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FACULDADE DE ARQUITETURA
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Banca Examinadora
Prof. Dr. Angelo Szaniecki Perret Serpa (Orientador)
Profª. Drª. Eloísa Petti Pinheiro
Prof. Dr. Ordep José Trindade Serra
Prof. Dr. Rafael Sanzio Araújo dos Anjos
Profª. Drª. Cecília Conceição Moreira Soares
Prof. Dr. Muniz Sodré de Araújo Cabral
Salvador
2013
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Salvador
2013
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Agradecimentos
À cidade maravilhosa de Salvador, pela sua energia, pelos soteropolitanos e baianos e pelas
suas culturas negras, por me encantar e inspirar.
Ao Prof. Dr. Angelo Serpa, amigo e gentil orientador, que confiou em mim, enquanto
pesquisadora, e no propósito da pesquisa, acreditando no desafio desta temática, ainda, periférica
nos estudos urbanísticos. Agradeço carinhosamente pelas leituras, releituras e revisões.
Aos professores Drª. Eloísa Pinheiro, Dr. Ordep Serra e Dr. Rafael Sanzio, atenciosos e
cuidadosos com suas observações: agradeço pelas sugestões e contribuições apontadas na
Qualificação. Agradeço aos professores Drª. Cecília Soares e Dr. Muniz Sodré pelo aceite em
participar da Defesa.
Ao Grupo Espaço Livre que, nas nossas tardes de discussão sobre o urbano, contribuiu para
esclarecimentos e questionamentos articulados nesta pesquisa.
Ao CNPq, pela concessão de Bolsa de Estudos nos últimos 20 meses do curso, o que
permitiu, efetivamente, a realização desta pesquisa.
Aos moradores do Engenho Velho da Federação que me receberam em suas casas, nos
seus locais de trabalho, nos seus trajetos e contaram histórias do bairro, e que também são
suas, sempre solícitos em cooperar para a realização da pesquisa. A participação dos
moradores entrevistados foi fundamental para o desenvolvimento da tese.
Aos amigos que estão comigo, mesmo de longe, pela torcida e carinho.
Ao meu pai, Carlos Alberto, pela sua inteligência, determinação e sagacidade, sempre
inspiradores, e a minha preciosa mãe Maria Izabel que, no seu reservado silêncio, sempre
me presenteia, me acalma, me alegra e me ama com seu doce e sereno sorriso, continua
construindo meu ser. Ao meu irmão Marquito, muito querido. Aos meus avós, bisavós... e
ancestrais, que me doaram energia vital, permitindo que eu esteja aqui.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
RESUMO
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
ÍNDICE DE FIGURAS
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Figura 58 - Detalhe da Fotografia Aérea Vertical no Engenho Velho da Federação (Ano 1976) 150
Figura 59 - Conjunto de fotografias dos filhos de Dona Albertina e Seu Ioiô na Avenida Passos 151
Figura 60- Fotografia Aérea Vertical no Engenho Velho da Federação (Ano 1998) 153
Figura 61 - Espacialização dos Terreiros do Engenho Velho da Federação 155
Figura 62 - Mapa da Diáspora Africana 165
Figura 63 - Estátua da Quitandeira Angolana 174
Figura 64 - Morança Balanta - Bissau 179
Figura 65 - Morança Fula - Bissau 179
Figura 66 - Candomblé e Manifestações Culturais 183
Figura 67 - Painel Candombe Uruguaio 184
Figura 68 - Grafite de Samba na Rua Santo Amaro no Engenho Velho da Federação 187
Figura 69 - Diagrama do Plano das Ideias e Base Concreta 191
Figura 70 - Sobreposição Bairros Negros e Bairros Populares 194
Figura 71 - Diagrama do bairro negro e da cultura negra 194
Figura 72 - Diagrama do Bairro Negro e Elementos Espaciais 198
Figura 73 - Diagrama das Premissas Conceituais e Conceitos Complementares 202
Figura 74 - Vasos de plantas sagradas nas casas no Engenho Velho da Federação 209
Figura 75 - Musseque de Chicala - Luanda 211
Figura 76 - Vias (Terreiro do Bogum) 217
Figura 77 - Mariô em Terreiro no Engenho Velho da Federação 226
Figura 78 - Bandeira branca e insígnias de Xangô em Terreiro no Engenho Velho da Federação 227
Figura 79 - Entrada da Rua São Romão junto ao Terreiro 227
Figura 80 - Portão do acesso secundário ao Terreiro da Casa Branca 228
Terreiro do
Figura 81 - Acesso secundário ao Terreiro da Casa Branca 228
Figura 82 - Árvore da Gameleira e seu ojá na Estrada de São Lázaro 231
Figura 83 - VII Caminhada contra a Violência, a Intolerância Religiosa e pela Paz 234
Figura 84 - VII Caminhada contra a Violência, a Intolerância Religiosa e pela Paz 234
Figura 85 - Concentração da VIII Caminhada no Largo do Bogum 234
Figura 86 - Saída da Romaria de São Lázaro na Avenida Passos 237
Figura 87 - Romaria de São Lázaro na Travessa Assis 237
Figura 88 - Cartaz da feijoada e samba-de-roda 239
Figura 89 - Barraca do Pai Helinho no Largo do Bogum 244
Figura 90 - Área Vegetal com paisagismo sagrado na 3ª Trav. São José do Egito 245
Figura 91 - Área Vegetal com paisagismo sagrado na Avenida Fonseca 245
Figura 92 - Serviços prestados por Matheus nas proximidades do Largo da Torre 249
Figura 93 - Árvore sagrada e seu ojá em Terreiro no Engenho Velho da Federação 250
Figura 94 - Vasos de plantas medicinais na casa de Dona Emerita 252
Figura 95 - Paisagismo sagrado na 2ª Travessa do Bogum 252
Figura 96 - Paisagismo sagrado na Rua dos Coqueiros 253
Figura 97 - Casas no Terreiro no Engenho Velho da Federação 254
Figura 98 - Casas no Terreiro no Engenho Velho da Federação 255
Figura 99 - Casas nos limites do Terreiro no Engenho Velho da Federação 255
Figura 100 - Avenida Falcão 260
Figura 101- Avenida Parente 262
Figura 102 - Lavagem da Rua Manoel Bomfim 262
ÍNDICE DE TABELAS
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 08
INTRODUÇÃO 12
Contextualização da Pesquisa 13
Formulação do Problema e Objetivos da Tese 26
Delimitação da Pesquisa e Organização do Texto 35
CAPÍTULO 1
SUBSÍDIOS CONCEITUAIS E METODOLÓGICOS DA PESQUISA 39
1.1 - Estado da Arte 39
1.2 - Os Terreiros de Candomblé como Processo Metodológico 45
1.3 - Forma Espacial, Cultura e Ideologia 55
1.4 - A Construção de Premissas Teórico-Metodológicas da Pesquisa 57
1.5 - Aprofundando preliminarmente a noção de Bairro Negro 69
1.6 - Operacionalizando Teorias, Categorias e Conceitos 73
1.6.1 - Fontes de Pesquisa 73
1.6.1.1 - Pesquisa de Campo 74
1.6.1.2 - Fontes de Documentação Institucional 77
CAPÍTULO 2
SALVADOR E O BAIRRO DO ENGENHO VELHO DA FEDERAÇÃO 79
2.1 - A Cidade de Salvador e suas Transformações 79
2.2 - O Bairro Engenho Velho da Federação 90
2.2.1 - Aspectos Históricos do Engenho Velho da Federação 90
2.2.2 - Caracterização do Bairro 97
2.2.3 - Os Terreiros do Engenho Velho da Federação 153
CAPÍTULO 3
PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO URBANO A PARTIR DAS CULTURAS NEGRAS 160
3.1 - Diáspora Africana 160
3.1.1 - Contextos das Populações Negras na Diáspora Africana no Brasil 161
3.1.2 - Africanidades Brasileiras 166
3.2 - Uma Forma do Fazer Científico a partir do Conhecimento Diaspórico Africano 176
CAPÍTULO 4
BAIRRO NEGRO E FORMA URBANA NEGRA 191
4.1 - O Bairro Negro 192
4.2 - A Forma Urbana Negra 198
CAPÍTULO 5
O BAIRRO DO ENGENHO VELHO DA FEDERAÇÃO COMO EXTENSÃO DO TERREIRO 213
5.1 - O Bairro Negro do Engenho Velho da Federação 213
5.2 - O Engenho Velho da Federação e sua Forma Urbana Negra 246
CONCLUSÕES
Bairro Negro e Forma Urbana Negra: Produção de Conhecimento e Orientação às Políticas Públicas 263
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
APRESENTAÇÃO
A partir da vivência em cidade, dos modos urbanos de vida, questionamos como as pessoas
entendem a cidade, a vida urbana ou mesmo, o viver o urbano. O urbano que vivemos
estaria imbuído do sentido de coletividade? Como os coletivos, com suas várias formas de
entender o mundo, produzem ou se apropriam da cidade?
São perguntas que, evidentemente, possuem muitas respostas! Mas aqui iniciamos a nossa
discussão em torno das culturas negras: a relação das culturas negras com o espaço
urbano. Nossa premissa é compreender como corpos sociais urbanos imersos nas culturas
negras conformam o espaço.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Neste contexto, relativo à integração das culturas, Sodré entende que os cultos afro-brasileiros
são pós-modernos, pelo sentido irrestrito da tolerância, da diversidade. Carlos Alberto
Messeder Pereira entende, através de Muniz Sodré, que o Brasil pode ser um lócus
privilegiado pelo confronto do entrecruzamento de tradições culturais marcadas por uma
diversidade essencialmente radical (de natureza e de dinâmica), por meio do encontro de uma
‘lucidez’ pós-moderna do ocidente com os milenares mistérios e segredos da tradição cultural
negra (apud SODRÉ, 1988b).
Incorporar esta contribuição não é necessariamente fazer nenhuma oposição às ideias que
orientam o pensamento ocidental. Questionamos, no entanto, a insistência da sua abrangência
nos currículos acadêmicos, nas decisões políticas concretizadas nos projetos urbanos como se
pudesse abarcar as relações espaciais de um Brasil de populações tão diferentes, ignorando a
diversidade de comportamentos, de expressões culturais e, também, urbana; como se o
Urbanismo, pensado como corpo de conhecimento constituído pelo corpo acadêmico, técnico,
político, só pudesse existir, epistemologicamente, como imposição e não como sobreposição
de conhecimentos de origens culturais diversas, e não apenas das culturas ocidentais.
Assim, temos neste trabalho de pesquisa como ponto de partida o pensamento desenvolvido
por este autor, Muniz Sodré, em seu livro “O Terreiro e a Cidade: a forma social negro-brasileira”,
publicado em 1988, há 25 anos, com uma inovadora interpretação das populações negras no
Brasil, a partir dos terreiros de candomblé e sua dinâmica nas relações sociais que impregnam
a cidade.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
No entanto, o livro acima referido é, infelizmente, lido menos que o desejável (e necessário)
nas faculdades de Arquitetura e Urbanismo. Lamentável, sobretudo, por sermos um país tão
marcadamente negro, com cidades tão impregnadas pelas dinâmicas negras.
Sodré sinaliza que existem modos diferentes de relacionamento com o real, sendo que a
palavra real é o existente enquanto singular, único, incomparável e cultura sendo o real
representado ou atuado. Na continuidade do pensamento de Sodré, temos que, de acordo
com sua forma de relacionamento com o real, o grupo humano contém ou repele a livre
movimentação das forças.
Para alguns grupos humanos, como na tradição da religiosidade africana, o real é submetido
à força mítica, à energia vital, como força motriz que constitui fonte de potência criativa e
criadora - potência, vontade, força da natureza, natureza que transforma tudo em energia -
[o NTU ou] o AXÉ !
Ao desenvolver esta força como força de vida, poder de transformação e realização [ntu
para os Bantu], em que o axé [força realizadora para os iorubás] consiste na “autoridade
emanada de uma vontade coletiva, do consenso atingido por uma comunidade” (1988, p.
88), Sodré nos informa um posicionamento diante do mundo, sendo esta sua linha de
análise, distinta do nexo da metafísica moderna que “abandona a cosmologia e os objetos
para se centrar no homem como fundamento de todo existente. ‘Ideologia’ - neologismo
forjado na entrada do século dezenove para designar a ‘ciência das ideias’, [como] lógica de
objetivação do mundo” (1988, p. 10).
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Tal observação poderia também ser realizada em outros bairros com concentração de
população negra e com outras dinâmicas culturais negras de outras cidades, como o bairro da
Água Fria no Recife, o Morro de São Carlos, no bairro do Estácio no Rio de Janeiro ou a
Colônia Africana (atualmente bairro Rio Branco) em Porto Alegre, sendo que as relações entre
as formas culturais negras e o urbano se constituem por diversas maneiras, a exemplo de
terreiros, quilombos e festas. Dado a complexidade do tema, optamos, para este trabalho,
pelo terreiro de candomblé como orientador nesta relação com a cidade.
Buscaremos mostrar ao longo deste trabalho que esta força mítico-religiosa, como força de
vida, poder de transformação e realização, ‘realizou’ o bairro, no nível material e simbólico, e
expressou-se também pela ludicidade, pela festa, que é o que nos causa encantamento! Um
dos prazeres do urbano!
Por esta ótica das populações e culturas negras, apreciando tessituras e histórias urbanas dos
seus terreiros e casas, de suas ruas e becos, de seus largos e cantos, é que convidamos a
percorrer o Engenho Velho da Federação: bairro animado por terreiros de candomblé e que,
através desta particularidade cultural, promoveu a realização deste bairro.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
INTRODUÇÃO
Neste sentido, concordamos com as afirmativas de Lefebvre que o fenômeno urbano não se
restringe à dimensão física da cidade. O fenômeno urbano, para Lefebvre (1999), articula
fatores econômicos, culturais, sociais que se manifestam na forma de cidade. Enquanto a
cidade pode ser entendida como “um objeto definido e definitivo, [...] objetivo imediato para a
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
ação”, o urbano aponta para uma “abordagem teórica [...] mais complexa de um objeto virtual
ou possível” (LEFEBVRE, 1999, p. 28).
Face a esta perspectiva sobre a cidade, suas populações, as diversidades com seus
espaços-tempos, em que “cada espaço está ligado a um tempo ou a vários [tempos]”,
conforme Soustelle (apud Sodré, 1988, p. 90), é que conduzimos esta pesquisa no bairro do
Engenho Velho da Federação, procurando estudar sua gênese urbana com foco na
população negra e suas expressões culturais, sociais, econômicas e históricas, em que
enfatizamos aqui os terreiros de candomblé, a partir de Muniz Sodré em O Terreiro e a
Cidade: a forma social negro-brasileira.
O terreiro é, neste trabalho, o meio através do qual vamos identificar um bairro negro, assim
designado pela experiência singular e seus elementos constituintes que configuram uma
forma urbana negra.
Contextualização da Pesquisa
Segundo Risério (2012), destacando um olhar antropológico, uma cidade é mais uma
comunidade do que um espaço construído, no qual “a estrutura de uma comunidade, não o
ambiente edificado, é que se deixa caracterizar pela permanência” (p. 17).
Neste âmbito, esta pesquisa apresenta o enfoque direcionado para uma determinada área da
cidade estabelecida cultural e historicamente por populações negras, produtoras de espaço
urbano, constituindo um grupo social histórico, no caso, o Engenho Velho da Federação.
Esta pesquisa ressalta e explora aspectos das africanidades que o Brasil possui, estando
naturalizados como características do povo brasileiro, sem que sejam evidenciadas como
heranças originadas de povos africanos, nas suas respectivas etnias e culturas.
Aqui um breve posicionamento em relação às culturas de base africana a que nos referimos,
firmando que estamos aqui no campo da diáspora africana no Brasil. O continente africano é
extremamente rico nas diversidades étnicas, culturais, históricas, geográficas, políticas. Sem
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Diante da variedade dos povos africanos, com etnias distintas, verifica-se que existe no
continente africano, a partir de instituições culturais comuns, uma unidade cultural africana
na diversidade, conceito de Cheikh Anta Diop (1959) adotado pela maioria dos africanistas.
Segundo Munanga (1978), diante da complexidade cultural, esta diversidade na unidade
percorre todo o território africano, compartilhando semelhanças nos elementos estruturantes
das sociedades africanas.
Entendemos este movimento emancipatório como uma busca para evidenciar o ser africano,
diaspórico ou não, como sujeito, como agente de sua história, valorizando a experiência
histórica comum, utilizando como referência a consciência de uma origem comum africana.
Deste modo, não pretendemos repetir uma visão estereotipada, como alerta o antropólogo
Ordep Serra (1995), sobre estudos que descambaram numa exploração do exótico, ou dos
estereótipos, em que “o apelo à herança da África deu lugar a todo um folclore” (p. 158).
Serra crê em comunidades que partilham valores, crenças, representações sociais que
podem se reportar ao acervo de certas culturas do continente negro, não tendo, portanto,
1
Divisão iniciada na Conferência de Berlim (1884-1885) cujo objetivo era a delimitação dos territórios africanos
entre as colônias europeias, baseada nos interesses econômicos sobre as riquezas naturais destes territórios,
ignorando os grupos humanos. A conquista das emancipações, nem sempre de forma legítima, dos Estados
africanos ocorreu, em grande parte, somente em meados do século 20.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Enfatizamos que a maneira como as relações étnicas foram, e ainda são, conduzidas no
Brasil, ao longo de séculos, fez com que percamos características culturais materiais e
imateriais, conhecimentos peculiares, tecnologias milenares no processo de organização
social e espacial de populações negras, que se tornam especificidades por acumularem
influências múltiplas de várias culturas, inclusive, e, sobretudo, das africanas.
Por sua peculiaridade, entendemos este fenômeno como obra, no sentido lefebvriano, como
valor de uso. O urbano deste bairro negro é assim conduzido, partilhado por seus
moradores, cúmplices na atividade participante da produção coletiva, intérpretes de suas
próprias simbologias.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
E aqui relativizamos alguns pontos: Lefebvre está condicionado por um meio bastante
diferenciado historicamente do nosso objeto de estudo; os grupos efêmeros seriam grupos
não dominantes, mas salientamos que a população negra no Brasil é um grupo social de
grande densidade populacional nas regiões brasileiras, sendo parte integrante da nossa
história e cultura, não cabendo, portanto, a designação de grupo efêmero.
Nesta discussão cabe esclarecer que o Estado Brasileiro pratica, desde o início do século
20, uma política de invisibilização das populações negras tanto das suas práticas culturais
urbanas desde o período escravista até os dias atuais, perpassando pelas
representatividades políticas, quanto na transformação dos contingentes populacionais
negros brasileiros em representações ideológicas por supostas minorias sociais, mesmo
contradizendo os censos do IBGE para as diversas regiões do país.
Na possibilidade de invenção, esta seria, sem dúvida, no nível do habitar lefebvriano, que
contempla a diversidade das maneiras de viver, dos tipos urbanos, dos modelos culturais e
valores vinculados às modalidades ou modulações da vida cotidiana, modelando um espaço
urbano apropriado, como uma inversão revolucionária.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
E com esta perspectiva podemos, assim, pensar que esta é uma inversão nas análises da história
urbana. A história urbana pela perspectiva dos estudos urbanísticos tem priorizado, na formação
de cidades, elementos urbanos como a igreja católica, os edifícios públicos administrativos, as
indústrias, instalados nas cidades numa determinação “de cima para baixo”, representando as
elites dominantes através de poderes político-administrativos eclesiásticos e econômicos. Os
terreiros são o oposto! Pela força espiritual e política, alguns terreiros obtiveram grande prestígio
social e religioso, mas não são lócus representativos das grandes elites. A sua instalação foi, na
maior parte das vezes, clandestina, dada a perseguição da polícia; sua comunidade se dava,
inicialmente, pelas famílias-de-santo, expandindo-se pouco a pouco, em condições financeiras
bastante desfavoráveis, constituindo uma formação urbana comunitária, cotidiana: “de baixo para
cima”, originada da iniciativa de uma comunidade constituindo parte do tecido da cidade. Deste
modo, neste estudo, ao optarmos em analisar uma formação urbana pelo terreiro, e que constitui
uma particularidade do urbano, temos aí uma inversão de análise da história urbana.
A pressão por uma homogeneidade espacial disseminada pelas mídias, pela política e pela
academia estabelece coerções à afirmação de cidadãos e de grupos sociais em suas
expressões autônomas, inviabilizando o senso crítico em relação aos direitos universais e
ao direito ao uso da cidade.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Choay, em sua análise interpretativa do urbanismo, coloca que, diante desta nova cidade e
sociedade que se firmam em fins do século 19, a cidade aparece como um fenômeno não
familiar, extraordinário, estranho aos seus indivíduos. Entendemos que esse fenômeno se
dá pelo que Rossi (2001) reflete, de que a cidade cresce sobre si mesma, criando sua
própria consciência e memória. Estes referenciais de consciência e memória, que estão no
âmbito da cultura, aparecem descontextualizados até mesmo no urbanismo culturalista que
Choay descreve, cujo ponto capital ideológico não é mais o progresso, mas a cultura,
tornando-se inconsistente, porque enquanto fenômeno cultural é pensado como modelo,
não como processo. A cidade é pensada como objeto reprodutível, extraída da
temporalidade concreta, tornando-se utópica, de lugar nenhum.
Deste modo, temos cidades brasileiras que apresentam diversos momentos de tentativa de
padronização espacial e alienação topológica à qual nos referimos acima, agravada por
serem matrizes teóricas e ideológicas sobretudo europeias e americanas, geradas em
circunstâncias históricas, sociais, econômicas e políticas distintas do contexto brasileiro.
Serra (1995) resgata um bovarismo presente em segmentos das elites brasileiras, mas que
em certo momento foi questionado durante o movimento modernista, sobretudo com o
regionalismo nordestino, em relação ao “descaso para com o ambiente brasileiro, do
divórcio intelectual com o País, a região, o povo e o lugar” (p. 165-166).
Nestes contextos ideológicos, pretendia-se tornar, então, o espaço urbano brasileiro uma
cópia das aparências europeias. Rolnik afirma que a elite brasileira do final do século 19
acreditava que a substituição da mão-de-obra negra (escravizada ou livre) “através de uma
política de imigração massiva de europeus poderia superar os obstáculos à higiene e à
civilização supostamente erguidos pela cultura não-civilizada dos povos de origem africana”
(ROLNIK, 1999, p. 69). No entanto, os imigrantes que vieram para o Brasil, naquele período,
eram trabalhadores camponeses que não detinham os costumes civilizados desejados: “os
imigrantes europeus, de quem se esperava ‘o sangue oxigenado de uma raça livre e
laboriosa’, tampouco preencheram as imagens de civilidade e higiene idealizadas pelas
elites” (ROLNIK, 1999, p. 78).
Muitos imigrantes eram analfabetos em seus países de origem (PEREIRA, 1986) e quando
aqui chegaram receberam incentivos: cotas do governo brasileiro aos estrangeiros. Muitos
alemães, apesar da Lei de Terras, receberam terras nos estados do Sul do país para trabalhar
na lavoura; outros incentivos foram dados aos imigrantes europeus, como a educação, sendo
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
esta renegada aos negros2 e trazendo impedimentos à sua ascensão social. Em 1850, foi
aprovada pelo governo imperial de D. Pedro II a Lei de Terras, em que o acesso à terra só se
daria mediante compra e não mais por doação. A privatização da propriedade fundiária
pública constituiu uma medida de inacessibilidade a terra pela população negra em momentos
antecedentes à abolição, sendo posteriormente reforçada pelo Código Civil, em 1916,
disciplinando que a apropriação de terras devolutas só se daria por compra.
Ao se evidenciar as cotas ofertadas aos imigrantes, além do capital simbólico positivo a eles
auferido, não se pretende aqui uma arbitrariedade, que pode parecer ofensiva, a estes
grupos sociais, mas ilustrar e afirmar as injustiças históricas, as negligências e vilipêndios às
populações descendentes de africanos, cujo trabalho forçado, sob condições
constrangedoras nos aspectos sociais, culturais, econômicos, políticos, consolidou o lastro
econômico do país.
Este novo ideário afetou profundamente as populações negras. Flexor (1998) aponta que o
discurso civilizatório oficial buscava combater os hábitos da população. No sentido de
moralizar a sociedade procurava-se, inclusive, coibir a mendicância, os cultos místicos e as
festas populares e, até mesmo, a presença de negros nas áreas centrais. Havia um
pensamento de que as cidades deveriam modernizar-se e, para tanto, deveriam
assemelhar-se com as cidades europeias, defendendo-se, inclusive, o embranquecimento
da população:
2
A educação à população negra foi negligenciada e reprimida pelo Estado, desde o período anterior à abolição.
Santos e Barros (2011) indicam que o 9° artigo do Regulamento de 1º de setembro de 1847 da província do Rio
de Janeiro dizia: “São proibidos de frequentar as escolas públicas os que padecem de moléstias contagiosas, os
escravos e os pretos africanos, sejam libertos ou livres” (p. 04). Chalhoub (2006) informa que a restrição à
instrução objetivava também o impedimento às votações dos negros nas eleições e, consequentemente, a
representatividade política. Paralelamente às limitações ao acesso à educação oficial, irmandades e demais
associações negras buscaram organizar escolas, como a escola da Frente Negra Brasileira, fundada na década
de 1930 em São Paulo e, ainda, tivemos a grande atuação das ‘professoras leigas’. No entanto, estas iniciativas
seriam insuficientes para atender a grande demanda.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A cidade de Salvador, bem como o Rio de Janeiro ou o Recife, era marcada pelo domínio da
presença africana. Esta presença demarcou territorialidades culturais (SODRÉ, 1988) e é o
que Rolnik chama de fio invisível:
Segundo Serra (1995), “a Bahia [a cidade da Bahia] cultivada quer-se branca, moderna,
cristã, ocidental, progressista” (p. 160). O autor informa que as teorias racistas
prevaleceram, na passagem para o século 20, nas tentativas de interpretação da sociedade
brasileira, orientando políticas desenvolvimentistas que preconizaram o fomento da
imigração europeia, privilegiando os oriundos de povos considerados superiores, como
saída estratégica para ‘melhorar a raça’.
O estudo de Rolnik (1999) também registra que os negros eram tidos como promíscuos pela
dança que praticavam, sendo vista pela elite como expressão da lubricidade, da
degenerescência moral e da falta de instituições familiares estáveis. Para a autora, esta
discussão na perspectiva do meio urbano é fundamental, uma vez que há a condenação de
modos de vida diversos e desconhecidos:
A vida espiritual dos africanos e seus descendentes também não era compreendida, ou
aceita, pelos olhos da elite que adotava o entendimento do mundo através de um enfoque
ocidental, europeu e católico como único. A religião africana era vista como magia ou
feitiçarias e suas danças eram vistas como promiscuidade. Também havia repreensão à
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Com o propósito de um cenário urbano aos moldes europeus, Rolnik (1999) assinala que os
territórios negros articulados pelo entrelaçamento das ruas, dos pontos de quitanda, das
bicas e tanques das lavadeiras, dos encontros no mercado, dos refúgios nas matas e dos
espaços das irmandades na cidade constituíam o território a ser desmontado, cujas marcas
deveriam ser apagadas para conferir à cidade uma imagem ‘metropolitana’ e confirmar o
poder à República nascente. Rolnik exemplifica o contexto paulistano, que vemos presente
também em Salvador (REIS, 1986; COSTA, 1989; SOARES, 1994), como também no Rio
de Janeiro (MOREIRA, 2006).
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
e do saneamento do país tenha de fato contribuído com mais força para referendar e exaltar
a disciplina urbanística em sua função modernizadora da nação” (p. 51). Por outro lado, o
autor reforça que o higienismo envolveu também o discurso eugênico no sentido racial e
cultural diante de “um meio urbano visto como degenerador de uma cidade asséptica,
civilizada e domesticada para as funções do trabalho, mas também ‘eugênica’, quer dizer,
racialmente higienizada” (p. 51). E ainda, mais adiante, o autor dá um exemplo, em relação
à cidade do Recife na década de 1920, na fala de um engenheiro sanitário, sobre a higiene
e a eugenia: “são duas ciências que precisam caminhar emparelhadas, uma complementar da
outra… a primeira cuida da cidade, e a segunda aperfeiçoa a raça de cuja perfeição e vitalidade
muito depende o progresso do Paiz” (PEREIRA, 1928, p.72 apud LIRA, 1999, p. 54).
Com a Segunda Guerra Mundial, para Virgílio da Silva, a eugenia foi desacreditada como
ciência e condenada como postura política. Mas o autor aponta que, mesmo que a eugenia
tenha sido relegada a uma condição de tabu, não se pode considerar o Brasil, um país tão
miscigenado, imune a tais manipulações ideológicas, como mostra a constatação da íntima
relação entre higienismo e eugenismo3:
Não nos aprofundaremos neste tema em relação ao contexto do urbanismo, mas entendemos
que a ideologia eugênica afetou diretamente parcelas importantes de populações negras,
sobretudo nas circunstâncias históricas de sua afirmação política pós-abolição.
3
Ver também:
VIRGÍLIO DA SILVA, Marcos. Naturalismo e Biologização das Cidades na constituição da Idéia de Meio
Ambiente Urbano. Dissertação de Mestrado: FAUUSP/Universidade de São Paulo, 2005.
23
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
É neste período que ocorrem grandes reformas em principais centros urbanos do país (Rio de
Janeiro, São Paulo, Recife e Salvador, como exemplos), caracterizados pela ocupação dos
elementos considerados indesejáveis, no caso, populações negras e suas culturas, para a
constituição de uma nova imagem da cidade republicana. E, a título de contextualização, Pinheiro
(2011) expõe, no cenário soteropolitano, sobre a reforma de 1912-1916: “As obras expulsam a
antiga população empobrecida, que vivia em edificações encortiçadas em partes do Distrito da
Sé e do Distrito de São Pedro e que tem de buscar novos locais para acomodar-se” (p. 243).
24
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Apesar dos avanços políticos dos movimentos de reforma urbana e das posturas de
governanças progressivas, podemos ainda afirmar que a concordância teórica e as
adaptações descoladas de nossa realidade são absorvidas pela elite técnico-acadêmica,
sendo impostas à população.
Deste modo, estas populações excedentes nas cidades, sendo maciça parcela composta por
populações negras, vão tentar, com seus próprios meios, adequados ou não, resolver seus
problemas de moradia. Estas populações excedentes residem no que o IBGE denomina, de
aglomerados subnormais: favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas,
mocambos, palafitas, entre outros assentamentos irregulares. Segundo dados do IBGE4, baseado
no Censo 2010, aproximadamente 68,4% dos seus moradores são negros (pretos e pardos).
Além do quantitativo, as políticas acabam também por não atender qualitativamente a uma
grande parcela que não se encaixa social, econômica e culturalmente no enfoque das
políticas públicas habitacionais.
Talvez esta ‘resistência’ esteja relacionada à própria origem do urbanismo, como ciência e
como parte da própria epistemologia, a serviço de uma elite política/econômica/intelectual
que adota uma cultura hegemônica, tendência desenvolvida em consequência da orientação
teórico-metodológica e de visão etnocêntrica, sobretudo fundada numa cultura eurocêntrica
como visão de mundo, como ponto referencial. É o que talvez tenha pautado Sodré (1988) a
chamar de consciência ocidental, atravessada por um desejo de universalidade em que
todas as forças convergem para a produção, como valor único e universal.
5
O Direito adotado no Brasil parte dos códigos e bases patrimonialistas do Direito Romano, cujo princípio passa
pela propriedade privada, no qual as relações de coletividade ainda são restritas às questões referentes às
propriedades coletivas.
26
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Existe no campo das ciências humanas a ideia dos pluralismos culturais e de interculturalidade
que ainda se mostra incipiente no campo do urbanismo. A ausência destes estudos nos revela
a tendência de perspectivas eurocêntricas como referências norteadoras no processo de
construção do conhecimento, corroborando para uma unicidade dos discursos sociais.
Segundo Castro (2010), em seu estudo sobre a relação entre geografia e política como meio de
controle do território, as questões e os conflitos de interesses surgem de relações sociais e se
territorializam, materializando-se em disputas entre os grupos para organizar o território, criando
tensões e formas de organização do espaço para melhor atender aos interesses e às formas de
vida de seus componentes, ou daqueles mais influentes, as elites políticas. A delimitação entre a
política, expressão e modo de controle dos conflitos sociais, e o território, base material e
simbólica da sociedade, tem como ponto de partida as questões e os conflitos de interesses na
sociedade, produzindo disputas e tensões que se materializam em arranjos territoriais
adequados aos interesses que conseguem se impor em momentos diferenciados. Diante desta
delimitação territorial dada à correlação de forças, temos a configuração de nossas cidades.
Situando-nos, portanto, no âmbito dos estudos urbanos perante uma análise do histórico da
composição da população brasileira e dos processos de constituição de nossas cidades,
pretendemos nos debruçar sobre grupos sociais específicos em função de seu processo
histórico no Brasil, distinto de outros grupos sociais: populações negras urbanas, enquanto
grupo social com cultura e história particulares, conformando os próprios espaços urbanos
de moradia, na intenção de, assim, obter e contribuir com um maior entendimento da
formação da configuração urbana no Brasil.
Esta pesquisa investiga sobre como determinados grupos sociais negros vivem o espaço
determinado por eles próprios, “não como produção, mas como criação do espaço”
(informação verbal de Angelo Serpa em reunião no Grupo de Estudo Espaço Livre), cujos
processos não têm reconhecimento ou entendimento técnico acadêmico ou
governamental, e expressar que as populações negras urbanas no Brasil possuem uma
forma histórica e cultural específica.
27
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Deste modo, esta tese de doutoramento toma o bairro negro como tema central de pesquisa,
sendo uma lacuna nos estudos urbanísticos brasileiros, em que a perspectiva do urbano será
analisada com base em uma leitura da configuração urbana a partir deste bairro. Queremos
mostrar a constituição do bairro negro por seus moradores, ideia surgida na pesquisa
desenvolvida por nós (RAMOS, 2007), sendo aqui ampliada, em analogia ao pensamento de
Lefebvre (1999), como um objeto possível do qual queremos mostrar o nascimento e o
desenvolvimento, relacionando-os a um processo e a uma práxis, enquanto uma ação prática.
Estas áreas que aqui denominamos de bairros negros, lugares sociais e espaciais, estão na
contramão do que é objetivado pelas teorias urbanísticas ocidentais, de espaços
racionalizados sob um discurso científico. Aqui, nestes lugares, estes bairros negros, os
valores afro-brasileiros são hegemônicos em relação à cultura dominante; por outro lado,
estes bairros negros são também contra-hegemônicos, enquanto suportes espaciais das
resistências na manutenção de seus valores sociais, em correspondência ao que foi
apontado por Serpa (2011) em sua análise sobre a existência da expressão da criatividade e
da inventividade dos moradores de bairros (populares) que se manifestam em um discurso
que se contrapõe às estratégias oficiais dos órgãos públicos de planejamento.
Neste ínterim, justificamos trabalhar com grupos sociais e não com o conceito de classes sociais,
visto que a operacionalização do conceito de classes sociais não permite a inclusão de grupos
sociais negros como sujeitos coletivos históricos (CUNHA JUNIOR, 2008a); ou seja, como
grupos não homogêneos, com grande diversidade espacial, regional, cultural e econômica.
28
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Já os grupos sociais operam com as suas identidades étnicas e culturais dentro do contexto
histórico-social brasileiro, e não necessariamente estão vinculados à renda, gerando grupos mais
abrangentes, incorporando inclusive sobreposições de distintas identidades e origens sociais.
Sob esta ótica de grupo social, o conflito entre grupos se dá na esfera da cultura, da política,
das relações sociais e econômicas, sendo o conjunto dos grupos sociais eurodescendentes os
que constituem os grupos hegemônicos, orientando as políticas públicas segundo princípios
dos valores civilizatórios ocidentais.
Nesta linha de raciocínio relativa às políticas públicas, temos em Garcia (2005) que as
desigualdades sociais presentes entre os grupos negros e grupos não-negros são
naturalizadas por um racismo brasileiro, sem racistas [declarados], que perpetua as práticas
de desigualdades pelo confinamento de amplos segmentos negros em posições inferiores
da hierarquia social. O racismo se perpetua através do fenômeno da segregação
residencial, mas também pela negligência de acesso às políticas públicas6.
6
Quando o Estado impede grupos negros de se expressarem nas suas formas culturais é um tipo de racismo. Quando
o racismo é exercido pelo Estado, é chamado de Racismo Institucional. A partir de Durban, África do Sul, na I
Conferência Mundial contra o Racismo em 2000, houve, com as pressões dos movimentos sociais negros, um
reconhecimento do Estado Brasileiro nas suas omissões relativas aos cuidados e temas de interesse às populações
negras, quando ignora suas necessidades específicas. Num alinhamento internacional apoiado pela ONU, definiu-se
que Racismo Institucional é a incapacidade das instituições e organizações em prestarem serviços adequados e
garantirem o atendimento pleno às pessoas em decorrência da sua origem étnica, cor ou cultura. Essa incapacidade em
servir plenamente manifesta-se através de normas obsoletas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no
cotidiano de trabalho, resultantes da ignorância, da falta de atenção, preconceitos ou estereótipos racistas. Em qualquer
caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de
desvantagem no acesso a benefícios gerados pela ação do Estado, de suas instituições e organizações.
Uma forma de Racismo Institucional de governo é configurada pela intolerância religiosa, como no caso da demolição do
Terreiro Oyá Onipó Neto pela prefeitura municipal em 2008, localizado na Boca do Rio, em Salvador, há 29 anos. Outro
exemplo de Racismo Institucional é o fato da mortalidade infantil entre crianças negras ser maior que a de crianças
brancas, mesmo que elas provenham de famílias com o mesmo padrão de renda; ou ainda a doença falciforme, que é
hereditária e atinge principalmente a população descendentes de africanos, cuja demora do governo em priorizar a
questão nas últimas décadas foi reflexo do ‘racismo institucional’. Diante deste reconhecimento do Estado, o governo
brasileiro institui órgãos governamentais, como a SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da
Presidência da República). Segundo Anhamona Silva de Brito, “o ‘racismo institucional’ é uma das razões que explicam
por que o governo demorou tanto a priorizar, em suas políticas públicas, uma doença que afeta parcela significativa da
população”, afirma representante da SEPPIR, órgão vinculado à Presidência da República. Disponível em:
<http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2011/08/24/pouca-atencao-a-anemia-falciforme-e-reflexo-de-racismo>.
Acesso em: 15 nov. 2012.
29
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
No nosso alinhamento de pensar a produção de cidade a partir das realidades brasileiras, sob a
perspectiva dos que a produzem à margem do poder público, tomamos o processo de instalação dos
terreiros em Salvador: terreiros como produtores de espaço urbano (DIAS, 2003); e terreiros como
nucleadores de bairros: “bairros desta cidade tiveram terreiros de candomblé como núcleo histórico de
sua formação” (OLIVEIRA, 2005, p. 178) ou “nucleações formadas por antigos candomblés estariam
na origem de diversos bairros de Salvador” (GOMES, 1990, p. 09), segundo a análise de Marco
Aurélio Gomes em referência ao trabalho de Nascimento (1989).
Mas os terreiros, como meio de expressão sagrada do candomblé, ainda são pouco
vislumbrados nesta ótica. Muitos terreiros constituíram a origem de bairros no processo de
povoamento, de agregação, de orientação de formas espaciais, como gênese de bairros.
Um exemplo importante em Salvador é o Ilê Axé Opô Afonjá, localizado em São Gonçalo do
Retiro (SODRÉ, 1988; RIBEIRO, 2010). Nos arredores de Recife, segundo Valéria Costa (2009),
temos o terreiro da Nação Xambá, no bairro da Água Fria, ficando a localidade do Portão do
Gelo conhecida como Xangô de Mãe Biu.
Sobre a inserção de terreiros na cidade de Salvador, são referências o Projeto MAMNBA, da década
de 1980 e Dias (2003). As referências mais recentes são do Mapeamento dos Terreiros de Salvador,
lançado em 2007. A pesquisa do Mapeamento partiu de terreiros registrados junto à FENACAB -
Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro - e indicações de lideranças religiosas, catalogando ao
final 1.139 terreiros, não abrangendo a totalidade de terreiros existentes.
7
Lewis Mumford (A cidade na história), Nestor Goulart Reis Filho (Evolução urbana no Brasil), Murilo Marx
(Nosso chão: do sagrado ao profano), Zeny Rosendahl (O Sagrado e o urbano: gênese e função das Cidades),
entre outros.
30
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Atualmente, se muitos terreiros têm sua reestruturação espacial e litúrgica imposta pelo
processo de urbanização das cidades, nos primórdios de muitos bairros o sentido ocorreu de
forma inversa, com os terreiros como seus estruturadores espaciais, e também, pela
perspectiva sociocultural, como uma fonte de referências de culturas negras.
Como profissional arquiteta urbanista e pesquisadora das culturas negras, temos na temática
desta pesquisa a continuidade dos estudos e questionamentos desenvolvidos e adquiridos na
dissertação de mestrado (RAMOS, 2007), em que estudamos a Liberdade, um importante
‘bairro negro’ da cidade de Salvador. Ressaltamos também nossas experiências pessoais e
profissionais, com atuação em trabalhos voluntários e de consultoria a órgãos públicos em
assistência técnica em autoconstrução e em bairros autoconstruídos, bem como em projetos
comunitários em comunidades quilombolas.
Quando se refere à ocupação por territórios de candomblé, por exemplo, Dias (2003) declara a
dificuldade do processo de investigação dada pelas especificidades do próprio objeto (origens
secretas dos terreiros à época de sua implantação face à perseguição sofrida) e pela ausência
destes estudos, expressando que a omissão do significado deste fato, de reconhecer este
protagonismo dos terreiros, tem geralmente “vieses marcadamente elitistas, economicistas ou
racistas” (DIAS, 2003, p. 67).
Estas ocupações eram ilegais, aumentado a dificuldade da pesquisa dada pelas origens secretas
dos terreiros à época de sua implantação. Na pesquisa sobre a ocupação da cidade por territórios
de candomblé, Dias verifica que se trata de uma história de ocupação específica, cuja
especificidade é que não se trata de uma evolução urbana nos moldes tratados tradicionalmente
31
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
pela história urbana das cidades, a exemplo da ocupação da cidade a partir de engenhos ou bairros
operários, como suporte de indústrias, ou aberturas de grandes vias.
Dias (2003) constata também que há estudos neste sentido, sendo, no entanto, que as
descrições dão relevância ao papel da Igreja Católica, evidenciando os cultos afro-brasileiros
como clandestinos e submetidos à repressão policial, desvalorizados no processo de
estruturação do espaço e na organização da sociedade em Salvador.
A título de orientação geográfica, temos na Figura 1 diferentes escalas globais e regionais a fim
de localizar o bairro do Engenho Velho da Federação, em Salvador, na Bahia, Brasil.
Engenho Velho
da Federação
Nas Figuras 2 e 3 temos ilustrações da área urbana do estudo, o Engenho Velho da Federação,
e sua inserção na paisagem urbana da cidade.
32
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Figura 2 - Panorama do bairro do Engenho Velho da Federação a partir da Av. Cardeal da Silva
Fonte: Foto da Autora
Figura 3 - Vista parcial do bairro do Eng. Velho da Federação a partir da Av. Vasco da Gama
Fonte: Foto da Autora
Estas ilustrações nos auxiliam a contextualizar, no tempo e no espaço, nosso lugar de estudo.
No entanto, as imagens não são suficientes para demonstrar nossa hipótese, que não se vale
apenas da localização espacial do bairro Engenho Velho da Federação, como tampouco das
formas e estruturas aparentes que se acumularam ao longo do tempo.
O fenômeno estudado, como desafio aqui proposto, foi entendermos o bairro do Engenho Velho
da Federação como sendo um bairro negro, produtor de um urbano particular. Este bairro é
resultado de ações de suas populações, constituindo um urbano (objeto virtual ou possível), no
sentido de sociedade urbana, sendo também este bairro produto deste urbano, dado pela
realidade presente da cidade, conforme Lefebvre (1991), uma das hipóteses norteadoras deste
trabalho, conforme segue o diagrama da Figura 4:
urbano cidade
Outra hipótese, esta metodológica, é de que este espaço urbano é orientado pelo ordenamento
espacial originado pela implantação de terreiros, que, por sua vez, é determinada pela religião
ancestral nos princípios de interação com o espaço (natural ou não), bem como também por
seus desdobramentos na vida social, como extensão da vida do terreiro.
Conforme o diagrama indicado na Figura 5, nossa proposta é, deste modo, compor alguns
Conceitos Subjetivos, compreendidos a partir de africanidades desenvolvidas por grupos negros
na diáspora africana em contextos brasileiros, constituindo espaços. Tais conceitos imbuídos de
aspectos urbanísticos, a partir de ocupações autoconstruídas, compõem uma Forma Urbana
Negra, constituindo um Bairro Negro, cuja construção conceitual é tomada a partir da pesquisa
empírica realizada, como já salientado, no bairro do Engenho Velho da Federação.
Nesta hipótese, diante da instalação de terreiros como o Bogum e a Casa Branca, estes não
como únicas referências, mas enquanto terreiros mais antigos existentes (e de nosso
conhecimento) na localidade, se criou uma ambiência favorável, apesar de ser à época uma
região inóspita e rústica, considerando-se o espaço físico-natural, tornando-se mais
adaptada à instalação de novas famílias, além das famílias-de-santo já instaladas ali,
transformando a localidade no bairro do Engenho Velho da Federação.
Esta dinâmica é uma das sistematizações da nossa proposta, na nossa interpretação deste
urbano, partindo destas relações sociais negras, procurando, no âmbito urbanístico,
conceituar uma forma urbana negra. Como parte do objetivo da tese, a pesquisa pretendeu
pensar na forma urbana existente no bairro e que foi constituída compartilhando distintas
referências culturais. Neste ínterim, a pesquisa ressalta e explora aspectos das
africanidades no Brasil e o quanto estes direcionam a constituição dos bairros ocupados
autoconstruídos por grupos sociais negros, por meio de sua forma urbana negra.
34
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Tratamos de populações negras, cujo recorte perpassa pela história e da cultura destas
populações, tendo como base conceitual a ancestralidade, representada pela energia vital,
para analisar a espacialidade destas populações, evidenciando esta forma de fazer o
urbano, a partir de Lefebvre, como um diferencial.
Para Lefebvre, o urbano se define como objeto através do qual as diferenças são postas à
prova, podendo confirmar-se ou anular-se. No caso do Engenho Velho da Federação, são
os terreiros os irradiadores de valores que confirmam a diferença, como um bairro negro,
distinto de outros bairros, cujas referências culturais não perpassam (ou pouco perpassam)
pelas africanidades.
Tais estudos não devem ser considerados irrelevantes, pois nos referimos a dados históricos
de um contingente populacional (africanos e descendentes) que correspondia a 80% da
população brasileira no período da Proclamação da República, cuja supremacia populacional
permanece nos dias atuais, quando 51% da população se autodeclaram afrodescendentes. A
população por Cor no Brasil é composta por Negros (Pretos e Pardos): 50,7%; Brancos:
47,7%; Amarelos: 1,1% e Indígenas: 0,4%, segundo dados do Censo 2010 (IBGE).
8
São diversas entidades e ong’s representativas dos movimentos sociais negros, em que destacamos o Ilê Aiyê,
o Movimento Negro Unificado (MNU), o Coletivo de Entidades Negras (CEN), a União dos Negros pela Igualdade
(UNEGRO). Dentre os pesquisadores sobre os movimentos sociais negros destacamos:
FRANCISCO, Dalmir. Negro, afirmação política e hegemonia burguesa no Brasil. Dissertação de Mestrado
em Ciência Política. UFMG: 1992.
PEREIRA, Amauri Mendes. Cultura de Consciência Negra: pensando a construção da Identidade Nacional
e da Democracia no Brasil. Dissertação de Mestrado em Educação. UERJ: 2001.
35
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
No entanto, não são apenas os números da população negra apresentados nos censos
demográficos do IBGE que nos pautam para este estudo: é o histórico de resistência
política, cultural e de valores civilizatórios destas populações que, mesmo em condições da
subalternidade imposta, sempre atuaram como sujeitos sociais, mostrando-se presentes em
nossas cidades através dos espaços autoconstruídos de moradia, na produção e
apropriação do espaço urbano constituído por estas populações.
Sob este enfoque específico, verificamos que a cultura nacional, em seus momentos de
tentativa de homogeneização das ideias sobre cultura, foi naturalizada, ao se negligenciar o
patrimônio cultural africano e seus valores filosóficos e civilizatórios, perdendo-se
entendimentos importantes de como se constitui a cultura brasileira em suas especificidades
e suas decorrências no Brasil.
Carlos Guilherme Mota (1985) nos apresenta a noção de que “a” Cultura Brasileira foi
constituída historicamente no discurso ideológico de segmentos altamente elitizados da
população, de modo a dissolver as contradições reais da sociedade, sobretudo à época do
Estado Novo. O Estado incorporou ideólogos, sobretudo Caio Prado Jr., Gilberto Freyre e
Sérgio Buarque de Holanda, que elaboraram uma noção abrangente e harmoniosa de cultura:
uma noção plástica, ampla, que abarcasse as disparidades sociais, econômicas e étnicas.
A noção de Cultura Brasileira surge como uma fabricação histórica forjada por um conceito-
chave suficientemente sofisticado para denominar o "todo sociocultural" e incluir o Brasil no
concerto da sociedade dos Estados-nação, conferindo-lhe identidade geopolítica (MOTA,
1985). Segundo Castro (2010), a ideia de Estado-nação surge no contexto das potências
europeias do século 19, ao findar o colonialismo, estando relacionado à expansão do
imperialismo, tanto no continente europeu, quanto fora dele. Desta forma, o Brasil estaria
alinhando-se (e submetendo-se), mais uma vez, às influências europeias.
36
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
E também como parte desta unicidade do discurso, Sodré (1982 [1977]) trata a questão da
mídia televisiva. Na sua ótica, não há resposta do público, não há diálogo: há uma
intransitividade da fala, a ideologia televisiva como uma racionalização modernizadora da
anulação da possibilidade de resposta por parte do público.
A pesquisa, expressa aqui em forma textual, está organizada em cinco capítulos, além da
Apresentação, da presente Introdução e das Conclusões.
9
Pôr o percentual de população negra da Bahia (Censo 2010).
37
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Por fim, a relação da bibliografia consultada e citada na pesquisa, disposta nas Referências
Bibliográficas.
38
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
As cidades são demarcadas por espacialidades enquanto suportes físicos das relações
entre grupos sociais, que são marcados por vínculos identitários desenvolvidos ao longo do
tempo. Temos aqui, em nossa pesquisa, populações negras como grupos sociais
identitários.
Neste subitem vamos apresentar, sob os interesses da nossa proposta, autores utilizados e
adotados para o entendimento da problemática da pesquisa, compondo a história urbana de
Salvador, os contextos das populações negras e os terreiros.
Esta pesquisa apresenta uma perspectiva interdisciplinar, com a qual buscamos uma
apreensão sistêmica, incorporando conceitos de estudos culturais, sociológicos,
geográficos, entre outros, para uma interpretação urbanística de bairros produzidos por
segmentos populacionais negros, em uma conjunção de grande diversidade de formas de
ocupação urbana nos aspectos sociais, espaciais, culturais e históricos.
10
O livro é parte de uma série de publicações sobre a cidade de Salvador, na ocasião da comemoração do
Quarto Centenário, e denota uma idealização do processo cultural brasileiro, uma vez que o texto é influenciado
pelo mito da democracia racial e exalta a [inexistente] convivência harmoniosa entre negros e brancos.
39
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
O Professor Milton Santos com o livro O Centro da Cidade do Salvador, resultado de sua
tese do e editado em 1959, busca uma interdisciplinaridade entre Geografia Urbana e
História na pesquisa da evolução do fenômeno urbano de Salvador. Milton Santos destaca
as caraterísticas do sítio, o sentido e o ritmo desta evolução da cidade, bem como seu
dinamismo nas suas forças de transformação e de inércia e as funções que a cidade vai
desempenhando ao longo dos séculos.
Katia Mattoso, em seu livro Bahia, século XIX: Uma província no Império, publicação de sua
tese em História defendida em 1986, oferece informações detalhadas do perfil populacional
de negros africanos e descendentes (escravizados, libertos e livres), brancos e indígenas.
Mattoso busca preencher os interstícios da ‘história dos acontecimentos’ pontuais da cidade,
percorrendo temas sobre organização do Estado, economia, família, religião, habitação,
compondo uma historiografia inovadora para os estudos da cidade.
Estes trabalhos, entre outros, ofereceram subsídios para textos mais recentes, também
derivados de teses de doutorado, como o de Ângela Gordilho-Souza, Limites do Habitar,
com 1ª edição em 2000, que propõe um panorama da habitação popular da cidade de
Salvador, em que a autora explora a configuração urbana contemporânea da cidade através
de contornos da segregação e exclusão; e o trabalho de Eloísa Pinheiro, Europa, França e
Bahia, com 1ª publicação em 2002, fazendo uma análise da transferência e da adaptação de
modelos europeus no processo de modernização da cidade de Salvador.
11
Além dos trabalhos acima citados, são raros os estudos desenvolvidos no PPGAU/UFBA que relacionam
populações negras e espaço urbano, em que citamos a nossa pesquisa (RAMOS, 2007). A temática sobre
urbanismo e o candomblé é abordada na tese de Thais Portela, em 2007, e a arquitetura dos terreiros só
reaparece também em 2007 e 2013, com as pesquisas de mestrado e doutorado de Fábio Velame.
40
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Ainda na linha de produção de textos que contextualizam as populações negras nas áreas
urbanas, a arquiteta Raquel Rolnik (1989; 1999) nos oferece, em estudos voltados para São
Paulo e Rio de Janeiro, um panorama bastante elucidativo, no âmbito das territorialidades
negras face à urbanização a partir de meados do século 19.
41
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Temos também o livro recente de Antônio Risério (2012), A Cidade no Brasil, em que o
autor expõe reflexões sobre a complexidade do processo brasileiro na formação urbana,
social e cultural, trazendo também o exame, sob novas luzes, da presença africana.
Perpassando por estas reflexões, estão as análises das relações étnicas no Brasil,
atravessando as concepções e reprodução do conhecimento. Tal aprofundamento foi, em
parte, também adquirido na disciplina Cultura Brasileira, cursada, no início do curso do
doutorado, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do
Ceará, ministrada por Henrique Cunha Junior, como complementação na formação
interdisciplinar e interinstitucional.
Estas análises das relações étnicas nos ofereceram subsídios para os desdobramentos da
noção de cultura brasileira, cuja referência teórica perpassou por ensaios de Carlos
Guilherme Mota, já abordada anteriormente.
Neste ínterim, vamos combinar nesta tese as premissas conceituais como populações
negras e espacialidades urbanas, culturas negras e africanidades, formas e processos
urbanos, como referências teóricas para o desencadeamento da pesquisa, sendo que tais
conceitos serão sempre articulados a partir de uma perspectiva, segundo Guerreiro Ramos,
‘de dentro’ da cultura de base africana e afrodescendente (RAMOS, 1997 [1964]).
Marco Aurélio Luz, filósofo e professor, explora, com o livro Agadá: dinâmica da civilização
africano-brasileira na sua 1ª edição em 199512, o universo mítico-simbólico das narrativas da
tradição africana, tendo o mito como “principal discurso capaz de transmitir a especificidade
da concepção de mundo constituinte do processo civilizatório negro-africano” (2000, p. 21).
12
Originalmente apresentado como Tese de Doutorado em 1988.
13
Diante da imensidão do continente africano e das múltiplas expressões culturais, Oliveira elege os impérios de
Gana (séculos 10 a 12), do Mali (séculos 13 a 14) e de Songai (séculos 14 a 15) nos respectivos períodos de
apogeu. Estes impérios são destacados pelo autor porque constituíram uma continuidade de resistência à
dominação árabe. A Costa Ocidental Africana (Reinos Ashante, Dahomey, Oyó e Benin) e a África Bantu (Reino
do Congo e os Estados de Ovibundo, Ndongo, Kacongo, Luanda e Luba) também constituem elementos
estruturantes das sociedades africanas.
42
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
relações, representando princípios que orientam o viver africano, seu modo de organização
social, seus valores e formas de ver e entender o mundo. O mesmo autor, em A
Ancestralidade na Encruzilhada (2007), elucida a ancestralidade como “o principal
referencial para o negro brasileiro, tanto na vivência profana, quanto na experiência religiosa
[...] é a principal componente da cosmovisão africana” (p. 182).
O suporte teórico antropológico dos fundamentos sobre a Cultura Tradicional Bantu (1985) é
tomado do missionário católico Padre Raul Altuna, que nos oferece, desde a sua
constituição histórica no continente africano, uma análise crítica das estruturas sociais que
caracterizam os povos Bantu.
Além dos eixos centrais de articulação teórica, outros autores nos deram contribuições
complementares através de análises e/ou descrições de experiências urbanas africanas.
Tomamos textos do arquiteto e professor Sandro Bruschi sobre cidades antigas africanas,
como também de autores africanos, com suas reflexões sobre as urbanizações recentes em
países do continente africano, como Chukwudum Okolo, Paul Goodwin e Alexandre Baia.
Assim temos, novamente, Milton Santos com os textos Por uma Geografia Nova, Espaço e
Método e A Natureza do Espaço. Estas obras, entre outras do autor, nos oferecem a
construção dos conceitos de espaço e forma-conteúdo, aqui aproveitados para nossas
construções conceituais.
Aldo Rossi, arquiteto italiano, aponta, no livro A arquitetura da Cidade, publicado na versão
original em 1966, a cidade como construção no tempo, da vida da coletividade, estando
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
ligada a fatos e a lugares como memória coletiva dos grupos, sendo a cidade o lócus desta
memória: “a cidade é o lócus da memória coletiva” (2001, p. 198). Para Rossi, a cidade
cresce sobre si mesma; a cidade, como obra de arte, é a sede deste patrimônio cultural
dinâmico, registro de diversos tempos históricos e das manifestações da cultura dos diversos
grupos sociais, na qual a memória coletiva se torna a própria transformação do espaço. Este
entendimento do autor, com seus desdobramentos, interessa a nossa pesquisa.
O sociólogo e filósofo Henri Lefebvre nos oferece O Direito à Cidade e A Revolução Urbana,
ambos publicados como reflexões sobre as revoltas de estudantes franceses e os
acontecimentos de 1968. Estes textos que tomamos aqui discutem o urbano, não no sentido
urbanístico imposto pela sociedade industrial - passagens, trocas, consumo, distribuição - mas
na superação desta. Lefebvre segue no sentido da sociedade urbana, no campo do possível,
do devir, como uma revolução urbana.
De Angelo Serpa, entre os vários textos adotados, destacamos o Cidade Popular: trama de
relações sócio-espaciais, publicado em 2007, no qual o autor trabalha no aprofundamento
teórico-conceitual da noção de bairro, sendo este, em parte, compartilhado por nós.
Em relação à forma urbana, adotamos José Lamas, sendo uma das referências na área da
Arquitetura e Urbanismo. Optando pela análise da dimensão física e morfológica da cidade
como entendimento cultural da cidade, o autor contribui para nossa pesquisa no que se
refere a definições conceituais da forma urbana.
Assim, estes autores e textos, entre outros, nos apoiaram na contextualização cultural, histórica,
política e econômica do surgimento do bairro em estudo, o Engenho Velho da Federação, na
cidade de Salvador, bem como na análise dos elementos que constituem sua forma urbana.
Na construção do conceito da forma urbana negra, como formação espacial que os negros
criaram, em correspondência à forma social negro-brasileira de ser e estar no mundo,
segundo Sodré (1988), expomos os referenciais de partida para seu entendimento e
formulação de nossos próprios conceitos.
Deste modo, produzimos na pesquisa conceitos para explicar a nossa reflexão sobre a
forma urbana negra. Formulamos conceitos complementares mais simples que evoluem em
formulações paulatinas (amadurecimento do conceito face ao amadurecimento da
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Os conceitos, embora destacados e nomeados, não são desvinculados entre si: fazem parte
de um mesmo relacionamento com o real. (Re)combinando estes conceitos subjetivos e
orientadores, teremos o arcabouço do conceito estrutural, a forma urbana negra.
Como já salientado, tomamos Muniz Sodré e nos baseamos em sua proposta de pensar uma
forma social negro-brasileira como modo de organização social de populações negras a partir
das comunidades litúrgicas de terreiro. Os terreiros são, assim, o meio pelo qual
empreendemos fazer uma leitura do Engenho Velho da Federação. Assim, apontaremos o
referencial metodológico adotado, no subitem a seguir.
Pautamos anteriormente que tomamos os terreiros como o meio pelo qual iremos fazer uma
leitura do bairro do Engenho Velho da Federação. Nossa compreensão é a de que os
terreiros se constituem como formas-conteúdo e que, através dos seus conteúdos, sua
forma se expandiu no bairro. Seus conteúdos constituem uma cultura de terreiro, uma
cultura negra específica, ainda que submetida às variações próprias da dinâmica cultural.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Este legado político-cultural negro foi árdua, mas exitosamente construído, conquistado,
reelaborado, negociado, através do jogo negro, que combinou “as ideias de limite, de
liberdade e de invenção” (SODRÉ, 1988, p. 23).
O terreiro, através do candomblé, é parte fundante deste jogo negro, representando um centro de
resistência política e cultural, em sua defesa, manutenção, incluindo as negociações próprias da
dinâmica da cultura, e sua difusão. Para além da responsabilidade religiosa e cultural, atuam como
sedes de construção social de conhecimentos, sendo ambientes da vida comunitária que
desempenham ações no âmbito socioeconômico e de relevante importância nas comunidades
onde estão inseridos, consistindo em referências locais como prestadores de serviços à vizinhança.
Embora os terreiros estejam relacionados com outros terreiros, como mostra o estudo de
Rafael Oliveira (2005), que evidencia a rede de relações do Terreiro da Casa Branca15, cada
terreiro possui autonomia própria. Os terreiros apresentam particularidades, pois cada casa
possui sua peculiaridade no âmbito social, cultural e religioso, como característica da
religião, uma vez que o candomblé não é constituído por um poder religioso centralizado
sobre os terreiros.
14
Um aspecto pouco levantado sobre derivações da culinária africana que é chamada no Brasil de ‘comida
baiana’ é que, para o preparo dos pratos culinários, vários produtos agrícolas foram trazidos da África: o dendê
em que permanece a produção artesanal do óleo (alimentação), sendo que boa parte dos produtos derivados do
dendê é resultado da produção industrial sob a forma de cosméticos e combustíveis. Não originário do continente
africano, mas amplamente cultivado, temos também o coco, com inúmeros derivados (sabão, óleo, leite,
cosméticos, resinas, etc.), que culturalmente é amplamente explorado pelos africanos e pelos afrodescendentes,
como é o caso do Brasil. Utilizando o título do livro de Manoel Querino, o africano foi “O colono preto como fator
de colonização brasileira”, tomando, por exemplo, mesmo que introduzidos no Brasil por portugueses, os vastos
coqueirais que são plantios que africanos e seus descendentes o fizeram para, então, produzir o sabão de coco.
15
Oliveira (2005) identifica várias redes de terreiros a partir da Casa Branca, a partir do qual o autor denomina de
‘redes de parentesco’ ou de ‘relações de parentesco’: terreiros irmãos (casas que têm o mesmo axé do Terreiro
da Casa Branca); terreiros irmãos históricos, irmãos recentes, sobrinhos, terreiros filhos, terreiros netos,
bisnetos, de compadrio (mães e pais-pequenos); rede de relações de identidade ou diplomáticas; “parentes” e
vizinhos; amigos; entre outros.
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Soares (2012) destaca Ruth Landes (1967) quanto ao registro desta autora, já em 1940, em
relação aos templos e suas finalidades rituais e que também existiam como centros sociais
e moradias dos devotos.
Temos assim que o terreiro engendra uma rede geradora de integração social, no qual
muitos deles exercem papel de apoio social que se dava, e se dá, em todas as
intermediações das necessidades humanas, desenvolvendo estratégias coletivas para
superação ou minimização das dificuldades que caracterizam as precariedades locais:
espiritual, alimentação, cuidados com a saúde, moradia, refúgio, etc. Era e é um trabalho
social sem ser instituído como tal.
Hoje os desdobramentos dos terreiros se somam a outros, por meio de doação de alimentos
com distribuição de cestas básicas, promoção de cursos profissionalizantes como oficinas
de corte e costura, bordados, artesanatos, cursos de informática, culinária baiana, etc.
possibilitados com a realização de convênios com ong’s, órgãos públicos, e demais
entidades de associação civil, além de contatos e informações relativos ao acesso ao
mercado de trabalho, formando redes de solidariedade e reciprocidade. Muitos terreiros,
enquanto comunidades religiosas, são registrados como sociedade civil na condição de
prestadores de utilidade pública.
Deste modo, todas estas articulações iniciadas no terreiro em meio ao contexto comunitário,
no sentido da comunalidade, desencadeiam uma produção de conhecimento a partir da
realidade das pessoas.
Através da família-de-santo, o terreiro atua como cuidador das aflições físicas e espirituais dos
adeptos e frequentadores dos terreiros, bem como é mantenedor da cultura afro-brasileira.
Tomaremos aqui esclarecimentos de Vivaldo da Costa Lima no seu estudo sobre família-de-
santo, em que buscamos aqui relações semelhantes adotadas em diversos tipos de nação de
candomblé.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A família-de-santo, segundo Costa Lima (1977), é um grupo religioso do candomblé que atua
como força efetiva de socialização cujas relações são reguladas pela autoridade e disciplina
exercidas entre pais e mães-de santo sobre filhos e filhas-de-santo: grupos baseados na livre
associação na religião do candomblé e sob influência destas ‘relações de parentesco’. O
desdobramento destas relações possibilita prestígio e mobilidade dentro de um grupo social,
sendo muitas vezes o referencial social mais importante para os adeptos do candomblé.
A autoridade das lideranças religiosas perpassa por administrar as dificuldades, pois, como
infere Costa Lima, os candomblés, como qualquer outro grupo organizado, são centros de
atritos e soluções, de crises e de equilíbrio.
16
Segundo a Makota Valdina Pinto, ser chamada de sacerdotisa é ser caracterizada por outras religiões e
enfatiza que acha certo mesmo é ser mãe-de-santo, “que cuida do santo, dá comida p’ro santo”. Costa Lima
(1977) apresenta a origem da palavra ialorixá, em iorubá [nações keto-nagô]: Iya - mãe; orixá - santo → mãe-em-
santidade. E Castro (2001) identifica o cargo de autoridade suprema do terreiro para as demais nações:
rumbondo ou rumbono (étimo fon) entre as nações jêje-mina; nêngua ou tata (étimo banto) entre as nações
congo-angola.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
maior parte das vezes, indiferente à posição que este representa na sociedade global, a
exemplo do nível de instrução, origem social ou de renda, o que para nós caracteriza esta
organização como grupo social. A família-de-santo é, portanto, uma comunidade religiosa com
posições de hierarquias bem definidas e meticulosamente resguardadas para cada um de
seus membros, em que são consideradas também as condições de gênero.
Além dos ensinamentos morais do candomblé, estes valores da organização tão bem
demarcados no terreiro se irradiam no entorno dele. Além da irradiação destes valores pelo
terreiro em si, como uma instituição bem definida, há também os desdobramentos através de
casas-de-santo, que não possuem a estrutura de um terreiro. E ainda pelas inúmeras
rezadeiras/benzedeiras existentes e, mais marcante na figura masculina, os raizeiros.
O candomblé é uma invenção brasileira, uma produção da diáspora africana no Brasil cuja
matrizes religiosas são africanas. Costa (1989) nos informa que “o primeiro registro baiano
da palavra candomblé designando um local de culto africano apareceu em um documento
17
policial se referindo a um terreiro no Cabula, em 1826” (COSTA, 1989, p. 126).
Anteriormente, os cultos eram chamados de batuques.
Segundo Costa Lima (1977), o candomblé envolve mitos, cosmogonias, rituais e éticas que
compõem o corpo ideológico de um grupo religioso [nação de candomblé]. Como corpo
social, o candomblé é submetido, como qualquer outra instituição social, às dinâmicas
socioculturais, como realidade social atuante, viva.
17
Candomblé situado na freguesia de Santo Antônio, cujo 2º distrito apresentava caráter semi-rural.
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Costa Lima também esclarece que este processo, no entanto, não eliminou, de todo, a
consciência histórica de muitos descendentes de africanos em relação às nações políticas
africanas.
Em Salvador, podemos dizer, de forma generalizada, que as nações mais conhecidas são a
angola, jêje e keto18. A nação angola é herdada dos povos da área correspondente à região
africana que engloba o Congo e Angola, agrupando as etnias que utilizam como idioma a
família linguística Bantu; a nação jêje é proveniente do antigo Reino do Daomé, onde hoje é
o Benim e tem como idioma o fon ou ewé; a nação keto é a herança da área que
corresponde hoje à Nigéria e que tem como língua o iorubá.
As nações criaram repertórios próprios na forma de saudar suas divindades - orixás (nação
keto), inquices (nação angola), voduns (nação jêje) - através de específicos rituais e objetos,
toques, línguas, cânticos, danças, comidas, vestimentas, despachos, além da etnobotânica.
Na ética do candomblé, seja qual for o corpo ideológico, a nação, o sagrado é permeado
pela relação com a natureza, sendo esta divina e ativa, meio de troca de energia vital. As
plantas são parte desta natureza, como são também pedras, animais, águas - fontes, rios,
cachoeiras, mares - e são incorporados aos ritos como meio de assentamento, renovação e
aumento da energia vital.
áreas de mata - áreas onde se encontram árvores, plantas e corpos d’água (fontes, rios e
riachos, espelhos d’água, cachoeiras) que simbolizam, materializam ou possuem atributos
vinculados às próprias divindades cultuadas, profundamente identificadas com os
elementos naturais;
18
Entre os angolas, por exemplo, há subdivisões como congo e congo-angola; no jêje existe jêje-mahi e jêje-
savalu. E ainda existem outras ramificações como ijexá, caboclo, alaketo, amburaxó, cultos aos eguns, entre outros.
19
Anexo I da Nota Técnica Nº 02/2010 SEDUR, de nossa autoria na ocasião de prestação de consultoria na
Diretoria de Programas e Projetos Habitacionais (DPPH), referente ao processo de relocação do Terreiro Unzó
Gunzelê Kuna Zambí, localizado em Águas Claras, Salvador.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
espaços edificados públicos e/ou semi-públicos: são espaços sagrados como o barracão de
festas, a cozinha, salas de recepção, salas de consulta e, em alguns casos, também
equipamentos culturais e educacionais onde se desenvolvem atividades de cunho
sociocultural em benefício da população que vive no entorno do terreiro e;
Para Sodré, a influência do terreiro não é apenas religiosa, mas também ‘cultural’, pois não se
trata apenas de uma comunidade litúrgica, mas também de um lugar de difusão cultural,
ultrapassando as fronteiras físicas do terreiro, projetando-se no pensamento e práticas da
sociedade global (SODRÉ, 1988). Neste autor, temos a relação do terreiro com a cidade no
sentido da profusão do pensamento negro africano, considerando o terreiro como associação
litúrgica organizada - transferiu-se para o Brasil grande parte do patrimônio cultural negro-
africano. A poderosa condensação espaço-cultural de uma reterritorialização operada pelo
terreiro através do sagrado, diferente de um espaço geométrico, abstratamente homogêneo e
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Para Sodré (1988), os terreiros são como um continuum africano, como estratégia de
sobrevivência dos negros africanos, transformam os modos de ocupação e de construção
do espaço urbano, prática realizada socialmente, na condição específica da forma social
negro-brasileira, acumulando histórias, vivências e experiências cotidianas (terreiros como
produtores do espaço).
Esta tônica se expande para o espaço urbano adjacente sob a forma de bairros negros
autoconstruídos, cujo processo de ocupação e de construção não é individual: é uma ação coletiva.
Para Sodré, o patrimônio simbólico negro brasileiro afirmou-se aqui como território mítico-
religioso, para sua transmissão e preservação. Para os membros desprovidos de uma
civilização e de um território físico ficou a possibilidade de se “reterritorializar” na diáspora
através de um patrimônio simbólico consubstanciado no saber vinculado ao culto de muitos
deuses, à institucionalização das festas, das dramatizações dançadas e das formas musicais.
Os terreiros são lugar de culto às divindades africanas, inquices, orixás e voduns, e também
aos encantados20. Além de lugar de “morada” para estas entidades, através de seus
assentamentos, os terreiros também sediaram moradas para as famílias-de-santo, bem
como para famílias não diretamente ligadas à religião.
Segundo Antônio, mais conhecido por Tonho, filho-de-santo do Terreiro da Casa Branca e
sendo um dos nossos entrevistados, essa sempre foi a lógica dos sacerdotes dos terreiros,
a de que o terreiro povoaria o entorno a partir dele, até como estratégia de consolidação e
permanência. A ocupação pelos terreiros se deu da seguinte maneira:
20
Segundo o imaginário social, os encantados são entidades que passaram para o plano espiritual por meio de
algum encantamento, sendo cultuados, sobretudo, nos terreiros de umbanda. Assim temos o Caboclo, o Preto
Velho, a Pomba-gira, entre outros.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Nos primórdios, segundo Costa Lima (1977), os filhos e filhas-de-santo passavam todo o
período de festas nos terreiros, mas com a necessidade de trabalhar e cuidar dos filhos,
sobretudo as filhas-de-santo, as moradias próximas ao terreiro facilitavam a participação nos
trabalhos nos terreiros nos dias próximos às obrigações e às festividades.
Assim, a ocupação residencial nas franjas e no entorno dos terreiros se iniciou pela
manutenção da ancestralidade, alimentadas pela convivibilidade. As famílias-de-santo vão
atraindo outros moradores, não necessariamente vinculados aos terreiros, mas que, pelas
relações de amizade e afinidade, ou até em casos de necessidade financeira, se integraram
às áreas e aos princípios do terreiro: o terreiro povoa!
Para nós, esta aglutinação é particular, oferecendo especificidade ao bairro negro, originado
pelo terreiro. Baseamo-nos em Sodré:
É deste modo que a convivência ‘civil’ das famílias-de-santo, em diálogo com a vida religiosa,
expande-se para fora dos terreiros, através de uma educação doméstica, familiar e comunitária.
A instalação dos terreiros, formando comunidades de terreiro, facilitava e minimizava as
dificuldades, de certa forma, à chegada de famílias no bairro, ligadas aos terreiros ou não,
sendo que esta conduta dos terreiros segue uma coerência cultural afro-brasileira.
Tomando o raciocínio de Rossi, temos que a cidade, como obra de arte, é a sede deste
patrimônio cultural dinâmico, cuja memória coletiva se torna a própria transformação do
espaço. Outra reflexão de Rossi, é que os elementos primários, núcleos de agregação, são
aqueles elementos capazes de acelerar o processo de urbanização; atuam como
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Deste modo, articulando com Rossi, em relação a nossa escala de bairro, temos nos terreiros
os elementos primários que atuaram na dinâmica do bairro do Engenho Velho da Federação,
sendo simultaneamente uma edificação e um lócus, tal qual a proposta de Rossi.
Assim, temos o terreiro como um fato urbano, nos termos de Rossi, caracterizado por uma
arquitetura própria, por uma forma própria, singular, dado os valores espirituais da memória,
do produto da coletividade e da relação da coletividade através de cada fato urbano.
De fato, os terreiros nas suas grandes proporções com a implantação nos terrenos com as
casas de santo, seu entorno paisagístico com vegetações de médio e grande porte e demais
elementos sagrados geraram um diferencial espacial, um fato urbano, distintos da
implantação das casas de moradia de pequeno e médio porte do entorno. Não só as
dimensões, mas outras diferenciações como a relação entre cheios e vazios providos pelas
áreas não edificadas em torno do conjunto edificado. E ainda, como já articulados por Dias
(2003), existem os ‘simbolismos territoriais’ que são elementos exclusivos dos terreiros,
representativos das entidades ou dos rituais. Dias aponta a bandeira branca, as quartinhas,
o ojá e os mariôs.
E assim lamentamos o caráter artístico, unicum, do que poderia ter os terreiros, muito mais
do que apresentam atualmente, nas referências estéticas africanas ou afro-brasileiras. Em
relação aos próprios templos, Risério ressalta que até mesmo os terreiros foram proibidos de
qualquer expressão arquitetônica africana. O autor nos apresenta, no contexto do processo
de independência, o artigo quinto da Constituição Política do Império no Brasil (2012, p. 160):
Ou seja, os terreiros não poderiam assumir a forma exterior de templo. Assim, lamenta:
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Os terreiros do Engenho Velho da Federação são uma centralidade, uma vez que, a partir
da instalação de terreiros como nucleadores urbanos, dão surgimento ao bairro. Podemos
também dizer que os terreiros são uma ‘centralidade lúdica’, tema que Serpa (2008)
desenvolve a partir de Lefebvre no contexto da cidade contemporânea, sendo baseada nas
formas de reprodução da vida urbana, no valor de uso e na apropriação, mas também como
produção do espaço. O terreiro influencia a espacialidade ao seu redor.
Para compreender como se configuram este bairro negro, tomamos, portanto, a inserção de
terreiros de religiosidade de matriz africana e sua influência na consolidação de espaços
urbanos ao seu redor, verificando sua interferência na estruturação do bairro, como uma das
resistências promovidas por populações negras.
Para Lefebvre (1991), surpreende-se a forma em sua relação com o “real” e, para
apreendê-la, é preciso uma “cultura”. Nestas acepções ressaltamos que temos diferentes
produções de forma espacial, desde aquela gerada pela cultura àquela pautada pela
ideologia do progresso, do desenvolvimento econômico. Sodré (1983), assim, aponta a
cultura “como um modo de relacionamento com o sentido não inteiramente recoberto pelo
campo das relações de poder” (p. 10).
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Para Sodré (1988, p. 10), ideologia é “lógica de objetivação do mundo” ou ainda “a forma
moderna das relações de poder sobre o sentido no Ocidente” (SODRÉ, 1983, p. 54). Se a
forma espacial vem sendo gerada previamente, a partir de um relacionamento com o
irreal, fictício, ilusório, temos o que está representado no diagrama da Figura 7:
É neste sentido que o urbanismo se define, a partir de um ideal, de uma ideologia, de uma
abstração, para gerar a forma espacial materializada em cidade.
Sennet (2008) discorre sobre a passividade dos corpos urbanos nos tempos modernos,
sobretudo a partir da Revolução Francesa, destacando a passividade individual e a
insensibilidade no espaço urbano. O ideal da Revolução Francesa - liberdade, igualdade e
fraternidade - correspondia espacialmente a um espaço total, sem obstrução nem limites,
onde tudo fosse transparente e nada escondido. Foi assim que se iniciaram, em 1791, as
derrubadas de Paris:
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Para Sennet (2008), a liberdade proposta pela Revolução mostrou como as multidões se
acalmam nos grandes locais abertos: “o espaço da liberdade pacificou o corpo revolucionário”
(p. 301). Num plano abstrato e ideológico, parecia fazer sentido a conexão entre o corpo em
movimento livre, a liberdade, e o espaço vazio.
Numa reflexão sobre a transformação rápida de Londres com as inovações tecnológicas que
ditavam um novo ritmo à cidade, Sennet, a partir do romance de E. M. Forster (Howards
End, escrito em 1910), destaca a apatia dos sentidos, como consequência do
“individualismo e velocidade [que] amortecem o corpo e não permite que ele se vincule”
(SENNET, 2008, p. 327) ao espaço da vida moderna.
Cada forma, para Lefebvre, se apresenta em sua dupla existência: mental e social, sendo
que as formas urbanas são dadas mentalmente pela simultaneidade dos acontecimentos,
das percepções, dos elementos de um conjunto no ‘real’, e, socialmente, são marcadas pelo
encontro, pela reunião.
Nesta perspectiva da dupla existência da forma, tomamos os terreiros que são utilizados
enquanto forma, tanto pela maneira de como se deu sua inserção urbana, quanto por sua
organização espacial interna, na formação urbana do bairro do Engenho Velho da
Federação, se projetando na dinâmica cultural comunitária. Deste modo, o terreiro é uma
premissa metodológica que nos pauta para este estudo do urbano.
Ainda sob o escopo do terreiro, como premissa metodológica, no âmbito dos conteúdos,
temos, como princípios norteadores, em sua operacionalização, a Ancestralidade e a
Oralidade. Estes princípios são característicos de diversas culturas (ameríndias, orientais,
entre outras), estando aqui destacadas na forma como foram organizadas por grupos de
descendência africana, que as utilizaram como meio de relacionamento com o real,
refletindo-se no modo como produzem seus espaços, inclusive os espaços urbanos.
21
Notas de Aula da Disciplina Apreensão da Cidade Contemporânea (PPGAU/UFBA), ministrada pelas
professoras Rachel Thomas e Paola Jacques.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Um conjunto de conhecedores da cultura de base africana como Júlio Braga, Marco Aurélio
Luz, Eduardo Oliveira indicam caminhos de utilização do pensamento diaspórico africano na
elaboração das ideias sobre a sociedade brasileira.
Tomando de início o antropólogo Júlio Braga (1995), em seu estudo sobre ancestralidade
afro-brasileira, o autor problematiza sua reflexão sobre o conteúdo e significado das culturas
africanas no processo civilizatório brasileiro, em que aparece a noção de ancestralidade:
Esta África mítica, e também ideológica, é parte, segundo o etnólogo e cientista político
cubano Carlos Moore (2010), de uma visão idílica deste continente que as diásporas
africanas escravizadas tiveram que forjar pra existir, resistir e se manter:
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Para preservar o rico legado ancestral que nos permitiu atravessar o estado
de escravidão racial nas Américas por mais de quatro séculos, foi necessário
idealizar esta África da qual tínhamos sido arrancados para sempre. A África
aparece, nessa visão, como um lugar quase sem tensões internas ou
contradições inerentes à própria experiência histórica (MOORE, 2010, p. 51).
Para Oliveira (2007), a ancestralidade é fundada no ser africano que reverencia seus
ancestres, seguindo-lhes os passos e preceitos. Envolve o princípio da senhoridade, do
respeito aos mais velhos, do conhecimento passado de geração a geração, obedecendo à
primazia dos antigos como principal agente no processo de transmissão, da hierarquia
estruturada que confere lugar privilegiado aos ancestrais.
Deste modo, a ancestralidade também explica o sentido de família, sendo que esta não é
determinada apenas pelos laços de sangue, pela consanguinidade. A família pode ser
constituída pela memória ancestral em comum, pelo convívio social, pela identidade territorial.
Segundo Cunha Junior (2011), a ancestralidade implica numa visão dinâmica dos coletivos
humanos em relação às localidades e aos tempos históricos nestas localidades. Pensar a
história da população negra é pensar esta história baseada nesta perspectiva ditada pela
ancestralidade. A ancestralidade determina a essência de uma pessoa e de sua
comunidade. O ancestral participa da comunicação entre o mundo visível e o invisível 22,
estando entre a vida e a morte, permanentemente presente na comunidade, zelando por ela.
22
Segundo Sodré (1988), visível e invisível são como duas metades de uma mesma cabaça, antes unidas,
depois separadas pela violação de um tabu, segundo mito de origem de criação de mundo; Orum (mundo
invisível) e Aiyê (mundo visível), embora diferentes, interpenetram-se, coexistem.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Segundo Amadou Hampaté Bâ, historiador maliano, a tradição oral é fonte da história e fonte
da cultura, permitindo fazer a história e transmitir a cultura. Os princípios da oralidade são
operacionalizados como transmissão de cultura.
A tradição oral tem como seu principal grupo de expressão os “guardiões da palavra falada”,
responsáveis por transmitir costumes, crenças e valores, de geração em geração, mantendo a
coesão grupal. Os que detêm o “conhecimento da palavra falada” por revelação divina devem
transmiti-lo com fidelidade. A palavra tem um caráter sagrado, guardando uma relação direta
da harmonia do homem consigo mesmo e com o mundo que o cerca (HERNANDEZ, 2006).
A oralidade é a palavra que faz parte das práticas políticas, uma vez que as decisões da
família e da comunidade são tomadas em conjunto através de longas discussões, que
também incluem a dimensão dos ancestrais e das forças dos seres da natureza (CUNHA
JUNIOR, 2001). A tradição oral é, sobretudo, a necessidade da presença do outro.
A ancestralidade e a oralidade tomam sentido pela palavra. Além da palavra falada, como
geradora e reprodutora de conhecimento, também têm sentido de palavra o som dos
tambores, os cantos, a dança, o movimento do corpo. Segundo Oliveira (2003), a palavra é
intrínseca à força vital, pois é portadora da força que anima e vitaliza o mundo. Quando se
23
Os alfabetos utilizados nas sociedades africanas foram diversos em todas as partes do continente, em
diversos períodos históricos (CUNHA JUNIOR, 2007). Duas das formas mais antigas de escrita da Humanidade
são os hieróglifos dos egípcios e o Ge’ez dos etíopes. As escritas em árabe foram as que tiveram maior difusão
pela África, devido à expansão do islamismo, sendo encontrados Alcorões no Rio de Janeiro e panfletos da
Rebelião dos Malês, na Bahia em 1835, em árabe.
60
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
refere à força vital no pensamento Bantu, ‘ser’ significa ‘força’, isto é, não significa consistir
em, mas sim ação, movimento.
Neste ínterim, a energia vital é parte deste arcabouço e será também fundante para o
entendimento dos conceitos propostos pela pesquisa, como meio de apropriar-se do mundo.
A partir de Tempels, Sodré (1988) salienta o entendimento de força dos Bantu, no qual “o
valor supremo dos Bantu é vida, força, viver fortemente ou força vital [...]. O conceito de força
está ligado ao conceito de ser mesmo no pensamento mais abstrato sobre a noção de ser”
(TEMPELS apud SODRE, 1988, p. 85-86). Sodré também aponta que:
Sodré (1988) chama atenção para “uma interpretação europeia que confundiu a ideia
africana da força como a de uma alma da natureza” (p. 86). Para os Bantu, não há um
conceito universal de força, pois as coisas particulares consistem em forças diferenciadas:
“Deuses, homens vivos e mortos, plantas, animais, minerais são seres-força diferentes” (p.
86), existindo, assim, diversas qualidades de força [ntu], com designações diversas: “força
dotada de vontade e inteligência chama-se muntu (pessoa), força sem razão, sem vida,
chama-se bintu (coisa)” (p. 86).
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Na cultura Bantu, Cunha Junior (2011a) destaca que as palavras são a forma de criação da
sociedade e de sua transformação. O Ntu na forma do pensamento das línguas Bantu ou o
Axé na construção dos Iorubás nos indicam a necessidade dinâmica, em que o tempo
presente é a junção do passado com o futuro, dado à circularidade em espiral, sem,
contudo, passar no mesmo lugar, num processo de idas e vindas, resultando numa
constante repetição, relembrando algo já visto ou vivido.
A força pode ser aumentada ou diminuída, sendo afetada por outras forças com as quais
interage. Sodré admite que a posse do axé implica em algo de “poderoso” ou “potente”, pois
se trata de força de realização ou engendramento.
Segundo Sodré, a alegria é o sentimento formado por uma intuição imediata do mundo,
exterminando a representação abstrata:
A ligação com o divino se manifesta pela alegria e pela forma disposta e bem-humorada de
se relacionar com a vida, demonstrando o prazer que é estar vivo, em contraposição a
dogmas de religiões que valorizam os sofrimentos e penitências, desencadeados por
sentimentos de pecados e culpas.
Esta noção de conexão com o divino estando presente em tudo, em todos os atos, em todo
o pensamento de africanos e descendentes, é, portanto, parte das nossas referências
conceituais e metodológicas.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A Afrodescendência (CUNHA JUNIOR, 2001; 2008b) parte de questões lançadas pela Nova
História24, uma corrente surgida no movimento intelectual da terceira geração da Escola dos
Annales na França e que apresenta propostas que questionam a legitimidade da
continuidade narrativa dos grandes acontecimentos e incitam a descontinuidade temporal. A
Afrodescendência, segundo Cunha Júnior (2008b), enquanto metodologia utilizada na
pesquisa, busca uma percepção de mundo a partir das condições culturais e históricas das
populações negras no Brasil, as reunindo pela história e pelos processos de formação de
identidade cultural afrodescendente, valorizando e tomando por base a história cotidiana dos
grupos sociais subalternizados, de modo a formatar um conhecimento dado pela história
local e social.
24
Conforme Cunha Junior (2007a), a ‘História’, enquanto meta-narrativa, demarca uma dominação vigente como
um processo da constituição do Ocidente com a expansão do catolicismo, em que a compreensão de Europa
enquanto continente unificado se dá pela unificação religiosa cristã, que se impôs, sobretudo, contra a religião
das bruxas, cultuada em diversas regiões do continente (BERNAL, 1987 apud CUNHA JUNIOR, 2007a).
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Assim sendo, a partir do nosso lugar social, é que nos posicionamos diante da problemática
desta pesquisa, no que tange a articular fatores para uma representação de bairros negros
que estejam alinhados com o meu lugar de origem, do que eu falo, de onde estou, enquanto
pesquisadora. A elaboração da pesquisa envolve um investimento pessoal, uma vez que
compartilho de experiências de vida semelhantes aos entrevistados, às situações
observadas. Segundo Cunha Junior (2008b), o conhecimento produzido pelo vivido é
também uma fonte de pesquisa.
Deste modo, narramos também nossos referenciais de vida através desta pesquisa. Venho
de uma família negra, que, de uma forma ou de outra, sempre esteve inserida nos lugares
sociais das populações negras. Neste contexto, faz parte da nossa consciência social as
referências da pobreza circundante e das dificuldades sócio-econômico-culturais a serem
superadas25.
Meus pais são frutos de migrações dos meus avós paternos e maternos à procura de
melhores condições de vida, vindos da Bahia e de Minas Gerais para o Rio de Janeiro.
Embora meus avós tenham conseguido uma condição estável de vida, os familiares, no
geral, guardam as marcas de um passado histórico nada confortável.
Neste sentido me senti uma criança privilegiada, vivendo plenamente a infância, amada e
bem cuidada, estudando em boas escolas. Meu pai, pela inteligência e pelo esforço,
trabalhou, por muitos anos, numa empresa multinacional, tendo começado adolescente como
cabeador de fios, chegando à gerência da filial da empresa em Vitória-ES, onde moramos por
muitos anos, quando ele foi transferido do Rio de Janeiro para lá. Esta situação financeira
favorável pôde me proporcionar acesso a boas escolas, a bons lugares, viagens e boas
perspectivas de futuro, diferente das oportunidades vividas por minha própria família.
A minha negritude, até então, não era politizada. Mas sempre fomos muito negros no
sentido da intensa vida em família, na qual as crianças e os mais velhos tinham os afagos e
cuidados; e as crianças pedem bênção aos adultos. Quando nasci, neta mais velha por
25
Esta superação da pobreza muitas vezes é confundida com o distanciamento das práticas sociais negras, por
imposição das relações sociais e no âmbito das políticas públicas, através do sistema educacional brasileiro.
64
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
parte de pai, meu avô paterno fez uma música para mim: “A Maria Estela é bamba; ela é
bamba no amor, ô skindô, skindô, skindô...”.
Mesmo sem a participação em terreiros (éramos ‘católicos’ mais por adequação social do
que pela fé) 26, eram frequentes os incensos que minha mãe acendia para defumar a casa,
como também as idas à benzedeira para afastar os ‘quebrantos’, sobretudo quando eu e
meu irmão éramos crianças.
É marcante em minha memória a dinâmica dos almoços aos domingos em família. Reunia-
se muita gente além da família, como afilhados e amigos, e se produzia uma quantidade
enorme de comida. Meu avô paterno iniciava um discurso improvisado que se prolongava
em um ritual de falas das boas recordações e feitos dos entes presentes e falecidos, que
correlacionados nos permitiam estar ali naquele momento, e “contação” de casos do
cotidiano que sempre faziam com que o almoço esfriasse. Isso gerava uma hora particular
de almoço que nós chamávamos de ‘almoço ajantarado’. Este nosso almoço é uma
expressão da memória coletiva de descendentes de africanos realizada por nossa família e
também um marco da convivibilidade, conceito estudado nesta tese, no Capítulo 4.
De volta ao Rio, morando no Bairro Peixoto, bairro próximo ao escritório de arquitetura onde
trabalhava, eu percebia sensivelmente minha negritude neste ‘bairro branco’, e isto não era
só pela cor da pele. Rapidamente me iniciei no tamborim na modesta escola de samba da
Vila Rica, cujo barracão tem a sede na Ladeira do Tabajara.
Como técnica em Edificações e, mais tarde, como arquiteta, sempre fui tocada pela vontade
de participar mais ativamente destes bairros ditos ‘populares’, percebendo que poderia
atuar, de alguma forma, contra a precariedade das moradias autoconstruídas, sempre me
reconhecendo nesta origem social ligada aos bairros de maioria negra. Não era somente a
pobreza que chamava atenção, mas a dinâmica familiar daquelas famílias tão carentes que
me fazia íntima daquela cultura.
26
No mesmo sentido da fala do Seu Sérgio, marido de Dona Elza (moradora do Curuzú): “preto e pobre têm que
andar na linha”.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Neste ‘sentir-me negra’, podemos pensar a cidade por esta perspectiva, nos conduzindo a
abordar a cidade e o urbano, produzindo conhecimento.
Em nome de uma ciência neutra, havia, ou ainda há, uma postura do meio acadêmico em
rejeitar estudos originados por pesquisadores integrantes dos movimentos sociais,
sobretudo movimentos sociais negros, uma vez que as produções não seriam ‘confiáveis’
por serem imparciais, construídas por conotações passionais e emocionais.
Na filosofia e nas ciências ocidentais o sujeito que fala está quase sempre
encoberto; a localização do sujeito que enuncia está sempre desconectada
da localização epistêmica. Por meio dessa desconexão entre a localização
do sujeito nas relações de poder e a localização epistêmica, a filosofia
ocidental e suas ciências conseguiram produzir um mito universal que
encobre o lugar de quem fala e suas localizações epistêmicas nas
estruturas de poder (FIGUEIREDO; GROSFOGUEL, 2007, p. 38).
Ao pensar o bairro negro a partir das culturas negras, me pondo como interlocutora,
estamos explorando, segundo o pesquisador Thomas Kuhn (1991), um reposicionamento do
fazer científico, na proposta de avançar para uma alternativa de análise urbana.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Neste raciocínio, podemos incluir o urbanismo como uma ciência produzida a partir de
moldes científicos, voltada para priorizar os meios de produção, estando no âmbito do que
Kuhn (1991) designa de ciência normal sob o período em que se atua dentro de um dado
paradigma que é partilhado por uma comunidade científica.
Para Sodré (1982), que elabora uma análise do papel da televisão na sociedade brasileira
em O Monopólio da Fala, a ideologia da classe dirigente determina aos sujeitos que
mantenham sempre lugares atribuídos pela ordem da produção e pela autoimposição de
modelos convenientes. Sobretudo em relação ao consumo, de toda ordem, indo dos bens
duráveis e supérfluos ao consumo moral-cultural: “Para a maioria da população, ver
televisão significa viver vicariamente, isto é, viver a substituição do real pelo consumo
imaginado” (SODRÉ, 1982, p. 116). Esta forma ideológica (da televisão) está intimamente
relacionada àquela hegemonia à qual Burke se refere. Entendemos que a hegemonia se
impõe por ideologias, seja através de um modelo de família, de comportamento ou de
indivíduo, disseminado por dispositivos, meios e aparelhos complexos das classes
econômicas dominantes e do Estado.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Nesta linha, Foucault (1988) também demarca que a ciência, como conhecimento, é
articulada como produção do saber e do poder: ambos estão sempre associados, no mundo
ocidental. A ciência não é neutra. Está configurada sob um determinado contexto no tempo,
no espaço, orientada por ideologias.
Existe um currículo oculto nas formações universitárias que justifica a eficiência e a eficácia
das relações capitalistas, transformando as relações capitalistas em patamar único de
reflexão, sendo a maior referência de nossas formações universitárias. Estes currículos,
com ideologias ocultas ou explícitas, têm o signo da universalidade; são definidos como
universais e podem ser compreendidos como uma síntese perfeita do pensamento de toda a
humanidade.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Cunha Junior (2012) argumenta que os conceitos são inferências dos valores e credos dos
produtores da ciência; concebidos e validados dentro de grupos científicos constituídos por
participantes dos diversos grupos ou subgrupos dentro da sociedade. Os conceitos carregam
a espacialidade e a temporalidade das culturas em geral e das culturas científicas em
particular. Dado este conjunto sempre mutável de fatores e de interesses, os conceitos
científicos são parte das lutas sociais e estão inseridos na fase de busca da validade de um
determinado paradigma científico. A dinâmica social e os processos de transformações
existentes nestas substituições de paradigmas científicos impõem a revisão, a atualização e
a modificação dos conceitos e formas de pensar de um grupo de cientistas. Tanto os
movimentos negros como os grupos de pesquisadores negros têm se debatido com
mudanças de paradigmas e de concepções conceituais cada vez mais necessárias e mais
importantes no enfrentamento das lutas sociais e das lutas nas esferas das políticas públicas
em relação à população negra. As pesquisas estão passando para uma esfera de
especificidade de base africana, ou de referências de hibridismos culturais sob a ótica da
interculturalidade. Para Cunha Junior (2012), a aparente posição dominante e hegemônica
das expressões científicas eurocêntricas está lentamente sendo revista no âmbito dos
conceitos e interpretações pluriculturais.
Esta racionalidade outra é embasada por energias cosmológicas que fluem em torno da
cosmovisão africana, o axé (Yorubá) e o ntu (Bantu), permeiam pessoas, animais, objetos, se
conectando e se espalhando, gerando fluxos, multiplicando sentidos, sensações e percepções
(RAMOS, 2009). Estas energias e fluxos, no entanto, não estão encerrados nas religiões de
matriz africana, nos terreiros, mas se estendem para além dos seus limites, tanto no tempo,
quanto no espaço, se espacializando, caracterizando também o bairro negro.
diversas qualidades e estados, mas estão sempre realizando dinâmicas no mundo, na vida,
nos seres da natureza que são essencialmente dinâmicos e fundamentalmente sistêmicos
no sentido de interações múltiplas. Uns influenciam nos demais, inexiste a separação entre
nós e os outros, nós e a natureza.
Além da dimensão espacial, tátil, concreta, os bairros negros também nos apontam para as
dimensões sensoriais, do espaço vivido e sentido, como um lugar de experiências e ações
sociais urbanas. São aqui também atribuídas à cultura determinadas percepções, aguçadas
e estimuladas pelas culturas negras, geradas pelas ambiências do bairro.
Mendes (2011) discorre, a partir de Thibaud, que os significados dados à ambiência pelos
diversos sujeitos de um ambiente/lugar/espaço são mutáveis e inconstantes, pois são
guiados por uma subjetividade também cambiante captada pelo olhar que filtra e sintetiza um
conjunto de valores e significados do imediato, dependentes de seu repertório e sentidos
afetivos no momento vivido. A ambiência também traz uma identidade a um ambiente/lugar,
na medida em que é produzida pela experiência humana e apreendida por sua subjetividade,
pois ela é vivenciada e experimentada no indivíduo e oxigenada pela coletividade.
Numa articulação de conceitos entre Sodré e Lefebvre, temos que o bairro negro, a partir do
território de Sodré, aparece como um dado necessário à formação da identidade
grupal/individual, ao reconhecimento de si por outros, como é na cosmologia africana, em
que existo porque você existe - “ser-com-outros” - como parte da cultura e da história de um
grupo. Ou ainda no significado da palavra bantu ubuntu: “eu sou, porque nós somos”.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
suas reflexões sobre a utopia experimental, Lefebvre faz questionamentos sobre espaços
bem sucedidos, favoráveis à felicidade: quais são seus tempos? Quais os ritmos da vida
cotidiana? Lefebvre (2006) reafirma que só a obra de arte contém sua história e diz, em
certa medida, quem a criou, como e porque: “não há obra sem uma sucessão
regulamentada de atos e ações, de decisões e de condutas, sem mensagens e códigos”
(LEFEBVRE, 1991, p. 48), permitindo a imaginação e a recordação, pois carrega traços
reconhecíveis, face à articulação do espaço enquanto forma e conteúdo; à atribuição de
conteúdos próprios à forma; à forma que mais se adapte ao sentido (LEFEBVRE, 1991).
É nesta ótica que Frémont (1980) destaca Lefebvre, afirmando o espaço ‘vivido’ como
aquele em que se redescobre todos os valores da vida, sendo mais rico, mais confuso, mais
contraditório, só podendo ser revolucionário.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Não no mesmo contexto de Lefebvre, mas com o mesmo sentido, Sodré, em sua
fundamentação sobre os terreiros, assinala a espacialidade (ou a relação espacial) e sua
organicidade, suscitando a noção de forma social, como formas assumidas pela vida
(formas sociais). Relembrando que esta forma social [do terreiro] privilegia a diferença e a
pluralidade nas relações funcionais de coexistência e permitiu no universo do africano
escravizado no Brasil a apreensão sensível, para além do puro intelectualismo: o mito, o
símbolo e o imaginário de um estilo de vida, com sua atmosfera particular, sua multiplicidade
numa unidade e seu relacionamento com o espaço (SODRÉ, 1988). Sodré atribui à
imaginação uma nova relação com o real: pela imaginação de grupos negros das
comunidades de terreiro, este se afigura como a forma social negro-brasileira por
excelência, porque, além da diversidade existencial e cultural que engendra, é um lugar
originário de força e potência social para uma etnia [negra], para grupos sociais negros, que
experimentam a cidadania em condições desiguais. Através do terreiro e sua originalidade
diante do espaço europeu, obteve-se e obtêm-se fortes traços de subjetividade histórica das
classes subalternizadas no Brasil.
Para as culturas que remetem à tradição da religiosidade africana, como no caso dos
terreiros do Engenho Velho da Federação, este cotidiano foi inventado, como poesia, ou
reinventado, resgatando seus arquétipos: o inconsciente aparece como consciente, através
do qual as pessoas ou grupos criam estratégias de continuidade de suas práticas culturais.
Os terreiros, como obras, difundiram seus valores, conformando sua dinâmica sócio-
espacial nos bairros negros. Também podemos, aqui, associar o trabalho artesanal para
além das relações de produção, como fenômeno da ‘prática urbana revolucionária’, à parte
da dicotomia entre rural e industrial, resultante das relações produtivas.
Também nos reportando a Lefebvre, em relação à tríplice aliança - mito, ideologia e utopia
(1999, p. 101), vamos produzir o mesmo movimento, associando o terreiro ao bairro negro,
tanto como mito, em sua referência ao passado, na reelaboração pelos terreiros da herança
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
cultural africana, que compõe um discurso não institucional, seja como utopia, que
transcende a realidade, apontando um devir: o terreiro como fonte dos mitos e das utopias.
O bairro negro não passa pela institucionalização e, como mito, segundo Lefebvre, não está
submetido às imposições das leis e instituições, sendo constituído pelo conhecimento
orientado sobre/por uma prática.
A interlocução entre Sodré e Lefebvre nos permite ter aqui um entendimento dos bairros
negros como obra de arte (como obra, no sentido lefebvriano do termo), na criação de um
espaço pela construção social e autoconstrução física (casas, espaço urbano), carregada de
desdobramentos de elementos simbólicos (materiais e imateriais) do terreiro na vida social
destes bairros. O bairro negro, enquanto prolongamento do terreiro, como ambiente de
oferendas, de assentamentos, de sacralização dos espaços, de caminhos definidos por
espaços sacralizados e, para além das referências religiosas, as referências no
desdobramento espacial.
O bairro negro, a partir das referências do terreiro, é uma forma de organização espacial,
diversa da lógica que orienta a das relações de produção, mas que também as incorpora, a
partir do lúdico, das trocas, do valor de uso: a obra. As trocas (de afetividade, de
solidariedade), o sentido do trabalho coletivo permeado pelo simbólico, o valor de uso em
lugar do valor de troca constituem esta obra, na qual, segundo Sodré (1988), as árvores, as
casas, as ervas, os animais, os seres humanos compõem uma totalidade, não dissociados
ou dicotomizados em humano/natural, sensível/inteligível, etc.
Este trabalho envolve experiências urbanas de população negras e formas urbanas geradas
a partir das culturas negras. Como ponto de partida, temos a pesquisa da história e da
memória coletiva de moradores de um espaço urbano, o bairro do Engenho Velho da
Federação como exemplo empírico.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
As informações e dados sobre o bairro negro foram obtidos mediante fontes primárias,
representadas nas falas de moradores através de conversas e entrevistas; fontes
bibliográficas e documentais; e as próprias observações de campo da pesquisadora, através
das próprias experiências de vida, de viagens ao continente africano, mas, sobretudo, no
próprio bairro do Engenho Velho da Federação.
A história social do bairro constituída através das histórias de moradores do Engenho Velho
da Federação é uma tentativa de afastar os modelos universais e o regime de verdades e de
explicações globalizantes, através de uma revisão de pressupostos explicativos da realidade
(PESAVENTO, 2005). Por este motivo é que não nos ateremos aos grandes marcos
históricos que, por sua vez, se constituem, também, como representações históricas.
Iniciando com entrevistas com lideranças e avançando com moradores antigos do bairro,
como testemunhas de sua evolução: partimos da ideia de articular com outros moradores a
partir das indicações dos próprios entrevistados. Para o entendimento da dinâmica atual do
bairro a partir das entrevistas com os moradores, utilizou-se também a metodologia de
seleção de entrevistados desenvolvida pelo Grupo Espaço Livre de Pesquisa-Ação, a partir
das redes associativistas existentes: redes formais (com maior visibilidade: templos
religiosos, associações de moradores, etc.) e redes informais (redes de vizinhança e
parentesco, grupos de jovens, grupos de terceira idade, etc.), identificando seus
representantes e buscando suas estratégias de ação e formas de organização, bem como a
influência mútua entre eles e suas sobreposições.
Nas primeiras conversas com os adeptos de terreiro, já obtive indicações que nos encaminhavam
para outras sugestões: Makota Valdina do Terreiro Tanuri Junçara (Angola) é uma referência do
bairro e me recomendou conversar com Dona Lindaura Farias, moradora antiga e muito
conhecida no Engenho Velho da Federação, e oferece o tradicional Caruru de Cosme e Damião
74
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
em sua casa; Mãe Índia, mãe-de-santo do Terreiro do Bogum (Jêje), me indicou o Seu Valter
Neves, morador antigo do Engenho Velho da Federação e adepto do candomblé, é proprietário do
Educandário Nabuco, fundado em 1958. O filho de Dona Lindaura, Seu Eliomar, por sua vez, me
levou até o Terreiro Odê Mirim (Angola) de Mãe Aíce. Neide, equede do Patiti Obá me
proporcionou conversas com Dona Justina, mãe pequena do terreiro. Assim, por indicação dos
próprios moradores foi surgindo uma sequência de entrevistados. Estes moradores mais antigos
do bairro nos expuseram um panorama de como se deu a constituição sócio-espacial do bairro,
desde seu surgimento, nos oferecendo um suporte histórico e cultural de meados do século 20.
A coleta das informações orais se deu através de conversas e entrevistas informais direcionadas,
sendo grande parte delas gravadas. O método da pesquisa privilegiou a fala dos moradores do
bairro e não as falas dos integrantes dos terreiros, por vezes também moradores, porque
entendemos que os moradores não ligados aos terreiros absorveram e sintetizaram as influências
dos próprios integrantes dos terreiros, comprovando a hipótese de existência da categoria do
bairro negro. Os terreiros produzem um conjunto de procedimentos e ideias, emanado pelo corpo
social do terreiro, cujo rebatimento no bairro, um bairro negro, é o que interessa nesta pesquisa,
para a compreensão da formação do bairro do Engenho Velho da Federação.
Outras fontes interessantes sobre o Engenho Velho da Federação são as falas dos
moradores através de outras formas, integradas às novas tecnologias. Pudemos extrair
informações de vídeos disponíveis no site do You Tube, blogs e páginas com conteúdo
sobre o bairro também estão disponíveis na internet.
Também ofereceram subsídios para a pesquisa viagens ao continente africano, como forma
de apreender as relações espaciais de comunidades africanas urbanas.
Mais uma vez no continente africano, estivemos em Maputo, Moçambique, para participação
da Conferência Internacional de Intelectuais Africanos, ocorrida em Novembro de 2012, na
qual apresentamos uma comunicação sobre formação de identidades e espacialidades a
partir dos terreiros. Além das conversas sobre as dinâmicas culturais africanas com demais
pesquisadores das áreas dos estudos culturais e relações étnicas, dialogamos com
Alexandre Baia, geógrafo moçambicano sobre formações urbanas. Na Faculdade de
Arquitectura, conversamos com o atual diretor, o arquiteto e professor Luís Lage que nos
indicou bibliografias e, gentilmente, nos disponibilizou publicações digitais sobre formações
urbanas de diversas regiões moçambicanas.
27
Além da participação na Conferência em Maputo, tivemos a oportunidade de participar de outros congressos e
eventos acadêmicos, apresentando comunicações sobre a temática da pesquisa desta tese. Expomos trabalhos
no I Seminário Internacional Gênero Raça Classe e Identidade Social no Brasil e na França, em 2009; no XI
Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais - CONLAB, em 2011; no Seminário Urbanismo na Bahia -
urbBa[12], em 2012: todos na UFBA, em Salvador. E ainda no 2nd International Congress on Ambiances, em
2012, em Montreal.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Compuseram a pesquisa consultas aos acervos da Fundação Mário Leal Ferreira (FMLF),
vinculada à SEDHAM (Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e
Meio Ambiente). Infelizmente, a prefeitura não dispõe de um cadastro atualizado da
estrutura fundiária do município de Salvador, datando de 1977 o Inventário de
Loteamentos, não oferecendo outros dados disponíveis.
Outro material utilizado foram as matérias de jornal, tanto da FMLF, bem como da
Fundação Gregório de Matos (FGM). Também foram consultados o PDDU/2008, Plano
Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município do Salvador (Lei Nº 7.400/2008), e a Lei
de Ordenamento do Uso e da Ocupação do Solo: a LOUOS/1984 (Lei Nº 3.377/1984), na
versão digital com a disponibilização de mapas interativos, e a LOUOS/2012 (Lei Nº
8167/2012), recentemente aprovada, na qual não se prevê nenhuma alteração
urbanística em relação ao bairro do Engenho Velho da Federação. Tais fontes foram
também utilizadas como recurso gráfico de ilustração da pesquisa.
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Esta tese está no âmbito da espacialização urbana de populações negras, tendo, como
pano de fundo, a cidade de Salvador, Bahia, escolhida nesta tese pela peculiaridade
histórica de concentração de populações negras no Brasil.
Salvador surge de relações globais de produção, tendo como base, à época, o sistema
mercantilista. A Cidade do Salvador, fundada em 1549, foi criada, segundo Paulo Ferreira
Santos (2001), após o insucesso das capitanias, com o objetivo de ser centro militar,
administrativo, fazendário e judiciário de toda a Colônia, sob domínio do Estado Português,
“situada quase no centro geométrico da costa conhecida” (2001, p. 87). A fundação da primeira
capital do Brasil, São Salvador, marca o começo de uma nova etapa da colonização do Brasil.
Segundo Mattoso (1989), a cidade foi criada conforme o modelo português do termo e do rossio,
cujos limites administrativos, o termo, era o espaço sobre o qual se exercia o poder municipal.
Nos espaços regidos pela sociedade dominante, a igreja católica foi, além do papel religioso e
do controle social, protagonista na organização do espaço nas cidades coloniais brasileiras.
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Em Santos (1959), temos a cidade de Salvador contextualizada neste processo como cidade
portuária, desde o período colonial, tendo sua economia baseada no comércio internacional de
importação e exportação, produtos produzidos pela economia regional, sobretudo do Recôncavo
Baiano, passando pelo porto da cidade grandes quantidades de cana, café, algodão, fumo e cacau.
Santos (1959), em análise do crescimento urbano de Salvador, observa que as cumeadas eram
as áreas preferidas pelas elites, constituindo as ocupações iniciais, ficando, portanto, os vales
ocupados posteriormente, de forma infraestruturada. São estas áreas a serem ocupadas por
populações negras, como veremos adiante.
28
Esta divisão territorial foi abordada por diversos autores, em que aparecem também as freguesias rurais ou
suburbanas:
AZEVEDO, T. op. cit.;
VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia do Século XVIII. Salvador: Itapuã, 1969;
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX. São Paulo:
Hucitec; Salvador (BA): Secretaria Municipal de Educação e Cultura, Departamento de Assuntos Culturais, 1978.
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Dez freguesias da Cidade do Salvador: aspectos sociais e urbanos do
século XIX. Salvador: FCEBa/EGBa, 1986.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Estas áreas que se constituíram em cantos eram pontos estratégicos nas proximidades de
fontes e chafarizes, concentrando aguadeiros e lavadeiras, por exemplo, ou ganhadeiras
junto às quitandas e aos mercados, como também nas adjacências de largos e irmandades,
espalhados pela cidade. Os cantos de Salvador eram constituídos pelos trabalhadores-de-
canto, que por sua vez se organizavam em associações-de-canto: Largo da Calçada, Largo
do Cais do Ouro, Largo do Portão de São Bento, Largo da Piedade, Largo da Vitória, Cais
Dourado, Campo lateral da Igreja da Soledade, Praça dos Quinze Mistérios, Largo da
Saúde, Campo da Pólvora, Praça do Comércio, Largo do Pelourinho, Largo do Cabeça
(NASCIMENTO, 1989; COSTA, 1989, 1998; SOARES, 1996; REIS, 1986).
Os negros eram, assim, responsáveis por fazer a cidade funcionar. As atividades urbanas
iam desde os trabalhos rudes como os tigres (recolhedores de detritos), aguadeiros
(carregadores d’água), liteiros (carregadores de cadeira de arruar), tropeiros, lenheiros,
carvoeiros, oleiros, carpinteiros, lavadeiras, engomadeiras, vendedoras de tecidos,
costureiras, artesãos, remadores, marinheiros, pescadores, vendedores de pescados,
carroças e carruagens, aos mais elaborados e sofisticados como funileiros, calafates,
caldeireiros, construtores civis e de embarcações, tecelões, marceneiros, sapateiros,
barbeiros, chapeleiros, alfaiates, modistas, escultores, ourives e músicos (REIS, 1986).
Costa (1989) evidencia que havia uma parcela de população negra (escravizada, liberta ou
livre) que residia em áreas periféricas, fato possível dadas às categorias do trabalho, de
aluguel ou ganho, sendo
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Segundo Costa (1989), esta relativa liberdade permitia que escravizados pudessem,
mediante autorização policial, pernoitar e até mesmo morar em outro local mesmo que não
fosse a residência do escravizador, embora houvesse o controle de aluguel a escravizados,
através de autorização especial, provavelmente emitida pela Câmara Municipal. Este
controle do poder público visava prevenir as fugas individuais, bastante frequentes, além de
tentar evitar as revoltas e insurgências dos africanos escravizados, uma vez que havia um
grande sentimento de insegurança pelas constantes ameaças. Controlava-se a venda de
armas de fogo, facas, drogas venenosas. Também os ajuntamentos negros, como eram as
associações-de-canto, eram vigiados. Assim buscava-se promover o estabelecimento da
ordem na cidade e do próprio regime escravista, uma vez que a cidade vivia num estado
permanente de tensão social. Posturas e leis atuavam não só sobre os escravizados, mas
também sobre os libertos.
Apesar deste controle, ainda assim, havia certa autonomia para uma vida social entre os
negros brasileiros e africanos, livres, escravizados e libertos no espaço urbano.
Costa (1989) destaca que a ocupação das áreas periféricas das freguesias da cidade era,
sobretudo, de iniciativa de pessoas libertas e cita Maximiliano de Habsburgo29 na sua
descrição sobre “a existência de choupanas construídas com varas, barro e folhas de
palmeiras, na região do Dique” (p. 197). A autora destaca ainda outras construções em
melhores condições como casas de taipa de mão, de coberta de telhas e casas
assobradadas. E Reis cita Inês Oliveira sobre as casas modestas: “morada de casas de
palha, de bofetão, de taipa, de pedra e cal, geralmente térreas, de porta e janela, quase
sempre em terrenos foreiros a conventos, igrejas ou grandes proprietários urbanos” (apud
REIS, 1986, p. 220).
29
HABSBURGO, Maximiliano de. Bahia 1860: esboços de viagem. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Salvador:
FCBA, 1982.
82
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Gomes (1990) destaca que, enquanto nas partes centrais da cidade as denominações dos
lugares são referenciais às igrejas, capelas e conventos referentes às freguesias, como
Conceição, Pilar, Ajuda, Sé, Nazaré, Desterro, Palma, Lapa, São Pedro, Carmo, Santo
Antônio, Santana, grande parte das denominações dos lugares nos arredores da cidade
remete a uma territorialização do negro, que escapava ao controle do branco. O autor ainda
faz referência à origem da toponímia, apoiado em autores como Íris Nascimento, Edison
Carneiro e Arthur Ramos: Cabula, cujo nome é de uma seita africana já desaparecida; Beiru,
que provavelmente derivado de eiru, rabo de boi, insígnia de Oxóssi, deus da caça; Goméia,
cuja origem pode ser uma corruptela da forma portuguesa de Daomé; Bonocô,
anteriormente Gunucô, corruptela de Igunnuko, local onde havia um culto de Baba
Igunnuko; [Vale do] Ogunjá, referente ao terreiro lIê Ogum Ja, ali existente, etc.
No espaço urbano ou mesmo nas residências nas áreas centrais, Costa ressalta sobre as
repressões e o controle do culto religioso e das manifestações lúdicas dos negros, desde o
século 17, através de posturas municipais que proibiam o uso de atabaques e marimbas.
30
A autorização policial, emitida pela desativada Delegacia de Jogos e Costumes, teve a exigência suspensa
somente em 1976, a partir do Decreto Nº 25.095/76 assinado pelo então governador Roberto Santos.
83
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Lembramos que estas ocupações nas áreas periféricas foram possíveis devido às condições
de acesso à terra, a custos mais baixos, ora mediante compra, ora por arrendamento, por
constituírem áreas não urbanizadas, muitas vezes áreas de mata fechada.
Podemos ver espacializados no Mapa elaborado por Ana de Lourdes Costa, no qual a
autora identifica 14 batuques em meados do século 19, assim denominados (Planta 05),
anexo de sua Dissertação de Mestrado, conforme Figura 8.
84
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
85
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Com esta visualização espacial oferecido pelo Mapa da Figura 8, podemos compreender
como é valioso e preponderante o papel dos terreiros no processo histórico de ocupação
urbana, pela via das sociedades subalternizadas e que constitui o maior contingente
populacional da cidade de Salvador.
Gomes (1990) nos apresenta um breve panorama da freguesia da Vitória que, apesar de ser
uma mais antigas da cidade, possuía larga extensão de terras semipovoadas, com exceção
das regiões do Corredor da Vitória, do Campo Grande de São Pedro e do Canela, que eram
ocupadas principalmente por chácaras, e a região da Barra, primeiro núcleo de povoação da
cidade. Na altura de Santana do Rio Vermelho, na época um povoado de pescadores, a
freguesia fazia divisa com a freguesia de Brotas.
Temos nas palavras de Nascimento (1989), a respeito da expansão urbana em Salvador que:
Entendemos que as ocupações de encostas não se deram exatamente como uma aplicação
direta do traçado das cidades africanas, mas constituídas, sim, pela dinâmica cultural afro-
brasileira reconstituída, principalmente, pelos terreiros.
Mas é no século 19, segundo Pinheiro (2011), que Salvador passa pelas transformações
mais significativas, recebendo influências do urbanismo europeu e adaptações de projetos
urbanísticos e intervenções para novas tecnologias, reagindo às mudanças econômicas.
Segundo Fernandes e Gomes (1993), são mudanças pautadas por “idealizações de cidade
elaboradas por segmentos das classes dominantes” (p. 66) que passam pela “idealização de
uma cidade branca e europeizada” (p. 64).
86
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Movidos pela ideologia do progresso e de civilização, visando abrir espaços para maior
salubridade da cidade, buscava-se substituir o velho, a Cidade Colonial, pelo novo, a Cidade
Moderna. Criou-se, então, o discurso sobre a cidade no qual surgiu a dicotomia: tradição x
progresso; feio, sujo, doença x belo, limpo, saudável; morte x vida; desordem x ordem. O
espaço público, especialmente a rua, devia ser, pois, a expressão dos padrões de beleza,
limpeza e ordem. A rua precisava reunir os atributos e as condições indispensáveis à saúde,
à moralidade do corpo físico e social da cidade (PECHMAN, 1992 apud FLEXOR, 1998).
Desta forma, discursos foram postos em prática e efetivados no espaço urbano através das
reformas e dos melhoramentos urbanos que tiveram intuito de ‘sanear’ o país, pautado pelo
discurso do controle higiênico da cidade e da modernidade. As obras de melhorias urbanas
que no Império eram associadas à limpeza urbana, passam a incorporar, no final do século
19, as iniciativas de medidas para intervenções urbanas mais efetivas, apresentando as
primeiras obras de saneamento, prevenindo as enchentes e combate às epidemias, através
de canalização de rios, drenagem; retificação, alargamento e pavimentação de ruas;
instalação de trilhos para bondes e substituição do uso das fontes pelos chafarizes públicos.
Em 1910, um plano de melhoramentos foi elaborado para a cidade de Salvador pelo engenheiro
Jeronymo Teixeira de Alencar Lima, com o plano Projetos de Melhoramentos de Parte da
Cidade do Salvador concentrado na Cidade Alta e intervenções pontuais na Cidade Baixa, com
previsão de mercados, parques e jardins, escolas, sanitários públicos, uma rede coletora de
87
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
águas pluviais e cerca de 250 casas operárias. Mas as ideias de modernização da cidade,
segundo Fernandes, Sampaio e Gomes (2005), só se concretizaram de forma significativa nos
governos de J. J. Seabra, no primeiro período de 1912 a 1916, e no segundo, de 1920 a 1924.
Fernandes, Sampaio e Gomes (2005) apontam que as atuações urbanísticas sobre a cidade
caracterizaram-se pela ênfase às questões técnicas, no sentido de manter a fluidez e a
salubridade do meio físico e às questões estéticas em razão de originar novos modelos de
cidade e de sociabilidade urbanos e sociais. Se a Cidade Alta, colonial, se constitui por sua
formação urbana com ruas estreitas, tortuosas, adaptadas à geografia do sítio natural,
excetuando-se apenas seu núcleo central, nestas idealizações da cidade busca-se a ruptura
com o passado colonial através de planos com caráter demolidor e reformista, pautados
pela “rigorosa geometrização e despreocupado com as preexistências” (FERNANDES,
SAMPAIO e GOMES, 2005, p. 174), reflexo de um progresso predador e desrespeitador da
história e da cultura. Em 1905, o engenheiro Theodoro Sampaio elabora um Relatório31,
deixando entrever a necessidade de um plano para a cidade, prevendo intervenções na
habitação, no saneamento e no espaço público. Fernandes, Sampaio e Gomes fazem a
ressalva a este engenheiro, sendo uma exceção porque, além de engenheiro, Theodoro
Sampaio era também historiador e mantinha uma relação entre os problemas técnicos e as
particularidades do meio social em que os novos objetos estavam inseridos.
Apesar das referências relativas às preocupações sociais contidas nos planos, com a
previsão, por exemplo, de habitações, esvaziou-se a questão social. Com esta perspectiva
ideológica de modernidade, as reformas e os melhoramentos urbanos nas áreas urbanas
centrais das cidades, em diversas cidades brasileiras, acabaram por levar a população
negra e pobre para áreas cada vez mais distantes dos centros urbanos.
31
Relatório dos Estudos para o Novo Abastecimento d’Água da Cidade da Bahia, elaborado em 1905 (Arquivo
Histórico Municipal da Fundação Gregório de Mattos).
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Com uma cidade que, em fins do século 19, possuía aproximadamente 75% de população
de negros e mestiços, a elite que se pensava (ou se desejava) branca buscava novas áreas,
antes ocupadas por chácaras, como a Vitória, a Graça e a Barra:
Neste novo modo de vida urbano, estranho, exterior, exógeno, abstrato, vemos a ideologia
gerando formas urbanas, modelando a cidade.
Ainda que esta não tenha se dado, no período em pauta, de forma contínua
e extensiva, mas por "manchas" isoladas, parece que ela respondia
efetivamente ao que poderíamos chamar de uma "dinâmica negra": com
efeito, rastrear a ocupação da enorme periferia de Salvador no século XIX
é, sobretudo, deparar-nos com a existência de "territórios negros":
quilombos, roças e candomblés (GOMES, 1990, p. 12).
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Segundo Gomes (1990), a ocupação das áreas intersticiais nas partes mais antigas da
cidade, as "brechas" e, sobretudo, a ocupação de sua periferia, representa um capítulo da
história da estruturação espacial de Salvador. O autor também reflete sobre a quantidade de
inúmeros estudos históricos sobre habitação no Brasil e sua importante contribuição nas
relações com a industrialização e com a emergência de novos padrões urbanos, mas indaga
também “sobre o que escapava à lógica industrial da acumulação capitalista” (p. 18).
Numa análise do global, segundo Santos (1985), cada localização é resultado de um imenso
movimento do mundo, sendo a localização um resultado de um feixe de forças sociais sobre
um lugar.
Temos aqui, precisamente no bairro do Engenho Velho da Federação, uma das porções da
cidade de Salvador onde vivem populações descendentes de africanos que guardam
referências culturais advindas do outro lado do Oceano Atlântico, do continente africano,
como parte deste mesmo imenso movimento do mundo.
Numa análise pautada nas relações de produção e se, neste contexto, cada lugar, a cada
momento, tem um papel próprio no processo produtivo (SANTOS, 2006), o Engenho Velho
da Federação também é parte do processo direto de produção (circulação, distribuição e
consumo), cumprindo uma determinada função do capitalismo.
90
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Temos também em Santos, que um lugar é um dado concreto em função (específica) das
condições atuais da sociedade. Se, numa leitura a partir das relações de produção
capitalista do Engenho Velho da Federação, o bairro se consolidou através de
arrendamentos de porções de terras de fazendas desativadas, hoje, numa leitura ampliada e
inclusiva, o mesmo bairro é uma referência de resistência histórica da cultura negra dada
pela concentração de terreiros. Vemos que a história oral nos mostra que o bairro era
conhecido por Bogum ou Alto do Bogum, em referência ao Terreiro do Bogum, muito antes
de ser nomeado de Engenho Velho da Federação.
Em nossa pesquisa, este território negro, para além das inscrições disseminadas nas
manifestações pontuais afrodescendentes no conjunto da cidade em fins do século 19 ao
início do século 20, é um lugar de fixação de populações negras no processo de construção
de seus lugares de moradia.
Entendemos que, no caso do bairro do Engenho Velho da Federação, a identidade étnica foi
o principal meio agregador destas populações, através dos vínculos religiosos articulados
pelos terreiros e suas relações religiosas engendradas pelas famílias-de-santo.
91
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Conhecida por Joaquim dos Couros, nas pesquisas de Parés (2006), a localidade dos
terreiros do Pau Zerrém (extinto), do Bogum e, posteriormente, da Casa Branca, era uma
área afastada do centro, cujos batuques não despertavam a atenção das autoridades
políticas e policiais. Esta localidade estava a meio caminho entre o núcleo urbano de
Salvador e o Rio Vermelho, na época uma importante comunidade de pescadores negros32.
Temos na Figura 9 como era a atual Av. Vasco da Gama, com a linha do bonde elétrico, que
segundo Seu Valter, é a Linha 15. Vemos na imagem antiga a figura de uma mulher negra
com uma saia longa, seu pano da costa e seu tabuleiro na cabeça, junto à linha do bonde. A
fotografia mostra uma região de vegetação densa e que, de fato, exceto pelo transporte
coletivo, era uma região totalmente desprovida de infraestrutura urbana.
32
Com presença marcante, esta comunidade constitui uma territorialidade negra, que se mantém viva na
atualidade através da Colônia de Pescadores do Rio Vermelho, promotores da Festa de Iemanjá que ocorre
anualmente em Dois de Fevereiro.
92
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Figura 9 - Bonde elétrico na rota Trilhos Centrais de Rio Vermelho (entre 1869-1928), atual Av. Vasco da Gama.
Fonte: Coleção Allen Morrison. Disponível em: <http://www.tramz.com/br/sv/sv22.html>. Acesso em: 26 Fev. 2013.
Segundo Parés, nesta região de muito mato, oferecia todo tipo de folhas para as práticas
religiosas. O mato fechado era também uma estratégia de proteção do terreiro, dificultando
a visibilidade e o acesso de pessoas estranhas à comunidade religiosa, sendo conveniente
também pela proximidade do Rio Lucaia, que à época era rio de água límpida e potável,
necessário para as obrigações do candomblé.
93
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
era conhecida em um trecho por Mata-Maroto, e em direção ao Rio Vermelho era chamada
de São Gonçalo. Seu Valter se recorda bem das linhas de bonde:
O bonde era Rio Vermelho de Baixo, Linha 15; na Cardeal da Silva, era
Federação, Linha 7, que passava pelo Segundo Arco; o bonde que passava
por baixo, na Garibaldi, era Rio Vermelho de Cima, Linha 14.
Na entrevista com Tonho, este menciona que os terreiros antigos sempre se instalaram
geograficamente nas partes elevadas da cidade33. Esta também é uma observação de Parés
em relação ao seu estudo sobre o Terreiro do Bogum (no topo do morro, ainda mais elevado
que a Casa Branca), oferecendo facilidade de visibilidade em caso de defesa contra as
perseguições policiais, além de, naturalmente, pela nossa dedução, oferecer maior conforto
ambiental (ventilação e insolação) e salubridade (escoamento das águas pluviais).
Segundo Parés (2006), o Terreiro do Pau Zerrém (ou Pó Zerrém), já extinto, era um terreiro
jêje-mundubi e parece ser anterior ao Bogum, jêje-mahi, mencionado também pelo Seu Valter,
morador antigo do Engenho Velho da Federação, cuja liderança religiosa era o Seu Aprígio.
O Terreiro do Bogum, também chamado pelos moradores simplesmente por jêje pela sua
especificidade, parece ser o terreiro existente mais antigo do bairro, cuja data de fundação é
incerta. Vivaldo da Costa Lima aponta: “antigo terreiro jêje do Bogum, terreiro importante ao
ponto de dar [...] seu nome a todo o bairro em que se situa” (COSTA LIMA, 1977, p. 20).
Na investigação documental de Parés (2006), este deduz que a origem do terreiro seja em
torno de 183034. Segundo o Mapeamento de Terreiros, o Terreiro do Bogum tem sua
fundação em 1835, no entanto, o Laudo Antropológico elaborado por Serra et al (2007) não
confirma a data.
Parés (2006), a partir de versões sugeridas por Antônio Monteiro e Jehová de Carvalho,
entre outras, aponta para uma versão bem consolidada na tradição oral do povo-de-santo,
na qual o termo bogum seria um cofre ou baú no qual era guardado o ouro destinado a
financiar as revoltas malês das primeiras décadas do século 19, sendo que um negro
escravizado malê, Joaquim, o teria escondido no local do candomblé. Esta explicação revela
uma possível ligação entre o Terreiro do Bogum e os Malês, mas não necessariamente um
lugar de organização do grupo que culminaria na revolta de 1835.
33
Além de se referir ao Terreiro da Casa Branca, Tonho também menciona o Terreiro do Bogum, o Terreiro do
Gantois (na Federação), o Terreiro do Bate-Folha (na Mata Escura) e o Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá (em São
Gonçalo do Retiro), todos localizados em cumes de morros.
34
Parés aponta uma fala, em 1961, de Doné Runhó, então mãe-de-santo do Bogum: “o terreiro foi fundado por
africanos e tem muito mais de 100 anos” (PARÉS, 2006, p. 171), o que situaria a sua fundação por volta da
primeira metade do século 19. Também as menções em jornais da época, como O Alabama, se referem a um
terreiro no topo de uma colina, correspondente à localização do Terreiro do Bogum.
94
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
As falas de moradores indicam esta antiguidade. Segue a mesma hipótese na fala do Seu
Orlando:
Aqui era conhecido pelo esconderijo do tesouro dos malês, da Revolta dos
Malês. Onde eles guardavam suas economias. O final de linha era
conhecido como Bogum, Largo do Bogum. O que era o Bogum? Bogum
eram aquelas malas de dinheiro que os malês guardavam, enterravam aí.
Daí ficou conhecido como Largo do Bogum, no fim de linha do Engenho
Velho da Federação.
A antiguidade do terreiro também pode ser comprovada pela existência de caminhos nas
proximidades, cuja nomenclatura remete ao terreiro, como testemunhas históricas concretas
da presença do Terreiro do Bogum, a ser visualizado adiante, na Figura 76.
Estas áreas ocupadas pelos terreiros são atribuídas a duas fazendas onde havia lavouras
de dendê e cana-de-açúcar: Madre de Deus e Roça do Engenho Velho. Segundo os
moradores, entre os dendezeiros e os canaviais havia um grande engenho de cana-de-
açúcar, onde se concentraram muitos negros africanos escravizados.
As fazendas, pelo que narram os moradores, eram ocupadas por plantações de cana, hortas
e pomares, mas havia grandes áreas de muita mata virgem. Deduzimos que muitos destes
africanos escravizados destas fazendas do Engenho Velho da Federação já realizavam
seus cultos individuais em meio às matas.
35
Esta data se refere à instalação do Terreiro da Casa Branca no Engenho Velho da Federação, sendo que o
terreiro já existia anteriormente, sediado na Barroquinha, cuja fundação é estimada em finais do século 18.
Assim, este terreiro é considerado o mais antigo do Brasil. Deste terreiro original, o Candomblé da Barroquinha,
desdobraram-se mais outros dois: Terreiro do Gantois, na Federação e o Terreiro Opô Afonjá, em São Gonçalo
do Retiro.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Os vestígios materiais desta fazenda aparecem na fala de Dona Maria Angélica, moradora
antiga do bairro, quando se refere a uma capela que pertencia à fazenda, onde hoje está
localizada a lavanderia comunitária, na Av. Cardeal da Silva, no lado oposto do bairro. Dona
Maria Angélica lembra:
Ali onde tem a lavanderia, no ponto de ônibus, tinha uma casa enorme e
uma capelinha, ainda do tempo do engenho. Eu mesma fui crismada ali.
apenas para alimentação, mas que servia também de combustível para os lampiões e como
lubrificante. O tal azeite grosso era vendido no Largo 02 de Julho e era muito procurado,
sendo vendido rapidamente. Além do valor sagrado, vemos que o dendezeiro gerava uma
economia importante para o bairro, mesmo depois da destituição da fazenda.
Intuímos que, segundo pesquisas de Parés (2006), sobre o Terreiro do Bogum, e de Ueliton
Santos (2011), a abrangência da fazenda da Roça do Engenho Velho abarcava também
extensões de Brotas e que, devido ao processo de urbanização da cidade de Salvador, com
os desmembramentos das terras e redefinições oficiais de subdistritos, uma parte da fazenda
se constituiu como Engenho Velho de Brotas e outra parte em Engenho Velho da Federação.
E como mostra a Figura 12, o bairro está localizado em meio a uma concentração de vias
importantes do sistema viário de Salvador que oferece ao bairro uma localidade
privilegiada em relação aos deslocamentos na cidade, como as avenidas Vasco da Gama,
Cardeal da Silva, Ogunjá, Anita Garibaldi e Rua Lucaia.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Figura 13 - Localização do Engenho Velho da Federação na Região Administrativa VII (Rio Vermelho)
Fonte: Mapa 09 - Regiões Administrativas do Município (PDDU/2008 Salvador)
O bairro situa-se na Bacia Hidrográfica do Rio Lucaia, estando localizado numa das
elevações às margens do canal do Rio Lucaia, que nasce no Dique do Tororó e deságua
no Rio Vermelho, margeado pela Avenida Vasco da Gama, separando-o do Acupe de
Brotas. O rio, que já foi lugar de oferendas37, não é mais visível, pois, recentemente, a Av.
Vasco da Gama passou por obras de macrodrenagem e cobertura do rio, que já é, há
muitos anos, canalizado. A cobertura do rio serve de suporte para novas pistas do
transporte coletivo e uma ciclovia, se estendendo até o cruzamento com a Av. Anita
Garibaldi. Atualmente, a Av. Vasco da Gama vem tomando importância na cidade com um
perfil econômico específico, se delineando para serviços automotivos (mecânicas, venda de
autopeças), hipermercados, etc.
O bairro é ladeado pelo Alto do Sobradinho, através da Rua Sérgio de Carvalho (Vale da
Muriçoca), sendo limitado na parte superior pela Avenida Cardeal da Silva, que o divide com o
bairro da Federação. O bairro também faz divisa com o Alto do Sobradinho, pela Rua Sérgio
de Carvalho (Vale da Muriçoca), divisa com o parcelamento São Gonçalo, sendo margeado na
parte mais elevada pela Avenida Cardeal da Silva, fazendo divisa também ao sul pelos
parcelamentos horizontais ‘Pedra da Marca’ e ‘Parque João XXIII’ e pela localidade do Alto do
Cangira, vizinhos ao Parque Santa Madalena que é parte do Engenho Velho da Federação.
37
O rio era lugar de oferendas. Mãe Runhó, em matéria “Runhó quer mato e rio para os ‘voduns’ do Bogum”,
dizia, em função do acúmulo de lixo e dejetos, que o rio estava entulhado (A Tarde, 5/12/1975).
100
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A publicação denominada O Caminho das Águas em Salvador (SANTOS et al, 2007), produzida
em conjunto pelo Governo do Estado da Bahia e pela UFBA, é resultado de uma pesquisa em
160 bairros de Salvador (distribuídos em 12 bacias hidrográficas e 09 bacias de drenagem, além
das 03 ilhas e ilhotas do município), propondo limites para os bairros.
A delimitação do bairro pode ser visualizada na Figura 14, cuja transcrição a seguir é uma
descrição resumida da delimitação do bairro do Engenho Velho da Federação:
38
Os 22 subdistritos de Salvador são: Amaralina, Brotas, Conceição da Praia, Itapoã, Maré, Mares, Nazaré,
Brotas, Candeias, Conceição da Praia, Cotegipe, Itapoan, Maré, Mares, Nazaré, Paripe, Passo, Penha, Periperi,
Pilar, Pirajá, Plataforma, Santana, Santo Antônio, São Caetano, São Cristóvão, São Pedro, Sé, Valéria e Vitória.
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Esta delimitação é bem similar aos limites adotados pelo Atlas de Desenvolvimento Humano
da Região Metropolitana de Salvador para a realização deste projeto do PNUD (Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento) em parceria com o Governo do Estado da Bahia,
realizado em 2006. O bairro do Engenho Velho da Federação constitui a UDH 14 (Unidade de
Desenvolvimento Humano 14), tendo nesta delimitação uma agregação de características
mais homogêneas do bairro, face ao histórico da configuração sócio-espacial, conforme pode
ser visto na Figura 15, excluindo a área relativa à implantação do conjunto habitacional Parque
Santa Madalena, implantado posteriormente em conformidade aos moldes das politicas
habitacionais.
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Segundo o consenso, o bairro aparenta na sua paisagem o retrato da pobreza, através das
características e tipologias das construções e da manutenção da precariedade pela
ausência de políticas públicas.
Assim, boa parte dos limites do Engenho Velho da Federação está inscrita na poligonal da
Zona Especial de Interesse Social ZEIS 13 - Engenho Velho da Federação39, em destaque
na cor rosa, contígua à ZEIS 12 - Vale da Muriçoca, dadas as condições de renda da
população e das condições urbanísticas precarizadas (no sentido da manutenção da
precariedade pela ausência de políticas públicas). Segundo o PDDU/2008:
Art. 78. Zonas Especiais de Interesse Social, ZEIS, são aquelas destinadas à
implementação de programas de regularização urbanística, fundiária e produção,
manutenção ou qualificação de Habitação de Interesse Social, HIS.
Sob os limites do bairro, não fazem parte da ZEIS 13 os terrenos lindeiros da primeira
quadra da Rua Henriqueta Martins Catarino (esquina com a Av. Cardeal da Silva), os
terrenos lindeiros à Av. Vasco da Gama e o Conjunto Residencial Parque Santa Madalena,
conforme nos mostra a Figura 18.
39
Desde 1985, através da Lei Nº 3.592/85, o bairro do Engenho Velho da Federação é uma Área de Proteção
Sócio-Ecológica - APSE (APSE 19), transformada em ZEIS pelo PDDU/2008 Salvador.
105
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Sobrepondo-se à área que corresponde à ZEIS 13, em destaque na cor laranja, existe
também a APCP-003 - Área de Proteção Cultural e Paisagística - que abrange as áreas do
Candomblé Ilê Axé Iyá Nassô Oká (Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho), do
Candomblé Ipatitió Gallo (também conhecido como Terreiro Patiti Obá) e do Candomblé
Zoôgodô Bogum Malê Rundô (Terreiro do Bogum), pela Lei 3.591/85.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Vimos que as amplas áreas de mata foram cedendo lugar às moradias, restando vestígios
destas áreas em pequenas porções arborizadas, como podemos ver nas Figuras 19 e 20.
No que tange o sistema viário e a classificação das vias do bairro, de acordo com a hierarquização
do sistema viário básico do município de Salvador, segundo a LOUOS/1984, como pode ser
visualizado na Figura 14, temos como principal logradouro a Rua Apolinário de Santana (Via
Coletora II) que, ao unir-se com a Rua Manoel Bonfim (Via Coletora II), também conhecida como
Ladeira do Bogum, liga as avenidas Cardeal da Silva e Vasco da Gama (Via Coletora I e Via
Arterial II, respectivamente), vias importantes de integração ao conjunto da cidade.
108
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Um acesso secundário e de uso local à Av. Vasco da Gama é possível através da Rua das
Palmeiras, seguindo pela atual Rua Xisto Bahia (Via Local), que anteriormente denominava-
se, segundo Seu Valter, Rua do Pau Zerrém:
... existia um candomblé jêje na ladeira que hoje chama Xisto Bahia e que
não tem nada a ver com a história do Engenho Velho. Esta ladeira chamava-
se Pau Zerrém. Este Pau Zerrém é o nome de um orixá que tem no Jêje.
Fizeram lá a mudança, colocado não sei por quem, e botou Xisto Bahia.
Outra via importante é o Vale da Muriçoca, nome mais conhecido da Rua Sérgio de Carvalho,
no limite do bairro, como já citado anteriormente. Esta via é parte da ligação entre as
avenidas Cardeal da Silva e Vasco da Gama, chegando ao Parque São Brás, na Federação.
Futuramente, esta via, que atualmente é uma Via Coletora, poderá ser transformada em uma
Via Arterial, através da construção da ligação entre o Vale da Muriçoca com a Av. Garibaldi,
conforme previsão da LOUOS/2012, podendo reconfigurar (urbanística, arquitetônica,
socialmente) este trecho do bairro do Engenho Velho da Federação.
Estas vias são importantes, pois permitem o livre fluxo de tráfego de veículos, sendo vias em
mão-dupla. No entanto, a circulação interna do bairro e o acesso à boa parte das residências
são garantidos pela rede de ruas sem saída para automóveis e ruas de pedestres,
oficialmente denominadas por ruas, avenidas e travessas pelo poder público, e também pelas
escadarias. Criadas pelos próprios moradores, as trilhas e caminhos de terra batida foram
abertos em mata fechada: com o adensamento das construções, as trilhas foram se fechando,
constituindo becos e vielas, como aparece na Figura 22, com o sistema viário do bairro.
109
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
110
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A circulação interna de pedestres, constituída por caminhos (becos, vielas, ruas) e escadarias,
surge condicionada a uma série de fatores como a integração ao sistema viário da cidade, o
acesso às fontes d’água, a topografia local com terreno bastante acidentado, etc.
111
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Esta organização viária funciona também como drenagem (escape das águas das chuvas),
sendo bastante permeada com vários acessos intermediários transversais, entre as
diferentes vias de penetração ao interior do bairro. Vemos também no Perfil Longitudinal a
encosta bem acentuada que margeia a Av. Vasco da Gama, como também pode ser
verificado na Figura 3 (p. 33) e Figura 26.
Na Figura 27, temos o exemplo da Rua Forno da Mangueira, que vence um desnível de
aproximadamente 30 metros entre a Rua Apolinário de Santana e a Rua Nazaré de Maria:
A Figura 27 foi trabalhada sobre a Figura 28, foto tirada à distância, e nos permite fazer a
identificação de 08 pavimentos abaixo do nível da Rua Apolinário de Santana, podendo ter
ainda mais três pavimentos, segundo a análise feita a partir de percurso a pé chegando até
a Rua Dulcinéia.
Os acessos à Av. Vasco da Gama, ao Vale da Muriçoca e à Baixa da Égua se fazem por
ladeiras e escadarias, com trechos, por vezes, bastante íngremes. A maioria dos caminhos
criados pelos moradores foi reconstruída ou reformada por gestões municipais. Na
reconstrução, muitos dos caminhos foram “reinaugurados”, sofrendo, inclusive, mudança
dos nomes denominados originalmente pelos moradores.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A outra escola pública é a Escola Municipal São Gonçalo, na divisa com o bairro da
Federação, na margem oposta da Av. Cardeal da Silva. O posto de saúde, que atende de
forma muito incipiente ao bairro, e a lavanderia comunitária encontram-se anexos a esta
escola. Uma terceira escola está localizada na Av. Cardeal da Silva: é a Escola Municipal
Cidade de Jequié, um pouco mais distante, mas que também atende crianças do Engenho
Velho da Federação.
Outras referências importantes são a escola infantil particular Via Magia, que sedia também
o Instituto Cultural Via Magia40, e as faculdades particulares Unifacs e UCSal. Esta, por
sinal, é uma referência bem antiga do bairro, desde o tempo que era a horta dos padres,
como informa Makota Valdina.
Há também, por outro lado, a pressão da especulação imobiliária em relação aos aluguéis
para atender aos estudantes vindos de outros municípios do estado, comprometendo a
oferta de imóveis para moradores locais. E também, juntamente com outra faculdade,
promove a circulação de estudantes usuários de drogas.
40
O Instituto é uma instituição particular que busca articulação com os moradores e associações do Engenho
Velho da Federação, interagindo com as crianças e jovens do bairro, buscando incorporar em seu projeto
pedagógico as diversidades culturais.
121
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Diante de tal importância para a população do bairro, como também para a cidade, o
reconhecimento do estado se fez pela implantação do Busto de Mãe Runhó, localizado no
Largo do Bogum, o único monumento público na cidade de Salvador que homenageia uma
líder espiritual de terreiro de religião africana (SILVA, 2009).
Na Praça Mãe Runhó, há também a imagem de São Lázaro, que pode ser vista na Figura 35,
que representa a forte devoção dos moradores do bairro pelo santo católico. Segundo Dona
Neide, o altar de São Lázaro foi erguido pelos devotos antes da construção da igreja católica.
A igreja foi construída em 1970 com ajuda da comunidade, na captação de recursos financeiros
através de quermesses e bingos, tendo o padre da igreja, Padre Lebret, convocado detentos
para os trabalhos de construção civil da igreja. Há controvérsias sobre a doação do terreno onde
está implantada a igreja católica de Santa Cruz. Obtivemos esta informação primeiramente com
Seu Orlando, a área pertencia ao Terreiro Tanuri Junçara; em matéria de jornal, o Seu Valter
Neves também afirma que quem doou o terreno foi o terreiro de candomblé. Confirmamos esta
informação também com Dona Helena, antiga adepta do Tanuri Junçara, que é de nação
angola, e que nos informou que alguns adeptos do terreiro eram ligados à comunidade católica,
sendo, então, a área cedida por Seu Lolô, à época, o dono do terreiro. Outra comprovação é a
rua que ladeia a igreja, cujo nome é Rua Elizabete, nome da fundadora do terreiro.
No âmbito das mídias populares, funciona no bairro do Engenho Velho da Federação uma rádio
alternativa. Apesar de ser chamada de rádio comunitária, não apresenta este caráter, pois não é
gerida por moradores do bairro. A rádio foi fundada e é operada por um radialista profissional41,
Beto Mendes, sendo mantida pelos comerciantes e prestadores de serviço locais.
São 32 caixas instaladas em postes de iluminação pública do bairro, como mostra a Figura
36, com potências diferenciadas em função da condição de localização das caixas: locais
mais ou menos abertos. Além dos comerciais, a rádio produz programas musicais com
diversos estilos de música e também presta serviço de utilidade pública como avisos dos
moradores, achados e perdidos, eventos dos bairros, notícias e também previsões de
horóscopo, do tempo e resultados de jogos e loterias, além de campanhas de interesse
público. A rádio também pode ser acompanhada pela internet através do seu site (link da
Rádio Satélite: www.radiosatelite.com.br).
41
A entrevista com o radialista Beto Mendes, proprietário da rádio, ocorreu em abril de 2011.
123
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
42
Sucos de fruta congelados armazenados em saquinhos plásticos.
124
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A prestação serviços é bastante variada, como salão de beleza, oficinas de corte e costura,
barbeiros, estofarias, pequenas mecânicas, etc., instalados em pontos comerciais ou em
residências: trançadeiras, manicures, etc.
Como já vimos, partes do bairro tiveram sua ocupação em períodos diferenciados, nos quais
houve uma consolidação mais acentuada aos moldes das legislações urbanísticas nas
proximidades da Av. Cardeal da Silva, uma das avenidas de cumeada da cidade, em
comparação à ocupação dos vales junto aos rios.
Figura 37 - Edificações (na cor marrom) construídas junto à testada da Rua Apolinário de Santana
Fonte: Elaboração da Autora - Base do Mapa: LOUOS/1984 (Versão 1.3)
Este tipo de ocupação derivou na tipologia de casas ladeadas, como podemos visualizar
através das fachadas que aparecem nas Figuras 38 e 39:
125
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Figura 39 - Casa com adaptação de platibanda Figura 38 - Casa antiga com platibanda na
na Rua Apolinário de Santana (Ano: 2012) Rua Apolinário de Santana (Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora Fonte: Foto da Autora
Vemos na Figura 38 um exemplar de uma da casa que originalmente possuía beiral com
caimento direto sobre a calçada, e que agora tem o escoamento das águas pluviais
direcionado para uma calha. Por determinação legal, ainda no fim do Império, este modelo
foi, aos poucos, substituído pelas platibandas, com a eliminação dos beirais voltados para
os passeios, impedindo que as água pluviais caíssem sobre os transeuntes.
Este modelo das casas sobre as testadas não é uma continuidade, o que configura nesta entrada
principal do bairro uma relação entre cheios e vazios bastante diversificada, pois também é
comum o modelo de casa isolada no lote, com jardins e/ou garagens na entrada e circulação nas
laterais, como pode ser observado na Rua Apolinário de Santana através das Figuras 40 e 41:
126
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Adentrando ao bairro pela encosta, através da Av. Vasco da Gama, é mais comum a ocupação
acomodada à topografia, existindo também um tipo de verticalização abaixo do nível da rua,
como demonstrado anteriormente na Figura 27 (p. 115) e também no exemplo da Figura 42,
com residências implantadas em nível de meio-subsolo e subsolo em relação à via de acesso.
128
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
129
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A intensa ocupação de áreas com elevada declividade dos terrenos gera elevada densidade
edilícia intra-bairro, ocasionando uma baixa proporção de espaços livres nos lotes. Por este
motivo que é comum também no Engenho Velho da Federação, como em tantos outros
bairros de Salvador, o terraço, como forma de compensar a ausência dos quintais. A Figura 45
ilustra a repetição dos terraços no bairro.
130
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
No que tange o exterior das casas, há também variedade na utilização dos materiais de
acabamento compondo a diversidade dos tipos construtivos no bairro: nas construções mais
antigas predomina a pintura à cal, com alternância das cores pigmentadas de azul, verde,
rosa e amarelo e suas variações; nas casas ‘frente de rua’ aparecem outros materiais de
acabamento como a pintura acrílica ou revestimentos cerâmicos; no conjunto de casas
construído no interior dos quarteirões, como pôde ser visto na Figura 16 (p. 104), vigora o
tijolo aparente.
0106 0108
N
0109
0107 0247
0110 0111
0193 0248
0056
0249
0235 0114
0112
0209 0170 0250 0113
0259
0116 0115 0251
0168 0258
0205 0161
0252 0119 0120
0118
0187
0117 0121
260
0160
Figura 46 - Setores Censitários que englobam o Engenho Velho da Federação (Subdistrito da Vitória)
Fonte: Censo 2010/IBGE <http://www.censo2010.ibge.gov.br/cnefe/>. Acesso em: 03 fev.2011 - Edição da Autora
131
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
De acordo com o Censo de 2010, temos apresentada a relação área e população do bairro,
oferecendo-nos a Densidade Demográfica, conforme Tabela 1:
Dados Gerais
Densidade
Área População Demográfica
2
0,94 km 24.555 hab. 26.131 hab./Km²
De acordo com os limites do bairro (SANTOS et al, 2007), o Engenho Velho da Federação
possui área de 939.667,92m2, sendo um bairro de pequenas dimensões. Conforme os
dados do Censo 2010, obtemos a densidade populacional do Engenho Velho da Federação
em torno de 26.131 hab/Km2, sendo uma das mais altas do município, podendo chegar a
bem mais, se considerarmos uma população de 80 mil habitantes.
O Engenho Velho da Federação, o Alto das Pombas e o Calabar, juntamente com os bairros do
Complexo Nordeste de Amaralina (Santa Cruz, Chapada do Rio Vermelho, Vale das Pedrinhas e
Nordeste), são as áreas que concentram maior densidade populacional e, ‘coincidentemente’, são
bairros da Orla atlântica que também concentram os maiores percentuais de populações negras.
43
Segundo o Censo de 2000, este valor era de 23.846 habitantes (dado extraído da publicação O Caminho das
Águas em Salvador).
132
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Para uma noção/ideia do perfil dos moradores do Engenho Velho da Federação, vamos
apresentar alguns dados e índices apontados pelo Censo de 2010, bem como informações
da pesquisa de campo realizada por Ueliton Santos (2011).
No Capítulo 5, expomos nossas impressões em relação aos moradores num aspecto mais
amplo da vida cotidiana no bairro, incorporando as vivências capturadas por nós, uma vez
que entendemos que dados quantitativos não são suficientes, por si só, para compreender a
vida do bairro.
Cor/Raça
Cor/Raça Cor/Raça Cor/Raça Cor/Raça
Negra Branca Amarela Indígena
87,22%
Cor/Raça Preta Cor/Raça Parda 11,79% 0,78% 0,21%
38,43% 48,79%
Tabela 2 - Composição das Categorias de Classificação de Cor/Raça
Fonte: Elaboração da Autora com a utilização de dados do Censo 2010/IBGE
Cor/Raça
Preta - 38,43%
Parda - 48,79%
Branca - 11,79%
Amarela - 0,78%
Indígena - 0,21%
133
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Faixa Etária
Entre De 65 anos
Até 14 anos
15 a 64 anos ou mais
21,12% 73,04% 5,84%
Esta classificação do IBGE é dada pelos grupos de idade da população considerada inativa,
de 0 a 14 anos e 65 anos ou mais de idade, e da população potencialmente ativa, de 15 a
64 anos de idade.
Faixa Etária
15 a 64 anos - 73,04%
Figura 48 - Composição das Categorias de Classificação de Faixa Etária no Engenho Velho da Federação
Fonte: Elaboração da Autora com a utilização de dados do Censo 2010/IBGE
Em relação aos rendimentos dos moradores do bairro, segundo os dados do Censo 2010,
Fonte: Elaboração da autora
cujos valores referem-se ao valor do rendimento nominal médio mensal das pessoas ativas
(pessoas de 10 anos ou mais de idade com rendimento), a renda média de 11% dos
moradores equivale a 3 salários mínimos (à época R$ 1.528,83), enquanto que o restante
dos moradores, 89%, possuem renda média de 1,7 salários mínimos (R$ 853,58), o que
constitui um bairro considerado como de baixa renda.
134
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Existe um percentual de rendas extras obtidas nos mercado informal de trabalho, os ‘bicos’,
cujos dados não são mensuráveis. No entanto, mesmo as rendas se tornando um pouco
mais elevadas que do que é apontado pelo IBGE, estas não equivalem aos mesmos índices
de qualidade de vida se relativizarmos um bairro deficiente na infraestrutura urbana (ruas
escuras, lixo acumulado, trechos com esgoto a céu aberto, falhas constantes no
abastecimento d’água, etc.) a outras áreas bem saneadas (presença de iluminação pública,
pavimentação, arborização, drenagem pluvial, regularidade na coleta de lixo, existência de
calçada e meio-fio, etc.), como estão espacializados os 11% de moradores com rendas
maiores, que correspondem aos setores censitários localizados entre a Av. Cardeal da Silva
e a Rua Henriqueta Catarino junto ao Parque São Gonçalo, conforme as Figuras 49 e 50, e
aos três setores censitários que correspondem à área do Parque Santa Madalena, como
pode ser observado na Figura 51.
135
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Diante da impossibilidade de obter dados do IBGE de Religião, recortados por bairro, vamos
tomar, a título de menção, os dados coletados na pesquisa de campo realizada por Santos
(2011) no Engenho Velho da Federação. A pesquisa de Santos foi realizada com a
aplicação de 400 questionários, distribuídos de forma razoavelmente uniforme em áreas
distintas do bairro e aplicados a pessoas com mais de 25 anos, sendo que, para a variável
Religião, 8 questões não foram respondidas, totalizando em 392 respostas válidas. Os
dados do percentual de participações nas Religiões dos moradores do bairro em 2010,
segundo Santos (2011), são:
Religião
Sem
Católica Evangélica Espírita Candomblé Judaica Islâmica Outros Total
religião
% 62,5 16,3 2,6 5,6 0,0 0,0 4,8 8,2 100,0
Tabela 4 - Participações nas Religiões no Engenho Velho da Federação
Fonte: Elaboração da Autora com dados de Ueliton Santos (2011)
Vemos nos resultados fornecidos por Santos que a religião do Candomblé aparece pouco
representada no bairro. De acordo com o IBGE, o mesmo ocorre no município de Salvador:
num universo de 2.675.656 habitantes, segundo o Censo 2010, apenas 28.019 habitantes
(1,05%) se declararam adeptos das religiões da umbanda e do candomblé. No Brasil, os
adeptos da umbanda e do candomblé que aparecem no Censo 2010 são 0,3% da
população. No entanto, sabemos que estes dados não refletem a realidade do Engenho
Velho da Federação. Daremos continuidade a este assunto no Capítulo 5.
Com estas informações sobre o total de população, densidade demográfica, cor/raça, faixa
etária, renda e religião, podemos ter uma ideia do perfil dos moradores do bairro.
Com a desagregação do sistema escravista, a área das fazendas, pouco a pouco, foi se
consolidando como ‘bairro’ com a instalação de moradias, tendo como referência a
territorialidade dos terreiros já instalados. Uma vez que as fazendas perderam rendimentos
econômicos na sua função agrícola baseada no escravismo, deduzimos que estas foram
arrendadas, apoiadas no instrumento jurídico colonial, numa postura conservadora de
manutenção de concentração de terras, mantendo uma estrutura fundiária patrimonialista,
auferindo rendas ‘perpétuas’ aos proprietários.
137
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Segundo Araújo (2010), estas formas jurídicas, caracterizadas pelo direito de uso, serviram
como uma mediação a dar acesso ao solo urbano aos segmentos populacionais mais
desfavorecidos, sem implicar em perda de domínio das terras por parte das elites. As terras do
poder público se conformam pela enfiteuse; as grandes extensões de terras particulares de
propriedade da igreja católica e de famílias ricas se configuram pelo aforamento.
Este é o modelo adotado também no Engenho Velho da Federação, sendo configurado pelo
aforamento uma vez que são terras particulares. Na dissertação de Santos (2011), tivemos
acesso às escrituras de transferência de propriedade das fazendas Madre de Deus, em 1916, e
Roça do Engenho Velho, em 1953, junto aos cartórios de imóveis. Conforme os registros de
imóveis do cartório do 1º Ofício da Cidade do Salvador, as fazendas Madre de Deus e Roça do
Engenho Velho estão nomeadas, respectivamente, a Hermógenes Príncipe de Oliveira e a
Antônio Lopes Figueira. Esta titularidade, no entanto constitui, de fato, em irregularidade
fundiária, uma vez que a maior parte dos arrendatários interrompeu os pagamentos dos
arrendamentos há décadas, constituindo, portanto, objeto de usucapião.
No entanto, as terras não mais se constituem como fazendas e o processo de arrendamento dos
‘lotes’ [porções de terra] era assim definido:
É necessário destacar as porções de terra que não eram lotes, e sim porções de ‘terra nua’. Já vimos
nas informações dos moradores que a ocupação do bairro foi caracterizada por autoconstrução
nestas porções de terra arrendadas, inclusive em relação aos acessos às porções de terra,
desbravando as matas, abrindo ruas com enxadas, foices e facões, etc. Através de
representantes/procuradores, os proprietários das fazendas constituíram, ao longo de várias
décadas, “parcelamentos” ilegais. Esta informação é comprovada nas documentações oficiais, como
o Inventário de Loteamentos (SALVADOR, 1977) e na LOUOS/1984, nos quais não há
parcelamentos oficiais registrados no Engenho Velho da Federação.
Segundo Miranda (2008), o arrendamento iniciado no bairro por volta da década de 1920 foi
descaracterizado, uma vez que as casas, inicialmente construídas em taipa, pouco a pouco
foram substituídas pelas construções em alvenaria de blocos, devido a um certo descontrole por
parte dos procuradores dos proprietários do terreno, ao mesmo tempo em que houve o
investimento de melhorias da infraestrutura urbana, mediante pressão dos moradores a políticos
e órgãos públicos.
138
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Com o passar das décadas, as terras do bairro foram sendo valorizadas pela ação de
melhorias dos próprios moradores, havendo um aumento dos procuradores dos
proprietários no bairro na cobrança dos arrendamentos. Os moradores, através da
associação dos moradores, começaram a se organizar na Comissão de Terra, surgindo
uma intensa campanha que recomendava a suspensão total do pagamento dos
arrendamentos, obtendo um êxito de cerca de 90%. Esta iniciativa também surtiu efeito
como pressão aos órgãos competentes44 para que providências fossem iniciadas para a
regularização fundiária do bairro.
Ela mesmo assinava o recibo e dava a gente, com selo, com tudo. Ela vinha
e cobrava todo mês uma quantia. O nome dela era Maria da Glória.
Chamavam ela de Senhora, Dona Senhora. Ela morava na Cardeal. Acho
que ela nem tinha casa. Ela era branca. Acho que ela convivia com esse
pessoal [os proprietários] que deu essa autonomia para ela cobrar. Ela saia
vendendo. O que ela via vazio, ela queria vender. Terreno que não tinha
casa, terreno desocupado... Todo mundo que tinha quintal grande, ela
dividiu e vendeu. Ela cobrava de porta em porta. Era branco que ‘táva
cobrando, n’é... Quem não pagava, ela cortava [dividia o terreno] e vendia.
Aluguel do terreno, tinha que pagar... As pessoas tinham medo de perder o
terreno. Quem não brigou, perdeu... Aí mudou o Engenho Velho.
Antigamente os quintais eram imensos. Ela fez uma limpa. Isso tem uns
cinquenta anos. Depois que eu me formei, achei que não devia mais pagar.
Só pago o IPTU.
44
Os agentes públicos capazes de efetuar tais políticas são de âmbito federal, estadual e municipal, que podem
ser mais efetivas em ações conjuntas dos Governos Municipal e do Estado, Ministério Público, Ministério das
Cidades e ainda agentes financeiros como a Caixa Econômica Federal.
139
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Quando Dona Maria Angélica fala em “resolver este terreno”, se referindo à regularização
fundiária, numa titulação definitiva:
Aí em cima tem muita reunião para passar para ser próprio. É mais em
época de política. Eu pago a prefeitura todo mês. Agora estou aguardando
resolver este terreno.
Era Seu Hermózio que vendia os terrenos 'em dia de domingo' e também a
ele se pagava as prestações. Depois meu marido construiu três casinhas
nos fundos do quintal que eu alugo.
Essa área era dos Catarinos, eles que mandavam aqui dentro. Tinha uma
pessoa que tomava conta deste Engenho Velho da Federação. Era Dona
Senhora. A gente era um tipo de inquilino... Tinha também o Cabo Eraque...
Havia muitos cobradores. Além de Dona Glória, Dona Senhora, havia também o Seu Amor,
outro cobrador das famílias Príncipe e Catarino.
Dona Joana explica como está o processo atual da situação fundiária no bairro:
Pelo fato dos terrenos serem arrendados, isto é, sem propriedade do usuário, os
procuradores dos proprietários de terra se compreendiam no direito de ‘cortar’ [parcelar] as
porções de terra não edificadas, como os quintais, por exemplo, e ‘vendiam’ [arrendavam] a
outros ‘locatários’.
140
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Muitos terreiros também passaram pelo mesmo processo de perda de áreas dos seus
espaços-mato, sendo áreas menos habitadas, pressionados pelos procuradores dos
proprietários ou mesmo tiveram suas áreas vendidas, à revelia, pelos proprietários.
Por outro lado, houve também perda de área dos terreiros iniciada pelos próprios
herdeiros dos filhos e filhas-de-santo dos terreiros que foram ocupando, paulatinamente,
áreas que eram cedidas pelas lideranças dos terreiros, como já mencionado. A redução de
áreas se deu também por ‘invasão’, desfigurando as ocupações cedidas inicialmente para
ocupações forçadas, com uso de coerções “morais” ou físicas aos líderes religiosos.
No mapeamento elaborado por Rego (2006), boa parte do bairro do Engenho Velho da
Federação era ocupada por áreas de terreiro. Nos seus estudos de caso, a autora
reconstitui o território contínuo original de utilização e pertencimento dos Terreiros da
Casa Branca, Patiti Obá e do Bogum, conforme Figura 52, e a área original do Terreiro do
Cobre, conforme Figura 53, e a redução de suas áreas.
141
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Figura
Figura 52 53 - Mapa de delimitação da área do Figura 53 - Mapa de delimitação da área do
Figura 53
território contínuo de utilização e pertencimento dos Terreiro do Cobre (Elaboração: Jussara Rego)
Terreiros da Casa Branca, Patiti Obá e Bogum Fonte: Rego (2006)
(Elaboração: Jussara Rego)
Fonte: Rego (2006)
Seu Valter ilustra indignado sobre esta redução de área que os terreiros passaram através
de um caso de uma oficina mecânica, com acesso na esquina da Av. Vasco da Gama com a
Avenida Fonseca, o antigo Beco Júlio das Neves, cuja área foi cedida pela Casa Branca:
Teve um mesmo que não tinha onde ficar, o da oficina... Deram para ele
fazer a oficina e depois ele vendeu a oficina, vendeu! É complicado!
Segundo Oliveira (2005), o suposto proprietário das terras, o arrendador, instalou à revelia
do terreiro um posto de gasolina na área da praça à entrada do terreiro, a Praça de Oxum.
142
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Foram mobilizados apoios de toda ordem. Articulações no meio do candomblé, nos meios
políticos, intelectuais, artísticos. A campanha encontrava eco na sociedade e todas as
iniciativas visavam à garantia da integridade do terreiro. Um conjunto de esforços adotados
e medidas estratégicas fomentaram o progressivo desinteresse comercial pela área,
viabilizando economicamente a desapropriação, e sua ressignificação como um Patrimônio
Histórico e Etnográfico do Brasil.
Neste tombamento da Casa Branca, segundo Serra, havia também uma novidade na
intenção conceitual: o reconhecimento de um patrimônio cultural do povo negro (Serra apud
CANTARINO, 1984). E assim, o tombamento municipal contemplou o Terreiro da Casa
Branca, conforme mostra a placa na Figura 54, e, por extensão, pelas proximidades de
vizinhança e contiguidade histórica e religiosa, os terreiros do Bogum e Patiti Obá.
Figura 54 - Placa dos Tombamentos Federal e Municipal do Terreiro da Casa Branca (Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora
143
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
e do Bogum, em meio a tantos outros conflitos45, foi um reconhecimento das áreas dos
terreiros e seu entorno pelo planejamento urbano.
Aqui tem muita gente do interior: Santo Antônio de Jesus, Amargosa, Santo
Amaro, Ilha de Itaparica, Maragojipe, Cachoeira, São Francisco do Conde...
Ali mesmo naquele pedacinho onde a gente morava, veio todo mundo do
interior, de Santo Amaro, de São Sebastião, outro veio de Terra Nova...
Sempre os homens vinham para trabalhar na construção civil...
45
Ordep Serra informa que o Terreiro da Casa Branca também teve a Praça de Oxum sob ameaça de leilão para
pagamento de IPTU, imposto isento aos templos religiosos.
144
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A fotografia aérea de 1959, que pode ser vista na Figura 55, mostra que a ocupação do
bairro se deu primeiramente nas partes mais altas, naturalmente por constituírem melhores
condições de acesso, uma vez que o bairro foi erguido diretamente sobre terra nua,
destituída de qualquer infraestrutura, arruamentos, calçamentos, drenagens, etc. Assim, as
áreas mais favoráveis à implantação das casas eram as áreas mais secas, arejadas e
ventiladas do bairro, as partes altas, cujos acessos, trilhas e caminhos de terra, foram
abertos em meio às matas, pelos próprios moradores.
145
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Figura 55 - Fotografia Aérea Vertical - Ano 1959 (Nº 4186 - Escala Original: 1/25.000)
Fonte: Base Cartográfica SICAR/RMS (Créditos: CONDER/INFORMS) - Editada pela Autora
Ainda observando a fotografia aérea do ano 1959, vemos que os vales, grotões e brongos
(áreas sombreadas) eram pouco ocupados, com a existência de muitas áreas
caracterizadas por pequenas matas, como descreve Makota Valdina:
146
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Notamos que a rua principal do bairro, então denominada de Rua do Engenho Velho da
Federação, hoje conhecida como Rua Apolinário de Santana, já aparece com a configuração
dos diais atuais. Esta via era de terra e em alguns trechos era bem estreita, inviabilizando até
mesmo a passagem de animais de carga como jegues e mulas, como conta Dona Lindaura.
Este nome é uma homenagem ao grande jogador de futebol nascido no bairro, Popó Baiano:
Popó, o Terrível.
Podemos também observar que o Primeiro Largo do Engenho Velho, que surge da
bifurcação com a Rua Apolinário de Santana atual Rua São Sebastião, também já era bem
consolidado. Dona Laurinda e Dona Maria Angélica se referem a esta bifurcação em função
do acesso às fontes d’água, em direção à Baixa da Égua.
Comparando a Figura 55 com a figura das Vias Principais do Engenho Velho da Federação, a
Figura 22 (p. 110) e que mostra as vias existentes na atualidade, juntamente com a Figura 56
(detalhe da Figura 55), observamos que a Ladeira Manoel Bonfim não aparece. A via
assinalada em contraste, que dá continuidade à atual Rua Apolinário de Santana, é a Ladeira
Cel. João de Deus.
147
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A Figura 56, quando comparada à Figura 52 (p. 142) com a delimitação de área dos Terreiros
da Casa Branca, Patiti Obá e Bogum (REGO, 2006), mostra claramente como a área que
pertencia ao Terreiro do Bogum era unificada, com a atual Ladeira Cel. João de Deus
passando por detrás de seus domínios, em que também aparece a Rua Alafin. Embora
houvesse casas e barracões nas áreas dos terreiros, não é possível identificá-los devido à
densa cobertura das copas das árvores.
Além da Ladeira Cel. João de Deus, temos também caminhos com ‘lotes'/ocupações na
Descida do Madruga, a atual Travessa Valter Ferreira; na Rua São Sebastião, que, segundo
Dona Maria Angélica, era chamada de 3ª Travessa do Engenho Velho da Federação, com
acesso à Baixa da Égua; e na Rua das Palmeiras, próxima à Av. Vasco da Gama.
148
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
É deste período a lembrança de Dona Joana em relação à Rua Xisto Bahia, que ainda não
possuía este nome. Era uma trilha que saía na atual Av. Vasco da Gama e era chamada de
Rua do Pau Zerrém (Terreiro do ser Aprígio):
Essa rua aí era muito mato, matagal mesmo, de barro. Não tinha luz elétrica
e a gente passava aí só com o clarão da Lua. Depois que abriu a rua,
calçou e depois asfaltou, é que botaram o nome de Xisto Bahia.
Figura 57 - Fotografia Aérea Vertical - Ano 1976 (Nº 2259 - Escala Original: 1/8.000)
Fonte: Base Cartográfica SICAR/RMS (Créditos: CONDER/INFORMS) - Editada pela Autora
Na sequência de 17 anos, percebe-se, na fotografia aérea tirada em 1976, como pode ser
observado na Figura 57, o processo acelerado da ocupação do bairro. Nas áreas de melhor
acesso, as grandes áreas de mata foram suprimidas, ficando exíguas e restritas às áreas dos
terreiros, ao interior de quintais, às encostas e aos grotões. Já aparece a Ladeira do Bogum,
149
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
denominada oficialmente de Manoel Bonfim, que era um caminho bem íngreme e estreito, e
que foi aberta com trator pela prefeitura, na década de 1970. Boa parte dos inúmeros
caminhos de terra de acesso às casas aparece acompanhando as curvas de nível, sendo
possível observar também as áreas destinadas às hortas na Baixa da Égua.
Ainda na fotografia da Figura 57, em relação à região onde o Engenho Velho da Federação
está inserido, também podemos perceber o quanto o bairro tornou-se mais densamente
construído, ao longo destes 17 anos, quando comparado com o seu entorno, onde
permaneceram áreas vazias: áreas não edificadas e áreas verdes. Esta desproporção de
ocupação demonstra a insuficiência das políticas habitacionais que constitui a carência de
oferta de moradia para as populações mais pobres, concomitante ao sentido agregador
difundido pelos terreiros, em que podemos atribuir à própria concentração dos terreiros
como fator de atração, na sua dinâmica cultural e cultural agregadora.
150
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
As análises destas fotografias como fontes documentais são comprovações das entrevistas
com os moradores, através de suas falas: “Aqui era muita barro, muita lama. Quando chovia
então”... ou ainda, através de suas próprias fotografias. Dona Albertina, por exemplo, nos
forneceu dados sobre sua rua, a Avenida Passos, localizada entre a Baixa da Égua e a Av.
Cardeal da Silva. Gentilmente, Dona Albertina nos cedeu fotografias de sua família, nas
quais aparecem suas crianças brincando46 na rua de terra, como podemos verificar no
conjunto de fotografias da Figura 59:
Figura 59 - Conjunto de fotografias dos filhos de Dona Albertina e Seu Ioiô na Avenida Passos (Ano: 1977)
Fonte: Fotos da Família Santos
46
Nota-se que numa das fotografias, as crianças brincando de terreiro, na qual há uma menina que representa a
mãe-de-santo, utilizando torso e colares.
151
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
As ruas de terra são recorrentes nas falas dos moradores. Dona Maria Angélica dizia:
A rua era de barro: tinha um rego no meio, onde a água descia, e todo
mundo caía. Depois o rego foi coberto pelos próprios moradores que
abriram a rua nesta largura que é hoje, com duas calhas nas laterais. Quem
primeiro melhorou a rua foram os moradores. Depois que veio um vereador
que botou asfalto.
Seu Edílzio, também morador da Rua São Sebastião, vizinho de Dona Maria Angélica:
Neste período, as casas ainda não tinham água encanada. Muitas fontes ainda eram
utilizadas. Dona Maria Angélica também conta que com o tempo, apareceram alguns
chafarizes:
Depois veio a água encanada no chafariz, a gente ficava na fila enorme. Ali
se sabia das fofocas... A água vinha do Garcia.
A rede elétrica veio depois. Colocaram primeiro os postes de madeira, seguidos dos postes
de ferro. Mas, segundo Seu Valter Neves, “dava aquele problema, o povo levava choque.
Uns até morreram...”. Posteriormente os postes de concreto foram instalados.
152
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Figura 60 - Fotografia Aérea Vertical - Ano 1998 (Nº Fx 26A - Foto 017 - Escala Original: 1/8.000)
Fonte: Base Cartográfica SICAR/RMS (Créditos: CONDER/INFORMS)
Explicitamos anteriormente que escolhemos o bairro do Engenho Velho da Federação por sua
histórica característica de concentração de terreiros, sendo este um dos pontos que
condiciona este estudo, sendo os terreiros nucleadores urbanos deste bairro, isto é,
agenciadores de espacialidades urbanas. Como expõe Jaime Sodré, que possui cargos
religiosos em terreiros do bairro, sendo ogã no Terreiro do Bogum e xincarongoma no Terreiro
Tanuri Junçara: “os primeiros núcleos de concentração de pessoas no bairro seriam terreiros”.
153
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
155
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Quadro 1
Quadro 2
Ano Terreiro Endereço
1 1988 Awá Negy R. São Romão
2 N.I. Iyá Loci Ladeira da Paz
3 N.I. Pai Dinho Travessa Palmeiras
4 N.I. Gentil das Matas R. São Romão
5 N.I. Mãe Bete de Oxalá Travessa Palmeiras
6 N.I. Caboclo R. São Romão
7 N.I. Bamburusena Travessa São José
Quadro 3
Ano Terreiro Endereço
1 N.I. Dona Minacó 3ª Trav. Apolinário de Santana
2 N.I. Dona Maria Helena Travessa Assis / Rua Ibitupã
3 N.I. Seu Ioiô Avenida Passos
4 N.I. Dona Das Neves R. São Sebastião
5 1941 Lajuomin Rua Xisto Bahia
156
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Quadro 4
No bairro vizinho, o Alto do Cangira, cujo nome, a palavra Cangira, é de origem bantu e
significa lugar onde são realizadas algumas danças religiosas, encontramos mais 03
terreiros.
Como informa Dona Vitória, filha da Mãe Feliciana, já falecida, cujo terreiro está desativado
e onde atualmente se localiza a sede da Associação de Moradores do Alto do Cangira e que
também funciona na área anexa um centro cultural, esta localidade era vizinha do Engenho
Velho da Federação, cujos acessos eram trilhas por meio da mata.
Dona Vitória, nascida no terreiro, acompanhou muitas vezes a mãe nas festas dos terreiros
vizinhos no Engenho Velho e conta que nas picadas havia grandes pedras e fontes: “Havia
no caminho muito esconderijo”.
47
Foi muito tempo liderado por Luís da Muriçoca, um famoso babalorixá do candomblé (Alto do Sobradinho).
157
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
No Quadro 5, temos a lembrança de Dona Vitória de mais dois terreiros, além do de sua
mãe: o de Dona Lourdes e o de Dona Luzia.
Quadro 5
Para nossa pesquisa, no entanto, a existência dos terreiros identificados por nós, e de
outros já extintos, nos suscita uma valoração qualitativa das influências civilizatórias dos
terreiros, ao longo do tempo, na constituição do bairro. Entendemos esta característica
quantitativa dos terreiros no bairro como uma importante, ou fundamental, interferência
direta em sua vida cotidiana, que para alguns moradores será positiva, favorável e até
mesmo relevante; para outros, é indiferente e, ainda, para outros moradores, será uma
presença repulsiva. Mas sempre os terreiros serão uma referência.
Como informa Seu Nelito: “O candomblé sempre foi muito forte no bairro”.
Vemos esta fala do Seu Nelito nas práticas de moradores e adeptos dos terreiros do bairro.
São várias as demonstrações de manifestações da vida dos terreiros no bairro. No mês de
agosto, muitos adeptos saem às ruas do bairro em ritual para o orixá Obaluaê, com seu
alimento preferido, a pipoca, visitando alguns terreiros e solicitando, de casa em casa,
doações para sua festa. Em períodos de obrigações para Obaluaê, é comum ver as filhas e
mães-de-santo dos terreiros caminhando pelas ruas do Engenho Velho da Federação:
ricamente vestidas com suas batas, rendas, torços, pulseiras e colares coloridos e pés
descalços, revelam que a peregrinação é, na verdade, uma prova de humildade.
No caso do Terreiro do Seu Ioiô, que está fechado desde seu falecimento, pudemos
“resgatar”, através de sua esposa, Dona Albertina, parte da atuação do terreiro no bairro
158
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
através dos cortejos de São Lázaro que a casa promovia. Outro terreiro desativado é o
Dona Minacó, também muito presente na memória dos moradores, ou ainda um outro mais
antigo, o de Dona Das Neves, mãe de Seu Edílzio. E ainda o terreiro da já falecida Dona
Maria Helena, que “ainda toca”, mas não é considerado um ‘candomblé’. No entanto,
continua sendo uma referência no bairro, sobretudo quando acode a vizinhança doando
água da sua fonte nas frequentes faltas d’água no bairro.
Além dos terreiros que conseguimos demarcar sua localização, existiram ainda outros que
estão na memória dos mais antigos, como recorda Seu Nelito, morador do bairro há 59
anos: “Antigamente a gente tinha aqui 45 candomblés, há uns 50 anos atrás”. E cita os
terreiros de Cipriano (Patiti Obá), de Dona Zinha, de Carrinho de Catendê, de Dona Elza, de
Dona Mineira, de Zé Boiadeiro, de Dona Célia. Dona Albertina, esposa do Seu Ioiô, também
lembra de outros terreiros: de Dona Bela, na Fonte do Forno, do Seu Germano, e de Dona
Vanda, na Rua do Açúcar (atual Rua Ibitupã).
Esta forma social negro-brasileira que, para além de consistir em comunidade litúrgica,
propiciou o entrosamento comunitário para além dos terreiros, sendo parte do processo
cultural constituído pela diáspora africana no Brasil. Assim, tomamos o capítulo seguinte
explorando alicerces culturais negros como forma de produção de conhecimento.
159
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Tomamos por ponto de partida que as vivências de populações negras são resultado das
culturas e processos históricos decorrentes da diáspora africana. Como já nos referimos
anteriormente, o deslocamento de pessoas não implica somente na transposição de
corpos, mas também de instituições culturais e políticas.
Partimos da construção teórica e ativista da Diáspora Africana como projeto político que se
desenvolve a partir dos povos negros, diaspóricos ou não, com o intuito de reação (e ação)
à dominação política, econômica, cultural, espacial, intelectual, ideológica e que se
desdobra num conjunto de significados que se aplica contrária, histórica e
sistematicamente, à população negra. A Diáspora Africana constitui um projeto de
construções de pensamento autônomo, retomando novas perspectivas, em paralelo às
(múltiplas) definições do Ocidente, representadas por alternativas conceituais,
48
metodológicas, filosóficas e, sobretudo, políticas .
48
Perspectivas atuais de intelectuais e ativistas sobre a análise da formação da negritude estão sendo
articuladas como um instrumento transnacional teórico e crítico que não se aplica apenas aos estudos e políticas
sobre a negritude. Este conjunto surge como uma proposta de abranger políticas de ação e reação à hegemonia
vigente para promover a libertação a todos os povos oprimidos (Manifesto da Universidade do Texas em Austin:
uma ‘aproximação’ à Diáspora Africana ou à Diáspora Negra). Disponível em: <http://cdy.sagepub.com>. Acesso
em: 25 jun. 2007.
160
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Fora do continente africano, Salvador é a maior cidade de população negra do mundo. A vinda
de africanos para Salvador, iniciada no século 16, está atrelada às relações globais de produção,
tendo sido o sistema mercantilista, vigente à época, subsidiado pelo escravismo criminoso49 que,
por sua vez, ofereceu suporte financeiro ao capitalismo, numa reação em cadeia global.
As populações negras enquanto grupos sociais negros surgem num contexto histórico
marcado pelas demasiadas proporções da diáspora africana, admitida pelo acatamento aos
discursos de dominação, pautando as desigualdades étnicas.
Muito da discussão sobre a desigualdade étnica está pautada num racismo proveniente do
conceito de raça e/ou raça social. Raça, como um conceito biológico, surge no fim do século
15. Mas, segundo Coquery-Vidrovitch (2004), a utilização do conceito para definir
pertencimentos e diferenciações humanas a grupos pelos aspectos biológicos, conferindo
concepções hierarquizadas entre as diferentes populações humanas, surge no fim do século 17.
Este período demarca a franca dominação europeia sobre a África e a consolidação do
escravismo, como modo de produção, servindo como uma ideologia de discriminação e
dominação europeia50.
49
Na Declaração de Durban, em 2000, realizada na Conferência Mundial na África do Sul, a submissão dos
africanos e seus descendentes ao escravismo foi decretada crime contra a Humanidade. Anteriormente, o Papa
João Paulo II, representante da Igreja Católica de Roma, pediu desculpas à Humanidade por este ato. O pedido
de desculpas, no entanto, é incapaz de apagar todas as barbáries e mazelas causadas pelo escravismo
criminoso, ainda vivenciadas por todos os africanos e seus descendentes tanto no continente africano, como no
resto do planeta.
50
O racismo atinge os negros e também os indígenas. Talvez com menor visibilidade que nas áreas urbanas,
mas também com maior virulência, o racismo perpetua nas áreas do interior, não só da Bahia, mas no interior do
Brasil, onde as velhas práticas coronelistas ainda se aplicam, em que quilombolas e indígenas são alvo de
ataques violentos. Temos o caso do Quilombo do Rio dos Macacos, em Simões Filho, na RMS, ou no baixo Sul
da Bahia, em Caravelas, o Quilombo de Volta Miúda. Contra os indígenas temos o exemplo dos indígenas Hãe
Hãe Hãe, que sofrem reações violentas não só pela defesa de suas terras, mas no acesso às políticas públicas
pautado pelas desigualdades no sistema educacional ou de saúde pública.
161
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Segundo Pesavento, a força das representações na construção do mundo produz uma cadeia
simbólica de sentidos que se organizam segundo a lógica da diferença e que são dados a
perceber como naturais, sendo efetivados no domínio do simbólico, sacramentando os
significados, as funções, os papéis e valores, reafirmando a construção contraditória da realidade:
Estas formas de encarar o outro são distintas e entendemos que, na visão de mundo etnocentrista,
o outro é admitido como inferior, analisado segundo seus próprios padrões civilizatórios:
Esta ideia - reforçada ao longo dos séculos 17, 18 e 19 e que antecede o imperialismo do
século 16 e transcende ao imperialismo do século 19 - viabiliza a dominação europeia no
século 19 e ‘dissemina’ um saber ocidental com uma nova consciência planetária,
constituindo visões de mundo, autoimagens e estereótipos, atribuindo para si a missão
civilizadora em relação ao mundo asiático e africano (HERNANDEZ, 2006; SCHWARCZ,
1993; COQUERY-VIDROVITCH, 2004).
Serra assinala o Ocidente, na sua reflexão entre o exótico, sendo o negro assim convertido,
e o familiar:
o quase-ubíquo, incontido, com uma fronteira fluida deslocada para a ideologia
que o descreve: o Ocidente que se produziu criando com violência intelectual e
política um Oriente bizarro, mágico, inferior (SERRA, 1995, p. 179)
O escravismo sempre fez parte da história da humanidade, não sendo uma prática exclusiva
da África. No entanto, neste continente, foi avassalador, como afirma Carlos Moore:
Moore (2010) elucida que os tráficos atlânticos foram bem organizados, com ampla
participação de uma parcela das elites dominantes africanas, com potencialização dos
colonizadores europeus para os tráficos de populações escravizadas oriundas das guerras
entre Estados nas suas rivalidades clânicas.
Numa revisão de autores e produções sobre estudos afro-brasileiros na Bahia, Soares (2012)
evidencia em Luiz Viana Filho (1946), em O Negro na Bahia, as procedências dos africanos
para o Brasil, estabelecendo ciclos do tráfico negreiro entre os séculos 16 e 19. A
historiadora considera importante a contribuição do autor para a compreensão da dinâmica
do tráfico:
163
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Para o século XVI, o autor denomina de Ciclo da Guiné, ciclo de Angola para
o século XVII; Costa da Mina e o Golfo do Benin compreendem o terceiro
Ciclo, ocorridos nos Setecentos aproximadamente até 1815. Já o último
Ciclo, ou seja, o quarto se distingue pela sua vigência na “fase da
ilegalidade”, compreendida entre 1816 a 1851 (VIANA FILHO, 1988 [1946],
p. 38 apud SOARES, 2012, p, 277).
Também convém evidenciar que nem todos os africanos vieram para o Brasil sob a
condição de escravizados. Já havia um intercâmbio entre Brasil e África na
comercialização de produtos, havendo uma imigração por interesses econômicos. Ou
ainda por perseguição religiosa: Videira e Cunha Junior (2007) ressaltam que africanos
exilados-políticos da região do Marrocos também foram deportados quando da ocupação
portuguesa no norte africano. Estes africanos foram fixados pelos colonizadores
portugueses no norte do Brasil, na região do atual estado do Amapá, como parte da
estratégia de ocupação do território.
O geógrafo e professor Rafael Sanzio elaborou vários mapas relativos aos fluxos
migratórios da Diáspora Africana, expondo rotas de deslocamentos humanos e culturais,
com a peculiaridade de serem mapas recentes e direcionados para a especificidade
brasileira51. No entanto, as imagens dos mapas de grandes dimensões não estão
disponíveis em arquivos digitais para a reprodução impressa.
51
O mais recente dos mapas produzidos por Anjos é:
ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. Geopolítica da Diáspora África - América - Brasil Séculos XV-XVI-XVII-
XVIII-XIX - Cartografia para Educação. 1. ed. Brasília - DF: Mapas Editora & Consultoria, 2012. v. 1. 18p.
A Ficha Técnica está disponível em: <http://www.rafaelsanziodosanjos.com.br/images/PDF/ftpt.pdf >. Acesso em:
30 abr. 2013.
Há também um vídeo do mapa disponível no YouTube: Geopolítica da Diáspora: África - América - Brasil.avi.
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=ircSmqZvPwI&feature=youtu.be>. Acesso em: 30 abr. 2013.
164
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
52
Figura 62 - Mapa da Diáspora Africana por Joseph Harris
Fonte: Bertol, 2005 - Editado pela Autora
Segundo Schwartz (1995 apud ALKMIM, 2002), a mistura de povos de diferentes regiões
africanas sempre caracterizou a população africana na Bahia:
52
Ver também a versão original (on line) do Mapa de Harris:
HARRIS, Joseph E. Mapa da Diáspora Africana: 1492-1992. 1990. Disponível em:
<http://www.bc.edu/schools/cas/aads/DiasporaMap.html>. Acesso em: 09 nov. 2012.
165
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
com acelerar o acúmulo de bens para a aquisição de sua própria alforria, não dependendo
da decisão de sua libertação por parte do escravizador. É o que expõe Gomes:
E, de fato, o índice de alforrias obtido ao final do século 19 era bastante elevado: segundo
Mattoso (1992), no censo de 1872 (16 anos antes da abolição), apenas 12% da população
de Salvador era escravizada. Segundo Chalhoub (2006), conforme a Constituição de 1824,
a alforria dava ao negro ‘a sua condição natural de pessoa’.
E assim, segundo Bertol (2005), somos um país que já reunia, em 2005, o maior número de
afrodescendentes do mundo, com aproximadamente 80 milhões de pessoas. Atualmente,
segundo o IBGE, somos mais de 100 milhões.
Segundo Cunha Junior, como parte da cultura material africana, produtos africanos tiveram
diversas aplicações econômicas, farmacológicas, medicinais, nutricionais e religiosas, todos
resultantes de uma grande experiência civilizatória africana e que foram importantes para a
constituição da sociedade brasileira. As plantas africanas ou cultivadas em grandes
proporções em países africanos formam um capítulo à parte, pois a importação de plantas e
produtos africanos ou mesmo de culturas amplamente desenvolvidas por africanos, implicou
numa transformação da flora brasileira, como a introdução do dendê, com a utilização do
coco na culinária, e da mamona53 com seus efeitos religiosos e curativos, combinando
riqueza e formas de vida. No sentido da qualificação dos africanos, é preciso considerar este
patrimônio para as questões das técnicas de trabalho e daquilo que o Brasil usufruiu vindo
da participação de africanos e afrodescendentes nos diversos ramos da produção artesanal:
a criação de embarcações e edificações tem um saldo importante da contribuição africana.
Além da cultura material africana, há também o patrimônio histórico e cultural imaterial, parte
das africanidades como ‘elementos’ intrínsecos dos povos africanos, quer estejam na África,
quer estejam fora do continente, na diáspora africana.
Através dos aspectos positivos, a perspectiva desta pesquisa procura evidenciar caminhos para
reverter esta situação negativa que se abate sobre a população negra. Os africanos e seus
descendentes recriaram e promoveram formações culturais, filosóficas, ideológicas, intelectuais
e políticas, dada a própria ‘resistência’ desta população, constituindo instituições afro-brasileiras.
Um dos vieses evidenciados na pesquisa, dentre as variações das culturas de matriz africana
em seu processo diaspórico brasileiro, foi dar visibilidade também à cultura bantu, cuja influência
cultural, sobretudo na Bahia, é anterior a outras matrizes culturais que aqui chegaram e que, no
entanto, é menos pesquisada nos estudos culturais, sendo esta cultura de origem bantu
permeada e valorizada como parte das culturas negras, também na cidade de Salvador.
53
Segundo pesquisadores, a origem da mamona é muito discutida, já que existem relatos, em épocas bastante
longínquas, de se cultivo na África e na Ásia. A diversificação de um grande número de variedades desta planta,
encontradas tanto no continente africano, como no asiático, impossibilita qualquer tentativa de estabelecer uma
procedência efetiva da mamona. Alguns pesquisadores acreditam que a mamona tenha sido originária da África,
mais precisamente da Etiópia, estando essa região situada entre os paralelos 5º e 15ºS. Disponível em:
<http://www.biodieselbr.com/plantas/mamona/historia-mamona.htm>. Acesso em: 14 mar. 2013.
Disponível em: <http://www.fmb.edu.br/revista/edicoes/vol_1_num_2/mamona.pdf>. Acesso em: 14 mar. 2013.
167
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Soares (2012) destaca, a partir de Viana Filho (1946) no tocante à supremacia da importação
dos negros bantos para a Bahia do século 17, o que explicaria, em todos os sentidos, a
disseminação da cultura banto.
O expressivo contingente populacional de origem bantu trazido para a Bahia, por exemplo,
contribuiu para a disseminação de terreiros bantu (Angola, Angola Bantu e Bantu) por todo o
município de Salvador, constituindo 25% do total de todos os 1165 terreiros mapeados entre
as demais nações, segundo o Mapeamento de Terreiros de Salvador (2008).
Outros exemplos das manifestações bantu vão desde as irmandades dos homens pretos, os
calundus54, candomblés de caboclo, às umbandas, às macumbas, às congadas, aos
maracatus...
Bantu. A autora se referencia também a Viana Filho (1946), para quem “no século XVII os
bantus eram os donos da Bahia... se catequizavam em línguas de Angola, Quimbundo,
provavelmente” (VIANA FILHO, 1946, p. 56 apud SANTANA, 2011, p. 04).
Em Silveira (2010), temos que a cruz também já fazia parte do repertório simbólico da área
congo-angolana antes da chegada dos portugueses, ao traçar uma conjunção indissolúvel
entre o mundo horizontal da natureza (nza yayi) e o mundo vertical dos espíritos (nsi a
bafwa). Segundo Sodré (1988), as imagens dos santos e a cruz católica atuavam como
símbolos mediados entre a cosmovisão negra e o universo branco-europeu, como também
engendradores de axé, porque eram “santos” [sagrados], logo, seres-força. A cruz católica,
além de ser objeto sagrado dos cristãos, pertencia à tradição litúrgica dos Bakongo (bantu)
enquanto símbolo das quatro fases solares.
Os nagôs também fizeram uso desta plasticidade das crenças, seguindo as estratégias
abertas pelos bantu, utilizadas como recurso de um continuum africanista no exílio, como
também lhes era conveniente. O caso da Irmandade da Boa Morte é exemplar: liderada
por mulheres nagôs, na qual ‘Boa Morte’ é a morte sem mácula, representando um valor
tradicional africano inscrito no código das relações entre os vivos e os mortos, o culto
aos ancestrais.
Além das várias instituições originariamente bantu que foram incorporadas por outras
vertentes culturais, herdamos também uma significativa carga linguística africana de origem
bantu. Os africanos que foram trazidos para o Brasil durante três séculos são, em grande
maioria, de origem bantu. Por isso mesmo, a predominância das palavras africanizadas do
português do Brasil vêm dessa nascente. Diferente, portanto, do teor de influências dos
falantes de iorubá (nagô), procedentes da Nigéria Ocidental e do Benin Oriental (Reino
Ketu), que foram trazidos já no terceiro ciclo da escravidão (CASTRO, 2001).
55
Autônomas em relação à Igreja Católica (religião europeia), os registros destas instituições cristãs originadas
na África são encontrados já no século 5, conforme Murray (1998). Segundo Bernal (1987), o cristianismo não
surge na Europa e sim no Oriente Médio, difundido anteriormente na África, logo nos primeiros séculos. Assim,
temos as magníficas igrejas coptas cristãs escavadas na rocha, no século 7, em Lalibela, Etiópia.
Sobre o cristianismo africano, ver também:
AYELE, Bekerie. Ethiopic: History, principles and influences of African writing system. Doctoral
Dissertation. Phaladelphia, PA: Temple University, 1994.
BÍBLIA SAGRADA - Antigo e Novo Testamento.
169
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Na mesma linha, Lucchesi (2008) afirma que, enquanto em todo território brasileiro teriam
predominado africanos escravizados bantu, na Bahia, após um predomínio bantu verificado
no século 17, os escravizados dessa procedência teriam sido substituídos pelos oeste-
africanos, com a primazia para os iorubás, aqui denominados nagôs. Isso se confirma no
predomínio e na maior antiguidade da presença bantu no Brasil, que se reflete em sua
contribuição para a língua nacional.
Os trabalhos de Castro mostram que o português brasileiro tem sua especificidade dada pelas
línguas africanas, não só pelas palavras introduzidas, pela forma de composição das frases,
como também pela entonação. Temos, no Brasil, 07 vogais: a, é, ê, i, ó, ô, u. Grande parte de
palavras africanas de origem bantu, principalmente das línguas como o quicongo, o quimbundo
e o umbundo, são mais utilizadas que seus sinônimos na língua portuguesa, sem mesmo haver
palavras equivalentes no português de Portugal. Os exemplos dados por Castro (2001) são
muitos: bagunça, banzo, curinga, gangorra, fubá, caçula, moleque, molambo, Cafundó,
camundongo, cachaça, bunda, sunga, macumba, quitanda, tanga, mucama, berimbau, senzala,
mocambo, quilombo, Tabatinga, camundongo, marimbondo, xingar, dengo, cafuné, cochilo,
inhaca, cachaça, cacimba, caçamba, dendê, moringa, Engomadeira56, carimbo, cachimbo,
catinga (inhaca), marimba, mocotó, cafuzo, balangandã, samba57. Entre as palavras de origem
iorubá, temos como exemplos abará, acarajé, orixá, axé, Iemanjá, assento (assentó), estando
associadas ao vocabulário da culinária e da religião, sendo mais recorrentes na Bahia.
56
Bairro em Salvador, Engomadeira vem da origem bantu “ngoma”, que significa tambor no candomblé de
Angola.
57
A palavra samba significa rezar, orar (CASTRO, 2001). Fazendo uma articulação com Cunha Junior, a
circularidade é um conceito filosófico africano, em que o tempo presente é a junção do passado com o futuro
dada a circularidade em espiral. Ao unir samba (reza) à roda (círculo), entendemos que a expressão samba-de-
roda é um exemplo de manifestação de africanos e descendentes (típica da Bahia), de rezar também com o
corpo, para além das manifestações do terreiro, sendo a integração com o divino uma concepção filosófica de
vida. A mesma roda está presente na capoeira, no jongo, no tambor de crioula, na gira do terreiro. Novamente o
lúdico nas brechas da negociação social do negro à qual se refere Sodré.
58
Ver: SERRA, Ordep et al. O Mundo das Folhas. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de
Santana; Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2002.
170
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A cura pela religião do candomblé utiliza folhas, raízes e caules que são como remédios em
forma de banhos, chás, defumadores, xaropes. Apesar de amplamente difundida pelos
moradores de bairros negros, esta cura pelo candomblé perpassava pela reserva de
determinados segmentos sociais, como Tonho nos conta:
Concomitante à acepção religiosa, como parte dela, a utilização das plantas para as práticas
medicinais são recorrentes nas comunidades que circundam os terreiros. Assim, as plantas são
partes desta consciência como forma de proteger a casa de maus agouros, mantidas em casa,
em pequenos canteiros domésticos, além do aspecto cultural-religioso. É importante ressaltar
que as plantas de uso medicinal são utilizadas como remédios caseiros cujo preparo foi
assimilado face às práticas dos terreiros. Como nos informa a bióloga Jussara Rego Dias em
relação às comunidades de terreiro e entorno, é que “existem membros na comunidade com
inegável conhecimento botânico, o que não é comum na sociedade atual” (DIAS, 2003, p. 56).
Nos bairros negros, esta utilização do que se denomina de medicina alternativa é a regra, é o
costume, mediante as práticas de cura cujos ensinamentos advêm dos terreiros, dada a crença
que os moradores atribuem às práticas de curas religiosas, sendo o acesso à cura de doenças,
refletindo-se também na economia doméstica. As plantas, além do aspecto cultural-religioso
afro-brasileiro, também refletem a economia doméstica do bairro negro, quando as plantas de
uso medicinal são utilizadas como remédios caseiros, dispensando-se a compra de
medicamentos industrializados. Há também a possibilidade de ganho de renda com o comércio
destas plantas e ervas por quem conhece suas propriedades, os erveiros.
171
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Segundo Luz (2000), “por todo o Brasil, havia um investimento ideológico envolvendo o
significado do trabalho, que promovia o afastamento do branco livre de qualquer atividade
caracterizada como a ser realizada apenas pelos negros” (LUZ, 2000, p. 375).
Sodré refere-se ao trabalho, no qual o fazer objetivo e cego é apenas um dos momentos da
ação humana: no qual existe também o aspecto da transformação interna do agente, ao
mesmo tempo em que faz o trabalho. Na cosmovisão negra, a ação regula-se pelo padrão
do indivíduo total, de um sujeito articulado consigo mesmo e com outros, em comunidade. A
intuição negra de mundo tem a força de promover certa integração da existência, quase
orgânica, da vida.
172
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Lembramos aqui das numerosas iniciativas individuais dos pequenos comércios nas
residências dos bairros, protagonizados, sobretudo, por mulheres negras, mães de família
que conciliam este trabalho com as atividades domésticas, numa evidente liderança das
mulheres negras. Entendemos esse fato como um desdobramento do predomínio das
mães e filhas de santo na vida comunitária dos terreiros, com a preponderância de
mulheres também como chefes de família.
Soares (1994) explora este protagonismo da mulher negra desde o período da escravidão,
em que a autora destaca, em meio de tantas mulheres negras e no enfrentamento aos
conflitos, trajetórias de sucesso na alforria e ascensão social “superando obstáculos,
personificando modelos de resistência e independências no mundo patriarcal e escravista” (p.
3). Soares (2012) também evidencia Ruth Landes, na sua comparação das mulheres negras
em outras sociedades como a norte-americana e a africana, reconhecendo que as negras
baianas contribuíram “no desenvolvimento das instituições matriarcais, numa sociedade
rigorosamente patriarcal [...] as negras brasileiras, ao controlarem os mercados públicos e as
sociedades religiosas, também controlavam o âmbito familiar” (SOARES, 2012, p. 293).
Salvador é herdeira das quitandeiras africanas, homenageadas em Luanda como pode ser
visto na Figura 63, chamadas aqui de ganhadeiras, e aqui também podemos apontar como
ícones as baianas de acarajé. Estas vendedoras têm no trabalho do acarajé diversas
significações: de um trabalho sagrado, cumprindo a obrigação de preparar e oferecer a
comida sagrada ao orixá, à flexibilização dos dias e horários de trabalho, ao rendimento
lucrativo do negócio, que, em muitos casos, incorpora familiares, bem nos moldes da
dinâmica da civilização africana.
173
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Os registros mostram que a profissão de ganhadeira exigia uma espécie de ‘faro para o
negócio’: Kidder afirmava, já em 1839, que as ganhadeiras revelavam um "grande tato e tino
comercial" (KIDDER, 1972, p.73 apud SOARES, 1996).
Em relação ao ‘gerenciar o próprio tempo’, o pensador africano nigeriano John Mbiti (1999
apud PRANDI, 2001) afirma que nas sociedades ocidentais o tempo é entendido como algo a
ser consumido, podendo ser vendido e comprado como se fosse uma mercadoria, submetido à
máxima “tempo é dinheiro”. Nas sociedades africanas tradicionais, o tempo tem que ser criado
ou produzido. Mbiti afirma que o homem africano é alheio ao tempo no sentido ocidental, não
sendo escravo do tempo, fazendo, ele próprio, o seu tempo: tanto tempo quanto queira.
174
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Há ainda outra configuração de trabalho quando nos referimos aos terreiros: nem todo
trabalho se reverte em produção (produto ou serviço) ou tem esta finalidade. O trabalho do
terreiro é um trabalho criterioso, árduo, intelectual e artesanal, e tem por finalidade atender
ao equilíbrio com o sagrado, com o plano espiritual.
Este trabalho das mulheres negras, cuja aplicação é, em muito, derivada do aprendizado
junto às famílias-de-santo, é compartilhada com a família consanguínea e/ou estendida,
envolvendo-a nas formas de obtenção de renda familiar.
A noção de família é outro importante valor nas comunidades negras. A família é uma
importante instituição que se desdobrou, na diáspora africana no Brasil, na família estendida
que se consagrou nas famílias-de-santo.
Na verdade, "todo mundo está relacionado com todos os outros membros, vivos ou mortos,
por meio de uma complexa rede de relações espirituais, em uma espécie de corpo místico”
(RUCH; ANYANWU, 1981, p. 328 apud OKOLO, 2002). Por isso, os valores africanos
revelam que não é apenas "ser"; é "ser-com-outros". Estar enraizado no parentesco é uma
importante característica existencial generalizada entre os africanos, nunca se está isolado,
desde que as pessoas assimilem um papel parental de pai, mãe, filho, irmão..., por extensão
familiar (OKOLO, 2002). Uma pessoa é um indivíduo na medida em que ele é um membro
de uma família, um clã ou uma comunidade.
O culto aos ancestrais é um dos valores mais importantes da cultura africana tradicional.
Sendo assim, o respeito aos mais velhos se dá pela proximidade destes com os
antepassados, sendo os idosos os parentes mais próximos de seus ancestrais ou parentes
mortos, valor pautado na grande hierarquia de seres do esquema conceitual ontológico
africano. É uma ação contínua a interação entre os mortos e os vivos. Os antepassados não
são apenas fantasmas, nem heróis mortos simplesmente, mas seres presentes envolvidos
diretamente em todos os assuntos da família, vigiando a casa, contribuindo para a
fertilidade e as colheitas abundantes. Os bons ancestrais podem atuar como intermediários
entre Deus e os membros de suas famílias.
Temos que esta relação familiar que une a vida espiritual à vida terrena, ou estas como
partes diferentes de um mesmo todo, se aproxima muito de como se organiza a família-de-
santo na diáspora.
africanos continuava, mesmo no contexto diaspórico, a consistir essencial valor social. Reis
(1986), em seu estudo sobre o levante malê, afirma que:
Um abrangente estudo elaborado por Sandro Bruschi sobre Campo e Cidades da África
Antiga reúne documentos sobre as origens da arquitetura e modelos urbanos da África
antiga. Em análise minuciosa, Bruschi (2001) busca esclarecer a incerteza da existência de
uma civilização urbana autóctone no continente africano:
176
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Bruschi (2001) salienta que os assentamentos africanos foram descritos com palavras e
imagens próprias da cultura urbana pelos mais antigos geógrafos e viajantes que, na idade
moderna, trataram do interior da África: árabes, a partir do século 8, e europeus, a partir do
século 9. Os escritos discorrem sobre impérios poderosos e apresentam ilustrações de
cidades majestosas escondidas no interior de florestas ou às margens dos desertos. Na
época das grandes explorações e, mais tarde, no período colonial, “cada manifestação da
cultura africana, incluindo os assentamentos, foi etiquetada como produção de selvagens,
para justificar a presumível inferioridade racial dos africanos” (p. 2). Bruschi destaca que a
construção ideológica de dominação transformou as cidades, que precedentemente tiveram
sido relatadas com entusiasmo, em “miseráveis conjuntos de palhotas”, ou foram negadas
como não existentes: “os restos arqueológicos, que não podiam ser negados, foram
atribuídos à intervenção de antigos colonizadores ou chegados de outros continentes” (p. 2).
Esta seria, portanto, uma prova demasiada que no caso africano existiam
também sociedades economicamente evoluídas, organizadas em
assentamentos contíguos, autônomos e especializados, em nenhum dos
quais se encontrava um centro de poder (MCINTOSH, 2000 apud
BRUSCHI, 2001, p. 4).
Ao sair da comparação apenas do ponto de vista formal, Bruschi aponta que o poder no
caso de sociedades africanas se encontrou localizado em vários modelos de assentamento
que podem ser chamados de cidade, na medida que responderam de forma eficaz às
exigências de sua gestão.
177
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Entre as características apontadas para cidades africanas antigas, Bruschi atenta para o
valor hierárquico do espaço, em que a organização dos bairros e quarteirões reproduzia o
esquema hierárquico da família alargada, com membros que “reconheçam antepassados
comuns e desenvolvem ritos religiosos em conjunto”, sendo também os lugares em que se
concentravam os diferentes tipos de artesãos ou comerciantes.
Portanto, as análises feitas para as cidades europeias não devem ser as mesmas que para
as cidades africanas.
Numa outra análise de assentamentos africanos, Acioly Junior (1993) estuda as moranças
da Guiné Bissau. Este modelo de assentamento é organizado social e espacialmente de
forma segmentária, com famílias alargadas [extensas] habitando, geralmente, uma mesma
morança. Uma morança, como é localmente denominada, possui um caráter simbólico e
cerimonial e sua morfologia espacial segue uma lógica de organização na qual estão
determinadas as várias atividades básicas e os locais de moradia de seus vários membros.
Segundo Acioly Junior, até então, esta forma peculiar de organização espacial continuava a
ser reproduzida de diversas maneiras no processo de urbanização, em vários núcleos
urbanos de Bissau, fundados posteriormente à colonização.
178
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Além das moranças, Acioly Junior identificou também outra forma de assentamentos, mais
restritos às áreas rurais, as tabancas.
59
Urban Africa: Office/MA, Urbanismo Negro. Disponível em: <http://www.buala.org/pt/cidade/urban-africa-
officema-urbanismo-negro>. Acesso em: 22 mai. 2012.
179
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Para o pesquisador, o Urbanismo Negro não é um produto final: não é algo fixo para o qual
você pode apontar, é um processo. Este processo inclui desde as lutas históricas das
comunidades negras, formadas pela diáspora africana, até as expressões culturais. Citando
o caso da cidade de Nova Orleans, diante da reconstrução da cidade depois da tragédia
causada pelo furacão Katrina:
O arquiteto John Oduroe, parceiro de Paul Goodwin, entende que não há uma única forma
ou estilo estético predominante que sintetiza a negritude como um todo, já que a negritude
evidentemente não é uma formação cultural monolítica. Cada lugar, cada local, cada prática
ou atividade deve, conforme Oduroe, ser lida como única e contingente de circunstâncias
ambientais, culturais, sociais e econômicas específicas:
Para Sodré (1988), o mito, o símbolo e o imaginário de um estilo de vida foram apreendidos
no relacionamento com o espaço. Tomando a referência do mito pela realidade, como
propõe Lefebvre (1999), entendemos estas relações espaciais orientadas pela
ancestralidade, cujo rebatimento também se dá em nosso lugar de pesquisa, o bairro do
Engenho Velho da Federação, como veremos adiante.
60
Disponível em: <http://www.terceirametade.com.br/#/2011/02/paul-goodwin/>. Acesso em: 22 mai. 2012.
180
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Faria (2011), num estudo sobre a influência africana na arquitetura de terra do período
escravista em Minas Gerais, identifica o próprio conceito de habitação à luz da continuidade
familiar e de sua organização social. A autora aponta a casa como local central da
existência humana, encontrando sua identidade, sendo também uma expressão concreta da
continuidade que marca o ciclo da vida da família.
Por estas referências culturais, temos que o urbanismo convencional não possui
ferramentas teóricas capazes de analisar a realização urbana dos diversos grupos sociais,
numa dimensão multicultural da cidade, bem como não apreende contextos sociais distintos
face à própria epistemologia do urbanismo, no sentido de disciplinar, nos moldes de um
181
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
único modelo de uma cultura tida por dominante, e atender ao capital, na sua dinâmica de
fluidez de pessoas e mercadorias.
E em busca de evidenciar formas espaciais que fujam à lógica do capital, é que exploramos
Muniz Sodré, cuja abordagem já foi apontada anteriormente, no sentido de que as
comunidades negras deram sentido à cidade também pela via do lúdico, numa invenção do
urbano pela ludicidade.
Deste modo, temos evidenciado nesta pesquisa a centralidade do candomblé, como forte
expressão da religiosidade de matriz africana, dada por distintas nações, e, com elas, seus
respectivos toques, ritmos, danças, indumentárias, rituais e éticas, entre outras
manifestações, próprias de cada nação, nas suas variantes dadas pela diversidade dos
corpos sociais nos espaços-tempos (nas suas territorializações em vários momentos
históricos). Destes desdobramentos culturais, as expressões musicais são as mais
evidentes e ‘espacializantes’, isto é, ecoam e se estendem pelo espaço, podendo-se mapear
esta ludicidade no espaço urbano.
Quando nos referimos aos cânticos do candomblé e sua sofisticada erudição expressa na
música sacra, podemos compreender o vasto desdobramento, no contexto brasileiro, para
outros ritmos e nuances musicais.
182
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Ou, comoFonte:
podeElaboração da autora
ser visualizado na expressão artística do painel do candombe uruguaio61,
um ritmo proveniente da África e que tem sido parte importante da cultura uruguaia por
mais de 200 anos, marcando o centro tradicional de Montevidéu, como podemos observar
na Figura 67.
61
Disponível em: http://www.candombe.com (Acessado em: 04.01.2012).
183
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A festa propicia a troca de energia; promove o equilíbrio. Das festas do candomblé às festas
de rua, a festa é religiosa, é lúdica, e retorna ao mítico porque, segundo Sodré, “a festa
destina-se, na verdade, a renovar a força” (1988, p. 124).
Sodré reafirma esta vinculação originária dos terreiros que se perpetua pelos grupos de
festa, cordões, blocos carnavalescos e ranchos. Estes sempre estiveram ligados direta ou
indiretamente através dos músicos, compositores ou pessoas de influência ao candomblé.
Cada casa de culto, à qual o autor se refere no contexto carioca, tinha seu bloco
carnavalesco, dando corpo às escolas de samba.
Rolnik (1989) faz esta descrição da formulação de Sodré da dinâmica cultural negra no
contexto das habitações coletivas do início do século 20 em bairros de São Paulo, como o
Lavapés ou a Barra Funda:
184
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Para Sodré (1988), o terreiro, enquanto uma elaboração autônoma de estratégia político-
cultural, opera uma poderosa condensação espaço-cultural de uma territorialização através
da dimensão sagrada, como continuidade cultural africana em território brasileiro, dado que
originalmente o culto às entidades (inquices, orixás, voduns, encantados), no continente
africano, se realizava de forma separada, seja em palácios, templos ou cidades. Risério
(2012) também expõe que os
Se, no continente africano, a religião se dava por família, cultuando os ancestrais familiares,
sobretudo entre os bantos, o terreiro brasileiro reelabora este culto. Nas palavras de Mateus
Aleluia, cantor e compositor cachoeirense, surge na Bahia uma forma de pan-africanismo,
quando pessoas de diferentes etnias, e às vezes rivais na África, se unem para cultuar seus
ancestrais.
A atração cultural dos terreiros não ficou limitada a seu espaço físico. Sodré afirma que os
terreiros, enquanto comunidades responsáveis pela preservação de um patrimônio mítico-
cultural, sempre foram polos de identificação ou plataformas de penetração em espaços
intersticiais, nas fissuras, infiltrando-se e propiciando um desdobramento de suas matrizes
simbólicas através de manifestações culturais como os afoxés, as congadas, os maracatus,
as escolas de samba. Dessa base territorial, teatro de uma memória coletiva ancestral,
irradiaram-se para os corpos negros e não-negros as inscrições simbólicas que constituiriam
o “jeito negro-brasileiro de ser” (SODRÉ, 1988). Luz (2000) também admite esta ideia dos
desdobramentos dos valores e linguagem da tradição dos orixás no âmbito da cultura do
que se convenciona chamar de mundo do samba.
62
Que corresponde à uma parte da Nigéria, de Togo e do Benim (antigo Daomé).
185
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Segundo Serra (2000), a tradição oral do Terreiro da Casa Branca registra a célebre Tia Ciata,
matriarca das escolas de samba cariocas; ela foi uma filha de Oxum iniciada no terreiro,
acompanhando Bamboxê Obitikô em sua ida para o Rio de Janeiro, onde o famoso sacerdote
fundou (na Saúde) talvez o primeiro terreiro carioca de nação nagô: o candomblé de João de
Alabá, explicando o porquê o terreiro baiano da Casa Branca ser uma referência preciosa
para a Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira, tendo, inclusive, recebido uma visita
da Velha Guarda. Em Salvador, os exemplos de extensão dos terreiros para os blocos de axé
no carnaval são inúmeros, como o bloco afro Ilê Aiyê que tem sua vinculação ao Ilê Axé Jitolu.
Sodré (1988) reafirma esta vinculação originária que se perpetua pelos grupos de festa, os
cordões e blocos carnavalescos, os ranchos que sempre estiveram ligados direta ou
indiretamente através dos músicos, compositores ou pessoas de influência do candomblé.
Esta vinculação e complementação do mito e os interesses comunitários propiciavam
também a ascensão econômica e social, pela ampliação de contatos sociais com grupos
não-negros como forma de integração, como uma construção autônoma mítico-política da
comunidade negra, com recursos intelectuais próprios.
Segundo Cunha Junior (2011b), em suas (re)construções teóricas dos territórios de maioria
afrodescendente, ao pensá-los como lócus de formação de identidades coletivas e de
educação para as populações negras, os terreiros propagaram a forma existencial do ser
negro para além do sentido religioso, pautada pela sinergia entre os campos social, político e
econômico, enquanto parte do conjunto cultural filosófico que compõe o pensamento africano
e afrodescendente. Conforme o autor, os terreiros deram os subsídios para a formação dos
blocos afros, afoxés, grupos e escolas de samba, congadas, maracatus, os batuques, os
jongos, grupos de movimentos de Rap e Hip Hop, etc. (e também os bailes funk, a capoeira,
os saraus afro 63), se transformando neles em consequência de sua gênese cultural, como
expressões das formas africanas de ser brasileiro. Na Figura 68 temos um grafite Hip Hop
identificado com a cultura de samba no bairro do Engenho Velho da Federação.
Figura 68 - Grafite na Rua Santo Amaro, no Engenho Velho da Federação (Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora
63
“O sarau do Sankofa é quase um terreiro”, Nelson Maca, professor de Literatura da UCSal e articulador do
Coletivo Blackitude, referindo-se ao Sarau Bem Black que ocorre no Sankofa African Bar, Pelourinho, Salvador,
onde acontecem leituras de poesia, discursos, cantos, música, dança, etc.
187
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Deste modo, muitas das nossas cidades são marcadas por sua dinâmica social. É o que
afirma Joel Rufino dos Santos, destacando comunidades do Rio de Janeiro (Santos apud
LUZ, 2000, p. 342): “a continuidade dos valores, que caracterizou a luta de afirmação sócio-
existencial dos quilombos, se desdobrando nas comunidades negras da atualidade [...] onde
os chamados morros ou favelas reproduzem-se como os quilombos de hoje”; originalmente
morros que foram ocupados e que se transformaram em favelas. Destacamos no Rio de
Janeiro a Pedra do Sal, no bairro da Saúde, e Sacopã, na Lagoa Rodrigo de Freitas. Em
São Paulo, Siqueira (2005) exemplifica com o Quilombo de Jabaquara.
Muitos destes quilombos foram invadidos pelo crescimento urbano, e vários deles se
tornaram áreas valorizadas em meio urbano. Em Porto Alegre, temos o Quilombo da Família
Silva, que, segundo Sommer (2005), foi o primeiro “quilombo urbano” reconhecido em
território nacional. O conceito jurídico de quilombo urbano mais utilizado é aquele
relacionado às comunidades remanescentes de quilombos que tiveram seus territórios
circundados pelo perímetro urbano, conforme Corrêa (2010). Embora estas territorialidades
negras sejam históricas, o conceito de quilombo urbano é recente.
188
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
De fato, nós entendemos esta interpretação e esta imputação ao bairro como quilombo
urbano como uma nova ressignificação, uma vez que em nossas entrevistas com moradores
nunca tivemos referência de que o bairro se originava de quilombo, no sentido histórico do
período escravista.
Mas quilombo também pode ser, na definição de Narcimária Luz, “uma reterritorialização
sinérgica, que acolhia a todos que procuravam manter sua liberdade e direito à alteridade
civilizatória e com elas suas comunalidades” (LUZ, 2012, p. 74),
Esta significação de Luz (2012) também pode ser aplicada aos terreiros que, enquanto
comunidades religiosas, mantêm uma estrutura organizacional de solidariedade grupal
concentrada numa espacialidade, lembrando a configuração dos quilombos localizados em
áreas urbanas.
Quando Cunha Junior (2011b) nos aponta a sinergia entre os campos social, político e
econômico, enquanto fatores imbricados e indissociáveis, como parte de uma matriz filosófica
africana, compreendemos porque os bairros negros não podem ser analisados apenas como
resultado das relações capitalistas que incidem sobre as cidades. Numa sociedade industrial,
as relações econômicas estão imbricadas na forma cultural de ver o mundo.
Assim, quando pomos em pauta um bairro negro com suas especificidades, estamos
relativizando também as ambiguidades e sobreposições que este bairro sedia como reflexo
das influências das culturas africanas nos seus processos de uma construção cultural
diaspórica negra, no Brasil.
Levando em conta as histórias e culturas negras, pois sem estas não se entende o negro no
contexto em que está inserido, damos seguimento à análise do espaço urbano habitado por
populações negras, a fim de apreender a organização destes espaços, no próximo Capítulo.
190
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Conforme apontado nos capítulos anteriores, diante do imenso conjunto cultural que
compõe o pensamento diaspórico africano no Brasil e suas interações na produção de
cidade, pode-se admitir possibilidades em termos outros referenciais nas análises sobre
cultura e produção de cidade.
Em Hall (1989), temos que o meio ambiente arquitetônico e urbano criado pelas populações
de visões culturais diferentes geram expressões resultantes de um processo de filtragem-
peneiramento da cultura dominante, resultando numa linguagem própria.
Base
Concreta
Espaços de
Comunalidade
Afrodescendente
Figura 69 - Diagrama do Plano das Ideias e Base Concreta.
Fonte: Elaboração da Autora
191
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A definição geográfica clássica de bairro passa por sua paisagem urbana (tipologia e tempo
das construções, traçado das ruas), por seu conteúdo social (modo e padrão de vida de sua
população) e pela função (atividade básica dentro da cidade: residencial, comercial,
administrativa ou industrial), além de seu suporte territorial (TEIXEIRA; MACHADO, 1986).
Neste interim, tomamos por paisagem, o sentido proposto por Lamas (2000) como
“descrição dos aspectos exteriores de uma realidade” (p. 543), não sendo, no entanto, a
própria realidade. Paisagem é também, como conceitua Milton Santos (2006):
No que tange aos aspectos histórico-sociais, as pesquisas dos bairros salientando suas
culturas particulares é um campo ainda lacunar, que pode revelar diversas formas de
constituir o urbano.
192
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A valorização da escala do bairro como espaço vivido e sentido, como lugar da experiência e
da ação, implica em vê-lo como um sistema de relações singular que exprime a experiência e
o envolvimento com o mundo, de forma identitária, relacional e histórica (AUGÉ, 1994 apud
SERPA, 2007a). Lamas (2000) também diferencia a escala, entendendo a escala da rua
oferece a dimensão setorial e a cidade, a territorial, enquanto que que é na escala do bairro
que se tem a dimensão urbana.
Ainda em relação à escala, podemos expor aqui o(s) lugar(es) na acepção de Frémont
(1980), que forma a trama elementar do espaço, constituindo e revelando uma superfície
reduzida e em redor de um número reduzido de pessoas, as combinações mais simples, as
mais banais, mas talvez também as mais fundamentais das estruturas do espaço: o campo,
o caminho, a rua, a oficina, a casa, a praça, a encruzilhada.
O bairro torna-se, portanto, uma escala importante, para além do sentido comunitário
enquanto relações sociais, em que os moradores se sentem parte de uma coletividade que
os localiza espacial, social, política, econômica e culturalmente no conjunto da cidade.
No âmbito desta tese nos dedicamos aos bairros que denominamos negros por critérios
históricos, culturais, políticos e econômicos tendo como principal enfoque o eixo das
africanidades e afrodescendências. Evidentemente, dados os contextos históricos das
populações descendentes de africanos no Brasil, há sobreposições entre bairros negros e
193
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
BAIRROS NEGROS
BAIRROS POPULARES
Evidenciamos novamente a cultura como ponto de partida para compreensão das relações
sócio-espaciais, tendo as culturas negras como referência conceitual para identificar o bairro
negro. O bairro negro é aquele onde predomina a cultura negra, conforme Figura 71.
O bairro negro é decorrente de uma história coletiva que explora possibilidades de uma
criação autônoma pela forte expressão cultural afro-brasileira, embora condicionada aos
contextos brasileiros. Entendemos o bairro negro também como um território construído a
partir dos saberes dos moradores fundadores, que construíram, de certa forma, com êxito,
estratégias de solidariedade e de relações sociais.
(em face daqueles produzidos pela ordem hegemônica), concreto de elaboração de identidade
grupal e de penetração em espaços intersticiais do bloco dirigente” (SODRÉ, 1988, p. 103).
Esta riqueza cultural, dada pela integração de várias culturas, é lapidada nos bairros negros.
Assim, muitos bairros negros surgem, social e/ou espacialmente, desta dinâmica cultural
oriunda de culturas negras difundidas em várias cidades do mundo. Portanto, não existe, na
constituição destes bairros negros, uma homogeneidade histórica, espacial, temporal,
econômica ou mesmo da própria cultura negra: os bairros negros também são diversos. A
formação de um bairro negro é marcada por um processo histórico das várias expressões
de culturas negras que configuram diferentes sociabilidades e espacialidades.
Nas reflexões de Sodré sobre o conceito de espaço, o autor associa o morar a um fazer
comunitário que indica a própria identidade de um grupo, dado por um ordenamento
simbólico da comunidade:
A história de uma cidade é a maneira como os habitantes ordenaram as suas
relações com a terra, o céu, a água e os outros homens. A história dá-se num
território, que é espaço exclusivo e ordenado das trocas que a comunidade
realiza na direção de uma identidade grupal (SODRÉ, 1988, p. 22).
Estas reflexões de Sodré se alinham com as de Rossi, para quem a cidade é a sede do
patrimônio cultural dinâmico, registro de diversos tempos históricos e das manifestações da
cultura dos diversos grupos sociais e na qual a memória coletiva se torna a própria
transformação do espaço, como um fio condutor que orienta o espaço urbano, como
consciência deste espaço. Segundo Sodré, a memória coletiva instrui, portanto, a identidade
do grupo e gerencia o ordenamento simbólico da comunidade, como também sua dinâmica.
Dentro desta ótica, entendemos que o sentido do morar passa pelas referências do lugar,
acumulando o limo das experiências coletivas ao longo do tempo. Em relação ao bairro,
temos em Rossi que:
O bairro é uma das partes da cidade como uma experiência concreta. Sua
morfologia social é caracterizada por certa paisagem urbana, por um
conteúdo social [...] Também é necessária uma análise do bairro como fato
social baseado na segregação de classe ou raça, nas funções econômicas
e que atuam como partes autônomas de toda estrutura urbana da cidade
(ROSSI, 2001, p. 70).
195
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Tomando as referências acumuladas que são partes intrínsecas do lugar, retomamos Sodré,
em que o autor cita Hall (1989 [1966]), para quem, nas abordagens científicas do social, o
espaço (e seu relacionamento com o indivíduo) é uma dimensão oculta da cultura. Sodré
compreende que esta noção torna-se evidente na modelização universalista, que opõe-se a
uma apreensão topológica e admite a heterogeneidade de espaços, a ambivalência dos
lugares, a indeterminação.
Sodré refere-se à dimensão territorial de uma cultura ou à “lógica do lugar” de uma cultura.
O território e suas articulações sócio-culturais aparecem com dinâmica própria e irredutível
às representações que o convertem em puro receptáculo de formas e significações. Sodré
cita o exemplo dos povos bantu do Kavirondo (África): para eles a direção leste/oeste
constitui o eixo principal de organização do mundo, dado pelas importantes chuvas que vêm
do leste. O dado geográfico (sentido das chuvas), acrescido de valores simbólicos
[fertilidade, prosperidade], condiciona o modo como estes grupos bantu se relacionam com
seu território particular. Sodré apresenta outro exemplo, a partir de Paul-Lévy: índios bororós
que só foram convertidos pelos salesianos quando deixaram suas aldeias circulares para
habitar as vilas alinhadas à maneira europeia. Ao romper com a estrutura tradicional do
espaço construído - que se relaciona diretamente com as práticas ritualísticas - os
missionários provocaram o desmoronamento das marcas simbólicas básicas do grupo
indígena. A hipótese bororó introduz a dimensão territorial na própria elaboração das
estruturas sociais. Pelo modo de morar, de se instalar no espaço, as sociedades arcaicas ou
históricas, singularizam-se, mostrando assim o seu “real”.
africana, verificáveis nas vivências e práticas dos terreiros. A integração com a natureza não
é apenas simbólica, é simbiótica, é conceitual: é parte da prática cotidiana.
À medida que estes espaços são processados ao longo do tempo no seio de uma
comunidade, constitui-se um território, impregnado de elementos culturais, definido por
identidades e simbolismos, gerando um conjunto dinâmico de práticas que se processam
continuamente, aqui, através das gerações.
Verificamos que pela contínua acumulação de experiências, o território tanto demarca uma
relação interativa com as pessoas, como também permite que esta relação seja criativa e
educativa, passando informações e significações também para as gerações futuras.
Sob esta ótica, as identidades são construídas cotidianamente no espaço urbano, composto
de fatores interdisciplinares e de naturezas complexas que estão intimamente relacionados
à localidade, ao bairro. Se é no bairro que as pessoas vivem, produzem sua vivência
concreta e suas subjetividades, este espaço urbano também tem a função de reproduzir
conhecimento.
O morar ao qual nos reportamos quando nos referimos aos bairros negros pode ser
abordado tanto quanto à habitação em si, quanto à ocupação de um espaço físico, lugar,
incluindo a espacialidade, sendo parte de um patrimônio histórico, parte da identidade
coletiva.
Neste sentido, o morar envolve os bens materiais e imateriais da casa e seu entorno,
abrangendo a espacialidade, os bens sociais como parte da cultura que se faz importante
para as comunidades negras.
Nesta relação do morar, temos Rossi que se refere ao bairro como a área-residência, sendo
caracterizado por uma função (do qual discordamos, pois, para nosso entendimento, um
bairro pode contemplar múltiplas funções, embora predomine a residencial). Para Rossi, a
área-residência é a representação do modo concreto de viver de um povo [grupo social], da
manifestação pontual de uma cultura, que se modifica muito lentamente.
José Forjaz também conjuga deste pensamento a partir das análises da casa africana, na
apresentação do livro de Bruschi (2001), atentando que “as formas do habitar são aquisições
profundamente encrustadas em níveis do subconsciente social e do indivíduo” (p. 5). Forjaz
197
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Deste modo, nestas referências culturais provenientes das trajetórias afro-brasileiras, que
aqui em parte foram reelaboradas pelos terreiros, apontamos na base concreta do bairro
negro, na sua materialidade, elementos que estão tanto no espaço doméstico ou no espaço
urbano, conforme pode ser visualizado no diagrama da Figura 72.
Espaços
Coletivos
Áreas
Quintais
Vegetais
BAIRRO
NEGRO
Espaços
Mercados
Sagrados
Assim temos os espaços coletivos para práticas de uso comunitário; os quintais na sua
organização espacial, no plantio de espécies e ornamentação das plantas, por vezes,
assentamentos religiosos; os espaços sagrados; os mercados: lugares dos tabuleiros,
ambulantes, quitandas, feiras; e as áreas vegetais, constituindo a materialidade do bairro negro.
Uma forma urbana é gerada por uma série de combinações de elementos da estrutura
urbana, a partir da dinâmica sociocultural e contextos históricos, com a adaptação ao
sistema de parcelamento do solo, as condições topográficas, submetidos a fatores externos
da sociedade dominante, sobretudo econômicos e políticos.
198
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Para Kostof (1991), a morfologia urbana reflete um repositório de significado cultural na cidade
e a incorporação da sua comunidade numa análise histórica. O autor reconhece a forma
urbana como resultado histórico de fatores imbricados ao longo do processo de ocupação.
Em Lamas (2000) temos que: “o conceito mais geral de forma de um objeto refere-se à sua
aparência ou configuração exterior” (p. 41). O autor reconhece que um instrumento de leitura
visual certamente não revelará todos os conteúdos da forma: “A descoberta de outros
conteúdos implica outros instrumentos de leitura” (p. 41).
Lamas toma a forma urbana “enquanto corpo ou materialização da cidade capaz de determinar
a vida humana em comunidade” (p. 22). Para o autor, as formas urbanas estão relacionadas
não somente às concepções estéticas, ideológicas, culturais e arquitetônicas, mas estão
também “indissociavelmente ligadas a comportamentos, à apropriação e utilização do espaço e
à vida comunitária dos cidadãos” (p. 28). A forma urbana também é, para Lamas, o resultado
da produção voluntária do espaço, enquanto um processo que organiza e resolve, utilizando os
conhecimentos culturais e arquitetônicos sobre esse mesmo espaço.
Para Lamas (2000), a forma urbana é um objeto teórico de múltiplas leituras e depende das
categorias ou instrumentos de análise utilizados, resultando em inúmeras significações
políticas, filosóficas, econômicas, sociais, psicológicas, etc. cruzando vários tipos de leituras
e informações, de modo a explicar, e não apenas descrever, parte da cidade.
Temos também em Sampaio (1999), a partir de Milton Santos, uma análise da forma urbana
numa perspectiva no âmbito urbanístico e arquitetônico, que aparece como estrutura revelada:
Nesta mesma linha de raciocínio, temos em Bárbara Freitag (2006) que o interesse na
questão das cidades é, e precisa sempre ser, interdisciplinar, envolvendo vários registros da
realidade, como o urbano, o econômico, o político, o social e o cultural. O estudo pela via
das formas urbanas, por exemplo, é insuficiente para explicar “o porquê destas formas, seus
efeitos sobre a vida social, seu potencial e seus limites na organização política e econômica
de uma sociedade” (FREITAG, 2006, p. 13).
Diante destas referências sobre a forma urbana, como resultado de conteúdos históricos,
culturais e sociais.
Assim, constituímos nossos subsídios para conceituar a forma urbana negra, conjugando
preliminarmente a associação da forma como ação que se apresenta, de uma maneira, de
um modo, de um jeito, de um feitio pelo qual um fenômeno pode ser apreendido. Segundo
Milton Santos (1985), forma é o que é percebido, é o visível, é a descrição dos fenômenos
ou de suas particularidades; do urbano é compreendido aqui no aspecto relativo ou
vinculado à cidade, em que um conjunto de características próprias da vida social coletiva
pertinente à cultura é compartilhado entre os seres daquele urbano. Em Lefebvre (1999), o
urbano se define pelo nível privado, nas modalidades da vida cotidiana, compreendendo a
diversidade das maneiras de viver; e do negro, relativo às tradições negras, diante das
múltiplas expressões culturais negras.
Nestas descrições, observamos que os extratos urbano e negro encaminham-se para uma
forma vinculada à cultura, no escopo da forma-conteúdo. Esta forma urbana negra é
estabelecida pela cumplicidade intrínseca entre o saber (relativo ao conteúdo gerador da
forma) e o fazer concreto (relativa à forma urbana resultante), processo no qual os
moradores são ativamente participativos, esvaziando o anonimato e a passividade impostos
pelas sociedades modernas em nossas cidades.
Nos propomos nesta pesquisa conceituar a forma urbana negra, fundamentada numa premissa
das culturas negras como determinante do espaço, a partir de uma realidade local. Diante do
panorama do bairro, na sua complexidade de vias e acessos, massas edificadas e vazias, nossa
200
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
análise urbanística não se restringiu às formas construídas aparentes e suas relações espaciais,
mas foi ponderada pelo contexto forma-conteúdo.
A forma urbana negra é o conceito estrutural da proposta deste trabalho e se situa no âmbito das
reflexões sobre a convergência de população negra e espacialidade urbana, na sua relação deste
grupo social com o meio urbano. População negra e espacialidade urbana foram as premissas
conceituais dos elementos operacionalizados no sistema de reflexão elaborado no curso desta
pesquisa.
Relembrando Lencioni (2008), o conceito é sempre uma simplificação do real e ao mesmo tempo
uma generalização deste, e com o qual não conseguiremos alcançar sua plenitude. Para a autora,
a construção de um conceito, aqui, a forma urbana negra, exige sempre um exercício de captura
do que é essencial ao objeto, o bairro negro, que é motivo da reflexão.
201
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Deste modo, contribuíram na definição da forma urbana negra cinco núcleos conceituais,
como mostra a Figura 73, que são trabalhados nos itens seguintes, de modo a capturar uma
forma urbana negra para refletirmos sobre o bairro negro.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Nos meios rural e urbano, vige o problema de onde e como morar dos africanos e
descendentes, sendo que no meio urbano, de um modo particular, conceitos e práticas foram
produzidos tendo a convivibilidade como um ponto de grande importância. Pensamos ser esta
convivibilidade particular a explicação de muitas das decisões tomadas por estas populações
na solução de onde e como morar.
Iniciamos esta análise quando pesquisamos o bairro da Liberdade (RAMOS, 2007), trabalho
no qual abordamos a sociabilidade que encontramos nas relações entre os moradores. Uma
convivência baseada nas relações entre pessoas e suas ações/atitudes que foram se
acumulando nas experiências passadas, constituindo e fortalecendo o entrosamento
comunitário, pela via lúdica ou pela solidariedade, tornando-se referências para as relações,
tanto no presente, quanto no futuro.
Esta noção do tempo acumulado nas relações humanas ao longo das gerações tornou-se mais
compreendida e mais acentuada pelo nosso amadurecimento conceitual, ao observar as
relações sociais entre os moradores no Engenho Velho da Federação, como uma forma de
sociabilidade amparada na/pela ancestralidade africana: a convivibilidade.
Esta convivibilidade, este conviver, estas relações ‘quase’ familiares estabelecem formas do
convívio, do trato diário, baseadas em regras e instituições africanas muito profundas. Vimos
anteriormente em vários autores que, apesar das diferenças entre os vários povos e etnias,
203
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
esta é uma premissa filosófica africana: “todos devem concorrer para que o universo se
expanda e o mundo nunca se acabe” (LUZ, 2000, p. 93).
Em torno das referências africanas, temos em Altuna (1985) que a chave para a
compreensão dos costumes e instituições das sociedades africanas parece ser o fato da
comunidade, da unidade da vida, da vida comunitária. A interação [inter-ação] envolve tudo:
seres humanos, plantas, animais, minerais, fenômenos naturais, já que encerram vida e
energia. Tanto a participação inter-ativa (pela interação) quanto a união vital desempenham
o primeiro papel na vida humana como princípio-base, que fundamenta a religião tradicional
e orienta as instituições políticas, sociais, econômicas e artísticas. A participação é o eixo
das relações dos membros de uma mesma comunidade, unindo indivíduos e coletividades
(ALTUNA, 1985), justificando as ações individuais, em conformidade ou dependentes das
ações coletivas. O coletivo da comunidade precede ao individual. Isso se desdobra tanto em
termos da pessoa como da família estendida, que embora seja um coletivo, ainda é menor
que a comunidade.
Esta visão de mundo é parte da tradição, de grande importância nas sociedades africanas e
afrodescendentes, e é definida e compreendida, assim, por Sodré (1988):
Em Sodré (1988), a força da Arcké negra é o próprio movimento da vida, com vistas à
expansão do ser.
Como já dissemos, esta convivibilidade, não como conceito, pode ser constatada também
em nossa pesquisa de mestrado:
204
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Neste contexto, nos apoiamos em Luz (2000), que se refere à coesão grupal de base
comunitária africana: “As formas de cooperação extensa foram implantadas no Brasil,
constituindo instituição chamada mutirão” (p. 96).
Assim temos como exemplo a construção das igrejas das ‘irmandades dos homens de cor’,
realizada em mutirões noturnos, representando esses grandes feitos através de belíssimas
igrejas. Analogamente, podemos pensar que deste modo foram constituídos os bairros negros.
Quando nos referimos ao conceito da convivibilidade, destacamos o morar como uma forma
constituída de modo compatível com as instituições filosóficas e civilizatórias afro-brasileiras
que integram o material e o imaterial, o visível e o invisível.
64
Vocabulário de Kimbundu no Português de Luanda: Organizado com base no Dicionário de Kimbundu-
Português de António de Assis Júnior, no Dicionário Complementar de Português-Kimbundu-Kikongo do Padre
António da Silva Maia e no Dicionário de Regionalismos Angolanos de Óscar Ribas. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/49893916/7134971-Cultura-Bantu-Parte-2-1>. Acesso em: 22 dez. 2011.
205
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
consciência cultural ancestral africana aplicada na espacialidade. Com este conceito, vamos
refletir sobre uma concepção específica de espaço no bairro negro, bem como a consciência
de seus moradores sobre esse espaço. Através deste conceito, discutimos aqui o espaço, e
o território, enquanto espaço físico e também como espaço social, de sociabilidade e de vida
comunitária.
Antes, no entanto, vamos fazer considerações sobre as noções de espaço e território que
aparecem articuladas na conformação deste conceito.
A partir do par de categorias configuração territorial e relações sociais, Santos define que
Na observação de Santos, cria-se uma configuração territorial que é cada vez mais um
resultado histórico que tende à negação da natureza natural, substituindo-a por uma
natureza totalmente humanizada.
Para Santos, o espaço deve ser considerado como um fator da evolução social, não apenas
como uma condição. Neste sentido, busca-se pensar a afro-consciência espacial na
compreensão dos bairros negros, diante de elementos espaciais-culturais que são
206
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A afro-consciência espacial está no âmbito do processo das funções que se desdobram nas
formas [processo → funções → formas] (SANTOS, 2006). E também nas formas que se
desdobram em funções, na dialética forma-função, forma-conteúdo. Assim, temos aqui,
neste conceito, que o espaço não é entendido somente pela projeção das relações sociais,
mas também é reflexo do espaço nas relações sociais, que o impregnaram de elementos
culturais: identidades e simbolismos.
Santos afirma que é da interação mútua entre objetos e ações que o espaço encontra sua
dinâmica e se transforma; o resultado conjunto desta interação permite sua análise,
simultânea, como processo e como resultado. Nesta ótica, passaremos a articular a
ação/ato/atuação (GIDDENS, 1978 apud SANTOS, 2006) como processo, dotado de um
propósito (MORGENSTERN, 1960 apud SANTOS, 2006). Santos afirma que a ação é
subordinada a normas, escritas ou não, formais ou informais e que a atuação está
diretamente ligada à ideia de práxis e as práticas são atos regularizados, rotinas.
207
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Deste modo, os indivíduos e os coletivos são os que orientam, com base em sua afro-
consciência espacial, a produção e o ordenamento do espaço no momento de sua tessitura,
isto é, pelos indivíduos e pela coletividade que impõem sua consciência na produção destes
espaços, por partes ou no conjunto. Aqui há a consciência do espaço em contraposição à
alienação do espaço65.
Sodré afirma que o território aparece, assim, como um dado necessário à formação da
identidade grupal/individual, ao reconhecimento de si por outros, processos nos quais o
território é como o espaço exclusivo e ordenado das trocas que a comunidade realiza na
direção de uma identidade grupal. Assim também coloca Altuna (1985), quando afirma que,
mediante a interação que envolve tudo (seres humanos, plantas, animais, minerais,
fenômenos naturais já que encerram vida e energia), as comunidades bantu (e que aqui
generalizamos às comunidades negras) não se realizam diante de uma prioridade territorial.
Como já nos referimos anteriormente, as plantas são partes da consciência dos moradores
do Engenho Velho da Federação como forma de proteger a casa de maus agouros: os
pequenos canteiros domésticos, como prática de manter, mesmo em espaços muito
65
Sobretudo nas formas urbanas das geometrizações cartesianas/euclidianas, abstratas aos modos de vida dos
moradores.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
pequenos, o cultivo de plantas medicinais como tapete de Oxalá (boldo), e ervas para a
realização de banhos, muito utilizadas nos terreiros, como alfazema, manjericão, folha-da-
costa, entre outras.
Além do uso medicinal e do efeito estético, paisagístico, e que nós chamamos de ‘paisagismo
sagrado’, as plantas são naturalmente utilizadas como forma de proteção espiritual, dispostas
do lado externo, junto às entradas das casas, para espantar o ‘mau-olhado’: espada de Ogum
(ou espada-de-são-jorge), comigo-ninguém-pode, arruda, guiné, maria-preta, vence-tudo, etc.
Ilustramos nosso conceito com musseques angolanos. Segundo Quelhas (2008), a palavra
musseque tem origem no kimbundo (mu seke). Em relação à organização espacial, o
musseque é um entrelaçado complexo e orgânico de ruelas, "pracetas" e corredores,
semelhantes a algumas favelas brasileiras.
210
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Estas relações de afinidade entre a vizinhança são derivadas das relações familiares, nos
induzindo ao conceito que denominamos de Assentamentos Familiares, que se refere ao
sentido de que a agregação sócio-espacial é definida pela existência de ancestrais comuns
a todos os membros da família, refletindo na proximidade entre as casas de familiares,
sejam estes consanguíneos ou pela instituição da família extensa. Novamente a
convivibilidade está no seio desta forma de manter próximas as relações familiares: os filhos
crescem e geram suas próprias famílias; os filhos constroem casas para os pais idosos ou
outros parentes e agregados, com diferentes tipos de arranjos familiares, não
necessariamente seguindo a tipologia da família nuclear.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Nesta lógica cultural, notamos que predomina outro entendimento da terra, do fundiário, da
propriedade da terra. Não há rígida limitação do que é meu ou do que é seu. O território é
entendido como irradiação de força e a força deve ser aumentada, logo quanto mais seres -
força, melhor: se você precisa morar, pode vir, vai somar. É a lógica da expansão da vida. É
naturalmente um interesse da comunidade, do coletivo.
Vimos que o Engenho Velho da Federação é permeado por caminhos. Esta rede de
caminhos, assim constituída pela convivibilidade, que por sua vez é possibilitada pela
ancestralidade, é o que nós chamamos de Caminhalidade.
A partir destas referências e da formulação destes conceitos, vimos que grupos sociais
negros, diante de certa autonomia criativa na construção coletiva do bairro negro, norteada
pelas formas de conduta e de comportamento pautadas pelas culturas negras puderam
exercer uma produção de conhecimento, sobretudo face às suas visões de mundo que
enunciam formas compartilhadas de entendimento.
212
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Sinalizamos anteriormente que os bairros negros são diversos, podendo ser originados por
distintos alicerces culturais negros.
Tomamos aqui o bairro negro do Engenho Velho da Federação como extensão do terreiro,
que através desta especificidade pela concentração de terreiros, tornou-se uma antiga e
importante confluência de população negra na cidade de Salvador. Este lugar apresenta um
diferencial pela consolidação do bairro a partir de uma instituição cultural importante para os
grupos sociais negros, os terreiros de religião de matriz africana, nas suas variadas
vertentes.
Deste modo, temos o Engenho Velho da Federação, bairro negro como extensão do terreiro,
fundamentando a pesquisa, tendo aqui os conceitos operacionalizados.
Uma série de referências culturais, signos e símbolos são reconhecíveis por quem os
conhecem: moradores ou outros visitantes íntimos daquelas culturas impregnadas no bairro.
Estes signos, símbolos, sinais diacríticos, talvez sejam muito mais significativos para esta
população do que a aparência de suas casas.
Em se tratando de uma pesquisa que lê o bairro negro através dos terreiros, são suas
referências que serão sinalizadas para seu entendimento, sendo o Engenho Velho da
Federação permeado por uma cultura negra advinda dos referenciais irradiados pelo terreiro.
213
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Assim, nestes percursos descobrimos partes do bairro e exploramos, aqui, sua toponímia. É
importante ressaltar aqui que muitos dos caminhos, ruas, avenidas e travessas têm seus
nomes relacionados à vivência de seus moradores. Os caminhos permeiam o bairro,
constituindo grande parte do sistema viário, sendo lidos com facilidade pelas peculiaridades
que consolidaram esta rede de caminhos, utilizada pelos moradores do Engenho Velho da
Federação e dificilmente reconhecida por um visitante estranho ao Iocal.
Essa rede de acessos, criada à maneira dos moradores à época da construção de suas
moradias, definiu as quadras e os largos do bairro na atualidade, como informa Seu Orlando
explicando como surgiu a Avenida Parente:
As distintas localidades existentes no bairro são conhecidas pelo Alto do Bogum (ou Largo
do Bogum), Largo do Engenho Velho, Baixa da Égua, Fonte do Forno, Largo da Torre, Beco
da Rabada, Pedra da Marca, Avenida Parente, Beco Júlio das Neves (atual Avenida
Fonseca), Ladeira do Scorpio, Madruga, Lajinha, Rua São Romão, entre outras, cujas
indicações estão assinaladas em 03 Figuras: Figura 32, Figura 33 e Figura 34, apresentadas
anteriormente.
214
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A Baixa da Égua tem esta denominação devido à área de várzea que existia, contendo um
braço de rio, onde os produtores das hortas e os aguadeiros abasteciam seus animais
(mulas, cavalos e éguas) para venderem água nas proximidades, concentrando nesta
baixada um grande número de animais e muitas cocheiras.
O Beco Júlio das Neves também é uma denominação antiga. O casal Seu Manoel e Dona
Adalgisa contaram detalhes de moradores antigos, como Seu Júlio, que morava na esquina
com a Vasco da Gama e vendia carvão. A atual Avenida Fonseca, antes, era chamada de
Beco Júlio das Neves, nome do carvoeiro.
O Beco da Rabada é próximo ao Primeiro Largo da Rua Apolinário de Santana. Conta Dona
Maria Angélica que no Beco da Rabada tinha muita confusão, sempre foi muito [mal] falado:
“Tinha muita jogatina, jogo...”.
A Ladeira do Scorpio é uma denominação relativamente recente, das décadas de 1980 e 1990,
à Rua São Sebastião, tornando-se assim também conhecida por conta do Samba Scorpio,
grupo de samba que ficou bastante conhecido, revelando o cantor Tatau, vocalista do Araketu.
Além dos nomes dados pelos moradores a partir das suas vivências no bairro, vimos que
também terreiros ou pessoas vinculadas aos terreiros também nomeiam partes do bairro,
215
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
como no exemplo da antiga Rua Pau Zerrém (atual Rua Xisto Bahia), mencionadas por Seu
Valter Neves, Dona Jane e Dona Joana; da Rua Elizabete, nome da fundadora do Terreiro
Tanuri Junçara; da Rua São Romão, cujo nome é referência ao Seu Romão, que foi ogã do
Terreiro do Bogum, segundo Seu Valter Neves; ou ainda da Villa Flaviana, ladeada pelo
Terreiro do Cobre, cuja área do entorno deste terreiro se desdobrou em moradias, ficando a
localidade chamada de Villa Flaviana, em referência ao nome da fundadora do terreiro que
hoje é liderado pela bisneta, Mãe Val.
No entorno do Alto do Bogum existem algumas vias que possuem nomes derivados do
terreiro, como o Largo do Bogum, a Vila Bogum, a Travessa do Bogum e a 2ª Travessa do
Bogum, além da própria Ladeira do Bogum, podendo ser observado na Figura 76, sobre a
área original do Terreiro do Bogum proposta por Rêgo (2006).
216
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Segundo os moradores, a Ladeira do Bogum era uma trilha interna do Terreiro do Bogum,
um caminho para a fonte d’água e para o Rio Lucaia. Segundo seu Valter Neves: “depois
que passou a rua, cortou o terreiro ao meio”. Serra (2007) afirma que a abertura desta via
pública, cujo nome oficial atualmente é Ladeira Manoel Bonfim, se consumou com o
asfaltamento da ladeira no final da década de 1950, sendo um dos fatores de redução de
área do terreiro, separando entre espaços do terreiro, precipitando a perda de uma
importante parcela do mesmo, sobretudo no que tange às áreas de mata, reduzindo-o a um
quinto da área original.
E Seu Valter explica a continuidade de utilização desta fonte pelo Terreiro do Bogum:
Dona São Pedro era do Bogum. Meu pai cuidou dela, de certa idade até a
morte, e herdou esta área daqui. E aí continua fazer as oferendas de Oxalá
aqui.
Ao que nos parece, o Bogum foi o terreiro que exerceu maior influência na configuração
atual do bairro do Engenho Velho da Federação. O Alto do Bogum, como ficou conhecida
esta localidade que integrava o terreiro, é assim caracterizada por Serra et al (2007):
Ainda em relação à toponímia do bairro, a Fonte do Forno deve seu nome a uma importante
fonte d’água do bairro e dela se derivaram vários caminhos: Travessa Fonte do Forno, 2ª, 3ª
e 4ª Travessas Fonte do Forno e Rua Forno da Mangueira.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A fonte de Minacó era a melhor água do Engenho Velho, saía da pedra. Ela
era mãe-de-santo. Mas candomblé tinha aqueles preceitos. Porque era
terreiro, tinha que ser na hora certa, não podia brincar, não podia tirar
folha...
Tinha uma que era mais aberta, a fonte do Seu Nascimento, que minha mãe
usava para lavar roupa. [...] Eu também carregava água desta fonte para
encher os tonéis para água de gasto, que era para lavar louça, limpar a
casa, o chão, essas coisas... Tinha também a água de beber, que a gente
pegava na fonte do Seu Catarino, que era tinha um tampão, tudo
cimentadinho em volta, tinha cadeado, era bem cuidada.
Eram muitas fontes: Seu Nelito lembra das fontes “de Zé Boiadeiro, pai de santo, na Fonte
do Forno, de Dinorá, da fonte de Príncipe Negro, de Carrinho, de Dona Glória, fonte de
Dona Mineira...”; Dona Emerita informa sobre outras: “Dona Baíta e Dona Joana, no Vale da
Muriçoca”; Dona Albertina lembra de muitas fontes: “de Dona Emília, filha de Dona Bela, o
minador de Dona Juanita”; Seu Edson buscava água na fonte do Seu Lídio.
Muitas fontes destas fontes d’água desapareceram, outras foram soterradas, mas muitas
ainda existem, mantidas por particulares e, mais cuidadosamente, por terreiros de
candomblé, pelo uso litúrgico. Atualmente algumas fontes ainda são utilizadas pelos
moradores devido às frequentes falhas no abastecimento de água tratada.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Cultural em Defesa dos Moradores da Ladeira João de Deus, criada em 1958 e localizada
na Ladeira Cel. João de Deus e nas proximidades do Largo do Bogum; e a Associação de
Moradores do Vale da Muriçoca, sendo esta com menor articulação com o bairro.
Mas ainda existem outras associações de caráter mais cultural, marcadamente relacionadas
às culturas negras como as práticas de percussão, capoeira, dança afro, entre outras. Assim
exemplificamos o Centro Cultural e Recreativo Bombocado, com cursos de percussão e
formação musical, e como diz a fundadora Rita Pinheiro, “É com partitura e tudo!”, além de
cursos de artesanato, estética afro, corte e costura.
Para a prática da capoeira, são muitas as associações voltadas para esta atividade:
Associação Quilombo e Capoeira, Grupo Cultural de Capoeira Zumbahia, Grupo de
Capoeira Jovem de Angola, Grupo Ginga e Malícia, Associação de Capoeira Moenda, entre
outras. Entre os grupos de dança destacamos o Swing Dance, o Grupo Cultural de Dança
Eclipse e a Cia. Savana Dança de Raiz.
E também são agentes importantes na reação à violência que surgiu no bairro. Também o
bairro do Engenho Velho da Federação é vítima da violência característica do que se tornou
a vida urbana das grandes cidades.
Diante de nossas pesquisas, acreditamos que a instalação de boa parte da violência no bairro
nestes últimos anos se dá por conta dos aluguéis para pessoas estranhas ao bairro. Completando
a fala de Dona Maria Angélica, temos na matéria on line, a respeito da morte de traficantes:
220
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
De acordo com a polícia, há três dias os dois tinham alugado uma casa no
bairro, com o objetivo de montar um ponto de venda de drogas (Aratu on
line, 27.10.2010).
Milton Moura, professor da FFCH da UFBA, informa na discreta matéria Lugar que já foi
aprazível sofre sem políticas públicas, publicada no Jornal Tribuna da Bahia, que a
ocupação da Baixa da Égua se intensificou na década de 1960, sendo que a criminalidade
se instalou na década de 1960 (MOURA, 2008). Esta matéria situa-se abaixo da manchete
principal, Baixa da Égua sofre com luta pelo tráfico, estampada com letras garrafais.
No entanto, sem querer mascarar a ação extremamente violenta do tráfico de drogas que
vitima a cidade de Salvador como um todo, o tráfico no Engenho Velho da Federação não é
o mais intenso da cidade. E consideramos que a vivência comunitária dos moradores
desenvolvida ao longo de gerações e as estratégias de articulação e reação dos moradores
e associações do bairro são, em grande parte, responsáveis pela onde de apaziguamento
que o bairro revive atualmente66.
Esta violência visível nos bairros mais pobres, mais vulneráveis, não é exclusividade do
Engenho Velho da Federação. Lembrando que a violência do narcotráfico é parte do crime
66
Percorrendo os caminhos do bairro, transitamos pelas partes tidas como perigosas, as ‘bocas quentes’, sem
sofrer abordagens ou constrangimentos.
221
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
organizado internacional, cujos traficantes são a ponta do iceberg estando mais expostos e
vulnerários que os agentes financiadores do tráfico, este bairro, como tantos outros, mais do
que gerador de violência, é vítima da violência urbana, estando vulnerável à impotência da
educação, da segurança pública, do sistema jurídico-penal da realidade brasileira.
Este bairro com perfil de moradores com baixa renda, mais do que consumidor de drogas, é
distribuidor de drogas. A proximidade de faculdades particulares ao bairro é fator de
introdução e permanência do tráfico, acarretando aumento de usuários de drogas com alto
poder aquisitivo circulando pelo bairro.
A explosão de um módulo policial que ocorreu no mesmo contexto dos ataques e explosões a
vários módulos policiais e ônibus em vários bairros da cidade de Salvador, em 2009, também
gerou pavor entre os moradores. Os moradores sentem-se assustados com tais eventos
violentos e estranham como num bairro tão tranquilo podem acontecer tantos crimes. E até os
dias atuais, pela ausência do poder público, o módulo policial ainda não foi reativado.
67
Informação oral na Palestra de apresentação da ‘Premiação Melhores Práticas’, projeto da CEF, em Maio de
2009.
222
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Para estas e outras ações contra a violência, através da força comunitária do bairro,
moradores do bairro juntamente com outras organizações participaram do Fórum
Comunitário de Combate à Violência, que estando no âmbito do Projeto AMPLA PAZ
envolvendo também os bairros do Nordeste de Amaralina e Alto das Pombas, resultou numa
publicação reunindo nomes de diversas associações (ong’s, entidades particulares e
governamentais, escolas, grupos sociais e culturais, etc.), com o intuito de articular redes de
solidariedade, buscando o fortalecimento e desenvolvimento político de moradores
(RODRIGUES, 2005-2006).
Felizmente, nos dias atuais, com um período de tranquilidade no bairro dado pelo acordo
entre os traficantes, a tradição da convivência nas ruas do bairro permanece.
Este jeito negro de ser vem aos poucos, ao logo de gerações, se transformando, no âmbito
das relações étnicas, de uma consciência de que os moradores são descendentes de
africanos que foram escravizados, relacionados ao estigma da escravidão, para uma
consciência negra de resistência política e de valorização cultural.
68
Os terreiros são, portanto, uma ameaça ao tráfico, sendo, pelos traficantes, também alvo de ataques. Nesta
afinidade comum, foram identificados acordos entre igrejas neopentecostais e o tráfico de drogas para ataque
aos terreiros. As formas de ataque são das mais violentas como de um caso, que soubemos de forma reservada,
de aliciamento de um dependente de drogas, adepto de um terreiro do bairro, para que, depois do pagamento de
sua dívida com os traficantes, fosse convertido para estas religiões. Nossa fonte não cita nomes e não informa
qual é o terreiro.
223
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
O sentido de pertencimento étnico sempre permeou a vida dos moradores do Engenho Velho da
Federação e também aparece explicitamente nas falas, como exemplifica Seu Edílzio, num
relato da vida cotidiana, no período de sua infância:
A pobreza era grande. A gente comia melhor quando minha mãe vinha da
casa de família de branco: a branca liberava uma lata de leite ninho com
arroz, feijão, carne...
Percebemos nas falas de alguns moradores, sobretudo os mais antigos, vítimas mais
vulneráveis de práticas racistas, a cor da pele negra como como um defeito, internalizado como
se fosse uma falha. Dona Joana abriu a Escola Amélio Cruz, uma das mais conceituadas do
bairro, porque, depois de formada, não conseguiu o emprego prometido por uma das famílias
que eram clientes de sua mãe. Ela nos contou:
Esta cor me prejudicou! Desde muito novinha, quando ajudava minha mãe
levar as trouxas de roupas, o marido da freguesa sempre me cobrava a
tabuada. Eu ficava com medo, mas sempre acertava! Então ele disse que
quando eu me formasse, ia arranjar um emprego para mim. Os anos
passaram. Me formei e ele me mandou ir até o escritório. Quando eu fui no
escritório, sem carta de recomendação, sem nada, passavam as loiras, as
morenas e até as sararás passavam na minha frente para fazer a entrevista.
Quando era a minha vez, encerrava... O pessoal me mandava voltar quinze
dias depois. Fui lá três vezes, até que caiu a ficha...! Foi aí que eu decidi
abrir a escola. Começou nesta sala...
Felizmente as novas gerações tendem a ser orgulhar de seu pertencimento étnico e de sua
negritude, multiplicando a estética negra, graças também à atuação destas associações e aos
grupos culturais do bairro, comprometidos com a consciência negra, precedidos também pela
atuação dos terreiros.
Além das associações culturais, ainda existem muitos grupos musicais como o Grupo
Kissukilas, já mencionado, o Quatro do Samba (com Seu Valdir da Cuíca), o Grupo Tambores
do Engenho, Seu Germano e, ainda, o Bloco Carnavalesco Afro Bogum e a Associação
Carnavalesca Bloco Proibido Proibir, etc.
Seu Valdir da Cuíca, que juntamente Makota Valdina e Seu Nelito são reconhecidos Mestres
Populares da Cultura pela Fundação Gregório de Matos, conta que o bairro do Engenho
Velho da Federação possui muitos músicos e grupos musicais por causa dos terreiros:
224
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Esta sonoridade advinda da formação musical proporcionada pelos terreiros, que é tão
característica do Engenho Velho da Federação, é parte também do que apontamos da
cultura negra como cultura hegemônica no bairro, em evidência na vivência cotidiana do
bairro negro, gerando ambiências negras, como as ambiências que nos despertam os
sentidos, tal como evidenciado por Thibaud (2004).
Boa parte destas ambiências advém dos desdobramentos das práticas do terreiro
espalhadas pelo bairro: uma oferenda, um despacho, um cântico, um estalar de fogos de
artifício. É gostoso passar pelo bairro e sentir um perfume de incenso de folhas de terreiro. É
bonito, por exemplo, ver as roupas brancas bordadas dos filhos e filhas-de-santo
penduradas no varal das casas vizinhas aos terreiros.
Em dias de festa no terreiro, há uma movimentação diferente, uma alteração ao redor com a
circulação de pessoas não-moradoras do bairro e de diferentes poder aquisitivo, maior
trânsito de carros nas ruas, pessoas vestidas com roupas brancas. Há também os
moradores do bairro, mesmo não adeptos da religião do candomblé, que usufruem da
presença do terreiro, frequentando as festas públicas, tidas como um evento social na
localidade, e partilhando da amizade dos adeptos e das comidas, bebidas, música e dança.
Vemos nesta fala, que o candomblé também é o espaço onde é praticado: além da religião,
tornou-se o próprio templo e o território circundante.
225
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Figura 77 - Mariô disposto nas janelas do Terreiro Omin Onadô no Engenho Velho da Federação (Ano 2012)
Fonte: Foto da Autora
E ainda os símbolos culturais, referência nos próprios terreiros, como as insígnias de orixás
nas fachadas e muros, como mostra a Figura 78, ou enfeites e ornamentações até mesmo
nas entradas de ruas, como ocorre na Rua São Romão, caraterizada com adornos do
Terreiro do Awá Negy, que podemos observar na Figura 79.
226
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Figura 79 - Bandeira branca e insígnias de Xangô Figura 78 - Entrada da Rua São Romão junto
no Terreiro do Cobre (Ano 2012) ao Terreiro Awá Negy (Ano 2012)
Fonte: Foto da Autora Fonte: Foto da Autora
Moradores antigos recordam da época que os terreiros eram totalmente integrados ao bairro, quer
dizer, o bairro era a extensão do terreiro: não havia cercas, muros ou elementos limitadores de
acesso às áreas dos terreiros: o limite entre o público/privado e o sagrado/profano era simbólico.
As crianças entravam no ‘quintal’ do terreiro e pediam aos integrantes das comunidades frutas das
árvores. Mas, às vezes, as frutas eram roubadas mesmo, como recorda Rita Pinheiro nos seus
tempos de infância: “A gente ia lá, dava uma roubadinha e saía correndo...”
Esta integração dos terreiros com o bairro se dava também entre terreiros, como no caso
dos Terreiros do Bogum, Casa Branca e o Patiti Obá, havendo uma permeabilidade entre
estes terreiros vizinhos. Entre estes, os limites de arrendamento eram contíguos, havendo
intenso intercâmbio entre os terreiros e integração religiosa, apesar de serem de diferentes
nações, que se materializava por caminhos que uniam os domínios espaciais dos terreiros,
tal qual pode ser visto na Figura 52, em delimitação elaborada por Dias (2003).
Como vimos anteriormente, em função das perdas de área dos terreiros por conta da
ocupação de moradias ao longo dos anos (DIAS, 2003; REGO, 2006), estes caminhos
227
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
existem atualmente, mas perderam sua configuração original, não sendo mais possível
acessar um terreiro pelo outro.
Atualmente os acessos secundários à Casa Branca se fazem por um caminho entre a Rua
Manoel Bonfim e a Av. Vasco da Gama e que hoje é uma escadaria chamada Avenida
Fonseca, como pode ser visto na Figura 80, bem como por um acesso pela Ladeira Manoel
Bonfim, fazendo divisa com o Terreiro Patiti Obá, como pode ser visto na Figura 81.
228
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Esta vivência das crianças e seu imaginário com as histórias dos terreiros fazem parte
também do universo particular do bairro negro. Retomando a Figura 59 (p. 151), vemos
entre as crianças, uma menina ‘brincando de terreiro’, filha da Dona Albertina e seu Ioiô, em
que ela era a mãe-de-santo, utilizando torso e colares, o que denota uma intimidade com o
universo dos terreiros.
Como parte destas vivências e ambiências particulares do bairro, Dona Joana também
conta sobre uma lembrança que marcou sua infância:
Dona Maria Angélica, quando criança, frequentava o terreiro de Dona Minacó, vizinho à sua
casa. Apesar da família ser proibida de frequentar terreiros pelo pai de Dona Maria Angélica,
ela conta:
Papai aqui era implicado com o candomblé. Tanto assim que eu nunca pude
assistir. Ele implicava com as roupas: aquelas saias compridas, os pés
descalços, aqueles turbantes na cabeça. Ele falava com a gente: é isso que
vocês querem para vocês? Para eu assistir candomblé aqui, fui escondida.
Uma vez, eu e minha irmã, já falecida, saímos descalças, de pontinha de
pé, saímos de madrugada só para ver a saída de uma iaô de Dona Minacó
e saber o nome do santo. E todo mundo dormindo aqui...
Dona Maria Angélica conta hoje rindo, que comia as comidas de santo escondida do pai:
Quando eu passava para a Vasco da Gama, tinha aquela casa toda branca
[Casa Branca]. Eu passava, mas nem olhava para o lado... Ave Maria...!
Aqueles enfeites prateados...
É o que Dona Maria Angélica conta, ao lembrar que tinha receio quando passava perto do
Terreiro do Bogum:
Eu tinha um medo desse Bogum... Ali tinha um bocado de dendezeiro,
entendeu?
“O terreiro é onde uma pedra pode não ser somente uma pedra, uma árvore pode não ser
somente uma árvore, mas uma entidade radiante e irradiadora, franqueada à manifestação
do sagrado”, coloca de Risério (2012, p. 161), que, no seu desdobramento nas áreas
exteriores ao terreiro, isto é, no bairro, constitui ambiências singulares em determinadas
partes do Engenho Velho da Federação, configurando lugares do lúdico, lugares
sacralizados, ‘lugares proibidos’.
Dona Justina, mãe pequena do Terreiro Patiti Obá, narra que certas partes do bairro eram
mais carregadas de energia, como alguns caminhos próximos a jaqueiras, bambuzais ou
outras árvores “sacralizadas” por adeptos de terreiro ao fazer seus assentamentos às
entidades sagradas, assustando os desavisados ou descrentes, que levavam sustos,
ouviam sons ou viam vultos e pessoas. Como havia caminhos por dentro da área do terreiro,
sendo um deles bem próximo ao pé de aroeira sacralizado pela casa, Dona Justina conta,
impressionada, sobre as ações do plano invisível: “Quem passasse sem pedir licença levava
era tapa!”
Estas ambiências perceptíveis pelas vivências e experiências ainda são muito recorrentes
na extensão do bairro e compõem as particularidades deste bairro negro dada pela
transmissão de energia por objetos, minerais, plantas, cores e vibrações visuais e
energéticas, expressões sonoras e musicais (toques percussivos, cânticos, etc.).
Mas, para além da delimitação do Engenho Velho da Federação, o terreiro do Bogum, como
outros terreiros, expande o sagrado para além dos limites originais do próprio terreiro,
contexto no qual os elementos naturais desempenham funções sagradas e viabilizam as
práticas rituais. Assim, uma gameleira na Estrada de São Lázaro era cultuada pelo terreiro.
Segundo Serra (2007), com a morte do espécime na década de 1980, a árvore de culto ao
vodum Loko, o plantio de uma nova muda foi executado pela ação da prefeitura de Salvador,
sendo edificada uma espécie de precinto, elevado e gradeado, para sua proteção, como
mostra a Figura 82. A muda foi consagrada por sacerdotes do Bogum, sob a presidência da
sacerdotisa que detinha, então, o mais alto posto no referido terreiro, Mãe Nicinha.
230
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Figura 82 - Árvore da Gameleira e seu ojá, localizada na Estrada de São Lázaro - Federação (Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora
69
Sobre a Campanha Nacional Quem é de Axé diz que é!: http://cenbrasil.blogspot.com.br/2010/03/lancamento-
da-campanha-quem-e-de-axe.html (Acesso em 22/04/2012).
231
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Este fenômeno que não acontece somente no Engenho Velho da Federação, mas que
também é expressivo em Salvador e no restante do Brasil deve-se ao histórico de
perseguições da igreja católica, do Estado, através da polícia. Ultimamente, as perseguições
se revelam pelo ataque das igrejas evangélicas neopentecostais. Se antes havia, por estes
grupos, uma depreciação e demonização da religião, atualmente pretendem criminalizar a
religião70.
Este aumento é resultado da disputa de adeptos mediante a uma nova lógica mercadológica
no campo religioso brasileiro. Já apontamos que as práticas culturais afro-brasileiras são
amplamente diluídas na vida cotidiana de boa parte da população brasileira, muitas vezes
não sendo correlacionadas ao repertório cultural de religiões afro-brasileiras. Segundo Silva
(2007), as igrejas neopentecostais empregam estratégias71 de proselitismo junto às
populações de baixo nível socioeconômico e potencialmente consumidoras dos repertórios
religiosos afro-brasileiros, utilizando, paradoxalmente, as mediações mágicas e a
experiência do transe religioso do aporte religioso afro-brasileiro, sendo uma mais forma de
atrair fiéis íntimos das experiências de religiões que apresentam interferência junto ao plano
metafísico, com a vantagem da legitimidade social conquistada pelo campo religioso cristão.
70
A criminalização de algumas religiões afro-brasileiras se dá atualmente por conta do sacrifício de animais,
como se estes sofressem maus tratos, sendo exatamente o contrário: os animais a serem oferecidos às
divindades são consagrados e não podem passar por situações de estresse, tendo, inclusive, um religioso
preparado para tal fim. Além da função religiosa, o sacrifício é também de ordem alimentar. Depois de retirados
os órgãos a serem ofertados, as demais partes são oferecidas como alimento aos frequentadores dos terreiros.
71
Segundo Silva (2007), entre as estratégias de expansão destas igrejas está a valorização do pragmatismo, a
ênfase na teologia da prosperidade, a utilização de gestão empresarial na condução dos templos, da mídia para
o trabalho de proselitismo em massa e de propaganda religiosa, sendo assim também chamadas de “igrejas
eletrônicas”.
232
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A caminhada é repúdio aos ataques às religiões de matriz africana, nos mais variados
graus, dos sutis aos mais violentos, sobretudo pelos evangélicos neopentecostais 72. As
ações variam da violência religiosa e moral à violência física às instalações dos terreiros
e/ou aos adeptos dos terreiros.
Após o lançamento dos fogos, as mães e pais de santo lançam milho branco para
abençoar a caminhada, seguidos por meninos posicionados à frente do cortejo que soltam
pombas brancas, dando início à caminhada abençoada com palavras, batuques e acordes
sagrados. Quem se faz presente, sente a energia circundante e toma a dimensão do
‘sentido’ e do ‘vivido’.
A caminhada segue com cânticos de terreiro mesclados com palavras de ordem contra a
intolerância religiosa, o racismo e demais injustiças cometidas contra o povo negro,
conforme pode ser visto nas Figuras 83, 84 e 85:
72
A intolerância religiosa é muito evidente em Salvador, parecendo contraditório visto que estamos numa cidade
majoritariamente negra e que guarda muitas referências africanas, ou talvez, por isso mesmo, em que aparece o
racismo de forma mais contundente. Os ataques vão desde agressões verbais aos candomblecistas a ações
violentas, como agressões físicas aos pais e filhos de santo (inclusive com surras de bíblia!), à demonização da
religião e agressões materiais aos terreiros. Em Salvador, o caso mais emblemático é o da morte de Mãe Gilda
do Terreiro Abassá de Ogum, em Itapuã, vítima de enfarte fulminante em impedimento à invasão de seu terreiro,
em 2002, por evangélicos neopentecostais.
233
Figura 83 - VII Caminhada contra a Violência, a Intolerância
Religiosa e pela Paz na Rua Apolinário de Santana (Ano: 2011)
Fonte: Foto da Autora
No âmbito do universo do terreiro, após os ritos secretos, são celebradas as festas públicas,
propiciando o entrosamento comunitário pela via lúdica, como lugar de trocas e dimensão
cultural da vida coletiva, sendo formas de acesso ao lazer festivo através dos sambas
tocados, cantados e dançados por pessoas ligadas ou não ao terreiro e da oferta das
comidas de santo.
E no bairro a ludicidade se repete, tal como vimos com os inúmeros grupos culturais e
musicais do bairro. O tempo livre que resta do tempo dedicado ao trabalho é utilizado nas
atividades lúdicas, em que o entrosamento comunitário, pela via lúdica, é propiciado pelas
festas às quais Makota Valdina se refere, que são os carurus de setembro oferecidos pelas
famílias do bairro, as rezas de Santo Antônio, os ternos de reis, os blocos de carnaval, etc.
Em sintonia à fala de Makota Valdina, Dona Maria Angélica também conta:
A gente fazia roupa igual, as meninas da rua. Fazia bloco de São João,
bloco de carnaval... Tinha também terno de reis, aqui mesmo no Engenho
Velho. Aí em cima, no largo [em frente à casa da Dona Lindaura].
Esta forma lúdica é, mais uma vez repetindo Sodré, uma forma social negro-brasileira que
os negros souberam explorar. Até as manifestações católicas foram transformadas num
‘catolicismo de preto’, ganhando novas tonalidades nas comunidades negras, se
diferenciando dos rituais católicos praticados pela igreja católica73.
Nas rezas domésticas, por exemplo, o sagrado e o profano se fundem nas rezas seguidas
pelas comidas, também trazidas pelos convidados (bolos, mungunzá, cuscuz, amendoim
cozido, arroz doce, licores), cantorias, danças e sambas até a madrugada: novamente a
festa, que transcende pela busca do equilíbrio.
73
Muitos são os estudos sobre o ‘catolicismo de preto’, ‘afrocatolicismo’ ou ‘catolicismo negro’:
SOUZA, Marina de Mello e. Catolicismo Negro no Brasil: Santos e Minkisi, uma reflexão sobre Miscigenação
Cultural. Revista Afro-Ásia, 28 (2002), 125-146. Disponível em: <www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia_n28_p125.pdf>
Acesso em: 12 nov. 2012.
SILVA, Rubens Alves. Negros Católicos ou Catolicismo Negro: um Estudo sobre a Construção da
Identidade Negra no Congado Mineiro. Belo Horizonte: Editora Nandyala, 2010.
SANTANA, Anália. A Irmandade do Rosário dos Homens Pretos do Pelourinho: memória e identidade
afrocatólica na Bahia. Africanias.com, v. 01, p. 1-13, 2011. Disponível em:
<http://www.africaniasc.uneb.br/pdfs/ac_01_santana.pdf > Acesso em: 12 nov. 2012.
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Além das festas nas casas, havia também as trocas de pratos culinários entre os vizinhos.
Nesta apropriação de valores religiosos, podemos intuir porque muitos praticantes de
religiões afro-brasileiras também se denominam católicos, sendo estes mais aceitos pelo
conjunto da sociedade, mascarando os dados de Religião do IBGE. Estas formas de
apropriação das festas católicas pelas comunidades negras também influenciou as
manifestações católicas mais tradicionais.
Das festas às romarias, que sempre aconteceram no bairro, destacamos a Romaria de São
Lázaro e São Roque que saiu por uns 40 anos e que era organizada pelo Seu Ioiô, pai de
santo de um terreiro localizado na Av. Passos, ficando desativado com seu falecimento.
Por anos seguidos, a romaria saiu de seu terreiro caminhando até a Igreja de São Lázaro e
São Roque, na Federação, em devoção a Obaluaê. A organização envolvia a família, os
filhos-de-santo da casa e a vizinhança, e ia agregando, ao longo do percurso, filhos do orixá,
devotos do santo católico e simpatizantes da romaria, como podemos ver nas Figuras 86 e 87.
236
Figura 86 - Saída da Romaria de São Lázaro na Avenida Passos (Ano: 1992)
Fonte: Foto da Família Santos
E no retorno da romaria ao terreiro, Dona Albertina conta: “Aí começava a segunda parte,
que era o feijão ou o caruru. Era todo ano”.
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
E este modo de vida foi para alguns moradores também meio de vida. Os valores irradiados
pelos terreiros desdobram-se em outras manifestações culturais do bairro, revelando
sempre a ludicidade da forma social negro-brasileira.
O Seu Nelito, bastante conhecido no bairro, foi criado em Santo Amaro, no Recôncavo
Baiano. Teve seu aprendizado do samba transformado em ofício, sendo fundador de vários
grupos de samba (samba chula e samba corrido), diretor de percussão de blocos de
carnaval, ensinando vários percussionistas famosos em Salvador. Seu Nelito conta que
também foi um dos introdutores da capoeira no bairro:
Seu Nelito recorda de Dona Abigail, a que era parteira, e que também fazia feijão para
vender:
Tinha uma parteira famosa aqui no bairro, Dona Abigail, a Biga. Ela também
tinha um feijão tradicional: o Feijão da Biga, na Apolinário de Santana. Era
uma quitanda coberta de palha, bem rústica. Eu fazia o samba-chula lá.
Seu Valter também lembrou de Dona Abigail, dona do samba que se transformou em bloco,
e aponta os blocos de carnaval do bairro, inclusive um afoxé, fundado também por ele:
Seu Valter evidencia as festas carnavalescas, mas não desconecta a origem no candomblé,
explicando que o afoxé, por exemplo, é desprendido dos preceitos reservados do terreiro:
E ainda surgiram com muita força no bairro do Engenho Velho da Federação os sambas
juninos, como fala Makota Valdina:
238
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Nos sambas de São João, a gente saia de porta em porta. Nessas trocas é
que os saberes e os valores eram passados (Makota Valdina apud ARAÚJO,
2005, p. 76).
Com o tempo, o ‘samba duro’ junino foi ganhando maior proporção no Engenho Velho da Federação.
Os festivais foram pródigos em revelar grupos de samba nos palcos montados pelo bairro durante a
festa. Este samba aparece na fala de Dona Amália:
Seu Valdir da Cuíca conta que apresentavam-se na época bandas como Pião Doido, Revela
Samba, Os Negões, Prego Duro e Samba Scorpio, dos quais saíram nomes hoje bastante
conhecidos na música baiana. Entre eles, Tatau, vocalista do Araketu, que comandava na
época o Samba Scorpio, grupo mais conhecido e prestigiado pelo público na época. Outro
famoso que já participou dos festejos do samba junino no Engenho Velho da Federação foi
o ex-vocalista do ‘Terra Samba’, Reinaldo. E ainda o Grupo Kissukilas (provém do vocábulo
kisukila, originado da língua bantu quimbundo, significa sonho real), fundado por Luizinho do
Jêje, do Terreiro do Bogum. Na fala do Seu Orlando:
O tempo áureo do samba junino começou a ter fim na metade dos anos 90 no
Engenho Velho da Federação. [...] O festival reunia muita gente que vinha de
outros bairros da cidade, mas com o crescimento da violência, alavancado
principalmente pelo tráfico de drogas, o evento foi perdendo força.
Apesar de não se ter mais o mesmo espírito comunitário dos tempos de outrora, o ‘feijão’ e
o samba-de-roda continuam presentes na vida do bairro, como podemos observar no cartaz
da Figura 88:
Esta forma social negra derivada do terreiro cimenta o entrosamento comunitário, estando
presente nas reivindicações, como parte do movimento político dos moradores:
239
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Na década de 60, quando lutamos pela associação dos moradores, meus pais
e outros fizeram campanha para uma nova sede. Fizemos quermesses,
leilões, listas, todos se envolviam (Makota Valdina apud ARAÚJO, 2005, p. 78)
Esta dinâmica sociocultural nos reporta novamente à concentração dos terreiros no bairro, o que
deu visibilidade nacional ao Engenho Velho da Federação.
A presença estabelecida pela intensidade dos terreiros gerou uma imagem ‘positiva’ do bairro,
tornando-se um dos elementos de identificação, como um marco simbólico.
Em função desta interpretação como marcos de resistência negra, com base nos terreiros, o
bairro do Engenho Velho da Federação foi escolhido, favoravelmente, como projeto-piloto para
requalificação urbana.
240
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Neste ínterim, destacamos o casal Dona Adalgisa e Seu Manoel, vizinhos da Casa Branca. “No
tempo das mães-de-santo velhas”, como afirma Seu Manoel, ele sempre era chamado para
fazer os trabalhos de substituição de telhas. Mesmo não sendo iniciado, era orientado a ficar de
resguardo sexual e era “benzido” antes de fazer o trabalho. Dona Adalgisa, como costureira,
aprendeu a modelar e costurar as roupas de santo e diz: “Já fiz muita roupa das filhas de santo
deste terreiro...”. Além das costureiras, como ela, ela também se recorda das engomadeiras.
Estas profissões já foram muito presentes entre os moradores do bairro. Muitas moradoras
trabalharam como lavadeira de ganho, cuja expressão lavar de ganho, referente à condição
de escravizado, sobreviveu ao pós-abolição, como é o caso das mães de Dona Maria
Angélica e de Dona Joana, sendo estas professoras aposentadas.
O trabalho de lavadeira era muito árduo, pois também consistia em passar e engomar, como
conta novamente Dona Joana:
Era trabalho: tinha que esfregar, quarar, ferver para clarear a roupa, para
ficar alvinha, torcer, estender para secar aqui em cima... E tinha roupa que
era de engomar. E para passar? Antigamente era ferro de carvão, um ferro
pesado. E no inverno que o carvão ficava molhado em época que chovia
muito? Era uma trabalheira... Eu e minha mãe, nós íamos na Graça para
pegar pó-de-serra e madeira de desmanche para ferver a roupa. Vinha com
as madeiras na cabeça da Graça até aqui.
As histórias de Dona Joana e Dona Maria Angélica são parecidas, como esta conta:
Meu pai era pedreiro e minha mãe foi lavadeira mesmo. Criou a gente
lavando roupa. Neste quintal tinha uma fonte, mas a fonte secou. A gente,
os filhos, era quem carregava a água. Para começar a minha atividade do
dia, de manhã, enchíamos dois tonéis: eu e meu irmão. Tinha muita fonte:
tinha fonte por aqui, por ali, por tudo quanto é canto tinha fonte. Eu ajudava
a lavar. Mamãe depois fervia a roupa. Era daquele tempo que fervia,
quarava... Eu tenho orgulho disso. Meu anel foi comprado com dinheiro de
roupa. Todo mundo ajudava a mamãe a lavar roupa, passar. Todo mundo
trabalhava, estudava e brincava. Até hoje eu tenho comadre e compadre da
época de batizado de boneca, de fogueira de São João...
A conversa com Rita Pinheiro, moradora do bairro e diretora do Bloco AfroBogun, nos contou a
experiência de sua avó no bairro, Dona Chica, já falecida, que era benzedeira. As benzedeiras
ou rezadeiras, curavam através de suas rezas e orações os “males do corpo e da alma”,
entendendo a pessoa na sua totalidade: indicavam chás, banhos de folhas, incensavam as
pessoas, rezavam o corpo todo ou somente uma parte. Como conta Rita Pinheiro:
Bastava ela olhar para a pessoa para saber o que estava acontecendo. Aí
ela ia rezar. O quintal dela era pequenininho, mas tinha todas as plantas
que ela precisava ali [...] Ela sabia fazer um remédio com o entrecasco do
pé do cajá para queimadura. Esquentava na panela de barro e passava
aquela gosma... Aí saía aquela pele morta e depois crescia a pele normal. E
não ficava parecendo aquela pele de plástico derretido não...
242
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Nas rezas há um ritual de cura que une a fé de várias crenças, que mistura o candomblé, o
catolicismo de preto e elementos da cultura indígena, com a combinação de ervas: folhas,
sementes, fumos, objetos rituais (amuletos, velas coloridas, santos, terços, incensos), entre
outros. Sempre com grande conhecimento botânico, aprendido com familiares antepassados
e/ou pelo dom espiritual, muitas das rezadeiras/benzedeiras também atendiam as pessoas
nas casas das famílias do bairro. Muitas delas também eram parteiras, como a Dona Chica.
Rita Pinheiro conta que sua avó “era muito sábia das coisas da vida” e através da tradição
oral, transmitia costumes, crenças e valores, de geração em geração, que neste caso se fazia
de avó para neta.
Como parteira, mais do que “aparar” a criança, ela sabia interpretar a hora certa do
nascimento:
Vó também era parteira: quando ela ia fazer um parto, ela olhava para as
nuvens do céu. Dependendo do que ela via, atrasava o parto. Ela pressentia
quando alguém ia morrer, sabia quando alguém estava grávida... Dizia para
não comer nada que alguém dá à toa e para não confiar em quem não olha
no olho...
Outra parteira bem conhecida era Dona Abigail, a Biga, lembrada por Mãe Val. Outras
parteiras citadas pelos moradores do bairro são a Cabocla, Dona Neca (mãe de Makota
Valdina), Dona Clara, Dona Lindaura “Branca” (chamada assim para não ser confundida com
Dona Lindaura Farias, moradora mais antiga e de pele negra), e muitas outras. Dona Joana
também lembra:
Tinha a mãe de Makota Valdina, Dona Neca, que pegava criança. Tinha Dona
do Carmo, aqui embaixo, que pegava menino também.
Entendemos que as rezadeiras/benzedeiras também são uma extensão das práticas dos
terreiros, ainda que muitas não tenham sido iniciadas pelo candomblé, como é o caso de
Dona Chica. Dona Paula não é benzedeira, mas é muito conhecida no bairro por acumular um
grande conhecimento de plantas medicinais que aprendeu desde menina com sua mãe,
misturando conhecimentos indígenas e africanos.
243
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
No âmbito do espaço de domínio público, temos as áreas vegetais constituídas das plantas
espirituais e/ou medicinais. São muitas as áreas vegetais existentes no bairro, entre caminhos
e largos, constituindo áreas de cultivo de plantas, como temos no exemplo da Figura 90, com
a existência de plantas religiosas e/ou medicinais, parte do patrimônio afro-brasileiro e de
domínio dos moradores, como vemos também na Figura 91, onde aparece o Tapete de Oxalá.
244
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Figura 90 - Área Vegetal com ‘paisagismo sagrado’ Figura 91 - Área Vegetal com ‘paisagismo sagrado’
na 3ª Trav. São José do Egito (Ano: 2012) na Avenida Fonseca (Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora Fonte: Foto da Autora
Além do espaço da rua e dos largos, dos espaços coletivos, os quintais também podem
atuar como espaços de convivência coletiva. “Nos quintais, vez ou outra, tinha samba de
roda”, como informa Seu Nelito.
Os quintais, além desta referência de uso como extensão da cozinha, é também ambiente
de lazer, da ludicidade, o lugar do churrasquinho, do samba, etc., e é também um espaço
criativo. Este espaço criativo permite que a casa não seja apenas restrita ao descanso, à
alimentação, à reprodução, à criação dos filhos, mas um lugar que também comporte o
saber-fazer. E este saber-fazer, que se aprende fazendo, não é ensinado na escola e
aponta para as habilidades de cada um. Dona Joana, Dona Maria Angélica e Seu Edílzio
contam como era o fazer o cuscuz, o bolo de carimã, o mungunzá, tudo cozido no fogão a
245
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
lenha, “no lado de fora”, no quintal; o acarajé feito com feijão ralado nas placas de pedra
que ficavam no quintal, as cocadas e doces feitos no tacho de madeira, o pisar do barro
da casa de taipa e até mesmo para modelar tijolos de adobe, que Dona Paula fazia
devagarinho, mesmo grávida.
Quando este espaço particular dos quintais inexiste, são os espaços coletivos que
servem de suporte para as práticas cotidianas. Estas populações negras são herdeiras de
uma educação doméstica que abrange as necessidades do viver, desde pequenos: cuidar
de si, cuidar dos outros, cuidar de uma casa. Estas comunidades não tinham a facilidade
de comprar pronto ou de mandar fazer.
Em relação aos mercados, temos presente no bairro as quitandas, cuja palavra kitanda é
de origem africana bantu (quimbundo), significa o tabuleiro em que as vendedoras
africanas vendiam suas mercadorias diversas (gêneros alimentícios) como ganhadeiras
ambulantes ou em pontos fixos nas ruas ou em feiras livres. Com o passar do tempo, as
quitandas tornaram-se estabelecimentos comerciais modestos e informais, instalados em
comunidades negras e pobres, geridos pelos próprios donos, em geral mulheres,
envolvendo filhos e demais familiares, empregando, quando muito, uma pessoa,
basicamente, conhecida ou vizinha e no qual se vendem gêneros de primeira
necessidade, que é o caso de Dona Lindaura, já mencionado, ou da ‘Barraca da Neide’.
246
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Convivibilidade
Assim, relatamos uma das nossas experiências vividas. Andando distraidamente pelas ruas
do bairro, ouvimos uma voz firme: “Cuidado com o carro, menina!” Me virei, retornei e
agradeci ao senhorzinho, um velhinho. Ele continuou andando e dizendo que os carros
andam correndo muito ultimamente. E seguiu o seu caminho, mas antes me disse: “Que
Deus lhe abençoe, minha filha”.
Tonho também menciona sobre o tratamento entre os moradores idosos do bairro e os mais
novos, os jovens:
Às vezes você passa: Bom dia, D. Maria. Bom dia o quê, menina?! Cadê
minha benção? Ou Seu José, como vai o senhor? Deus te abençoe, meu
filho!
Também temos a relação ancestral como um valor cultural importante para as comunidades
negras: a morte de um ente querido da família altera o equilíbrio da energia vital. Este fato se
mostra relevante na vida cotidiana dos moradores do Engenho Velho da Federação, nos
chamando atenção na entrevista com o radialista Beto Mendes, relativo aos avisos
solicitados pelos moradores: as notas fúnebres. O radialista afirma a importância que estes
avisos representam para os moradores e que, em função deste interesse, são vários os
anúncios feitos por dia na ocasião da morte do morador.
Estas relações sociais são estabelecidas de forma mais estreita, em relações de compadrio,
de amizade e de respeito aos mais velhos e às crianças, estes pelos conhecimentos
acumulados, e aos mais novos como continuação do grupo, com pedidos de bênção aos
mais velhos em respeito à senhoridade, etc., em graus de afetividade, dependência e/ou
solidariedade mútua relativa a fatos corriqueiros do cotidiano, como é o caso da relação
entre as famílias de Dona Maria Angélica e do Seu Edílzio.
247
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Na casa da Dona Maria Helena ali, que não faltava comida, eu ia almoçar
lá, até minha mãe chegar de noite. Ela e Dona Francisca praticamente que
me criou.
Ou então como conta Dona Adalgisa, lembrando de Dona Rosa, adepta do terreiro da
Casa Branca e que vendia fato74 no Rio Vermelho: “O que sobrava da feira, ela dividia
entre os vizinhos”.
Este sentido solidário e de camaradagem era presente e aprendido desde cedo, praticado
também pelas crianças. Como conta Dona Joana, sobre um dos momentos de sua infância
que exemplifica o aprendizado de um valor social, que misturava trabalho e brincadeira:
Estas práticas solidárias não são exclusivas de bairros negros, mas são características
marcantes no Engenho Velho da Federação, compondo o perfil sociocultural deste bairro. A
camaradagem também: numa das visitas à Dona Paula, com pouco tempo de amizade, nos
sentimos um pouco parte daquele universo familiar, assistindo o vai-e-vem do preparo do
almoço do domingo, o entra e sai das netas arrumando o cabelo para sair à noite, o neto
que ganha um dinheirinho cortando o cabelos dos colegas na varandinha em frente à casa,
e neste meio tempo, ganhei um CD da Dona Paula, no qual ela canta uma das gravações de
samba-de-roda com o filho, Seu Germano.
Mas a escala da vida comunitária do bairro não se perdeu: são recorrentes expressões do
não-anonimato como vemos no cartaz em via pública, que aparece na Figura 92, no qual não
é o endereço, telefone ou e-mail que indicam a prestação do serviço de cópias e impressão
de documentos, mas a simples indicação da residência do morador prestador dos serviços.
74
Partes dos miúdos (vísceras) de boi.
248
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Afro-consciência Espacial
Nesta acepção da afro-consciência espacial, temos o caso contado por Dona Jane, da
Rocinha, como uma das histórias “dos africanos”, como ela diz, compondo a história do
bairro e também dos seus moradores, formando o imaginário coletivo:
Foi quando o pé de Loko caiu. Era uma árvore enorme... A árvore era muito
antiga, daquela do Dique... Ele [orixá] ficava na ladeira e a copa cobria tudo
isso aqui embaixo. Mas ele avisou que ia cair: primeiro foi uma galha seca.
Depois foi uma galha verde... Mas no dia que ele caiu mesmo, não caiu em
cima de ninguém, de casa nenhuma. Não tava passando ninguém na hora.
Foi coisa planejada dos orixás mesmo! Dona Caetana disse que não era
para ninguém mexer na árvore antes de fazer o preceito.
Este caso do pé de Loko marca a história de moradores antigos do bairro e cada um lembra
dele a seu modo. Dona Joana, da Rua das Palmeiras, conta:
249
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Os moradores, mesmo não ligados ao candomblé, também sabem o que significa uma árvore
com um “pano branquinho amarrado” quando visualiza-se uma destas na paisagem do bairro,
em meio ao arranjo das construções: o assentamento de uma árvore sagrada e seu ojá, atrás
da construção pintada na cor branca (terreiro), como podemos observar na Figura 93.
Temos, então, que as práticas culturais afro-brasileiras são amplamente difundidas na vida
cotidiana de boa parte da população brasileira, muitas vezes não sendo correlacionadas ao
repertório cultural de religiões afro-brasileiras.
250
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Nestes cuidados com a casa, tomamos a lembrança de Seu Edílzio que conta que sua mãe,
Dona Das Neves, que também era mãe-de-santo, dizia, de tempos em tempos, que era para
limpar a casa: “limpar a casa era pintar com cal”: de fato, nesta expressão, mostra que sua
mãe sabia que esta pintura afastava os insetos75, além, de realmente, conferir um novo
aspecto à casa. A arruda também possui efeito inseticida cujo cheiro que exala também
afasta as moscas, além de absorver energias negativas.
Na varanda de Dona Jane, da Rocinha, tem muitas plantas. Quando pergunto por que ela
tem espada-de-ogum, ela responde: “Ôxe?! Para proteger! Não tenho só ela, não: tenho
abre-caminho, vence-tudo, arruda, guiné...”
Um exemplo é o caso de Dona Emerita, que pode ser visto na Figura 94. Não sendo
adepta de terreiro, Dona Emerita conta que faz uso dos banhos de folhas. Os banhos não
são utilizados apenas na forma espiritual, mas são incorporados na vida cotidiana como
terapia medicinal.
75
A pintura à cal possui ampla ação fungicida, inseticida e acaricida.
251
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
252
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
[...] aquela área era chamada de “quebra-laço”, onde a gente ia pegar folhas
pra sacudir a casa em fim-de-ano e sábado de aleluia (Makota Valdina apud
ARAÚJO, 2005, p. 78).
Esta fala de Makota Valdina refere-se aos dias de festa. Nos terreiros, as folhas espalhadas no
chão do barracão atuam como emanadoras de energia vital, equilibrando o ambiente sagrado.
A dinâmica do terreiro se realiza sob a ação da força vital. Esta prática dos terreiros se
desdobrou numa tradição doméstica. Muitas casas, por questões de dificuldades
financeiras, possuíam o piso em terra batida e as famílias mantinham a tradição, na época
de Natal, de lançar areia alva. Mesmo nas casas em melhor condição financeira, mesmo
com o piso cimentado e encerado, a prática de se jogar as folhas de pitangueira no chão da
casa se repetia, como desdobramento das práticas do terreiro. Dona Joana, que é de
tradição católica, também se recorda da prática de se jogar as folhas de pé-de-pitanga, mas
não se lembra do porquê:
253
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Na época era piso de chão, não era piso cimentado. Para baixar poeira,
molhava o chão e jogava areia, areia alva, areia fina, para não subir a
poeira. No Natal, jogava folha de pitanga no chão. Eu realmente não sei o
verdadeiro sentido de jogar as folhas no chão, mas que jogava, jogava.
Como apontou Santos (2006), as ações são subordinadas às normas, a atuação ligada à ideia
de práxis e as práticas são atos regularizados, rotinas.
Assentamentos Familiares
É o que vemos nas Figuras 97 e 98, conjuntos de moradias no terreiro da Casa Branca no
Engenho Velho da Federação. E ainda na Figura 99 aparecem casas nos limites do terreiro
voltadas para a via pública.
Figura 97 - Casas no Terreiro da Casa Branca no Engenho Velho da Federação (Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora
254
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Figura 98 - Casas no terreiro da Casa Branca no Engenho Velho da Federação (Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora
Isso é cultural, veio pela parte dos ancestrais. Desde a época dos escravos,
quando isso aqui era um engenho... Todo mundo com seus grupinhos,
morando perto.
Vemos aqui, claramente expresso na voz de uma moradora do bairro, que este
agrupamento familiar dos assentamentos familiares advém de uma relação cultural,
ancestral. Este agrupamento familiar, que africanos e descendentes utilizaram desde o
engenho, neste bairro, provavelmente se reportou ao clã africano mencionado no Capítulo 3,
e estava desvinculado, neste momento, do valor do solo, não relacionado ao valor
mercadológico da terra urbana.
Dona Joana também confirma este fato, contando quando seu pai veio do interior, em 1951:
Quando meu pai veio para cá, na casa da frente já morava a tia dele, Tia
Genésia, na frente. E morava também outros parentes: Tia Alice e mais
outros. A relação dos parentes era muito forte! [...] Ele ficou na casa de um
desses tios e depois que ele estava acertado na prefeitura, ele alugou uma
casa. Depois é que ele comprou este terreno. Quando ele alugou, era uma
casa de avenida. Alugou nesta avenida que já tinha uns parentes. Os terrenos
eram muitos grandes: cada parente que vinha do interior, quem já estava,
cedia e ia agregando a família. Era uma maneira em que a gente se ajudava.
Podemos apontar, de forma mais evidente, dois exemplos no Engenho Velho da Federação:
a família da Rocinha, cujo assentamento familiar situa-se nas proximidades da Ladeira Xisto
Bahia. Dona Jane afirma que a família está nesta área há seis gerações. Esta família não é
76
Em nossas atividades de trabalhos voluntários, consultorias de assistência técnica e pesquisa do mestrado.
256
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A casa aqui era de taipa: nós, meu pai e meus irmãos, fizemos e os vizinhos
ajudavam. Uma casa de taipa fazia num dia... Era rápido! Barreava também
rápido... Era muito vizinho, muita gente ajudava.
Seu Edílzio também conta das condições de precariedade que a casa foi acumulando com o
tempo:
A casa ia ficando velha, velha, mas a gente ia escorando aqui, ali, porque
casa de taipa não cai de vez, como a casa de bloco... Casa de taipa quando
já tava ficando velha ou já tava para cair, a gente continuava dentro de casa
e a gente fazia outra em volta. Depois que tava toda pronta, aí derrubava...
Pagava alguém para cortar as varas. Era vara e arame. Fazia aqueles
quadradinhos, amarrava com arame, e depois cobria com barro. E não caía,
porque a consistência da massa, do barro, ele ficava preso na parede até
secar. A gente pisava o barro, pisava, pisava... A família, os vizinhos, todo
mundo participava.
257
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Esta casa aqui foi toda construída na base ajuda. Fazia os adjutórios,
porque comprava o material aos poucos. Foi muito adjutório! Fazia batida
de limão, com a cachaça Jacaré, que era famosa, fazia o feijão e com toda
energia, construía mesmo. Na época da pintura, outra vez! E assim ia... Não
era como hoje em dia é que a gente tem que pagar o pedreiro, tem que
pagar pintor... Era muito unido.
Na construção das casas, como conta Makota Valdina, era o adjutório, como marco da
convivibilidade, que caracterizava a construção das casas:
Se íamos construir uma casa, ia pai, mãe e filhos para fazer o adjutório, que
não era chamado mutirão. Naquele tempo dizia-se: dar um adjutório. E a
gente fazia as festas. Não se fazia nada pra ficar só, era família, era
comunidade. Vizinho era parente. Todo mundo era tio, tia, avó, avô, sem
que necessariamente fosse parente de sangue (Makota Valdina apud
ARAÚJO, 2005, p. 76).
À medida que as condições financeiras da família iam melhorando, construía-se uma nova
casa com adobe ou tijolos cerâmicos, como conta Seu Edílzio.
Esta casa aqui levou dez anos fazendo, sem janela e sem porta. Não tinha
ladrão, não fazia medo... A gente dormia na esteira.
Inicialmente as moradias eram construções térreas, do tipo ‘frente de rua’ ou nos quintais,
agregando filhos, irmãos ou demais parentes.
Com o passar dos anos e a escassez de áreas livres para as novas casas, as construções
sobre ‘a laje’ da casa dos pais são parte destes assentamentos familiares, passando da
moradia unifamilar para multifamiliar, em que um imóvel pode reunir diferentes domicílios.
É prática comum o terreno da família servir de suporte para as casas de irmãos ou dos
filhos, que vão se casando e ocupando o terreno. Se as áreas do terreno não são
suficientes, há a verticalização.
Caminhalidade
A Caminhalidade é também um forte elemento da morfologia urbana, na qual boa parte dos
caminhos foi definida concomitantemente aos assentamentos familiares. Vários caminhos
serviram de referência como divisa para demarcação de novos terrenos a serem
arrendados. Esta rede de caminhos disposta pelos moradores é a que caracteriza o sistema
viário do bairro, como relembra Dona Amália: “um caminho encontrava com outro”.
Muitos caminhos surgiram com as pessoas passando por dentro dos quintais dos vizinhos,
como conta Dona Joana:
A afro-consciência espacial também fez parte desta formação dos caminhos, como explica a
fala de Rita Pinheiro:
A gente, para ir nos lugares, cortava caminho por dentro dos terreiros: tinha
o lugar de passar e tinha o lugar que não podia passar!
Diante de novas interferências da vida urbana, alguns destes caminhos não existem mais,
ou foram interrompidos, com fechamentos com portões face às novas necessidades de
segurança, numa reprodução das ruas particulares, ou mesmo foram ocupados com
moradias, impedindo o livre ir e vir.
Dona Amália também conta sobre o caso de um vizinho, que era morador antigo do bairro e
permitiu a passagem no seu quintal ao longo de anos. Na venda da casa, o novo morador
tentou recuperar a área do caminho, gerando uma situação de conflito por este morador
indiferente aos valores sociais compartilhados pelos moradores antigos. Como previsto no
direito romano ocidental, vigente no Brasil, a passagem foi garantida judicialmente pelo
direito consuetudinário baseado na relação de uso e costumes.
260
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Outros caminhos não surgiram como passagem por entre os quintais, mas foram abertos
em meio às matas pelos próprios moradores, além daqueles que compõem a toponímia do
bairro, como já apresentado, como forma de registro da convivência dos moradores.
Multifuncionalidade
A multifuncionalidade ocorre nos lugares intermediários entre a casa e a rua, como espaços
de transição. São os espaços mais protegidos da visão da rua, que surgem ‘naturalmente’
das necessidades cotidianas, das práticas de caráter particular da comunidade local. Estes
lugares são os pequenos largos, cantos e fins de ruas e becos sem saída. Também
encontramos estes espaços descendo os brongos e quebradas das encostas, nos patamares
entre as escadas, onde também acontece esta sociabilização pautada pela convivibilidade.
261
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
E nesta apropriação que não é só do espaço público, mas que é também apropriar-se do
próprio jeito negro de ser e que constitui uma forma de fazer cidade, é o que
consideramos a vivência plena do urbano, na sua diversidade.
262
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
CONCLUSÕES
Bairro Negro e Forma Urbana Negra: Produção de Conhecimento e Orientação às Políticas Públicas
Nossa inspiração acadêmica para esta tese partiu do princípio de que há um “jeito negro”
de fazer cidade.
Esta problemática da tese foi aos poucos sendo amadurecida e estabelecida pela
observação de nossa experiência com populações negras, sendo parte dela, e de
convivência em localidades de culturas negras. A partir de trajetórias sociais, culturais e
políticas, evidenciamos nesta tese formas próprias de apropriação e constituição de
espaços urbanos. Em nossa observação, de forma sistemática, verificamos um jeito negro
de ser, de estar e de fazer a cidade. Mesmo sob as imposições da cultura tida por
dominante, há um protagonismo histórico e cultural de populações negras que se dá
através de formas de produção e apropriação da cidade, expressando seu próprio processo
de criação e recriação, incorporando estratégias de lutas de resistência cotidianas.
A partir das referências sociais e culturais do bairro negro, podemos afirmar que a ciência
pode ser construída a partir da vida das pessoas e de suas realidades. A partir de seus
particulares contextos de vida, de relações de existência e sobrevivência, pessoas e grupos
geram conhecimentos, sob diversas condições materiais e históricas, cobrindo as lacunas
da vida cotidiana, através de práticas criadoras e inventivas.
263
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Deste modo, nosso campo referencial das culturas negras foi a cidade de Salvador, a
mais negra das cidades brasileiras, com alta concentração populacional de pessoas
negras e da contribuição destas pessoas na formação histórica da cidade, impregnando-a
intensamente com a dinâmica das culturas negras.
A pesquisa se concentrou num dos bairros mais antigos da cidade. Tivemos o bairro do
Engenho Velho da Federação como panorama para nossa interpretação do urbano.
Salientamos que esta tese, como parte de pesquisa científica, é apenas um recorte
parcial do bairro, naqueles elementos que nos serviram para comprovação da hipótese
proposta. Não tivemos e não temos a pretensão de resolver todos os aspectos da
complexidade que é a totalidade do bairro, nas suas relações internas e externas.
Consideramos que a plenitude do conhecimento e da compreensão dos significados da
vida deste local pertence apenas aos moradores, nas suas múltiplas gerações, sobre os
quais os meios científicos incorrem em limitações.
No início da pesquisa, foi nossa proposta nesta tese, através de um estudo empírico-
conceitual, identificar elementos da cultura negra que caracterizem o bairro negro e que
servissem para conceituar uma forma urbana negra. Através do bairro do Engenho Velho
da Federação, o fizemos. Concluímos que este bairro negro é um espaço urbano fundado
em torno de referências culturais de populações negras e, que no caso desta pesquisa, o
bairro negro tem como base de sua construção física e material, nos seus usos e sentidos,
a cultura dos terreiros de candomblé, correlacionada à história do bairro, transmitidas pelas
percepções e ideias dos moradores demonstradas nos seus depoimentos e ações.
Como identificamos o bairro negro devido à história social, cultural, política e econômica
no contexto da cidade, tendo como principal enfoque o eixo as culturas negras no campo
das africanidades e afrodescendências, ficou estabelecido uma forma urbana negra como
uma das contribuições desta pesquisa. Uma vez concluída a existência do bairro negro e
deduzida uma forma urbana negra, então também podemos afirmar que podemos ter
outras formas urbanas, diversas. Com este estudo consideramos que a cidade é um
conjunto complexo, cuja compreensão depende de várias categorias sem explicações
únicas, por exemplo, a cor da pele dos moradores ou as relações de renda. A explicação
dos bairros e das cidades depende de múltiplas possibilidades conceituais e teóricas.
Pensamos que são hipóteses a serem pensadas.
264
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
É parte do processo desta pesquisa evidenciar nossa opção intelectual e política. Para
Lencioni (2008), os conceitos utilizados e construídos se referem a um corpo teórico: “ a
pesquisa exige, permanentemente, escolhas e pesquisar significa viver opções ” (p. 120).
O que é importante no conhecimento é a coerência com as referências assumidas.
Deste modo, estabelecemos uma leitura de cidade coerente com as nossas referências
culturais negras. E, assim, nos posicionamos nesta pesquisa em produzir um
conhecimento científico a partir do conhecimento diaspórico africano, incluindo as
culturas negras de bairros negros nas reflexões e estudos da Arquitetura e do Urbanismo.
Realizamos esta tarefa tomando conceitos e ideias de Sodré, Cunha Junior, Goodwin,
entre outros, levando a cabo a explicitação do bairro negro e da forma urbana negra.
Nossas dificuldades nos processos de pesquisa, nas discussões sobre a temática com os
colegas e na escrita da tese perpassaram pela novidade e pelo enfrentamento à
resistência desta temática nos estudos urbanos. As mudanças de paradigmas e conceitos
na realização da ciência sempre enfrentam dificuldades de aceitação e de compreensão
pelos corpos científicos, muitas vezes conformados por ideologias que, segundo Cunha
Junior (2008a), realizam processos de dominação sobre a ciência e eliminam o seu
caráter de abertura a novas proposições.
O pensamento de John Maynard Keynes, em que “o difícil não é aceitar ideias novas, mas
escapar das velhas”, está neste âmbito da epistemologia das ciências, em que ao buscar
novas análises interpretativas da realidade, tem que se confrontar, a todo tempo, ao que
está estabelecido como verdade.
Diferente do estágio que o bairro se apresenta na sua paisagem urbana atual, pudemos fazer
deduções sobre os vários períodos históricos do bairro e nele encontramos, há algumas
décadas, o ‘tempo áureo’ que aparece nas palavras de seus moradores, quando o lúdico
nestas comunidades negras, apontado por Muniz Sodré, compensava até mesmo a ‘vida dura’,
desde os exíguos recursos financeiros das famílias às deficiências da infraestrutura urbana do
bairro. As dificuldades sempre foram muitas, como afirma Dona Emerita: “o povo comia fogo”.
E nestas histórias de êxito, destacamos que este é um bairro que conta com a força das
mulheres negras, mães, chefes de família, lideranças comunitárias, religiosas,
professoras, com vontade para vencer suas dificuldades, como Dona Joana, Valdina
Pinto, Dona Maria Angélica, Dona Paula, Dona Joana, Mãe Valnízia, Rita Pinheiro, entre
tantas outras não tão conhecidas, são mulheres que superaram suas dificuldades,
atuando cada uma a seu modo, e obtiveram destaque em sua comunidade e até mesmo
com alcance internacional.
Os moradores antigos que foram entrevistados contam, com vivacidade, histórias do bairro
e relembram como tudo era diferente e fazia sentido! Os adjutórios, o trabalho árduo, a
conversa entre os vizinhos, o carnaval de rua, as rezas e festas de Santo Antônio, as
noites de São João, os sambas juninos, as festas e cortejos dos terreiros, os carurus...
Assim, ressaltamos que a forma urbana negra no bairro negro do Engenho Velho da
Federação é datada, isto é, consideramos que houve um ápice, no qual este bairro viveu
o momento de sua maior força enquanto suporte desta forma urbana, que vislumbramos
entre os anos de 1950 e 1980. Makota Valdina rememora esse período com nostalgia:
266
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
A pesquisa revelou uma forma urbana negra constituída no bairro do Engenho Velho da
Federação, compartilhando referências culturais afro-brasileiras. Outros bairros negros,
no Brasil afora, poderão também oferecer outras formas urbanas negras, reflexo da
diversidade das culturas negras no Brasil. E aqui insistimos que elas existem e se
inscrevem como parte da diversidade no espaço urbano brasileiro.
A partir da constatação desta tese, paira como proposta para trabalhos futuros novas
pesquisas em torno de outros bairros negros e formas urbanas negras, tanto no espaço
brasileiro como no exterior, evidenciando as produções urbanas negras, promovendo a
produção de novos discursos baseados na diversidade do urbano.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
Nesse sentido, cabe como recomendação desta tese que as políticas públicas
administrativas e de planejamento deveriam ser revistas com enfoque nesta multiplicidade.
Pontuamos que para se trabalhar urbanisticamente em bairros identificados como bairros
negros deve-se administrar as políticas públicas considerando as formas urbanas negras:
seria um afro-urbano, nosso modo de intervenção urbanística para os bairros negros.
A forma urbana negra poderá ser, enquanto contribuição ao estudo da forma urbana a
partir da incorporação de vieses culturais das culturas negras, uma referência conceitual
para leituras metodológicas em demais bairros negros, como orientação para formulação
de políticas públicas. Ao incorporar a interpretação das culturas negras, escapamos à
tendência em tomar exclusivamente as relações de renda, o perfil econômico ou o poder
de consumo como motor das transformações das sociedades.
A identificação dos bairros negros na dimensão das políticas públicas urbanas é mais um
instrumento que pode ser revertido para orientação de políticas afirmativas, sendo este
reconhecimento uma forma de compensação às populações negras, como valorização de
suas histórias de resistência, convertendo-se em prioridade para as políticas públicas.
77
Dentre as Propostas de Ações Governamentais contidas neste decreto a de Nº 203: “Promover o mapeamento
e tombamento dos sítios e documentos detentores de reminiscências históricas, bem como a proteção das
manifestações culturais afro-brasileiras”.
78
Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7037.htm>. Acesso em:
22 abr. 2013.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
O que queremos ressaltar é que estes bairros produzidos pelos moradores permaneçam
no âmbito do habitar, com seu modo de vida próprio, com infraestrutura urbana de boa
qualidade.
No entanto, o sentido de morar defendido por nós, nos bairros negros, indo além das
necessidades gerais básicas da moradia digna, não é compreendido pelas políticas
públicas habitacionais. Não basta a unidade habitacional no contexto da moradia digna,
uma vez que, ao identificarmos o bairro negro, encontramos uma série de relações
culturais e espaciais que se constituíram ao longo de gerações processadas com o lugar.
E esta série de relações culturais e espaciais que constituem a forma urbana negra, que
está relacionada ao conteúdo, aos usos e sentidos estabelecidos numa clara resistência
de sobrevivência e que, portanto, se legitima nas novas necessidades e visões
socioculturais que surgem.
Lefebvre (1983) reconhece que a lógica formal é válida em certos limites, pois nesta
lógica são tomadas essências fixas, congeladas, para sua compreensão. Lefebvre
mostra, por outro lado, a inadequação da aplicação de princípios lógico-formais na
compreensão de uma realidade em contínuo movimento.
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)
O que nos interessa salientar é a diversidade do urbano, que aqui é dada pela forma
urbana negra. A forma urbana se apresenta como diversidade porque seu conteúdo é
proveniente da lógica da cultura e das demais condições econômicas, sociais e políticas
de um determinado lugar. Sua forma é operacionalizada segundo seu conteúdo e sua
dimensão vivida.
A demonstração da forma urbana negra se fez nesta tese através de relações sociais
marcadas pela convivibilidade que, por sua vez, mantém referências ancestrais entre as
pessoas, no caso, moradores do bairro, que se relacionam entre si com vistas às gerações
passadas e futuras, entre familiares e vizinhança, preservando a valorização dos
ancestrais comuns, como forma de continuidade da vida familiar e comunitária, através da
manutenção e ampliação da energia vital. Parte deste conteúdo determina a forma dos
assentamentos habitacionais, que nós chamamos de assentamentos familiares, como
maneira de concretizar uma demanda sócio-cultural. Neste âmbito, também compôs esta
forma urbana negra a definição de caminhos, a caminhalidade, surgindo por dentro dos
quintais dos moradores, possível porque também está na acepção da convivência quase
familiar entre vizinhos, em função de uma vontade de que a vida flua, com toda sua
potencialidade. A multifuncionalidade representa a flexibilidade dos espaços e dos tempos,
do trabalho ao lúdico. E presente em todas estas dimensões da forma, lapidadas pelos
conteúdos, está a afro-consciência espacial, como fonte de equilíbrio e de força vital.
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