! Você sempre me protegendo,
não é? Mas, depois dos 70, beirando os 80 de idade (você
havia desencarnado), cheguei a pensar que ia ter que usar
sutiã, pois as mamas despencaram de tal forma, que fiquei
traumatizado!
— De qualquer maneira, mamas o senhor já tem...
— Mamas e ancas, Domingas!
— Então, na próxima, é perigoso, Doutor...
— Esconjuro-te!

168
c%u/, ^sfzm ta'C€cmunv

__ Inácio _ perguntou o Instrutor, com o objetivo de


dar ao amigo ensejo de se explicar - como você pode, de
repente, subir tão alto, com uma dissertação tão linda, e,
de repente...
— ...descer tão baixo, com comentários tão rasteiros?
Respondo a você, O d ilo n : é um problema de gravidade -
não de gravidez, hem ! H á uma força no centro da Terra
que, a toda vez que quero subir, me puxa para baixo!
“Ceu ^Espírita”

Domingas, continuando tudo bem como está -


disse o Dr. Odilon na próxima semana, faremos uma
visita ao “Liceu” .
Que alegria! Gostaria, sim, imensamente. Desde
que li o livro de autoria do nosso Paulino — o “Liceu da
Mediunidade” —, fiquei apaixonada... Não mereço, mas
será uma bênção. Estarei ansiosa... Será que poderei
freqüentá-lo com regularidade? Será? M eu Deus, como é
bom desencarnar!... Isto é estar no Céu - no Céu Espírita!
— Calma, minha filha! Nem tudo são flores por
aqui... Vamos com calma!
— Certo, mas depois do que passei, tudo é lucro...
Diversas vezes, estive a ponto de me complicar e, graças
a Deus, saí apenas chamuscada... Eu quase virei alcoólatra,
adúltera. Não tenho vergonha de falar, não; o senhor sabe...
— Domingas, a desencarnação não nos altera o
mundo íntimo... Carecemos de vigiar, sempre. A vida

170
^sfíM cta'ClEamum/

continua e os d e s a fio s ta m b é m , os obstáculos não


superados, as fragilidades à espreita... Por enquanto, tudo
lhe está sendo festa para os olhos e para o coração. Eu sei
que você não teme o trabalho, gosta de servir, no entanto...
— Ué!...
— A q u i ainda é a Terra! Quando nasce, a criança
não faz idéia m uito precisa do que a espera. À medida que
vai crescendo, é que as lutas e as provas a requisitam.
Deste O utro L a d o , é sem elhante... D esafetos antigos
aparecem de im proviso. O espírito, a cada passo, pode se
complicar, a menos que, dentro de si, não mais ofereça
receptividade ao m al.
— Não é o meu caso; seria uma temeridade afirmar
que já me sinto isenta... D e m odo algum! Se, por exemplo,
começarem a me elogiar m uito, eu acredito... Está aí a
vaidade dentro de m im . D e um a a duas alfinetadas, eu
agüento, mas, da terceira em diante, não garanto nada!
— Vejamos o que Jesus enfrentou - Ele, que, por
assim dizer, era um e sp írito p e rfe ito perseguição,
abandono, injustiça, hum ilhação... Ninguém se ilum ina para
se transformar num a estrela! A função da luz é levar
claridade às trevas... A incom preensão não nos é tão-
somente oriunda do carma. O verdadeiro amor é aquele
que se im ola pela felicidade de quem tudo fez para não ser
amado! Quem mais tive r mais será chamado a doar. As
tarefas mais sacrificatórias são reservadas aos espíritos
que, a rigor, não teriam mais que se submeter a nenhuma
espécie de sacrifício.
— É, preciso me controlar no entusiasmo - concordei.

171
'"dailoS' s4. cfâ a c c e lli / ^>ominaa&’

— O pastor do rebanho não descansa, enquanto uma


só de suas ovelhas permanece tresmalhada... Conquistar
afeições, Dom ingas, é am pliar responsabilidades. Os
am igos nos reconfortam ; igualm ente, necessitam de
reconforto. Como nos mantermos indiferentes aos que se
atrasam na jornada? A ingratidão é um a das piores
características de nossa im perfeição espiritual. Você se
deparará por aqui, em nosso meio, com incontável número
de espíritos que, com base em seus méritos, poderiam ter
ascendido a outros planos... Por que não o fizeram ou não
o fazem? Ora, se Jesus veio, todo o mundo se sente na
obrigação de ficar, até que possamos ir juntos...
— Quer dizer?...
— A consciência do general condecorado pela vitória
no campo de batalha jam ais o galhardoa, caso ele tenha
abandonado um só dos seus à mercê dos inim igos. O Amor
quer todos para si! Os que sobem a Planos Maiores,
constrangidos pelo exem plo do Cristo, periodicamente
descem às regiões inferiores, em socorro a retardatários.
— De quão grandes e profundos significados se
revestiu a vinda de Jesus à Terra! - exclamei, maravilhada.
— Quando passa pela cabeça de um espírito que
ascendeu a idéia de não voltar - adm itindo que tal seja
possível - , ao pensar em Jesus Cristo, ele reconsidera...
Digo “ admitindo que tal seja possível” , raciocinando sob
hipótese, porque o espírito que realmente se eleva sabe
para que está se elevando...
— Então?...

172
‘j %vu, ^spÍM to/c&)mum/

— Então, D om ingas, o “ Céu Espírita” é estar onde o


Senhor nos ad m ite a seu se rviç o , em bora as nossas
imperfeições.
— O senhor fala de um je ito , que eu tenho vontade
de me precipitar nas trevas...
— A ntes, porém , m in h a filh a , a fim de não nos
confundirmos com elas, precisam os de acender uma
luzinha...
— É verdade - disse - , estou me lembrando de Irmão
Jacob, em “V oltei” ... Estou bem, mas obscura - meu Deus,
que ainda não tinha reparado! Onde a resplandecência do
meu corpo espiritual? Os espíritos nos diziam que ele
transluz...
— N a m aioria de nós outros, os desencarnados, a
lum inosidade do p e ris p írito só existe em função da
obscuridade do corpo de carne!
Despedimo-nos. O Dr. O d ilo n tinha mais que fazer.
Todavia, o que aquele prim eiro culto me rendera em matéria
de lição dava para refletir, no m ínim o, pelo resto do tempo
que passasse no A lém , na condição de espírito relativamente
liberto.
N o outro dia, pela m anhã, A frâ n io e C elina me
visitaram.
— De nossa parte - inform aram -m e - , a senhora está
de alta; a respiração praticam ente se norm alizou, os
pulmões se expandiram, está tudo bem...
— Sentirei fa lta de vocês, de nossas caminhadas
matinais.

173
c(ía>iLa& sA. cfâaecelli/ / ^bcurUnga»

— Soubemos que está começando uma reunião, um


culto do Evangelho e, se possível, gostaríamos de participar
- solicitou Celina.
— Será uma alegria! Não há problema.
— O Sr. M anoel Roberto nos orientou que falássemos
com a senhora.
— Ó tim o! Espero não ser m uita pretensão minha,
mas, aos poucos, planejo organizar pequeno grupo de
trabalho, e... sim patizei-m e com vocês.
— E nós com a senhora - redargüiu Afrânio. — Creio
que nos estava faltando encontrar alguém assim - a sua
sinceridade nos tocou o coração. Nada é mesmo por acaso;
com tantos fisioterapeutas por aqui, fomos agraciados pela
oportunidade de atendê-la...
— Vocês foram excelentes funileiros - brinquei,
tímida, ante as referências elogiosas do casal. — Cheguei
com a lataria amassada, enferrujada, pior que a de um
Fiat que eu tinha em m inha garagem. Pensei que o meu
destino seria o ferro-velho...
— D . Domingas - adiantou-se Celina - , vamos dar
uma últim a volta, tendo a senhora como nossa paciente?
A ssim , poderemos desfrutar um pouco m ais de sua
agradável companhia.
— É claro! A manhã está linda!
— Choveu durante a noite, mas agora o Sol está
brilhando...
— E os pássaros estão fazendo aquela festa... É época
de acasalamento! - emendou o gentil rapaz.

174
C(oU/, ^sp M À io /c&om um /

— Chuva durante a noite, Sol brilhando de manhã,


pássaros se acasalando... Q uem diria! Tudo tão simples,
natural, tão dentro do lógico contexto da Vida!
Saímos e, de fato, o dia estava esfuziante. Pássaros,
pequenos e m a io re s, b rin c a v a m nas cascatas e nos
chafarizes, fazendo a corte uns aos outros, mostrando as
suas belas plumagens ao S ol; borboletas voejavam sobre
a corola das flores; o vento brando flauteava por entre a
copa das árvores m ais altas, que se inclinavam , parecendo
bailar ao ritm o de in v is ív e l orquestra... De repente, não
mais que de repente, com o disse o poeta, ergui-me, sem
perceber, alguns poucos centímetros do chão.
— M eu Deus - perguntei - o que está acontecendo?
Segurem-me!
Celina e A frâ n io sorriram , puxando-me para baixo.
— Será uma nova crise de labirintite? Estou no ar...
Sinto-me leve, leve! Que sensação esquisita!...
— A senhora v o lito u - explicou Celina.
— Eu?!... N ão, não é possível! Está certo, perdi uns
quilos, mas nem tanto... Cruzes! - ri-m e. — Eu sairia
voando por aí, feito uma “ aleluia” sem rumo... Fiquei com
medo. Segurem-me! M e u coração disparou...
— A sua leveza de espírito...
— Que leveza, que nada, A frânio! A minha pressão
deve ter c a íd o , não? E u estava tão em bevecida,
identificando-me com a Natureza...

175
11
ana

— E planou! - confirm ou Celina. — A senhora


volitou! Nós vimos... Estamos aqui há muito mais tempo
e, conosco, ainda não aconteceu.
— Meu Deus, que coisa! É bom e ruim; acho que
mais ruim do que bom... E se eu saísse por aí? Rastejo há
milênios e, de repente... Certa vez, sonhei que estava
voando, fazendo acrobacias no ar, mas era sonho - passei
num rasante sobre uma floresta, um lago, desviei-me com
facilidade de alta montanha, parecendo que, em mim, havia
sido instalado um radar de morcego...
— Pouquíssimos, D. Domingas, por estas paragens
conseguem “ voar” ... É uma bênção! - disse Afrânio,
eufórico.
— Pode ser uma bênção, meu filho, mas... eu sou
uma lagarta - sou do chão, não sou do ar! Vou ter que
conversar com o Dr. Odilon, com o Dr. Inácio... Talvez
ainda seja seqüela do aneurism a. E u , Dom ingas,

176
^sfiM ito^^om unv

volitando?... Não, é algum a peça que estão querendo me


pregar... Pesada como sempre fu i, eu mal conseguia levantar
o pé do chão.
Não tivem os tem po para levar o assunto adiante,
porque, cam inhando por um dos pátios da Instituição,
observando a m ovim entação de dezenas de pacientes em
condições um pouco melhores - o H ospital, um prédio de
imensas proporções, possui diversas alas e pavimentos,
inclusive no subsolo - , fu i abordada por uma irmã que,
assim que me v iu , cam inhou ao meu encontro.
— D. Dom inga! - chamou-me pelo nome, suprimindo
o s. — Até que enfim , um rosto que conheço!... A senhora
está lembrada de m im ? F u i m uito na sua casa, pedir as
coisas... Eu não sei o que houve: senti uma dor no peito e
me trouxeram para cá... A cho que desmaiei na rua. Isto
aqui é o Hospital-Escola da Faculdade de Medicina? Estou
estranhando...
— Cigana, mas é você?! - perguntei, identificando
naquela irmã a pedinte que sempre me procurava.
— Sou eu, D . D om inga! A senhora emagreceu... Ouvi
falar que estava doente, com câncer, é verdade? Não vai
pegar o meu nome pra cesta de Natal?... Não sei do meu
povo... Levantaram acampamento e foram embora - me
esqueceram para trás, D . D om inga! Ingratidão... Sou eu
que levo o sustento pra casa. Estava no centro da cidade,
oferecendo para ler a sorte das pessoas... A senhora quer?
Deixa ver a sua mão...
— Cigana, m inha irmã, os nossos destinos parecem
estar entrelaçados...

177
c(ía<ilo& £Á. cifh a c c M i/ / Çòaminqa&'

— Com o destino, a gente não brinca, D . Dominga!


O que está escrito, ninguém muda... Eu sei ler, as outras
não sabem, não - só querem saber de dinheiro, são muito
namoradeiras, tomando “ os marido das m uié” ... O meu
deve ter fugido com uma delas; a senhora sabe, estou velha,
perdi o meu dente de ouro - caí lá na Praça R ui Barbosa,
bati com a boca no chão... O meu dente foi embora no
ralo...
— Cigana - falei, esboçando um sorriso - , você está
me fazendo lembrar de uma amiga minha que diz ou dizia
- não sei se ela já “ m orreu” : — “ Desgraça pouca é
bobagem!...”
— A senhora fala na morte, como se morrer fosse
nada... Tem medo, não?
— E adianta, Cigana, ter medo? Eles vêm de disco
voador e seqüestram a gente...
— Esconjuro! Não, não quero morrer agora, não...
Aqui, neste lugar, todo o mundo vive falando em morte.
C redo! - disse, apertando uns colares coloridos
dependurados no pescoço.
— Cigana, você é uma felizarda!...
— Felizarda, se eu tivesse na companhia do meu
marido, debaixo da nossa lona... A h, D . Dominga!, será
que mataram o meu véio por conta do carro?... Já tinham
me roubado um tacho de cobre... Cresceram o olho em
cima de nós. A senhora anota o meu nome pra cesta de
Natal?
— Anoto, Cigana, vou anotar - aliás, nem preciso
anotar, não é? Estamos internadas juntas...

178
^spí/úlo/^Qomum/

— E ntã o, estam os m esm o doentes? A senhora


emagreceu tanto!... N ão fo i coisa feita , dona Dom inga?
Uma mulher tão boa!...
— Você gostaria, quando saíssemos, de trabalhar
comigo?
— Trabalhar?!... Fazer o quê? Cigano não trabalha
na casa dos outros - um a hora, a gente está aqui; outra
hora, a gente está a li... Posso ajudar a senhora por uns
tempos, se a senhora estiver precisando. A sua casa é
pequena, não é? N unca entrei, mas já vi...
— Pequena e pobre, quase uma barraca de lona. Você
não vai estranhar...
— Tenho tudo direitinho aqui, mas quero ir embora.
Tem um doutor que sempre vem me ver: conversa, conta
piada... Ele me parece m uito bonzinho, não sei o que está
querendo. Nam oro não pode ser...
— Não, Cigana, com certeza não é namoro.
— Dr. Inácio Ferreira... N ão é aquele antigo, lá do
hospital dos doidos? O u v i dizer que ele tinha morrido...
Isto está m uito esquisito! Tem gente que fica andando o
dia inteiro, de um lado para outro, parecendo... Como é
mesmo, aquela palavra?
— Zum bi!
— Isto mesmo, zum bi! Eu sentia muita dor no peito,
falta de ar, fum ava m uito... Cabeça ruim não tenho, D.
Dominga!
— Cigana, ninguém morre...
— Eh! essa conversa da senhora... Está me cheirando
mal. Não me diga que está querendo me dar alguma notícia

179
c^mlos> é>4. cfâ>acceMÀ/ / <
3Ê>amincja&

ruim !... O meu caso é grave? D a derradeira vez que me


viu, o doutor, esse Dr. Inácio, falou que aqui está todo
mundo morto... Verdade, D . Dom inga? Ele troça demais
com a gente, caçoa com um, caçoa com outro...
— Quem morre não conversa, Cigana.
— É...
— Penso que o que pode ter acontecido...
— O quê? A senhora é espírita, eu não sou; respeito
tudo quanto é religião, mas gosto mais da Igreja... Não
quero ofender ninguém.
— Acho que deixamos o corpo!
— A h! d ifíc il de acreditar... A senhora me perdoa,
não acredito, não! Tudo igualzinho assim? Minhas roupas,
minhas pulseiras, tudo?... M orte sem Céu, sem Inferno?!...
Nem Purgatório isto aqui é... A gente come, bebe, dorme!
D. Dominga...
— Não tiro a sua razão, m inha irmã: é d ifíc il mesmo.
O nosso problema não é câncer, não é dor no peito - o
nosso problema é pensamento! A s religiões nos fizeram
assim: nos colocaram para “ dorm ir” , e acordar não vai ser
fácil...
— Que pena, a senhora, uma mulher tão boa, que
nunca fez pouco da gente!... Ficou fraca da cabeça?
— Fiquei, Cigana, fraquinha de tudo...
— Toma remédio, fala com o doutor...
— Voltaremos a conversar, depois.
— Coitada de D . D om ing a! Vou pedir a Nossa
Senhora Aparecida... Não esqueça do meu nome - faltam
poucos dias para a repartição, não é? Com certeza, até lá
já saímos daqui...

180
E , vendo passar, rente a nós, um senhor bem
aparentado, Cigana se despediu e fo i atrás dele com as
mãos estendidas, oferecendo-se com insistência:
— Quer ler a sorte? Cigana enxerga o seu futuro...
Aprendi com a m inha avó. O preço é barato... D eixa ver
as linhas da mão, deixa!
C e lin a e A fr â n io o lh a ra m -m e in trig a d o s , na
expectativa de meus comentários subseqüentes.
— Recordo-me dela e de tantos outros... É uma pena!
Recrimino-me por não ter conversado mais, explicando-
lhes as coisas do M und o Espiritual. A gente ajudava, sim,
mas estava sempre com pressa... Doava comida, roupa,
remédio, algum dinheiro, e se ju lg a va quite com a caridade;
sob o pretexto de não forçar ninguém ao nosso modo de
crer, ignoramos a carência espiritual de nossos irmãos... A
prática do bem integral é façanha que, de fato, nos é quase
inacessível ainda! A s nossas lim itações são tantas, as
nossas mazelas e inferioridades tantas, que nos encontramos
impedidos de amar... É um a prova para o coração!

181
(]% ^periferia áa Qaridade

— Então, um a prova, D . D o m in g a s, a nossa


incapacidade de não lograrmos fazer o bem em toda a sua
extensão? - indagou Celina.
— Considero que sim, minha filha, pelo menos no
meu caso. Procure entender: eu ajudava, mas não passava,
digamos, daquela quantidade e daquela qualidade - daquele
tanto de paciência, de atenção, de tempo... A gente vive,
no mundo, reclamando até com certa indignação: —
“Preciso de um tempo para mim... Assim, não é possível!
Eu também sou humana, tenho as minhas necessidades...”
Tudo isto é engodo para a consciência, tentativa inútil de
nos ju stific a rm o s em nossos desmandos. O tempo
verdadeiramente consagrado a nós é o que devotamos aos
outros; quem não trabalha pela felicidade alheia não constrói
a felicidade própria...
Ante o interesse do casal, arrisquei continuar:

182
^spíútQycEomum'

— N ós nos sentim os envaidecidos, quando, não


atinando com a indigência espiritual que nos diz respeito,
somos procurados pela necessidade de nossos irmãos,
daqueles que nos descobrem o endereço e, com freqüência,
nos batem à porta... C onfesso-lhes que me sentia em certa
situação confortável, quando alguém , por exemplo, me
parava na rua e me estendia a mão suplicante - abria a
bolsa, vasculhando-a pela nota menor...
— É incrível! A gente é assim! - exclamou A frânio.
— Pois é, meu filh o , abrimos a bolsa, a carteira, mas
não abrimos o coração... C om o é d ifíc il, meu Deus, sermos
genuinamente bons! Sempre as conveniências da hora, as
circunstâncias da vid a m aterial...
— D . D o m in g as, com o, no entanto, vamos nos
despojar de tudo? N ão podemos...
— Celina, sinceramente, não sei como haveremos de
resolver esta questão de foro íntim o; por exemplo, a única
coisa que sei, que constato em m im mesma, a cada dia que
passa, é a m inha insatisfação pessoal na vivência das lições
do Evangelho - eu conhecia o suficiente para ter feito bem
mais do que fiz!
F iz pequena pausa e, enquanto caminhávamos,
acrescentei:
— A Cigana... A u x ilie i-a incontável número de vezes
- auxiliei-a, não, eu ganhava as coisas para dar... De meu
mesmo, devo lhe ter dado poucos centavos; o que era de
minha propriedade, eu lhe soneguei... Não me recordo de
ter orado por ela, mais do que uma ou duas vezes - um
“Pai Nosso” , feito às pressas, sem m uito envolvimento

183
c&a'UoS' «S
*1
?. cjfhaoceltb / ÇèomUi4a&’

sentimental... Comprava, não raro, vários exemplares de


“ O Evangelho Segundo o E sp iritism o ” e os distribuía
graciosamente. Discrim inei-a, não dei um livro a ela, achei
que não valia a pena o investimento...
— A senhora não está sendo rigorosa, em excesso,
consigo mesma?
— N ão, C elina - respondi - , estou sendo, sim,
absolutamente honesta, tão honesta quanto não pude ser
ou, o que é mais provável, evitei ser! Quem sabe estas
nossas reflexões possam despertar alguém, não é? Estou
rascunhando algumas palavras e o tema é relevante, vocês
não acham?
— Nossa, se é! - concordou A frânio. — Nunca me
senti tão inútil em toda a minha vida! Chego à conclusão
de que, em matéria de caridade...
— Mesmo quando eu não me externava - interrompi
o jovem fisioterapeuta - , o meu pensamento, toda vez que
tinha oportunidade de doar alguma coisa a alguém, era
mais ou menos este: — “ Os nossos Benfeitores Espirituais
haverão de me recompensar o desprendimento...” Ora, que
podemos almejar além da alegria e da paz interior que a
prática da caridade nos proporciona de imediato? Qualquer
esforço no bem, por mais dim inuto, é recompensado na
hora... E eu ficava na expectativa de que viesse mais - de
que ganhasse na loteria, de que conseguisse um emprego
de alto salário, de que jam ais viesse a adoecer... Usava os
pobres para barganhar com Deus!
— Nossa, D. Dom ingas!...
— É verdade, Celina!

184
*~(oU/, ^SfOiUo/^^omunj/

— Eu sei, mas é duro escutar isto.


— A té quando, m inha filh a , preferiremos a ilusão?
Quase ninguém quer ser recompensado espiritualmente...
A gente deseja coisas concretas, palpáveis. Como somos
bobos! Em vez de lu z, sabedoria, equilíbrio, queremos
dinheiro... Dam os um centavo, na expectativa de ganhar
um milhão!
— A senhora pretende colocar estas idéias no papel?
- perguntou A frânio.
— Vou colocá-las porque, lá embaixo, há muita gente,
muitos amigos meus, perdendo a oportunidade de agir no
bem com m aior conhecim ento de causa. Trabalham na
periferia da caridade, im aginando que trabalham em seu
cerne!
— Caridade periférica!...
— Vão chegar a este Outro Lado de mãos mais ou
menos vazias, como as m inhas! Eu nunca conversei tanto
com a Cigana como instantes atrás; em dois minutos, eu a
despachava: está aqui o que você quer, pronto, acabou...
— A senhora disse - observou Celina ...está aqui
o que você quer...” A verdade é que muitos de nós só
queremos isto m esm o, a senhora não acha? Conselho,
palavra boa, convite para reuniões de oração...
— O seu raciocínio é perigoso, minha filha. Se Jesus
pensasse assim, não teria vindo à Terra! Ele não hesitou
em semear em terreno árido... Recomendou-nos não atirar
coisas santas aos cães, mas as deu!... Queria preservar-
nos, mas não preservou a Si. Ofertou-nos pão à fome do
corpo e luz à fome do espírito! A rigor, até hoje, passados

185
c€a/doS' s4. c$>accellb / Ç&aminpa&

dois milênios, não estamos preparados para o Evangelho...


O nosso comodismo é grande: concordamos em gastar, em
ceder do que temos, todavia relutamos em doar do que
somos. Vejamos a lição que E le nos transmite nas Bodas
de Caná, segundo João, 2:1 0 : “ Todos costumam pôr
primeiro o bom vinho e, quando já beberam fartamente,
servem o inferior; tu, porém, guardaste o bom vinho até
agora” ...
— A senhora conhece a B íb lia de cor? - perguntou-
me Afrânio.
— Não, meu filho, eu não sei de onde me veio esta
lembrança agora, pois sempre tive péssima memória.
Intrigada, porém não querendo interromper o curso
das idéias, prossegui:
— Jesus não hesitou em nos servir o bom vinho!
Será que só temos caneca de vinagre para oferecer aos
outros? O vinho que tinha acabado na festa e que sempre
acaba é o que fora destinado a embebedar os convivas...
Será que somos apenas capazes de destinar espórtulas a
corpos perecíveis? ( Espórtulas? Que palavra é esta, meu
Deus, que saltou do nada para a m in h a cabeça?!)
Precisamos pensar... Não somos detentores de algum outro
valor, além de poucos trocados? E m uita pobreza, a nossa!
Queremos estar próximos daqueles que podem nos retribuir
intelectualmente a presença, evitando os que definimos
como “pobres de espírito” ...
— Tem razão - concordou, em uníssono, o casal
amigo.
— Nas bodas de C aná, na G a lilé ia , o Cristo,
transformando a água em vinho de excelente qualidade,

186
^ u /, ^sfzfoU&^&Qmum/

nos valorizou, não fazendo pouco de nós outros. Ele nos


ofertou o que possuía de m elhor, mesmo sabendo que,
àquela altura da festa, possivelm ente alcoolizados, não
saberíamos distinguir o bom do mau vinho: foi o mestre-
sala quem o fez!... Quantas vezes nos movimentamos na
caridade, com a idéia de que, para os necessitados, qualquer
coisa serve? D esfazem o-nos do supérfluo do supérfluo,
ou seja, do que costuma tom ar espaço em nossa casa, dos
objetos e das coisas que destinaríamos à lata de lixo... A
qualidade da doação fala da condição espiritual do doador.
— A senhora está indo fundo - considerou Celina.
— Estou, m inha filh a , efetuando uma autocrítica,
nada mais.
— Os que, antes de Jesus, vieram ao mundo,
missionários do Bem e da Verdade, nos brindaram com
lições de transcendente conteúdo, mas nenhum deles nos
teve em tão alta estima quanto Jesus! A Humanidade não
teve para lhe oferecer m ais do que uma esponja embebida
em fel, na hora da cruz... “ Já não vos chamo servos, porque
o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos
chamado amigos, porque quanto ouvi de meu Pai, vos tenho
dado a conhecer” . Quando é que tratamos um indigente na
condição de a m ig o ? T ra ta m o -lo ta lv e z como uma
oportunidade de exteriorizar generosidade, nada mais!

187
Conhecendo

Fui para casa profundamente tocada pelas minhas


próprias palavras, contrariada comigo mesma, pois, afinal,
deixara escapar excelente chance de maior expansão
espiritual - praticamente, eu convivera com irmãos carentes
a vida inteira e me mantivera na superficialidade das
atitudes. Estendera a caridade, mas não a entendera!
Beneficiara, todavia não me beneficiara... Ficara, sim,
faltando qualidade no gesto.
Imersa nestas reflexões, que tentava rascunhar no
papel, recebi a visita providencial do Dr. Inácio.
— Como é, Domingas? - saudou-me à chegada,
acompanhado de um amigo que não deveria ter um metro
de altura. — Que luta, hem? Você está pior do que eu!
Que papelada no chão!... Tem mais livro na lata de lixo do
que fora... E para você sentir na pele o que a gente passa:
escrever daqui para a Terra é um parto quase impossível;

188
se não provid enciarm os um a cesariana na cabeça do
médium, a criança não nasce...
— Deus me liv re ! E stou escolhendo palavras e
assuntos com a prudência necessária, para não magoar,
não escandalizar...
— A verdade, m in h a cara, quando não estamos
totalmente preparados para ela, sempre soará aos nossos
ouvidos de m aneira ofensiva. Por mais tente abordar a
realidade com a preocupação de não ferir suscetibilidades,
você não evitará o m elindre dos que preferem viver na
ilusão.
— Quem é o com panheiro? - indaguei curiosa, ante
a figura simpática e extremamente cativante do anãozinho,
que não tirava de m im o olhar.
— Você o conhece; trata-se de Labélius...
— Labélius, o elem ental?! - redargüi. — Sim, eu sei
quem é você na obra do D r. Inácio, “ D o Outro Lado do
Espelho” ... P aulino Garcia, em “ Espíritos Elementais” ,
também faz referências a você. Que alegria! Eu tinha muita
vontade de conhecê-lo... D á-m e um abraço!
A quele - p e rm ita m -m e a expressão carinhosa -
pequeno “ E T ” , com os olhos brilhando, avançou na minha
direção e, com os seus braços de criança tema, estreitou-
me de encontro ao coração, que senti pulsar junto ao meu.
— Há m uito não sou abraçada assim...
— Labélius - brincou Dr. Inácio - , a nossa irmã é
comprometida e o m arido fo i soldado. V á com calma...
— É abraço de irm ão, não é, D . Dom ingas? -
respondeu, sorrindo, aquele entezinho que, sinceramente,
tive ímpetos de segurar no colo e não soltar.

189
c€.a ila & £Á. cfà a c c e lli / ÇôaminqaS'

— Como você é meigo! Com o você é bonito!...


— Epa, alto lá! Declaração de amor na minha frente...
— Dr. Inácio, o senhor sabe que eu achava...
— O que muita gente acha: que inventei o Labélius,
não é?
— Eu ficava querendo que ele existisse...
— Eu existo! - protestou o elemental, tocando-me a
face com delicadeza, fixando nos meus os olhos grandes e
amendoados, desproporcionais ao tamanho de seu rosto.
— Não sou uma ficção!...
— Desculpe-me, Labélius; cheguei ainda há pouco
da Terra e sou muito ignorante das coisas de Deus. Nós,
humanos...
— Sei mais ou menos como são: eu já fu i humano-
muitos de nós o fomos, noutras vidas, como vocês já foram
o que chamam de dementais.
— Por que regrediu, ou melhor, por que preferiu voltar
à antiga forma? - perguntei.
— Sinceramente, pelo que os homens andam fazendo,
é preferível ser considerado sub-hum ano... A senhora
considera que Jesus, um ser completamente angelizado,
tenha regredido ao deliberar tomar a forma humana?
— Não! Eu nunca havia pensado nisto...
— Domingas - interveio o Dr. Inácio - , o Labélius é
extremamente estudioso; é um filósofo; tenho aprendido
muito com ele, e não apenas sobre as forças da Natureza.
Desconfio até...
— Dr. Inácio, não é verdade - eu sou o que sou!
E, virando-se para mim:

190
^ u /, ^sf2Íw i& c&xmuni/

__ Ele acha que eu não sou o que aparento...


__ Bem, ainda não me convenci, todavia, agora, não
é relevante.
__ Labélius, existem seres dem entais encarnados
como homens? - questionei.
— S im , em trâ n sito d e fin itiv o para a condição
humana, estão em fase de adaptação... O processo é
complexo.
— Seriam os nossos selvagens?
— A lguns; outros, não. D . Domingas...
— Chame-me apenas Domingas - solicitei.
— Irm ã D o m in g a s , e xiste m hum anos de bela
aparência, cujos corpos escondem...
— E s p írito s -ré p te is , e sp írito s que, quando
desencarnam, se revelam com suas deformações, fruto de
suas mentes enfermas e da maldade no coração - esclareceu
o bravo médico espírita.
— E u fic o p e n sa n d o - disse - na questão
perispiritual... O perispírito não é molde para o corpo?
— N ão nos apeguem os à letra, Dom ingas. Para
muitos, o corpo representa uma camisa-de-força... A matéria
tanto é submetida, quanto submete; o espírito superior
influencia; o in fe rio r é influenciado. Se, literalmente,
fôssemos nos refletir no corpo de carne...
— O mundo seria cenário de estranhas aberrações,
no que tange à forma.
— Exato! Vejam os o exemplo da lagarta, que, após
se transfigurar em borboleta, volta a ser lagarta... A rigor,
houve regressão evolutiva? Não. Nenhuma conquista se
fixa, sem repetição de experiência.

191
cE aiia s' sA. ctH accelíi / ^éamin^as^

— 0 corpo físico nem sempre...


— Nem sempre é o retrato fie l de nosso psiquismo,
graças a Deus!
— A beleza espiritual?...
— Não tem a ver com os padrões de beleza adotados
para o corpo perecível. Sócrates, dizem, era feio: baixo,
obeso, faces macilentas, nariz abatatado...
— Chico Xavier...
— Quanto à beleza, coitado do Chico!
— Quando jovem , Doutor, ele era até bonito...
— Quando jovem , Domingas, até eu; depois, veja a
que me reduzi... O Labélius é mais belo do que eu!
— Sinto-me confortada...
— Eu sei.
— ?!...
— Não que você não seja sim pática - não me
interprete mal.
— Não careço de interpretar, porque o senhor foi
claro.
— Você tem outros dotes, m inha filha... Lembre-se
do correto aforismo que diz: “ O que é bom é belo” .
— Está consertando, não é?
— O nosso Labélius: é feio e lindo, ao mesmo tempo!
- falou, apertando, de leve, a bochecha do dementai. Beleza
é uma coisa que, vindo de dentro, não costuma sair para
fora...
Não contive a gargalhada.
— Voltando a falar sério, o que, reconheço, é um
ponto d ifícil no meu caso, a questão de o perispírito ser

192
^spMÀlo^^omum/

molde para o corpo... O fenôm eno transcende. Alguém


seria capaz de dizer qual é a forma do elemento água?
— H 20 ! - respondi, ingênua.
— N ão estou me referindo à fórm ula, Domingas,
mas à form a!
— A água não tem form a, o ar também não, a luz...
— Ela toma a form a do espaço que ocupa. Alguns
espíritos plasmam a form a; outros são plasmados por ela...
— E, no princípio, como era?
— Os p rim eiros espíritos que habitaram corpos
considerados humanos, do ponto de vista psíquico, eram
os mais evoluídos. Depois, foram reencamando espíritos
que, pela sua condição superior, deram um im pulso à
Genética - legaram à H um anidade, não apenas a sua
herança e s p iritu a l, in te le c to m o ra l, mas igualm ente
biológica!
— Que interessante! Quer dizer que alguns dos genes
do Cristo?...
— In felizm e n te , E le não se casou, porque senão
estariam por aí, em seus descendentes - pelo menos, haveria
tal possibilidade. A condição do Cristo era tão superior,
que não pudemos herdar D ele, biologicamente. Para o
espírito que E le era e é, a nossa carne é fraca!

193
o Código <J)a (Oinci

— Eu nunca havia pensado nisto, Doutor! - exclamei.


— Eu também não!
— Tem muita lógica...
— O Cristo, tanto no aspecto espiritual quanto
material, físico, não era um homem comum.
— O seu corpo?...
— Era, deixemos claro, constituído de carne, todavia
os elementos m ateriais que o form a va m não se
assemelhavam aos da criatura comum.
— Doutor, permita-me perguntar. Posso?... O senhor
não se aborrecerá?
— É evidente que não.
— Quanto ao corpo do Cristo: tem certeza de que
era de came ou o senhor apenas supõe que assim fosse?
— Domingas, para ser sincero, em nossa esfera de
ação, a respeito de Jesus não sabemos muito além do que
sabem os homens; no entanto, os Espíritos que nos visitam

194
periodicamente, provindos de Dimensões superiores, não
endossam a tese do corpo fluídico...
— A tese roustainguista?
— Sim . Pessoalmente, compreendo que os nossos
irmãos adeptos de Roustaing talvez pretendam homenagear
o Senhor, atribuindo-lhe uma condição sobre-humana...
Desnecessária, diga-se de passagem, porque o maior mérito
Dele foi o de se submeter às condições de vida vigentes
no Planeta - da M anjedoura ao Calvário, não assistimos a
uma encenação!
— Os roustainguistas que ficaram furiosos com o
senhor da prim eira vez, quando abordou o assunto em suas
obras, haverão de ficar uma segunda vez...
— Que fiquem pela terceira, pela quarta, pela quinta,
não importa! Eu os respeito; que eles me respeitem! Eu
não consigo entender a encarnação de Jesus de maneira
diferente... Pode escrever isto, Domingas.
— Eu também não creio que Ele tivesse sido um
agênere, desde o berço!
— E você, L a b é liu s? - perguntou o Dr. Inácio,
incentivando o amigo, que permanecia em silêncio.
— Quem sou para entrar numa discussão de tamanha
transcendência?! Nós, os dementais, gostamos de pensar
que o Mestre se identificava e se identifica igualmente
conosco, os que nos encontramos nos últimos lugares da
escala e vo lu tiva ... E le não nos hum ilharia com a sua
angelitude, como m uitos humanos nos humilham com a
sua humanidade! Ora, vocês, para nós, não são agêneres:
são feitos de carne e osso... Por que, para vocês, Jesus

195
s 4. cü a c c e íli / <
3 bom in/ias/

C risto haveria de ser um a fig u ra irre a l? E , depois,


desculpem-me, o assunto é irrelevante - um verme não
pode entender a natureza do Sol!
— Não desculpo, não, Labélius; você está nos dando
uma lição de m oral... Onde já se viu um entezinho como
você nos chamar aos brios?...
O elem ental sorriu e, daquela hora em diante,
comecei, a respeito dele, ter a mesma desconfiança do Dr.
Inácio: de quem se tratava aquele espírito de aparência tão
prim itiva?
— Labélius, interessante - voltou a falar o médico e
b enfeitor-: você se referiu ao Sol... Ocorreu-me uma idéia:
o Sol é um astro agênere ou fluídico? É claro que não!
Trata-se de um orbe consistente, que os nossos sentidos
percebem.
— Mas a matéria de que se constitui?...
— Isto, D om ingas: o Sol e a Terra, Jesus e os
homens!...
— O Criador na criatura e a criatura no Criador!
— Labélius, pare de filosofar... U m elemental é quase
uma pedra; você não pode pensar! Com muita sorte, você
é uma árvore... N o m áxim o, um bicho da floresta!
— Uma criança nascendo... - aparteei.
— “D eixai virem a m im os pequeninos...”
— Está vendo, Domingas, o que você arranjou, em
promovê-lo a quase gente? Daqui a pouco, os dementais
somos nós: eu e você...
Com receio de que ambos se retirassem de minha
presença, p erg untei com o p ro p ó s ito de novos
esclarecimentos e de conservá-los mais um pouco comigo:

196
^sfiíuA&^íam um /

— Dr. Inácio, o senhor estava se referindo à genética


do Cristo...
— A h, sim ! A descendência de Jesus sobre a Terra é
espiritual - embora não pareça, a cada dia, a fam ília do
Evangelho se expande. Se E le, por exemplo, tivesse se
casado...
— U m livro, “ O C ódigo D a V in c i” , que anda fazendo
muito sucesso por lá...
— Trata-se de um a ficção literária. Se Ele, repito, o
Senhor, tive sse c o n s titu íd o fa m ília própria, teria,
consequentemente, privilegiado alguns espíritos, concorda?
— A í, o preconceito racial dos judeus...?
— Estaria ju stific a d o !
— Compreendo.
— Passados dois m il anos, alguém estaria carregando
no corpo o patrim ônio genético do Cristo. Por um aspecto,
até que seria providencial a tese, mas...
— Por que providencial? - indaguei.
— Porque, do ponto de vista materialista, haveria a
hipótese de que, de rep ente, os cromossomos se
arranjassem, como outrora se arranjaram, e um novo Cristo
nascesse... C oitados de nós, que nem com esta única
chance, num in fin ito número de vezes, podemos contar!
— Doutor, o senhor pensa demais...
— Eu não gostaria, não, mas o que posso fazer? As
vezes, a vontade que tenho é de pegar uma vara e ir para
a beira de um rio pescar — invejo a minhoca e o peixe!
— O peixe come a minhoca, o homem come o peixe...
- fui dizendo.

197
c&»'do& & í. cfôaccell</ / <
3bomincia&

— Deus tem uma fom e, não é, Dom ingas? Fale


alguma coisa, Labélius! - insistiu o Dr. Inácio com o amigo,
que esboçara um sorriso.
— Eu já o convidei, Doutor, para ser um de nós...
— Acho que vou acabar aceitando, porque agüentar
os humanos e os espíritas!... É uma pena, a metempsicose
não ser viável; se fosse, na próxim a, eu haveria de ser um
bichano!...
— O senhor pode se transfigurar, não pode? -
perguntei.
— Posso, m inha filha, mas como, se o Senhor me
entregou esta turma aqui para tomar conta?
— Ser gente é a sua prova, D outor! - gracejou
Labélius com tim idez.
— Se ouvi bem, o senhor falou em “ agüentar os
humanos e os espíritas” ... Os espíritas não são humanos,
Doutor?
— Eu já esperava o questionamento. Tem espírita
que acha que não, Domingas. É melhor eu ficar quieto,
você não concorda? Tem exceções, tem exceções...
— Quais?...
— Com certeza, não estão na Terra, nem por aqui!
— Nem por aqui?...
— Estou falando de m im , de você e... do Labélius.
— Doutor, eu não sou espírita: eu sou cristão -
explicou-se o elemental.
— Então, Domingas, diante das evidências, sobramos
nós dois... A h, o M anoel Roberto não está presente, mas o
incluo também.

198
— O senhor me in c lu i em quê, Doutor? - perguntou
o próprio, acabando de chegar.
— N a lista...
— Que lista?
— N a lista, cor-de-laranja, que eu e a Domingas
estávamos elaborando.
— Lista cor-de-laranja?!
— M anoel, você dê à lista a cor que você quiser... A
lista dos espíritas que não são humanos - são divinos!
Médiuns, dirigentes, oradores, enfermeiros...
— M édicos, dentistas, psicólogos, advogados...
— M eu Deus!
— Pedreiros, ourives, alfaiates...
— Então, escapa pouca gente!
— Nós, os espíritas, somos tão personalistas, que
quem escapar vai reclam ar - observei. — Quero defender
a minha turma: a dos pedagogos!
— M u ito bem defendido, minha filha...
— Os autodidatas, Doutor, não podem ficar de fora...
— Não, de form a nenhuma, não podem; seria uma
grande injustiça, M an o el! Os autodidatas espíritas são dos
mais lídim os representantes da classe...

199
^brindo um (Parêntese

Aprender com o Dr. Inácio Ferreira é uma tarefa


extremamente agradável; com o seu modo peculiar de ser,
o querido amigo sempre fala as verdades que precisamos
ouvir, ensejando-nos reflexões em tomo de nossa própria
conduta - os assuntos mais sérios e complexos são tratados
por ele com amenidade, sem que descambe, é lógico, para
a vulgaridade. Eu o entendo perfeitamente e, de minha
parte, confesso-lhes que prefiro, m il vezes, um instrutor
com as suas características, que um mentor de natureza
moralista, que não se nivela com os aprendizes.
As críticas efetuadas por ele, mormente ao Movimento
Espírita, evidenciam a sua paternal preocupação com os
rumos da Doutrina, que nós, seus adeptos, às vezes,
equivocadamente, lhe imprimimos. Digo-lhes que, no Dr.
Inácio, jamais surpreendi, nem ao tem po de nossa
convivência na Terra, o menor senão, algo que lhe
desautorizasse a palavra e a opinião. Sempre pronto a

200
estender a mão, dá-me a impressão de que se habituou a
gracejar, com o propósito de ocultar a própria timidez.
Faço questão de efetuar esta ressalva, para que
ninguém se iluda quanto à nobreza de seus sentimentos de
verdadeiro cristão. N o Sanatório Espírita de Uberaba,
comovia-me vê -lo no trato com os pacientes e funcionários,
como se cada um deles se lhe integrasse a fam ília do
coração. Enérgico, sim , quando precisava, mas, se com
uma mão lhes puxava as orelhas, com a outra lhes afagava
a cabeça, sem que n in g u ém lhe ousasse contestar as
decisões.
— Dom ingas - disse-me ele, ao correr os olhos sobre
estas linhas - , não se preocupe, minha filha, em fazer a
minha defesa.
— D o u to r - e xp liq u e i-m e - , temo que algumas
pessoas possam distorcer as suas palavras ou interpretá-
lo de maneira errônea... Só quem conversa com o senhor,
olhando-o nos olhos, para saber quem, de fato, é o senhor!
— Eu tenho receio de quem me olhe nos olhos... Vou
lhe contar um segredo. O assédio afetivo sobre mim sempre
foi muito grande. N ão sei o m otivo - com certeza, devia
ser realmente um galã, não é? Ou será porque lidava com
gente atrapalhada da cabeça?...
— Doutor, não querendo ofendê-lo...
— A segunda hipótese é a mais provável?
— É , os seus dotes in telectuais e morais são
inegáveis...
— Eu nunca me propus ser nenhum Clark Gable!
Fez um m uxoxo, em lamento, e continuou:

201
c€/vila& SÃ. cifhacceUl / ^ a m iru ia »

— Bem, vamos ao que interessa. Domingas, minha


prezada, a mulherada...
— Eu sei...
— Não, não sabe. H avia uma que v iv ia querendo se
internar, só para estar na m inha presença!... Que escolha
me restava, se não fechar a cara e transformar tudo numa
piada?
— O senhor era m uito... encantado, não é?
— Ótim a palavra - encantado! Sim , eu sempre fui
m uito encantado: pessoalmente, por carta, por telefone...
Graças a Deus, desencantei todo o mundo, sem magoar
ninguém.
— Deve ter sido d ifíc il...
— Certa vez, uma me disse: — “ Você vive me
chamando de minha filh a ... Ora, eu não o sou; tenho idade
para ser um pouco m ais...” — Tem - respondi - , para ser
minha neta! Eu estou com quase 70, e você, pela sua ficha,
com 25...
— E ela? - perguntei.
— Domingas, uma m ulher rejeitada...
— Vira inim iga, Doutor, e começa a falar horrores.
— Horrores?!... Não lhe digo nada. A inda bem que
nunca tive excesso de horm ônio fem inino no corpo, pois,
caso contrário...
— Console-se comigo: m uita gente achava que eu
fosse um homem reencamado... Ora, filh a de um pai muito
rígido, esposa de m ilitar - sempre tive a maior admiração
pela polícia —, aquele corpanzil... C om uma pitada de
maledicência espírita, pronto!

202
^ sjiviito fQ o m u n v

— Fico im aginando o que, neste sentido, Chico Xavier


não terá passado...
— A h !, ele era m uito mais encantado que o senhor...
— E mais feio do que eu - conseguia o prodígio de
ser mais feio do que eu!
— O senhor acha?
O Dr. Inácio sorriu e retrucou:
— Dom ingas, você é um páreo à altura...
— Em todos os sentidos, quem me dera! O senhor é
o belo, eu sou a fera...
— Retomando o assunto, para me defender, tive que
adotar um certo m im etism o e sp iritu a l: carrancudo,
respostas rápidas e incisivas, quase ríspidas...
— Senão?...
— O lobo mau teria deglutido a vovozinha, ou melhor,
o vovozinho!... Senão, m inha filha...
— Doutor, eu também tenho idade para ser um pouco
mais...
— Sim , concordo, você pode ser minha mãe!
— D anadinho!...
— Senão - prosseguiu, em seqüência ao raciocínio -,
eu teria arranjado para m im um carma sem tamanho! Resisti
bravamente, heroicamente, aos encantos do sexo oposto.
Digo assim, porque os assédios sexuais ousados partiam
de senhoras casadas...
— Conheço m uitos m édiuns, Doutor, homens e
mulheres, que têm se complicado neste aspecto...
— M e lho r não comentarmos, mas é verdade.
— A mulherada assedia mais... Por que será?

203
cdaãla& s4 . ctü a c c M i / ^am inqúS '

— Carência!
— Sexual?...
— N ã o ; sinceram ente, não creio; as mulheres
procuram um relacionam ento estável, anseiam por
proteção, companheirismo... O homem é de natureza mais
vo lú vel. A m ulher é romântica, sonhadora... O sexo é
complemento! Ponto final. A ratoeira não quer o queijo; a
ratoeira quer o rato... Desculpe-me a comparação, mas é
por aí. O sexo é pretexto. O prazer é efêmero; o amor
perdura...
— O senhor acha que ninguém está atrás de sexo?
— Em essência, não! O homem, minha filha, quer ser
amado - o homem e a mulher. O verdadeiro amor transcende
qualquer tipo de conjunção carnal. O sexo é primitivismo
- é bom, mas é p rim itivism o ! Estamos a caminho de
sensações superiores...
— Quão longe!
— Não importa; a evolução não admite retrocessos...
Um dia, chegaremos.
— O que teria a dizer aos nossos irmãos que se
encontram expostos a tantas tentações?
— A única coisa que posso dizer: Evitem o carma!
U m relacionam ento a fe tivo conturbado pode ser um
problema para muito tempo... A promiscuidade é doença.
Evitem-na!
— O senhor, algum dia, esteve a ponto de sucumbir?
— M uitas vezes.
— A Doutrina o salvou?
— Não coloquemos as coisas assim... Agente é salvo
da gente mesma, não dos outros. Ora, por que nunca nos

204
‘'êu/, ^ s fM Íto /c^omum

colocamos na condição de pedra-de-tropeço no caminho


de alguém? O outro é sempre o instrumento do mal, a
possibilidade de escândalo... E nós, que, não raro, agimos
com m a io r frie z a e a stú c ia ? ! U sam os, abusamos e
abandonamos... Ocupamos o tempo e a vida de uma pessoa,
lhe co nsu m im o s a ju v e n tu d e , in te rfe rim o s em sua
programação cármica, im pedindo que receba por filhos
espíritos com os quais tenha compromisso... Isto não nos
sairá de graça, concorda?
— Não tem je ito : tenho que concordar.
— Houve uma senhora, extremamente simpática, que
levando a irmã para um a consulta comigo, voltou, depois,
dizendo que estava disposta a deixar tudo por minha causa
-u m a rica fazendeira de jó ia s, cujo marido era alcoólatra...
Mudaríamos para o R io de Janeiro e ela construiria um
hospital para m im .
— Que teste, hem? C om o o senhor se safou?
— Disse que agradecia o interesse dela por mim,
mas que, infelizm ente, devido às minhas precárias condições
de saúde, não poderia me comprometer com ninguém.
— Precárias condições de saúde?...
— E, expliquei que havia feito um exame de sangue
e constatara que estava com sífilis... A mulher que, ao me
cum prim entar, apertava a m inha mão e não largava,
levantou-se e nem “ até logo” . Dessa vez, fui salvo pela
sífilis!...

205
O s ©ementais

O Dr. Inácio, devendo sair, deixou-me conversando


com Labélius e o Sr. Manoel Roberto. Eu estava admirada
da presença do dementai (não gosto deste termo e, se o
emprego, é apenas por falta de um outro mais adequado à
compreensão do leitor), mesmo porque ali, no Hospital,
não havia nenhum outro que se lhe assemelhasse em
aparência; os dementais, em sua forma característica, não
costumam conviver e se relacionar abertamente com os
humanos: vivem em comunidades afastadas, em contato
mais estreito com a Natureza, sendo que muitos habitam o
interior da Crosta, os pântanos, as cavernas...
— Labélius - perguntei - , afinal, a que dimensão da
Vida pertencem propriamente os seres dementais?
— Minha irmã - respondeu com tema inflexão de
voz, revelando atilada sabedoria que, dificilmente, eu viria
a surpreender em uma pessoa comum - , pertencemos, por
assim dizer, à dimensão contígua à dos nossos irmãos

206
^ u /, ^sfiOiLto/^am um

humanos. Seria d ifíc il explicar, mormente para os que ainda


se encontram encarnados. Trata-se de uma região espiritual
intermediária, que nos p o ssib ilita acesso ao orbe físico
quanto à dimensão que lhes é im ediata à morte do corpo;
podemos, assim, m uitos de nós, transitar livremente e mais
livremente de acordo com o grau de consciência que temos
de tal possibilidade - o curioso é que, salvo exceções, o
humano não pode a travessar as fronteiras que nos
delimitam o universo particular...
— Interessante! Q uer dizer que vocês?...
— ...vivem os, em m aioria, dentro do nosso próprio
universo, onde dispomos, naturalmente, de tudo o que nos
é necessário à existência.
— Parece ficção! - exclamei.
— A lém da form a, o que nos difere? Você, para mim,
é um ser humano e não uma inteligência sub-humana, como
já ouvi certas referências, inclusive da própria literatura
espírita.
— U m a m a io r p re d o m in â n c ia do instinto, dos
impulsos, a lim itação do pensamento - somos, ainda, mais
emoção que razão.
— N os seres hum anos, também observamos algo
semelhante...
— Em bora em corpos mais aperfeiçoados, estão mais
perto de nós do que da espécie humana em que se encontram
estagiando, assim com o m uitos de nós mostram maior
identificação com os anim ais, os seres que, na escala
evolutiva, nos são imediatamente inferiores.
O diálogo seguia proveitoso, tomando-me ainda mais
reverente à sabedoria da Criação D ivina, cuja infinita

207
c€a<ilos' sA . cü ia c c M l / S5)om Uuias>

grandeza, sinceramente, me confundia - a cada novo


conhecimento adquirido, eu me sentia como um grão de
areia perdido na imensidão do Universo!
— Vocês - arrisquei indagar - se reproduzem?
— P or que seria d ife re n te ? É claro que nos
reproduzimos. Nascimento e morte não são fenômenos que
se circunscrevem apenas à esfera das criaturas que
mourejam na carne. Todas as coisas e todos os seres são
dotados de relativo dom de criar, a partir de si mesmos. Se
as próprias células se reproduzem, os átomos, os vegetais,
por que não nos reproduziríamos?! Espiritualmente, a nossa
filiação é divina, ou seja, o princípio inteligente não é capaz
de gerar-se, todavia no que tange à forma...
— Permita-me ser mais clara e direta: o espírito não
cria o espírito, mas o que é oriundo da matéria?...
— “ O espírito não procede do espírito” ... - já o
dissera Jesus a Nicodemos. O princípio inteligente, que
começa a estagiar nas formas mais rudimentares da Vida,
em sua expressão material, emana do Criador.
— Então, vocês têm uma vida normal?
Labélius sorriu e esclareceu:
— M inha irmã, não se sinta ofendida, mas a espécie
humana... De que parâmetros você se u tiliza para definir
algo com o sendo n o rm a l? A im p e rfe iç ã o é uma
anormalidade... Todos estamos em transição. A espécie
humana, de forma alguma, pode ser tomada como padrão
de norm alidad e. D ig a m o s m e lh o r: v iv e m o s tão
anormalmente como vivem os homens!... Agora, se deseja
saber se comemos, se bebemos, se dormimos, se sentimos
atração sexual uns pelos outros, etc., a resposta é sim!

208
^ u /, ^spCuio/^^om unu

— A espécie hum ana?...


— N o corpo e fora do corpo, é apenas e tão-somente
uma das infinitas nuances da vida, em suas infinitas formas
de expressão no cenário da Criação. Vocês, os humanos,
devem parar de to m a r a Terra com o único ponto de
referência da V id a U niversal, pois semelhante concepção
lhes bloqueia a capacidade im aginativa, predispondo-os à
negação sistemática de tudo quanto se revelem incapazes
de conceber.
— Com o, desculpe-m e, um elemental como você
pode saber tanto? Eu, humana, me sinto completamente
leiga - só sei o que o E spiritism o tem me ensinado...
— E assim m esm o, D om ingas - ponderou o Sr.
M anoel R ob erto —, s u je ito às nossas interpretações
pessoais, não é?
— Eu não sei, m inha irmã, quase nada - respondeu
Labélius. — Em m im , o que existe é vontade de saber, de
aprender... Procuro m e conservar sempre de espírito
receptivo - se é que vocês me permitem o emprego do
termo esp írito para m im ; m uitos, talvez, venham a
considerar isso uma aberração, um atrevimento de minha
parte...
— U m erro doutrinário, Labélius!
— D . Dom ingas, os espíritos não habituados à luz,
quando a vislum bram , disputam-lhe a primazia...
— O que você está querendo dizer?
— Q ue quase to d o e sp írita deseja para si a
exclusividade da Verdade - antecipou-se o Sr. Manoel.
— F ic o pensando que se a gente soubesse um
pouquinho mais do que já sabe...

209
c&>'da& s4. cfôaccelli/ / d o m ing as'

— Se a ponta do véu se erguesse um pouco mais?


Enlouqueceríamos de vez... D efm itivam ente, não estamos
preparados. Os p rim itivos cristãos só aceitaram morrer
pelo Evangelho, em vez de por ele matarem, porque Jesus
exem plificou com o próprio sacrifício no lenho infamante.
Mesmo assim, quando D ele se distanciaram no tempo...
— ...deixaram de morrer e começaram a matar!
— Os espíritas, conforme costuma dizer o Dr. Inácio,
ainda estão sujeitos às enfermidades mentais decorrentes
do fanatismo religioso...
— ...embora a nossa fé seja raciocinada!
— Sim, mas numa cabeça doente, a fé...
— ...se contagia! Precisamos tratar a nossa cabeça,
não é?
— O Dr. Inácio ensina que o tratamento da cabeça
doente começa pelo coração - os nossos sentimentos
enfermos é que, a rigor, nos enfermam o espírito. Vejamos:
incom preensão, fa lta de piedade, ó d io , amargura,
ressentimento, desejo de vingança, ciúme, inveja, enfim,
todo o séqüito de nossas principais mazelas procede do
coração, da esfera das emoções.
— Por este m otivo, o Evangelho...
— ...se dirige mais ao coração que à inteligência!
— O espírita, para saber além do que sabe, com
maior proveito...
— ...precisa amar além do que tem amado!
— Quando no corpo, temos uma sede de saber;
ansiamos por revelações mediúnicas...
— ...rotulando de repetitivas as páginas de conteúdo
moral!

210
C(3Lt/,

— Ultim am ente, Sr. M anoel Roberto, os livros neste


sentido nem têm sido valorizados - o pessoal quer novas
e incessantes inform ações sobre o M undo Espiritual...
— É o que tenho me preocupado em falar com o meu
povo - interferiu Labélius - , concitando-os ao cultivo dos
valores do coração, para que, mais tarde, sejam melhores
seres humanos. A docilidade e a ternura evitam que o
espírito se complique em suas experiências reencamatórias.
Digo a eles: entre escolher o caminho da inteligência e o
do coração, escolham o do coração primeiro... O intelectual
d ific ilm e n te se m ostra disposto a capitular em seus
equívocos!
— A criança tem ido à escola para aprender a ler e a
escrever, mas também deveria ir para aprender a amar!
— Nem em casa os pais estão ensinando isto...
— E altamente preocupante, Domingas, pois o futuro
da Humanidade está em jo g o . A vida sem amor toma-se
impossível em qualquer parte do Universo.
— Os seus irmãos o escutam, Labélius? - perguntei.
— Infelizm ente, alguns poucos.
— Cuidado! - brinquei, ingenuamente, sem saber o
que estava dizendo. — Eles poderão crucificá-lo...
D e ix a n d o a m im - entenda quem o puder -
com pletam ente estarrecida e basbaque, o elemental
mostrou-me, no dorso de ambas as mãos, chagas que ainda
estavam por cicatrizar-se...

211
Graças a <J)eus/

Lágrimas que não pude conter rolaram-me dos olhos.


Voz embargada, não consegui acrescentar palavra.
Labélius, despedindo-se com gentileza, retirou-se,
enquanto, emocionalmente, procurava me recompor.
Respeitando-me o silêncio, o Sr. Manoel Roberto,
que permanecera ao meu lado, esperou que eu tomasse a
iniciativa de algum comentário a respeito.
— Sinto-me aturdida...
— Domingas, em todos os níveis em que a Vida se
manifesta, há sempre alguém chamado a sacrificar-se para
que a própria Vida se eleve. Na verdade, não avançaríamos
para diante, sem o espírito de renúncia e sacrifício daqueles
que precedem na caminhada...
— “ Em todos os n ív e is em que a V id a se
manifesta”?... Quer dizer?!...
— Que é igualmente assim em todos os reinos,
inclusive, minha irmã, dos elementos inorgânicos; partículas

212
^swMlos^tíamwn/

atômicas e subatômicas se destacam umas em relação às


outras, como se lhes estivesse “ ensinando” a superação
de si mesmas...
— Seria por este m o tivo que algumas sementes...
— ...produzem e outras, não! D e modo geral, o ser
não é apenas produto do m eio em que vive; existem fatores
intrínsecos determinantes no aperfeiçoamento de tudo! A
predisposição íntim a, aliada às influências externas, é a
força propulsora da evolução.
— Então... - balbuciei, reticente, sem lograr concluir
o raciocínio.
— É assim, repito... Disse-nos Jesus que, se o grão
de trigo não morrer, não se tomará pão! Alimentamo-nos
reciprocamente. E m qualquer grupo de espíritos, um será
chamado a ser lu z para os demais, no sentido de subtraí-
los à escuridão... Vejam os: quase todos os missionários
do progresso da Hum anidade pagaram pesado tributo à
ignorância dos homens!
— Críticas, incompreensão, tormentos...
— Injúrias, flagelos físicos e morais e, não raro, a
crucificação! N ão há como ser de outro modo...
— Labélius?...
— U m espírito avançado demais para o seu povo...
A M isericórdia D iv in a de nada e de ninguém se esquece.
Os que sobem devem descer, com a finalidade de promover
a ascese dos retardatários. Não é fácil ensinar aos que não
querem aprender...
— Com o a V ida é linda! Que coisa, meu Deus!...
— P or este m o tiv o , ninguém deve se queixar,
chamado a se doar incessantemente através do perdão e

213
c€a'do& s4 . cfâ>accelli / Q)om uui(i&

da paciência, no sustento daqueles que ainda não se fizeram


suficientemente fortes e esclarecidos. As vítim as inocentes,
D om ingas, são espíritos que se im olam no intuito de
provocarem drama de consciência nos que jazem de mente
cristalizada na indiferença...
— O quê?!...
— É is to m esm o. Se h o je já nos mostramos
relativamente despertos para o Bem, é porque o mal que
nos cansamos de praticar ontem nos impôs graves dramas
de consciência; arrependidos das lágrimas que fizemos
verter, procuramos enxugá-las e, para tanto, não hesitamos
em derramá-las por nossa vez... Assim como a rosa nasce
entre espinhos, o verdadeiro afeto emerge do sofrimento.
— Nossos verdugos e perseguidores de agora...?
— ...serão, am anhã, in e v ita v e lm e n te , nossos
benfeitores! É da Lei que venhamos a reparar o menor
dano que tenhamos causado ao próxim o. O episódio do
Calvário é um drama que pesa sobre a consciência da
Humanidade inteira! Quanto mais elevado o espírito, maior
o seu âmbito de atuação na coletividade. Não podemos, é
óbvio, como Jesus, arcar com um lenho além de nossas
possibilidades de transportá-lo - a tarefa do Mestre é a da
redenção de todas as criaturas! - , mas somos convocados
a carregar as nossas cruzes particulares, no testemunho
àqueles que perm anecem na e xp e c ta tiv a de nossa
exemplificação.
— E quantas vezes, olvidamos as nossas obrigações
familiares, não é?...

214
— Voltaremos a elas, Dom ingas, a elas e a eles, os
espíritos que a nós se v in c u la ra m p elo s laços da
consangüinidade — não os evitarem os!
— N ão?...
— De form a algum a! Se não conseguimos suportar-
lhes a convivência, haverem os de nos preparar melhor, a
fim de que nos disponham os a ser para os de casa o que,
de hábito, somos para os de fora.
— Não haverá - perguntei - nenhuma valvulazinha
de escape? - perguntei. — C om o, por vezes, nos pesa o
fardo que os nossos fam iliares nos impõem! A gente luta,
peleja... N ão nos com p reend em , nos ironizam , não
acreditam em nós...
— Nenhum a v á lvu la de escape, minha irmã, por mais
insignificante: teremos que amá-los e ensiná-los a nos amar!
A fam ília é a nossa H um anidade a ser redimida!... E,
pensando bem...
— O quê?...
— O problem a é que sempre consideramos as nossas
lutas e provas maiores que as dos outros. A convivência
não é fácil para ninguém . E m fam ília, nós já estamos no
acerto dos detalhes de nosso reajuste - conhecemos e somos
conhecidos. V iv e r ao lado de estranhos nos parece mais
agradável, porque nós não os conhecemos e nem eles a
nós; mas espírito im perfeito é tudo igual - com o tempo,
começam a surgir as arestas... Não nos iludamos!
— Sr. M anoel, o senhor tem razão: no centro espírita,
formamos um a pequena fa m ília e, volta e meia...
— E ninguém passa m uito tempo, um ao lado do
outro!

215
ç@a'ilo& éA. cfàaccM b / Ç&omUuta&

— E a gente se reúne para orar!...


— M elhor, pois, m inha irmã, você não concorda?,
que fiquemos com os nossos conhecidos problemas de
relacionamento...
— Já nos acostumamos com o peso daquele pé em
cima do nosso calo de estimação; com aquela lenga-lenga
de todos os dias; com aquela cara feia de quando a gente
sai e de quando chega...
— O tempo vai passando, os problemas envelhecem...
— Fam ília nova?...
f

— E sinônimo de problema novo!


— Ouvia de muitos amigos: “N a outra encarnação,
não quero voltar com fulano ou sicrano...”
— Isto, minha irmã, como diz o Dr. Inácio, é porque
ele não conhece beltrano...
— Sr. Manoel, o senhor está quase me convencendo
a pedir todos os meus fam iliares de novo comigo, na
próxima existência...
— Será que eles irão querer você?
— Nossa! N ão precisava tam bém ser assim tão
incisivo... Agora, o senhor fa lto u com a caridade! -
brinquei, deixando o amigo desconcertado.
— Mas não é, Dom ingas?!... Essa deve ser a pergunta
que nos devemos fazer: será que eles, nossos familiares,
estarão dispostos a nos agüentar noutra encarnação?...
— Sinceramente, eu não me atreveria a responder
por eles. Não sei, não... Penso que, para uma resposta
positiva, vou ter que agradar a m uitos, fazer promessas
que, depois, não sei se cumprirei.

216
^lA/,

— Pela cabeça de m uitos de nós não passa a idéia de


que os insuportáveis somos nós!
— Os sistem áticos, os enjoados, os cheios de mania,
os custosos, os obsidiados...
— Nós, os espíritas, principalm ente.
— Os outros são e sp írito s atrasados... E u, pelo
menos, sempre achei o m eu p ovo m uito atrasado.
— Quem v ive com “ O E vangelho” nas mãos e não
melhora?
— Eu não sou... Você deve estar se referindo aos
evangélicos, não é? E sp írita é tudo bonzinho... Faz sopa
para os pobres, costura, transm ite passes, recebe espíritos
e... briga, briga a valer. Se, em matéria de religião, fôssemos
maioria!... C ustou-m e entender por que nós, os espíritas,
temos que ficar por baixo.
— Lam entável constatação! O Dr. Inácio costuma
dizer que espírita bom é o que apanha o dia inteiro e, à
noite, vai cuidar das próprias feridas no centro.
— O pior, Sr. M a n o e l, é que se o espírita é quem
mais apanha é também quem mais bate...
— Com um a diferença: quem bate não apanha; quem
apanha não bate!
— Preferível apanhar - conclui, satisfeita. — Apanhei
tanto, que não tive ânim o de bater em ninguém, graças a
Deus! Estou repleta de feridas. O que o chicote cantava no
meu lom bo!... Graças a Deus! Graças a Deus!... - repeti,
pausadamente.

217
importante Q usa^ a

Quando Labélius e o Sr. Manoel Roberto se retiraram,


pus-me a redigir estas linhas, procurando fixar no papel as
lições que se sucediam para mim, com o intuito de transmiti-
las aos meus irmãos encarnados. A idéia de que, pelo menos,
um ou outro haveria de aproveitá-las me animava a escrever,
sem maiores preocupações com a sua receptividade.
Pensava comigo: se, há meio século atrás, alguém nos
falasse na Terra sobre as modernas conquistas da Ciência,
seria, no mínimo, rotulado de louco...
Efetuando tais raciocínios, fiquei, ao longo de vários
minutos, de mão suspensa no ar, meditando na presença de
Jesus entre os homens, há dois m il anos... Ele transformara
água em vinho, multiplicara pães e peixes, curara leprosos,
cegos e paralíticos, ressuscitara criaturas aparentemente
mortas, caminhara sobre as águas... — Não é de admirar
que as trevas investissem contra a sua magnitude, incapazes
de conviver com tanta luz diante dos olhos! Passados quase

218
^ u /, <~&Sfiúáta' ^^tanuim/

vinte séculos, se retomasse ao m undo hoje, fazendo o que


fez outrora, Jesus, possivelm ente, seria encerrado numa
prisão, à conta de m istific a d o r e, em alguns países, com
certeza, seria sum ariam ente executado!
Quanto, m eu D eus, a carne nos lim ita ! Quanto é
penoso aceitar a realidade fora dos padrões convencionais
da vid a sobre a T e rra !... C o m as nossas arraigadas
concepções e xis te n c ia is , c o nstru ím o s um a cela e, de
repente, nos surpreendemos emparedados, tendo, agora,
que dem oli-la - o que, convenham os, não nos tem sido
fácil tarefa.
A noite daquele m esm o d ia , tornei a receber a
agradável visita de D . M a ria M odesto.
— E o trabalho do liv ro , Dom ingas, como vai indo?
- perguntou-me dando in íc io a proveitoso diálogo.
— A passos de tartaruga, mas está caminhando -
respondi.
— Já lhe passou p e la cabeça?... Não sei se é
conveniente lhe dizer isto agora e nem sei se lhe convém
escrever o que me sinto tentada a dizer...
— A senhora está me deixando curiosa.
— Bem, confio em seu discernimento. Já lhe passou
pela cabeça - continuou — que, enquanto você pensa e
escreve por aqui... D eixe-m e fazer-lhe uma pergunta: você
tem pensado especificamente em algum médium, com o
propósito de tra n sm itir as suas idéias e anotações via
mediúnica para os irmãos encarnados?
— Interessante a sua pergunta. Para dizer a verdade,
desde antes de desencarnar, eu já havia, sim, elegido um
médium para um possível trabalho de intercâmbio comigo.

219
c& i'do& éÂ. cí% acceili / Ç&amwyaS'

Não é engraçado? Que coisa! Lutei, com todas as forças,


para não desencarnar, mas, no fundo... Diversas vezes,
surpreendi-me em devaneios tolos.
— O que você pensava?
— Que se, porventura, viesse a desencarnar em
conseqüência de meu estado de saúde, que se agravava,
assim que pudesse... Eu afastava aqueles pensamentos
mórbidos da cabeça, repreendendo-me: — “Domingas,
como você é boba! Não sabe nem em que condições há de
chegar ao Outro Lado, quanto tempo se demorará nas
trevas... Como você é pretensiosa! Já está planejando as
coisas...”
D . Modesta sorriu.
— Continue - solicitou-m e. — Não se preocupe,
você não está num divã... Conversamos como duas irmãs,
permutando experiências na área mediúnica. Continue! Eu
não vou contar a ninguém, especialmente ao Inácio...
— Para ele, a senhora não precisa contar mesmo,
não; o Dr. Inácio atravessa a gente com o olhar... Confesso
que tenho um pouco de medo dele!
— Vamos nos concentrar no assunto, minha filha. E
daí?... Prossiga.
— Resumindo, eu im aginava proceder exatamente
como estou procedendo agora. Se viesse a desencarnar,
escreveria... Sempre fu i louca por livros. E claro, não disse
isto a ninguém, a não ser em tom de brincadeira. Eu percebia
os espíritos escrevendo lá no “ Pedro e Paulo” e, depois,
vivenciei a m inha própria experiência como médium
psicógrafa - era tão desorganizada! Não sei como o Dr.

220
^U/, ^Sf2MÍUX'CfíoMUm/

R udolf conseguiu escrever aquelas obras... A psicografia


em m im alicerçou a m inh a crença na mediunidade. Eu não
conseguia escrever um a carta direito! Escrevia, rabiscava,
tomava a escrever, rabiscava de novo... A té para expor a
Doutrina, através da palavra, eu era m eio desorganizada:
escolhia um punhado de livro s, lia um trecho aqui, outro
ali e misturava tudo...
— Já lhe passou pela cabeça?...
— É a terceira vez que a senhora ensaia para me
dizer alguma coisa. Pode confiar! Se, com o que me tem
sido dado observar, ainda não fiq ue i doida... Nada do que
disser há de me causar estranheza. Só quem não tem
consciência do tam anho da própria ignorância é que se
estarrece diante da Verdade!
— Bela frase, D om ingas!
— Eu tam bém a chei... D epois que desencarnei,
fiquei assim.
— “ Só quem não tem consciência do tamanho da
própria ignorância é que se estarrece diante da Verdade” !
— Desculpe-m e, mas estou com a impressão de que
a senhora está me enrolando... Para que tanto suspense?
— Já lhe passou pela cabeça - disse, por fim - que,
enquanto você efetua anotações por aqui, de idéia fixa no
médium lá...
— Lá, onde?
— N a Terra! ...de certa form a, você já o está
m ediunizando, como o lavrador que, antes de lançar à
semente ao solo, revolve a gleba sob a ação do arado?
— D . Modesta?!...

221
cda'ila&SÁ. cK>accMv! '^ÔaminqaS'

— Domingas...
— E, eu sei... De mediunidade, não raro, o próprio
médium é quem mais ignora.
— O trabalho de um ator que vive um personagem é
maior...
— ...fora do palco que no palco!
— O médium mais afinado é o que se faz médium
em tempo integral - pelo pensamento e pelo coração!
— O médium que é médium só na hora em que está
à mesa...
— Veja: estamos, por assim dizer, nós duas, jogando
conversa fora... N ão pretendemos com isto qualquer
revelação. Você é médium, eu sou médium...
— Com a possibilidade atual de enxergar as coisas
dos Dois Lados, quase simultaneamente.
— Por isto, minha irmã, é que seu depoimento recente
é importante... Depois de um tempo aqui, a gente, mesmo
não querendo, perde certas conexões com a realidade física.
— O M undo dos Espíritos não é mágico...
— Não, não é. Nós, os desencarnados, acabamos
vivendo por aqui como vivíam os lá embaixo... Por este
motivo, muitos passam a não mais dar tanta importância
às coisas que deixaram.
— As coisas e aos afetos?
— Não, os afetos sempre nos interessam. Quando
encarnados, nos preocupamos com os que nos antecedem
ao Além , mas... o que podemos fazer? Acabamos nos
habituando à idéia da distância, não é? Passamos a viver
na expectativa de um possível reencontro...

222
^êu/, ^S f2M ÍiO 'C€xxnumv

— Expectativa, quanto m ais remota, melhor!


— Sabemos, na condição de espíritos libertos da
ilusão da vida m aterial, que os que permanecem por lá...
— Haverão, inevitavelm ente, de vir! É somente uma
questão de tem po...
— Chegarão incólum es, sobreviverão ao desastre,
emergirão da tormenta, sem que lhes esteja faltando nenhum
pedaço...
— A não ser com seqüelas morais!
— Estas, m in h a filh a , existem lá e existem cá...
Todavia, temos a eternidade a fim de saná-las. Nada do
que nos suceda de p io r poderá nos desterrar do Amor de
Deus!
— “Em Deus existim os, em Deus nos movemos...”
— Em Deus, nos aconchegamos!
— Então, não se trata de descaso, de indiferença, de
esquecimento propriam ente dito da parte dos espíritos que
não voltam para um contato mais estreito com os seus...
— Não! M u ito s, por exemplo, sabem que o contato
é precário e, sim plesmente, desistem. Preferem esperar...
— Nós, espíritas, é que somos atrevidos, não é?
— Trata-se de um a importante ousadia, a iniciativa
no campo m ediúnico.

223
y ^ r v o r e da tyfyá\VL\\\áaáz

— A equivocada concepção humana - prosseguiu


D. Modesta - da descontinuidade da Vida, em sua natural
integração nas múltiplas dimensões em que se expressa, é
um dos grandes entraves à evolução do espírito.
— E a mediunidade?...
— Aos poucos, concorrerá para amadurecimento do
senso moral da criatura encarnada, não obstante, na
atualidade, os próprios espíritas oporem certa resistência
à idéia da Vida pluridimensional.
— Confesso que, até constatar por m im mesma, eu
não entendia...
— Domingas, a nossa constatação da realidade não
chega a 1%... A minha geração de espíritas contava ainda
com maiores dificuldades de compreensão - a literatura,
neste sentido, era escassa; ficávamos com os princípios
básicos da Doutrina, que, diga-se de passagem...

224
— São inam ovíveis!
— Correto.
— E u , na c o n d iç ã o de m é d iu m psicofônica e
psicógrafa, sentia, não raro, que os nossos Benfeitores
desejavam enlarguecer horizontes, porém...
— A senhora lhes oferecia resistência?
— Aquelas idéias perpassavam, de leve, a minha
cabeça e eu as re je ita v a - cria-as m uito avançadas,
tendentes à mistificação, e, assim, não lograva sair do lugar-
comum.
— E os espíritos?
— N ão tin h a m o u tro recurso, a não ser se me
submeterem intelectualmente. Não se consegue extrair ouro
de onde existe apenas cascalho, concorda?
— D . Modesta, as perguntas são tantas... Bem, a
senhora acha que o m édium pode reencamar com áreas da
memória mais sensíveis no cérebro? Prefiro outras palavras:
mediunidade tem a ver com reminiscência?
— E claro, tem, principalmente com lembranças da
Vida Espiritual! O espírito comunicante, muitas vezes, nada
mais faz além do que a tiva r o campo mnemónico do
médium... E tão d if íc il, Dom ingas, e tão complexo,
transmitir coisas - não vou usar o termo “revelações” -
daqui para a Terra, que...
D. Modesta fez uma pausa mais longa, como quem
estivesse procurando palavras que lhe retratassem com
maior fidelidade o que pretendia falar.
— ...que —continuou, por fim - temos nos esforçado,
especialmente junto ao “ Liceu” , para que os nossos irmãos

225
'~(lanto& êA. cfâacceH i / ÇÉ)anún<ia&

m éd iuns reencarnem com c o n sid e rá ve l acervo de


informações. Deixe-me tentar ser mais clara.
— Chico Xavier... Tudo era dos espíritos, por ele?
— Não, não era. Ó tim a referência, aliás, como
sempre, em se tratando de Chico. Ele reencarnou com o
cérebro programado, para a produção de quase tudo o
que produziu! Ele...
— ...levou consigo...,
— ...por assim dizer, de envolta com seu espírito, a
Mensagem que o Mundo Espiritual pretendia levar à Terra!
— Uau! - perdoem-me, mas não tive outra expressão.
— Estou me fazendo entender?
— Por favor, fale mais - solicitei, deslumbrada.
— Por este motivo, Domingas, o nosso caro Dr.
Odilon tem procurado enfatizar o aspecto anímico do
fenômeno mediúnico.
— É um estudo profundo.
— À m edida que conseguirm os promover
reencamações mais conscientes...
— Teremos maior número de médiuns com melhor
aptidão!
— Exato! De médiuns que não trabalhem somente na
recepção de... Estou encontrando dificuldade - não quero
menosprezar o trabalho de ninguém. Veja você, citando o
meu caso como exemplo: as idéias dos espíritos não
deslanchavam na minha cabeça...
— Na minha, então, patinavam na lama, literalmente.
— Não quer dizer que uns médiuns tenham cabeça
melhor do que outros, não, mesmo porque o essencial é o
coração!

226
C(c>u/, <^ S {ií/iU x ^ c^X)m um

— Sem dúvida.
— Não se trata de inteligência comum, de cultura,
de erudição, não.
— A senhora sabe como eu sentia o meu cérebro na
hora do transe m e d iú n ic o ? C heio de cancelas, que os
espíritos não conseguiam levantar...
— Voltemos a falar de Chico Xavier. Embora não
tivesse ido além do 4.° ano primário, ele era um sábio em
potencial; ficava relativam ente fácil para os espíritos...
Nele, em seu espírito abençoado, todos os gêneros de
literatura, em prosa e verso...
— E dizem que o m édium é só médium...
— Nós nem isto somos, Domingas - somos, eu, você
e tantos outros, arremedos de médium - porém, ele...
— Extrapolava!
— Como m édium e como gente!...
— Então, a senhora acha?...
— Acho, não: tenho certeza - acredite quem o queira
Chico, dos mensageiros espirituais que se expressavam
por ele, era o maior! Os romances que Emmanuel escreveu
estavam na alma dele...
— As obras de André Luiz?...
— Na alma dele!
— Os poemas do “Parnaso de Além-Túmulo”?...
— Na alma dele!...
— Concordo com tudo, que me parece lógico, mas
estou pasma.
— D a í a necessidade de afastarmos fanatismo e
preconceito do campo da mediunidade. Definitivamente,

227
S ^tulo s. éA. cfâ>accM i / <
SÊ)ofninqaS'

mediunidade é parceria! Trata-se de uma árvore que precisa


criar raízes, que, quanto mais firmes e profundas, mais
saborosos frutos p roduzirá - m ais seiva e espírito
significam mais vida e luz à Árvore da Mediunidade.
— Nunca havia pensado no assunto com tantos
detalhes. Não sei se os nossos irmãos encarnados estarão
aptos a compreender... Há uma tendência à interpretação
dogmática do intercâmbio entre os Dois Mundos. A questão
do animismo ainda ja z muito arraigada... É possível que
nos esconjurem pelo que estamos tratando.
— Não nos preocupemos tanto, minha irmã, com o
que acham ou deixarão de achar... Há, na Mediunidade,
uma beleza que transcende! O Mundo Espiritual, desde as
eras mais remotas, se manifesta na Terra de m il modos
diferentes, triunfando sobre a sistemática oposição das
trevas, que intentam manter o homem cativo à descrença.
— D. Modesta, permita-me recapitular. Então, a
senhora afirma...
— Isto, afirmo; não se trata de mera hipótese.
— ...que, enquanto estou aqui, rascunhando estas
notas?...
— Mediunidade é pensamento, que se expande ou
retrai de acordo com a intenção; sintonia é intenção de
parte a parte...
— São tantos os conceitos... M eu Deus, sequer tenho
tempo de anotá-los!...
— Aquela crença de o espírito chegar e induzir o
médium ao transe na hora?...
— E fenômeno que pode ocorrer; não estamos
descartando tal possibilidade... Agora, o intercâmbio mais

228
^ u /, ^s^iOiitQ'Cflarmuri/

produtivo entre espírito e médium dá-se através da afinidade


que, gradativamente, se consolida, não raro, inclusive,
remontando a vidas anteriores. Estou sendo clara?
— Sim, eu é que estou com um pouco de dificuldade
para assimilar.
— Quase todo envolvim ento mediúnico improvisado
é pouco p ro d u tivo . A té a própria obsessão exige um
trabalho mental prévio, a fim de se instalar. Entende?
— Poderíamos, no caso, denominar o fenômeno de
comunicação indireta - o fato de eu estar aqui escrevendo
e o médium, lá embaixo, já estar captando?...
— Simples questão de terminologia.
— Eu pensei que, primeiro, escreveria a obra aqui e,
depois de concluída, com o calhamaço debaixo do braço...
— ...procuraria o m édium e...
— ...ditaria a ele palavra a palavra!
— D. Modesta, e o problema da revisão?
— Está sendo cuidado de maneira concomitante.
— A fin a l, serei eu mesma a autora da obra em
planejamento?
— Co-autora! Somente Deus é Autor Absoluto!...

229
Q^umo ao “‘Jiceu"

Confesso-lhes que o diálogo com a inesquecível


D am a de C aridade em Uberaba fo i extremamente
proveitoso para m im : passei a lidar com mediunidade sem
tantos escrúpulos e sem me prender literalmente a tantos
conceitos. Quando nos fechamos em tomo de um conceito
qualquer, ele pode se transformar em preconceito. A título
de dirimir dúvidas, reafirmo: em Kardec, os fundamentos
básicos - os alicerces e os pilares da obra, mas não a obra
totalmente concluída!
Os esclarecimentos da querida irmã, em vez de me
eximirem de maior responsabilidade, me fizeram mais
cautelosa; quando pensamos, não temos a possibilidade
de recolher o pensamento, a ju iza nd o quanto à sua
conveniência ou não... O pensado está pensado! Como,
então, por exemplo, recolheríamos a palavra dita de forma
invigilante, com o propósito de avaliá-la? A palavra, uma

230
‘'êspúáta/c{[omum

vez pronunciada, seguirá inevitavelm ente o seu curso,


cumprindo a tarefa a que se destina.
O exercício de escrever estava sendo, para mim, um
pretexto para pensar, e, no instante em que pensava, eu, lá
embaixo com o m édium ou com o médium, aqui em cima,
comigo...
Devo estar baratinando a cabeça de vocês, não é?
Estava, deste m o d o, relendo em voz alta alguns
apontamentos, com destaque para a frase que começara a
redigir - “ Em mediunidade, a intenção e o conteúdo valem
mais...” - , quando o nosso caro Dr. Inácio, de volta, me
interrompeu, emendando:
— “ ...que a autoria mediúnica ou espiritual, deste
ou daquele com unicado!”
— O nome do espírito ou do médium?... - perguntei
de caneta em punho.
— U m adendo.
— Em todo e qualquer tipo de intercâmbio?
— Por que não?!
— Na clariaudiência, na vidência, na mediunidade
de cura?...
— Deus não permanece oculto em sua Obra? Por
acaso, Ele a assina explicitamente? Podemos Lhe identificar
a Face como a de um homem?...
— Dr. Inácio, o senhor me consente “a pergunta que
não quer calar” ?
— Pergunta de que estou custando achar a resposta...
— Há um espírito junto ao médium, espírito que se
faça médium das demais entidades que se manifestam por
ele?

231
c€a'UoS' sA. cfâ>aacML / <
3i>omuupa&

— Ora, uma coisa tão simples, sim!


— E o senhor responde, nem mais nem menos?
— Chupando balinhas de hortelã... Você quer uma?
— Com Chico Xavier era assim?
— Com Chico, minha filha, se você deseja mesmo a
minha opinião, era Jesus Cristo e Emmanuel!
— E os demais?
— Transitavam na “ faixa” ...
— Na “ faixa” psíquica?
— Isto.
— Por exemplo, comigo: eu recebia Irmão José, o
Dr. Odilon, o Dr. Rudolf, o senhor...
— Recebia, através de uma entidade anônima; nem
sempre podíamos estar por lá, concorda?
— E nos comunicados particulares?
— A mesma coisa. Todo médium tem um espírito-
médium junto de si.
— Eu acho que...
— Você já coligiu m uito material para o pessoal
pensar!
— Tem médium que vai arrepiar...
— Vai... dade!
— O Dr. Bezerra de Meneses?...
— N espíritos se fazem seus intermediários na Terra!
— Têm médiuns que chegam a descrevê-lo... Como
interpretar o fato?
— Sugestionados pelo pensamento dele, é óbvio que
lhe vejam os traços fisionômicos e, depois...
— O quê?

232
^ u /, ^sj2ÍtilosC&omum/

— 0 espírito-m édium também se transfigura!


— Com todo o respeito, o Dr. Bezerra teria o dom da
ubiqüidade?
— Domingas, recorramos ao “ O Livro dos Espíritos”,
à questão de n.° 92: “ Os espíritos têm o dom da ubiqüidade
ou, em outras palavras, o mesmo espírito pode dividir-se
ou estar ao mesmo tempo em vários pontos?” Resposta:
“Não pode haver divisão de um espírito; mas cada um
deles é um centro que irradia para diferentes lados, e é por
isso que parecem estar em muitos lugares ao mesmo tempo.
Vês o Sol, que não é mais do que um e, não obstante,
irradia por toda parte e envia os seus raios até muito longe.
Apesar disso, ele não se d ivide” .
— O dom da ubiqüidade?...
— E inerente a todo espírito. Na resposta à pergunta
seguinte, os Espíritos Superiores consideraram: “ ...o poder
de irradiação depende do grau de pureza de cada um”. A
gente não pensa em muitas coisas, ao mesmo tempo? O
pensamento é o espírito que se transporta!
— Entendo... Quer dizer que, quando eu dizia - na
condição de médium, claro! - : “ O Dr. Odilon está aqui?...”
— Ele estava e, possivelmente, na maioria das vezes,
não estava!
— Estava e não estava... Então, eu mentia?!...
— Não, você não mentia. Não dizemos a um amigo:
“Estou com você” , mas não estamos?... Uma mãe e um
pai, espiritualmente, estão sempre com o filho, embora ele
possa estar a milhares de quilômetros de distância...

233
c€m 'iÍ os>s 4. ctíbaccMÁ/ / <
3bam incw&

A conversa com o Dr. Inácio seguia animada, quando,


na companhia de Paulino Garcia, o Dr. Odilon veio me
buscar para a prometida visita ao “Liceu” .
— Como é, Domingas, está preparada? - perguntou-
me, osculando-me a fronte com paternal carinho.
— E o senhor mesmo ou o seu pensamento? -
indaguei com discreta piscadela ao Dr. Inácio.
— Os dois, Domingas - respondeu-me sorridente.
— Pelo jeito, o nosso caro doutor...?
— O senhor sabe que, neste exato momento, agora,
eu não sei onde é que estou?...
— Metade aqui, metade lá embaixo - antecipou-se
o Dr. Inácio Ferreira.
— E você, Paulino?
— M in h a irm ã, desde que desencarnei, ando
disperso...
— Pelo que depreendo - disse - , a gente vive aos
pedaços, em toda parte!
— Como é, Inácio - racionalizou Dr. Odilon - , libera
a nossa paciente para conhecer o “Liceu” ?
— Desde que você não a seqüestre... Preciso dela
por aqui!
— Eu posso estar aqui e estar lá, não é?
— Engraçadinha! Quero você aqui por inteiro; no
máximo, um período lá, outro cá...
— Antes que eu me esqueça - falei, dirigindo-me ao
Mentor - , o Dr. Inácio estava me explicando...
— Pedindo confirmação, hem, Domingas? - brincou,
deixando-me desconcertada.

234
— Não, não é nada disto - expliquei a rir.
— Estou m elindrado; espírita que se preza é “casca
de ferida” ...
— A respeito do espírito-m édium ... Quem é ele?
— Na m aioria das vezes, um espírito familiar, um
protetor, e n fim , um a entidade que esteja procurando
serviço...
— M uitos médiuns “ recebem” o senhor, Dr. Odilon...
— Sinto-me homenageado; sinceramente, não mereço
tanta credibilidade!... O m eu é um nome apagado. Se
pudesse, anelaria, sim, estar pessoalmente com cada um
deles, correspondendo-lhes às expectativas.
— E, a gente, quando na carne - redargüi, em
penitência - , não tem m u ito discernimento...
— Ora, Dom ingas, discernimento é para os outros,
não para nós - sentenciou o Dr. Inácio.
— Nós, os médiuns...
— Deixe-m e falar, m inha filha: tem médium que vê
os Espíritos Protetores no banheiro, a qualquer hora, dentro
de casa, no trânsito, quando estão dirigindo, nas festas a
que comparecem para beber e comer, nos clubes de
campo... Arranjam cada lugar para o Odilon estar!
— M eu caro, quem me dera!...
— O zombeteiro aqui sou eu!
— Certa ve z, D r. In á c io , um médium vidente
portentoso me garantiu ter visto o senhor - o seu espírito!
- sentado à mesa de uma churrascaria, acompanhando-os,
na hora do almoço, a ele e aos familiares...

235
(T%tu reza no y^fcm

— Comendo carne e tomando cerveja?...


— Não, apenas sorria para eles.
— Então, D om ingas, tratava-se de um espírito
mistificador... Onde é que já se viu eu comparecer a uma
churrascaria, à hora do almoço, sentar-me à mesa, com a
possibilidade de comer de graça, e nem sequer beliscar
um pedaço de pernil?! Não, definitivamente, não era eu!...
Paulino riu a valer e, sem mais delongas e piadas,
despedimo-nos.
Ao contrário do que possam imaginar, não fomos
volitando. Um automóvel, perto do qual o meu Fiat seria
uma barcaça furada, nos transportou, com o jovem Paulino
a conduzi-lo por uma rodovia que me parecia pavimentada
com material semelhante ao látex, não permitindo o menor
sacolejo; o veículo, u ltra -sile n c io so , simplesmente
deslizava, com um computador de bordo mais sofisticado

236
’'èw,

que o das ae ro n ave s m a is m odernas da Terra. Ele


praticamente obedecia, no que tange a rumo e velocidade,
ao impulso mental do e x ím io condutor, que, por assim
dizer, o “m ediunizava” ...
A paisagem era encantadora - árvores de variadas
espécies, em d ife re n te s m a tize s de verde, e flores
multicoloridas se estendiam por considerável distância,
regularmente distribuídas no terreno de topografia recortada
por montes e planícies.
— Que maravilha! - exclamei. — Não me lembro de
ter visto na Terra, em parte alguma - a não ser em alguns
quadros na parede - , uma paisagem igual. Como a Natureza
é exuberante!
— Este caminho para o “ Liceu” é um pouco mais
longo, minha filha; no entanto, fizemos questão de vir por
aqui, para que você pudesse haurir um pouco mais das
forças de que necessita; afinal, ainda se encontra em fase
de refazimento...
— Poderíamos - perguntei - ter feito outro percurso,
digamos, menos agradável?
— Claro, existem sempre muitos caminhos à nossa
disposição na V ida, você não acha? É uma questão de
escolha. O caminho mais curto pode, igualmente, ser o
mais perigoso. Felizmente, a sombra não consegue ocupar
todos os espaços disponíveis... O reduto da luz, dentro e
fora de nós, é intransponível.
— Veja, estamos chegando - mostrou-me Paulino a
magnífica construção que ele mesmo descrevera numa das

237
c€azlaS' s4. cfàaccMb/ ÇÉomUuiaS'

obras de sua lavra, que, aliás, eu tivera oportunidade de


ler quando encarnada - o “Liceu da Mediunidade” !
— E de estilo grego semelhante ao que aparece na
capa de seu livro!
— Aquele é o prédio principal; existem outros,
menores, anexos... Tudo muito simples, porém de extremo
bom gosto.
— Como foi construído, Dr. Odilon? Algum arquiteto
planejou a obra ou, como achamos quando estamos no
corpo, foi tudo mentalizado?...
— Mentalizado, Domingas, é claro que foi, todavia
digo-lhe que a sua edificação - se é o que você quer saber
- custou o suor de muita gente.
— De pedreiros remunerados? Ou aqui também
impera a questão do “bônus-hora” , a que André Luiz se
refere em “Nosso Lar” ?
— M uitos cooperaram como voluntários, outros
receberam, sim, uma espécie de remuneração...
— Dinheiro?
— O equivalente, como o bônus-hora o é; afinal, o
que é uma cédula expressando determ inado valor
financeiro?
Quando nos aproxim am os mais, pude perceber
extensa área ajardinada, com a grama cortada rente ao
chão parecendo um tapete esmeraldino (Vejam como estou
ficando chique: “tapete esmeraldino” !...).
— Que beleza! Que árvores são aquelas? - perguntei,
observando-as perfiladas ao longo de empedrada passarela,
interligando alguns prédios da Instituição.

238
^êu/, ^spúiUO'C€ximuMi

— Ciprestes e oliveiras! - esclareceu Paulino.


— E aquelas outras floridas, mais altas e distantes?
Que lindas! Flores amarelas e alaranjadas...
— A cácias e fla m b oya nts, as preferidas do Dr.
Odilon.
— Quer dizer que algumas espécies de árvores que
temos na Terra...?
— M in ha filha, não se esqueça de que a vida procede
daqui para lá e não o contrário - respondeu o Benfeitor.
Se, desencarnados, não somos assim tão diferentes, por
que as árvores o haveriam de ser, não é?
— E aqueles canteiros? - indaguei, não sopitando a
curiosidade. — Q ue esplendor! D e que espécies são
aquelas flores de pétalas quase etéreas e luminosas?
— De espécies, por enquanto, desconhecidas dos
homens...
— Por enquanto?...
— Sim; algumas se extinguem, outras surgem... A
Natureza é in e s g o tá v e l la b o ra tó rio de formas em
experimentação. Existem espécies, animais e vegetais, que
estão à espera de eclodirem na paisagem terrestre, mais
delicadas e sublimes.
— O que esperam? Melhores condições climáticas?
— N ã o apenas; a N a tu re za é um organismo
extremamente sensível às emanações do pensamento
humano... A espiritualização do homem ensejará, inclusive,
a espiritualização da vida em derredor.
Pequenos agrupamentos de aves, trinando ao Sol
daquela manhã de primavera, pareciam brincar com miúdas
borboletas que bailavam ao sopro da brisa matutina.

239
c(La'iÃa& sA . cíja o c a ltu ! ÇÍ>ominqa&

— Onde estou? - perguntei. — Em alguma nesga do


Céu?...
— Domingas, você sabe, o Céu, muitas vezes, pode
ser sinônimo de trabalho. Temos aqui, simplesmente, um
jardim bem cuidado, o que, diga-se de passagem, é acessível
ao morador de qualquer casa terrestre. Ou não?!...
— É, num pedacinho de chão, a gente, querendo...
— Querendo!... E preciso enfatizar o verbo.
— A maioria de nós, Dr. Odilon, não liga para uma
flor no vaso... Como somos... Não encontro a palavra
adequada, para definir-nos em nossa insensibilidade.
Paulino, socorra-me... Como somos...
— Carnudos!
— Não...
— Pesadões!
— Também não...
— Abjetos!
— O termo ainda não é bem este, mas fica servindo.
A nossa ignorância, perdoem-me se extrapolo, é de provocar
asco na gente mesma; refiro-me a espíritos de meu nível
para baixo, os quais, por incrível que pareça, os há em
numerosíssimas falanges...
Apeando do veíc u lo, comecei a caminhar pela
varanda que circundava o núcleo central do “ Liceu”,
sustentada por colunas roliças que se frisavam de cima
em baixo, semelhantes a pilares de tem plos gregos,
conforme verificara em ilustrações de revistas pedagógicas.

240
^spvüio/^^omum/

— Que lindas colunas! D e que material são feitas? -


perguntei, fazendo deslizar a mão por uma delas.
— De mármore, D om ingas - respondeu o Dr. Odilon.
— Mármore?!
— Sim, de um márm ore mais eterizado; a matéria,
por aqui, continua sendo matéria...
— As nossas Instituições não devem primar pela
simplicidade?
— A pretexto de sim plicidade, não podemos nos
abrigar sob construções em ruínas... Você aqui não
observará sequer um g a lh o de árvore que tenha sido
decepado com o intuito de servir no aspecto físico da obra.
Simplicidade e bom gosto não são incompatíveis!
— E o piso, de que é feito? Nunca vi este tipo de
ladrilho...
— Material de natureza plástica de baixíssimo custo;
periodicamente, podemos trocá-lo — é reciclável...
— A laje?...
— O mesmo material do piso, modificado, com a
propriedade de amenizar o calor no verão e, no inverno,
que por aqui é rigoroso, manter a temperatura ambiente
agradável.
— O inverno, por aqui, é rigoroso?
— Confonne você já pôde constatar, continuamos a
ter dia e noite e, consequentemente, o ciclo natural das
estações do ano, com predominância da primavera.
— Ultimamente, na Terra, tem predominado o verão...
— Aquecimento global! - elucidou Paulino.

241
c&nto£' s4. cfâaccMó / <
Sbamincia&

— Resultado da indébita intromissão do homem na


Natureza; o desequilíbrio do meio ambiente está a lhe refletir
desequilíbrio íntimo...
— Secas em algumas regiões e chuvas torrenciais
em outras; florestas devastadas por incêndios e as geleiras
se desfazendo...
Convite inesperado

— Entremos, D om ingas - convidou-me o Dr. Odilon,


com gentileza. — Sinta-se em casa... Não se acanhe. Você
reparará que o “ L ic e u ” é um centro espírita um pouco
mais arejado e...
— Ilum inad o! — completei. — Nossa! M uitos de
nossos centros, o senhor deve saber...
— Sei.
— ...são abafados e escuros - alguns tão escuros
que, durante a palestra, a gente tem sono. O senhor não
acha que os centros espíritas deveriam ser mais bem
iluminados, sem, para tanto, precisão de efetuar grandes
gastos?
— Sendo possível, desde que os companheiros não
se sintam onerados com a conta da energia elétrica... Mas,
entre a luz artificial e a espiritual, devemos preferir...
— Isto é algo que não se discute. Não custava nada
se adaptar um a ou duas lâmpadas a mais no salão de

243
c(íaãlo& s4 . cfà a e c M i / ^bominctas'

reuniões. Tudo bem, o lam pião é pitoresco, evoca a


iluminação precária das catacumbas, nos tempos do
Cristianismo primitivo, no entanto... A penumbra, para mim,
em vez de favorecer a meditação, induz à sonolência. Já
que a luz espiritual nos é assim tão escassa...
— Domingas, tenho a impressão de que, em você...
— Se me acentuou o espírito de crítica, não é?
— O senso de observação!
— O senhor é muito educado... Eu sei que, com a
m inha m ilitâ n c ia na D o u trin a , eu acabei por ficar
excessivam ente c rític a - não sei se é questão de
convivência com os companheiros; o espírita parece andar
sempre de olhos arregalados para tudo quanto é defeito,
dos outros e das coisas... Tenho lutado contra essa tendência
infeliz.
— Quanto à questão de melhorar a claridade em
nossas salas de reunião, você está certa; é bom que o
pessoal se mantenha mais desperto, principalmente nas
reuniões de estudo... O cochilo, a madoma, a sonolência
são entraves à renovação mental que o conhecimento da
Doutrina nos possibilita.
— A senhora - in te rfe riu P a u lin o - falou em
desenvolvim ento do espírito crítico... O assunto me
interessa, pois, de fato, tenho constatado que alguns adeptos
do Espiritismo, em vez de, com o tempo, se tomarem mais
dóceis...
— Como diria o Dr. Inácio, tomam-se intragáveis!
— Não chegaria a tanto, mas...
— Deixe que eu chego por você - falei, sem rodeios.
— Com a permissão do Dr. Odilon, sejamos claros. É isto

244
mesmo: muitos espíritas dão a impressão de que estão
piorando - em vez de melhorarem, estão piorando! Tive
oportunidade de conversar sobre o problema com diversos
confrades. Eu não sei se a gente quanto mais se cavouca
por dentro, mais podridão encontra...
— O “ hom em v e lh o ” não quer ser desalojado -
concluiu o Mentor, evitando outros comentários.
— Q uantas ve ze s , c o n fe sso , v o lte i para casa,
aborrecida com igo m esma, por não ter conseguido me
conservar em silêncio diante de certas situações.
— Impaciência conosco, com as nossas imperfeições
e mazelas acaba por se traduzir em impaciência com os
outros.
— Como sempre, o senhor vai ao cerne da questão!
A nossa melhora não vem depressa e...
— E, não vindo, m inh a filha, apontamos os erros
alheios, com a finalidade de justificar a própria demora
em assimilar as lições do Evangelho.
— Dr. O d ilo n - indagou Paulino - , qual a receita
para não consentirmos o exacerbar do personalismo em
nós?
— Trabalho e boca fechada!
— Sinceramente - comentei - , acho que fechar a
boca é mais d ifíc il que trabalhar... Porque faz alguma
coisinha, a gente se ju lg a no direito de deitar falatório. O
espírita tem se especializado em criticar; às vezes, a crítica
é feita de maneira tão sutil, que chega a se confundir com
elogio... Se há alguma coisa de que me arrependo deste
Outro Lado, é da palavra leviana.

245
c€a'das' s4. <=fâ>accMi/Ç&amingas'

— Ora, D o m in g a s , você sempre fo i das mais


discretas...
— E u?! E os ou tro s, e n tã o ? !... O senhor é
excessivamente generoso.
— Entremos! - insistiu o Instrutor. — O pessoal está
esperando...
— Esperando quem?...
— Você, minha irmã! Os nossos estagiários desejam
ouvi-la.
— A mim?!... Se eu soubesse...
— Teria vindo antes, não é? Você adora falar...
— Eu falava lá no “Pedro e Paulo” , no “Jesus de
Nazaré” e, quando me deixavam, noutros centros, mas aqui,
no “Liceu” ?...
— O seu d e p o im e n to , de m é d iu m recém-
desencamada, será importante para eles, que, dentro em
breve, deverão regressar à liça terrestre, abraçando novos
compromissos na seara da fé.
— Gostaríamos todos de ouvir, sim, o senhor, Doutor!
— O meu parecer em tomo do assunto talvez seja
mais técnico do que prático e, depois, tenho falado a eles
em diversas oportunidades.
— Eu não sou nenhum tribuno...
— Ora, o coração não necessita de cátedras e a
experiência é sempre a argumentação mais convincente.
Fale-lhes de suas dificuldades e lutas, de seu idealismo,
da importância de perseverar...
— C onheço tão pouco da D o u trin a ... De
mediunidade, então! Para dizer a verdade ao senhor, nem

246
C(oio, ^s^2JyiUO'C€ximunv

os seus iivros eu estudei d ireito - eu os lia, mas não


estudava! Desculpe-me...
— D om ingas, os jo v e n s nos estão aguardando...
Iremos decepcioná-los?
— Estou trêmula!
— Paulino, um copo d ’água - solicitou o Mentor.
— Falar diante do senhor...
— D o Senhor Jesus, nem eu falaria, minha filha -
brincou, procurando tranqüilizar-me, enquanto, de um só
gole, eu sorvia o copo d ’água inteiro. — Vamos?
— Importa-se com que eu me apóie em seu braço?
— De forma alguma! - respondeu, oferecendo-me o
braço direito por escora.
Um grupo de trinta e dois jovens, entre rapazes e
moças, recebeu-me com fraternas vibrações, ofertando-
me, através de simpático casal, que os representou, um
ramalhete de flores com delicado cartão, no qual pude ler:
— “A nossa irmã D om ingas, dando-lhe as boas-vindas
entre nós e cumprimentando-a pela significativa vitória
alcançada. Com carinho...”
— Estou, deveras, comovida - disse, adiantando-me
na palavra - e agradeço a generosidade de todos, mas... a
que vitória vocês se referem? Não se trata de humildade
nem de modéstia, pois não sou portadora de nenhuma destas
virtudes... A in d a não tiv e tem po para uma melhor
avaliação, no entanto, estou convencida de que as minhas
falhas foram maiores que os meus acertos. De qualquer
forma, sinto-me feliz por estar aqui e, de início, aviso-lhes:
sou mestre em cometer gafes!...

247
cf£w tos' éA. c$>acaelti/! QiomUufas^

Enquanto Paulino se acomodava numa poltrona,


misturando-se com a turma, o Dr. Odilon, apontando-me
um relógio dependurado à parede, em local bem visível,
observou:
— Temos em tom o de 45 minutos... Creio que é
tempo mais que suficiente, não?
— Foi bom o senhor me alertar, pois, quando pego a
palavra e me empolgo... Estou inibida, porém, quando
começo, costumo ir longe - a gente que é médium entra
em transe à toa, não é?
O pessoal sorriu, fiquei um pouco mais à vontade,
limpei a garganta uma, duas, três vezes...
— Ué, para onde foi o meu pigarro? - perguntei com
naturalidade ao Mentor. — Nunca fumei, mas sempre
aquela secreção me atrapalhando falar... Certamente, era
carma; para espírita que se preza é assim: até catarro na
garganta, é carma!
— Está vendo, Domingas, você não pode se queixar
- brincou o Dr. Odilon, estampando cativante sorriso, que
contagiava a todos - : p elo menos, um benefício a
desencarnação lhe prestou de imediato...
Em seguida, s o lic ita n d o que um a das jovens
proferisse ligeira prece, anunciou-me para que, sem mais
delongas, eu desse início à palestra:
— A nossa irmã é uma grande amiga da Doutrina...
Ouçamo-la com atenção. A sua palavra simples é fruto de
sua vivência cotidiana nas lides da mediunidade com Jesus.

248
gingefo <J)epoimento

Assumindo ar de m aior seriedade, comecei a falar à


maneira de um colegial à frente dos colegas, em sala de
aula, sob o olhar percuciente do professor.
— Sei que vocês deverão regressar em breve... Estou
chegando de lá, de nossa Terra. Sinceramente, não tenho
muito a lhes dizer, a não ser o que talvez já saibam. A luta
é grande! Triunfar de nossas mazelas e imperfeições - eis
o maior desafio. Os obstáculos quase intransponíveis são
aqueles que jazem dentro de nós... Não se trata de simples
retórica. Os problemas maiores, mais complexos, são os
que criamos ou, no m ín im o , agravamos, com as nossas
reações invigilantes - o orgulho ferido, o melindre, a inveja,
a palavra leviana, a falta de compreensão... Quem segue
com o E v a n g e lh o à fre n te se im u n iz a de m uitas
perturbações. F u i um a m ulher de pouca ou quase nenhuma
cultura. N o m eu caso, fo i bom ; se tivesse sido erudita,
ninguém me suportaria... A vaidade é terrível! Graças a

249
c€avloS' s4. cfôaccelli / ^bomingas'

Deus, reencamei pobre, mulata e quase analfabeta; fui


faxineira... Digo-lhes: todas as dificuldades que enfrentei
na vida me protegeram! Desculpem-me estar falando assim
à medida que as idéias fluem... O problema não é o de se
ser médium exatamente: é o de se ser cristão! Médiuns os
temos na Terra em número crescente... O M ovim ento
E s p írita está se e xp a n d in d o , os grupos estão se
multiplicando, a Doutrina, todos os dias, faz novos adeptos.
Não há redundância na colocação que faço e enfatizo: o
e sp írita precisa ser cristão, p o is, caso contrário,
lamentavelmente se equivocará; imitará o médico que trata
e cura enfermidades alheias, sem saber diagnosticar e
prescrever para si mesmo... A m ais grave questão detectada
por m im entre nós, os espíritas m ilita n te s , com
responsabilidade neste ou naquele setor de atividades, foi
a da incoerência entre a palavra e a atitude! Conhecer o
Espiritismo é fácil - para tanto, livros é que não nos faltam,
de origem propriamente mediúnica ou não; difícil é silenciar
discórdias, re n u nc ia r em fa v o r da paz, u n ir os
companheiros, servir por amor ao ideal... D ifíc il é esquecer
a ofensa, é não ferir o companheiro, não julgar a quem
quer que seja... D ifíc il é somar esforços, vencer a aversão
que nutrimos contra alguém, é não vibrar negativamente
sobre este ou aquele com o qual não simpatizamos... Difícil
é estender a mão, dar oportunidades, ocupar a mente com
o pensamento de ser útil, resistindo ao assédio da tentação,
que encontra guarida em nossos sentimentos inferiores...
Fiz uma pausa e, embora com a impressão de estar
perdida, continuei.

250
^spínitosc^x)mjum

— A q u i está o nosso caro Dr. Odilon Fernandes. O


que mais aprendemos com ele? Mediunidade?... Não! O
que ele m ais nos e n sin o u fo i bondade, sinceridade,
transparência de atitudes... Desculpe-me - solicitei o
senhor sabe que não se trata de elogio barato. O senhor me
salvou o espírito! Sei que quem nos redime é Jesus, mas
os seus exem p los nos c a tivava m e, aos poucos, nos
transform avam ... L ía m o s “ O E vang elho Segundo o
Espiritismo” , todavia o víam os em suas ações! Nele, em
nosso q u e rid o In s tr u to r , a palavra soava como
complemento... A ssim ele nos ensinava Espiritismo! A
informação teórica é importante, porém não essencial para
quem deseja superar-se. Perdoe-me, Dr. Odilon, se lhe
causo algum constrangimento - tomei a rogar ao Mentor,
que se acomodara, hum ilde, numa cadeira ao lado para me
escutar o depoim ento. — N ã o devemos nos deter na
contem plação de nossas próprias fragilidades,
enfraquecendo-nos na fé, voluntariamente. Às vezes,
cavamos com as mãos o abismo da descrença em que
mergulhamos... N ã o esperemos demonstrações de virtudes
dos semelhantes, exigindo dos outros o que não somos
capazes de oferecer. D ig o assim porque criticamos tanto,
observamos e destacamos tanto as falhas de nossos irmãos,
que, de repente, nos surpreendemos desanimados... A
palavra que empregamos sistematicamente no mal termina
por nos m inar a resistência do espírito.
Ante o silêncio de todos e o olhar de aprovação do
Benfeitor, anim ei-m e a prosseguir.
— Nós, espíritas, carecemos de ser mais unidos e
fraternos; por este m otivo, insistimos tanto na necessidade

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c€a'do& éÂ. cHiaccMÁj! ^)ommgas>

da prática da caridade - quem dela se ocupa não encontra


tempo para polêmicas estéreis, discussões infindáveis...
Espiritismo é ação construtiva no Bem! O resto é teoria...
Não podemos transformar as nossas casas espíritas em
redutos das trevas... Mediunidade é pensamento aliado à
intenção, atraindo a presença dos companheiros espirituais
com os quais sintonizamos. Receber espíritos, atuar como
médium é fácil; difícil é acolher a Mensagem no coração e
nos sacrificarmos por ela, em nossos caprichos e anseios
pessoais... Eu não sei se vocês, há algum tempo deste
Outro Lado, já se esqueceram de que a experiência física
é rápida como um corisco que risca os céus em noite
tempestuosa... Digo-lhes: eu não v i o tempo passar; a rigor,
quando me aprontava para viver com maior proveito, no
campo das realizações do espírito, o meu tempo acabou -
o tumor no pulmão me consumiu as energias e, então,
lamentei, lamentei profundamente, como ainda o faço neste
momento, as queixas descabidas que formulei, as minhas
expectativas em relação aos que conviviam comigo -
expectativas de renovação íntima, de melhoras no campo
pessoal... Eu deveria ter servido mais! Feito mais visitas
aos doentes nos hospitais, transm itido mais passes,
trabalhado mais na mediunidade!... Perdi muito tempo
reclamando disto ou daquilo. Certo, às vezes, a gente tem
necessidade de desabafar, procurar um ombro amigo para
chorar as mágoas... Tudo bem. O problema, no entanto, é
que nós nos debruçamos sobre o ombro alheio, achamo-lo
aconchegante e... não nos levantamos mais! Ora, por mais
complexos os nossos dramas cármicos, com o conhecimento

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cêu/, ^sp£/dto/c^omum'

da Doutrina, sempre estaremos muito bem! Quantos não


falam em Jesus, mas sem conseguirem senti-Lo? Quantos
não oram, apenas oram, sem conhecerem a alegria de servir?
Quantos sequer sabem cogitar da própria imortalidade?...
Vivem motivados sinceramente, não sei pelo quê!...
Parei, tom ei um pouquinho d ’água e, com aquela
mesma sensação que sentia em estado de transe - a cabeça
um tanto aérea! - , dei sequência à preleção.
— Não estou aqui para pregar moral... Entendam.
Quem sou eu?... Eu sou a m ulher pecadora do Evangelho,
que seria dilapidada em praça pública; eu sou a pobre
irmã hemorroíssa curada pela Misericórdia do Senhor; eu
sou a enlouquecida sogra de Simão Pedro; eu sou a mulher
Cananéia que se comparou aos cachorrinhos que comem
as migalhas que caem das mesas de seus donos... Se hoje,
depois de meu desenlace do corpo, algo se me acentuou
no espírito, fo i a m elhor noção de que nada sou! Longe de
mim qualquer pretensão... Por favor, não me julguem mal!
Vejam o estado em que compareço diante de vocês, ainda
desfigurada pela desencarnação recente... No entanto, se
me admito de mãos vazias, não estou de coração sem
esperanças. Sinto-me, cada vez mais, entusiasmada com a
nossa D o u trin a - o E va n g e lh o me seduz! Juventude,
impulso sexual, ambições terrenas, vaidade - isto tudo é
cinza e nada. O corpo de carne, a pouco e pouco, vai
desmoronando e, num piscar de olhos, como dizia Chico
Xavier, passamos a habitar uma casa em minas... Lutem
contra o esquecimento do compromisso. Não façam opção
pela porta larga. Perseverem na tarefa. Não ambicionem a
vida dos outros!...

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rQanlo&' sA. <=H acceiiv ! d o m in g a

Os 45 m inutos que me h a via m sido concedidos


estavam prestes a se esgotar e eu precisava encerrar; aliás,
mesmo que quisesse, não conseguiria ser mais extensa, já
que as minhas carnes, evidenciando o meu estado de
fraqueza, começavam a saltar...
— Meus irmãos, esta é a minha singela colaboração,
é o que posso lhes dizer do mais fundo do coração...
Perdoem-me! Pensem que vocês estão reencamando com
uma carta de crédito nas mãos - sim, a possibilidade do
serviço mediúnico é isto! O que vocês haverão de adquirir
com ela? Não a permutem pelas ilusões... Sejam fiéis!
Sobretudo, a m e m !... Q uando chegar a hora de
adormecerem, permitam-se embalar pelo sonho bom de
que Jesus Cristo, em instante algum, nos deixa sem arrimo
- vocês não estarão p a rtin d o para um a aventura
inconseqüente no mundo!
Eu não dispunha de forças para continuar. Antes,
porém, de me acomodar numa poltrona ao lado do Dr.
Odilon, que, afetuosamente, colocou a destra sobre uma
de minhas mãos, pude reparar que quase todos os jovens
enxugavam discretas lágrimas que lhes escorriam dos olhos.
— Grato, minha filha, muito grato - murmurou o
Mentor aos meus ouvidos, enquanto uma das moças se
levantava e, em nome da turma do “Liceu” , me entregava
delicado arranjo de flores!...

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^ S EDITORA f if GRÁFICA

(V)ITORIA
TELEFAX: (0**34) 3336-5155 - 3336-6588
E-mail: edvitoria@mednet.com.br
Av. Cel. Joaquim de Oliveira Prata, 668
B. Bom Retiro - Cep: 38022-290 - Uberaba - MG
Outrossim, portadora de
dons mediúnicos de psicofonia,
psicografia e clarividência, a irmã
Domingas vinha consagrando-se a
serviço da Causa Espírita, tal qual na
elaboração mediúnica do romance
“ Nosso Álbum de
L e m b ra n ç a s ”, te n d o por
personagem principal o médico
alemão Dr. Rudolph von Müller, em 2
volumes, publicação da Minas
Editora, de A raguari - MG.
Igualmente, psicografou outro livro
narrativo: o “Despertar de Um
A lc o ó la tra ” , que tem por
protagonista o próprio esposo, Abel
Salvador, em publicação da Editora
LEEPP, tal como a obra: “Eu,
Espírito Com um ”,
J U B I L O S A M E N T E ,
S A L IE N T A M O S SE R E S T E
O 1 0 0 0 L I V R O
P S IC O G R A FA D O POR
C A R L O S A N T Ô N IO
B A C C E L L I!
A Câmara Municipal de
Uberaba, em novembro de 2003,
concedeu-lhe o Título de Cidadã
Uberabense.
In fe lizm e n te , fazendo
cessar, aos 65 anos, tão proficiente
existência espírita, Domingas foi
a c o m e t i d a de i n s i d i o s a
enfermidade, que ela procurou
suplantar, sempre trabalhando, com
todo o conhecido bom ânimo e
cordialidade, veio a desencarnar, na
mesma cidade de Uberaba, no dia 22
de setembro de 2005, ocasião em
que a comunidade espírita local lhe
testemunhou sentidas e calorosas
despedidas para o meritório
ingresso na espiritualidade.
Domingas, desencarnada em 22 de setembro
de 2005, era assídua frequentadora do Lar
Espírita "Pedro e Paulo", entre outras
instituições congêneres de Uberaba.
Neste livro sui-generis, ela nos narra os seus
primeiros m om entos na Vida Espiritual - as
impressões da chegada, os pensam entos que
lhe ocorreram, os am igos com os quais se
encontrou, os benefícios do conhecim ento
espírita, a sensação de ainda se sentir dividida
entre duas realidades...
Eu, E s p írito C o m u m talvez seja, na verdade,
um livro escrito do Além para a Terra, que, em
outras circunstâncias, poderia levar o seu
nome, caro leitor, em seu frontispício!

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