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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

FACULDADE DE ARQUITETURA
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

MARIA ESTELA ROCHA RAMOS

Bairros Negros: uma Lacuna nos Estudos Urbanísticos


Um estudo empírico-conceitual no Bairro do Engenho Velho da Federação, Salvador (Bahia)

Banca Examinadora
Prof. Dr. Angelo Szaniecki Perret Serpa (Orientador)
Profª. Drª. Eloísa Petti Pinheiro
Prof. Dr. Ordep José Trindade Serra
Prof. Dr. Rafael Sanzio Araújo dos Anjos
Profª. Drª. Cecília Conceição Moreira Soares
Prof. Dr. Muniz Sodré de Araújo Cabral

Salvador
2013
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Maria Estela Rocha Ramos

Bairros Negros: uma Lacuna nos Estudos Urbanísticos


Um estudo empírico-conceitual no Bairro do Engenho Velho da Federação, Salvador (Bahia)

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Arquitetura e Urbanismo
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade Federal da Bahia como
requisito parcial para a obtenção do Título
de Doutor em Arquitetura e Urbanismo,
tendo como professor orientador o
Prof. Dr. Angelo Szaniecki Perret Serpa.

Salvador
2013

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Agradecimentos

À cidade maravilhosa de Salvador, pela sua energia, pelos soteropolitanos e baianos e pelas
suas culturas negras, por me encantar e inspirar.

Ao PPGAU, aos colegas, professores e funcionários, especialmente à Silvandira Oliveira,


com sua dedicação e disponibilidade. Agradeço também ao Sr. Nilton, da Biblioteca, sempre
solícito em nos auxiliar.

Ao Prof. Dr. Angelo Serpa, amigo e gentil orientador, que confiou em mim, enquanto
pesquisadora, e no propósito da pesquisa, acreditando no desafio desta temática, ainda, periférica
nos estudos urbanísticos. Agradeço carinhosamente pelas leituras, releituras e revisões.

Aos professores Drª. Eloísa Pinheiro, Dr. Ordep Serra e Dr. Rafael Sanzio, atenciosos e
cuidadosos com suas observações: agradeço pelas sugestões e contribuições apontadas na
Qualificação. Agradeço aos professores Drª. Cecília Soares e Dr. Muniz Sodré pelo aceite em
participar da Defesa.

Ao Grupo Espaço Livre que, nas nossas tardes de discussão sobre o urbano, contribuiu para
esclarecimentos e questionamentos articulados nesta pesquisa.

Ao Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da UFC que, através da disciplina


Cultura Brasileira, ministrada por Henrique Cunha Jr., proporcionou incorporar e desenvolver
conceitos.

Ao CNPq, pela concessão de Bolsa de Estudos nos últimos 20 meses do curso, o que
permitiu, efetivamente, a realização desta pesquisa.

Aos moradores do Engenho Velho da Federação que me receberam em suas casas, nos
seus locais de trabalho, nos seus trajetos e contaram histórias do bairro, e que também são
suas, sempre solícitos em cooperar para a realização da pesquisa. A participação dos
moradores entrevistados foi fundamental para o desenvolvimento da tese.

Aos amigos que estão comigo, mesmo de longe, pela torcida e carinho.

Ao meu pai, Carlos Alberto, pela sua inteligência, determinação e sagacidade, sempre
inspiradores, e a minha preciosa mãe Maria Izabel que, no seu reservado silêncio, sempre
me presenteia, me acalma, me alegra e me ama com seu doce e sereno sorriso, continua
construindo meu ser. Ao meu irmão Marquito, muito querido. Aos meus avós, bisavós... e
ancestrais, que me doaram energia vital, permitindo que eu esteja aqui.

Ao Prof. Dr. Cunha Junior, ou ao simplesmente Henrique, que me despertou, há tempos


atrás, relações e discussões entre as culturas negras e o urbano, também co-orientando
nesta tese, me ajudando a conceituar o que sempre fiz, na prática profissional das
orientações técnicas nos processos de autoconstrução. Mais do que uma referência
intelectual e ativista, é também minha referência afetiva.

Agradeço, por fim, à energia divina, que proporciona a beleza da vida!

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

RESUMO

Na diversidade de imagens, sons, paisagens e espaços-tempos da cidade existe a


possibilidade de distinguirmos as diversas experiências urbanas de seus habitantes,
enquanto grupos sociais, e seus entendimentos da vida urbana, experiências vinculadas
a fatores sociais, históricos, econômicos e políticos. Contribuem na configuração da
paisagem da cidade as relações sociais, as correlações de forças políticas, culturais,
econômicas e jurídicas que incidem sobre esta, através de interesses, acordos e
negociações, tensões e conflitos, imposições e passividades entre os grupos sociais na
sociedade global. Entendemos, assim, que o direito à cidade passa pela compreensão
de que a cidade é produzida por diversas formas. Esta tese de doutorado em Arquitetura
e Urbanismo evidencia formas de produção da cidade com foco em populações negras
no contexto diaspórico africano no Brasil e suas expressões culturais, sociais,
econômicas e históricas na organização social e espacial de áreas urbanas, segundo
suas próprias concepções culturais, constituídas a partir do encontro e reelaboração de
culturas afro-brasileiras. Tomamos o bairro do Engenho Velho da Federação, na cidade
de Salvador, como lugar de pesquisa para um estudo empírico-conceitual por ser
marcadamente instituído social, cultural e espacialmente pelos terreiros de candomblé,
em que estes constituem um referencial metodológico para esta análise urbana. Esta
tese evidencia a importância do posicionamento do fazer científico a partir do
conhecimento diaspórico africano como importante para o entendimento “de” Brasil,
incluindo as culturas negras de bairros negros nas reflexões e estudos arquitetônicos e
urbanos, como produção de novos discursos baseados na diversidade. A identificação do
bairro negro e a construção conceitual da forma urbana negra denotam a possibilidade
de se pensar a produção de cidade para além das relações de produção, incorporando
culturas negras como eixo de análise de cidade e apontando esta nova possiblidade para
proposições dos estudos urbanos voltados para a elaboração de políticas públicas.

Palavras-chave: Bairro Negro, Forma Urbana Negra, Culturas Negras

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 1 - Localização do bairro do Engenho Velho da Federação 32


Figura 2 - Panorama do bairro do Engenho Velho da Federação a partir da Av. Cardeal da Silva 33
Figura 3 - Vista do bairro do Engenho Velho da Federação a partir da Av. Vasco da Gama 33
Figura 4 - Diagrama de Construção de Hipótese 33
Figura 5 - Diagrama de Construção de Conceitos 34
Figura 6 - Diagrama da forma-conteúdo 55
Figura 7 - Diagrama da ideologia geradora da forma espacial 56
Figura 8 - Batuques em Salvador 85
Figura 9 - Bonde elétrico na rota Trilhos Centrais de Rio Vermelho 93
Figura 10 - Mulheres negras vestidas com trajes africanos 96
Figura 11 - Bairro do Engenho Velho da Federação e Centralidades de Salvador 98
Figura 12- Bairro do Engenho Velho da Federação e Sistema Viário Adjacente 99
Figura 13 - Localização do Engenho Velho da Federação na Região Administrativa VII (Rio Vermelho) 100
Figura 14 - Delimitação do bairro do Engenho Velho da Federação 102
Figura 15 - Delimitação do bairro do Engenho Velho da Federação - CONDER/PNUD 103
Figura 16 - Padrão construtivo no Engenho Velho da Federação 104
Figura 17 - Paisagem de fundo do Engenho Velho da Federação 105
Figura 18 - Porção da ZEIS Nº 13 e abrangência no Engenho Velho da Federação 106
Figura 19 - Porção de área arborizada no Engenho Velho da Federação 107
Figura 20 - Porções de áreas arborizadas no Engenho Velho da Federação 107
Figura 21 - Árvores do quintal da casa do Seu Edson 108
Figura 22 - Vias Principais do Bairro do Engenho Velho da Federação 110
Figura 23 - Topografia do Bairro do Engenho Velho da Federação 112
Figura 24 - Rua Apolinário de Santana 113
Figura 25 - Rua Apolinário de Santana 114
Figura 26 - Av. Vasco da Gama em frente ao Eng. Velho da Federação 114
Figura 27 - Perfil da Rua Forno da Mangueira 115
Figura 28 - Escadaria da Rua Forno da Mangueira 115
Figura 29 - Escadarias com placas de piso quebradas e recuperadas pelos moradores 116
Figura 30 - Escadarias com placas de piso quebradas e recuperadas pelos moradores 116
Figura 31 - Escadaria decorada com cacos cerâmicos 117
Figura 32 - Toponímia do Bairro do Engenho Velho da Federação (01/03) 118
Figura 33 - Toponímia do Bairro do Engenho Velho da Federação (02/03) 119
Figura 34 - Toponímia do Bairro do Engenho Velho da Federação (03/03) 120
Figura 35 - Busto de Mãe Runhó e imagem de São Lázaro 122
Figura 36 - Caixa amplificadora da Rádio Satélite 124
Figura 37 - Edificações construídas junto à testada da Rua Apolinário de Santana 125
Figura 38 - Casa com adaptação de platibanda na Rua Apolinário de Santana 126
Figura 39 - Casa antiga com platibanda na Rua Apolinário de Santana 126
Figura 40 - Casas isoladas no lote na Rua Apolinário de Santana 127
Figura 41 - Casas isoladas no lote na Rua Apolinário de Santana 127
Figura 42 - Sobreposição de casas - Avenida Fonseca 128
Figura 43 - Edifícios na Rua Maria Valentina 129
Figura 44 - Corredor de casas 130
Figura 45 - Terraços no Engenho Velho da Federação 130
Figura 46 - Setores Censitários que englobam o Engenho Velho da Federação 131
Figura 47 - Composição das Categorias de Classificação de Cor/Raça no Engenho Velho da Federação 133
Figura 48 - Composição das Categorias de Classificação de Faixa Etária no Engenho Velho da 134
Figura 49 - Rua Henriqueta Catarino - Lado direito
Federação 135
Figura 50 - Rua Henriqueta Catarino - Lado esquerdo 136
Figura 51 - Parque Santa Madalena 136
Figura 52 - Mapa de delimitação da área original dos Terreiros da Casa Branca, Patiti Obá e Bogum 142
Figura 53 - Mapa de delimitação da área original do Terreiro do Cobre 142
Figura 54 - Placa dos Tombamentos Federal e Municipal do Terreiro da Casa Branca 143
Figura 55 - Fotografia Aérea Vertical no Engenho Velho da Federação (Ano 1959) 146
Figura 56 - Recorte da Fotografia Aérea Vertical no Engenho Velho da Federação (Ano 1959) 148
Figura 57 - Fotografia Aérea Vertical no Engenho Velho da Federação (Ano 1976) 149

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 58 - Detalhe da Fotografia Aérea Vertical no Engenho Velho da Federação (Ano 1976) 150
Figura 59 - Conjunto de fotografias dos filhos de Dona Albertina e Seu Ioiô na Avenida Passos 151
Figura 60- Fotografia Aérea Vertical no Engenho Velho da Federação (Ano 1998) 153
Figura 61 - Espacialização dos Terreiros do Engenho Velho da Federação 155
Figura 62 - Mapa da Diáspora Africana 165
Figura 63 - Estátua da Quitandeira Angolana 174
Figura 64 - Morança Balanta - Bissau 179
Figura 65 - Morança Fula - Bissau 179
Figura 66 - Candomblé e Manifestações Culturais 183
Figura 67 - Painel Candombe Uruguaio 184
Figura 68 - Grafite de Samba na Rua Santo Amaro no Engenho Velho da Federação 187
Figura 69 - Diagrama do Plano das Ideias e Base Concreta 191
Figura 70 - Sobreposição Bairros Negros e Bairros Populares 194
Figura 71 - Diagrama do bairro negro e da cultura negra 194
Figura 72 - Diagrama do Bairro Negro e Elementos Espaciais 198
Figura 73 - Diagrama das Premissas Conceituais e Conceitos Complementares 202
Figura 74 - Vasos de plantas sagradas nas casas no Engenho Velho da Federação 209
Figura 75 - Musseque de Chicala - Luanda 211
Figura 76 - Vias (Terreiro do Bogum) 217
Figura 77 - Mariô em Terreiro no Engenho Velho da Federação 226
Figura 78 - Bandeira branca e insígnias de Xangô em Terreiro no Engenho Velho da Federação 227
Figura 79 - Entrada da Rua São Romão junto ao Terreiro 227
Figura 80 - Portão do acesso secundário ao Terreiro da Casa Branca 228
Terreiro do
Figura 81 - Acesso secundário ao Terreiro da Casa Branca 228
Figura 82 - Árvore da Gameleira e seu ojá na Estrada de São Lázaro 231
Figura 83 - VII Caminhada contra a Violência, a Intolerância Religiosa e pela Paz 234
Figura 84 - VII Caminhada contra a Violência, a Intolerância Religiosa e pela Paz 234
Figura 85 - Concentração da VIII Caminhada no Largo do Bogum 234
Figura 86 - Saída da Romaria de São Lázaro na Avenida Passos 237
Figura 87 - Romaria de São Lázaro na Travessa Assis 237
Figura 88 - Cartaz da feijoada e samba-de-roda 239
Figura 89 - Barraca do Pai Helinho no Largo do Bogum 244
Figura 90 - Área Vegetal com paisagismo sagrado na 3ª Trav. São José do Egito 245
Figura 91 - Área Vegetal com paisagismo sagrado na Avenida Fonseca 245
Figura 92 - Serviços prestados por Matheus nas proximidades do Largo da Torre 249
Figura 93 - Árvore sagrada e seu ojá em Terreiro no Engenho Velho da Federação 250
Figura 94 - Vasos de plantas medicinais na casa de Dona Emerita 252
Figura 95 - Paisagismo sagrado na 2ª Travessa do Bogum 252
Figura 96 - Paisagismo sagrado na Rua dos Coqueiros 253
Figura 97 - Casas no Terreiro no Engenho Velho da Federação 254
Figura 98 - Casas no Terreiro no Engenho Velho da Federação 255
Figura 99 - Casas nos limites do Terreiro no Engenho Velho da Federação 255
Figura 100 - Avenida Falcão 260
Figura 101- Avenida Parente 262
Figura 102 - Lavagem da Rua Manoel Bomfim 262

ÍNDICE DE TABELAS

Tabela 1 - Dados Gerais do Engenho Velho da Federação 132


Tabela 2 - Composição das Categorias de Classificação de Cor/Raça 133
Tabela 3 - Composição das Categorias de Classificação de Faixa Etária 134
Tabela 4 - Participações nas Religiões no Engenho Velho da Federação 137

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 08

INTRODUÇÃO 12
Contextualização da Pesquisa 13
Formulação do Problema e Objetivos da Tese 26
Delimitação da Pesquisa e Organização do Texto 35

CAPÍTULO 1
SUBSÍDIOS CONCEITUAIS E METODOLÓGICOS DA PESQUISA 39
1.1 - Estado da Arte 39
1.2 - Os Terreiros de Candomblé como Processo Metodológico 45
1.3 - Forma Espacial, Cultura e Ideologia 55
1.4 - A Construção de Premissas Teórico-Metodológicas da Pesquisa 57
1.5 - Aprofundando preliminarmente a noção de Bairro Negro 69
1.6 - Operacionalizando Teorias, Categorias e Conceitos 73
1.6.1 - Fontes de Pesquisa 73
1.6.1.1 - Pesquisa de Campo 74
1.6.1.2 - Fontes de Documentação Institucional 77

CAPÍTULO 2
SALVADOR E O BAIRRO DO ENGENHO VELHO DA FEDERAÇÃO 79
2.1 - A Cidade de Salvador e suas Transformações 79
2.2 - O Bairro Engenho Velho da Federação 90
2.2.1 - Aspectos Históricos do Engenho Velho da Federação 90
2.2.2 - Caracterização do Bairro 97
2.2.3 - Os Terreiros do Engenho Velho da Federação 153

CAPÍTULO 3
PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO URBANO A PARTIR DAS CULTURAS NEGRAS 160
3.1 - Diáspora Africana 160
3.1.1 - Contextos das Populações Negras na Diáspora Africana no Brasil 161
3.1.2 - Africanidades Brasileiras 166
3.2 - Uma Forma do Fazer Científico a partir do Conhecimento Diaspórico Africano 176

CAPÍTULO 4
BAIRRO NEGRO E FORMA URBANA NEGRA 191
4.1 - O Bairro Negro 192
4.2 - A Forma Urbana Negra 198

CAPÍTULO 5
O BAIRRO DO ENGENHO VELHO DA FEDERAÇÃO COMO EXTENSÃO DO TERREIRO 213
5.1 - O Bairro Negro do Engenho Velho da Federação 213
5.2 - O Engenho Velho da Federação e sua Forma Urbana Negra 246

CONCLUSÕES
Bairro Negro e Forma Urbana Negra: Produção de Conhecimento e Orientação às Políticas Públicas 263

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 271

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

APRESENTAÇÃO

O presente trabalho surge do paulatino e contínuo amadurecimento intelectual e acadêmico,


com o passar do tempo, das minhas experiências pessoais, acadêmicas e profissionais que
no observar a cidade, ora com maneira crítica, ora de simples fruição, nos levam a
sentimentos que vão desde o encantamento a inquietações. Como arquiteta urbanista, nos
(pre)ocupa a constituição das cidades, o que as fomentam, o que as mantem vivas e como
torná-las melhor pra os seus habitantes.

A partir da vivência em cidade, dos modos urbanos de vida, questionamos como as pessoas
entendem a cidade, a vida urbana ou mesmo, o viver o urbano. O urbano que vivemos
estaria imbuído do sentido de coletividade? Como os coletivos, com suas várias formas de
entender o mundo, produzem ou se apropriam da cidade?

São perguntas que, evidentemente, possuem muitas respostas! Mas aqui iniciamos a nossa
discussão em torno das culturas negras: a relação das culturas negras com o espaço
urbano. Nossa premissa é compreender como corpos sociais urbanos imersos nas culturas
negras conformam o espaço.

No campo de nossas inquietações teórico-conceituais está presente a pouca consideração


com uma, dentre várias possíveis, perspectiva das culturas de base africana e suas
transformações na diáspora brasileira junto às teorias do urbano. Entendemos a diáspora
africana, obviamente, não como puro e simples deslocamento da África para o Brasil, mas
como deslocamentos de mulheres e homens, que não trouxeram apenas seus corpos: mas
suas instituições culturais de origem de diversas regiões, etnias, estágios culturais e períodos
históricos, que passaram a coexistir com as demais instituições culturais presentes em solo
brasileiro, o que significou, simultaneamente, reelaborar, substituir, eliminar, adaptar, integrar,
somar, construir novas instituições culturais.

A temática desenvolvida neste trabalho é originada a partir de um movimento diaspórico


africano, integrando culturas, produzindo conhecimento, sendo esta a nossa intenção, em
relacionar à área do Urbanismo e da Arquitetura esta integração de culturas na produção do
conhecimento, sob a perspectiva das populações afrodescendentes. Há no campo do
Urbanismo e da Arquitetura, pouco reconhecimento (talvez ausência, indiferença e até mesmo
a negação) das influências da história cultural do continente africano e da sua diáspora na
construção de cidades brasileiras. Mas consideramos, como hipótese de trabalho, que negar
ou desconsiderar referências do continente africano, na sua unidade e diversidades, no
processo diaspórico, como base conceitual e real na produção de cidade, é também negar o
Brasil como construção de uma nação plural.

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Neste contexto, relativo à integração das culturas, Sodré entende que os cultos afro-brasileiros
são pós-modernos, pelo sentido irrestrito da tolerância, da diversidade. Carlos Alberto
Messeder Pereira entende, através de Muniz Sodré, que o Brasil pode ser um lócus
privilegiado pelo confronto do entrecruzamento de tradições culturais marcadas por uma
diversidade essencialmente radical (de natureza e de dinâmica), por meio do encontro de uma
‘lucidez’ pós-moderna do ocidente com os milenares mistérios e segredos da tradição cultural
negra (apud SODRÉ, 1988b).

Incorporar esta contribuição não é necessariamente fazer nenhuma oposição às ideias que
orientam o pensamento ocidental. Questionamos, no entanto, a insistência da sua abrangência
nos currículos acadêmicos, nas decisões políticas concretizadas nos projetos urbanos como se
pudesse abarcar as relações espaciais de um Brasil de populações tão diferentes, ignorando a
diversidade de comportamentos, de expressões culturais e, também, urbana; como se o
Urbanismo, pensado como corpo de conhecimento constituído pelo corpo acadêmico, técnico,
político, só pudesse existir, epistemologicamente, como imposição e não como sobreposição
de conhecimentos de origens culturais diversas, e não apenas das culturas ocidentais.

Portanto, assumindo a perspectiva de que as culturas humanas partem de lógicas de mundo


próprias e que produzem espaço sob estas lógicas, destacamos para nossa discussão o
sociólogo e professor universitário Muniz Sodré. Para o conjunto dos pesquisadores negros, a
presença deste intelectual negro representa uma possibilidade de renovação do pensamento
brasileiro nos temas relativos às populações negras, sendo abordadas não pela cor da pele,
mas pelo lugar de suas culturas e histórias, específicas na história nacional, e já amplamente
compreendidas e consideradas em algumas áreas do conhecimento, como na Educação, na
Sociologia e na História.

Assim, temos neste trabalho de pesquisa como ponto de partida o pensamento desenvolvido
por este autor, Muniz Sodré, em seu livro “O Terreiro e a Cidade: a forma social negro-brasileira”,
publicado em 1988, há 25 anos, com uma inovadora interpretação das populações negras no
Brasil, a partir dos terreiros de candomblé e sua dinâmica nas relações sociais que impregnam
a cidade.

O trabalho de Muniz Sodré tem importância pelas suas abordagens interdisciplinares e


catalisadoras da totalidade, integrando as formas negras de ser, com elementos da filosofia e
da realidade, num constante diálogo intercultural entre os conhecimentos de base africana e
os de base greco-romano-europeu. O texto adentra nas relações de concepção de espaço,
inclusive do espaço urbano no contexto brasileiro, com uma original análise da formação
urbana brasileira e da noção de cidade brasileira, sendo, portanto, parte do escopo da
formação dos arquitetos e urbanistas.

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

No entanto, o livro acima referido é, infelizmente, lido menos que o desejável (e necessário)
nas faculdades de Arquitetura e Urbanismo. Lamentável, sobretudo, por sermos um país tão
marcadamente negro, com cidades tão impregnadas pelas dinâmicas negras.

O livro, na sua interdisciplinaridade, aborda aspectos da cultura negra no Brasil, trazendo o


jogo negro como resistência político-cultural, “tanto na forma do culto mítico-religioso como
no ludismo festivo” (SODRÉ, 1988, p. 122), em análises históricas e sociológicas, através de
confrontações linguístico-filosóficas diante do encontro, no Brasil, de culturas negro-africanas
com o Ocidente. E explora a ludicidade destes grupos negros na invenção do urbano,
estabelecida e disseminada pelos terreiros de candomblé, sinalizando uma perspectiva
diferente para o pensamento urbanístico.

Sodré sinaliza que existem modos diferentes de relacionamento com o real, sendo que a
palavra real é o existente enquanto singular, único, incomparável e cultura sendo o real
representado ou atuado. Na continuidade do pensamento de Sodré, temos que, de acordo
com sua forma de relacionamento com o real, o grupo humano contém ou repele a livre
movimentação das forças.

Para alguns grupos humanos, como na tradição da religiosidade africana, o real é submetido
à força mítica, à energia vital, como força motriz que constitui fonte de potência criativa e
criadora - potência, vontade, força da natureza, natureza que transforma tudo em energia -
[o NTU ou] o AXÉ !

Ao desenvolver esta força como força de vida, poder de transformação e realização [ntu
para os Bantu], em que o axé [força realizadora para os iorubás] consiste na “autoridade
emanada de uma vontade coletiva, do consenso atingido por uma comunidade” (1988, p.
88), Sodré nos informa um posicionamento diante do mundo, sendo esta sua linha de
análise, distinta do nexo da metafísica moderna que “abandona a cosmologia e os objetos
para se centrar no homem como fundamento de todo existente. ‘Ideologia’ - neologismo
forjado na entrada do século dezenove para designar a ‘ciência das ideias’, [como] lógica de
objetivação do mundo” (1988, p. 10).

Em conformidade com o exposto, consideramos a possibilidade conceitual em admitir


maneiras particulares de se entender o mundo, de se apropriar e produzir o real. Assim, a
partir desta dinâmica cultura ↔ realidade, o Engenho Velho da Federação, bairro da cidade de
Salvador, Bahia, lugar de populações negras, de africanidades e afrodescendências e com
alta concentração de terreiros de candomblé, é o nosso local de observação e reflexão, de
encantamento e inquietações.

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Tal observação poderia também ser realizada em outros bairros com concentração de
população negra e com outras dinâmicas culturais negras de outras cidades, como o bairro da
Água Fria no Recife, o Morro de São Carlos, no bairro do Estácio no Rio de Janeiro ou a
Colônia Africana (atualmente bairro Rio Branco) em Porto Alegre, sendo que as relações entre
as formas culturais negras e o urbano se constituem por diversas maneiras, a exemplo de
terreiros, quilombos e festas. Dado a complexidade do tema, optamos, para este trabalho,
pelo terreiro de candomblé como orientador nesta relação com a cidade.

Avaliamos que o bairro do Engenho Velho da Federação, em Salvador, é, na sua


particularidade, uma destas referências culturais pelos seus terreiros de candomblé,
irradiadores de energia vital, de força. Este trabalho introduz conhecimentos das
africanidades em paralelo aos conhecimentos convencionais do pensamento ocidental,
como uma base epistemológica diferenciada para analisar o bairro, a partir desta força, a
energia vital.

Buscaremos mostrar ao longo deste trabalho que esta força mítico-religiosa, como força de
vida, poder de transformação e realização, ‘realizou’ o bairro, no nível material e simbólico, e
expressou-se também pela ludicidade, pela festa, que é o que nos causa encantamento! Um
dos prazeres do urbano!

Por esta ótica das populações e culturas negras, apreciando tessituras e histórias urbanas dos
seus terreiros e casas, de suas ruas e becos, de seus largos e cantos, é que convidamos a
percorrer o Engenho Velho da Federação: bairro animado por terreiros de candomblé e que,
através desta particularidade cultural, promoveu a realização deste bairro.

Assim, convidamos ao nosso texto.

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

INTRODUÇÃO

Fazendo um convite para observarmos as cidades através de percursos urbanos, teremos


possibilidade de delinear distintas paisagens marcadas por suas formações urbanas.
Podemos visualizar seus relevos, suas áreas naturais e áreas verdes, seus rios, vias,
construções, suas gentes. Também podemos perceber suas histórias, suas cores, seus
movimentos, seus cheiros, seus modos de vida.

Essas diversidades que ocorrem nas cidades brasileiras se apresentam em configurações


bem definidas espacialmente e nos mostram que as cidades comportam, em si próprias,
distintas cidades, cada uma com suas diferentes formas urbanas, caracterizadas por seus
próprios (e sobrepostos) espaços-tempos.

Nesta diversidade de imagens, sons e paisagens da cidade existe a possibilidade de


distinguirmos as experiências urbanas de seus habitantes, enquanto grupos sociais, e seus
entendimentos da vida urbana, experiências vinculadas a fatores sociais, históricos,
econômicos e políticos. Podemos distinguir também as experiências daqueles que
governam a cidade, subsidiados por ideias que promovem o pensamento (social e científico)
de definição e compreensão de cidade. Contribuem, assim, na configuração da paisagem da
cidade as relações sociais, as correlações de forças políticas, culturais, econômicas e
jurídicas que incidem sobre esta, através de interesses, acordos e negociações, tensões e
conflitos, imposições e passividades entre os grupos sociais na sociedade global.

Desta perspectiva da diversidade da cidade (sítios históricos, favelas, condomínios


fechados, entre outros) nas suas formas sociais e urbanas, permeada por fatores
econômicos, políticos, culturais, históricos e sociais, existem as áreas planejadas, sob
intervenções urbanísticas institucionalizadas, e as áreas não planejadas, intencionalmente
ou não, à margem do planejamento institucional, em que os próprios moradores definem
seus espaços habitados, havendo um planejamento próprio, originado de uma intenção, de
um propósito. De um modo, ou de outro, a vida urbana é presente em toda a cidade.

Na nossa perspectiva, a cidade é um lugar de pessoas e modos de vida, de formação de


culturas e identidades de grupos sociais e da concretização de ideais e experiências diversas,
visíveis na materialidade, na concretude da cidade por meio das suas áreas naturais, suas
construções, vias, áreas públicas e privadas.

Neste sentido, concordamos com as afirmativas de Lefebvre que o fenômeno urbano não se
restringe à dimensão física da cidade. O fenômeno urbano, para Lefebvre (1999), articula
fatores econômicos, culturais, sociais que se manifestam na forma de cidade. Enquanto a
cidade pode ser entendida como “um objeto definido e definitivo, [...] objetivo imediato para a
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

ação”, o urbano aponta para uma “abordagem teórica [...] mais complexa de um objeto virtual
ou possível” (LEFEBVRE, 1999, p. 28).

Em concordância com esta perspectiva da diversidade e da ação humana é que


pretendemos pensar a cidade e o urbano em sua dimensão vivida concretamente,
contemplando sua diversidade social, econômica, cultural e histórica.

Face a esta perspectiva sobre a cidade, suas populações, as diversidades com seus
espaços-tempos, em que “cada espaço está ligado a um tempo ou a vários [tempos]”,
conforme Soustelle (apud Sodré, 1988, p. 90), é que conduzimos esta pesquisa no bairro do
Engenho Velho da Federação, procurando estudar sua gênese urbana com foco na
população negra e suas expressões culturais, sociais, econômicas e históricas, em que
enfatizamos aqui os terreiros de candomblé, a partir de Muniz Sodré em O Terreiro e a
Cidade: a forma social negro-brasileira.

O terreiro é, neste trabalho, o meio através do qual vamos identificar um bairro negro, assim
designado pela experiência singular e seus elementos constituintes que configuram uma
forma urbana negra.

Contextualização da Pesquisa

Pautada nas diversas experiências de grupos sociais, nosso entendimento de constituição


de cidade passa pela premissa de que diferentes grupos, com seus diversos processos
históricos e políticos, buscam na espacialidade da cidade meios de fomentar e expressar
suas respectivas culturas, relacionadas com seus modos de viver.

Segundo Risério (2012), destacando um olhar antropológico, uma cidade é mais uma
comunidade do que um espaço construído, no qual “a estrutura de uma comunidade, não o
ambiente edificado, é que se deixa caracterizar pela permanência” (p. 17).

Neste âmbito, esta pesquisa apresenta o enfoque direcionado para uma determinada área da
cidade estabelecida cultural e historicamente por populações negras, produtoras de espaço
urbano, constituindo um grupo social histórico, no caso, o Engenho Velho da Federação.

Esta pesquisa ressalta e explora aspectos das africanidades que o Brasil possui, estando
naturalizados como características do povo brasileiro, sem que sejam evidenciadas como
heranças originadas de povos africanos, nas suas respectivas etnias e culturas.

Aqui um breve posicionamento em relação às culturas de base africana a que nos referimos,
firmando que estamos aqui no campo da diáspora africana no Brasil. O continente africano é
extremamente rico nas diversidades étnicas, culturais, históricas, geográficas, políticas. Sem
13
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

perder de vista as peculiaridades de cada povo, etnia e região distribuídos atualmente em


54 países1, tomamos nesta tese elementos que dão unidade à história cultural africana. Esta
unidade é que nos determina afrodescendentes, podendo, nas afrodescendências, sermos
afro-brasileiros, afro-caribenhos, afro-latinos, afro-americanos, entre outros. O prefixo afro
não é somente uma referência ao fenótipo, mas aos elementos que unificam/representam
histórias culturais africanas.

Diante da variedade dos povos africanos, com etnias distintas, verifica-se que existe no
continente africano, a partir de instituições culturais comuns, uma unidade cultural africana
na diversidade, conceito de Cheikh Anta Diop (1959) adotado pela maioria dos africanistas.
Segundo Munanga (1978), diante da complexidade cultural, esta diversidade na unidade
percorre todo o território africano, compartilhando semelhanças nos elementos estruturantes
das sociedades africanas.

Inspirados nas tradições culturais - a diversidade na unidade - a fim de avançar na luta


política dos povos africanos, diaspóricos ou não, surgiu um movimento denominado Pan-
africanismo, que nas palavras de Moore, é “ideologia política criada fora da África por
grandes pensadores da diáspora” (MOORE, 2010, p. 69).

Entendemos este movimento emancipatório como uma busca para evidenciar o ser africano,
diaspórico ou não, como sujeito, como agente de sua história, valorizando a experiência
histórica comum, utilizando como referência a consciência de uma origem comum africana.

Compreendemos, através das próprias falas de intelectuais africanos, que o continente


africano foi reconfigurado política, econômica e culturalmente, ao longo de décadas por
vários fatores: por ação da escravidão, sendo que alguns países foram radicalmente
afetados, uns mais que outros; pelo colonialismo e imperialismo europeus concomitantes às
disputas entre grupos étnicos; pela ação corrompida de algumas lideranças políticas, tendo
como contrapartida o processo das guerras civis em busca da autonomia do pós-
independência; os processos de conversão e de coexistência das religiões tradicionais e as
demais religiões (islâmica, católica, protestante e as neopentecostais), entre outros.

Deste modo, não pretendemos repetir uma visão estereotipada, como alerta o antropólogo
Ordep Serra (1995), sobre estudos que descambaram numa exploração do exótico, ou dos
estereótipos, em que “o apelo à herança da África deu lugar a todo um folclore” (p. 158).
Serra crê em comunidades que partilham valores, crenças, representações sociais que
podem se reportar ao acervo de certas culturas do continente negro, não tendo, portanto,
1
Divisão iniciada na Conferência de Berlim (1884-1885) cujo objetivo era a delimitação dos territórios africanos
entre as colônias europeias, baseada nos interesses econômicos sobre as riquezas naturais destes territórios,
ignorando os grupos humanos. A conquista das emancipações, nem sempre de forma legítima, dos Estados
africanos ocorreu, em grande parte, somente em meados do século 20.
14
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

essa origem exclusiva e nem correspondam à mera repetição de padrões elaborados no


continente africano.

Enfatizamos que a maneira como as relações étnicas foram, e ainda são, conduzidas no
Brasil, ao longo de séculos, fez com que percamos características culturais materiais e
imateriais, conhecimentos peculiares, tecnologias milenares no processo de organização
social e espacial de populações negras, que se tornam especificidades por acumularem
influências múltiplas de várias culturas, inclusive, e, sobretudo, das africanas.

Estas culturas negras se organizaram espacialmente em partes do território brasileiro de


maneira original, segundo suas próprias concepções filosóficas, usufruindo de certa liberdade
dada por sua autonomia criativa, não tomando somente como referência a cultura do
dominador europeu. Estas elaborações ocorreram com relativa autonomia, advinda da própria
dinâmica interna, intro-africana, a partir do encontro e reelaboração de várias culturas africanas
no Brasil. Estas áreas, portanto, não são resultado apenas das oposições política e econômica
entre grupos sociais dominantes e grupos sociais subalternizados, mas fruto de elaborações
culturais diferentes, em que destacamos as bases culturais ameríndias e europeias.

As características culturais e históricas de populações negras são permeadas pela


ancestralidade e por seus desdobramentos nas tradições e filosofias africanas, tornando-se
especificidades nas suas novas contextualizações diaspóricas no Brasil, sendo reelaboradas e
ressignificadas, tornando-se culturas negras, como referenciais próprios da vida social coletiva.

A ancestralidade, conforme o filósofo Eduardo Oliveira (2007), é o princípio organizador,


uma lógica, um conteúdo de uma metafísica subjacente do universo negro. Por este
princípio, partimos deste referencial, a ancestralidade, como estruturador da existência
individual e comunitária e que orienta o pensamento de comunidades negras, enquanto
grupos sociais, constituindo um urbano particular.

Este urbano particular, possuindo uma significação em um dado momento, um recorte da


realidade condicionado a instâncias cultural, espacial, institucional e econômica, tem por fio
condutor as trajetórias das populações negras: estes grupos sociais negros compuseram uma
criação autônoma, tal qual o pensamento de Lefebvre, a partir de grupos efêmeros: “Esses
grupos [...] inventarão seus momentos e seus atos, seu espaço e seu tempo, suas obras”
(LEFEBVRE, 1999, p. 95).

Por sua peculiaridade, entendemos este fenômeno como obra, no sentido lefebvriano, como
valor de uso. O urbano deste bairro negro é assim conduzido, partilhado por seus
moradores, cúmplices na atividade participante da produção coletiva, intérpretes de suas
próprias simbologias.

15
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Consideramos aqui a proposta de Lefebvre quanto à possibilidade de invenção do urbano.


Estes grupos sociais negros organizaram seus próprios momentos, seus atos, seu espaço e seu
tempo, orientados por valores culturais afro-brasileiros, como parte de entendimento de mundo.

E aqui relativizamos alguns pontos: Lefebvre está condicionado por um meio bastante
diferenciado historicamente do nosso objeto de estudo; os grupos efêmeros seriam grupos
não dominantes, mas salientamos que a população negra no Brasil é um grupo social de
grande densidade populacional nas regiões brasileiras, sendo parte integrante da nossa
história e cultura, não cabendo, portanto, a designação de grupo efêmero.

Nesta discussão cabe esclarecer que o Estado Brasileiro pratica, desde o início do século
20, uma política de invisibilização das populações negras tanto das suas práticas culturais
urbanas desde o período escravista até os dias atuais, perpassando pelas
representatividades políticas, quanto na transformação dos contingentes populacionais
negros brasileiros em representações ideológicas por supostas minorias sociais, mesmo
contradizendo os censos do IBGE para as diversas regiões do país.

Na possibilidade de invenção, esta seria, sem dúvida, no nível do habitar lefebvriano, que
contempla a diversidade das maneiras de viver, dos tipos urbanos, dos modelos culturais e
valores vinculados às modalidades ou modulações da vida cotidiana, modelando um espaço
urbano apropriado, como uma inversão revolucionária.

Em nossa opção política e intelectual, elegemos os terreiros de candomblé, enquanto


comunidades litúrgicas de matriz africana, como metodologia para este estudo urbanístico,
tendo o bairro como recorte espacial da pesquisa. Os terreiros, além da função espiritual,
foram também um meio de consolidação político-cultural para os grupos sociais negros; são
espaços de formação e de afirmação de identidades e de subjetividade cultural.

Os terreiros também são formadores de espacialidades, atuando como nucleadores de


bairros negros, como centralidades de formações urbanas, sendo, por esta perspectiva, a
partir dos terreiros, a leitura do bairro do Engenho Velho da Federação.

Além do imenso patrimônio cultural afro-brasileiro acumulado, difundido e reelaborado pelos


terreiros, temos a perspectiva política. No Brasil e, sobretudo, na Bahia, o histórico das
religiões de matriz africana confunde-se com o histórico de lutas e articulações políticas do
povo negro em busca de dignidade, respeito e reconhecimento nacional. Pode-se entender
que os terreiros são parte de um movimento social negro, assim como foram também
movimentos sociais os próprios quilombos e as irmandades, sendo que nos interessa neste
trabalho a relação desta cultura de patrimônios, também políticos, com a forma urbana.

16
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

E com esta perspectiva podemos, assim, pensar que esta é uma inversão nas análises da história
urbana. A história urbana pela perspectiva dos estudos urbanísticos tem priorizado, na formação
de cidades, elementos urbanos como a igreja católica, os edifícios públicos administrativos, as
indústrias, instalados nas cidades numa determinação “de cima para baixo”, representando as
elites dominantes através de poderes político-administrativos eclesiásticos e econômicos. Os
terreiros são o oposto! Pela força espiritual e política, alguns terreiros obtiveram grande prestígio
social e religioso, mas não são lócus representativos das grandes elites. A sua instalação foi, na
maior parte das vezes, clandestina, dada a perseguição da polícia; sua comunidade se dava,
inicialmente, pelas famílias-de-santo, expandindo-se pouco a pouco, em condições financeiras
bastante desfavoráveis, constituindo uma formação urbana comunitária, cotidiana: “de baixo para
cima”, originada da iniciativa de uma comunidade constituindo parte do tecido da cidade. Deste
modo, neste estudo, ao optarmos em analisar uma formação urbana pelo terreiro, e que constitui
uma particularidade do urbano, temos aí uma inversão de análise da história urbana.

Sem alcançar, compreender e absorver estas particularidades do urbano, as políticas


urbanísticas têm sido construídas, no Brasil, a partir de um padrão único e supostamente
universal, sobretudo a partir de modelos euro-americanos. Encontramos visíveis, em muitas
cidades brasileiras, sinais de tentativas de padronização de espaços urbanos, pautadas por
uma interpretação do urbanismo, enquanto planejamento e regulação urbanística, impondo
modelos face à adaptação das cidades às exigências de uma economia globalizada.

As configurações dos espaços urbanos, dadas pelas padronizações técnicas espaciais


impostas pelo poder político, intelectual e econômico, são utilizadas como estratégias de
inserção ou que corroboram em impedimentos à ascenção social e econômica de
determinados grupos sociais que habitam a cidade, na qual esta uniformidade é expressa e
imposta principalmente pelas instituições públicas e privadas, a exemplo do Estado, pelo
aparato educacional, pelo sistema de comunicação, pelo sistema de saúde, nas políticas
urbanísticas e desigual distribuição de infraestrutura urbana, entre outros.

Este nivelamento uniforme de políticas, pautado como universal, é justificado por um


pensamento de valores universalistas que impõem também uma homogeneização das
relações sócio-espaciais em nossas cidades, as políticas públicas tendem a renegar
especificidades de utilização, apropriação e produção do espaço urbano e acabam por inibir
processos de realização urbana de determinados grupos sociais.

A pressão por uma homogeneidade espacial disseminada pelas mídias, pela política e pela
academia estabelece coerções à afirmação de cidadãos e de grupos sociais em suas
expressões autônomas, inviabilizando o senso crítico em relação aos direitos universais e
ao direito ao uso da cidade.
17
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Temos na estruturação urbana das principais cidades brasileiras variações do modelo


português com evidências do traçado hispânico nas cidades coloniais, passando pelas
influências das ideias francesas nas intervenções urbanísticas, enquanto estabelecimento
da República no Brasil em fins do século 19 e início do século 20. Outras transformações
das cidades foram replicadas e/ou reproduzidas, posteriormente, por importação de teorias
aplicadas ao urbanismo.

Há na história urbanística brasileira uma tendência à perpetuação de importação de ideias e


de conhecimentos, na qual temos, em um momento, o discurso sanitarista e higienista, por
vezes com acentos eugênicos; em outro, o aformoseamento da cidade em nome de uma
estética europeia; em dado momento, o pensamento da sociologia incidindo sobre o saber
urbanístico; mais adiante, o urbanismo modernista e, por ora, as ideias urbanísticas
submetidas ao Estado neoliberal. Em todos os momentos a história urbanística é fundada
nas percepções da sociedade capitalista e agravadas pela concentração fundiária, ao revés
da distribuição mais equitativa e qualitativa de infraestrutura urbana e equipamentos
públicos nas cidades e de amplas políticas habitacionais.

Mas em todas estas variações do pensamento urbanístico, há na própria concepção do


urbanismo, enquanto ciência, o viés disciplinador. Segundo Françoise Choay (1997), o
urbanismo tem a pretensão de universalidade científica, além de querer resolver o problema
do planejamento da cidade industrial, como solução prática para os problemas urbanos da
cidade industrial.

Choay, em sua análise interpretativa do urbanismo, coloca que, diante desta nova cidade e
sociedade que se firmam em fins do século 19, a cidade aparece como um fenômeno não
familiar, extraordinário, estranho aos seus indivíduos. Entendemos que esse fenômeno se
dá pelo que Rossi (2001) reflete, de que a cidade cresce sobre si mesma, criando sua
própria consciência e memória. Estes referenciais de consciência e memória, que estão no
âmbito da cultura, aparecem descontextualizados até mesmo no urbanismo culturalista que
Choay descreve, cujo ponto capital ideológico não é mais o progresso, mas a cultura,
tornando-se inconsistente, porque enquanto fenômeno cultural é pensado como modelo,
não como processo. A cidade é pensada como objeto reprodutível, extraída da
temporalidade concreta, tornando-se utópica, de lugar nenhum.

Esta referência topológica é, em função da produção industrial, ignorada pelo urbanismo


modernista, este baseado no “tipo ideal de localização humana” a partir do “homem
universal”, segundo Gropius (apud Choay). Este urbanismo modernista vai ser replicado de
modo idêntico, considerando um espaço planetário homogêneo, cujas determinações
topográficas são negadas.
18
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Deste modo, temos cidades brasileiras que apresentam diversos momentos de tentativa de
padronização espacial e alienação topológica à qual nos referimos acima, agravada por
serem matrizes teóricas e ideológicas sobretudo europeias e americanas, geradas em
circunstâncias históricas, sociais, econômicas e políticas distintas do contexto brasileiro.

A importação das referências arquitetônicas e urbanísticas europeias é decorrente do


‘complexo de inferioridade’ das classes elitistas brasileiras em relação aos europeus,
criando a ‘utopia da civilização europeia’ (SODRÉ, 1988). Estas referências arquitetônicas e
urbanísticas são parte e reflexo do pensamento social que também balizou as correntes
artísticas: as artes, a música, a dança, a literatura.

Serra (1995) resgata um bovarismo presente em segmentos das elites brasileiras, mas que
em certo momento foi questionado durante o movimento modernista, sobretudo com o
regionalismo nordestino, em relação ao “descaso para com o ambiente brasileiro, do
divórcio intelectual com o País, a região, o povo e o lugar” (p. 165-166).

No âmbito deste raciocínio, o arquiteto urbanista José Tavares Lira, introjetando o


desenvolvimento do pensamento urbanístico no âmbito racial e cultural, articula Hesse
(HESSE, 1997 apud LIRA, 1999) em sua classificação de “mitologia branca”, numa
concepção de alteridade que permeia a própria história do urbanismo e que em grande parte
decorre do imaginário nacionalista moderno.

Nestes contextos ideológicos, pretendia-se tornar, então, o espaço urbano brasileiro uma
cópia das aparências europeias. Rolnik afirma que a elite brasileira do final do século 19
acreditava que a substituição da mão-de-obra negra (escravizada ou livre) “através de uma
política de imigração massiva de europeus poderia superar os obstáculos à higiene e à
civilização supostamente erguidos pela cultura não-civilizada dos povos de origem africana”
(ROLNIK, 1999, p. 69). No entanto, os imigrantes que vieram para o Brasil, naquele período,
eram trabalhadores camponeses que não detinham os costumes civilizados desejados: “os
imigrantes europeus, de quem se esperava ‘o sangue oxigenado de uma raça livre e
laboriosa’, tampouco preencheram as imagens de civilidade e higiene idealizadas pelas
elites” (ROLNIK, 1999, p. 78).

Muitos imigrantes eram analfabetos em seus países de origem (PEREIRA, 1986) e quando
aqui chegaram receberam incentivos: cotas do governo brasileiro aos estrangeiros. Muitos
alemães, apesar da Lei de Terras, receberam terras nos estados do Sul do país para trabalhar
na lavoura; outros incentivos foram dados aos imigrantes europeus, como a educação, sendo

19
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

esta renegada aos negros2 e trazendo impedimentos à sua ascensão social. Em 1850, foi
aprovada pelo governo imperial de D. Pedro II a Lei de Terras, em que o acesso à terra só se
daria mediante compra e não mais por doação. A privatização da propriedade fundiária
pública constituiu uma medida de inacessibilidade a terra pela população negra em momentos
antecedentes à abolição, sendo posteriormente reforçada pelo Código Civil, em 1916,
disciplinando que a apropriação de terras devolutas só se daria por compra.

Ao se evidenciar as cotas ofertadas aos imigrantes, além do capital simbólico positivo a eles
auferido, não se pretende aqui uma arbitrariedade, que pode parecer ofensiva, a estes
grupos sociais, mas ilustrar e afirmar as injustiças históricas, as negligências e vilipêndios às
populações descendentes de africanos, cujo trabalho forçado, sob condições
constrangedoras nos aspectos sociais, culturais, econômicos, políticos, consolidou o lastro
econômico do país.

Temos, neste contexto histórico entre os séculos 19 e 20, também permeando o


pensamento social, o ideal positivista, da ordem e do progresso, em paralelo à tônica de
rompimento com a estrutura urbana colonial e imperial, cuja economia era baseada no
sistema escravista (não só a economia urbana, mas praticamente todo o processo produtivo
da Colônia e do Império), com o objetivo de afirmação do novo estado republicano e às
novas relações econômicas, anunciadas pelo discurso civilizatório.

Este novo ideário afetou profundamente as populações negras. Flexor (1998) aponta que o
discurso civilizatório oficial buscava combater os hábitos da população. No sentido de
moralizar a sociedade procurava-se, inclusive, coibir a mendicância, os cultos místicos e as
festas populares e, até mesmo, a presença de negros nas áreas centrais. Havia um
pensamento de que as cidades deveriam modernizar-se e, para tanto, deveriam
assemelhar-se com as cidades europeias, defendendo-se, inclusive, o embranquecimento
da população:

Os elementos que faziam da cidade um lugar atrasado, feio, sujo deviam


desaparecer para dar lugar ao novo: avenidas e ruas largas, arejadas,
calçadas, arborizadas... com habitantes brancos, vários parques e praças,
espaços de passeio e lazer... (FLEXOR, 1998, p. 115).

2
A educação à população negra foi negligenciada e reprimida pelo Estado, desde o período anterior à abolição.
Santos e Barros (2011) indicam que o 9° artigo do Regulamento de 1º de setembro de 1847 da província do Rio
de Janeiro dizia: “São proibidos de frequentar as escolas públicas os que padecem de moléstias contagiosas, os
escravos e os pretos africanos, sejam libertos ou livres” (p. 04). Chalhoub (2006) informa que a restrição à
instrução objetivava também o impedimento às votações dos negros nas eleições e, consequentemente, a
representatividade política. Paralelamente às limitações ao acesso à educação oficial, irmandades e demais
associações negras buscaram organizar escolas, como a escola da Frente Negra Brasileira, fundada na década
de 1930 em São Paulo e, ainda, tivemos a grande atuação das ‘professoras leigas’. No entanto, estas iniciativas
seriam insuficientes para atender a grande demanda.

20
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

A cidade de Salvador, bem como o Rio de Janeiro ou o Recife, era marcada pelo domínio da
presença africana. Esta presença demarcou territorialidades culturais (SODRÉ, 1988) e é o
que Rolnik chama de fio invisível:

A presença do negro [...] definia a contiguidade do território negro... O


espaço das fontes, bicas d’água e rios [...] constituía também nódulos de um
território feito de múltiplos pontos de conexão, que acabavam por desenhar
um fio invisível... (ROLNIK, 1999, p. 62-63).

Apesar de sua total dependência em relação à mão-de-obra africana e de seus


descendentes para a execução de todos os trabalhos, a simples presença africana nas ruas
incomodava as elites brancas, por seus comportamentos (gestos, trajes, cultos, etc.).

Segundo Serra (1995), “a Bahia [a cidade da Bahia] cultivada quer-se branca, moderna,
cristã, ocidental, progressista” (p. 160). O autor informa que as teorias racistas
prevaleceram, na passagem para o século 20, nas tentativas de interpretação da sociedade
brasileira, orientando políticas desenvolvimentistas que preconizaram o fomento da
imigração europeia, privilegiando os oriundos de povos considerados superiores, como
saída estratégica para ‘melhorar a raça’.

No contexto de preparação do país para o novo sistema econômico e político, o discurso


civilizatório tomou força: modernização, normatização, moralização dos costumes para
combater os péssimos hábitos da população aos quais se associavam as ideias de pobreza,
insalubridade, promiscuidade, imoralidade, subversão, associadas, sobretudo, aos hábitos
da população negra (FLEXOR, 1998).

O estudo de Rolnik (1999) também registra que os negros eram tidos como promíscuos pela
dança que praticavam, sendo vista pela elite como expressão da lubricidade, da
degenerescência moral e da falta de instituições familiares estáveis. Para a autora, esta
discussão na perspectiva do meio urbano é fundamental, uma vez que há a condenação de
modos de vida diversos e desconhecidos:

Por colocar a liberdade corporal no centro de todo o processo comunicativo,


a cultura negra chocava-se com o comportamento burguês-europeu, que
impunha o distanciamento entre os corpos. [...] A cortesia e o refinamento
eram regidos por normas que vetavam os toques mútuos, assim como o
livre contato corporal em público (ROLNIK, 1999, p. 68).

A vida espiritual dos africanos e seus descendentes também não era compreendida, ou
aceita, pelos olhos da elite que adotava o entendimento do mundo através de um enfoque
ocidental, europeu e católico como único. A religião africana era vista como magia ou
feitiçarias e suas danças eram vistas como promiscuidade. Também havia repreensão à

21
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

família afrodescendente extensiva, contrária à família nuclear, monogâmica, patriarcal e


legitimada pela igreja católica. Os negros, que não viviam as regras da elite e dos ‘homens
de bem’, eram tidos, portanto, como desregrados.

Com o propósito de um cenário urbano aos moldes europeus, Rolnik (1999) assinala que os
territórios negros articulados pelo entrelaçamento das ruas, dos pontos de quitanda, das
bicas e tanques das lavadeiras, dos encontros no mercado, dos refúgios nas matas e dos
espaços das irmandades na cidade constituíam o território a ser desmontado, cujas marcas
deveriam ser apagadas para conferir à cidade uma imagem ‘metropolitana’ e confirmar o
poder à República nascente. Rolnik exemplifica o contexto paulistano, que vemos presente
também em Salvador (REIS, 1986; COSTA, 1989; SOARES, 1994), como também no Rio
de Janeiro (MOREIRA, 2006).

Após a abolição, muitos negros ex-escravizados e também negros livres ou libertos


permaneceram residindo nos mesmos lugares, isto é, nas áreas urbanas centrais, nos
sobrados e edifícios que abrigavam as lojas, os cortiços e casas de cômodo, abandonados
pelos proprietários. Segundo Pinheiro (2011), as elites iam, aos poucos, partindo para outras
áreas das cidades que por sua vez se tornavam mais nobres, abandonando seus sobrados
e casarões que iam se degradando com o tempo e foram demolidos na ocasião das
remodelações das cidades, justificadas pelo controle ‘higiênico’.

Na disciplina do urbanismo, a lógica é de uma ciência voltada para favorecer a produção


capitalista e ‘higienista’, impondo novas formas de viver artificiais e abstratas. O urbanismo
surge para que a cidade não cresça conforme seu movimento natural: deve ser dominada,
controlada e dirigida. Além de favorecer os meios de produção, o urbanismo vem também
sob a forma de controle político. Ou como dispõe Lefebvre, o urbanismo é como máscara e
como instrumento: “máscara do Estado e da ação política; instrumento dos interesses
dissimulados numa estratégia...” (LEFEBVRE, 1999, p. 164), numa estratégia que organiza
globalmente o espaço, de maneira coercitiva e homogeneizante, elaborando também um
espaço político.

Neste espaço político, ainda no bojo do desejo de embranquecimento da população, um


ponto bastante desfavorável às populações negras nas áreas urbanas foi a ideologia
eugênica, que mesmo sob o ‘disfarce’ do discurso do higienismo, participou, em certo
período, de articulações no campo do pensamento sobre as cidades.

O reconhecimento da eugenia no campo das abordagens sanitárias e urbanísticas no Brasil


é proposto no texto de Lira (1999). Lira, em sua proposta de reinscrição do ponto de vista
urbanístico no bojo da discussão raça/cultura no Brasil, acredita que o “discurso da doença

22
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

e do saneamento do país tenha de fato contribuído com mais força para referendar e exaltar
a disciplina urbanística em sua função modernizadora da nação” (p. 51). Por outro lado, o
autor reforça que o higienismo envolveu também o discurso eugênico no sentido racial e
cultural diante de “um meio urbano visto como degenerador de uma cidade asséptica,
civilizada e domesticada para as funções do trabalho, mas também ‘eugênica’, quer dizer,
racialmente higienizada” (p. 51). E ainda, mais adiante, o autor dá um exemplo, em relação
à cidade do Recife na década de 1920, na fala de um engenheiro sanitário, sobre a higiene
e a eugenia: “são duas ciências que precisam caminhar emparelhadas, uma complementar da
outra… a primeira cuida da cidade, e a segunda aperfeiçoa a raça de cuja perfeição e vitalidade
muito depende o progresso do Paiz” (PEREIRA, 1928, p.72 apud LIRA, 1999, p. 54).

Além de Lira, outros autores afirmam a presença do pensamento eugênico sobreposto ao


pensamento sobre as cidades no Brasil nas primeiras décadas do século 20. O arquiteto
urbanista Marcos Virgílio da Silva (2004) trabalha com a questão de que não apenas o
chamado higienismo explica as intervenções urbanas no início do século XX, mas também o
intuito de promover a melhoria da raça. O autor ressalta que:

O movimento eugênico brasileiro é bastante heterogêneo, mas vale


destacar sua atuação junto à saúde pública e o saneamento, bem como sua
atuação nas áreas da psiquiatria e higiene mental ao longo das décadas de
1920 e 1930, o que permite verificar algumas das principais questões nas
quais a questão urbana se relaciona ao pensamento eugênico (VIRGÍLIO
DA SILVA, 2004).

Com a Segunda Guerra Mundial, para Virgílio da Silva, a eugenia foi desacreditada como
ciência e condenada como postura política. Mas o autor aponta que, mesmo que a eugenia
tenha sido relegada a uma condição de tabu, não se pode considerar o Brasil, um país tão
miscigenado, imune a tais manipulações ideológicas, como mostra a constatação da íntima
relação entre higienismo e eugenismo3:

Em outros campos de conhecimento, a influência e os resultados do


pensamento eugênico estão sendo discutidos, e a reflexão sobre as cidades
não deveria se furtar a esse desafio (VIRGÍLIO DA SILVA, 2004).

Não nos aprofundaremos neste tema em relação ao contexto do urbanismo, mas entendemos
que a ideologia eugênica afetou diretamente parcelas importantes de populações negras,
sobretudo nas circunstâncias históricas de sua afirmação política pós-abolição.

3
Ver também:
VIRGÍLIO DA SILVA, Marcos. Naturalismo e Biologização das Cidades na constituição da Idéia de Meio
Ambiente Urbano. Dissertação de Mestrado: FAUUSP/Universidade de São Paulo, 2005.

23
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

É neste período que ocorrem grandes reformas em principais centros urbanos do país (Rio de
Janeiro, São Paulo, Recife e Salvador, como exemplos), caracterizados pela ocupação dos
elementos considerados indesejáveis, no caso, populações negras e suas culturas, para a
constituição de uma nova imagem da cidade republicana. E, a título de contextualização, Pinheiro
(2011) expõe, no cenário soteropolitano, sobre a reforma de 1912-1916: “As obras expulsam a
antiga população empobrecida, que vivia em edificações encortiçadas em partes do Distrito da
Sé e do Distrito de São Pedro e que tem de buscar novos locais para acomodar-se” (p. 243).

Ao analisarmos a historiografia do campo do urbanismo no Brasil, entendemos que este, de


modo geral, é produzido, teórica e analiticamente e também nas práticas, de forma afastada
da realidade brasileira e distante de uma preocupação sócio-cultural, e no qual a
organização espacial é projetada e imposta pelo poder público, em muito subsidiada pelos
interesses do capital.

Segundo Antônio Heliodório Sampaio (1999), arquiteto e professor, a cidade de Salvador


pode ser vista, desde sua fundação, como parte do capitalismo europeu nas Américas e sua
modernização mais recente esteve articulada ao ideário moderno hegemônico: na
economia-política, na ideia de Estado-nação liberal, e nas concepções de arquitetura e
urbanismo gestadas nos países ditos centrais.

Ressaltamos que as remodelações urbanas sempre vieram acompanhadas pelas inovações


tecnológicas e, na maior parte das vezes, financiadas pelo capital estrangeiro. Na virada do
século 19 para o 20, a implantação dos novos serviços urbanos se dava pela ampliação dos
bondes elétricos, iluminação elétrica, as instalações de redes do abastecimento de água e
de esgotamento sanitário. Para exemplificar, segundo informa Pinheiro (2011), a iluminação
elétrica implantada em Salvador se deu através de capital belga, com a Compagnie
d’Éclairage da Bahia, os bondes elétricos foram financiados por capital alemão, a empresa
Siemens & Halske, e norte-americano-canadense, Light and Power.

No contexto contemporâneo, temos novamente o capital, sob o sistema capitalista,


representando forças econômicas que continuamente elaboram novos modelos de
exploração econômica do espaço urbano, sendo este próprio concebido como meio de fluxo
de capitais. Temos o exemplo do recorrente planejamento estratégico, modelo catalão,
proposto por Borja e Castells (1997 apud VAINER, 2000), que constituiu-se em
desdobramentos urbanísticos teóricos e práticos em cidades mundiais que são financiados
por recursos de agências internacionais e pelo capital privado, a exemplo do que ocorreu em
cidades como Barcelona e Rio de Janeiro.

24
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Estas importações de ideias e modelos, ou mesmos as adaptações destes, nos levam a


concluir que as replicações de teorias do urbanismo e modelos de urbanização abreviaram,
por parte de pesquisadores e planejadores urbanos, análises e proposições de modelos
teóricos urbanísticos a partir das realidades e problemas brasileiros. E ainda, também, há a
dificuldade dos planejamentos participativos.

Apesar dos avanços políticos dos movimentos de reforma urbana e das posturas de
governanças progressivas, podemos ainda afirmar que a concordância teórica e as
adaptações descoladas de nossa realidade são absorvidas pela elite técnico-acadêmica,
sendo impostas à população.

Esta postura da tradição brasileira no campo urbano é reconhecida pelo arquiteto


antropólogo Carlos Nelson dos Santos (1981), em suas buscas de conhecimento sobre
formas de apropriação dos espaços urbanos de uso coletivo:

[...] uma elite acadêmica ou técnica, detentora de um saber-fazer, considera


sua tarefa natural a instrução da massa. Esta deveria ser passiva por
excelência e estaria sempre receptiva e disposta a incorporar indicações
superiores iluminadas quanto aos melhores caminhos para a construção ou
apropriação dos seus espaços sociais (SANTOS, 1981, p. 12).

Além da imposição de modelos importados, há ainda a ineficiência das políticas públicas no


tocante à produção de habitação de interesse social. Historicamente, as políticas públicas
brasileiras não deram conta do crescimento populacional nas cidades, ocasionado pelas
dimensões em que se deu o êxodo rural, causando um grande déficit habitacional.

Deste modo, estas populações excedentes nas cidades, sendo maciça parcela composta por
populações negras, vão tentar, com seus próprios meios, adequados ou não, resolver seus
problemas de moradia. Estas populações excedentes residem no que o IBGE denomina, de
aglomerados subnormais: favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas,
mocambos, palafitas, entre outros assentamentos irregulares. Segundo dados do IBGE4, baseado
no Censo 2010, aproximadamente 68,4% dos seus moradores são negros (pretos e pardos).

Além do quantitativo, as políticas acabam também por não atender qualitativamente a uma
grande parcela que não se encaixa social, econômica e culturalmente no enfoque das
políticas públicas habitacionais.

Pontuando estes aspectos nos processos de produção de cidades no Brasil e


correlacionando as populações negras nestes processos, passemos ao item a seguir, no
qual nos deteremos à problemática levantada e aos objetivos propostos desta tese.
4
Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/00000006960012162011001721999177.pdf>.
Acesso em: 22 fev. 2013
25
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Formulação do Problema e Objetivos da Tese

No Brasil, notamos na história da produção intelectual/acadêmica do urbanismo, do


planejamento e das normas e legislações urbanísticas - as suas teorias, os instrumentos
formulados pelas disciplinas do urbanismo e do planejamento urbano bem como suas
aplicações, através das práticas - uma carência de estudos que abarquem características
culturais diversas da cultura hegemônica.

Talvez esta ‘resistência’ esteja relacionada à própria origem do urbanismo, como ciência e
como parte da própria epistemologia, a serviço de uma elite política/econômica/intelectual
que adota uma cultura hegemônica, tendência desenvolvida em consequência da orientação
teórico-metodológica e de visão etnocêntrica, sobretudo fundada numa cultura eurocêntrica
como visão de mundo, como ponto referencial. É o que talvez tenha pautado Sodré (1988) a
chamar de consciência ocidental, atravessada por um desejo de universalidade em que
todas as forças convergem para a produção, como valor único e universal.

Abrimos um parênteses, em que passaremos a uma relativização do que entendemos por


pensamento ocidental, pautado pela cultura ocidental eurocêntrica cristã, que se pretende
universal, valoriza o pensamento racional centrado no [homem] ser humano, o
individualismo, tendo o capitalismo como sistema econômico. Este pensamento ocidental
não é uniforme; mantem variações ao longo do tempo e graus de influência nos lugares para
onde avança. Relacionamos, ainda, um pensamento ocidental ‘social’ e outro ‘científico’:
distintos entre si, mas que se entrelaçam. O pensamento ocidental ‘social’ torna-se um
pensamento hegemônico, difundido na sociedade, de maneira geral, disseminado por um
amplo e poderoso conjunto das mídias; o pensamento ocidental científico é constituído nas
instituições universitárias, órgãos de pesquisa com desdobramentos nas políticas públicas,
orientando o arcabouço jurídico, normativo, legislativo, entre outras instâncias que regem a
sociedade como um todo5, estando, tão presente, e talvez demasiadamente, na base da
produção do conhecimento acadêmico nas universidades brasileiras.

Como reflexo da crise nos paradigmas do pensamento ocidental, as culturas


particularizadas pela emergência da diversidade, explorada e valorizada pelo
multiculturalismo pós-moderno, demandam estudos que as evidenciem, possibilitando,
inclusive novas formulações de conhecimento à luz destas outras culturas. As produções
dissonantes da cultura hegemônica estão, aos poucos, surgindo através de estudos mais
recentes, evidenciando a diversidade da cidade real, da cidade vivida.

5
O Direito adotado no Brasil parte dos códigos e bases patrimonialistas do Direito Romano, cujo princípio passa
pela propriedade privada, no qual as relações de coletividade ainda são restritas às questões referentes às
propriedades coletivas.
26
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Existe no campo das ciências humanas a ideia dos pluralismos culturais e de interculturalidade
que ainda se mostra incipiente no campo do urbanismo. A ausência destes estudos nos revela
a tendência de perspectivas eurocêntricas como referências norteadoras no processo de
construção do conhecimento, corroborando para uma unicidade dos discursos sociais.

Deste modo, trabalhando no enfoque do pensamento das africanidades no contexto diaspórico,


além de contribuirmos para ampliar as perspectivas de análise da realidade, estamos
construindo mais um discurso. Pretendemos dialogar com questões relativas a esta lacuna,
como resposta à invisibilidade ideologicamente imposta à população negra e sua cultura.

A unicidade do discurso da cultura nacional dada a ausência de diversidade de discursos


sociais é imposta e corroborada pela distribuição espacial, organizando as cidades em áreas
assistidas e em áreas desassistidas pelo Estado.

Segundo Castro (2010), em seu estudo sobre a relação entre geografia e política como meio de
controle do território, as questões e os conflitos de interesses surgem de relações sociais e se
territorializam, materializando-se em disputas entre os grupos para organizar o território, criando
tensões e formas de organização do espaço para melhor atender aos interesses e às formas de
vida de seus componentes, ou daqueles mais influentes, as elites políticas. A delimitação entre a
política, expressão e modo de controle dos conflitos sociais, e o território, base material e
simbólica da sociedade, tem como ponto de partida as questões e os conflitos de interesses na
sociedade, produzindo disputas e tensões que se materializam em arranjos territoriais
adequados aos interesses que conseguem se impor em momentos diferenciados. Diante desta
delimitação territorial dada à correlação de forças, temos a configuração de nossas cidades.

Situando-nos, portanto, no âmbito dos estudos urbanos perante uma análise do histórico da
composição da população brasileira e dos processos de constituição de nossas cidades,
pretendemos nos debruçar sobre grupos sociais específicos em função de seu processo
histórico no Brasil, distinto de outros grupos sociais: populações negras urbanas, enquanto
grupo social com cultura e história particulares, conformando os próprios espaços urbanos
de moradia, na intenção de, assim, obter e contribuir com um maior entendimento da
formação da configuração urbana no Brasil.

Esta pesquisa investiga sobre como determinados grupos sociais negros vivem o espaço
determinado por eles próprios, “não como produção, mas como criação do espaço”
(informação verbal de Angelo Serpa em reunião no Grupo de Estudo Espaço Livre), cujos
processos não têm reconhecimento ou entendimento técnico acadêmico ou
governamental, e expressar que as populações negras urbanas no Brasil possuem uma
forma histórica e cultural específica.

27
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Nosso pressuposto é baseado nas formas de vida, na produção e na apropriação do espaço


urbano, aqui empiricamente registradas, sendo que o estudo considera as culturas negras, os
fatores históricos, sociais e espaciais os que moldaram os ambientes urbanos. Isto é, assim posto,
verificar como a cultura negra se instala no processo de ocupação do lugar, criando o bairro, distinto
de outros bairros em que a cultura negra, ao longo de seu processo histórico, não é determinante.

Deste modo, esta tese de doutoramento toma o bairro negro como tema central de pesquisa,
sendo uma lacuna nos estudos urbanísticos brasileiros, em que a perspectiva do urbano será
analisada com base em uma leitura da configuração urbana a partir deste bairro. Queremos
mostrar a constituição do bairro negro por seus moradores, ideia surgida na pesquisa
desenvolvida por nós (RAMOS, 2007), sendo aqui ampliada, em analogia ao pensamento de
Lefebvre (1999), como um objeto possível do qual queremos mostrar o nascimento e o
desenvolvimento, relacionando-os a um processo e a uma práxis, enquanto uma ação prática.

O questionamento geral da pesquisa partiu de dúvidas de como se construiu a experiência


urbana da população negra. Entendemos que o direito à cidade passa pela compreensão de que
a cidade é produzida por diversas formas. E, segundo Serpa (2007b), ao abrir as possibilidades
de novas interpretações da cidade e do urbano, amplia-se também o direito à cidade.

No entanto, nossa percepção é da existência de referenciais culturais e históricos negros


que não são considerados no âmbito do pensamento urbanístico. Em relação às culturas
afro-brasileiras, não há, de modo geral, o reconhecimento no campo do Urbanismo de que
existe um conhecimento capaz de organizar a vida espacial de grupos sociais negros.

Estas áreas que aqui denominamos de bairros negros, lugares sociais e espaciais, estão na
contramão do que é objetivado pelas teorias urbanísticas ocidentais, de espaços
racionalizados sob um discurso científico. Aqui, nestes lugares, estes bairros negros, os
valores afro-brasileiros são hegemônicos em relação à cultura dominante; por outro lado,
estes bairros negros são também contra-hegemônicos, enquanto suportes espaciais das
resistências na manutenção de seus valores sociais, em correspondência ao que foi
apontado por Serpa (2011) em sua análise sobre a existência da expressão da criatividade e
da inventividade dos moradores de bairros (populares) que se manifestam em um discurso
que se contrapõe às estratégias oficiais dos órgãos públicos de planejamento.

Neste ínterim, justificamos trabalhar com grupos sociais e não com o conceito de classes sociais,
visto que a operacionalização do conceito de classes sociais não permite a inclusão de grupos
sociais negros como sujeitos coletivos históricos (CUNHA JUNIOR, 2008a); ou seja, como
grupos não homogêneos, com grande diversidade espacial, regional, cultural e econômica.

28
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

As classes sociais remetem à posição que um determinado conjunto de indivíduos ocupa no


sistema econômico, na sua relação com os meios de produção, organizando-se de acordo
com interesses e comportamentos semelhantes, operacionalizados/classificados de acordo
com suas faixas de renda, estando muito relacionadas com suas capacidades de consumo.

Já os grupos sociais operam com as suas identidades étnicas e culturais dentro do contexto
histórico-social brasileiro, e não necessariamente estão vinculados à renda, gerando grupos mais
abrangentes, incorporando inclusive sobreposições de distintas identidades e origens sociais.

Sob esta ótica de grupo social, o conflito entre grupos se dá na esfera da cultura, da política,
das relações sociais e econômicas, sendo o conjunto dos grupos sociais eurodescendentes os
que constituem os grupos hegemônicos, orientando as políticas públicas segundo princípios
dos valores civilizatórios ocidentais.

Nesta linha de raciocínio relativa às políticas públicas, temos em Garcia (2005) que as
desigualdades sociais presentes entre os grupos negros e grupos não-negros são
naturalizadas por um racismo brasileiro, sem racistas [declarados], que perpetua as práticas
de desigualdades pelo confinamento de amplos segmentos negros em posições inferiores
da hierarquia social. O racismo se perpetua através do fenômeno da segregação
residencial, mas também pela negligência de acesso às políticas públicas6.

Diante do nosso desconhecimento de formulações teórico-conceituais no âmbito urbanístico que


abarquem populações e culturas negras urbanas no Brasil, identificamos, como parte da
problemática desta pesquisa, as análises urbanas de áreas das cidades ocupadas por
populações majoritariamente negras, historicamente definidas no conjunto da cidade,
distinguindo estes grupos sociais de demais grupos da sociedade brasileira.

6
Quando o Estado impede grupos negros de se expressarem nas suas formas culturais é um tipo de racismo. Quando
o racismo é exercido pelo Estado, é chamado de Racismo Institucional. A partir de Durban, África do Sul, na I
Conferência Mundial contra o Racismo em 2000, houve, com as pressões dos movimentos sociais negros, um
reconhecimento do Estado Brasileiro nas suas omissões relativas aos cuidados e temas de interesse às populações
negras, quando ignora suas necessidades específicas. Num alinhamento internacional apoiado pela ONU, definiu-se
que Racismo Institucional é a incapacidade das instituições e organizações em prestarem serviços adequados e
garantirem o atendimento pleno às pessoas em decorrência da sua origem étnica, cor ou cultura. Essa incapacidade em
servir plenamente manifesta-se através de normas obsoletas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no
cotidiano de trabalho, resultantes da ignorância, da falta de atenção, preconceitos ou estereótipos racistas. Em qualquer
caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de
desvantagem no acesso a benefícios gerados pela ação do Estado, de suas instituições e organizações.
Uma forma de Racismo Institucional de governo é configurada pela intolerância religiosa, como no caso da demolição do
Terreiro Oyá Onipó Neto pela prefeitura municipal em 2008, localizado na Boca do Rio, em Salvador, há 29 anos. Outro
exemplo de Racismo Institucional é o fato da mortalidade infantil entre crianças negras ser maior que a de crianças
brancas, mesmo que elas provenham de famílias com o mesmo padrão de renda; ou ainda a doença falciforme, que é
hereditária e atinge principalmente a população descendentes de africanos, cuja demora do governo em priorizar a
questão nas últimas décadas foi reflexo do ‘racismo institucional’. Diante deste reconhecimento do Estado, o governo
brasileiro institui órgãos governamentais, como a SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da
Presidência da República). Segundo Anhamona Silva de Brito, “o ‘racismo institucional’ é uma das razões que explicam
por que o governo demorou tanto a priorizar, em suas políticas públicas, uma doença que afeta parcela significativa da
população”, afirma representante da SEPPIR, órgão vinculado à Presidência da República. Disponível em:
<http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2011/08/24/pouca-atencao-a-anemia-falciforme-e-reflexo-de-racismo>.
Acesso em: 15 nov. 2012.
29
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

No nosso alinhamento de pensar a produção de cidade a partir das realidades brasileiras, sob a
perspectiva dos que a produzem à margem do poder público, tomamos o processo de instalação dos
terreiros em Salvador: terreiros como produtores de espaço urbano (DIAS, 2003); e terreiros como
nucleadores de bairros: “bairros desta cidade tiveram terreiros de candomblé como núcleo histórico de
sua formação” (OLIVEIRA, 2005, p. 178) ou “nucleações formadas por antigos candomblés estariam
na origem de diversos bairros de Salvador” (GOMES, 1990, p. 09), segundo a análise de Marco
Aurélio Gomes em referência ao trabalho de Nascimento (1989).

Temos, “historicamente, o sagrado está na origem da cidade [...], informando-a em termos


simbólicos e espaciais” (Risério, 2012, p. 16). Vários autores7 desdobram-se nesta questão,
muito pautados pelo sagrado e pela religiosidade compartilhados pelas classes dominantes.

Mas os terreiros, como meio de expressão sagrada do candomblé, ainda são pouco
vislumbrados nesta ótica. Muitos terreiros constituíram a origem de bairros no processo de
povoamento, de agregação, de orientação de formas espaciais, como gênese de bairros.

Um exemplo importante em Salvador é o Ilê Axé Opô Afonjá, localizado em São Gonçalo do
Retiro (SODRÉ, 1988; RIBEIRO, 2010). Nos arredores de Recife, segundo Valéria Costa (2009),
temos o terreiro da Nação Xambá, no bairro da Água Fria, ficando a localidade do Portão do
Gelo conhecida como Xangô de Mãe Biu.

Sobre a inserção de terreiros na cidade de Salvador, são referências o Projeto MAMNBA, da década
de 1980 e Dias (2003). As referências mais recentes são do Mapeamento dos Terreiros de Salvador,
lançado em 2007. A pesquisa do Mapeamento partiu de terreiros registrados junto à FENACAB -
Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro - e indicações de lideranças religiosas, catalogando ao
final 1.139 terreiros, não abrangendo a totalidade de terreiros existentes.

Estes números variam bastante. O Projeto MAMNBA (Mapeamento de Sítios e Monumentos


Religiosos Negros da Bahia) levantou, na década de 1980, cerca de 2000 terreiros
soteropolitanos. Para outros pesquisadores, como Portela (2007), conta-se com mais de três mil
terreiros, isto é, três mil casas e famílias-de-santo em Salvador.

Destacando as informações do Projeto MAMNBA relativas à inserção dos terreiros no espaço


urbano, Serra (2005) sinaliza que:

os terreiros vêm a ser uma forma de assentamento de populações pobres,


negras ou negro-mestiças, tanto em Salvador como em outras urbes
brasileiras: assentamentos com um arranjo específico, com um tipo de
manejo característico de seu espaço, de seu entorno (SERRA, 2005, p. 172).

7
Lewis Mumford (A cidade na história), Nestor Goulart Reis Filho (Evolução urbana no Brasil), Murilo Marx
(Nosso chão: do sagrado ao profano), Zeny Rosendahl (O Sagrado e o urbano: gênese e função das Cidades),
entre outros.
30
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Atualmente, se muitos terreiros têm sua reestruturação espacial e litúrgica imposta pelo
processo de urbanização das cidades, nos primórdios de muitos bairros o sentido ocorreu de
forma inversa, com os terreiros como seus estruturadores espaciais, e também, pela
perspectiva sociocultural, como uma fonte de referências de culturas negras.

Esta forma de ocupação da cidade sinaliza, na literatura, a possibilidade desta abordagem,


sendo uma das grandes referências para tratarmos a problematização da pesquisa: os
terreiros.

Adotamos o termo terreiro de forma a contemplar a diversidade de nomenclaturas, nações, linhas


e vertentes das religiões afro-brasileiras, perpassadas pela cultura de base africana, com
denominações as mais diversas de Roça, Casa ou Terreiro para as práticas do Candomblé, da
Umbanda, da Jurema, da Macumba, do Candomblé de Caboclo, do Tambor de Mina, do Xangô,
do Batuque, do Omolocô, da Pajelança, do Catimbó, da Quimbanda, entre outras. No Engenho
Velho da Federação, notamos a existência da predominância dos terreiros de candomblé, que são
tratados ao longo do texto apenas como terreiros.

Como profissional arquiteta urbanista e pesquisadora das culturas negras, temos na temática
desta pesquisa a continuidade dos estudos e questionamentos desenvolvidos e adquiridos na
dissertação de mestrado (RAMOS, 2007), em que estudamos a Liberdade, um importante
‘bairro negro’ da cidade de Salvador. Ressaltamos também nossas experiências pessoais e
profissionais, com atuação em trabalhos voluntários e de consultoria a órgãos públicos em
assistência técnica em autoconstrução e em bairros autoconstruídos, bem como em projetos
comunitários em comunidades quilombolas.

Nestas experiências, verificamos a ausência dos estudos institucionais referentes à


espacialidade urbana negra sendo, de fato, uma lacuna nos estudos urbanísticos em que os
registros mais significativos se referem aos estudos de comunidades remanescentes
quilombolas e segregação étnico-espacial.

Quando se refere à ocupação por territórios de candomblé, por exemplo, Dias (2003) declara a
dificuldade do processo de investigação dada pelas especificidades do próprio objeto (origens
secretas dos terreiros à época de sua implantação face à perseguição sofrida) e pela ausência
destes estudos, expressando que a omissão do significado deste fato, de reconhecer este
protagonismo dos terreiros, tem geralmente “vieses marcadamente elitistas, economicistas ou
racistas” (DIAS, 2003, p. 67).

Estas ocupações eram ilegais, aumentado a dificuldade da pesquisa dada pelas origens secretas
dos terreiros à época de sua implantação. Na pesquisa sobre a ocupação da cidade por territórios
de candomblé, Dias verifica que se trata de uma história de ocupação específica, cuja
especificidade é que não se trata de uma evolução urbana nos moldes tratados tradicionalmente

31
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

pela história urbana das cidades, a exemplo da ocupação da cidade a partir de engenhos ou bairros
operários, como suporte de indústrias, ou aberturas de grandes vias.

Dias (2003) constata também que há estudos neste sentido, sendo, no entanto, que as
descrições dão relevância ao papel da Igreja Católica, evidenciando os cultos afro-brasileiros
como clandestinos e submetidos à repressão policial, desvalorizados no processo de
estruturação do espaço e na organização da sociedade em Salvador.

No âmbito de nossos interesses e preocupações, objetivamos, portanto, nesta pesquisa, fazer


uma análise de um segmento da sociedade através de sua espacialidade urbana e identificar as
relações desenvolvidas com o ou no espaço. No nosso caso específico, uma abordagem da
população negra, descendente de africanos, localizada em uma porção da cidade de Salvador,
no caso o bairro do Engenho Velho da Federação, buscando apreender sua relação espacial no
contexto urbano e pensar o espaço urbano habitado pelos afrodescendentes, identificando a
produção social e a apropriação do espaço determinadas pelos aspectos culturais e práticas
sociais. Propomos o reconhecimento destas áreas urbanas e a inscrição desta diversidade em
algumas cidades brasileiras, que aqui, nesta tese, se fundamenta em Salvador, Bahia.

A título de orientação geográfica, temos na Figura 1 diferentes escalas globais e regionais a fim
de localizar o bairro do Engenho Velho da Federação, em Salvador, na Bahia, Brasil.

Engenho Velho
da Federação

Figura 1 - Localização do bairro do Engenho Velho da Federação


Fonte: Elaboração da Autora

Nas Figuras 2 e 3 temos ilustrações da área urbana do estudo, o Engenho Velho da Federação,
e sua inserção na paisagem urbana da cidade.
32
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 2 - Panorama do bairro do Engenho Velho da Federação a partir da Av. Cardeal da Silva
Fonte: Foto da Autora

Figura 3 - Vista parcial do bairro do Eng. Velho da Federação a partir da Av. Vasco da Gama
Fonte: Foto da Autora

Estas ilustrações nos auxiliam a contextualizar, no tempo e no espaço, nosso lugar de estudo.
No entanto, as imagens não são suficientes para demonstrar nossa hipótese, que não se vale
apenas da localização espacial do bairro Engenho Velho da Federação, como tampouco das
formas e estruturas aparentes que se acumularam ao longo do tempo.

O fenômeno estudado, como desafio aqui proposto, foi entendermos o bairro do Engenho Velho
da Federação como sendo um bairro negro, produtor de um urbano particular. Este bairro é
resultado de ações de suas populações, constituindo um urbano (objeto virtual ou possível), no
sentido de sociedade urbana, sendo também este bairro produto deste urbano, dado pela
realidade presente da cidade, conforme Lefebvre (1991), uma das hipóteses norteadoras deste
trabalho, conforme segue o diagrama da Figura 4:

urbano cidade

Figura 4 - Diagrama de Construção de Hipótese


Fonte: Elaboração da Autora
33
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Outra hipótese, esta metodológica, é de que este espaço urbano é orientado pelo ordenamento
espacial originado pela implantação de terreiros, que, por sua vez, é determinada pela religião
ancestral nos princípios de interação com o espaço (natural ou não), bem como também por
seus desdobramentos na vida social, como extensão da vida do terreiro.

Conforme o diagrama indicado na Figura 5, nossa proposta é, deste modo, compor alguns
Conceitos Subjetivos, compreendidos a partir de africanidades desenvolvidas por grupos negros
na diáspora africana em contextos brasileiros, constituindo espaços. Tais conceitos imbuídos de
aspectos urbanísticos, a partir de ocupações autoconstruídas, compõem uma Forma Urbana
Negra, constituindo um Bairro Negro, cuja construção conceitual é tomada a partir da pesquisa
empírica realizada, como já salientado, no bairro do Engenho Velho da Federação.

Conceitos Subjetivos Forma Urbana Negra Bairro Negro


Africanidades Brasileiras

Figura 5 - Diagrama de Construção de Conceitos


Fonte: Elaboração da Autora

Nesta hipótese, diante da instalação de terreiros como o Bogum e a Casa Branca, estes não
como únicas referências, mas enquanto terreiros mais antigos existentes (e de nosso
conhecimento) na localidade, se criou uma ambiência favorável, apesar de ser à época uma
região inóspita e rústica, considerando-se o espaço físico-natural, tornando-se mais
adaptada à instalação de novas famílias, além das famílias-de-santo já instaladas ali,
transformando a localidade no bairro do Engenho Velho da Federação.

Os terreiros mais antigos, e que posteriormente foram propiciando a instalação de muitos


outros terreiros, potencializaram a vinculação étnica, ação combinada ao contexto histórico
e político no qual as populações descendentes de africanos, estigmatizadas pelo
escravismo e racismo, estariam destituídas de lugar para moradia. Reafirmamos, assim, que
esta tese não é um trabalho sobre terreiros, mas reflete e evidencia a importância dos
terreiros, através de sua dinâmica cultural, na formação urbana deste bairro.

Esta dinâmica é uma das sistematizações da nossa proposta, na nossa interpretação deste
urbano, partindo destas relações sociais negras, procurando, no âmbito urbanístico,
conceituar uma forma urbana negra. Como parte do objetivo da tese, a pesquisa pretendeu
pensar na forma urbana existente no bairro e que foi constituída compartilhando distintas
referências culturais. Neste ínterim, a pesquisa ressalta e explora aspectos das
africanidades no Brasil e o quanto estes direcionam a constituição dos bairros ocupados
autoconstruídos por grupos sociais negros, por meio de sua forma urbana negra.
34
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Delimitação da Pesquisa e Organização do Texto

Em nossa perspectiva, não é suficiente evidenciar temas pouco abordados na academia,


como os bairros negros, mas buscar uma perspectiva epistemológica na análise dos bairros
negros em consonância coerente com o diferencial que os caracteriza, frente às demais
análises conceituais.

Tratamos de populações negras, cujo recorte perpassa pela história e da cultura destas
populações, tendo como base conceitual a ancestralidade, representada pela energia vital,
para analisar a espacialidade destas populações, evidenciando esta forma de fazer o
urbano, a partir de Lefebvre, como um diferencial.

Para Lefebvre, o urbano se define como objeto através do qual as diferenças são postas à
prova, podendo confirmar-se ou anular-se. No caso do Engenho Velho da Federação, são
os terreiros os irradiadores de valores que confirmam a diferença, como um bairro negro,
distinto de outros bairros, cujas referências culturais não perpassam (ou pouco perpassam)
pelas africanidades.

Ao aprofundar as leituras e analisar criticamente os escritos urbanísticos, verificamos a


carência de estudos sobre a constituição da espacialidade urbana das populações negras,
comumente generalizadas como populações pobres, tanto em meio acadêmico como, de
modo mais geral, em meio institucional, sendo essa mais uma instigação para a investigação.

Tais estudos não devem ser considerados irrelevantes, pois nos referimos a dados históricos
de um contingente populacional (africanos e descendentes) que correspondia a 80% da
população brasileira no período da Proclamação da República, cuja supremacia populacional
permanece nos dias atuais, quando 51% da população se autodeclaram afrodescendentes. A
população por Cor no Brasil é composta por Negros (Pretos e Pardos): 50,7%; Brancos:
47,7%; Amarelos: 1,1% e Indígenas: 0,4%, segundo dados do Censo 2010 (IBGE).

Nas análises dos movimentos sociais negros8, se na autodeclaração as classificações de


cor definidas pelo IBGE entre ‘Parda’ ou ‘Preta’ fossem substituídas por ‘Negra’, o total de
população afrodescendente brasileira aumentaria. Os dados poderiam ser mais expressivos,
pois ainda resiste o imaginário social da ideologia do embranquecimento e do mito da
democracia racial, ainda presentes, na sociedade brasileira:

8
São diversas entidades e ong’s representativas dos movimentos sociais negros, em que destacamos o Ilê Aiyê,
o Movimento Negro Unificado (MNU), o Coletivo de Entidades Negras (CEN), a União dos Negros pela Igualdade
(UNEGRO). Dentre os pesquisadores sobre os movimentos sociais negros destacamos:
FRANCISCO, Dalmir. Negro, afirmação política e hegemonia burguesa no Brasil. Dissertação de Mestrado
em Ciência Política. UFMG: 1992.
PEREIRA, Amauri Mendes. Cultura de Consciência Negra: pensando a construção da Identidade Nacional
e da Democracia no Brasil. Dissertação de Mestrado em Educação. UERJ: 2001.
35
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Entre os beneficiários eventuais desta concepção de cidadania cultural, um


e outro jogador de futebol, um e outro músico ou cantor, uma e outra mulata
ou pai-de-santo; enquanto uma multidão de negros, morenos, escuros e
pardos, ainda que se saindo bem no botequim, no carnaval, no bate-papo,
na torcida, na batucada, no terreiro ou na capoeira, continuam a enfrentar
enormes dificuldades no trabalho e na procura do trabalho, no mercado
matrimonial, na paquera e nos contatos com a polícia (LIRA, 1999, p. 52).

No entanto, não são apenas os números da população negra apresentados nos censos
demográficos do IBGE que nos pautam para este estudo: é o histórico de resistência
política, cultural e de valores civilizatórios destas populações que, mesmo em condições da
subalternidade imposta, sempre atuaram como sujeitos sociais, mostrando-se presentes em
nossas cidades através dos espaços autoconstruídos de moradia, na produção e
apropriação do espaço urbano constituído por estas populações.

As discussões e os discursos a partir do enfoque euro-americano sem a mediação de outras


culturas dados pela ausência de diversidade de discursos sociais, em torno das formações
das cidades brasileiras, alimentados pelo ideal de uma “cultura brasileira”, são embasados
pelo imaginário de uma cultura nacional e pela generalização de abordagem das cidades
dos/para os ricos e das cidades dos/para os pobres.

Sob este enfoque específico, verificamos que a cultura nacional, em seus momentos de
tentativa de homogeneização das ideias sobre cultura, foi naturalizada, ao se negligenciar o
patrimônio cultural africano e seus valores filosóficos e civilizatórios, perdendo-se
entendimentos importantes de como se constitui a cultura brasileira em suas especificidades
e suas decorrências no Brasil.

Carlos Guilherme Mota (1985) nos apresenta a noção de que “a” Cultura Brasileira foi
constituída historicamente no discurso ideológico de segmentos altamente elitizados da
população, de modo a dissolver as contradições reais da sociedade, sobretudo à época do
Estado Novo. O Estado incorporou ideólogos, sobretudo Caio Prado Jr., Gilberto Freyre e
Sérgio Buarque de Holanda, que elaboraram uma noção abrangente e harmoniosa de cultura:
uma noção plástica, ampla, que abarcasse as disparidades sociais, econômicas e étnicas.

A noção de Cultura Brasileira surge como uma fabricação histórica forjada por um conceito-
chave suficientemente sofisticado para denominar o "todo sociocultural" e incluir o Brasil no
concerto da sociedade dos Estados-nação, conferindo-lhe identidade geopolítica (MOTA,
1985). Segundo Castro (2010), a ideia de Estado-nação surge no contexto das potências
europeias do século 19, ao findar o colonialismo, estando relacionado à expansão do
imperialismo, tanto no continente europeu, quanto fora dele. Desta forma, o Brasil estaria
alinhando-se (e submetendo-se), mais uma vez, às influências europeias.
36
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

E também como parte desta unicidade do discurso, Sodré (1982 [1977]) trata a questão da
mídia televisiva. Na sua ótica, não há resposta do público, não há diálogo: há uma
intransitividade da fala, a ideologia televisiva como uma racionalização modernizadora da
anulação da possibilidade de resposta por parte do público.

Consequentemente, sob a mesma tônica ideológica, as especificidades espaciais da cultura


negra e sua influência na formação das cidades brasileiras foram desconsideradas na
grande parte de textos da história urbana brasileira. Como nos fala Rossi (2001), a história
da arquitetura e dos fatos urbanos realizados é sempre a história da arquitetura das classes
dominantes. Assim, é ausente dos currículos dos cursos de Arquitetura e Urbanismo a
história cultural africana, o que evidencia uma deficiência no ensino e na produção de
conhecimento, sobretudo num estado como a Bahia9, com alto índice de população
afrodescendente e com cidades impregnadas pelas dinâmicas culturais negras.

As motivações ideológicas, de europeização do Brasil e a utopia da civilização europeia,


foram mais fortes aqui no Brasil que nos próprios países de origem. A cultura dominante, no
Brasil, procura autodefinir-se a partir dos parâmetros etnocêntricos europeus (SODRÉ, 1988).

O pensar a cidade articulado por distintos campos da ciência promoveu a invisibilidade e o


desaparecimento da população descendente de africanos nas cidades brasileiras, além da
dominação política dos grupos sociais negros, culminando na tentativa de homogeneização
dos espaços urbanos. Deste modo, tomamos como recorte espacial da pesquisa o bairro do
Engenho Velho da Federação, como um bairro negro.

A pesquisa, expressa aqui em forma textual, está organizada em cinco capítulos, além da
Apresentação, da presente Introdução e das Conclusões.

No Capítulo 1, expomos as metodologias e os referenciais teóricos adotados, discorrendo


sobre o estado da arte sobre os temas abordados, como a cidade de Salvador, as culturas
negras no âmbito da cultura brasileira, a relação entre terreiro e cidade e, ainda,
experiências urbanas africanas, finalizado com as fontes documentais que ofereceram
subsídios à pesquisa como um todo.

O Capítulo 2 toma a cidade de Salvador e o Engenho Velho da Federação, sendo este


bairro o lugar de estudo da pesquisa, apreendido como um bairro negro, constituído pelos
estudos e pesquisas referentes ao seu histórico, aos elementos de caracterização do bairro,
o perfil dos moradores expresso em dados estatísticos, apresentando também a
concentração e espacialização dos terreiros de candomblé.

9
Pôr o percentual de população negra da Bahia (Censo 2010).
37
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Tratamos o Capítulo 3 explicitando a possibilidade de pluralidade da produção de


conhecimento, aqui explorada a partir das culturas negras. As culturas negras são
configuradas no âmbito da Diáspora Africana, contextualizando as populações negras no
processo diaspórico africano brasileiro e sua produção de conhecimento, explorando as
africanidades brasileiras, em busca de um fazer científico que reconheça e contemple a
diversidade da população brasileira.

O Capítulo 4 é uma produção conceitual, no qual explicitamos a identificação do bairro negro e


construímos a forma urbana negra como conceito estrutural da pesquisa. Fazemos
articulações entre conceitos mais amplos, entendidos como premissas conceituais, e, partindo
do todo para as partes, seguindo para os conceitos complementares.

No Capítulo 5, tomamos o bairro do Engenho Velho da Federação para a operacionalização


dos conceitos elaborados e articulados ao longo da tese, sobretudo com Capítulo 4,
identificando-o como um bairro negro, como extensão do terreiro.

Em seguida partimos para as Conclusões da pesquisa, frisando a importância do


posicionamento do fazer científico a partir do conhecimento diaspórico africano como
importante para o entendimento “de” Brasil, ao incluir as culturas negras de bairros negros
nas reflexões e estudos do urbanismo (e também na arquitetura), como produção de novos
discursos baseados na diversidade do urbano. E que esta nova possiblidade desencadeie
proposições nos estudos urbanos voltados para a elaboração de políticas públicas.

Por fim, a relação da bibliografia consultada e citada na pesquisa, disposta nas Referências
Bibliográficas.

38
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

CAP. 1 - SUBSÍDIOS CONCEITUAIS E METODOLÓGICOS DA PESQUISA

As cidades são demarcadas por espacialidades enquanto suportes físicos das relações
entre grupos sociais, que são marcados por vínculos identitários desenvolvidos ao longo do
tempo. Temos aqui, em nossa pesquisa, populações negras como grupos sociais
identitários.

Neste subitem vamos apresentar, sob os interesses da nossa proposta, autores utilizados e
adotados para o entendimento da problemática da pesquisa, compondo a história urbana de
Salvador, os contextos das populações negras e os terreiros.

1.1 - Estado da Arte

Esta pesquisa apresenta uma perspectiva interdisciplinar, com a qual buscamos uma
apreensão sistêmica, incorporando conceitos de estudos culturais, sociológicos,
geográficos, entre outros, para uma interpretação urbanística de bairros produzidos por
segmentos populacionais negros, em uma conjunção de grande diversidade de formas de
ocupação urbana nos aspectos sociais, espaciais, culturais e históricos.

Situando nosso estudo em Salvador, faremos uma breve contextualização histórica da


formação da cidade, evidenciando as populações negras neste processo.

Os estudos da história urbana de Salvador passam por produções de distintos autores e


disciplinas, compondo um conjunto de informações sobre o processo histórico da cidade,
tidos como referências clássicas para o entendimento de sua ‘evolução’ urbana. Apontamos
aqui alguns autores que compuseram este acúmulo inicial de estudos, subsidiando
pesquisas posteriores.

O livro Povoamento da cidade de Salvador10, de Thales de Azevedo, publicado em 1949,


com enfoques de antropologia social, oferece subsídios importantes para o entendimento da
formação da cidade, entre os séculos 16 e 19. O livro aborda desde os aspectos
demográficos, passando pela vida cotidiana da sociedade dominante, destacando o
surgimento de grupos emergentes e de atividades mercantis de exportação que dinamizaram
economicamente a cidade de Salvador para além da função político-administrativa que
determinou a sua fundação, bem como a descrição do conjunto arquitetônico da cidade.

10
O livro é parte de uma série de publicações sobre a cidade de Salvador, na ocasião da comemoração do
Quarto Centenário, e denota uma idealização do processo cultural brasileiro, uma vez que o texto é influenciado
pelo mito da democracia racial e exalta a [inexistente] convivência harmoniosa entre negros e brancos.
39
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

O Professor Milton Santos com o livro O Centro da Cidade do Salvador, resultado de sua
tese do e editado em 1959, busca uma interdisciplinaridade entre Geografia Urbana e
História na pesquisa da evolução do fenômeno urbano de Salvador. Milton Santos destaca
as caraterísticas do sítio, o sentido e o ritmo desta evolução da cidade, bem como seu
dinamismo nas suas forças de transformação e de inércia e as funções que a cidade vai
desempenhando ao longo dos séculos.

Katia Mattoso, em seu livro Bahia, século XIX: Uma província no Império, publicação de sua
tese em História defendida em 1986, oferece informações detalhadas do perfil populacional
de negros africanos e descendentes (escravizados, libertos e livres), brancos e indígenas.
Mattoso busca preencher os interstícios da ‘história dos acontecimentos’ pontuais da cidade,
percorrendo temas sobre organização do Estado, economia, família, religião, habitação,
compondo uma historiografia inovadora para os estudos da cidade.

Estes trabalhos, entre outros, ofereceram subsídios para textos mais recentes, também
derivados de teses de doutorado, como o de Ângela Gordilho-Souza, Limites do Habitar,
com 1ª edição em 2000, que propõe um panorama da habitação popular da cidade de
Salvador, em que a autora explora a configuração urbana contemporânea da cidade através
de contornos da segregação e exclusão; e o trabalho de Eloísa Pinheiro, Europa, França e
Bahia, com 1ª publicação em 2002, fazendo uma análise da transferência e da adaptação de
modelos europeus no processo de modernização da cidade de Salvador.

Numa perspectiva de autores que não só reconheçam, mas também registrem o


protagonismo das populações negras, através de suas culturas e engajamento sociopolítico
na participação da formação de cidades, produzindo cidade, priorizamos uma bibliografia
relativa à história urbana que evidencie as populações negras como sujeitos históricos,
como grupos que detêm uma forma própria de pensar o mundo e de atuar sobre ele.

No contexto soteropolitano, foram amplamente utilizadas duas dissertações produzidas na


área da Arquitetura e Urbanismo da UFBA, ambas defendidas em 1989: uma no âmbito do
terreiro e outra na perspectiva das moradias das populações negras escravizadas11.

A pesquisa de Íris Nascimento, cujo trabalho é intitulado O Espaço do Terreiro e o Espaço


da Cidade: cultura negra e estruturação do espaço urbano de Salvador nos séculos XIX e
XX, está no âmbito da espacialidade do terreiro, tido como espaço religioso afro-baiano.
Nascimento busca destacar uma identidade enquanto código arquitetônico a partir do estudo

11
Além dos trabalhos acima citados, são raros os estudos desenvolvidos no PPGAU/UFBA que relacionam
populações negras e espaço urbano, em que citamos a nossa pesquisa (RAMOS, 2007). A temática sobre
urbanismo e o candomblé é abordada na tese de Thais Portela, em 2007, e a arquitetura dos terreiros só
reaparece também em 2007 e 2013, com as pesquisas de mestrado e doutorado de Fábio Velame.
40
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

de quatro terreiros em Salvador, analisando a composição do espaço arquitetônico através


dos espaços natural e construído que se interpenetram e convergem numa integração física
e mítica, conformando a totalização do espaço sagrado. A autora discorre também sobre os
contextos das populações negras e sua inserção urbana em meio à estruturação do espaço
urbano de Salvador nos séculos 19 e 20, analisando os reflexos do crescimento urbano
sobre o espaço do terreiro.

Já o trabalho de Ana de Lourdes Costa, Ekabó! Trabalho escravo - condições de moradia e


reordenamento urbano de Salvador no século XIX, apresenta uma análise das condições de
moradia de escravizados urbanos nas áreas centrais de Salvador. A autora correlaciona a
influência destas populações negras, nas categorias de organização do trabalho da época,
escravizados domésticos, de aluguel ou de ganho e possíveis alternâncias, em meados do
século 19, no ordenamento de espaços na cidade de Salvador. Estas alternâncias refletiam
os períodos de flutuação da economia, quando o escravizador passava para o próprio
escravizado a responsabilidade dos custos de sua manutenção (alimentação e moradia).
Para nossa pesquisa, destacamos a descrição elaborada por Costa (1989) dos percursos
que os trabalhadores escravizados, libertos e livres faziam na cidade, desbravando áreas
não habitadas na cidade de Salvador, configurando-as, conforme sua condição político-
econômica, às suas práticas culturais.

Nas análises territoriais na implantação de terreiros, destacamos Jussara Rego (Dias) em


Territórios do Candomblé, dissertação em Geografia defendida em 2003, que discute a
inserção urbana de terreiros em Salvador, sua distribuição na cidade, seguida de seus
processos de desterritorialização e de reterritorialização na Região Metropolitana de
Salvador (RMS). Na relação entre terreiro e cidade temos, nesta dissertação, uma
perspectiva da evolução da cidade a partir de sua ocupação por territórios de candomblé,
através da formação e da evolução dos terreiros, bem como da dinâmica da configuração de
seus espaços no contexto urbano.

No que tange à dinâmica e organização interna do terreiro, tomamos a dissertação de


mestrado do antropólogo Vivaldo da Costa Lima que elabora um estudo pioneiro sobre a
família-se-santo, cujo parentesco religioso é a base social que anima o terreiro: A família-de-
santo nos candomblés jeje-nagôs da Bahia: um estudo de relações intra-grupais (1977).

Ainda na linha de produção de textos que contextualizam as populações negras nas áreas
urbanas, a arquiteta Raquel Rolnik (1989; 1999) nos oferece, em estudos voltados para São
Paulo e Rio de Janeiro, um panorama bastante elucidativo, no âmbito das territorialidades
negras face à urbanização a partir de meados do século 19.

41
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Temos também o livro recente de Antônio Risério (2012), A Cidade no Brasil, em que o
autor expõe reflexões sobre a complexidade do processo brasileiro na formação urbana,
social e cultural, trazendo também o exame, sob novas luzes, da presença africana.

Epistemologicamente, compõem nosso referencial teórico autores que apresentam e/ou


articulam conceitos e teorias advindos da produção de conhecimento da Diáspora Africana,
tidos aqui por africanidades, numa relativização das culturas africanas e suas reelaborações
e ressignificações no Brasil com demais referências culturais.

Perpassando por estas reflexões, estão as análises das relações étnicas no Brasil,
atravessando as concepções e reprodução do conhecimento. Tal aprofundamento foi, em
parte, também adquirido na disciplina Cultura Brasileira, cursada, no início do curso do
doutorado, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do
Ceará, ministrada por Henrique Cunha Junior, como complementação na formação
interdisciplinar e interinstitucional.

Estas análises das relações étnicas nos ofereceram subsídios para os desdobramentos da
noção de cultura brasileira, cuja referência teórica perpassou por ensaios de Carlos
Guilherme Mota, já abordada anteriormente.

Neste ínterim, vamos combinar nesta tese as premissas conceituais como populações
negras e espacialidades urbanas, culturas negras e africanidades, formas e processos
urbanos, como referências teóricas para o desencadeamento da pesquisa, sendo que tais
conceitos serão sempre articulados a partir de uma perspectiva, segundo Guerreiro Ramos,
‘de dentro’ da cultura de base africana e afrodescendente (RAMOS, 1997 [1964]).

Marco Aurélio Luz, filósofo e professor, explora, com o livro Agadá: dinâmica da civilização
africano-brasileira na sua 1ª edição em 199512, o universo mítico-simbólico das narrativas da
tradição africana, tendo o mito como “principal discurso capaz de transmitir a especificidade
da concepção de mundo constituinte do processo civilizatório negro-africano” (2000, p. 21).

Eduardo David Oliveira, também filósofo e educador, teoriza em Cosmovisão Africana no


Brasil (1ª edição em 2003), a partir da dinâmica civilizatória de três grandes impérios da
África pré-colonial 13, a Cosmovisão Africana como a ótica africana sobre o mundo e suas

12
Originalmente apresentado como Tese de Doutorado em 1988.
13
Diante da imensidão do continente africano e das múltiplas expressões culturais, Oliveira elege os impérios de
Gana (séculos 10 a 12), do Mali (séculos 13 a 14) e de Songai (séculos 14 a 15) nos respectivos períodos de
apogeu. Estes impérios são destacados pelo autor porque constituíram uma continuidade de resistência à
dominação árabe. A Costa Ocidental Africana (Reinos Ashante, Dahomey, Oyó e Benin) e a África Bantu (Reino
do Congo e os Estados de Ovibundo, Ndongo, Kacongo, Luanda e Luba) também constituem elementos
estruturantes das sociedades africanas.

42
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

relações, representando princípios que orientam o viver africano, seu modo de organização
social, seus valores e formas de ver e entender o mundo. O mesmo autor, em A
Ancestralidade na Encruzilhada (2007), elucida a ancestralidade como “o principal
referencial para o negro brasileiro, tanto na vivência profana, quanto na experiência religiosa
[...] é a principal componente da cosmovisão africana” (p. 182).

Henrique Cunha Junior (2001; 2008b) vem acumulando concepções e reelaborações no


âmbito das Africanidades e Afrodescendências nas dinâmicas brasileiras, buscando romper
com as visões eurocêntricas que impedem a percepção de africanos e afrodescendentes
como produtores intelectuais. Para o autor, estes conceitos surgem da necessidade de
compreensão das culturas de base africana e sua reelaboração no contexto brasileiro,
partindo do reconhecimento de outras culturas, em que ‘novas’ culturas são produzidas
nesses diálogos.

O suporte teórico antropológico dos fundamentos sobre a Cultura Tradicional Bantu (1985) é
tomado do missionário católico Padre Raul Altuna, que nos oferece, desde a sua
constituição histórica no continente africano, uma análise crítica das estruturas sociais que
caracterizam os povos Bantu.

Além dos eixos centrais de articulação teórica, outros autores nos deram contribuições
complementares através de análises e/ou descrições de experiências urbanas africanas.

Os arquitetos brasileiros Günter Weimer e Acioly Junior: este descreve processos de


intervenção urbanística na Guiné Bissau e o Prof. Weimer pesquisa as contribuições das
civilizações africanas na arquitetura e no espaço urbano no Brasil.

Tomamos textos do arquiteto e professor Sandro Bruschi sobre cidades antigas africanas,
como também de autores africanos, com suas reflexões sobre as urbanizações recentes em
países do continente africano, como Chukwudum Okolo, Paul Goodwin e Alexandre Baia.

No que tange aos processos propriamente referentes à produção de cidade, nos


apropriamos de autores e de suas reflexões sobre o processo de constituição das formas
urbanas, as apreendendo como formas-conteúdo.

Assim temos, novamente, Milton Santos com os textos Por uma Geografia Nova, Espaço e
Método e A Natureza do Espaço. Estas obras, entre outras do autor, nos oferecem a
construção dos conceitos de espaço e forma-conteúdo, aqui aproveitados para nossas
construções conceituais.

Aldo Rossi, arquiteto italiano, aponta, no livro A arquitetura da Cidade, publicado na versão
original em 1966, a cidade como construção no tempo, da vida da coletividade, estando

43
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

ligada a fatos e a lugares como memória coletiva dos grupos, sendo a cidade o lócus desta
memória: “a cidade é o lócus da memória coletiva” (2001, p. 198). Para Rossi, a cidade
cresce sobre si mesma; a cidade, como obra de arte, é a sede deste patrimônio cultural
dinâmico, registro de diversos tempos históricos e das manifestações da cultura dos diversos
grupos sociais, na qual a memória coletiva se torna a própria transformação do espaço. Este
entendimento do autor, com seus desdobramentos, interessa a nossa pesquisa.

O sociólogo e filósofo Henri Lefebvre nos oferece O Direito à Cidade e A Revolução Urbana,
ambos publicados como reflexões sobre as revoltas de estudantes franceses e os
acontecimentos de 1968. Estes textos que tomamos aqui discutem o urbano, não no sentido
urbanístico imposto pela sociedade industrial - passagens, trocas, consumo, distribuição - mas
na superação desta. Lefebvre segue no sentido da sociedade urbana, no campo do possível,
do devir, como uma revolução urbana.

O arquiteto e professor Antônio Heliodório Sampaio, em Formas Urbanas: cidade-real &


cidade-ideal, livro resultado de sua tese e publicado em 1999, discorre sobre as
transformações das formas urbanas de Salvador, desde a fundação da cidade, perpassando
pelo descompasso, ou mesmo descompromisso, entre intensões dos planejamentos
urbanos e intervenções urbanísticas, entre o discurso competente e as práticas.

De Angelo Serpa, entre os vários textos adotados, destacamos o Cidade Popular: trama de
relações sócio-espaciais, publicado em 2007, no qual o autor trabalha no aprofundamento
teórico-conceitual da noção de bairro, sendo este, em parte, compartilhado por nós.

Em relação à forma urbana, adotamos José Lamas, sendo uma das referências na área da
Arquitetura e Urbanismo. Optando pela análise da dimensão física e morfológica da cidade
como entendimento cultural da cidade, o autor contribui para nossa pesquisa no que se
refere a definições conceituais da forma urbana.

Assim, estes autores e textos, entre outros, nos apoiaram na contextualização cultural, histórica,
política e econômica do surgimento do bairro em estudo, o Engenho Velho da Federação, na
cidade de Salvador, bem como na análise dos elementos que constituem sua forma urbana.

Na construção do conceito da forma urbana negra, como formação espacial que os negros
criaram, em correspondência à forma social negro-brasileira de ser e estar no mundo,
segundo Sodré (1988), expomos os referenciais de partida para seu entendimento e
formulação de nossos próprios conceitos.

Deste modo, produzimos na pesquisa conceitos para explicar a nossa reflexão sobre a
forma urbana negra. Formulamos conceitos complementares mais simples que evoluem em
formulações paulatinas (amadurecimento do conceito face ao amadurecimento da
44
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

pesquisa), na medida das necessidades estimuladas pelo trabalho empírico, nos


direcionando a ideias mais densas e precisas para o que consideramos importante para a
compreensão do bairro negro. Como afirma Lencioni (2008), o conceito é sempre uma
simplificação do real e ao mesmo tempo uma generalização deste, e com o qual não
conseguiremos alcançar sua plenitude.

Os conceitos, embora destacados e nomeados, não são desvinculados entre si: fazem parte
de um mesmo relacionamento com o real. (Re)combinando estes conceitos subjetivos e
orientadores, teremos o arcabouço do conceito estrutural, a forma urbana negra.

Com estes conceitos, que chamamos de Conceitos Complementares, pretendemos


interpretar o Bairro Negro, atribuindo valores a partir do meu modelo de entendimento de
Bairro, como intérprete-observadora, e fazer o rebatimento com o bairro negro real, o
Engenho Velho da Federação.

Assim, vamos encadear os conceitos complementares como a Convivibilidade, a Afro-


consciência Espacial, os Assentamentos Familiares, a Caminhalidade e a Multifuncionalidade
como conceitos para compor a forma urbana negra.

Como já salientado, tomamos Muniz Sodré e nos baseamos em sua proposta de pensar uma
forma social negro-brasileira como modo de organização social de populações negras a partir
das comunidades litúrgicas de terreiro. Os terreiros são, assim, o meio pelo qual
empreendemos fazer uma leitura do Engenho Velho da Federação. Assim, apontaremos o
referencial metodológico adotado, no subitem a seguir.

1.2 - Os Terreiros de Candomblé como Processo Metodológico

Pautamos anteriormente que tomamos os terreiros como o meio pelo qual iremos fazer uma
leitura do bairro do Engenho Velho da Federação. Nossa compreensão é a de que os
terreiros se constituem como formas-conteúdo e que, através dos seus conteúdos, sua
forma se expandiu no bairro. Seus conteúdos constituem uma cultura de terreiro, uma
cultura negra específica, ainda que submetida às variações próprias da dinâmica cultural.

Estabelecendo nosso entendimento de culturas negras, ressaltamos a definição de cultura


como forma de “relacionamento com o real”, conforme Sodré (1988, p. 10), como estes
grupos desenvolvem “seus modos de apropriar-se da vida”:

[...] “cultura” como o modo pelo qual um agrupamento humano se relaciona


com o seu real (isto é, na sua singularidade ou aquilo que possibilita não se
comparar a nenhum outro e, portanto, lhe outorga identidade) e não como
um botim de significações universais (SODRÉ, 1988, p. 156).

45
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Neste relacionamento com o real, estamos em um campo específico de populações negras,


nas condições históricas brasileiras, com suas formas de vida, suas (con)vivências e
sobrevivências. Assim, tudo é integrante e integrado na(s) cultura(s) negra(s), criando seus
conhecimentos particulares por grupos específicos: religiosidades e seus desdobramentos
na comunidade através de seus territórios e integração simbiótica com a natureza, relações
sociais, as práticas alimentares e a culinária14, as medicinas e farmacologias, os vestuários,
o corpo, o trabalho e as artes como modo e meio de vida para os artistas locais, como
sambadeiras(os), capoeiristas, etc.

Este legado político-cultural negro foi árdua, mas exitosamente construído, conquistado,
reelaborado, negociado, através do jogo negro, que combinou “as ideias de limite, de
liberdade e de invenção” (SODRÉ, 1988, p. 23).

O terreiro, através do candomblé, é parte fundante deste jogo negro, representando um centro de
resistência política e cultural, em sua defesa, manutenção, incluindo as negociações próprias da
dinâmica da cultura, e sua difusão. Para além da responsabilidade religiosa e cultural, atuam como
sedes de construção social de conhecimentos, sendo ambientes da vida comunitária que
desempenham ações no âmbito socioeconômico e de relevante importância nas comunidades
onde estão inseridos, consistindo em referências locais como prestadores de serviços à vizinhança.

Aqui evidenciamos algumas considerações relativas aos terreiros que consideramos


pertinentes para o avanço da nossa pesquisa.

Embora os terreiros estejam relacionados com outros terreiros, como mostra o estudo de
Rafael Oliveira (2005), que evidencia a rede de relações do Terreiro da Casa Branca15, cada
terreiro possui autonomia própria. Os terreiros apresentam particularidades, pois cada casa
possui sua peculiaridade no âmbito social, cultural e religioso, como característica da
religião, uma vez que o candomblé não é constituído por um poder religioso centralizado
sobre os terreiros.

14
Um aspecto pouco levantado sobre derivações da culinária africana que é chamada no Brasil de ‘comida
baiana’ é que, para o preparo dos pratos culinários, vários produtos agrícolas foram trazidos da África: o dendê
em que permanece a produção artesanal do óleo (alimentação), sendo que boa parte dos produtos derivados do
dendê é resultado da produção industrial sob a forma de cosméticos e combustíveis. Não originário do continente
africano, mas amplamente cultivado, temos também o coco, com inúmeros derivados (sabão, óleo, leite,
cosméticos, resinas, etc.), que culturalmente é amplamente explorado pelos africanos e pelos afrodescendentes,
como é o caso do Brasil. Utilizando o título do livro de Manoel Querino, o africano foi “O colono preto como fator
de colonização brasileira”, tomando, por exemplo, mesmo que introduzidos no Brasil por portugueses, os vastos
coqueirais que são plantios que africanos e seus descendentes o fizeram para, então, produzir o sabão de coco.
15
Oliveira (2005) identifica várias redes de terreiros a partir da Casa Branca, a partir do qual o autor denomina de
‘redes de parentesco’ ou de ‘relações de parentesco’: terreiros irmãos (casas que têm o mesmo axé do Terreiro
da Casa Branca); terreiros irmãos históricos, irmãos recentes, sobrinhos, terreiros filhos, terreiros netos,
bisnetos, de compadrio (mães e pais-pequenos); rede de relações de identidade ou diplomáticas; “parentes” e
vizinhos; amigos; entre outros.
46
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Como está expresso no Mapeamento (2008), “alguns terreiros se constituem em um misto


de celebração de cultos, moradia e espaço socioeducativo nos quais são desenvolvidas
atividades em benefício das populações que vivem em seu entorno” (p. 09).

Soares (2012) destaca Ruth Landes (1967) quanto ao registro desta autora, já em 1940, em
relação aos templos e suas finalidades rituais e que também existiam como centros sociais
e moradias dos devotos.

Temos assim que o terreiro engendra uma rede geradora de integração social, no qual
muitos deles exercem papel de apoio social que se dava, e se dá, em todas as
intermediações das necessidades humanas, desenvolvendo estratégias coletivas para
superação ou minimização das dificuldades que caracterizam as precariedades locais:
espiritual, alimentação, cuidados com a saúde, moradia, refúgio, etc. Era e é um trabalho
social sem ser instituído como tal.

Hoje os desdobramentos dos terreiros se somam a outros, por meio de doação de alimentos
com distribuição de cestas básicas, promoção de cursos profissionalizantes como oficinas
de corte e costura, bordados, artesanatos, cursos de informática, culinária baiana, etc.
possibilitados com a realização de convênios com ong’s, órgãos públicos, e demais
entidades de associação civil, além de contatos e informações relativos ao acesso ao
mercado de trabalho, formando redes de solidariedade e reciprocidade. Muitos terreiros,
enquanto comunidades religiosas, são registrados como sociedade civil na condição de
prestadores de utilidade pública.

Deste modo, todas estas articulações iniciadas no terreiro em meio ao contexto comunitário,
no sentido da comunalidade, desencadeiam uma produção de conhecimento a partir da
realidade das pessoas.

Os terreiros vão surgindo pela expansão da família-de-santo, em que um filho ou filha-de-


santo do terreiro funda uma nova casa, sendo este novo terreiro administrado sob a
autoridade deste novo pai ou mãe-de-santo, compartilhando crenças e preceitos de acordo
com a nação do terreiro.

Através da família-de-santo, o terreiro atua como cuidador das aflições físicas e espirituais dos
adeptos e frequentadores dos terreiros, bem como é mantenedor da cultura afro-brasileira.

Tomaremos aqui esclarecimentos de Vivaldo da Costa Lima no seu estudo sobre família-de-
santo, em que buscamos aqui relações semelhantes adotadas em diversos tipos de nação de
candomblé.

47
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

A família-de-santo, segundo Costa Lima (1977), é um grupo religioso do candomblé que atua
como força efetiva de socialização cujas relações são reguladas pela autoridade e disciplina
exercidas entre pais e mães-de santo sobre filhos e filhas-de-santo: grupos baseados na livre
associação na religião do candomblé e sob influência destas ‘relações de parentesco’. O
desdobramento destas relações possibilita prestígio e mobilidade dentro de um grupo social,
sendo muitas vezes o referencial social mais importante para os adeptos do candomblé.

A mãe-de-santo16, ou o pai-de-santo, detém a autoridade máxima do terreiro: tanto no sentido


simbólico, ao iniciar adeptos, adotando-os como filhos espirituais com o poder de ser “a
intermediária da força mística dos orixás com o corpo dos seus filhos” (COSTA LIMA, 1977, p.
119), quanto no sentido funcional, em que estas lideranças religiosas, mães ou pais-de-santo,
dirigem efetivamente toda a direção do terreiro, desde as festas públicas, os ritos privados,

[...] a disciplina dos filhos e a economia do terreiro; os mecanismos de


promoção e de mobilidade intra-grupal e assistência espiritual e matéria à
imensa variedade de situações de crise e de necessidades de todos os seus
filhos e suas famílias (COSTA LIMA, 1977, p. 119).

A autoridade das lideranças religiosas perpassa por administrar as dificuldades, pois, como
infere Costa Lima, os candomblés, como qualquer outro grupo organizado, são centros de
atritos e soluções, de crises e de equilíbrio.

É grande a complexidade da família-de-santo: quando a mãe-de-santo inicia os adeptos, estes


se tornam filhos e filhas-de-santo, que são entre si irmãos-de-santo; filhos da mesma casa
iniciados por mães-de-santo diferentes se tornam irmãos-de-axé, pois são do mesmo axé. E
ainda existem outras denominações a depender das circunstâncias da iniciação, como irmãos-
de-barco, irmãos-de-esteira, entre outras.

E concomitante, ou não, às relações da família-de-santo do terreiro, existem os inúmeros


cargos religiosos, organizados por gênero, que emanam hierarquia e autoridade tanto “no
campo espiritual e litúrgico, como na organização da sociedade civil que trata dos assuntos
mais seculares do grupo e seu relacionamento” (COSTA LIMA, 1977, p. 56) com a sociedade
global. Além das pessoas vinculadas ao terreiro, existem também os ‘amigos da casa’...

O princípio de senioridade, ou senhoridade, relativo ao tempo de iniciação (quanto mais antigo


na iniciação, maior importância na estratificação do grupo), é determinante na organização do
candomblé. Nota-se ainda que a posição que o adepto ocupa na estratificação do grupo é, na

16
Segundo a Makota Valdina Pinto, ser chamada de sacerdotisa é ser caracterizada por outras religiões e
enfatiza que acha certo mesmo é ser mãe-de-santo, “que cuida do santo, dá comida p’ro santo”. Costa Lima
(1977) apresenta a origem da palavra ialorixá, em iorubá [nações keto-nagô]: Iya - mãe; orixá - santo → mãe-em-
santidade. E Castro (2001) identifica o cargo de autoridade suprema do terreiro para as demais nações:
rumbondo ou rumbono (étimo fon) entre as nações jêje-mina; nêngua ou tata (étimo banto) entre as nações
congo-angola.
48
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

maior parte das vezes, indiferente à posição que este representa na sociedade global, a
exemplo do nível de instrução, origem social ou de renda, o que para nós caracteriza esta
organização como grupo social. A família-de-santo é, portanto, uma comunidade religiosa com
posições de hierarquias bem definidas e meticulosamente resguardadas para cada um de
seus membros, em que são consideradas também as condições de gênero.

Além dos ensinamentos morais do candomblé, estes valores da organização tão bem
demarcados no terreiro se irradiam no entorno dele. Além da irradiação destes valores pelo
terreiro em si, como uma instituição bem definida, há também os desdobramentos através de
casas-de-santo, que não possuem a estrutura de um terreiro. E ainda pelas inúmeras
rezadeiras/benzedeiras existentes e, mais marcante na figura masculina, os raizeiros.

O termo candomblé é, na sua etimologia de origem quimbundo (Bantu) e, segundo Castro


(2001), kandómbilé ou kandómbelé significa ‘ação de rezar’, identifica uma modalidade de
culto afro-brasileiro.

O candomblé é uma invenção brasileira, uma produção da diáspora africana no Brasil cuja
matrizes religiosas são africanas. Costa (1989) nos informa que “o primeiro registro baiano
da palavra candomblé designando um local de culto africano apareceu em um documento
17
policial se referindo a um terreiro no Cabula, em 1826” (COSTA, 1989, p. 126).
Anteriormente, os cultos eram chamados de batuques.

Segundo Costa Lima (1977), o candomblé envolve mitos, cosmogonias, rituais e éticas que
compõem o corpo ideológico de um grupo religioso [nação de candomblé]. Como corpo
social, o candomblé é submetido, como qualquer outra instituição social, às dinâmicas
socioculturais, como realidade social atuante, viva.

O sentido de nação no candomblé perpassa pela constituição de grupos culturais com


tradições próprias e inerentes ao culto religioso, identificando a origem da tradição do culto.
Segundo Costa Lima (1977), a acepção de nação saiu do âmbito político dos impérios e
reinos do continente africano para o âmbito religioso; a nação dos antigos africanos da
Bahia foi se transformando da conotação política num conceito quase que exclusivamente
teológico, em que nação passou a ser o padrão ideológico e ritual dos terreiros de
candomblé na Bahia:

[...] estes sim [terreiros de candomblé], fundados por africanos, angolas,


congos, jêjes, nagôs - sacerdotes e iniciados de seus antigos cultos, que
souberam dar aos grupos que formaram a norma dos ritos e corpo
doutrinário que vêm se transmitindo através dos tempos e na mudança dos
tempos (COSTA LIMA, 1977, p. 21).

17
Candomblé situado na freguesia de Santo Antônio, cujo 2º distrito apresentava caráter semi-rural.

49
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Costa Lima também esclarece que este processo, no entanto, não eliminou, de todo, a
consciência histórica de muitos descendentes de africanos em relação às nações políticas
africanas.

Em Salvador, podemos dizer, de forma generalizada, que as nações mais conhecidas são a
angola, jêje e keto18. A nação angola é herdada dos povos da área correspondente à região
africana que engloba o Congo e Angola, agrupando as etnias que utilizam como idioma a
família linguística Bantu; a nação jêje é proveniente do antigo Reino do Daomé, onde hoje é
o Benim e tem como idioma o fon ou ewé; a nação keto é a herança da área que
corresponde hoje à Nigéria e que tem como língua o iorubá.

As nações criaram repertórios próprios na forma de saudar suas divindades - orixás (nação
keto), inquices (nação angola), voduns (nação jêje) - através de específicos rituais e objetos,
toques, línguas, cânticos, danças, comidas, vestimentas, despachos, além da etnobotânica.

Na ética do candomblé, seja qual for o corpo ideológico, a nação, o sagrado é permeado
pela relação com a natureza, sendo esta divina e ativa, meio de troca de energia vital. As
plantas são parte desta natureza, como são também pedras, animais, águas - fontes, rios,
cachoeiras, mares - e são incorporados aos ritos como meio de assentamento, renovação e
aumento da energia vital.

No âmbito de organização espacial do terreiro, salientamos aqui uma disposição descritiva


dos elementos edificados no conjunto das áreas abertas e/ou livres, espaços natural e
construído, constituindo o espaço sagrado.

Nas condições favoráveis de implantação, os terreiros são organizados por espaços


diferenciados (RAMOS, 2010)19:

áreas de mata - áreas onde se encontram árvores, plantas e corpos d’água (fontes, rios e
riachos, espelhos d’água, cachoeiras) que simbolizam, materializam ou possuem atributos
vinculados às próprias divindades cultuadas, profundamente identificadas com os
elementos naturais;

edificações sagradas: espaços edificados sagrados, chamados casas de santo ou quartos


de santo, que abrigam altares e outros elementos materiais consagrados que representam
e, ao mesmo tempo, constituem os ‘fundamentos’ das divindades, nos quais, geralmente, a

18
Entre os angolas, por exemplo, há subdivisões como congo e congo-angola; no jêje existe jêje-mahi e jêje-
savalu. E ainda existem outras ramificações como ijexá, caboclo, alaketo, amburaxó, cultos aos eguns, entre outros.
19
Anexo I da Nota Técnica Nº 02/2010 SEDUR, de nossa autoria na ocasião de prestação de consultoria na
Diretoria de Programas e Projetos Habitacionais (DPPH), referente ao processo de relocação do Terreiro Unzó
Gunzelê Kuna Zambí, localizado em Águas Claras, Salvador.
50
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

circulação é restrita aos membros iniciados do grupo religioso e onde se realizam as


cerimônias e rituais mais importantes;

espaços edificados públicos e/ou semi-públicos: são espaços sagrados como o barracão de
festas, a cozinha, salas de recepção, salas de consulta e, em alguns casos, também
equipamentos culturais e educacionais onde se desenvolvem atividades de cunho
sociocultural em benefício da população que vive no entorno do terreiro e;

unidades residenciais - pequenas unidades utilizadas como habitação para os membros em


processo de iniciação e/ou preceito e unidades habitacionais autônomas, geralmente de
propriedade ou usufruto de membros que ocupam postos na hierarquia da casa, inclusive do
próprio sacerdote ou sacerdotisa responsável e membros mais antigos do terreiro. Estas
casas para moradia são fundamentais para a própria existência do terreiro, devido às
exigências inerentes ao cumprimento dos rituais, que muitas vezes demandam a presença
em tempo integral dos sacerdotes e de outros integrantes da hierarquia do culto. Esta é uma
das características da religião, constituindo a dinâmica da família-de-santo.

Esta organização espacial está submetida a códigos míticos e simbólicos, como se dá no


exemplo da árvore sagrada. Como explica Nascimento (1989):

ressalta-se o aspecto simbólico deste elemento, assumindo, algumas vezes


como signo a condição de doublé do seu significante, [...] muitas vezes se
constitui no próprio orixá, ou outras vezes, no seu assentamento, isto é, o
altar do santo (p. 102).

Entendemos este sistema complexo de formas que retroalimenta os patrimônios culturais


dinâmicos, no tempo e no espaço, como meio operacional de relacionar-se com o real, com
a existência, com o mundo real - o real visível e o real invisível. Um corpo coletivo que
anseia por ideais semelhantes, com metas e objetivos comuns, influenciando as relações
entre o indivíduo e o coletivo, as relações com o espaço, as relações com o corpo e as
relações entre as pessoas e os objetos, os lugares e a natureza, sendo, portanto, fontes de
percepções, de dimensões sensoriais.

Para Sodré, a influência do terreiro não é apenas religiosa, mas também ‘cultural’, pois não se
trata apenas de uma comunidade litúrgica, mas também de um lugar de difusão cultural,
ultrapassando as fronteiras físicas do terreiro, projetando-se no pensamento e práticas da
sociedade global (SODRÉ, 1988). Neste autor, temos a relação do terreiro com a cidade no
sentido da profusão do pensamento negro africano, considerando o terreiro como associação
litúrgica organizada - transferiu-se para o Brasil grande parte do patrimônio cultural negro-
africano. A poderosa condensação espaço-cultural de uma reterritorialização operada pelo
terreiro através do sagrado, diferente de um espaço geométrico, abstratamente homogêneo e
51
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

mensurável, instaura um lugar sagrado, com determinações puramente qualitativas: uma


geografia sagrada e não um projeto teórico de um espaço. Sodré se referencia em Eliade (1952),
que afirma que, na geografia mítica, o espaço sagrado representa o espaço real por excelência,
pois o mito é real para o mundo arcaico, sendo a revelação da autêntica realidade: do sagrado.

Para Sodré (1988), os terreiros são como um continuum africano, como estratégia de
sobrevivência dos negros africanos, transformam os modos de ocupação e de construção
do espaço urbano, prática realizada socialmente, na condição específica da forma social
negro-brasileira, acumulando histórias, vivências e experiências cotidianas (terreiros como
produtores do espaço).

Esta tônica se expande para o espaço urbano adjacente sob a forma de bairros negros
autoconstruídos, cujo processo de ocupação e de construção não é individual: é uma ação coletiva.

Para Sodré, o patrimônio simbólico negro brasileiro afirmou-se aqui como território mítico-
religioso, para sua transmissão e preservação. Para os membros desprovidos de uma
civilização e de um território físico ficou a possibilidade de se “reterritorializar” na diáspora
através de um patrimônio simbólico consubstanciado no saber vinculado ao culto de muitos
deuses, à institucionalização das festas, das dramatizações dançadas e das formas musicais.

O terreiro é tido aqui como um importante lugar da memória coletiva e de irradiação,


permeado de acordos que neutralizam conflitos internos e externos, compondo relações
simbólicas, formais e funcionais nos sentidos ecológico, familiar e comunitário do seu
entorno, que estendemos aqui para os bairros negros.

Os terreiros são lugar de culto às divindades africanas, inquices, orixás e voduns, e também
aos encantados20. Além de lugar de “morada” para estas entidades, através de seus
assentamentos, os terreiros também sediaram moradas para as famílias-de-santo, bem
como para famílias não diretamente ligadas à religião.

Segundo Antônio, mais conhecido por Tonho, filho-de-santo do Terreiro da Casa Branca e
sendo um dos nossos entrevistados, essa sempre foi a lógica dos sacerdotes dos terreiros,
a de que o terreiro povoaria o entorno a partir dele, até como estratégia de consolidação e
permanência. A ocupação pelos terreiros se deu da seguinte maneira:

Vem um candomblé com um, dois, três pais-de-santo, umas galinhas, um


bode... Surge uma quitanda e aí começa a povoar. E aí vinham os filhos-de-
santo... Você vai fazendo umas casinhas para os filhos. Candomblé povoa [...]
Candomblé é uma grande família: vai chegando, vai ficando...

20
Segundo o imaginário social, os encantados são entidades que passaram para o plano espiritual por meio de
algum encantamento, sendo cultuados, sobretudo, nos terreiros de umbanda. Assim temos o Caboclo, o Preto
Velho, a Pomba-gira, entre outros.
52
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Nos primórdios, segundo Costa Lima (1977), os filhos e filhas-de-santo passavam todo o
período de festas nos terreiros, mas com a necessidade de trabalhar e cuidar dos filhos,
sobretudo as filhas-de-santo, as moradias próximas ao terreiro facilitavam a participação nos
trabalhos nos terreiros nos dias próximos às obrigações e às festividades.

Assim, a ocupação residencial nas franjas e no entorno dos terreiros se iniciou pela
manutenção da ancestralidade, alimentadas pela convivibilidade. As famílias-de-santo vão
atraindo outros moradores, não necessariamente vinculados aos terreiros, mas que, pelas
relações de amizade e afinidade, ou até em casos de necessidade financeira, se integraram
às áreas e aos princípios do terreiro: o terreiro povoa!

Para nós, esta aglutinação é particular, oferecendo especificidade ao bairro negro, originado
pelo terreiro. Baseamo-nos em Sodré:

O terreiro, enquanto guardião do axé, revela-se como uma contrapartida à


hegemonia do processo simbólico universalista, exibindo um segredo - o de
deter forças de aglutinação e solidariedade grupal. É uma solidariedade
para além do individualismo burguês, com raízes na divindade (princípios
cósmicos) e na ancestralidade (princípios éticos). Por meio da aglutinação
grupal, acumulando-se de preferência homens, seres-forças, ao invés de
bens regulados pelo valor de troca (SODRÉ, 1988, p. 108).

Os terreiros do Engenho Velho da Federação, como os de outros bairros, atraía, portanto,


pessoas ligadas, direta ou indiretamente, à comunidade religiosa e, ainda, aquelas pessoas
não ligadas ao terreiro de candomblé... E esta é uma especificidade de povoamento, a partir
da cessão de pedaços de terras para moradores.

Parés (2006) discorre sobre a condescendência da mãe-de-santo do terreiro do Bogum, Mãe


Runhó, que fazia concessões de pedaços de terra a quem vinha lhe pedir ajuda para a
construção de moradias, prática que ocorria em muitos outros terreiros.

É deste modo que a convivência ‘civil’ das famílias-de-santo, em diálogo com a vida religiosa,
expande-se para fora dos terreiros, através de uma educação doméstica, familiar e comunitária.
A instalação dos terreiros, formando comunidades de terreiro, facilitava e minimizava as
dificuldades, de certa forma, à chegada de famílias no bairro, ligadas aos terreiros ou não,
sendo que esta conduta dos terreiros segue uma coerência cultural afro-brasileira.

Deste modo, o terreiro é um lócus.

Tomando o raciocínio de Rossi, temos que a cidade, como obra de arte, é a sede deste
patrimônio cultural dinâmico, cuja memória coletiva se torna a própria transformação do
espaço. Outra reflexão de Rossi, é que os elementos primários, núcleos de agregação, são
aqueles elementos capazes de acelerar o processo de urbanização; atuam como
53
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

catalisadores da dinâmica da cidade, podendo ser um elemento ‘construído’ ou não; pode


ser um lugar ‘político’, um lócus. Os elementos primários possuem uma qualidade específica
por sua insistência num lugar, por sua individualidade, em que a arquitetura é o momento
último, o componente detectável, concretizada na intencionalidade estética.

Deste modo, articulando com Rossi, em relação a nossa escala de bairro, temos nos terreiros
os elementos primários que atuaram na dinâmica do bairro do Engenho Velho da Federação,
sendo simultaneamente uma edificação e um lócus, tal qual a proposta de Rossi.

Assim, temos o terreiro como um fato urbano, nos termos de Rossi, caracterizado por uma
arquitetura própria, por uma forma própria, singular, dado os valores espirituais da memória,
do produto da coletividade e da relação da coletividade através de cada fato urbano.

De fato, os terreiros nas suas grandes proporções com a implantação nos terrenos com as
casas de santo, seu entorno paisagístico com vegetações de médio e grande porte e demais
elementos sagrados geraram um diferencial espacial, um fato urbano, distintos da
implantação das casas de moradia de pequeno e médio porte do entorno. Não só as
dimensões, mas outras diferenciações como a relação entre cheios e vazios providos pelas
áreas não edificadas em torno do conjunto edificado. E ainda, como já articulados por Dias
(2003), existem os ‘simbolismos territoriais’ que são elementos exclusivos dos terreiros,
representativos das entidades ou dos rituais. Dias aponta a bandeira branca, as quartinhas,
o ojá e os mariôs.

Para Rossi, o fato urbano envolve o entendimento de como os homens se orientam na


cidade, a evolução e a formação de seu sentido de espaço, o que caracteriza sua unicidade,
seu unicum, o caráter ‘artístico’ que é dado aos fatos urbanos, em que o artístico, no sentido
de Rossi, se refere à obra de arte como patrimônio cultural dinâmico.

E assim lamentamos o caráter artístico, unicum, do que poderia ter os terreiros, muito mais
do que apresentam atualmente, nas referências estéticas africanas ou afro-brasileiras. Em
relação aos próprios templos, Risério ressalta que até mesmo os terreiros foram proibidos de
qualquer expressão arquitetônica africana. O autor nos apresenta, no contexto do processo
de independência, o artigo quinto da Constituição Política do Império no Brasil (2012, p. 160):

A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império.


Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular,
em casas para isso determinadas, sem forma alguma exterior de Templo.

Ou seja, os terreiros não poderiam assumir a forma exterior de templo. Assim, lamenta:

Com isso, podemos ter perdido muito, em matéria de sensibilidade técnica e


competência estética (RISÉRIO, 2012, p. 161).

54
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Com poucos subsídios sobre as manifestações mais autônomas e eloquentes de uma


expressão arquitetônica e/ou urbana africanas no Brasil, na sua materialidade, nosso
enfoque foi demonstrar, no âmbito do conceito forma-conteúdo, uma forma urbana negra,
como um conhecimento produzido coletivamente a partir das culturas negras, marcadas por
africanidades brasileiras.

Os terreiros do Engenho Velho da Federação são uma centralidade, uma vez que, a partir
da instalação de terreiros como nucleadores urbanos, dão surgimento ao bairro. Podemos
também dizer que os terreiros são uma ‘centralidade lúdica’, tema que Serpa (2008)
desenvolve a partir de Lefebvre no contexto da cidade contemporânea, sendo baseada nas
formas de reprodução da vida urbana, no valor de uso e na apropriação, mas também como
produção do espaço. O terreiro influencia a espacialidade ao seu redor.

Para compreender como se configuram este bairro negro, tomamos, portanto, a inserção de
terreiros de religiosidade de matriz africana e sua influência na consolidação de espaços
urbanos ao seu redor, verificando sua interferência na estruturação do bairro, como uma das
resistências promovidas por populações negras.

1.3 - Forma Espacial, Cultura e Ideologia

Para Lefebvre (1991), surpreende-se a forma em sua relação com o “real” e, para
apreendê-la, é preciso uma “cultura”. Nestas acepções ressaltamos que temos diferentes
produções de forma espacial, desde aquela gerada pela cultura àquela pautada pela
ideologia do progresso, do desenvolvimento econômico. Sodré (1983), assim, aponta a
cultura “como um modo de relacionamento com o sentido não inteiramente recoberto pelo
campo das relações de poder” (p. 10).

Correlacionando a experiência urbana de populações negras com suas culturas,


elaboradas a partir de suas visões de mundo, de suas realidades concretas, conformando
este relacionamento com o real, entendemos que podemos surpreender uma forma que é
urbana e é gerada pela cultura negra. Esta cultura negra é, aqui, geradora de uma forma
espacial urbana negra, conforme nos mostra o diagrama da Figura 6, numa relação entre
conteúdo e forma:

cultura urbana negra forma urbana negra

Figura 6 - Diagrama da forma-conteúdo


Fonte: Elaboração da Autora

55
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Para Sodré (1988, p. 10), ideologia é “lógica de objetivação do mundo” ou ainda “a forma
moderna das relações de poder sobre o sentido no Ocidente” (SODRÉ, 1983, p. 54). Se a
forma espacial vem sendo gerada previamente, a partir de um relacionamento com o
irreal, fictício, ilusório, temos o que está representado no diagrama da Figura 7:

ideologia forma espacial

Figura 7 - Diagrama da ideologia geradora da forma espacial


Fonte: Elaboração da Autora

É neste sentido que o urbanismo se define, a partir de um ideal, de uma ideologia, de uma
abstração, para gerar a forma espacial materializada em cidade.

Sodré enfatiza a necessidade de desterritorialização para o livre fluxo mercantil promovida


por uma ideologia dominante do capital, suprimindo as territorialidades culturais, nas
relações físicas e sagradas entre o indivíduo e seu espaço circundante, que são vistas como
entraves ao capital (SODRÉ, 1988).

Para Lefebvre (1999), as ideologias totalizadoras, os planejamentos totalizantes, são como


práticas mutiladoras em que representações do espaço econômico e do planejamento fazem
espaços urbanos específicos desaparecerem ao associar o crescimento industrial
(econômico) ao desenvolvimento social; ao subordinar a realidade urbana à planificação geral.

As perspectivas ideológicas de modernidade, angariadas pelo capitalismo industrial,


surgiram em conjunto a um novo modelo de cidade e de sociabilidade com novas práticas
sociais, em que o urbanismo encerra, segundo Lefebvre, uma lógica inerente à estratégia de
uma classe.

Sennet (2008) discorre sobre a passividade dos corpos urbanos nos tempos modernos,
sobretudo a partir da Revolução Francesa, destacando a passividade individual e a
insensibilidade no espaço urbano. O ideal da Revolução Francesa - liberdade, igualdade e
fraternidade - correspondia espacialmente a um espaço total, sem obstrução nem limites,
onde tudo fosse transparente e nada escondido. Foi assim que se iniciaram, em 1791, as
derrubadas de Paris:

... o Conselho da cidade de Paris começou a derrubar as árvores e


pavimentar os jardins da velha praça Luís XV, rebatizada de Praça da
Revolução (atual Place de la Concorde). Todas as plantas desenhadas para
o centro da cidade propunham um lugar sem vegetação ou quaisquer outros
obstáculos, uma vasta plaza de superfície dura (SENNET, 2008, p. 297).

56
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Para Sennet (2008), a liberdade proposta pela Revolução mostrou como as multidões se
acalmam nos grandes locais abertos: “o espaço da liberdade pacificou o corpo revolucionário”
(p. 301). Num plano abstrato e ideológico, parecia fazer sentido a conexão entre o corpo em
movimento livre, a liberdade, e o espaço vazio.

Numa reflexão sobre a transformação rápida de Londres com as inovações tecnológicas que
ditavam um novo ritmo à cidade, Sennet, a partir do romance de E. M. Forster (Howards
End, escrito em 1910), destaca a apatia dos sentidos, como consequência do
“individualismo e velocidade [que] amortecem o corpo e não permite que ele se vincule”
(SENNET, 2008, p. 327) ao espaço da vida moderna.

Atualmente há uma ressignificação desta ideologia: se no início do século 20 as reformas


urbanas detinham um discurso higienista, esta ideia se repete no século 21. Segundo Rachel
Thomas21, as políticas urbanísticas preveem espaços “alisados”, homogeneizados e
assépticos (a autora utiliza o exemplo da cidade de Montreal), ou ainda, conforme Lefebvre,
“o Estado se exprime pelo vazio: espaços às escâncaras, enormes avenidas, praças
gigantes” (1999, p. 104). A ausência do limo das vivências no espaço urbano...

Cada forma, para Lefebvre, se apresenta em sua dupla existência: mental e social, sendo
que as formas urbanas são dadas mentalmente pela simultaneidade dos acontecimentos,
das percepções, dos elementos de um conjunto no ‘real’, e, socialmente, são marcadas pelo
encontro, pela reunião.

1.4 - A Construção de Premissas Teórico-Metodológicas da Pesquisa

Nesta perspectiva da dupla existência da forma, tomamos os terreiros que são utilizados
enquanto forma, tanto pela maneira de como se deu sua inserção urbana, quanto por sua
organização espacial interna, na formação urbana do bairro do Engenho Velho da
Federação, se projetando na dinâmica cultural comunitária. Deste modo, o terreiro é uma
premissa metodológica que nos pauta para este estudo do urbano.

Ainda sob o escopo do terreiro, como premissa metodológica, no âmbito dos conteúdos,
temos, como princípios norteadores, em sua operacionalização, a Ancestralidade e a
Oralidade. Estes princípios são característicos de diversas culturas (ameríndias, orientais,
entre outras), estando aqui destacadas na forma como foram organizadas por grupos de
descendência africana, que as utilizaram como meio de relacionamento com o real,
refletindo-se no modo como produzem seus espaços, inclusive os espaços urbanos.

21
Notas de Aula da Disciplina Apreensão da Cidade Contemporânea (PPGAU/UFBA), ministrada pelas
professoras Rachel Thomas e Paola Jacques.

57
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Um conjunto de conhecedores da cultura de base africana como Júlio Braga, Marco Aurélio
Luz, Eduardo Oliveira indicam caminhos de utilização do pensamento diaspórico africano na
elaboração das ideias sobre a sociedade brasileira.

Tomando de início o antropólogo Júlio Braga (1995), em seu estudo sobre ancestralidade
afro-brasileira, o autor problematiza sua reflexão sobre o conteúdo e significado das culturas
africanas no processo civilizatório brasileiro, em que aparece a noção de ancestralidade:

A estruturação de nítida consciência ancestral afro-brasileira elabora-se em


oposição a diferentes mecanismos de resistência processados por outros
componentes étnicos face à presença dessa ancestralidade, geradora e
mantenedora de valores culturais específicos e particularizantes da cultura
negra no cenário nacional (BRAGA, 1995, p. 95).

Esta ancestralidade, como um diferencial na dinâmica das culturas negras no Brasil,


oferece-nos suporte teórico para esta pesquisa.

É importante ressaltar que o termo ancestralidade advém da construção de uma categoria


sistematizada a partir de uma tradição mítica africana, uma ressignificação desta tradição.
Segundo Oliveira (2007), a ancestralidade é pretensamente advinda da tradição africana, de
uma África mítica. Toma-se o mito por realidade. A África-mítica passa a ser fonte ou
manancial de onde emerge a identidade do negro brasileiro, servindo como arma ideológica na
construção de um projeto político como um instrumento na luta ideológica contra a opressão
que assola os negros. E essa tradição mítica orienta a tradição peculiar cunhada nas casas de
terreiros pontilhadas por todo este país. Dos rituais secretos às festas públicas, da hierarquia
dos terreiros à vida comunitária, tudo é perpassado pelo princípio da ancestralidade.

Articulando-nos com as ideias de Oliveira, temos que a ancestralidade, enquanto discurso


elaborado sobre bases mágicas - um discurso, uma ideologia - efetivou-se na realidade,
moldando-a, ou, ao menos, intervindo de maneira a criar pragmaticamente valores e a
mobilizar as ações de indivíduos e grupos. Assim, os terreiros utilizaram sua tradição, a
ancestralidade, para estabelecer-se no seio da existência, como garantia de realização do
ser e da perpetuação do grupo. Como afirma Serpa, em informação verbal em reunião no
Grupo de Estudo Espaço Livre, ideologias são forjadas em círculos culturais específicos.
Aqui, temos a ancestralidade forjando cultura(s) negra(s) de terreiro, conformando uma
cultura (original) que anseia por um ideal, podendo também ser ideológica.

Esta África mítica, e também ideológica, é parte, segundo o etnólogo e cientista político
cubano Carlos Moore (2010), de uma visão idílica deste continente que as diásporas
africanas escravizadas tiveram que forjar pra existir, resistir e se manter:

58
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Para preservar o rico legado ancestral que nos permitiu atravessar o estado
de escravidão racial nas Américas por mais de quatro séculos, foi necessário
idealizar esta África da qual tínhamos sido arrancados para sempre. A África
aparece, nessa visão, como um lugar quase sem tensões internas ou
contradições inerentes à própria experiência histórica (MOORE, 2010, p. 51).

Braga (1995) ao distinguir as realidades africana e brasileira, compreende, contudo, que a


África tendo sido miticamente ideal, assim operacionalizada, é extremamente dinâmica e
constantemente revitalizada, tendo a vigência multiplicadora de resultados objetivos para o
negro no Brasil.

Assim, a ancestralidade será uma constante fonte de inspiração para os movimentos de


comunidades negras, nos seus projetos coletivos, amplamente permeada nas culturas
negras, constituindo a preservação da vida comunitária através de gerações.

Para Oliveira (2007), a ancestralidade é fundada no ser africano que reverencia seus
ancestres, seguindo-lhes os passos e preceitos. Envolve o princípio da senhoridade, do
respeito aos mais velhos, do conhecimento passado de geração a geração, obedecendo à
primazia dos antigos como principal agente no processo de transmissão, da hierarquia
estruturada que confere lugar privilegiado aos ancestrais.

Deste modo, a ancestralidade também explica o sentido de família, sendo que esta não é
determinada apenas pelos laços de sangue, pela consanguinidade. A família pode ser
constituída pela memória ancestral em comum, pelo convívio social, pela identidade territorial.

Vimos em Oliveira (2007) que a ancestralidade advém da construção de uma categoria


sistematizada a partir de uma tradição mítica africana, uma ressignificação desta tradição. A
tradição mítica, articulada pelas mães e pais de santo e pelo conjunto das comunidades de
terreiro, foi ressignificada pela ancestralidade que, originada na África-mítica/África-símbolo,
encontramos absorvida, apropriada e atualizada pelas comunidades de terreiro e estendida
para além destas comunidades.

Segundo Cunha Junior (2011), a ancestralidade implica numa visão dinâmica dos coletivos
humanos em relação às localidades e aos tempos históricos nestas localidades. Pensar a
história da população negra é pensar esta história baseada nesta perspectiva ditada pela
ancestralidade. A ancestralidade determina a essência de uma pessoa e de sua
comunidade. O ancestral participa da comunicação entre o mundo visível e o invisível 22,
estando entre a vida e a morte, permanentemente presente na comunidade, zelando por ela.

22
Segundo Sodré (1988), visível e invisível são como duas metades de uma mesma cabaça, antes unidas,
depois separadas pela violação de um tabu, segundo mito de origem de criação de mundo; Orum (mundo
invisível) e Aiyê (mundo visível), embora diferentes, interpenetram-se, coexistem.
59
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

A identidade da comunidade é a sua agregação social, definida pela existência de


ancestrais comuns a todos os seus membros.

Segundo Amadou Hampaté Bâ, historiador maliano, a tradição oral é fonte da história e fonte
da cultura, permitindo fazer a história e transmitir a cultura. Os princípios da oralidade são
operacionalizados como transmissão de cultura.

A tradição oral tem como seu principal grupo de expressão os “guardiões da palavra falada”,
responsáveis por transmitir costumes, crenças e valores, de geração em geração, mantendo a
coesão grupal. Os que detêm o “conhecimento da palavra falada” por revelação divina devem
transmiti-lo com fidelidade. A palavra tem um caráter sagrado, guardando uma relação direta
da harmonia do homem consigo mesmo e com o mundo que o cerca (HERNANDEZ, 2006).

A palavra é um elemento de criação através da qual os seres ganham sentido da existência,


um significado de sagrado. A oralidade tem a sua importância pelo respeito e pela
magnificência dados à palavra, o que não significa que o uso da oralidade deva ser
confundido com a ausência de escrita23. A oralidade africana utiliza generosamente os
recursos das metáforas, numa capacidade ímpar em inventar e re-inventar as formas de
explicação simplificadas na exposição de temas complexos. Esta re-invenção foi
amplamente exploradas pelas comunidades afro-brasileiras.

A oralidade é a palavra que faz parte das práticas políticas, uma vez que as decisões da
família e da comunidade são tomadas em conjunto através de longas discussões, que
também incluem a dimensão dos ancestrais e das forças dos seres da natureza (CUNHA
JUNIOR, 2001). A tradição oral é, sobretudo, a necessidade da presença do outro.

Metodologicamente, o conhecimento transmitido pela tradição oral está embasado nas


vivências - incorporado pelos acontecimentos do processo existencial - enquanto que o
sistema baseado na escrita transmite o conhecimento de forma abstrata, à distância da
realidade vivida. A importância da palavra permanece latente aos dias atuais. Hoje, ao se
pronunciar um discurso em momentos solenes, é prática pedir licença aos ancestrais, aos
mais velhos e aos mais novos, numa atitude respeitosa ao que será transmitido.

A ancestralidade e a oralidade tomam sentido pela palavra. Além da palavra falada, como
geradora e reprodutora de conhecimento, também têm sentido de palavra o som dos
tambores, os cantos, a dança, o movimento do corpo. Segundo Oliveira (2003), a palavra é
intrínseca à força vital, pois é portadora da força que anima e vitaliza o mundo. Quando se
23
Os alfabetos utilizados nas sociedades africanas foram diversos em todas as partes do continente, em
diversos períodos históricos (CUNHA JUNIOR, 2007). Duas das formas mais antigas de escrita da Humanidade
são os hieróglifos dos egípcios e o Ge’ez dos etíopes. As escritas em árabe foram as que tiveram maior difusão
pela África, devido à expansão do islamismo, sendo encontrados Alcorões no Rio de Janeiro e panfletos da
Rebelião dos Malês, na Bahia em 1835, em árabe.
60
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

refere à força vital no pensamento Bantu, ‘ser’ significa ‘força’, isto é, não significa consistir
em, mas sim ação, movimento.

Estas formas de palavra, de oralidade, se expandem e enchem o espaço, criando uma


tridimensionalidade transcendente que caracteriza as espacialidades no bairro negro.

Neste ínterim, a energia vital é parte deste arcabouço e será também fundante para o
entendimento dos conceitos propostos pela pesquisa, como meio de apropriar-se do mundo.
A partir de Tempels, Sodré (1988) salienta o entendimento de força dos Bantu, no qual “o
valor supremo dos Bantu é vida, força, viver fortemente ou força vital [...]. O conceito de força
está ligado ao conceito de ser mesmo no pensamento mais abstrato sobre a noção de ser”
(TEMPELS apud SODRE, 1988, p. 85-86). Sodré também aponta que:

assegurar o fortalecimento da vida ou a transmissão da força de vida à


posteridade é objetivo explícito de muitas práticas ritualísticas [...].
Diferentemente da metafísica ocidental de inspiração judaico-cristã, que
entende o ser como algo estático, como aquilo que é, o pensamento Bantu
equipara ser à força. A força não é atributo do ser, mas o próprio ser,
encarado numa perspectiva dinâmica: o mundo não o é; o mundo se faz,
acontece (SODRE, 1988, p. 86).

Sodré (1988) chama atenção para “uma interpretação europeia que confundiu a ideia
africana da força como a de uma alma da natureza” (p. 86). Para os Bantu, não há um
conceito universal de força, pois as coisas particulares consistem em forças diferenciadas:
“Deuses, homens vivos e mortos, plantas, animais, minerais são seres-força diferentes” (p.
86), existindo, assim, diversas qualidades de força [ntu], com designações diversas: “força
dotada de vontade e inteligência chama-se muntu (pessoa), força sem razão, sem vida,
chama-se bintu (coisa)” (p. 86).

Cunha Junior (2011a), ao verificar o pensamento africano de origem Bantu, diferencia o


significado do conceito de pessoa e do coletivo das pessoas. Nas sociedades Bantu a
palavra NTU indica a existência de um núcleo básico para qualquer coisa material e
imaterial. O ser humano é considerado um Muntu, uma pessoa constituída nos processos de
socialização. Antes do aprendizado de socialização o ser não é um humano completo. O
coletivo de Muntu não é apenas um conjunto de pessoas, mas um conjunto de relações
sociais. Estes conceitos inspiram a pesquisa e os nossos processos de educação e de
transmissão do conhecimento. As relações de aprendizado pela ancestralidade. Um
processo de circularidade no qual o ancestral é o principio e o fim. Isso explica a
especificidade nestas relações sociais.

61
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Na cultura Bantu, Cunha Junior (2011a) destaca que as palavras são a forma de criação da
sociedade e de sua transformação. O Ntu na forma do pensamento das línguas Bantu ou o
Axé na construção dos Iorubás nos indicam a necessidade dinâmica, em que o tempo
presente é a junção do passado com o futuro, dado à circularidade em espiral, sem,
contudo, passar no mesmo lugar, num processo de idas e vindas, resultando numa
constante repetição, relembrando algo já visto ou vivido.

Sodré mostra que, na perspectiva dos iorubás, a força é o axé:

Sem axé, a existência estaria paralisada, desprovida de toda possibilidade


de realização. [...] A energia do axé acumula-se e transmite-se por meio de
determinadas substâncias (animais, vegetais, minerais, líquidas), sendo
suscetível de alteração, a depender das variadas combinações dos
elementos de que se compõe (SODRÉ, 1988, p. 87).

A força pode ser aumentada ou diminuída, sendo afetada por outras forças com as quais
interage. Sodré admite que a posse do axé implica em algo de “poderoso” ou “potente”, pois
se trata de força de realização ou engendramento.

Em nossas vivências pessoais, compartilhando experiências nas comunidades negras,


observando comunidades africanas no próprio continente africano, no Senegal, Angola,
Moçambique ou mesmo África do Sul, entendemos que a vida é mais que um direito: é um
privilégio! A vida é uma dádiva divina. A vida deve ser festejada, mesmo em momentos difíceis.
Por isso, mesmo em condições adversas, a imensa alegria de viver dos povos africanos.

Segundo Sodré, a alegria é o sentimento formado por uma intuição imediata do mundo,
exterminando a representação abstrata:

Para experimentá-la não se requer nenhuma racionalização, apenas a


capacidade de sentir. [...] Não se trata de qualquer sentir, mas de uma
experiência radical, de uma comunicação original com o mundo que poderia
se chamar de ‘cósmica’, isto é, de um envolvimento emocionado dado por
uma totalização sagrada de coisas e seres (SODRÉ, 1988, p. 148).

A ligação com o divino se manifesta pela alegria e pela forma disposta e bem-humorada de
se relacionar com a vida, demonstrando o prazer que é estar vivo, em contraposição a
dogmas de religiões que valorizam os sofrimentos e penitências, desencadeados por
sentimentos de pecados e culpas.

Esta noção de conexão com o divino estando presente em tudo, em todos os atos, em todo
o pensamento de africanos e descendentes, é, portanto, parte das nossas referências
conceituais e metodológicas.

62
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Ainda no escopo da metodologia, já mencionado anteriormente, aplicamos nesta pesquisa


de doutorado enfoques da Afrodescendência. A pesquisa procurou uma postura que valoriza
a criação e a relativa autonomia de pensamento desta população, nas negociações e
estratégias articuladas ao longo da história, reelaborando os vínculos com suas heranças
culturais africanas (ancestrais, religiosas, étnicas) e históricas no contexto diaspórico
brasileiro, determinantes para sua iniciativa individual e eficácia social. Deste modo, temos
um novo enfoque, numa tentativa de acomodar novas visões das ciências sob o prisma da
diversidade cultural e da complexidade de abordagem, via contribuição multidisciplinar das
ciências neste trabalho de pesquisa.

A Afrodescendência (CUNHA JUNIOR, 2001; 2008b) parte de questões lançadas pela Nova
História24, uma corrente surgida no movimento intelectual da terceira geração da Escola dos
Annales na França e que apresenta propostas que questionam a legitimidade da
continuidade narrativa dos grandes acontecimentos e incitam a descontinuidade temporal. A
Afrodescendência, segundo Cunha Júnior (2008b), enquanto metodologia utilizada na
pesquisa, busca uma percepção de mundo a partir das condições culturais e históricas das
populações negras no Brasil, as reunindo pela história e pelos processos de formação de
identidade cultural afrodescendente, valorizando e tomando por base a história cotidiana dos
grupos sociais subalternizados, de modo a formatar um conhecimento dado pela história
local e social.

A postura conceitual-metodológica adotada nesta pesquisa articula a participação do


pesquisador numa relação sujeito-pesquisador. Aportes conceituais relativos à pesquisa-
participante já foram articulados em Ramos (2007), através de autores como Corinta Geraldi
(1984) e Michel Thiollent (2005). Na pesquisa participante, o pesquisador pertence ao meio
que se processa a investigação por diversas razões: sociais, envolvimento de vivência,
opções políticas ou por questões de identidade, étnicas e/ou culturais. No decorrer do
aprendizado da pesquisa, o pesquisador modifica seu pensamento inicial, alterando as
convicções e o meio, introduzindo novos elementos às representações sociais processadas
neste meio.

O pesquisador foge do campo de pensamento da neutralidade científica para participar


como sujeito do universo dos sujeitos da pesquisa e evidencia as preocupações com o
enfoque das relações sociais produzidas pela história registrada no local, valorizando e
utilizando o conhecimento cotidiano.

24
Conforme Cunha Junior (2007a), a ‘História’, enquanto meta-narrativa, demarca uma dominação vigente como
um processo da constituição do Ocidente com a expansão do catolicismo, em que a compreensão de Europa
enquanto continente unificado se dá pela unificação religiosa cristã, que se impôs, sobretudo, contra a religião
das bruxas, cultuada em diversas regiões do continente (BERNAL, 1987 apud CUNHA JUNIOR, 2007a).
63
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Deste modo, esta pesquisa deriva de minhas percepções dadas às observações e


experiências pessoais nestes territórios. Este envolvimento produz uma relação além de
sujeito-objeto (sujeito → pesquisador e objeto → investigação) para se tornar sujeito-sujeito
(sujeito → pesquisador e sujeito/pesquisador → objeto de investigação) da pesquisa. O
pesquisador adentra o espaço estudado e interage com seus sujeitos, desencadeando os
processos da pesquisa participante.

Assim sendo, a partir do nosso lugar social, é que nos posicionamos diante da problemática
desta pesquisa, no que tange a articular fatores para uma representação de bairros negros
que estejam alinhados com o meu lugar de origem, do que eu falo, de onde estou, enquanto
pesquisadora. A elaboração da pesquisa envolve um investimento pessoal, uma vez que
compartilho de experiências de vida semelhantes aos entrevistados, às situações
observadas. Segundo Cunha Junior (2008b), o conhecimento produzido pelo vivido é
também uma fonte de pesquisa.

Deste modo, narramos também nossos referenciais de vida através desta pesquisa. Venho
de uma família negra, que, de uma forma ou de outra, sempre esteve inserida nos lugares
sociais das populações negras. Neste contexto, faz parte da nossa consciência social as
referências da pobreza circundante e das dificuldades sócio-econômico-culturais a serem
superadas25.

Meus pais são frutos de migrações dos meus avós paternos e maternos à procura de
melhores condições de vida, vindos da Bahia e de Minas Gerais para o Rio de Janeiro.
Embora meus avós tenham conseguido uma condição estável de vida, os familiares, no
geral, guardam as marcas de um passado histórico nada confortável.

Neste sentido me senti uma criança privilegiada, vivendo plenamente a infância, amada e
bem cuidada, estudando em boas escolas. Meu pai, pela inteligência e pelo esforço,
trabalhou, por muitos anos, numa empresa multinacional, tendo começado adolescente como
cabeador de fios, chegando à gerência da filial da empresa em Vitória-ES, onde moramos por
muitos anos, quando ele foi transferido do Rio de Janeiro para lá. Esta situação financeira
favorável pôde me proporcionar acesso a boas escolas, a bons lugares, viagens e boas
perspectivas de futuro, diferente das oportunidades vividas por minha própria família.

A minha negritude, até então, não era politizada. Mas sempre fomos muito negros no
sentido da intensa vida em família, na qual as crianças e os mais velhos tinham os afagos e
cuidados; e as crianças pedem bênção aos adultos. Quando nasci, neta mais velha por

25
Esta superação da pobreza muitas vezes é confundida com o distanciamento das práticas sociais negras, por
imposição das relações sociais e no âmbito das políticas públicas, através do sistema educacional brasileiro.
64
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

parte de pai, meu avô paterno fez uma música para mim: “A Maria Estela é bamba; ela é
bamba no amor, ô skindô, skindô, skindô...”.

Mesmo sem a participação em terreiros (éramos ‘católicos’ mais por adequação social do
que pela fé) 26, eram frequentes os incensos que minha mãe acendia para defumar a casa,
como também as idas à benzedeira para afastar os ‘quebrantos’, sobretudo quando eu e
meu irmão éramos crianças.

Durante minha infância e adolescência, a família viveu sempre em um contexto de idas e


vindas ao Rio de Janeiro, em visita aos familiares, constando na minha memória uma forte
cultura carioca. Uma referência importante são as moradias de meus parentes em bairros de
população majoritariamente negra, nos subúrbios do Rio. Nesta negritude carioca, minha
referência sempre foi o samba. Desde muito pequena, era incentivada a sambar enquanto
os mais velhos batiam palmas em ritmo de samba. Era uma diversão para eles e era
também o meu “estrelato” e de todas as crianças da família.

É marcante em minha memória a dinâmica dos almoços aos domingos em família. Reunia-
se muita gente além da família, como afilhados e amigos, e se produzia uma quantidade
enorme de comida. Meu avô paterno iniciava um discurso improvisado que se prolongava
em um ritual de falas das boas recordações e feitos dos entes presentes e falecidos, que
correlacionados nos permitiam estar ali naquele momento, e “contação” de casos do
cotidiano que sempre faziam com que o almoço esfriasse. Isso gerava uma hora particular
de almoço que nós chamávamos de ‘almoço ajantarado’. Este nosso almoço é uma
expressão da memória coletiva de descendentes de africanos realizada por nossa família e
também um marco da convivibilidade, conceito estudado nesta tese, no Capítulo 4.

De volta ao Rio, morando no Bairro Peixoto, bairro próximo ao escritório de arquitetura onde
trabalhava, eu percebia sensivelmente minha negritude neste ‘bairro branco’, e isto não era
só pela cor da pele. Rapidamente me iniciei no tamborim na modesta escola de samba da
Vila Rica, cujo barracão tem a sede na Ladeira do Tabajara.

Como técnica em Edificações e, mais tarde, como arquiteta, sempre fui tocada pela vontade
de participar mais ativamente destes bairros ditos ‘populares’, percebendo que poderia
atuar, de alguma forma, contra a precariedade das moradias autoconstruídas, sempre me
reconhecendo nesta origem social ligada aos bairros de maioria negra. Não era somente a
pobreza que chamava atenção, mas a dinâmica familiar daquelas famílias tão carentes que
me fazia íntima daquela cultura.

26
No mesmo sentido da fala do Seu Sérgio, marido de Dona Elza (moradora do Curuzú): “preto e pobre têm que
andar na linha”.
65
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Neste ‘sentir-me negra’, podemos pensar a cidade por esta perspectiva, nos conduzindo a
abordar a cidade e o urbano, produzindo conhecimento.

Em nome de uma ciência neutra, havia, ou ainda há, uma postura do meio acadêmico em
rejeitar estudos originados por pesquisadores integrantes dos movimentos sociais,
sobretudo movimentos sociais negros, uma vez que as produções não seriam ‘confiáveis’
por serem imparciais, construídas por conotações passionais e emocionais.

Segundo Figueiredo e Grosfoguel (2007), a produção do conhecimento nas universidades


brasileiras, como em quase todas as universidades ocidentais, privilegia a epistemologia
eurocêntrica:

Esta epistemologia contribui para encobrir as hierarquias de poder raciais


hegemônicas nos espaços universitários. Por isso mesmo, qualquer
demanda de acadêmicos negros que reivindique sua própria geopolítica e
corpo-política do conhecimento é imediatamente rechaçada pela grande
maioria dos universitários brancos como uma perspectiva particular e
parcial... (FIGUEIREDO; GROSFOGUEL, 2007, p. 38)

A modelização universalista que Sodré se refere encontra eco em Figueiredo e Grosfoguel


(2007):

Na filosofia e nas ciências ocidentais o sujeito que fala está quase sempre
encoberto; a localização do sujeito que enuncia está sempre desconectada
da localização epistêmica. Por meio dessa desconexão entre a localização
do sujeito nas relações de poder e a localização epistêmica, a filosofia
ocidental e suas ciências conseguiram produzir um mito universal que
encobre o lugar de quem fala e suas localizações epistêmicas nas
estruturas de poder (FIGUEIREDO; GROSFOGUEL, 2007, p. 38).

Ao pensar o bairro negro a partir das culturas negras, me pondo como interlocutora,
estamos explorando, segundo o pesquisador Thomas Kuhn (1991), um reposicionamento do
fazer científico, na proposta de avançar para uma alternativa de análise urbana.

Em relação à temática da produção do conhecimento, Morin aponta que “a ciência tornou-se


(uma) poderosa e maciça instituição no centro da sociedade, subvencionada, alimentada,
controlada pelos poderes econômicos e estatais. Assim, estamos num processo inter-
retroativo” (MORIN, 1996 apud BASTOS, 2009, p. 28). E, como afirma Bastos (2009) em
relação à postura do pesquisador face à produção do conhecimento, ao considerar o atual
quadro de enraizamento e hegemonia da ciência no seio da sociedade, é impossível
desvincular a participação do pesquisador em relação ao jogo de inter-retroações em suas
implicações políticas, científicas e técnicas.

66
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Segundo Harvey (1980), os cientistas, intelectuais e pesquisadores estão passíveis de avaliar


e interpretar a realidade mediante seus modos de vida, numa linguagem estética formalizada
e codificada nas formações universitárias. Há uma tendência, no Ocidente, das ciências
estarem mais voltadas para os modos de vida da ‘classe média’, agindo para os interesses
deste grupo, mais do que para os interesses da sociedade como um todo. Além disso, as
pesquisas também são envolvidas no processo de patrocínio por aqueles que possuem o
controle do pensamento hegemônico; a coalizão de indústria e governo também afeta
fortemente a atividade científica e se reflete numa orientação de manipulação e controle.

Neste raciocínio, podemos incluir o urbanismo como uma ciência produzida a partir de
moldes científicos, voltada para priorizar os meios de produção, estando no âmbito do que
Kuhn (1991) designa de ciência normal sob o período em que se atua dentro de um dado
paradigma que é partilhado por uma comunidade científica.

Exemplificando no campo urbanístico,

a cidade não é um simples produto determinista dos contextos econômicos,


políticos, sociais: é também o resultado de teorias e posições culturais e
estéticas dos arquitetos urbanistas (LAMAS, 2000, p.31).

Perpassando pela lógica da produção do conhecimento e também pela manipulação e


controle, o conceito de hegemonia, para o historiador Peter Burke (2002), passa pela
persuasão, e esta se faz de forma indireta: as classes subordinadas aprendem a enxergar a
sociedade pelos olhos dos governantes através da educação e por sua posição no sistema.
A hegemonia da classe dominante está na dependência de certo grau de aceitação pelas
classes subordinadas, sendo, portanto, não apenas uma imposição pela força física.

Para Sodré (1982), que elabora uma análise do papel da televisão na sociedade brasileira
em O Monopólio da Fala, a ideologia da classe dirigente determina aos sujeitos que
mantenham sempre lugares atribuídos pela ordem da produção e pela autoimposição de
modelos convenientes. Sobretudo em relação ao consumo, de toda ordem, indo dos bens
duráveis e supérfluos ao consumo moral-cultural: “Para a maioria da população, ver
televisão significa viver vicariamente, isto é, viver a substituição do real pelo consumo
imaginado” (SODRÉ, 1982, p. 116). Esta forma ideológica (da televisão) está intimamente
relacionada àquela hegemonia à qual Burke se refere. Entendemos que a hegemonia se
impõe por ideologias, seja através de um modelo de família, de comportamento ou de
indivíduo, disseminado por dispositivos, meios e aparelhos complexos das classes
econômicas dominantes e do Estado.

67
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Harvey observa que a organização do conhecimento é produzida para satisfazer a


necessidade primária de perpetuar a sociedade em seu estado atual, de manutenção de
hierarquias e privilégios, e daí advém seu caráter inerentemente conservador. O conhecimento
é difundido como apologia ao status quo e com formulações de caráter inerentemente
conservador que funcionam para frustrar a investigação de alternativas capazes de promover
uma mudança profunda na estrutura. A divisão do conhecimento leva o corpo político a dividir o
pensamento e a dominar tudo o que se submete à aplicação do conhecimento.

Nesta linha, Foucault (1988) também demarca que a ciência, como conhecimento, é
articulada como produção do saber e do poder: ambos estão sempre associados, no mundo
ocidental. A ciência não é neutra. Está configurada sob um determinado contexto no tempo,
no espaço, orientada por ideologias.

A produção do conhecimento deve permitir a integração de outras formas de pensar, outras


filosofias, permeada por interferências múltiplas, complementares. Dentro desta abertura do
pensamento, isto é, não estar vinculado a um pensamento pré-determinado, pode-se
provocar interações entre os diversos modos de ver a vida, rompendo a ordem, rompendo
os pré-valores e incluindo a possibilidade de permitir formas diversas do conhecimento
empírico, aproximando e articulando as estruturas internas das culturas populares, como
afirma Foucault (1988).

Diante da manipulação que se faz do conhecimento, filosófica e ideologicamente construído


para moldar o pensamento, e da ausência de diversidade de discursos sociais, capazes de
dar voz aos diversos segmentos sociais, é que pautamos os discursos dominantes como
uns dos grandes causadores da estagnação social, econômica e política que perpassa a
população negra, agravada pelo sistema vigente, o capitalismo.

Existe um currículo oculto nas formações universitárias que justifica a eficiência e a eficácia
das relações capitalistas, transformando as relações capitalistas em patamar único de
reflexão, sendo a maior referência de nossas formações universitárias. Estes currículos,
com ideologias ocultas ou explícitas, têm o signo da universalidade; são definidos como
universais e podem ser compreendidos como uma síntese perfeita do pensamento de toda a
humanidade.

Os currículos acadêmicos escondem o sentido dado à universalidade dos conteúdos de uma


visão euro-americana, capitalista de mundo. As possibilidades de conhecimento dos
distintos grupos socioculturais e de culturas variadas ficam inviabilizadas nesta formulação
dada pelos currículos atuais, baseada numa síntese racionalista do pensamento ocidental,
greco-romano e euro-americano (RAMOS; CUNHA JUNIOR, 2006).

68
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Cunha Junior (2012) argumenta que os conceitos são inferências dos valores e credos dos
produtores da ciência; concebidos e validados dentro de grupos científicos constituídos por
participantes dos diversos grupos ou subgrupos dentro da sociedade. Os conceitos carregam
a espacialidade e a temporalidade das culturas em geral e das culturas científicas em
particular. Dado este conjunto sempre mutável de fatores e de interesses, os conceitos
científicos são parte das lutas sociais e estão inseridos na fase de busca da validade de um
determinado paradigma científico. A dinâmica social e os processos de transformações
existentes nestas substituições de paradigmas científicos impõem a revisão, a atualização e
a modificação dos conceitos e formas de pensar de um grupo de cientistas. Tanto os
movimentos negros como os grupos de pesquisadores negros têm se debatido com
mudanças de paradigmas e de concepções conceituais cada vez mais necessárias e mais
importantes no enfrentamento das lutas sociais e das lutas nas esferas das políticas públicas
em relação à população negra. As pesquisas estão passando para uma esfera de
especificidade de base africana, ou de referências de hibridismos culturais sob a ótica da
interculturalidade. Para Cunha Junior (2012), a aparente posição dominante e hegemônica
das expressões científicas eurocêntricas está lentamente sendo revista no âmbito dos
conceitos e interpretações pluriculturais.

Esta pesquisa é, portanto, através de metodologia diferenciada, uma busca de alternativas


para um entendimento da formação do bairro negro como sentido do problema investigativo,
como pesquisa científica da elaboração de conceitos e da sua articulação para a
compreensão de um fenômeno sem, contudo, constituir uma teoria totalizadora e genérica.
Para a perspectiva deste trabalho, são criados conceitos específicos para o entendimento da
racionalidade ressignificada na produção dos bairros negros.

Esta racionalidade outra é embasada por energias cosmológicas que fluem em torno da
cosmovisão africana, o axé (Yorubá) e o ntu (Bantu), permeiam pessoas, animais, objetos, se
conectando e se espalhando, gerando fluxos, multiplicando sentidos, sensações e percepções
(RAMOS, 2009). Estas energias e fluxos, no entanto, não estão encerrados nas religiões de
matriz africana, nos terreiros, mas se estendem para além dos seus limites, tanto no tempo,
quanto no espaço, se espacializando, caracterizando também o bairro negro.

1.5 - Aprofundando preliminarmente a noção de Bairro Negro

Ao considerar o significado da ancestralidade como orientador da compreensão da


sociedade e das suas constantes transformações, vamos ter, no pensamento africano,
conforme Cunha Junior (2012), que tudo provem da energia vital. Tudo (material ou
imaterial) é uma forma de energia a ser processada pela sociedade. As energias têm
69
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

diversas qualidades e estados, mas estão sempre realizando dinâmicas no mundo, na vida,
nos seres da natureza que são essencialmente dinâmicos e fundamentalmente sistêmicos
no sentido de interações múltiplas. Uns influenciam nos demais, inexiste a separação entre
nós e os outros, nós e a natureza.

A energia vital circula: são fluxos. Como poetiza Portela (2007):

Ao ver um pé de boldo, o filho de Oxalá tem um súbito desejo de tocar a


planta e de repente ele já não é mais o indivíduo, ele é a planta; é o orixá
acariciando seu próprio princípio, é o axé fazendo percorrer as trocas
cósmicas entre fragmentos (PORTELA, 2007, p. 08).

Além da dimensão espacial, tátil, concreta, os bairros negros também nos apontam para as
dimensões sensoriais, do espaço vivido e sentido, como um lugar de experiências e ações
sociais urbanas. São aqui também atribuídas à cultura determinadas percepções, aguçadas
e estimuladas pelas culturas negras, geradas pelas ambiências do bairro.

Sampaio aponta para outras dimensões de um ambiente como “o odor, o micro-clima, ou a


sua manifesta disposição para suscitar introspecção ou alegria, coisas intangíveis”
(SAMPAIO, 1999, p. 340). Segundo Thibaud (2004 apud MENDES, 2011), a ambiência é o
meio para perceber o ambiente vivido. O ambiente não é percebido; a percepção do
ambiente se faz de acordo com a ambiência vivenciada. O ambiente pode ser descrito de
forma objetiva pelos seus aspectos físicos/espaciais, mobiliários e utensílios, aspectos
estéticos e mesmo simbólicos respaldados em seu uso e sua história coletiva.

Mendes (2011) discorre, a partir de Thibaud, que os significados dados à ambiência pelos
diversos sujeitos de um ambiente/lugar/espaço são mutáveis e inconstantes, pois são
guiados por uma subjetividade também cambiante captada pelo olhar que filtra e sintetiza um
conjunto de valores e significados do imediato, dependentes de seu repertório e sentidos
afetivos no momento vivido. A ambiência também traz uma identidade a um ambiente/lugar,
na medida em que é produzida pela experiência humana e apreendida por sua subjetividade,
pois ela é vivenciada e experimentada no indivíduo e oxigenada pela coletividade.

Numa articulação de conceitos entre Sodré e Lefebvre, temos que o bairro negro, a partir do
território de Sodré, aparece como um dado necessário à formação da identidade
grupal/individual, ao reconhecimento de si por outros, como é na cosmologia africana, em
que existo porque você existe - “ser-com-outros” - como parte da cultura e da história de um
grupo. Ou ainda no significado da palavra bantu ubuntu: “eu sou, porque nós somos”.

Tomamos aqui a “obra” à maneira de Lefebvre (1991), em sua forma de compreender o


direito à cidade como direito à obra, como participação na obra e o direito à apropriação. Em

70
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

suas reflexões sobre a utopia experimental, Lefebvre faz questionamentos sobre espaços
bem sucedidos, favoráveis à felicidade: quais são seus tempos? Quais os ritmos da vida
cotidiana? Lefebvre (2006) reafirma que só a obra de arte contém sua história e diz, em
certa medida, quem a criou, como e porque: “não há obra sem uma sucessão
regulamentada de atos e ações, de decisões e de condutas, sem mensagens e códigos”
(LEFEBVRE, 1991, p. 48), permitindo a imaginação e a recordação, pois carrega traços
reconhecíveis, face à articulação do espaço enquanto forma e conteúdo; à atribuição de
conteúdos próprios à forma; à forma que mais se adapte ao sentido (LEFEBVRE, 1991).

No âmbito da imaginação, Lefebvre distingue a cidade e o urbano, em que aquela “é a


realidade presente, imediata, dado prático-sensível, arquitetônico - e por outro lado o
urbano, realidade social composta de relações a serem concebidas, construídas ou
reconstruídas pelo pensamento” (LEFEBVRE, 1991, p. 49). Serpa sintetiza, em informação
verbal em reunião no Grupo de Estudo Espaço Livre, que a cidade de Lefebvre ainda está
no estágio de atender à sociedade capitalista industrial, à mercadoria, à condição funcional,
ao sistema viário, sob um formato positivista. Para Lefebvre (2006), o urbano está no
campo da transcendência imaginária, bem como nas representações da imaginação (como
contraponto às representações das ideologias) que oferecem possibilidades de outros
discursos, do que pode ser o urbano, outras perspectivas, possíveis através das diversas
sociabilidades dos grupos sociais, outras formas de organização espacial que incorporem o
lúdico, as trocas, o valor de uso, a obra. Sentido este da obra lefebvriana que converge
com o da obra de Rossi, na qual a cidade, como obra de arte, é a sede deste patrimônio
cultural dinâmico.

Em A Revolução Urbana (1999), Lefebvre expõe a diferença conceitual entre cidade e


urbano, tendo este [urbano] um caráter conceitual; enquanto aquela [cidade] é o objeto
físico, o fenômeno urbano não se restringindo à dimensão física da cidade, mas articulando
fatores econômicos, culturais, sociais que se manifestam na forma da cidade. Assim,
enquanto a “cidade” pode ser entendida como “um objeto definido e definitivo, objetivo
imediato para a ação”, o urbano aponta para uma “abordagem teórica mais complexa de um
objeto virtual ou possível”, dada pela representação como imaginação. O urbano então não
se constituiria numa realidade acabada, mas num processo de vir a ser que se apresenta
ainda de forma virtual, devendo, no entanto, se apresentar como real no futuro.

É nesta ótica que Frémont (1980) destaca Lefebvre, afirmando o espaço ‘vivido’ como
aquele em que se redescobre todos os valores da vida, sendo mais rico, mais confuso, mais
contraditório, só podendo ser revolucionário.

71
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Não no mesmo contexto de Lefebvre, mas com o mesmo sentido, Sodré, em sua
fundamentação sobre os terreiros, assinala a espacialidade (ou a relação espacial) e sua
organicidade, suscitando a noção de forma social, como formas assumidas pela vida
(formas sociais). Relembrando que esta forma social [do terreiro] privilegia a diferença e a
pluralidade nas relações funcionais de coexistência e permitiu no universo do africano
escravizado no Brasil a apreensão sensível, para além do puro intelectualismo: o mito, o
símbolo e o imaginário de um estilo de vida, com sua atmosfera particular, sua multiplicidade
numa unidade e seu relacionamento com o espaço (SODRÉ, 1988). Sodré atribui à
imaginação uma nova relação com o real: pela imaginação de grupos negros das
comunidades de terreiro, este se afigura como a forma social negro-brasileira por
excelência, porque, além da diversidade existencial e cultural que engendra, é um lugar
originário de força e potência social para uma etnia [negra], para grupos sociais negros, que
experimentam a cidadania em condições desiguais. Através do terreiro e sua originalidade
diante do espaço europeu, obteve-se e obtêm-se fortes traços de subjetividade histórica das
classes subalternizadas no Brasil.

Relembrando Lefebvre (1999), a modelagem de um espaço urbano apropriado configura


uma inversão revolucionária, no nível do habitar. E seguindo com Lefebvre na sua distinção
entre o habitar e o habitat : este como parte da ideologia e prática do poder institucional,
submisso à função racionalizada e simplificada, reduzido às atividades elementares da vida
humana - comer, dormir, reproduzir-se - em ‘máquinas do habitar’; aquele, o habitar, como
prática milenar, como parte da imaginação: para sua expressão é preciso utilizar conceitos e
categorias, indo aquém do vivido do habitante, em direção ao não-conhecido e do
desconhecido da cotidianidade, como possibilidade de invenção.

Para as culturas que remetem à tradição da religiosidade africana, como no caso dos
terreiros do Engenho Velho da Federação, este cotidiano foi inventado, como poesia, ou
reinventado, resgatando seus arquétipos: o inconsciente aparece como consciente, através
do qual as pessoas ou grupos criam estratégias de continuidade de suas práticas culturais.
Os terreiros, como obras, difundiram seus valores, conformando sua dinâmica sócio-
espacial nos bairros negros. Também podemos, aqui, associar o trabalho artesanal para
além das relações de produção, como fenômeno da ‘prática urbana revolucionária’, à parte
da dicotomia entre rural e industrial, resultante das relações produtivas.

Também nos reportando a Lefebvre, em relação à tríplice aliança - mito, ideologia e utopia
(1999, p. 101), vamos produzir o mesmo movimento, associando o terreiro ao bairro negro,
tanto como mito, em sua referência ao passado, na reelaboração pelos terreiros da herança

72
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

cultural africana, que compõe um discurso não institucional, seja como utopia, que
transcende a realidade, apontando um devir: o terreiro como fonte dos mitos e das utopias.

O bairro negro não passa pela institucionalização e, como mito, segundo Lefebvre, não está
submetido às imposições das leis e instituições, sendo constituído pelo conhecimento
orientado sobre/por uma prática.

A interlocução entre Sodré e Lefebvre nos permite ter aqui um entendimento dos bairros
negros como obra de arte (como obra, no sentido lefebvriano do termo), na criação de um
espaço pela construção social e autoconstrução física (casas, espaço urbano), carregada de
desdobramentos de elementos simbólicos (materiais e imateriais) do terreiro na vida social
destes bairros. O bairro negro, enquanto prolongamento do terreiro, como ambiente de
oferendas, de assentamentos, de sacralização dos espaços, de caminhos definidos por
espaços sacralizados e, para além das referências religiosas, as referências no
desdobramento espacial.

O bairro negro, a partir das referências do terreiro, é uma forma de organização espacial,
diversa da lógica que orienta a das relações de produção, mas que também as incorpora, a
partir do lúdico, das trocas, do valor de uso: a obra. As trocas (de afetividade, de
solidariedade), o sentido do trabalho coletivo permeado pelo simbólico, o valor de uso em
lugar do valor de troca constituem esta obra, na qual, segundo Sodré (1988), as árvores, as
casas, as ervas, os animais, os seres humanos compõem uma totalidade, não dissociados
ou dicotomizados em humano/natural, sensível/inteligível, etc.

1.6 - Operacionalizando Teorias, Categorias e Conceitos

Neste subitem, apresentamos os processos que permitiram a realização da pesquisa.


Trabalhamos a tese com 04 eixos metodológicos de pesquisa, realizados simultaneamente:
a pesquisa empírica de campo, acompanhada da construção dos registros das novidades
(pesquisa de campo e conceitual), que, juntamente com a reprodução dos outros escritos
indicados nas referências bibliográficas, nos permitiu a construção dos conceitos propostos.

1.6.1 - Fontes de Pesquisa

Este trabalho envolve experiências urbanas de população negras e formas urbanas geradas
a partir das culturas negras. Como ponto de partida, temos a pesquisa da história e da
memória coletiva de moradores de um espaço urbano, o bairro do Engenho Velho da
Federação como exemplo empírico.

73
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

As informações e dados sobre o bairro negro foram obtidos mediante fontes primárias,
representadas nas falas de moradores através de conversas e entrevistas; fontes
bibliográficas e documentais; e as próprias observações de campo da pesquisadora, através
das próprias experiências de vida, de viagens ao continente africano, mas, sobretudo, no
próprio bairro do Engenho Velho da Federação.

1.6.1.1 - Pesquisa de Campo

Pautamos anteriormente que um dos princípios norteadores desta pesquisa é a oralidade. A


oralidade, como referência civilizatória africana, é apreendida como metodologia de pesquisa,
através da história oral. A oralidade é trabalhada como narrativa da memória de populações
negras, a partir de culturas negras: memória de negros. O recolhimento desta oralidade ligada à
memória é um método de investigação que nos permite entendimento do passado e do presente.

A história social do bairro constituída através das histórias de moradores do Engenho Velho
da Federação é uma tentativa de afastar os modelos universais e o regime de verdades e de
explicações globalizantes, através de uma revisão de pressupostos explicativos da realidade
(PESAVENTO, 2005). Por este motivo é que não nos ateremos aos grandes marcos
históricos que, por sua vez, se constituem, também, como representações históricas.

Deste modo, as entrevistas com os moradores constituíram o eixo principal da pesquisa.


Nas histórias pessoais também estão inscritas a história do bairro. As entrevistas foram
direcionadas para a vida cotidiana no bairro, em tempos antigos e atuais, dando seguimento
às questões mais específicas, relacionadas com a convivência junto aos terreiros.

Iniciando com entrevistas com lideranças e avançando com moradores antigos do bairro,
como testemunhas de sua evolução: partimos da ideia de articular com outros moradores a
partir das indicações dos próprios entrevistados. Para o entendimento da dinâmica atual do
bairro a partir das entrevistas com os moradores, utilizou-se também a metodologia de
seleção de entrevistados desenvolvida pelo Grupo Espaço Livre de Pesquisa-Ação, a partir
das redes associativistas existentes: redes formais (com maior visibilidade: templos
religiosos, associações de moradores, etc.) e redes informais (redes de vizinhança e
parentesco, grupos de jovens, grupos de terceira idade, etc.), identificando seus
representantes e buscando suas estratégias de ação e formas de organização, bem como a
influência mútua entre eles e suas sobreposições.

Nas primeiras conversas com os adeptos de terreiro, já obtive indicações que nos encaminhavam
para outras sugestões: Makota Valdina do Terreiro Tanuri Junçara (Angola) é uma referência do
bairro e me recomendou conversar com Dona Lindaura Farias, moradora antiga e muito
conhecida no Engenho Velho da Federação, e oferece o tradicional Caruru de Cosme e Damião
74
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

em sua casa; Mãe Índia, mãe-de-santo do Terreiro do Bogum (Jêje), me indicou o Seu Valter
Neves, morador antigo do Engenho Velho da Federação e adepto do candomblé, é proprietário do
Educandário Nabuco, fundado em 1958. O filho de Dona Lindaura, Seu Eliomar, por sua vez, me
levou até o Terreiro Odê Mirim (Angola) de Mãe Aíce. Neide, equede do Patiti Obá me
proporcionou conversas com Dona Justina, mãe pequena do terreiro. Assim, por indicação dos
próprios moradores foi surgindo uma sequência de entrevistados. Estes moradores mais antigos
do bairro nos expuseram um panorama de como se deu a constituição sócio-espacial do bairro,
desde seu surgimento, nos oferecendo um suporte histórico e cultural de meados do século 20.

A coleta das informações orais se deu através de conversas e entrevistas informais direcionadas,
sendo grande parte delas gravadas. O método da pesquisa privilegiou a fala dos moradores do
bairro e não as falas dos integrantes dos terreiros, por vezes também moradores, porque
entendemos que os moradores não ligados aos terreiros absorveram e sintetizaram as influências
dos próprios integrantes dos terreiros, comprovando a hipótese de existência da categoria do
bairro negro. Os terreiros produzem um conjunto de procedimentos e ideias, emanado pelo corpo
social do terreiro, cujo rebatimento no bairro, um bairro negro, é o que interessa nesta pesquisa,
para a compreensão da formação do bairro do Engenho Velho da Federação.

Partimos também, como metodologia, em busca de registros fotográficos dos próprios


moradores, entrevistados ou não. Estas fotografias fornecem informações complementares do
cotidiano do bairro, tanto das festas privadas ou de vizinhança, como também registros de
momentos de dificuldades ou conflitos. As informações expressas pelas imagens fotográficas
foram submetidas às minhas análises, como pesquisadora, considerando-se as informações
fornecidas pelos próprios entrevistados sobre as fotografias, fossem estas de cunho objetivo e/ou
subjetivo. Apesar de elucidar momentos da vida cotidiana dos moradores, muitas fotografias não
possuem qualidade de reprodução, não podendo, assim, serem apresentadas na tese. Elas
foram muito importantes, no entanto, como ferramenta de lembrança para os entrevistados, que
iam descrevendo, além do conteúdo das próprias fotos, outros eventos ou momentos do bairro.

Outras fontes interessantes sobre o Engenho Velho da Federação são as falas dos
moradores através de outras formas, integradas às novas tecnologias. Pudemos extrair
informações de vídeos disponíveis no site do You Tube, blogs e páginas com conteúdo
sobre o bairro também estão disponíveis na internet.

À medida do possível, também buscamos incorporar a toponímia, enquanto estudo histórico


da origem dos nomes das vias e localidades, como forma de entendimento da história e
configuração espacial do bairro, como no caso da Baixa da Égua, da Avenida Parente, da
Rua do Pau Zerrém ou do Beco Júlio das Neves, Ladeira do Scorpio, Madruga, Lajinha, Rua
São Romão, Avenida Cosme, entre outros.
75
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Quanto às nossas observações de campo, enquanto pesquisadora, através das visitas e


caminhadas pelo bairro do Engenho Velho da Federação, buscamos apreender o visível e o
não visível, o sentido e o vivido.

Também ofereceram subsídios para a pesquisa viagens ao continente africano, como forma
de apreender as relações espaciais de comunidades africanas urbanas.

Em Dezembro de 2010 estivemos em Dakar, Senegal, a convite da Fundação Palmares, e


participamos do III Festival Mundial de Artes Negras com uma comunicação sobre
arquitetura tradicional africana, em que tivemos a oportunidade de dialogar com arquitetos e
professores da Universidade Cheikh Anta Diop. Também ouvimos as discussões de
pesquisadores africanos acerca da temática do Renascimento Africano, que teve como base
teórica o Pan-Africanismo Cultural no Fórum de Intelectuais.

Na cidade de Luanda, Angola, passamos uma temporada de duas semanas, em Julho de


2011, utilizando a mesma metodologia de observação de campo do bairro do Engenho
Velho da Federação, através da estadia no musseque de Chicala e da visita a outros
musseques da cidade. Em Luanda, conversamos com o sociólogo João Baptista Lukombo
Nzatuzola, professor da Universidade Agostinho Neto, que nos ofereceu alguns dados da
cultura Bantu, sobretudo dos bakongos, sua etnia. Também tivemos contato com o
historiador Simão Souindoula, africanista angolano.

Mais uma vez no continente africano, estivemos em Maputo, Moçambique, para participação
da Conferência Internacional de Intelectuais Africanos, ocorrida em Novembro de 2012, na
qual apresentamos uma comunicação sobre formação de identidades e espacialidades a
partir dos terreiros. Além das conversas sobre as dinâmicas culturais africanas com demais
pesquisadores das áreas dos estudos culturais e relações étnicas, dialogamos com
Alexandre Baia, geógrafo moçambicano sobre formações urbanas. Na Faculdade de
Arquitectura, conversamos com o atual diretor, o arquiteto e professor Luís Lage que nos
indicou bibliografias e, gentilmente, nos disponibilizou publicações digitais sobre formações
urbanas de diversas regiões moçambicanas.

A oportunidade de dialogar com pesquisadores acadêmicos, tanto brasileiros quanto


estrangeiros, também nos proporcionou fontes enriquecedoras de pesquisa27.

27
Além da participação na Conferência em Maputo, tivemos a oportunidade de participar de outros congressos e
eventos acadêmicos, apresentando comunicações sobre a temática da pesquisa desta tese. Expomos trabalhos
no I Seminário Internacional Gênero Raça Classe e Identidade Social no Brasil e na França, em 2009; no XI
Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais - CONLAB, em 2011; no Seminário Urbanismo na Bahia -
urbBa[12], em 2012: todos na UFBA, em Salvador. E ainda no 2nd International Congress on Ambiances, em
2012, em Montreal.
76
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

1.6.1.2 - Fontes de Documentação Institucional

A fim de encontrar informações oriundas de documentação oficial, partimos para a


pesquisa junto aos órgãos públicos e institucionais.

As fontes bibliográficas foram acessadas em diversas bibliotecas. Destacamos as


Bibliotecas da UFBA: da Faculdade de Arquitetura (FAU), da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas (FFCH), do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO); também em
Salvador a Biblioteca da Universidade Católica do Salvador (UCSal) e Biblioteca Central
do Estado da Bahia; a Biblioteca da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade
Agostinho Neto, em Luanda, Angola e as Bibliotecas da Faculdade de Arquitectura e
Planeamento Físico (FAPF) e do Centro de Estudos Africanos (CEA), ambas da
Universidade Eduardo Mondlane (UEM), em Maputo, Moçambique. E ainda as fontes
bibliográficas disponíveis on line, em diversas bibliotecas virtuais e repositórios digitais,
contendo publicações, dissertações e teses do Brasil e do exterior.

Compuseram a pesquisa consultas aos acervos da Fundação Mário Leal Ferreira (FMLF),
vinculada à SEDHAM (Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e
Meio Ambiente). Infelizmente, a prefeitura não dispõe de um cadastro atualizado da
estrutura fundiária do município de Salvador, datando de 1977 o Inventário de
Loteamentos, não oferecendo outros dados disponíveis.

Outro material utilizado foram as matérias de jornal, tanto da FMLF, bem como da
Fundação Gregório de Matos (FGM). Também foram consultados o PDDU/2008, Plano
Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município do Salvador (Lei Nº 7.400/2008), e a Lei
de Ordenamento do Uso e da Ocupação do Solo: a LOUOS/1984 (Lei Nº 3.377/1984), na
versão digital com a disponibilização de mapas interativos, e a LOUOS/2012 (Lei Nº
8167/2012), recentemente aprovada, na qual não se prevê nenhuma alteração
urbanística em relação ao bairro do Engenho Velho da Federação. Tais fontes foram
também utilizadas como recurso gráfico de ilustração da pesquisa.

No que tange ao acervo do INFORMS (Sistemas de Informações Geográficas do Estado


da Bahia), vinculado à CONDER (Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da
Bahia), nos foram cedidas pela Coordenação, Fotografias Aéreas Verticais do bairro do
Engenho Velho da Federação. Junto ao IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), tivemos acesso aos dados estatísticos do Censo 2010 dos set ores
censitários.

77
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Também compuseram fontes de pesquisa documental matérias on line e vídeo-


documentários produzidos através de editais, que entendidos como referências
articuladas a partir de uma perspectiva “de dentro”, envolvendo profissionais íntimos das
culturas negras, ou por vezes, também moradores do bairro, como é o CD do Volume IV
das Enciclopédias da Cidade: Natureza e Cultura, Trilhas no Tempo da Federação, de
2005, e a produção dos DVD’s dos vídeo-documentários Makota Valdina: um Jeito Negro
de Ser e Viver, de 2005, e do O Engenho Novo Descobrindo o Engenho Velho, de 2007.

Com avanços e retrocessos próprios da elaboração de pesquisa, que geram


processamento de informação, articulação de ideias e produção de conhecimento, damos
sequencia ao Capítulo 2.

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Cap. 2 - SALVADOR E O BAIRRO DO ENGENHO VELHO DA FEDERAÇÃO

Esta tese está no âmbito da espacialização urbana de populações negras, tendo, como
pano de fundo, a cidade de Salvador, Bahia, escolhida nesta tese pela peculiaridade
histórica de concentração de populações negras no Brasil.

A título de esclarecimento do encadeamento dos itens seguintes: no subitem a seguir,


faremos um breve histórico dos processos de ocupação da cidade de Salvador, uma vez
que já existem muitos escritos, por muitos autores, já mencionados no Referencial Teórico.

Em seguida, evidenciaremos ideologias e idealizações urbanas que pautaram os processos


de transformação da cidade. E, nestes processos, como segmentos de populações negras
ocuparam áreas centrais e periféricas da cidade. No subitem seguinte, temos a descrição do
lugar da pesquisa propriamente dito, o bairro do Engenho Velho da Federação.

2.1. A Cidade de Salvador e suas Transformações

Salvador surge de relações globais de produção, tendo como base, à época, o sistema
mercantilista. A Cidade do Salvador, fundada em 1549, foi criada, segundo Paulo Ferreira
Santos (2001), após o insucesso das capitanias, com o objetivo de ser centro militar,
administrativo, fazendário e judiciário de toda a Colônia, sob domínio do Estado Português,
“situada quase no centro geométrico da costa conhecida” (2001, p. 87). A fundação da primeira
capital do Brasil, São Salvador, marca o começo de uma nova etapa da colonização do Brasil.

A escolha desta localidade é justificada pela favorável condição geográfica. A elevação


rochosa, que sedia a Cidade Alta, forma o frontispício, a falha geológica, que desce
constituindo junto ao mar a planície da Cidade Baixa. Além da posição militar estratégica,
favorecendo tanto a defesa, quanto o ataque, a cidade é envolta pela Baía de Todos os
Santos, propiciando uma adequada área portuária natural com suas águas protegidas do
Oceano Atlântico pela península de Itapagipe, região beneficiada ainda pela abundância de
águas de vários rios. Assim, na instituição do Governo-Geral, na cidadela de Tomé de
Souza surgiram muros, baluartes, fortes, fortalezas e edifícios públicos. Salvador perde o
posto de capital da Colônia quando, em 1763, a função administrativa é transferida para a
cidade do Rio de Janeiro (AZEVEDO, 1969; SANTOS, 1959; MATTOSO, 1992).

Segundo Mattoso (1989), a cidade foi criada conforme o modelo português do termo e do rossio,
cujos limites administrativos, o termo, era o espaço sobre o qual se exercia o poder municipal.
Nos espaços regidos pela sociedade dominante, a igreja católica foi, além do papel religioso e
do controle social, protagonista na organização do espaço nas cidades coloniais brasileiras.

79
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Angela Gordilho-Souza (2008) nos oferece um panorama de como se organizava o espaço


urbano da cidade de Salvador, a partir das freguesias28, cuja divisão eclesiástica, e também
administrativa, tendo como sede a igreja matriz voltada para uma praça, o adro, envolto por
habitações, sendo muitas destas moradias construídas e arrendadas pela própria paróquia.
Também grandes extensões de terras urbanas eram subdivididas com esta finalidade, cuja
regulação era dada pela igreja “de acordo com os seus próprios parâmetros de uso e ocupação”
(2008, p. 85). E à medida que a cidade se expandia, criavam-se novas freguesias urbanas e
suburbanas. Mais tarde, a ocupação extramuros se estendeu sobre a escarpa, ramificando-se
pelas áreas de cumeadas contíguas, indo em direção à Orla Oceânica.

Em Santos (1959), temos a cidade de Salvador contextualizada neste processo como cidade
portuária, desde o período colonial, tendo sua economia baseada no comércio internacional de
importação e exportação, produtos produzidos pela economia regional, sobretudo do Recôncavo
Baiano, passando pelo porto da cidade grandes quantidades de cana, café, algodão, fumo e cacau.

O porto de Salvador também recebeu grandes contingentes de população africana. Um grande


percentual de pessoas trazidas de várias partes do continente africano seguia para as áreas
rurais do interior da província da Bahia e também para outras províncias da Colônia. Salvador,
como sede político-administrativa, reteve um número significativo de africanos que se dedicavam
aos trabalhos urbanos e/ou semi-urbanos. A dinâmica populacional da cidade colonial era de
uma sociedade escravista, com duração de quase quatro séculos.

Santos (1959), em análise do crescimento urbano de Salvador, observa que as cumeadas eram
as áreas preferidas pelas elites, constituindo as ocupações iniciais, ficando, portanto, os vales
ocupados posteriormente, de forma infraestruturada. São estas áreas a serem ocupadas por
populações negras, como veremos adiante.

O trabalho de Costa (1989) apresenta, de forma detalhada, como as populações negras


moravam nas áreas centrais da cidade, as condições de moradia de escravizados urbanos nas
‘lojas’, sótãos e porões dos sobrados e casarões setecentistas ou quartos alugados em casa de
cômodos, no espaço urbano modelado à maneira colonial portuguesa, no mesmo endereço dos
escravizadores. Para a realização destas atividades urbanas, os escravizados poderiam se
condicionar a possíveis alternâncias entre escravizados domésticos, de aluguel ou de ganho,
extrapolando os limites domésticos.

28
Esta divisão territorial foi abordada por diversos autores, em que aparecem também as freguesias rurais ou
suburbanas:
AZEVEDO, T. op. cit.;
VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia do Século XVIII. Salvador: Itapuã, 1969;
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX. São Paulo:
Hucitec; Salvador (BA): Secretaria Municipal de Educação e Cultura, Departamento de Assuntos Culturais, 1978.
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Dez freguesias da Cidade do Salvador: aspectos sociais e urbanos do
século XIX. Salvador: FCEBa/EGBa, 1986.
80
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Mais importante do que a identificação destas moradias junto aos escravizadores, no


entanto, o trabalho de Costa (1989) é, para nós, mais útil na medida em que a autora
delineia os espaços constituídos pelos próprios negros em cantos e fluxos na cidade: “A
existência de diferentes condições de moradia para os trabalhadores escravos vai
influenciar na organização do espaço da cidade” (p. 09).

Estas áreas que se constituíram em cantos eram pontos estratégicos nas proximidades de
fontes e chafarizes, concentrando aguadeiros e lavadeiras, por exemplo, ou ganhadeiras
junto às quitandas e aos mercados, como também nas adjacências de largos e irmandades,
espalhados pela cidade. Os cantos de Salvador eram constituídos pelos trabalhadores-de-
canto, que por sua vez se organizavam em associações-de-canto: Largo da Calçada, Largo
do Cais do Ouro, Largo do Portão de São Bento, Largo da Piedade, Largo da Vitória, Cais
Dourado, Campo lateral da Igreja da Soledade, Praça dos Quinze Mistérios, Largo da
Saúde, Campo da Pólvora, Praça do Comércio, Largo do Pelourinho, Largo do Cabeça
(NASCIMENTO, 1989; COSTA, 1989, 1998; SOARES, 1996; REIS, 1986).

O perfil populacional de Salvador apresentava, e ainda apresenta, percentuais elevados de


populações negras, nos seus diferentes status sociais (livres, escravizados e libertos). Ao final
do século 19, Mattoso (1992) informa, com dados do recenseamento de 1972, que, dos 108 mil
habitantes, 66,5% da população era de negros e mestiços, 30,9% de brancos e 2% de caboclos.

Os negros eram, assim, responsáveis por fazer a cidade funcionar. As atividades urbanas
iam desde os trabalhos rudes como os tigres (recolhedores de detritos), aguadeiros
(carregadores d’água), liteiros (carregadores de cadeira de arruar), tropeiros, lenheiros,
carvoeiros, oleiros, carpinteiros, lavadeiras, engomadeiras, vendedoras de tecidos,
costureiras, artesãos, remadores, marinheiros, pescadores, vendedores de pescados,
carroças e carruagens, aos mais elaborados e sofisticados como funileiros, calafates,
caldeireiros, construtores civis e de embarcações, tecelões, marceneiros, sapateiros,
barbeiros, chapeleiros, alfaiates, modistas, escultores, ourives e músicos (REIS, 1986).

Costa (1989) evidencia que havia uma parcela de população negra (escravizada, liberta ou
livre) que residia em áreas periféricas, fato possível dadas às categorias do trabalho, de
aluguel ou ganho, sendo

eles mesmos responsáveis pelo custeio de sua moradia. Eram, sobretudo,


os que exerciam atividades no ganho. A própria forma como estava
organizado o trabalho do escravo de ganho demandava uma certa
autonomia para o mesmo, o qual podia negociar livremente o seu trabalho
(COSTA, 1989, p. 188).

81
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Segundo Costa (1989), esta relativa liberdade permitia que escravizados pudessem,
mediante autorização policial, pernoitar e até mesmo morar em outro local mesmo que não
fosse a residência do escravizador, embora houvesse o controle de aluguel a escravizados,
através de autorização especial, provavelmente emitida pela Câmara Municipal. Este
controle do poder público visava prevenir as fugas individuais, bastante frequentes, além de
tentar evitar as revoltas e insurgências dos africanos escravizados, uma vez que havia um
grande sentimento de insegurança pelas constantes ameaças. Controlava-se a venda de
armas de fogo, facas, drogas venenosas. Também os ajuntamentos negros, como eram as
associações-de-canto, eram vigiados. Assim buscava-se promover o estabelecimento da
ordem na cidade e do próprio regime escravista, uma vez que a cidade vivia num estado
permanente de tensão social. Posturas e leis atuavam não só sobre os escravizados, mas
também sobre os libertos.

Apesar deste controle, ainda assim, havia certa autonomia para uma vida social entre os
negros brasileiros e africanos, livres, escravizados e libertos no espaço urbano.

Assim, segundo Gomes, “o espaço da cidade foi sendo organizado e reapropriado, na


medida em que eram incorporadas novas áreas ao tecido urbano ao mesmo tempo em que
ocorria a reapropriação das áreas preexistentes” (1990, p. 219).

Costa (1989) destaca que a ocupação das áreas periféricas das freguesias da cidade era,
sobretudo, de iniciativa de pessoas libertas e cita Maximiliano de Habsburgo29 na sua
descrição sobre “a existência de choupanas construídas com varas, barro e folhas de
palmeiras, na região do Dique” (p. 197). A autora destaca ainda outras construções em
melhores condições como casas de taipa de mão, de coberta de telhas e casas
assobradadas. E Reis cita Inês Oliveira sobre as casas modestas: “morada de casas de
palha, de bofetão, de taipa, de pedra e cal, geralmente térreas, de porta e janela, quase
sempre em terrenos foreiros a conventos, igrejas ou grandes proprietários urbanos” (apud
REIS, 1986, p. 220).

Marco Aurélio Gomes (1990) evidencia a ocupação da periferia de Salvador ao longo do


século 19 apontando como a cidade era cercada de quilombos, de roças de libertos e, a
partir do final do século 19, de terreiros de candomblé. O autor explica que a referência a
candomblés na periferia de Salvador (que na atualidade está nas proximidades do centro da
cidade) aparece em inúmeros trabalhos que estudaram o processo de reorganização e
reelaboração das religiões de matriz africana na Bahia, sendo expressa na própria
toponímia de Salvador, reveladora desse processo.

29
HABSBURGO, Maximiliano de. Bahia 1860: esboços de viagem. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Salvador:
FCBA, 1982.
82
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Gomes (1990) destaca que, enquanto nas partes centrais da cidade as denominações dos
lugares são referenciais às igrejas, capelas e conventos referentes às freguesias, como
Conceição, Pilar, Ajuda, Sé, Nazaré, Desterro, Palma, Lapa, São Pedro, Carmo, Santo
Antônio, Santana, grande parte das denominações dos lugares nos arredores da cidade
remete a uma territorialização do negro, que escapava ao controle do branco. O autor ainda
faz referência à origem da toponímia, apoiado em autores como Íris Nascimento, Edison
Carneiro e Arthur Ramos: Cabula, cujo nome é de uma seita africana já desaparecida; Beiru,
que provavelmente derivado de eiru, rabo de boi, insígnia de Oxóssi, deus da caça; Goméia,
cuja origem pode ser uma corruptela da forma portuguesa de Daomé; Bonocô,
anteriormente Gunucô, corruptela de Igunnuko, local onde havia um culto de Baba
Igunnuko; [Vale do] Ogunjá, referente ao terreiro lIê Ogum Ja, ali existente, etc.

Na cidade de Salvador, os registros de terreiros aparecem desde meados do século 18,


como o Candomblé da Barroquinha, por exemplo. Mas no século 19 muitos deles já estão
consolidados nas suas localidades atuais. Segundo Costa (1989), existiam por todas as
áreas da cidade lugares rituais como rios, fontes ou lagoas como também a localização de
batuques, sendo esta a denominação costumeira dos terreiros à época, tanto nas áreas
centrais, quanto em áreas periféricas ou semi-rurais.

No espaço urbano ou mesmo nas residências nas áreas centrais, Costa ressalta sobre as
repressões e o controle do culto religioso e das manifestações lúdicas dos negros, desde o
século 17, através de posturas municipais que proibiam o uso de atabaques e marimbas.

Mesmo com a imposição da autorização policial para funcionamento30, os terreiros


mantiveram sua resistência e os processos de ocupação se consolidaram na cidade, e
também no interior do estado, sobretudo no Recôncavo Baiano, desde o século 19. Assim,
também por este motivo, além das condições naturais favoráveis aos cultos, as áreas
escolhidas para a instalação dos batuques eram as áreas periféricas da cidade. Como
aponta Nascimento (1989):

Essa situação parece ter sido condicionante importante na busca de lugares


afastados do centro, longe de uma vizinhança que não tolerava o som de
seus tambores e suas danças, denunciando-os frequentemente à polícia ou
em reclames de jornais. O caráter secreto de vários rituais, sobretudo
aqueles realizados em espaços abertos tendo como cenário a natureza e
facultados somente à comunidade religiosa exigem máxima privacidade do
ambiente externo ao terreiro. Esta especificidade - o andamento do ritual -
exigiu áreas distantes dos locais densamente povoados, eliminando-se a
indesejável indiscrição da população (NASCIMENTO, 1989, p. 80).

30
A autorização policial, emitida pela desativada Delegacia de Jogos e Costumes, teve a exigência suspensa
somente em 1976, a partir do Decreto Nº 25.095/76 assinado pelo então governador Roberto Santos.
83
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Lembramos que estas ocupações nas áreas periféricas foram possíveis devido às condições
de acesso à terra, a custos mais baixos, ora mediante compra, ora por arrendamento, por
constituírem áreas não urbanizadas, muitas vezes áreas de mata fechada.

Podemos ver espacializados no Mapa elaborado por Ana de Lourdes Costa, no qual a
autora identifica 14 batuques em meados do século 19, assim denominados (Planta 05),
anexo de sua Dissertação de Mestrado, conforme Figura 8.

84
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Identificamos no Mapa de Costa os ‘batuques’ na Freguesia da Vitória, que abarca a área


em estudo do Engenho Velho da Federação: a Casa Branca, identificada pelo número 7, e
localizado pelo número 12 está o Terreiro do Bogum.

Com esta visualização espacial oferecido pelo Mapa da Figura 8, podemos compreender
como é valioso e preponderante o papel dos terreiros no processo histórico de ocupação
urbana, pela via das sociedades subalternizadas e que constitui o maior contingente
populacional da cidade de Salvador.

Gomes (1990) nos apresenta um breve panorama da freguesia da Vitória que, apesar de ser
uma mais antigas da cidade, possuía larga extensão de terras semipovoadas, com exceção
das regiões do Corredor da Vitória, do Campo Grande de São Pedro e do Canela, que eram
ocupadas principalmente por chácaras, e a região da Barra, primeiro núcleo de povoação da
cidade. Na altura de Santana do Rio Vermelho, na época um povoado de pescadores, a
freguesia fazia divisa com a freguesia de Brotas.

Temos nas palavras de Nascimento (1989), a respeito da expansão urbana em Salvador que:

Esses espaços, relativamente próximos à área urbanizada e, até certo


ponto, com facilidade de acesso eram preteridos pelo branco, constituindo-
se numa opção de escolha para o negro. [...] O estabelecimento de
territórios culturais do negro nestas áreas se delineou com uma dimensão
cultural tão forte, que esses espaços foram, durante muito tempo,
segregados pelo branco, o que reforçou ainda mais o poder de apropriação
do negro (NASCIMENTO, 1989, p. 37).

E também em Risério temos a reprodução da hipótese de Günter Weimer, em relação à


cidade de Salvador:
As ruas principais passaram pelo topo das colinas e eram reservadas aos
senhores brancos; as encostas da cidade se encheram de negros, que ali
puderam fazer efusiva aplicação do traçado das cidades africanas
(WEIMER, 2004 apud RISERIO, 2012, p. 156).

Entendemos que as ocupações de encostas não se deram exatamente como uma aplicação
direta do traçado das cidades africanas, mas constituídas, sim, pela dinâmica cultural afro-
brasileira reconstituída, principalmente, pelos terreiros.

Mas é no século 19, segundo Pinheiro (2011), que Salvador passa pelas transformações
mais significativas, recebendo influências do urbanismo europeu e adaptações de projetos
urbanísticos e intervenções para novas tecnologias, reagindo às mudanças econômicas.
Segundo Fernandes e Gomes (1993), são mudanças pautadas por “idealizações de cidade
elaboradas por segmentos das classes dominantes” (p. 66) que passam pela “idealização de
uma cidade branca e europeizada” (p. 64).
86
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Na transição entre os séculos 19 e 20, com a abolição da escravatura e o advento da República, a


cidade de Salvador, em circunstâncias semelhantes às de outras cidades tendo como exemplos
Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Porto Alegre, entre outras, é submetida a novas perspectivas
ideológicas de modernidade, que buscavam um novo modelo de cidade e de sociabilidade, com
novas práticas sociais, oferecendo subsídios à implantação da República (LEME, 2005).

Movidos pela ideologia do progresso e de civilização, visando abrir espaços para maior
salubridade da cidade, buscava-se substituir o velho, a Cidade Colonial, pelo novo, a Cidade
Moderna. Criou-se, então, o discurso sobre a cidade no qual surgiu a dicotomia: tradição x
progresso; feio, sujo, doença x belo, limpo, saudável; morte x vida; desordem x ordem. O
espaço público, especialmente a rua, devia ser, pois, a expressão dos padrões de beleza,
limpeza e ordem. A rua precisava reunir os atributos e as condições indispensáveis à saúde,
à moralidade do corpo físico e social da cidade (PECHMAN, 1992 apud FLEXOR, 1998).

Lembramos que as instâncias políticas sempre fizeram uso de remodelações espaciais,


através da arquitetura ou de intervenções urbanísticas, como forma de afirmação de poder e
prestígio politico. Seguindo o novo modelo de cidade e de sociabilidade que se estende para
várias capitais brasileiras, a partir de referências da cidade do Rio de Janeiro, Salvador
também adota as novas iniciativas de medidas para intervenções urbanas (PINHEIRO, 2011;
FERNANDES, SAMPAIO e GOMES, 2005).

Desta forma, discursos foram postos em prática e efetivados no espaço urbano através das
reformas e dos melhoramentos urbanos que tiveram intuito de ‘sanear’ o país, pautado pelo
discurso do controle higiênico da cidade e da modernidade. As obras de melhorias urbanas
que no Império eram associadas à limpeza urbana, passam a incorporar, no final do século
19, as iniciativas de medidas para intervenções urbanas mais efetivas, apresentando as
primeiras obras de saneamento, prevenindo as enchentes e combate às epidemias, através
de canalização de rios, drenagem; retificação, alargamento e pavimentação de ruas;
instalação de trilhos para bondes e substituição do uso das fontes pelos chafarizes públicos.

No contexto baiano, de maneira efetiva e com a viabilização pela conjuntura favorável do


cacau houve na região do porto de Salvador, iniciando-se em 1906 e encerrando-se em 1921,
a intervenção de modernização portuária, com a implantação de avançados conhecimentos
tecnológicos: guindastes móveis sobre trilhos, linhas férreas e construção de cais e armazéns.

Em 1910, um plano de melhoramentos foi elaborado para a cidade de Salvador pelo engenheiro
Jeronymo Teixeira de Alencar Lima, com o plano Projetos de Melhoramentos de Parte da
Cidade do Salvador concentrado na Cidade Alta e intervenções pontuais na Cidade Baixa, com
previsão de mercados, parques e jardins, escolas, sanitários públicos, uma rede coletora de

87
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

águas pluviais e cerca de 250 casas operárias. Mas as ideias de modernização da cidade,
segundo Fernandes, Sampaio e Gomes (2005), só se concretizaram de forma significativa nos
governos de J. J. Seabra, no primeiro período de 1912 a 1916, e no segundo, de 1920 a 1924.

A remodelação e ampliação do centro de negócios na Cidade Baixa constituíram áreas


conquistadas ao mar, alargamentos, retificações e aberturas de ruas com 20,00m de
largura. Estas intervenções também se desdobraram sobre a península de Itapagipe,
ligando o Mercado do Ouro e a Avenida Jequitaia. A Cidade Baixa, com sua topografia plana,
recebeu, em seu desenho, um traçado xadrez (FERNANDES, SAMPAIO e GOMES, 2005).

Fernandes, Sampaio e Gomes (2005) apontam que as atuações urbanísticas sobre a cidade
caracterizaram-se pela ênfase às questões técnicas, no sentido de manter a fluidez e a
salubridade do meio físico e às questões estéticas em razão de originar novos modelos de
cidade e de sociabilidade urbanos e sociais. Se a Cidade Alta, colonial, se constitui por sua
formação urbana com ruas estreitas, tortuosas, adaptadas à geografia do sítio natural,
excetuando-se apenas seu núcleo central, nestas idealizações da cidade busca-se a ruptura
com o passado colonial através de planos com caráter demolidor e reformista, pautados
pela “rigorosa geometrização e despreocupado com as preexistências” (FERNANDES,
SAMPAIO e GOMES, 2005, p. 174), reflexo de um progresso predador e desrespeitador da
história e da cultura. Em 1905, o engenheiro Theodoro Sampaio elabora um Relatório31,
deixando entrever a necessidade de um plano para a cidade, prevendo intervenções na
habitação, no saneamento e no espaço público. Fernandes, Sampaio e Gomes fazem a
ressalva a este engenheiro, sendo uma exceção porque, além de engenheiro, Theodoro
Sampaio era também historiador e mantinha uma relação entre os problemas técnicos e as
particularidades do meio social em que os novos objetos estavam inseridos.

Estas transformações urbanas demandaram um grande número de trabalhadores. As


grandes obras ocasionaram um grande movimento populacional do interior da Bahia,
sobretudo do Recôncavo Baiano que, quando chegavam em Salvador, não encontraram
condições habitacionais favoráveis. Neste ínterim, as áreas periféricas da cidade foram
ocupadas, mesmo não estando infraestruturadas.

Apesar das referências relativas às preocupações sociais contidas nos planos, com a
previsão, por exemplo, de habitações, esvaziou-se a questão social. Com esta perspectiva
ideológica de modernidade, as reformas e os melhoramentos urbanos nas áreas urbanas
centrais das cidades, em diversas cidades brasileiras, acabaram por levar a população
negra e pobre para áreas cada vez mais distantes dos centros urbanos.

31
Relatório dos Estudos para o Novo Abastecimento d’Água da Cidade da Bahia, elaborado em 1905 (Arquivo
Histórico Municipal da Fundação Gregório de Mattos).
88
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Com uma cidade que, em fins do século 19, possuía aproximadamente 75% de população
de negros e mestiços, a elite que se pensava (ou se desejava) branca buscava novas áreas,
antes ocupadas por chácaras, como a Vitória, a Graça e a Barra:

Se o secular passado colonial e escravista de Salvador impede a concretização


de um projeto de cidade branca, este tenderá a se setorizar, “materializando-se”
nos bairros burgueses que então se formam, com suas ruas arborizadas e com
seus palacetes que citam a renascença italiana ou o classicismo francês em
meio a jardins floridos (FERNANDES E GOMES, 1993, p. 64).

Neste novo modo de vida urbano, estranho, exterior, exógeno, abstrato, vemos a ideologia
gerando formas urbanas, modelando a cidade.

E este idealismo, conforme Sampaio (1999), se constituiu:

No plano social e ideológico, após o mercantilismo e o escravagismo, foram


os negros entregues à própria sorte, permanecendo no Império e
desdobrando-se nas manifestações racistas mais contemporâneas. Como
exemplos vivos desta segregação espacializada, pode-se falar dos bairros
do Curuzú, Liberdade, Alto do Bogum, etc. (SAMPAIO, 1999, p. 146).

A partir desta segregação espacializada, social e urbanística, a questão da moradia,


surpreendentemente, não se resumiu à questão da habitação, enquanto abrigo, mas se
ampliou, em muitos bairros, em outras possibilidades para além da vida urbana decorrente
de um modelo de sociedade industrial capitalista consumista.

E é neste período que as populações negras se veem impelidas a ocupar as áreas


periféricas da cidade. Assim, ao refletirmos sobre a estruturação da cidade acompanhando a
instalação dos terreiros, pode-se aventar processos distintos de ocupação do solo.

Os terreiros de candomblé foram elementos povoadores da cidade. Através de Jocélio Teles


dos Santos, temos no cronista J. da Silva Campos: “os candomblés derramavam-se por toda
a cidade e pelos subúrbios” (apud SANTOS, 2009, p. 04). Temos em Mattoso (1992) que os
terreiros estabeleceram-se nas freguesias semi-urbanizadas, como as de Vitória e de
Brotas, que ofereciam condições ideais de funcionamento, onde também se instalaram
negros provenientes do interior.

Gomes (1990) também nos indica sobre a ocupação da periferia da cidade:

Ainda que esta não tenha se dado, no período em pauta, de forma contínua
e extensiva, mas por "manchas" isoladas, parece que ela respondia
efetivamente ao que poderíamos chamar de uma "dinâmica negra": com
efeito, rastrear a ocupação da enorme periferia de Salvador no século XIX
é, sobretudo, deparar-nos com a existência de "territórios negros":
quilombos, roças e candomblés (GOMES, 1990, p. 12).

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Segundo Gomes (1990), a ocupação das áreas intersticiais nas partes mais antigas da
cidade, as "brechas" e, sobretudo, a ocupação de sua periferia, representa um capítulo da
história da estruturação espacial de Salvador. O autor também reflete sobre a quantidade de
inúmeros estudos históricos sobre habitação no Brasil e sua importante contribuição nas
relações com a industrialização e com a emergência de novos padrões urbanos, mas indaga
também “sobre o que escapava à lógica industrial da acumulação capitalista” (p. 18).

No caso desta pesquisa, investigamos o bairro do Engenho Velho da Federação e sua


relação com os terreiros de candomblé, exatamente neste sentido, como um bairro que, em
parte, escapa às lógicas das relações de produção.

2.2 - Bairro do Engenho Velho da Federação

Neste tópico, apresentamos descrições do lugar da pesquisa, o Engenho Velho da


Federação. Expomos seus aspectos históricos, sua caracterização, pontuando a questão
fundiária, o perfil dos moradores e a morfologia urbana, e finalizando com os terreiros do bairro.

2.2.1 - Aspectos Históricos do Engenho Velho da Federação

Numa análise do global, segundo Santos (1985), cada localização é resultado de um imenso
movimento do mundo, sendo a localização um resultado de um feixe de forças sociais sobre
um lugar.

Seguindo o raciocínio de Santos, no caso do Engenho Velho da Federação, nossa análise


parte, fundamentalmente, de sua população negra que aqui se concentrou como parte de
um movimento do todo social apreendido neste ponto do mundo.

Temos aqui, precisamente no bairro do Engenho Velho da Federação, uma das porções da
cidade de Salvador onde vivem populações descendentes de africanos que guardam
referências culturais advindas do outro lado do Oceano Atlântico, do continente africano,
como parte deste mesmo imenso movimento do mundo.

Numa análise pautada nas relações de produção e se, neste contexto, cada lugar, a cada
momento, tem um papel próprio no processo produtivo (SANTOS, 2006), o Engenho Velho
da Federação também é parte do processo direto de produção (circulação, distribuição e
consumo), cumprindo uma determinada função do capitalismo.

O espaço é resultado de sua história, mais precisamente da história dos processos


produtivos impostos ao espaço pela sociedade e apresenta em sua paisagem o resultado
cumulativo desses tempos, como proposto por Santos (2006). No caso do Engenho Velho

90
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

da Federação, pode-se dizer que é um bairro constituído por moradores descendentes de


africanos escravizados, e que atualmente é composto, em grande parte, por trabalhadores
com baixos salários por exercerem, em sua maioria, atividades pouco ou mal remuneradas
dadas as imposições históricas a estas populações.

A urbanização baseia-se em uma organização do espaço seguindo uma hierarquia dos


lugares. Segundo Santos (2006), o trabalho e o saber intelectuais, pela ótica ocidental
(saber institucionalizado), tendem a ser cada vez mais valorizados do que o trabalho dito
braçal. Esta acepção ocidental de separação mente x corpo desconsidera que toda e
qualquer atividade humana exige um esforço intelectual, desvalorizando os trabalhos não
qualificados institucionalmente, “justificando” a destinação do Engenho Velho da Federação
à pobreza, como uma função (e não disfunção) do capitalismo.

Temos também em Santos, que um lugar é um dado concreto em função (específica) das
condições atuais da sociedade. Se, numa leitura a partir das relações de produção
capitalista do Engenho Velho da Federação, o bairro se consolidou através de
arrendamentos de porções de terras de fazendas desativadas, hoje, numa leitura ampliada e
inclusiva, o mesmo bairro é uma referência de resistência histórica da cultura negra dada
pela concentração de terreiros. Vemos que a história oral nos mostra que o bairro era
conhecido por Bogum ou Alto do Bogum, em referência ao Terreiro do Bogum, muito antes
de ser nomeado de Engenho Velho da Federação.

Deste modo, nosso entendimento histórico do bairro, já colocado anteriormente, surge


expondo o protagonismo destes moradores-fundadores do bairro através da história oral,
obtida pela coletânea de relatos da memória coletiva de moradores do bairro, como eixo
principal, complementados por outras fontes documentais: bibliográficas, jornais, fotografias
e internet; muitas destas fontes também são suportes desta metodologia das fontes orais.

O processo de territorialização pelas populações negras foi constituído na cidade de


Salvador, desde o período escravista, gerando um 'fio invisível’ marcado pelas
territorialidades culturais afro-brasileiras, conformando identidades étnicas.

Em nossa pesquisa, este território negro, para além das inscrições disseminadas nas
manifestações pontuais afrodescendentes no conjunto da cidade em fins do século 19 ao
início do século 20, é um lugar de fixação de populações negras no processo de construção
de seus lugares de moradia.

Entendemos que, no caso do bairro do Engenho Velho da Federação, a identidade étnica foi
o principal meio agregador destas populações, através dos vínculos religiosos articulados
pelos terreiros e suas relações religiosas engendradas pelas famílias-de-santo.

91
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

O bairro do Engenho Velho da Federação, como agrupamento populacional de negros com


peculiares características culturais, surge como nucleação de descendentes de africanos em
torno da instalação de muitos terreiros. Não só nos limites do atual bairro do Engenho Velho
da Federação, mas também no Caminho do Rio Vermelho, havia um conjunto de terreiros
instalados nas áreas adjacentes do bairro e que hoje constituem as localidades e bairros do
Alto do Sobradinho, Alto do Cangira, Engenho Velho de Brotas e Acupe. Segundo Nina
Rodrigues (apud NASCIMENTO, 1989, p. 46), só nesta estrada havia 06 terreiros.

Conhecida por Joaquim dos Couros, nas pesquisas de Parés (2006), a localidade dos
terreiros do Pau Zerrém (extinto), do Bogum e, posteriormente, da Casa Branca, era uma
área afastada do centro, cujos batuques não despertavam a atenção das autoridades
políticas e policiais. Esta localidade estava a meio caminho entre o núcleo urbano de
Salvador e o Rio Vermelho, na época uma importante comunidade de pescadores negros32.

Diante da investigação de Parés e pela configuração urbanística atual do bairro do Engenho


Velho da Federação, inferimos que a instalação dos terreiros no bairro se fez pelo vale do
atual Rio Lucaia, que hoje corresponde à Av. Vasco da Gama (antigo Caminho do Rio
Vermelho e, depois, Estrada Dois de Julho), sendo o caminho que levava ao Rio Vermelho.

Temos na Figura 9 como era a atual Av. Vasco da Gama, com a linha do bonde elétrico, que
segundo Seu Valter, é a Linha 15. Vemos na imagem antiga a figura de uma mulher negra
com uma saia longa, seu pano da costa e seu tabuleiro na cabeça, junto à linha do bonde. A
fotografia mostra uma região de vegetação densa e que, de fato, exceto pelo transporte
coletivo, era uma região totalmente desprovida de infraestrutura urbana.

32
Com presença marcante, esta comunidade constitui uma territorialidade negra, que se mantém viva na
atualidade através da Colônia de Pescadores do Rio Vermelho, promotores da Festa de Iemanjá que ocorre
anualmente em Dois de Fevereiro.
92
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 9 - Bonde elétrico na rota Trilhos Centrais de Rio Vermelho (entre 1869-1928), atual Av. Vasco da Gama.
Fonte: Coleção Allen Morrison. Disponível em: <http://www.tramz.com/br/sv/sv22.html>. Acesso em: 26 Fev. 2013.

Segundo Parés, nesta região de muito mato, oferecia todo tipo de folhas para as práticas
religiosas. O mato fechado era também uma estratégia de proteção do terreiro, dificultando
a visibilidade e o acesso de pessoas estranhas à comunidade religiosa, sendo conveniente
também pela proximidade do Rio Lucaia, que à época era rio de água límpida e potável,
necessário para as obrigações do candomblé.

O crescimento da cidade, a abertura de estradas e a implantação de transportes, como as


atuais avenidas Vasco da Gama e Cardeal da Silva, ocorria paralelamente à instalação dos
terreiros, favorecendo, portanto, cada vez mais, à criação de um território que englobasse as
necessidades culturais-religiosas e de moradia.

O acesso à região do bairro pelas cumeadas, a partir da região central da cidade, no


Canela, seguia pela Rua Padre Feijó, subindo a Ladeira do Campo Santo, dando sequência
à atual Av. Caetano Moura. Passando sobre a Av. Anita Garibaldi, atravessando o antigo
Segundo Arco, “construído pelos nagôs”, segundo Seu Eliomar, chega-se à antiga Estrada
da Federação, a atual Cardeal da Silva, via mais consolidada urbanisticamente, que também

93
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

era conhecida em um trecho por Mata-Maroto, e em direção ao Rio Vermelho era chamada
de São Gonçalo. Seu Valter se recorda bem das linhas de bonde:

O bonde era Rio Vermelho de Baixo, Linha 15; na Cardeal da Silva, era
Federação, Linha 7, que passava pelo Segundo Arco; o bonde que passava
por baixo, na Garibaldi, era Rio Vermelho de Cima, Linha 14.

Na entrevista com Tonho, este menciona que os terreiros antigos sempre se instalaram
geograficamente nas partes elevadas da cidade33. Esta também é uma observação de Parés
em relação ao seu estudo sobre o Terreiro do Bogum (no topo do morro, ainda mais elevado
que a Casa Branca), oferecendo facilidade de visibilidade em caso de defesa contra as
perseguições policiais, além de, naturalmente, pela nossa dedução, oferecer maior conforto
ambiental (ventilação e insolação) e salubridade (escoamento das águas pluviais).

Segundo Parés (2006), o Terreiro do Pau Zerrém (ou Pó Zerrém), já extinto, era um terreiro
jêje-mundubi e parece ser anterior ao Bogum, jêje-mahi, mencionado também pelo Seu Valter,
morador antigo do Engenho Velho da Federação, cuja liderança religiosa era o Seu Aprígio.

O Terreiro do Bogum, também chamado pelos moradores simplesmente por jêje pela sua
especificidade, parece ser o terreiro existente mais antigo do bairro, cuja data de fundação é
incerta. Vivaldo da Costa Lima aponta: “antigo terreiro jêje do Bogum, terreiro importante ao
ponto de dar [...] seu nome a todo o bairro em que se situa” (COSTA LIMA, 1977, p. 20).

Na investigação documental de Parés (2006), este deduz que a origem do terreiro seja em
torno de 183034. Segundo o Mapeamento de Terreiros, o Terreiro do Bogum tem sua
fundação em 1835, no entanto, o Laudo Antropológico elaborado por Serra et al (2007) não
confirma a data.

Parés (2006), a partir de versões sugeridas por Antônio Monteiro e Jehová de Carvalho,
entre outras, aponta para uma versão bem consolidada na tradição oral do povo-de-santo,
na qual o termo bogum seria um cofre ou baú no qual era guardado o ouro destinado a
financiar as revoltas malês das primeiras décadas do século 19, sendo que um negro
escravizado malê, Joaquim, o teria escondido no local do candomblé. Esta explicação revela
uma possível ligação entre o Terreiro do Bogum e os Malês, mas não necessariamente um
lugar de organização do grupo que culminaria na revolta de 1835.

33
Além de se referir ao Terreiro da Casa Branca, Tonho também menciona o Terreiro do Bogum, o Terreiro do
Gantois (na Federação), o Terreiro do Bate-Folha (na Mata Escura) e o Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá (em São
Gonçalo do Retiro), todos localizados em cumes de morros.
34
Parés aponta uma fala, em 1961, de Doné Runhó, então mãe-de-santo do Bogum: “o terreiro foi fundado por
africanos e tem muito mais de 100 anos” (PARÉS, 2006, p. 171), o que situaria a sua fundação por volta da
primeira metade do século 19. Também as menções em jornais da época, como O Alabama, se referem a um
terreiro no topo de uma colina, correspondente à localização do Terreiro do Bogum.
94
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

As falas de moradores indicam esta antiguidade. Segue a mesma hipótese na fala do Seu
Orlando:
Aqui era conhecido pelo esconderijo do tesouro dos malês, da Revolta dos
Malês. Onde eles guardavam suas economias. O final de linha era
conhecido como Bogum, Largo do Bogum. O que era o Bogum? Bogum
eram aquelas malas de dinheiro que os malês guardavam, enterravam aí.
Daí ficou conhecido como Largo do Bogum, no fim de linha do Engenho
Velho da Federação.

A antiguidade do terreiro também pode ser comprovada pela existência de caminhos nas
proximidades, cuja nomenclatura remete ao terreiro, como testemunhas históricas concretas
da presença do Terreiro do Bogum, a ser visualizado adiante, na Figura 76.

Outros terreiros mais antigos e em funcionamento no Engenho Velho da Federação são o


Terreiro da Casa Branca (ou Terreiro do Engenho Velho), nação nagô-keto, sendo este o
mais conhecido, tem sua instalação em 185635, o Terreiro do Cobre, nação keto, fundado
em 1906, o Terreiro Tanuri Junçara, nação angola, com fundação em 1955, sendo todos
estes terreiros de reconhecimento internacional; existem outros terreiros também muito
antigos, como o Terreiro Odê Mirim, fundado em 1906, o Terreiro Patiti Obá, fundado em
1927, o Terreiro Obá Tony, com fundação em 1936, entre outros, segundo o Mapeamento
dos Terreiros (2008).

Estas áreas ocupadas pelos terreiros são atribuídas a duas fazendas onde havia lavouras
de dendê e cana-de-açúcar: Madre de Deus e Roça do Engenho Velho. Segundo os
moradores, entre os dendezeiros e os canaviais havia um grande engenho de cana-de-
açúcar, onde se concentraram muitos negros africanos escravizados.

As fazendas, pelo que narram os moradores, eram ocupadas por plantações de cana, hortas
e pomares, mas havia grandes áreas de muita mata virgem. Deduzimos que muitos destes
africanos escravizados destas fazendas do Engenho Velho da Federação já realizavam
seus cultos individuais em meio às matas.

Assim, além da expressiva instalação de terreiros, houve também descendentes de


africanos escravizados que trabalhavam nas fazendas e que teriam permanecido nas
imediações após o abandono ou desativação destas fazendas na ocasião da abolição,
constituindo também, juntamente com as famílias-de-santo, um agrupamento populacional.

35
Esta data se refere à instalação do Terreiro da Casa Branca no Engenho Velho da Federação, sendo que o
terreiro já existia anteriormente, sediado na Barroquinha, cuja fundação é estimada em finais do século 18.
Assim, este terreiro é considerado o mais antigo do Brasil. Deste terreiro original, o Candomblé da Barroquinha,
desdobraram-se mais outros dois: Terreiro do Gantois, na Federação e o Terreiro Opô Afonjá, em São Gonçalo
do Retiro.
95
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Os vestígios materiais desta fazenda aparecem na fala de Dona Maria Angélica, moradora
antiga do bairro, quando se refere a uma capela que pertencia à fazenda, onde hoje está
localizada a lavanderia comunitária, na Av. Cardeal da Silva, no lado oposto do bairro. Dona
Maria Angélica lembra:

Ali onde tem a lavanderia, no ponto de ônibus, tinha uma casa enorme e
uma capelinha, ainda do tempo do engenho. Eu mesma fui crismada ali.

Há na memória coletiva de moradores do bairro, que sobrevive através da história oral, a


lembrança de mulheres descendentes diretos de africanos, descendo e subindo as ladeiras,
vestidas com trajes africanos, saias longas e muitos panos, nos fazendo lembrar das
modelos de Henschel, que aparecem na Figura 10.

Figura 10 - Mulheres negras vestidas com trajes africanos.


Fonte: Fotos de Cristiano Junior, de 1865 (apud ERMAKOFF, 2004)

Dona Maria Angélica testemunhou, ainda criança, vizinhas de ascendência direta de


africanos, sendo que muitos seriam remanescentes das fazendas.

Antes mesmo da constituição do bairro, as práticas culturais herdadas de povos africanos


como o consumo do dendê para a alimentação foram amplamente exploradas na fazenda
que antecedeu o bairro, através da plantação de dendezeiros. A produção econômica do
dendezeiro desde o continente africano36 continuou na Bahia.

Na vida cotidiana dos moradores, a prática da produção do óleo comestível se manteve


como recorda Dona Maria Angélica, quando conta que as vizinhas produziam bambá, um
azeite espesso e muito saboroso, retirado do fundo do tacho onde o óleo de dendê era
produzido. O plantio de dendezeiros demonstra o valor econômico da planta, que não era
36
Dendê é uma palma muito consumida na África também sob a forma de vinho de palma ou óleo de palma para
a fabricação de sabão, sendo, inclusive, segundo Risério (2012), exportado para a fabricação na Europa do
sabonete: "palm-oil, sabão Palmolive".
96
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

apenas para alimentação, mas que servia também de combustível para os lampiões e como
lubrificante. O tal azeite grosso era vendido no Largo 02 de Julho e era muito procurado,
sendo vendido rapidamente. Além do valor sagrado, vemos que o dendezeiro gerava uma
economia importante para o bairro, mesmo depois da destituição da fazenda.

Intuímos que, segundo pesquisas de Parés (2006), sobre o Terreiro do Bogum, e de Ueliton
Santos (2011), a abrangência da fazenda da Roça do Engenho Velho abarcava também
extensões de Brotas e que, devido ao processo de urbanização da cidade de Salvador, com
os desmembramentos das terras e redefinições oficiais de subdistritos, uma parte da fazenda
se constituiu como Engenho Velho de Brotas e outra parte em Engenho Velho da Federação.

2.2.2 - Caracterização do Bairro

Já vimos anteriormente na Figura 1 a localização do Engenho Velho da Federação em


relação à Salvador, à Bahia e ao Brasil. Em Salvador, observamos que o bairro situa-se
próximo do Centro Tradicional e à nova centralidade do Iguatemi, conforme pode ser
observado na Figura 11.

E como mostra a Figura 12, o bairro está localizado em meio a uma concentração de vias
importantes do sistema viário de Salvador que oferece ao bairro uma localidade
privilegiada em relação aos deslocamentos na cidade, como as avenidas Vasco da Gama,
Cardeal da Silva, Ogunjá, Anita Garibaldi e Rua Lucaia.

97
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

98
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

99
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Segundo a Divisão Administrativa do município, o Engenho Velho da Federação está situado


na Região Administrativa do Rio Vermelho (RA VII), juntamente com os bairros do Rio
Vermelho, Amaralina, Nordeste de Amaralina e Alto da Santa Cruz, conforme Figura 13.

Figura 13 - Localização do Engenho Velho da Federação na Região Administrativa VII (Rio Vermelho)
Fonte: Mapa 09 - Regiões Administrativas do Município (PDDU/2008 Salvador)

O bairro situa-se na Bacia Hidrográfica do Rio Lucaia, estando localizado numa das
elevações às margens do canal do Rio Lucaia, que nasce no Dique do Tororó e deságua
no Rio Vermelho, margeado pela Avenida Vasco da Gama, separando-o do Acupe de
Brotas. O rio, que já foi lugar de oferendas37, não é mais visível, pois, recentemente, a Av.
Vasco da Gama passou por obras de macrodrenagem e cobertura do rio, que já é, há
muitos anos, canalizado. A cobertura do rio serve de suporte para novas pistas do
transporte coletivo e uma ciclovia, se estendendo até o cruzamento com a Av. Anita
Garibaldi. Atualmente, a Av. Vasco da Gama vem tomando importância na cidade com um
perfil econômico específico, se delineando para serviços automotivos (mecânicas, venda de
autopeças), hipermercados, etc.

O bairro é ladeado pelo Alto do Sobradinho, através da Rua Sérgio de Carvalho (Vale da
Muriçoca), sendo limitado na parte superior pela Avenida Cardeal da Silva, que o divide com o
bairro da Federação. O bairro também faz divisa com o Alto do Sobradinho, pela Rua Sérgio
de Carvalho (Vale da Muriçoca), divisa com o parcelamento São Gonçalo, sendo margeado na
parte mais elevada pela Avenida Cardeal da Silva, fazendo divisa também ao sul pelos
parcelamentos horizontais ‘Pedra da Marca’ e ‘Parque João XXIII’ e pela localidade do Alto do
Cangira, vizinhos ao Parque Santa Madalena que é parte do Engenho Velho da Federação.

37
O rio era lugar de oferendas. Mãe Runhó, em matéria “Runhó quer mato e rio para os ‘voduns’ do Bogum”,
dizia, em função do acúmulo de lixo e dejetos, que o rio estava entulhado (A Tarde, 5/12/1975).
100
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Esses limites fazem parte de um consenso entre moradores e subsidiaram a delimitação do


bairro estabelecida pelo estudo contido no livro Caminho das Águas de Salvador, sendo
adotada nesta pesquisa.

O município de Salvador é constituído oficialmente por um único distrito - Salvador - e por 22


subdistritos38, não existindo na legislação vigente a delimitação de bairros. Segundo a lei
que divide a área interna do município de Salvador - Lei Municipal Nº 1.038 de 15 de junho
de 1960 - e que ainda está em vigor, o ‘bairro’ do Engenho Velho da Federação está
localizado no subdistrito da Vitória.

A publicação denominada O Caminho das Águas em Salvador (SANTOS et al, 2007), produzida
em conjunto pelo Governo do Estado da Bahia e pela UFBA, é resultado de uma pesquisa em
160 bairros de Salvador (distribuídos em 12 bacias hidrográficas e 09 bacias de drenagem, além
das 03 ilhas e ilhotas do município), propondo limites para os bairros.

A delimitação do bairro pode ser visualizada na Figura 14, cuja transcrição a seguir é uma
descrição resumida da delimitação do bairro do Engenho Velho da Federação:

Inicia-se no cruzamento entre a Avenida Cardeal da Silva e a Rua Henriqueta


Martins Catarino, por onde segue até a interseção com a Avenida Altair. Segue
por esta até o cruzamento com a Travessa Helenita Miranda, por onde segue até
a Rua Sérgio de Carvalho, até alcançar a Avenida Vasco da Gama. Segue por
esta via até a Ladeira Cangira. Segue por esta via até alcançar a Rua São João.
Segue nesta via até alcançar o fundo dos lotes com frente para a Rua Padre
Raimundo Machado e para a Rua Deputado Newton Moura Costa até alcançar a
Rua Deputado Newton Moura Costa, por onde segue até alcançar a 2ª Travessa
Tupã. Deste ponto segue pelo fundo dos lotes com frente para a Rua Ibitupã e
para a Travessa Assis, até a Avenida Cardeal da Silva, por onde segue até o
ponto de início da descrição do limite deste bairro (SANTOS et al, 2007, p. 65).

38
Os 22 subdistritos de Salvador são: Amaralina, Brotas, Conceição da Praia, Itapoã, Maré, Mares, Nazaré,
Brotas, Candeias, Conceição da Praia, Cotegipe, Itapoan, Maré, Mares, Nazaré, Paripe, Passo, Penha, Periperi,
Pilar, Pirajá, Plataforma, Santana, Santo Antônio, São Caetano, São Cristóvão, São Pedro, Sé, Valéria e Vitória.
101
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

102
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Esta delimitação é bem similar aos limites adotados pelo Atlas de Desenvolvimento Humano
da Região Metropolitana de Salvador para a realização deste projeto do PNUD (Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento) em parceria com o Governo do Estado da Bahia,
realizado em 2006. O bairro do Engenho Velho da Federação constitui a UDH 14 (Unidade de
Desenvolvimento Humano 14), tendo nesta delimitação uma agregação de características
mais homogêneas do bairro, face ao histórico da configuração sócio-espacial, conforme pode
ser visto na Figura 15, excluindo a área relativa à implantação do conjunto habitacional Parque
Santa Madalena, implantado posteriormente em conformidade aos moldes das politicas
habitacionais.

Figura 15 - Delimitação do bairro do Engenho Velho da Federação (UDH 14) - CONDER/PNUD


Fonte: Atlas de Desenvolvimento Humano da Região Metropolitana de Salvador (CONDER, 2006)

Podemos verificar que a delimitação adotada em O Caminho das Águas em Salvador


aproxima-se, portanto, de um consenso entre várias instituições. Embora os limites de
bairros propostos pelo trabalho acima não tenham sido oficializados pela municipalidade,
adotamos a delimitação proposta tendo em vista a aproximação da compatibilização entre o
limite do bairro e os dos setores censitários definidos pelo IBGE e que foram incorporados
no Censo 2010.

103
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Podemos observar na Figura 16, que apresenta o adensamento construtivo do bairro, e na


Figura 17, que mostra a inserção do bairro diante dos bairros adjacentes, uma das
características de Salvador nas suas contrastantes segregações sócio-espaciais: temos no
Engenho Velho da Federação índices sócio-econômicos muito baixos em comparação ao
entorno, constituído por moradores de médio a alto poder aquisitivo, como no caso do
condomínio Pedra da Marca ou do loteamento Parque São Gonçalo, ou pela encosta oposta
ao bairro, o bairro de Acupe.

Figura 16 - Padrão construtivo no Engenho Velho da Federação (Ano 2012)


Fonte: Foto da Autora

Vige o modelo de organização da sociedade e da cidade em agrupar grupos sociais de


forma hierárquica, em áreas ‘luminosas’ e áreas precarizadas, não cumprindo com a
satisfação das necessidades humanas básicas, no contexto urbano específico da cidade de
Salvador, como, por exemplo, abastecimento de água ou esgotamento sanitário, como se
tais necessidades não fossem as mesmas para todas as pessoas.

104
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Av. Cardeal da Silva


Engenho Velho Horto
da Federação Brotas Florestal
Ondina Centro Barra

Figura 17 - Paisagem de fundo do Engenho Velho da Federação (Ano 2012)


Fonte: Foto da Autora Cond.
Pedra da Marca

Segundo o consenso, o bairro aparenta na sua paisagem o retrato da pobreza, através das
características e tipologias das construções e da manutenção da precariedade pela
ausência de políticas públicas.

Assim, boa parte dos limites do Engenho Velho da Federação está inscrita na poligonal da
Zona Especial de Interesse Social ZEIS 13 - Engenho Velho da Federação39, em destaque
na cor rosa, contígua à ZEIS 12 - Vale da Muriçoca, dadas as condições de renda da
população e das condições urbanísticas precarizadas (no sentido da manutenção da
precariedade pela ausência de políticas públicas). Segundo o PDDU/2008:

Art. 78. Zonas Especiais de Interesse Social, ZEIS, são aquelas destinadas à
implementação de programas de regularização urbanística, fundiária e produção,
manutenção ou qualificação de Habitação de Interesse Social, HIS.

Sob os limites do bairro, não fazem parte da ZEIS 13 os terrenos lindeiros da primeira
quadra da Rua Henriqueta Martins Catarino (esquina com a Av. Cardeal da Silva), os
terrenos lindeiros à Av. Vasco da Gama e o Conjunto Residencial Parque Santa Madalena,
conforme nos mostra a Figura 18.

39
Desde 1985, através da Lei Nº 3.592/85, o bairro do Engenho Velho da Federação é uma Área de Proteção
Sócio-Ecológica - APSE (APSE 19), transformada em ZEIS pelo PDDU/2008 Salvador.
105
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 18 - Porção da ZEIS Nº 13 e abrangência no Eng. Velho da Federação (PDDU/2008 Salvador)


Fonte: Base do Mapa - LOUOS/1984 (Versão 1.3)

De fato, histórica, social e tipologicamente, arquitetônica e urbanisticamente, o conjunto


Parque Santa Madalena, com edifícios de 04 pavimentos, implantado na encosta junto à Av.
Vasco da Gama, se destaca do contexto de formação e configuração do bairro do Engenho
Velho da Federação. O conjunto habitacional foi construído pelo BNH em 1970, sendo, à
época, o maior do Norte e Nordeste, contento 75 blocos divididos em 600 apartamentos.

Sobrepondo-se à área que corresponde à ZEIS 13, em destaque na cor laranja, existe
também a APCP-003 - Área de Proteção Cultural e Paisagística - que abrange as áreas do
Candomblé Ilê Axé Iyá Nassô Oká (Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho), do
Candomblé Ipatitió Gallo (também conhecido como Terreiro Patiti Obá) e do Candomblé
Zoôgodô Bogum Malê Rundô (Terreiro do Bogum), pela Lei 3.591/85.

Em relação às áreas de mata, foi demarcada, segundo a LOUOS/1984 no Sistema de Áreas


Verdes, no bairro do Engenho Velho da Federação, a Área Arborizada 024 AA, mas, dado o
aumento da densidade habitacional do bairro na atualidade, estas áreas arborizadas,
embora existentes, tornaram-se restritas.

106
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Vimos que as amplas áreas de mata foram cedendo lugar às moradias, restando vestígios
destas áreas em pequenas porções arborizadas, como podemos ver nas Figuras 19 e 20.

Figura 19 - Porção de área arborizada no Engenho Velho da Federação (Ano 2012)


Fonte: Foto da Autora

Figura 20 - Porções de áreas arborizadas no Engenho Velho da Federação (Ano: 2012)


Fonte: Foto da Autora
107
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Ao buscar identificar estas áreas existentes, relacionando-as com a existência de terreiros,


verificamos que nem sempre há a correspondência; são vazios residuais entre terrenos e
casas, compondo os espaços coletivos ou são áreas de quintais que mantêm árvores
frutíferas, como é a casa do Seu Edson, na Rua Apolinário de Santana, que mantém um
amplo quintal com abacateiro, bananeiras e mangueiras, conforme pode ser visto na Figura 21.

Figura 21 - Árvores do quintal da casa do Seu Edson (Ano: 2012)


Fonte: Foto da Autora

No que tange o sistema viário e a classificação das vias do bairro, de acordo com a hierarquização
do sistema viário básico do município de Salvador, segundo a LOUOS/1984, como pode ser
visualizado na Figura 14, temos como principal logradouro a Rua Apolinário de Santana (Via
Coletora II) que, ao unir-se com a Rua Manoel Bonfim (Via Coletora II), também conhecida como
Ladeira do Bogum, liga as avenidas Cardeal da Silva e Vasco da Gama (Via Coletora I e Via
Arterial II, respectivamente), vias importantes de integração ao conjunto da cidade.
108
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

A Rua Apolinário de Santana é servida de transporte público através de 03 empresas de


ônibus, ligando o bairro às regiões do Centro Tradicional e a bairros mais distantes como
Ribeira, São Caetano e Conjunto Pirajá.

Um acesso secundário e de uso local à Av. Vasco da Gama é possível através da Rua das
Palmeiras, seguindo pela atual Rua Xisto Bahia (Via Local), que anteriormente denominava-
se, segundo Seu Valter, Rua do Pau Zerrém:

... existia um candomblé jêje na ladeira que hoje chama Xisto Bahia e que
não tem nada a ver com a história do Engenho Velho. Esta ladeira chamava-
se Pau Zerrém. Este Pau Zerrém é o nome de um orixá que tem no Jêje.
Fizeram lá a mudança, colocado não sei por quem, e botou Xisto Bahia.

Outra via importante é o Vale da Muriçoca, nome mais conhecido da Rua Sérgio de Carvalho,
no limite do bairro, como já citado anteriormente. Esta via é parte da ligação entre as
avenidas Cardeal da Silva e Vasco da Gama, chegando ao Parque São Brás, na Federação.
Futuramente, esta via, que atualmente é uma Via Coletora, poderá ser transformada em uma
Via Arterial, através da construção da ligação entre o Vale da Muriçoca com a Av. Garibaldi,
conforme previsão da LOUOS/2012, podendo reconfigurar (urbanística, arquitetônica,
socialmente) este trecho do bairro do Engenho Velho da Federação.

Estas vias são importantes, pois permitem o livre fluxo de tráfego de veículos, sendo vias em
mão-dupla. No entanto, a circulação interna do bairro e o acesso à boa parte das residências
são garantidos pela rede de ruas sem saída para automóveis e ruas de pedestres,
oficialmente denominadas por ruas, avenidas e travessas pelo poder público, e também pelas
escadarias. Criadas pelos próprios moradores, as trilhas e caminhos de terra batida foram
abertos em mata fechada: com o adensamento das construções, as trilhas foram se fechando,
constituindo becos e vielas, como aparece na Figura 22, com o sistema viário do bairro.

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

A circulação interna de pedestres, constituída por caminhos (becos, vielas, ruas) e escadarias,
surge condicionada a uma série de fatores como a integração ao sistema viário da cidade, o
acesso às fontes d’água, a topografia local com terreno bastante acidentado, etc.

Em relação à caracterização físico-ambiental, temos a topografia do lugar particularizada por


encostas íngremes, talvegues e vales úmidos. A topografia do bairro permanece, ainda,
muito semelhante à topografia original. As construções de pequeno e médio porte foram
acomodadas a esta topografia, sem grandes movimentações de terra (cortes/aterros de
terreno). As construções de maior porte, que não são muitas, estão instaladas nas áreas
mais planas, como é o caso da Escola Municipal do Engenho Velho da Federação,
localizada na Baixa da Égua.

Segundo a LOUOS/1984, o desnível entre as partes mais altas e as baixadas é de


aproximadamente 45 metros. Na Figura 23, temos a visualização da topografia do bairro,
cuja representação das ruas e quarteirões foi propositadamente subtraída para melhor
entendimento, evidenciando apenas as Rua Apolinário de Santana, na cumeada do bairro,
e a Ladeira do Bogum, e os perfis topográficos transversal e longitudinal do Engenho
Velho da Federação.

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Vemos no Perfil Transversal a rua principal do bairro, a Apolinário de Santana, em corte,


podendo ser vista em ângulos diferentes nas Figuras 24 e 25. A via situa-se exatamente na
cumeada do bairro e dela ramificam-se ruas e caminhos, no tradicional modelo espinha de
peixe, bastante comum em Salvador em áreas com topografia acidentada.

Figura 24 - Rua Apolinário de Santana (Ano: 2012)


Fonte: Foto da Autora

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 25 - Rua Apolinário de Santana


Fonte: Foto da Autora

Esta organização viária funciona também como drenagem (escape das águas das chuvas),
sendo bastante permeada com vários acessos intermediários transversais, entre as
diferentes vias de penetração ao interior do bairro. Vemos também no Perfil Longitudinal a
encosta bem acentuada que margeia a Av. Vasco da Gama, como também pode ser
verificado na Figura 3 (p. 33) e Figura 26.

Figura 26 - Av. Vasco da Gama em frente ao Eng. Velho da Federação


Fonte: Foto da Autora
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Na Figura 27, temos o exemplo da Rua Forno da Mangueira, que vence um desnível de
aproximadamente 30 metros entre a Rua Apolinário de Santana e a Rua Nazaré de Maria:

Figura 27 - Perfil da Rua Forno da Mangueira


Fonte: Elaboração da Autora [desenho sobre foto]

A Figura 27 foi trabalhada sobre a Figura 28, foto tirada à distância, e nos permite fazer a
identificação de 08 pavimentos abaixo do nível da Rua Apolinário de Santana, podendo ter
ainda mais três pavimentos, segundo a análise feita a partir de percurso a pé chegando até
a Rua Dulcinéia.

Figura 28 - Escadaria da Rua Forno da Mangueira (Ano: 2012)


Fonte: Foto da Autora
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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Neste perfil do terreno, aparecem as sobreposições das casas. Externamente, as casas


constituem blocos construtivos unificados e aparentam conter poucas unidades de
habitação, sobretudo por não terem acabamento com reboco e pintura devido ao contínuo
processo de autoconstrução (ampliações e reformas); com os tijolos aparentes não há como
identificar uma casa de outra.

No entanto, ao avaliarmos os caminhos, percebe-se acessos independentes de algumas moradias


que possuem suas entradas pelos caminhos transversais internos. Muitos destes acessos internos
são fechados com portões ou praticamente imperceptíveis, de conhecimento apenas dos
moradores locais. Em muitos casos, estes caminhos se abrem em largos de uso privado e/ou
coletivo, compostos de áreas residuais, em que podem surgir algumas áreas arborizadas.

Os acessos à Av. Vasco da Gama, ao Vale da Muriçoca e à Baixa da Égua se fazem por
ladeiras e escadarias, com trechos, por vezes, bastante íngremes. A maioria dos caminhos
criados pelos moradores foi reconstruída ou reformada por gestões municipais. Na
reconstrução, muitos dos caminhos foram “reinaugurados”, sofrendo, inclusive, mudança
dos nomes denominados originalmente pelos moradores.

As reformas das escadarias se caracterizaram pela regularização de pisos em concreto pré-


moldado, calhas drenantes, instalações de esgotamento sanitário, corrimãos e/ou guarda-
corpos, como podemos ver nas Figuras 29 e 30.

Figuras 29 e 30 - Escadarias com placas de


piso quebradas e recuperadas pelos moradores
(Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

No entanto, atualmente, muitas escadas se encontram em estado bastante deteriorado e


carecem de manutenção; algumas das placas dos pisos estão em falso ou mesmo ausentes,
as calhas estão sujas e entupidas. Algumas das escadarias foram decoradas ou adaptadas
pelos moradores, como é o caso da escadaria da Rua Maria Valentina, como mostra a Figura
31, que dá acesso à Av. Vasco da Gama.

Figura 31 - Escadaria decorada


com cacos cerâmicos (Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora

Os equipamentos comunitários e demais elementos urbanos, desempenham, além de suas


ações sociais, a função de marcos urbanos como referências de localização e de
constituição do bairro. Assim, segue a indicação destes marcos urbanos na Figura 32, na
Figura 33 e na Figura 34.

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Em relação aos equipamentos urbanos, o bairro do Engenho Velho da Federação dispõe de


três escolas públicas situadas dentro dos limites do bairro, sendo uma estadual, o Colégio
Estadual Henriqueta Martins Catarino, e duas municipais, a Escola Municipal José de
Anchieta e a Escola Municipal Engenho Velho da Federação. Esta escola municipal foi
instalada em 1987 por pressões intensas dos moradores do bairro, sendo Valdina Pinto,
professora e Makota do Terreiro Tanuri Junçara, quem muito lutou para a construção dessa
unidade escolar. Quando a mesma foi inaugurada, Makota Valdina, como é mais conhecida,
atuou como diretora interina da escola.

A outra escola pública é a Escola Municipal São Gonçalo, na divisa com o bairro da
Federação, na margem oposta da Av. Cardeal da Silva. O posto de saúde, que atende de
forma muito incipiente ao bairro, e a lavanderia comunitária encontram-se anexos a esta
escola. Uma terceira escola está localizada na Av. Cardeal da Silva: é a Escola Municipal
Cidade de Jequié, um pouco mais distante, mas que também atende crianças do Engenho
Velho da Federação.

Outras referências importantes são a escola infantil particular Via Magia, que sedia também
o Instituto Cultural Via Magia40, e as faculdades particulares Unifacs e UCSal. Esta, por
sinal, é uma referência bem antiga do bairro, desde o tempo que era a horta dos padres,
como informa Makota Valdina.

A implantação UCSal, universidade católica, trouxe um grande impacto, em termos positivos


e negativos, na vida dos moradores do Engenho Velho da Federação. O que os moradores
chamavam de horta dos padres deixou de ser seminário e se transformou no que é hoje a
UCSal. Os aspectos positivos se dão, atualmente, pela interatividade entre a instituição e os
moradores do bairro, já que estes se utilizam das ações sociais promovidas por diversos
cursos, tais como assistência social e assistência jurídica. Além do aspecto social, há
também o aspecto econômico, gerando uma demanda de serviços a serem prestados pelos
moradores do bairro em atendimento aos estudantes e professores, tais como: serviços de
alimentação (lanchonetes e restaurantes), serviços gráficos (cópias e encadernações),
aluguéis de quartos para estudantes nas casas das famílias do bairro, entre outros.

Há também, por outro lado, a pressão da especulação imobiliária em relação aos aluguéis
para atender aos estudantes vindos de outros municípios do estado, comprometendo a
oferta de imóveis para moradores locais. E também, juntamente com outra faculdade,
promove a circulação de estudantes usuários de drogas.

40
O Instituto é uma instituição particular que busca articulação com os moradores e associações do Engenho
Velho da Federação, interagindo com as crianças e jovens do bairro, buscando incorporar em seu projeto
pedagógico as diversidades culturais.
121
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Diante de uma grande população concentrada espacialmente, os equipamentos urbanos


são insuficientes para atender o bairro de forma eficiente. Dada a imensa quantidade de
crianças no bairro, é notável o número de escolinhas particulares que funcionam como
creche-escola ou escolas oferecendo o nível fundamental, além de muitas outras escolinhas
informais que são instaladas em residências para atender às mães que trabalham fora de
casa. E ainda as inúmeras ‘bancas’, que constituem reforço escolar.

O Terminal de Ônibus, sob a categoria de Mobilidade Urbana Municipal, é localizado no início


da Ladeira Coronel João de Deus, oficialmente denominado Praça Walmor Barreto, mas que
não configura urbanisticamente uma praça, e sim um pequeno largo, pois é apenas uma ‘sobra’
de quarteirão. Atualmente é apropriada por mecânicos de automóveis para pequenos serviços
e vendedores de DVD. O terminal, que é próximo ao módulo policial, está desativado por não
oferecer o espaço suficiente necessário à manobra dos ônibus. O final de linha, portanto, se
situa em torno da Praça Mãe Runhó, mais caracterizada como largo, o Largo do Bogum.

Diante de tal importância para a população do bairro, como também para a cidade, o
reconhecimento do estado se fez pela implantação do Busto de Mãe Runhó, localizado no
Largo do Bogum, o único monumento público na cidade de Salvador que homenageia uma
líder espiritual de terreiro de religião africana (SILVA, 2009).

Na Praça Mãe Runhó, há também a imagem de São Lázaro, que pode ser vista na Figura 35,
que representa a forte devoção dos moradores do bairro pelo santo católico. Segundo Dona
Neide, o altar de São Lázaro foi erguido pelos devotos antes da construção da igreja católica.

Figura 35 - Busto de Mãe Runhó e imagem de São Lázaro (Ano: 2012)


Fonte: Foto da Autora
122
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

A igreja foi construída em 1970 com ajuda da comunidade, na captação de recursos financeiros
através de quermesses e bingos, tendo o padre da igreja, Padre Lebret, convocado detentos
para os trabalhos de construção civil da igreja. Há controvérsias sobre a doação do terreno onde
está implantada a igreja católica de Santa Cruz. Obtivemos esta informação primeiramente com
Seu Orlando, a área pertencia ao Terreiro Tanuri Junçara; em matéria de jornal, o Seu Valter
Neves também afirma que quem doou o terreno foi o terreiro de candomblé. Confirmamos esta
informação também com Dona Helena, antiga adepta do Tanuri Junçara, que é de nação
angola, e que nos informou que alguns adeptos do terreiro eram ligados à comunidade católica,
sendo, então, a área cedida por Seu Lolô, à época, o dono do terreiro. Outra comprovação é a
rua que ladeia a igreja, cujo nome é Rua Elizabete, nome da fundadora do terreiro.

Além da assistência ao bairro por inúmeros terreiros, há também as igrejas evangélicas


tradicionais e as neopentecostais, que se introduziram no bairro aproximadamente na
década de 1990.

No âmbito das mídias populares, funciona no bairro do Engenho Velho da Federação uma rádio
alternativa. Apesar de ser chamada de rádio comunitária, não apresenta este caráter, pois não é
gerida por moradores do bairro. A rádio foi fundada e é operada por um radialista profissional41,
Beto Mendes, sendo mantida pelos comerciantes e prestadores de serviço locais.

A Rádio Satélite opera em LM (Linhas Moduladas), que funciona através de caixas


amplificadoras de som e não transmite ondas sonoras. Tem sua sede instalada nas
dependências da Associação de Moradores do Engenho Velho da Federação (Av. Apolinário
de Santana). Funcionando há aproximadamente 09 anos, a estimativa é de 10 a 12 mil
ouvintes, tendo uma área de abrangência que cobre praticamente todo o bairro: Rua Apolinário
de Santana, um trecho da Av. Cardeal da Silva (entre as duas faculdades particulares UCSal e
Unifacs), Ladeira Cel. João de Deus, Rua Manoel Bonfim, Rua das Palmeiras, Rua Xisto Bahia,
Rua Neide Gama e as localidades da Baixa da Égua e Fonte do Forno.

São 32 caixas instaladas em postes de iluminação pública do bairro, como mostra a Figura
36, com potências diferenciadas em função da condição de localização das caixas: locais
mais ou menos abertos. Além dos comerciais, a rádio produz programas musicais com
diversos estilos de música e também presta serviço de utilidade pública como avisos dos
moradores, achados e perdidos, eventos dos bairros, notícias e também previsões de
horóscopo, do tempo e resultados de jogos e loterias, além de campanhas de interesse
público. A rádio também pode ser acompanhada pela internet através do seu site (link da
Rádio Satélite: www.radiosatelite.com.br).

41
A entrevista com o radialista Beto Mendes, proprietário da rádio, ocorreu em abril de 2011.
123
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 36 - Caixa amplificadora da


Rádio Satélite (Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora

No tocante às atividades econômicas, o bairro, desde os primórdios, apresenta forte


vocação comercial, iniciada desde o período das ganhadeiras e quitandeiras. O comércio
local apresenta grande autonomia, com inúmeros pontos comerciais com grande
diversidade de segmentos: mercadinhos, padarias, açougues, farmácias, lojinhas de
confecções e presentes, armarinhos, materiais de produtos de limpeza, produtos
cosméticos, botecos, além das lojas maiores, como supermercados, lojas de materiais de
construção, depósitos de gás, etc. Como bairro negro, também encontramos os comércios
especializados em produtos religiosos do candomblé (contas, quartinhas, incensos, etc.),
como também lojas de confecções de moda afro e acessórios. Os comércios domésticos
são múltiplos, pulverizados por todo o bairro: balas, docinhos e salgadinhos, ‘geladinhos’42,
fogos de São João...

42
Sucos de fruta congelados armazenados em saquinhos plásticos.
124
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

A prestação serviços é bastante variada, como salão de beleza, oficinas de corte e costura,
barbeiros, estofarias, pequenas mecânicas, etc., instalados em pontos comerciais ou em
residências: trançadeiras, manicures, etc.

Como já vimos, partes do bairro tiveram sua ocupação em períodos diferenciados, nos quais
houve uma consolidação mais acentuada aos moldes das legislações urbanísticas nas
proximidades da Av. Cardeal da Silva, uma das avenidas de cumeada da cidade, em
comparação à ocupação dos vales junto aos rios.

Identificamos, assim, uma adaptação da forma urbana da relação casa-lote-rua de um


modelo de ocupação colonial na Rua Apolinário de Santana com lotes de testada estreita e
comprimento longo, como pode ser visualizado na Figura 37 que mostra esta proporção dos
lotes em mapa.

Figura 37 - Edificações (na cor marrom) construídas junto à testada da Rua Apolinário de Santana
Fonte: Elaboração da Autora - Base do Mapa: LOUOS/1984 (Versão 1.3)

Este tipo de ocupação derivou na tipologia de casas ladeadas, como podemos visualizar
através das fachadas que aparecem nas Figuras 38 e 39:

125
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 39 - Casa com adaptação de platibanda Figura 38 - Casa antiga com platibanda na
na Rua Apolinário de Santana (Ano: 2012) Rua Apolinário de Santana (Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora Fonte: Foto da Autora

Vemos na Figura 38 um exemplar de uma da casa que originalmente possuía beiral com
caimento direto sobre a calçada, e que agora tem o escoamento das águas pluviais
direcionado para uma calha. Por determinação legal, ainda no fim do Império, este modelo
foi, aos poucos, substituído pelas platibandas, com a eliminação dos beirais voltados para
os passeios, impedindo que as água pluviais caíssem sobre os transeuntes.

Assim, as platibandas surgiram de modo a acomodar as calhas embutidas, como aparece


na Figura 39 em uma construção em ruínas. A platibanda também representava uma nova
referência arquitetônica, utilizada pelas classes mais abastadas, seguido pelas populações
mais pobres. O emprego deste modelo, já na construção da casa, ou através de reformas,
representava um status para o dono da casa.

Este modelo das casas sobre as testadas não é uma continuidade, o que configura nesta entrada
principal do bairro uma relação entre cheios e vazios bastante diversificada, pois também é
comum o modelo de casa isolada no lote, com jardins e/ou garagens na entrada e circulação nas
laterais, como pode ser observado na Rua Apolinário de Santana através das Figuras 40 e 41:

126
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 40 - Casas isoladas no lote na Rua Apolinário de Santana (Ano: 2012)


Fonte: Foto da Autora

Figura 41 - Casas isoladas no lote na Rua Apolinário de Santana (Ano: 2012)


Fonte: Foto da Autora
127
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Adentrando ao bairro pela encosta, através da Av. Vasco da Gama, é mais comum a ocupação
acomodada à topografia, existindo também um tipo de verticalização abaixo do nível da rua,
como demonstrado anteriormente na Figura 27 (p. 115) e também no exemplo da Figura 42,
com residências implantadas em nível de meio-subsolo e subsolo em relação à via de acesso.

Figura 42 - Sobreposição de casas - Avenida Fonseca (Ano: 2012)


Fonte: Foto da Autora

Notamos que a verticalização do bairro, com a sobreposição das moradias constituindo


edifícios, é mais visível nas ruas de cumeada do bairro, com paulatino aumento de gabarito.
De forma mais incomum, existem alguns exemplares do edifício construído na sua origem,
como aparece na Figura 43, compondo a paisagem do bairro.

128
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 43 - Edifícios na Rua Maria Valentina (Ano: 2012)


Fonte: Foto da Autora

Outro modelo comum de implantação das unidades habitacionais é através do ‘corredor de


casas’, também chamado pelos moradores por ‘vila de casas’ ou ‘avenida de casas’, no qual
pequenas casas são construídas ao longo do terreno cujo acesso se dá por um corredor
lateral, como pode ser visto na Figura 44.

129
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 44 - Corredor de casas (Ano: 2012)


Fonte: Foto da Autora

A intensa ocupação de áreas com elevada declividade dos terrenos gera elevada densidade
edilícia intra-bairro, ocasionando uma baixa proporção de espaços livres nos lotes. Por este
motivo que é comum também no Engenho Velho da Federação, como em tantos outros
bairros de Salvador, o terraço, como forma de compensar a ausência dos quintais. A Figura 45
ilustra a repetição dos terraços no bairro.

Figura 45 - Terraços no Engenho Velho da Federação (Ano: 2012)


Fonte: Foto da Autora

130
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

No que tange o exterior das casas, há também variedade na utilização dos materiais de
acabamento compondo a diversidade dos tipos construtivos no bairro: nas construções mais
antigas predomina a pintura à cal, com alternância das cores pigmentadas de azul, verde,
rosa e amarelo e suas variações; nas casas ‘frente de rua’ aparecem outros materiais de
acabamento como a pintura acrílica ou revestimentos cerâmicos; no conjunto de casas
construído no interior dos quarteirões, como pôde ser visto na Figura 16 (p. 104), vigora o
tijolo aparente.

Dadas estas considerações da configuração espacial e da morfologia urbana do bairro, com


sua variedade construtiva, nas suas adaptações às condições topográficas, a inscrição nos
lotes com ausência ou não de recuos, alturas variadas de gabarito, materiais de
acabamento, o bairro apresenta grande heterogeneidade de tipos e formas construtivas que
estão articuladas nos Capítulos 4 e 5, relacionadas às formas-conteúdo e à forma urbana negra.

Com intuito de compreender a configuração social do bairro na atualidade e identificarmos


dados que consideramos relevantes à pesquisa, foram pesquisados os dados estatísticos do
IBGE, coletados no Censo 2010. De acordo com a delimitação do bairro, o Engenho Velho
da Federação incorpora 35 setores censitários, cujos limites diferem muito pouco dos limites
de bairro adotados nesta pesquisa, conforme Figura 46:

0106 0108
N
0109
0107 0247
0110 0111
0193 0248
0056
0249
0235 0114
0112
0209 0170 0250 0113
0259
0116 0115 0251
0168 0258
0205 0161
0252 0119 0120
0118
0187
0117 0121
260
0160

Figura 46 - Setores Censitários que englobam o Engenho Velho da Federação (Subdistrito da Vitória)
Fonte: Censo 2010/IBGE <http://www.censo2010.ibge.gov.br/cnefe/>. Acesso em: 03 fev.2011 - Edição da Autora

131
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Segundo os dados do Censo 2010, o bairro do Engenho Velho da Federação possui


precisamente 24.555 habitantes, dado obtido no somatório dos setores censitários43. No
entanto, este número está muito abaixo dos 80 mil habitantes (nesta referência de número
de habitantes, desconhecemos os limites adotados para o bairro) informados pelo
presidente da Associação de Moradores do Engenho Velho da Federação, Orlando
Barbosa, e também pelo Laudo antropológico do Terreiro do Bogum (SERRA et al, 2007),
bem como pelas referências em notícias de jornal ou internet.

De acordo com o Censo de 2010, temos apresentada a relação área e população do bairro,
oferecendo-nos a Densidade Demográfica, conforme Tabela 1:

Dados Gerais
Densidade
Área População Demográfica
2
0,94 km 24.555 hab. 26.131 hab./Km²

Tabela 1 - Dados Gerais do Engenho Velho da Federação


Fonte: Elaboração da Autora com a utilização de dados do Censo 2010/IBGE e SANTOS et al (2007)

De acordo com os limites do bairro (SANTOS et al, 2007), o Engenho Velho da Federação
possui área de 939.667,92m2, sendo um bairro de pequenas dimensões. Conforme os
dados do Censo 2010, obtemos a densidade populacional do Engenho Velho da Federação
em torno de 26.131 hab/Km2, sendo uma das mais altas do município, podendo chegar a
bem mais, se considerarmos uma população de 80 mil habitantes.

Salvador possui a maior densidade populacional dentre as capitais brasileiras, segundo o


Censo 2010 (IBGE), com aproximadamente 9 mil hab/Km2 em sua parte continental. Bairros
como o Nordeste de Amaralina e Novos Alagados têm uma densidade populacional de 53
mil e 49 mil habitantes por quilômetro quadrado, respectivamente. Lembramos que estes
dados podem ser ainda mais elevados em função da possível defasagem do número oficial
de habitantes e o número real de moradores nestes bairros. Esta defasagem de valores
gera um grande prejuízo à população, visto que a elaboração de políticas públicas é
pautada por indicadores e dados oficiais fornecidos por órgãos oficiais, como o IBGE.

O Engenho Velho da Federação, o Alto das Pombas e o Calabar, juntamente com os bairros do
Complexo Nordeste de Amaralina (Santa Cruz, Chapada do Rio Vermelho, Vale das Pedrinhas e
Nordeste), são as áreas que concentram maior densidade populacional e, ‘coincidentemente’, são
bairros da Orla atlântica que também concentram os maiores percentuais de populações negras.

43
Segundo o Censo de 2000, este valor era de 23.846 habitantes (dado extraído da publicação O Caminho das
Águas em Salvador).
132
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Para uma noção/ideia do perfil dos moradores do Engenho Velho da Federação, vamos
apresentar alguns dados e índices apontados pelo Censo de 2010, bem como informações
da pesquisa de campo realizada por Ueliton Santos (2011).

No Capítulo 5, expomos nossas impressões em relação aos moradores num aspecto mais
amplo da vida cotidiana no bairro, incorporando as vivências capturadas por nós, uma vez
que entendemos que dados quantitativos não são suficientes, por si só, para compreender a
vida do bairro.

A Tabela 2 apresenta dados de Cor/Raça dos percentuais de população do Engenho Velho


da Federação:

Cor/Raça
Cor/Raça Cor/Raça Cor/Raça Cor/Raça
Negra Branca Amarela Indígena

87,22%
Cor/Raça Preta Cor/Raça Parda 11,79% 0,78% 0,21%
38,43% 48,79%
Tabela 2 - Composição das Categorias de Classificação de Cor/Raça
Fonte: Elaboração da Autora com a utilização de dados do Censo 2010/IBGE

A Figura 47 apresenta um gráfico para melhor visualização dos percentuais de população no


bairro na sua composição das categorias de classificação de Cor/Raça, indicando um
percentual acentuadamente maior de populações negras (pretos e pardos), seguidos dos
demais percentuais de contingentes populacionais (brancos, amarelos e indígenas):

Cor/Raça

Preta - 38,43%
Parda - 48,79%
Branca - 11,79%
Amarela - 0,78%
Indígena - 0,21%

Figura 47 - Composição das Categorias de Classificação de Cor/Raça no Engenho Velho da Federação


Fonte: Elaboração da Autora com a utilização de dados do Censo 2010/IBGE

Fonte: Elaboração da autora

133
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Em relação à Faixa Etária, a Tabela 3 e a Figura 48 apresentam dados dos percentuais de


população de crianças e adolescentes (até 14 anos), jovens e adultos (entre 15 e 64 anos) e
de idosos (65 anos ou mais) do bairro do Engenho Velho da Federação, dada pela
composição das categorias de classificação por agrupamentos de idade, indicando um
percentual maior de jovens e adultos.

Faixa Etária
Entre De 65 anos
Até 14 anos
15 a 64 anos ou mais
21,12% 73,04% 5,84%

Tabela 3 - Composição das Categorias de Classificação de Faixa Etária


Fonte: Elaboração da Autora com a utilização de dados do Censo 2010/IBGE

Esta classificação do IBGE é dada pelos grupos de idade da população considerada inativa,
de 0 a 14 anos e 65 anos ou mais de idade, e da população potencialmente ativa, de 15 a
64 anos de idade.

Faixa Etária

Até 14 anos - 21,12%

15 a 64 anos - 73,04%

65 anos ou mais - 5,84%

Figura 48 - Composição das Categorias de Classificação de Faixa Etária no Engenho Velho da Federação
Fonte: Elaboração da Autora com a utilização de dados do Censo 2010/IBGE

Em relação aos rendimentos dos moradores do bairro, segundo os dados do Censo 2010,
Fonte: Elaboração da autora
cujos valores referem-se ao valor do rendimento nominal médio mensal das pessoas ativas
(pessoas de 10 anos ou mais de idade com rendimento), a renda média de 11% dos
moradores equivale a 3 salários mínimos (à época R$ 1.528,83), enquanto que o restante
dos moradores, 89%, possuem renda média de 1,7 salários mínimos (R$ 853,58), o que
constitui um bairro considerado como de baixa renda.

134
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Existe um percentual de rendas extras obtidas nos mercado informal de trabalho, os ‘bicos’,
cujos dados não são mensuráveis. No entanto, mesmo as rendas se tornando um pouco
mais elevadas que do que é apontado pelo IBGE, estas não equivalem aos mesmos índices
de qualidade de vida se relativizarmos um bairro deficiente na infraestrutura urbana (ruas
escuras, lixo acumulado, trechos com esgoto a céu aberto, falhas constantes no
abastecimento d’água, etc.) a outras áreas bem saneadas (presença de iluminação pública,
pavimentação, arborização, drenagem pluvial, regularidade na coleta de lixo, existência de
calçada e meio-fio, etc.), como estão espacializados os 11% de moradores com rendas
maiores, que correspondem aos setores censitários localizados entre a Av. Cardeal da Silva
e a Rua Henriqueta Catarino junto ao Parque São Gonçalo, conforme as Figuras 49 e 50, e
aos três setores censitários que correspondem à área do Parque Santa Madalena, como
pode ser observado na Figura 51.

Figura 49 - Rua Henriqueta Catarino (Ano: 2012)


Lado direito: divisa com o bairro do Engenho Velho da Federação
Fonte: Foto da Autora

135
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 50 - Rua Henriqueta Catarino (Ano: 2012)


Lado esquerdo: divisa com o loteamento Parque São Gonçalo
Fonte: Foto da Autora

Figura 51 - Parque Santa Madalena (Ano 2012)


Fonte: Foto da Autora
136
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Referente à Religião, segundo informações advindas da Supervisão de Disseminação de


Informações da Unidade Estadual do IBGE na Bahia, os dados das declarações sobre o
tema Religião são resultantes dos questionários aplicados nos domicílios por amostragem.
Os resultados da amostra do Censo 2010 não estão disponíveis para setor censitário,
subdistrito ou distrito, apenas para município.

Diante da impossibilidade de obter dados do IBGE de Religião, recortados por bairro, vamos
tomar, a título de menção, os dados coletados na pesquisa de campo realizada por Santos
(2011) no Engenho Velho da Federação. A pesquisa de Santos foi realizada com a
aplicação de 400 questionários, distribuídos de forma razoavelmente uniforme em áreas
distintas do bairro e aplicados a pessoas com mais de 25 anos, sendo que, para a variável
Religião, 8 questões não foram respondidas, totalizando em 392 respostas válidas. Os
dados do percentual de participações nas Religiões dos moradores do bairro em 2010,
segundo Santos (2011), são:

Religião
Sem
Católica Evangélica Espírita Candomblé Judaica Islâmica Outros Total
religião
% 62,5 16,3 2,6 5,6 0,0 0,0 4,8 8,2 100,0
Tabela 4 - Participações nas Religiões no Engenho Velho da Federação
Fonte: Elaboração da Autora com dados de Ueliton Santos (2011)

Vemos nos resultados fornecidos por Santos que a religião do Candomblé aparece pouco
representada no bairro. De acordo com o IBGE, o mesmo ocorre no município de Salvador:
num universo de 2.675.656 habitantes, segundo o Censo 2010, apenas 28.019 habitantes
(1,05%) se declararam adeptos das religiões da umbanda e do candomblé. No Brasil, os
adeptos da umbanda e do candomblé que aparecem no Censo 2010 são 0,3% da
população. No entanto, sabemos que estes dados não refletem a realidade do Engenho
Velho da Federação. Daremos continuidade a este assunto no Capítulo 5.

Com estas informações sobre o total de população, densidade demográfica, cor/raça, faixa
etária, renda e religião, podemos ter uma ideia do perfil dos moradores do bairro.

Com a desagregação do sistema escravista, a área das fazendas, pouco a pouco, foi se
consolidando como ‘bairro’ com a instalação de moradias, tendo como referência a
territorialidade dos terreiros já instalados. Uma vez que as fazendas perderam rendimentos
econômicos na sua função agrícola baseada no escravismo, deduzimos que estas foram
arrendadas, apoiadas no instrumento jurídico colonial, numa postura conservadora de
manutenção de concentração de terras, mantendo uma estrutura fundiária patrimonialista,
auferindo rendas ‘perpétuas’ aos proprietários.
137
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Temos em Dias (2003), o sistema de enfiteuse ou aforamento, instrumento jurídico de


parcelamento de terra instituído no Brasil no período colonial, como uma característica fundiária
em Salvador.

Segundo Araújo (2010), estas formas jurídicas, caracterizadas pelo direito de uso, serviram
como uma mediação a dar acesso ao solo urbano aos segmentos populacionais mais
desfavorecidos, sem implicar em perda de domínio das terras por parte das elites. As terras do
poder público se conformam pela enfiteuse; as grandes extensões de terras particulares de
propriedade da igreja católica e de famílias ricas se configuram pelo aforamento.

Este é o modelo adotado também no Engenho Velho da Federação, sendo configurado pelo
aforamento uma vez que são terras particulares. Na dissertação de Santos (2011), tivemos
acesso às escrituras de transferência de propriedade das fazendas Madre de Deus, em 1916, e
Roça do Engenho Velho, em 1953, junto aos cartórios de imóveis. Conforme os registros de
imóveis do cartório do 1º Ofício da Cidade do Salvador, as fazendas Madre de Deus e Roça do
Engenho Velho estão nomeadas, respectivamente, a Hermógenes Príncipe de Oliveira e a
Antônio Lopes Figueira. Esta titularidade, no entanto constitui, de fato, em irregularidade
fundiária, uma vez que a maior parte dos arrendatários interrompeu os pagamentos dos
arrendamentos há décadas, constituindo, portanto, objeto de usucapião.

No entanto, as terras não mais se constituem como fazendas e o processo de arrendamento dos
‘lotes’ [porções de terra] era assim definido:

[...] na condição que fossem construídas edificações rudimentares, ou com


pouca resistência, de forma incipiente e desprovida de qualquer
infraestrutura sanitária básica (SANTOS, 2011, p.30)

É necessário destacar as porções de terra que não eram lotes, e sim porções de ‘terra nua’. Já vimos
nas informações dos moradores que a ocupação do bairro foi caracterizada por autoconstrução
nestas porções de terra arrendadas, inclusive em relação aos acessos às porções de terra,
desbravando as matas, abrindo ruas com enxadas, foices e facões, etc. Através de
representantes/procuradores, os proprietários das fazendas constituíram, ao longo de várias
décadas, “parcelamentos” ilegais. Esta informação é comprovada nas documentações oficiais, como
o Inventário de Loteamentos (SALVADOR, 1977) e na LOUOS/1984, nos quais não há
parcelamentos oficiais registrados no Engenho Velho da Federação.

Segundo Miranda (2008), o arrendamento iniciado no bairro por volta da década de 1920 foi
descaracterizado, uma vez que as casas, inicialmente construídas em taipa, pouco a pouco
foram substituídas pelas construções em alvenaria de blocos, devido a um certo descontrole por
parte dos procuradores dos proprietários do terreno, ao mesmo tempo em que houve o
investimento de melhorias da infraestrutura urbana, mediante pressão dos moradores a políticos
e órgãos públicos.
138
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

A situação fundiária do bairro caracterizada pela irregularidade. Alguns estudos do Projeto


de Assessoria Jurídica da UCSal foram feitos sobre a situação fundiária do bairro, como
trabalhos de extensão universitária, facilitada pela localização na Av. Cardeal da Silva,
‘defronte’ ao bairro e permitiu maior interação com os moradores do bairro.

Com o passar das décadas, as terras do bairro foram sendo valorizadas pela ação de
melhorias dos próprios moradores, havendo um aumento dos procuradores dos
proprietários no bairro na cobrança dos arrendamentos. Os moradores, através da
associação dos moradores, começaram a se organizar na Comissão de Terra, surgindo
uma intensa campanha que recomendava a suspensão total do pagamento dos
arrendamentos, obtendo um êxito de cerca de 90%. Esta iniciativa também surtiu efeito
como pressão aos órgãos competentes44 para que providências fossem iniciadas para a
regularização fundiária do bairro.

É o que afirma o Seu Orlando quando se refere aos pagamentos de aforamento:

Nós [associação de moradores em gestões anteriores - década de 1990]


fizemos aqui uma campanha para ninguém pagar mais a anuidade. [...] As
benfeitorias daqui foram feitas pelos próprios moradores: as ruas, água,
energia, foi tudo de iniciativa dos próprios moradores. Eles se dizem
proprietários, mas nunca fizeram nada aqui! Nada, nada! Já era pra ter,
inclusive, o governo ter legalizado, dar o título de posse para cada um.

O adensamento do bairro se acelerou na medida em que os representantes/procuradores


‘revendiam’ porções dos terrenos desocupados quando os locatários estavam em atraso.
Vejamos a atuação da tal Dona Senhora, através da fala de Dona Maria Angélica:

Ela mesmo assinava o recibo e dava a gente, com selo, com tudo. Ela vinha
e cobrava todo mês uma quantia. O nome dela era Maria da Glória.
Chamavam ela de Senhora, Dona Senhora. Ela morava na Cardeal. Acho
que ela nem tinha casa. Ela era branca. Acho que ela convivia com esse
pessoal [os proprietários] que deu essa autonomia para ela cobrar. Ela saia
vendendo. O que ela via vazio, ela queria vender. Terreno que não tinha
casa, terreno desocupado... Todo mundo que tinha quintal grande, ela
dividiu e vendeu. Ela cobrava de porta em porta. Era branco que ‘táva
cobrando, n’é... Quem não pagava, ela cortava [dividia o terreno] e vendia.
Aluguel do terreno, tinha que pagar... As pessoas tinham medo de perder o
terreno. Quem não brigou, perdeu... Aí mudou o Engenho Velho.
Antigamente os quintais eram imensos. Ela fez uma limpa. Isso tem uns
cinquenta anos. Depois que eu me formei, achei que não devia mais pagar.
Só pago o IPTU.

44
Os agentes públicos capazes de efetuar tais políticas são de âmbito federal, estadual e municipal, que podem
ser mais efetivas em ações conjuntas dos Governos Municipal e do Estado, Ministério Público, Ministério das
Cidades e ainda agentes financeiros como a Caixa Econômica Federal.
139
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Quando Dona Maria Angélica fala em “resolver este terreno”, se referindo à regularização
fundiária, numa titulação definitiva:

Aí em cima tem muita reunião para passar para ser próprio. É mais em
época de política. Eu pago a prefeitura todo mês. Agora estou aguardando
resolver este terreno.

E ainda Dona Emerita conta como era na localidade da Avenida Parente:

Era Seu Hermózio que vendia os terrenos 'em dia de domingo' e também a
ele se pagava as prestações. Depois meu marido construiu três casinhas
nos fundos do quintal que eu alugo.

Outro morador que lembra bem desta época é Seu Nelito:

Essa área era dos Catarinos, eles que mandavam aqui dentro. Tinha uma
pessoa que tomava conta deste Engenho Velho da Federação. Era Dona
Senhora. A gente era um tipo de inquilino... Tinha também o Cabo Eraque...

Dona Amália, ex-moradora antiga do bairro, também descreve sobre o pagamento do


arrendamento:

O escritório era na Mangueira na Vasco da Gama. Aí todo ano pagava. O


dono era Carlos Príncipe e o empregado que cobrava era Cabo Eraque. Ele
é que tomava conta. Algumas pessoas conseguiram comprar. Mas era
muito dinheiro.

Havia muitos cobradores. Além de Dona Glória, Dona Senhora, havia também o Seu Amor,
outro cobrador das famílias Príncipe e Catarino.

Dona Joana explica como está o processo atual da situação fundiária no bairro:

O escritório é em cima da Igreja Internacional das Graças de Deus, na Rua


da Mangueira. Depois da palestra com Zezéu, nós paramos de pagar. As
cartas de cobrança continuaram chegando, mas a gente não pagava. Até
que chegou um determinado momento que eles começaram a chamar as
pessoas para comprar. E era um valor absurdo, muito alto. Agora parou de
chegar as cobranças. E agora ‘tá assim: nem ele recebe o dinheiro e nem a
gente tem escritura. Eu queria fazer um convênio com a prefeitura, mas
como eu não tenho escritura, não consegui.

Pelo fato dos terrenos serem arrendados, isto é, sem propriedade do usuário, os
procuradores dos proprietários de terra se compreendiam no direito de ‘cortar’ [parcelar] as
porções de terra não edificadas, como os quintais, por exemplo, e ‘vendiam’ [arrendavam] a
outros ‘locatários’.

140
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

A opressão aos moradores incidia por diversas maneiras: pelas cobranças do


arrendamento, em quantias elevadas, cobradas mensal ou anualmente; pela redução de
áreas de seus quintais e ‘terreiros’ (como eram chamados os jardins à frente das casas) e
pela expulsão das famílias das áreas arrendadas.

Muitos terreiros também passaram pelo mesmo processo de perda de áreas dos seus
espaços-mato, sendo áreas menos habitadas, pressionados pelos procuradores dos
proprietários ou mesmo tiveram suas áreas vendidas, à revelia, pelos proprietários.

A descaracterização da ambiência original do bairro avançava quando partes da área dos


terreiros eram por vendidas ou arrendadas pelos proprietários a pessoas estranhas à
comunidade, de maneira que lhe restringia cada vez mais o espaço, como aconteceu na
Casa Branca, segundo informa Serra (2005).

Por outro lado, houve também perda de área dos terreiros iniciada pelos próprios
herdeiros dos filhos e filhas-de-santo dos terreiros que foram ocupando, paulatinamente,
áreas que eram cedidas pelas lideranças dos terreiros, como já mencionado. A redução de
áreas se deu também por ‘invasão’, desfigurando as ocupações cedidas inicialmente para
ocupações forçadas, com uso de coerções “morais” ou físicas aos líderes religiosos.

No mapeamento elaborado por Rego (2006), boa parte do bairro do Engenho Velho da
Federação era ocupada por áreas de terreiro. Nos seus estudos de caso, a autora
reconstitui o território contínuo original de utilização e pertencimento dos Terreiros da
Casa Branca, Patiti Obá e do Bogum, conforme Figura 52, e a área original do Terreiro do
Cobre, conforme Figura 53, e a redução de suas áreas.

141
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura
Figura 52 53 - Mapa de delimitação da área do Figura 53 - Mapa de delimitação da área do
Figura 53
território contínuo de utilização e pertencimento dos Terreiro do Cobre (Elaboração: Jussara Rego)
Terreiros da Casa Branca, Patiti Obá e Bogum Fonte: Rego (2006)
(Elaboração: Jussara Rego)
Fonte: Rego (2006)

Seu Valter ilustra indignado sobre esta redução de área que os terreiros passaram através
de um caso de uma oficina mecânica, com acesso na esquina da Av. Vasco da Gama com a
Avenida Fonseca, o antigo Beco Júlio das Neves, cuja área foi cedida pela Casa Branca:

Teve um mesmo que não tinha onde ficar, o da oficina... Deram para ele
fazer a oficina e depois ele vendeu a oficina, vendeu! É complicado!

Ainda no contexto da Casa Branca, as mobilizações em torno da proteção da Casa Branca,


representada pela entidade civil Sociedade São Jorge do Engenho Velho, seguiram desde o
primeiro ano da década de 1980, visando garantir e preservar a área do terreiro, cuja
iniciativa se deu pelo Projeto MAMNBA, coordenado por Ordep Serra.

O tombamento do terreiro envolvia duas questões: a posse legal do terreno, apesar da


utilização da área por mais de 100 anos, sendo cogitada a utilização do instituto do
usucapião. No entanto, pelo recente pagamento do arrendamento pela comunidade do
terreiro havia o reconhecimento da propriedade dos arrendadores: “A solução que se mostrou
mais plausível, na época, foi o tombamento do terreiro” (SERRA apud CANTARINO, 1984).

Segundo Oliveira (2005), o suposto proprietário das terras, o arrendador, instalou à revelia
do terreiro um posto de gasolina na área da praça à entrada do terreiro, a Praça de Oxum.

142
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Foram mobilizados apoios de toda ordem. Articulações no meio do candomblé, nos meios
políticos, intelectuais, artísticos. A campanha encontrava eco na sociedade e todas as
iniciativas visavam à garantia da integridade do terreiro. Um conjunto de esforços adotados
e medidas estratégicas fomentaram o progressivo desinteresse comercial pela área,
viabilizando economicamente a desapropriação, e sua ressignificação como um Patrimônio
Histórico e Etnográfico do Brasil.

Neste tombamento da Casa Branca, segundo Serra, havia também uma novidade na
intenção conceitual: o reconhecimento de um patrimônio cultural do povo negro (Serra apud
CANTARINO, 1984). E assim, o tombamento municipal contemplou o Terreiro da Casa
Branca, conforme mostra a placa na Figura 54, e, por extensão, pelas proximidades de
vizinhança e contiguidade histórica e religiosa, os terreiros do Bogum e Patiti Obá.

Figura 54 - Placa dos Tombamentos Federal e Municipal do Terreiro da Casa Branca (Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora

O instrumento urbanístico, a APCP - Área de Proteção Cultural e Paisagística - estabelecido


pela Lei 3.591/85 que incide na área que abrange os terreiros da Casa Branca, do Patiti Obá

143
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

e do Bogum, em meio a tantos outros conflitos45, foi um reconhecimento das áreas dos
terreiros e seu entorno pelo planejamento urbano.

No entanto, a aplicação de instrumentos urbanísticos como desapropriações, regularização


fundiária e isenção de IPTU vem sendo conquistada de forma pontual, como muita
dificuldade pelos demais terreiros. E no caso do conjunto destes terreiros, a lei foi aprovada,
mas infelizmente não regulamentada. De maneira a preservar a privacidade dos terreiros
nas suas práticas rituais, não tem sido respeitado o cumprimento, nem controlado pelos
órgãos públicos, a limitação do gabarito em 02 pavimentos no entorno dos terreiros.

Este aumento excessivo de construções é parte do adensamento populacional no bairro,


decorrente de uma demanda de moradias para as populações de baixo poder aquisitivo. Na
década de 1970, no contexto do êxodo rural que acontece em boa parte das capitais
brasileiras, aumenta a concentração de população em Salvador com a chegada de
migrantes em busca de melhores condições de vida. Este inchamento populacional em
Salvador é caracterizado pela vinda de pessoas oriundas do interior do estado, e, no caso
do Engenho Velho da Federação, há uma presença marcante de pessoas vindas do
Recôncavo Baiano. Esta relação do bairro com o Recôncavo Baiano é antiga, até mesmo
entre terreiros, como no caso do Bogum e sua ligação com a cidade de Cachoeira.

Seu Nelito afirma enfático:

Aqui tem muita gente do interior: Santo Antônio de Jesus, Amargosa, Santo
Amaro, Ilha de Itaparica, Maragojipe, Cachoeira, São Francisco do Conde...

E também Dona Amália:

Ali mesmo naquele pedacinho onde a gente morava, veio todo mundo do
interior, de Santo Amaro, de São Sebastião, outro veio de Terra Nova...
Sempre os homens vinham para trabalhar na construção civil...

Em nossas pesquisas, confirmamos estes incrementos populacionais no Engenho Velho da


Federação mais acentuadamente nas décadas de 1960 e 1970, quando grandes obras do
sistema viário foram implantadas em Salvador.

No período pós-64, no governo municipal de Antônio Carlos Magalhães, em 1967, inicia-se


a grande transformação de Salvador com a implementação destas avenidas de vale,
proposto pelo EPUCS (Escritório do Plano Urbano da Cidade do Salvador), numa
implementação tardia do Plano Urbano dos anos 1940, ficando reduzido ao sistema de
avenidas de vale, as parkways (SAMPAIO, 1999).

45
Ordep Serra informa que o Terreiro da Casa Branca também teve a Praça de Oxum sob ameaça de leilão para
pagamento de IPTU, imposto isento aos templos religiosos.
144
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Em seguida, outras grandes obras ocorrem em Salvador. Pinheiro e Costa (2011)


descrevem o processo de descentralização em direção ao Centro Administrativo da Bahia -
CAB, identificado aos moldes de Brasília, e a implantação do Polo Petroquímico de
Camaçari, na década de 1970, dado o descobrimento do petróleo no final da década de
1940. As autoras dispõem que Salvador passa a se caracterizar por metrópole, incentivando
o surgimento de novos centros comerciais, como o Iguatemi:

Assim, decide-se apostar pela descentralização e por uma nova


centralidade, separando o centro empresarial, do centro administrativo e do
centro histórico, tendo atualmente cada um seu espaço específico
(PINHEIRO; COSTA, 2011, p. 5).

Estas grandes transformações da cidade foram grandes fatores de atração de trabalhadores


do interior do estado, sobretudo do Recôncavo Baiano, para Salvador, ocasionando o
adensamento da cidade e também do Engenho Velho da Federação. Os fluxos
populacionais do interior da Bahia se iniciaram desde a década de 1920. De fato, esta
informação se repete em várias entrevistas de moradores do Engenho Velho da Federação,
que retratam esta referência ao Recôncavo Baiano, como é o caso do Seu Nelito, cujos
familiares são de Santo Amaro, se confirmando também na fala de Dona Amália.

Numa análise de Fotografias Aéreas Verticais cedidas pela CONDER/INFORMS, podemos


associar as imagens e as informações oferecidas pelos moradores e instituições ao
processo de ocupação do bairro, através das fotos a seguir.

A fotografia aérea de 1959, que pode ser vista na Figura 55, mostra que a ocupação do
bairro se deu primeiramente nas partes mais altas, naturalmente por constituírem melhores
condições de acesso, uma vez que o bairro foi erguido diretamente sobre terra nua,
destituída de qualquer infraestrutura, arruamentos, calçamentos, drenagens, etc. Assim, as
áreas mais favoráveis à implantação das casas eram as áreas mais secas, arejadas e
ventiladas do bairro, as partes altas, cujos acessos, trilhas e caminhos de terra, foram
abertos em meio às matas, pelos próprios moradores.

145
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 55 - Fotografia Aérea Vertical - Ano 1959 (Nº 4186 - Escala Original: 1/25.000)
Fonte: Base Cartográfica SICAR/RMS (Créditos: CONDER/INFORMS) - Editada pela Autora

Ainda observando a fotografia aérea do ano 1959, vemos que os vales, grotões e brongos
(áreas sombreadas) eram pouco ocupados, com a existência de muitas áreas
caracterizadas por pequenas matas, como descreve Makota Valdina:

No final da década de 1940 e nos anos 50, 60 o bairro do Engenho Velho da


Federação tinha muito verde, muitas fontes; as casas eram construídas de taipa,
as melhores de adobe, cobertas com telhas ou com zinco. Todas as casas tinham
um quintal onde a gente brincava de dia. De noite, quando era lua cheia podíamos
brincar de roda, de adivinhações, ouvir e contar histórias e outras brincadeiras [...]
Tinha muito verde, muito mato e as crianças naquele tempo não tinham medo de
entrar no mato em busca de cajá, sapoti, ingá araçá, cajá-umbu, manga, abiu,
cacau... Um quintal dava pra outro e o limite eram cercas que dava p’ra gente
pular. Onde é hoje a Avenida Cardeal da Silva era chamado de Mata-maroto e
onde tem as escolas José de Anchieta, Henriqueta Catarino e Via Magia, toda
aquela área era chamada de “quebra-laço” [...], onde também se colocava muitas
oferendas do candomblé (Makota Valdina apud Nação Griô, 2008).

146
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Notamos que a rua principal do bairro, então denominada de Rua do Engenho Velho da
Federação, hoje conhecida como Rua Apolinário de Santana, já aparece com a configuração
dos diais atuais. Esta via era de terra e em alguns trechos era bem estreita, inviabilizando até
mesmo a passagem de animais de carga como jegues e mulas, como conta Dona Lindaura.
Este nome é uma homenagem ao grande jogador de futebol nascido no bairro, Popó Baiano:
Popó, o Terrível.

Podemos também observar que o Primeiro Largo do Engenho Velho, que surge da
bifurcação com a Rua Apolinário de Santana atual Rua São Sebastião, também já era bem
consolidado. Dona Laurinda e Dona Maria Angélica se referem a esta bifurcação em função
do acesso às fontes d’água, em direção à Baixa da Égua.

Comparando a Figura 55 com a figura das Vias Principais do Engenho Velho da Federação, a
Figura 22 (p. 110) e que mostra as vias existentes na atualidade, juntamente com a Figura 56
(detalhe da Figura 55), observamos que a Ladeira Manoel Bonfim não aparece. A via
assinalada em contraste, que dá continuidade à atual Rua Apolinário de Santana, é a Ladeira
Cel. João de Deus.

147
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 56 - Recorte da Fotografia Aérea Vertical (Ano 1959)


Fonte: Base Cartográfica SICAR/RMS (Créditos: CONDER/INFORMS)
Editada pela Autora

A Figura 56, quando comparada à Figura 52 (p. 142) com a delimitação de área dos Terreiros
da Casa Branca, Patiti Obá e Bogum (REGO, 2006), mostra claramente como a área que
pertencia ao Terreiro do Bogum era unificada, com a atual Ladeira Cel. João de Deus
passando por detrás de seus domínios, em que também aparece a Rua Alafin. Embora
houvesse casas e barracões nas áreas dos terreiros, não é possível identificá-los devido à
densa cobertura das copas das árvores.

Além da Ladeira Cel. João de Deus, temos também caminhos com ‘lotes'/ocupações na
Descida do Madruga, a atual Travessa Valter Ferreira; na Rua São Sebastião, que, segundo
Dona Maria Angélica, era chamada de 3ª Travessa do Engenho Velho da Federação, com
acesso à Baixa da Égua; e na Rua das Palmeiras, próxima à Av. Vasco da Gama.

148
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Em meio às áreas de mata, observamos áreas descampadas nas baixadas do bairro, a


Baixa da Égua, sendo as partes mais planas onde as hortas eram cultivadas (cujo contorno
está assinalado com linha amarela).

É deste período a lembrança de Dona Joana em relação à Rua Xisto Bahia, que ainda não
possuía este nome. Era uma trilha que saía na atual Av. Vasco da Gama e era chamada de
Rua do Pau Zerrém (Terreiro do ser Aprígio):

Essa rua aí era muito mato, matagal mesmo, de barro. Não tinha luz elétrica
e a gente passava aí só com o clarão da Lua. Depois que abriu a rua,
calçou e depois asfaltou, é que botaram o nome de Xisto Bahia.

Figura 57 - Fotografia Aérea Vertical - Ano 1976 (Nº 2259 - Escala Original: 1/8.000)
Fonte: Base Cartográfica SICAR/RMS (Créditos: CONDER/INFORMS) - Editada pela Autora

Na sequência de 17 anos, percebe-se, na fotografia aérea tirada em 1976, como pode ser
observado na Figura 57, o processo acelerado da ocupação do bairro. Nas áreas de melhor
acesso, as grandes áreas de mata foram suprimidas, ficando exíguas e restritas às áreas dos
terreiros, ao interior de quintais, às encostas e aos grotões. Já aparece a Ladeira do Bogum,

149
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

denominada oficialmente de Manoel Bonfim, que era um caminho bem íngreme e estreito, e
que foi aberta com trator pela prefeitura, na década de 1970. Boa parte dos inúmeros
caminhos de terra de acesso às casas aparece acompanhando as curvas de nível, sendo
possível observar também as áreas destinadas às hortas na Baixa da Égua.

Ainda na fotografia da Figura 57, em relação à região onde o Engenho Velho da Federação
está inserido, também podemos perceber o quanto o bairro tornou-se mais densamente
construído, ao longo destes 17 anos, quando comparado com o seu entorno, onde
permaneceram áreas vazias: áreas não edificadas e áreas verdes. Esta desproporção de
ocupação demonstra a insuficiência das políticas habitacionais que constitui a carência de
oferta de moradia para as populações mais pobres, concomitante ao sentido agregador
difundido pelos terreiros, em que podemos atribuir à própria concentração dos terreiros
como fator de atração, na sua dinâmica cultural e cultural agregadora.

Figura 58 - Detalhe da Fotografia Aérea Vertical (Ano 1976)


Fonte: Base Cartográfica SICAR/RMS (Créditos: CONDER/INFORMS)

A fotografia da Figura 58 é um detalhe da Figura 57 e pelo colorido da foto, podemos notar,


com nitidez, que a densidade construtiva do bairro era relativamente baixa, apesar da rápida
ocupação. Os quintais ao fundo das casas são perceptíveis e os telhados em telhas de
barro indicam que deveriam ser raros os casos de construções com mais de um pavimento.

150
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

As análises destas fotografias como fontes documentais são comprovações das entrevistas
com os moradores, através de suas falas: “Aqui era muita barro, muita lama. Quando chovia
então”... ou ainda, através de suas próprias fotografias. Dona Albertina, por exemplo, nos
forneceu dados sobre sua rua, a Avenida Passos, localizada entre a Baixa da Égua e a Av.
Cardeal da Silva. Gentilmente, Dona Albertina nos cedeu fotografias de sua família, nas
quais aparecem suas crianças brincando46 na rua de terra, como podemos verificar no
conjunto de fotografias da Figura 59:

Figura 59 - Conjunto de fotografias dos filhos de Dona Albertina e Seu Ioiô na Avenida Passos (Ano: 1977)
Fonte: Fotos da Família Santos

46
Nota-se que numa das fotografias, as crianças brincando de terreiro, na qual há uma menina que representa a
mãe-de-santo, utilizando torso e colares.
151
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

As ruas de terra são recorrentes nas falas dos moradores. Dona Maria Angélica dizia:

A rua era de barro: tinha um rego no meio, onde a água descia, e todo
mundo caía. Depois o rego foi coberto pelos próprios moradores que
abriram a rua nesta largura que é hoje, com duas calhas nas laterais. Quem
primeiro melhorou a rua foram os moradores. Depois que veio um vereador
que botou asfalto.

Seu Edílzio, também morador da Rua São Sebastião, vizinho de Dona Maria Angélica:

Muito pé de manga, horta aí embaixo, flores que o pessoal vendia na feira


Dois de Julho. Isso aqui tudo [na frente da casa] era muito barro, quando
chovia era um lameiro danado, não descia carro, carroça, nada.

Neste período, as casas ainda não tinham água encanada. Muitas fontes ainda eram
utilizadas. Dona Maria Angélica também conta que com o tempo, apareceram alguns
chafarizes:
Depois veio a água encanada no chafariz, a gente ficava na fila enorme. Ali
se sabia das fofocas... A água vinha do Garcia.

A rede elétrica veio depois. Colocaram primeiro os postes de madeira, seguidos dos postes
de ferro. Mas, segundo Seu Valter Neves, “dava aquele problema, o povo levava choque.
Uns até morreram...”. Posteriormente os postes de concreto foram instalados.

Ao longo de mais 22 anos, em 1998, o bairro do Engenho Velho da Federação apresenta


uma densidade construtiva bem próxima da atual, como é possível observar na Figura 60.

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 60 - Fotografia Aérea Vertical - Ano 1998 (Nº Fx 26A - Foto 017 - Escala Original: 1/8.000)
Fonte: Base Cartográfica SICAR/RMS (Créditos: CONDER/INFORMS)

Nesta constituição urbanística do bairro configurada por diversos fatores, salientamos o


modo como ocorreu o parcelamento do solo, as condições de renda dos moradores, a
topografia acidentada, os processos construtivos, as atuações das administrações públicas,
a localização do bairro na cidade, etc., enfim, assinalamos como se deu a ocupação do
bairro, preconizadas pelos terreiros de candomblé.

2.2.3 - Os Terreiros do Engenho Velho da Federação

Explicitamos anteriormente que escolhemos o bairro do Engenho Velho da Federação por sua
histórica característica de concentração de terreiros, sendo este um dos pontos que
condiciona este estudo, sendo os terreiros nucleadores urbanos deste bairro, isto é,
agenciadores de espacialidades urbanas. Como expõe Jaime Sodré, que possui cargos
religiosos em terreiros do bairro, sendo ogã no Terreiro do Bogum e xincarongoma no Terreiro
Tanuri Junçara: “os primeiros núcleos de concentração de pessoas no bairro seriam terreiros”.

153
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Também a pesquisadora Márcia Conceição Correia, em seu estudo sobre formações


familiares negras e lideranças femininas, verificou, através de entrevistas a moradores
antigos, que o povoamento no Engenho Velho da Federação foi iniciado por africanos e
descendentes que buscavam espaços para construírem moradia e realizarem seus cultos.
A pesquisadora informa que o candomblé se estabeleceu na área e tornou-se marco do
povoamento do bairro, tendo as mulheres negras um importante papel na conformação
destes territórios.

A concentração de terreiros no bairro é significativa: não só pelos dados quantitativos os


terreiros são importantes, mas, sobretudo, pela disseminação das dinâmicas culturais
afro-brasileiras, que extrapola o aspecto religioso da comunidade litúrgica, configurando
também uma forma de resistência das culturas negras e ultrapassando as fronteiras
físicas do terreiro.

Apresentamos no subitem anterior a formação histórica do bairro do Engenho Velho da


Federação e indispensavelmente citamos alguns terreiros no processo de constituição do
bairro. Mas além dos terreiros citados, aparecem na Figura 61, outros terreiros do bairro.
Também estão sinalizados terreiros que já não existem mais, terreiros que há anos estão
desativados, terreiros posicionados em bairros adjacentes (além da nossa delimitação do
bairro), havendo, no entanto, em todos eles a importância, em seus respectivos espaços -
tempos nas suas dinâmicas culturais, como formadores da composição do Engenho
Velho da Federação, tanto pelas redes socioculturais que os terreiros engendram, quanto
pela via espacial.

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

O Mapeamento dos Terreiros (2008) aponta 14 terreiros no bairro do Engenho Velho da


Federação e na Av. Vasco da Gama, estando alguns situados nas áreas limítrofes ao bairro
e que consideramos nele integrados. O Quadro 1, abaixo, relaciona os terreiros do bairro
conforme o Mapeamento, apresentados na sequência da data de fundação; os terreiros que
não temos a informação da data de fundação estão marcados por N.I. (Não Identificado):

Quadro 1

Ano Terreiro Endereço


1 1835 Zogodo Bogum Male Rundó Ladeira Manuel Bonfim, 35
2 1856 Iyá Nassô Oká / Casa Branca Trav. São Jorge, 65 / Av. Vasco da Gama, 463
3 1906 Terreiro do Cobre Rua Apolinário de Santana, 154
4 1906 Ode Mirim Rua Apolinário de Santana, 48
5 1907 Obá Tadé Patití Obá / Patiti Obá Ladeira Manuel Bonfim, 23
6 1922 Terreiro Aba Funjá Rua Sérgio de Carvalho, Vila Dinorá, 17E
7 1936 Obá Tony 2ª Trav. da Ladeira da Paz, 29
8 1955 Tanurí Junçara Rua Apolinário de Santana, 140
9 1958 Alarabedê 2ª Trav. Ap. de Santana / Av. Francisco, 46
10 1967 Ojo Bomim Travessa das Palmeiras, 61
11 1971 Centro de Giro Ogum de Cariri 2ª Trav. São José, 64E
12 1975 Mana Dandalunda Oyá Rua Apolinário de Santana, 209
2
13 1998 Ojuirê Rua Apolinário de Santana, 188
14 2000 Omim Onadô Rua Xisto Bahia, Trav. Cosme, 22

Em nossa pesquisa, além dos terreiros que compõem o Mapeamento, no Quadro 2


identificamos:

Quadro 2
Ano Terreiro Endereço
1 1988 Awá Negy R. São Romão
2 N.I. Iyá Loci Ladeira da Paz
3 N.I. Pai Dinho Travessa Palmeiras
4 N.I. Gentil das Matas R. São Romão
5 N.I. Mãe Bete de Oxalá Travessa Palmeiras
6 N.I. Caboclo R. São Romão
7 N.I. Bamburusena Travessa São José

E ainda encontramos 06 terreiros no bairro, conforme Quadro 3, que estão desativados:

Quadro 3
Ano Terreiro Endereço
1 N.I. Dona Minacó 3ª Trav. Apolinário de Santana
2 N.I. Dona Maria Helena Travessa Assis / Rua Ibitupã
3 N.I. Seu Ioiô Avenida Passos
4 N.I. Dona Das Neves R. São Sebastião
5 1941 Lajuomin Rua Xisto Bahia

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Além dos terreiros anteriormente relacionados, alguns situados em localidades e bairros


adjacentes na atualidade, como o Alto do Sobradinho, Federação, Vale do Ogunjá, Mata-
Maroto e Alto do Cangira, compuseram também as relações de vizinhança e sociais do
Engenho Velho da Federação, uma vez que os terreiros eram interligados por amplas áreas
de mata e rios e unidos por trilhas, não existindo uma rígida delimitação entre os bairros.
Assim, consideramos que estes terreiros, indicados no Quadro 4, também fazem parte do
universo dos terreiros que contribuíram para a formação do bairro:

Quadro 4

Ano Terreiro Endereço


47
1 1890 Ibá Oluaeí / Ibá Ogum Alto de Sérgio de Carvalho, 39E - Vale da Muriçoca
2 1905 Oxumaré 2ª Trav. Pedro Gama de Baixo / Av. Vasco da Gama
3 1926 Odé Av. Edith, 76E - Federação
4 1936 Cocio Dé Canifá Olorum Iá Caloci Rua Silvestre de Farias, 55E - Federação
5 1976 Unzo Kaiango Kyanguzu Rua Pedro Gama, 74 - Federação
6 1978 Iá Iamidé / Casa das Águas Mães Rua 4 de Dezembro, 144 - Federação
7 1984 Obagegemim Rua Padre Eloy, 15 E - Vale do Ogunjá
8 2002 Unzo Oramim Kei de Unzambi 2ª Trav. Sérgio de Carvalho, 24 - Mata Maroto
9 N.I. Ominidê R. Pedro Gama - Federação

Na relação com a Casa Branca, destacamos, em especial, o Terreiro de Oxumaré, em que


ambos mantêm uma proximidade de vizinhança dados os frequentes e históricos
intercâmbios, mas não pela proximidade de contiguidade de limites. Como afirma Oliveira
(2005): “uma relação de vizinhança especial e privilegiada, com trocas contínuas de
visitações” (p. 301).

No bairro vizinho, o Alto do Cangira, cujo nome, a palavra Cangira, é de origem bantu e
significa lugar onde são realizadas algumas danças religiosas, encontramos mais 03
terreiros.

Como informa Dona Vitória, filha da Mãe Feliciana, já falecida, cujo terreiro está desativado
e onde atualmente se localiza a sede da Associação de Moradores do Alto do Cangira e que
também funciona na área anexa um centro cultural, esta localidade era vizinha do Engenho
Velho da Federação, cujos acessos eram trilhas por meio da mata.

Dona Vitória, nascida no terreiro, acompanhou muitas vezes a mãe nas festas dos terreiros
vizinhos no Engenho Velho e conta que nas picadas havia grandes pedras e fontes: “Havia
no caminho muito esconderijo”.

47
Foi muito tempo liderado por Luís da Muriçoca, um famoso babalorixá do candomblé (Alto do Sobradinho).
157
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

No Quadro 5, temos a lembrança de Dona Vitória de mais dois terreiros, além do de sua
mãe: o de Dona Lourdes e o de Dona Luzia.

Quadro 5

Ano Terreiro Endereço


1 N.I. Mãe Feliciana [desativado] Ladeira do Zazi - Alto do Cangira
2 N.I. Dona Lourdes [desativado] Rua do Cangira - Alto do Cangira
3 N.I. Dona Luzia [extinto] Av. Vasco da Gama / R. Waldemar Falcão - Acupe

Acreditamos que esta diferença quantitativa de terreiros se dá pelos motivos apontados na


metodologia adotada no Mapeamento de Salvador, no qual dos 1.410 terreiros identificados,
foram cadastrados 1.162 terreiros. Segundo as informações contidas na sua publicação,
foram excluídos do cadastramento aqueles terreiros que estavam fechados pelo falecimento
de seus líderes religiosos, os terreiros que migraram para a RMS e os terreiros cujas
lideranças se recusaram a responder o questionário adotado na pesquisa. Jocélio Teles dos
Santos, coordenador do Mapeamento (2008), atribui a recusa em participar do Mapeamento
às perseguições que os terreiros sofreram, desde os séculos 18 ao 20: policial, da imprensa,
da igreja católica, do poder público e, nas últimas décadas, de grupos neopentecostais.

Para nossa pesquisa, no entanto, a existência dos terreiros identificados por nós, e de
outros já extintos, nos suscita uma valoração qualitativa das influências civilizatórias dos
terreiros, ao longo do tempo, na constituição do bairro. Entendemos esta característica
quantitativa dos terreiros no bairro como uma importante, ou fundamental, interferência
direta em sua vida cotidiana, que para alguns moradores será positiva, favorável e até
mesmo relevante; para outros, é indiferente e, ainda, para outros moradores, será uma
presença repulsiva. Mas sempre os terreiros serão uma referência.

Como informa Seu Nelito: “O candomblé sempre foi muito forte no bairro”.

Vemos esta fala do Seu Nelito nas práticas de moradores e adeptos dos terreiros do bairro.
São várias as demonstrações de manifestações da vida dos terreiros no bairro. No mês de
agosto, muitos adeptos saem às ruas do bairro em ritual para o orixá Obaluaê, com seu
alimento preferido, a pipoca, visitando alguns terreiros e solicitando, de casa em casa,
doações para sua festa. Em períodos de obrigações para Obaluaê, é comum ver as filhas e
mães-de-santo dos terreiros caminhando pelas ruas do Engenho Velho da Federação:
ricamente vestidas com suas batas, rendas, torços, pulseiras e colares coloridos e pés
descalços, revelam que a peregrinação é, na verdade, uma prova de humildade.

No caso do Terreiro do Seu Ioiô, que está fechado desde seu falecimento, pudemos
“resgatar”, através de sua esposa, Dona Albertina, parte da atuação do terreiro no bairro
158
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

através dos cortejos de São Lázaro que a casa promovia. Outro terreiro desativado é o
Dona Minacó, também muito presente na memória dos moradores, ou ainda um outro mais
antigo, o de Dona Das Neves, mãe de Seu Edílzio. E ainda o terreiro da já falecida Dona
Maria Helena, que “ainda toca”, mas não é considerado um ‘candomblé’. No entanto,
continua sendo uma referência no bairro, sobretudo quando acode a vizinhança doando
água da sua fonte nas frequentes faltas d’água no bairro.

Além dos terreiros que conseguimos demarcar sua localização, existiram ainda outros que
estão na memória dos mais antigos, como recorda Seu Nelito, morador do bairro há 59
anos: “Antigamente a gente tinha aqui 45 candomblés, há uns 50 anos atrás”. E cita os
terreiros de Cipriano (Patiti Obá), de Dona Zinha, de Carrinho de Catendê, de Dona Elza, de
Dona Mineira, de Zé Boiadeiro, de Dona Célia. Dona Albertina, esposa do Seu Ioiô, também
lembra de outros terreiros: de Dona Bela, na Fonte do Forno, do Seu Germano, e de Dona
Vanda, na Rua do Açúcar (atual Rua Ibitupã).

Como já salientado, os terreiros vão surgindo pela expansão da família-de-santo, quando


um filho ou filha-de-santo do terreiro funda uma nova casa. Nos primórdios do bairro, era
possível que os filhos-de-santo dos terreiros do bairro se instalassem ali, nas proximidades.
No entanto, à medida que ia havendo o adensamento do bairro, esta opção se tornava cada
vez mais difícil, obrigando os pais e mães-de-santo a instalarem-se em outros bairros ou,
ainda, fora dos limites da cidade.

Esta família-de-santo gera inter-relações mútuas e com outras famílias-de-santo. No


entanto, as inter-relações de terreiro não ocorrem apenas entre os terreiros ‘descendentes’
de um terreiro inicial, mas também entre terreiros oriundos de outras casas e entre terreiros
de várias nações. Forma-se uma trama de relações, informações e contatos, incluindo
reciprocidade em visitações nas festas públicas, ou relações de ‘apadrinhamento’ de
adeptos que possuem cargo, como, por exemplo, ogãs e equedes, de uma casa para outra.

Esta forma social negro-brasileira que, para além de consistir em comunidade litúrgica,
propiciou o entrosamento comunitário para além dos terreiros, sendo parte do processo
cultural constituído pela diáspora africana no Brasil. Assim, tomamos o capítulo seguinte
explorando alicerces culturais negros como forma de produção de conhecimento.

159
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

CAP. 3 - PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO URBANO A PARTIR DAS CULTURAS NEGRAS

As culturas e processos históricos de populações negras do Engenho Velho da Federação,


em uma análise urbanística desenvolvida nesta tese como um bairro negro, foram tratados
no âmbito da perspectiva das populações negras no sentido civilizatório, como presença
civilizatória, a partir dos seus entendimentos de mundo, nas suas formas de
“relacionamento com o real”, produzindo conhecimento urbano a partir das culturas negras.

3.1 - Diáspora Africana

Tomamos por ponto de partida que as vivências de populações negras são resultado das
culturas e processos históricos decorrentes da diáspora africana. Como já nos referimos
anteriormente, o deslocamento de pessoas não implica somente na transposição de
corpos, mas também de instituições culturais e políticas.

Diáspora significa dispersão de povos, ocorrendo sob diversas motivações: forçadas,


políticas ou por motivações religiosas. Tendo havido esta grande dispersão de africanos
mundo afora, nosso entendimento de Diáspora Africana passa por uma ressignificação
conceitual, considerando-a também uma construção política. Entendemos este conceito
como algo coletivo, como um somatório da experiência comum de povos de origem
territorial africana e um resultado da persistência de sobrevivências culturais africanas
sobre os afrodescendentes (sob uma visão global, mantendo, no entanto, as
particularidades próprias aos afro-brasileiros, aos afro-americanos, aos afro-caribenhos e a
outros afrodescendentes de distintas nacionalidades).

Partimos da construção teórica e ativista da Diáspora Africana como projeto político que se
desenvolve a partir dos povos negros, diaspóricos ou não, com o intuito de reação (e ação)
à dominação política, econômica, cultural, espacial, intelectual, ideológica e que se
desdobra num conjunto de significados que se aplica contrária, histórica e
sistematicamente, à população negra. A Diáspora Africana constitui um projeto de
construções de pensamento autônomo, retomando novas perspectivas, em paralelo às
(múltiplas) definições do Ocidente, representadas por alternativas conceituais,
48
metodológicas, filosóficas e, sobretudo, políticas .

48
Perspectivas atuais de intelectuais e ativistas sobre a análise da formação da negritude estão sendo
articuladas como um instrumento transnacional teórico e crítico que não se aplica apenas aos estudos e políticas
sobre a negritude. Este conjunto surge como uma proposta de abranger políticas de ação e reação à hegemonia
vigente para promover a libertação a todos os povos oprimidos (Manifesto da Universidade do Texas em Austin:
uma ‘aproximação’ à Diáspora Africana ou à Diáspora Negra). Disponível em: <http://cdy.sagepub.com>. Acesso
em: 25 jun. 2007.
160
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

É neste âmbito que pautamos subsídios para a compreensão de uma produção de


conhecimento a partir das culturas negras, demonstrando que há outras formas de
produção de conhecimento além das formas processadas pelas sociedades ocidentais,
pautadas por uma orientação diferenciada dada pelo pensamento africano, nas suas
múltiplas vertentes, processado na diáspora africana.

3.1.1 - Contextos das Populações Negras na Diáspora Africana no Brasil

Fora do continente africano, Salvador é a maior cidade de população negra do mundo. A vinda
de africanos para Salvador, iniciada no século 16, está atrelada às relações globais de produção,
tendo sido o sistema mercantilista, vigente à época, subsidiado pelo escravismo criminoso49 que,
por sua vez, ofereceu suporte financeiro ao capitalismo, numa reação em cadeia global.

As populações negras enquanto grupos sociais negros surgem num contexto histórico
marcado pelas demasiadas proporções da diáspora africana, admitida pelo acatamento aos
discursos de dominação, pautando as desigualdades étnicas.

Muito da discussão sobre a desigualdade étnica está pautada num racismo proveniente do
conceito de raça e/ou raça social. Raça, como um conceito biológico, surge no fim do século
15. Mas, segundo Coquery-Vidrovitch (2004), a utilização do conceito para definir
pertencimentos e diferenciações humanas a grupos pelos aspectos biológicos, conferindo
concepções hierarquizadas entre as diferentes populações humanas, surge no fim do século 17.
Este período demarca a franca dominação europeia sobre a África e a consolidação do
escravismo, como modo de produção, servindo como uma ideologia de discriminação e
dominação europeia50.

A instauração da diferença, salientada pelos homens através da ‘sofisticação’ das partilhas,


da delimitação dos espaços, da divisão dos grupos, da instituição de normas, da
conformação das práticas são dados a perceber como naturais e chegam a produzir a
própria realidade, fazendo com que indivíduos vivam pelo e para o imaginário
(PESAVENTO, 2002).

49
Na Declaração de Durban, em 2000, realizada na Conferência Mundial na África do Sul, a submissão dos
africanos e seus descendentes ao escravismo foi decretada crime contra a Humanidade. Anteriormente, o Papa
João Paulo II, representante da Igreja Católica de Roma, pediu desculpas à Humanidade por este ato. O pedido
de desculpas, no entanto, é incapaz de apagar todas as barbáries e mazelas causadas pelo escravismo
criminoso, ainda vivenciadas por todos os africanos e seus descendentes tanto no continente africano, como no
resto do planeta.
50
O racismo atinge os negros e também os indígenas. Talvez com menor visibilidade que nas áreas urbanas,
mas também com maior virulência, o racismo perpetua nas áreas do interior, não só da Bahia, mas no interior do
Brasil, onde as velhas práticas coronelistas ainda se aplicam, em que quilombolas e indígenas são alvo de
ataques violentos. Temos o caso do Quilombo do Rio dos Macacos, em Simões Filho, na RMS, ou no baixo Sul
da Bahia, em Caravelas, o Quilombo de Volta Miúda. Contra os indígenas temos o exemplo dos indígenas Hãe
Hãe Hãe, que sofrem reações violentas não só pela defesa de suas terras, mas no acesso às políticas públicas
pautado pelas desigualdades no sistema educacional ou de saúde pública.
161
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Segundo Pesavento, a força das representações na construção do mundo produz uma cadeia
simbólica de sentidos que se organizam segundo a lógica da diferença e que são dados a
perceber como naturais, sendo efetivados no domínio do simbólico, sacramentando os
significados, as funções, os papéis e valores, reafirmando a construção contraditória da realidade:

A existência social possui regras, códigos e valores que qualificam territórios,


pautam a conduta e definem papéis. A violação de tais normas vai da
rebeldia ao crime, passando por gradações de valoração em padrões de
julgamento moral, racial e até mesmo estético (PESAVENTO, 2002, p. 23).

Estas formas de encarar o outro são distintas e entendemos que, na visão de mundo etnocentrista,
o outro é admitido como inferior, analisado segundo seus próprios padrões civilizatórios:

A crença 'racionalista' na supremacia europeia [...] forneceu justificativas


filosóficas ao sistema escravagista, fazendo com que até mesmo a Revolução
Francesa rejeitasse com veemência a libertação dos escravos nas Colônias.
Assim os valores universalistas de democracia e de liberdade vieram tingidos
desde seu nascedouro das marcas de um limite: o da cidadania restrita,
reconhecida apenas aos brancos ocidentais (PETIT, 2007).

Esta ideia - reforçada ao longo dos séculos 17, 18 e 19 e que antecede o imperialismo do
século 16 e transcende ao imperialismo do século 19 - viabiliza a dominação europeia no
século 19 e ‘dissemina’ um saber ocidental com uma nova consciência planetária,
constituindo visões de mundo, autoimagens e estereótipos, atribuindo para si a missão
civilizadora em relação ao mundo asiático e africano (HERNANDEZ, 2006; SCHWARCZ,
1993; COQUERY-VIDROVITCH, 2004).

Serra assinala o Ocidente, na sua reflexão entre o exótico, sendo o negro assim convertido,
e o familiar:
o quase-ubíquo, incontido, com uma fronteira fluida deslocada para a ideologia
que o descreve: o Ocidente que se produziu criando com violência intelectual e
política um Oriente bizarro, mágico, inferior (SERRA, 1995, p. 179)

Outro aspecto determinante que respaldou a suposta inferioridade dos negros,


anteriormente às suposições científicas, foi o aval da Igreja Católica Apostólica Romana
durante o seu processo de expansão, afirmando que a África era uma ‘terra de escravos’,
isto é, naturalizando o africano como escravo. O Padre Antônio Vieira convenceu o Rei de
Portugal a parar com a escravização dos índios e importar peças da Costa, os africanos
(TAVARES, 1996), por serem considerados fogos, isto é, indivíduos sem alma e, portanto,
seres inferiores. Há uma interpretação na Bíblia, segundo Schneider (2006), que associa os
negros africanos aos filhos de Cam, filho de Noé. Esta interpretação foi utilizada
ideologicamente para naturalizar os africanos como inferiores em relação aos europeus.
162
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

O escravismo sempre fez parte da história da humanidade, não sendo uma prática exclusiva
da África. No entanto, neste continente, foi avassalador, como afirma Carlos Moore:

A hemorragia humana que a África conheceu com os diferentes tráficos


negreiros, de uma parte, e com a colonização europeia, de outra, nunca
teve paralelos na história da humanidade. Simplesmente, se tratou de um
genocídio racial (MOORE, 2010, p. 68-69).

Moore (2010) elucida que os tráficos atlânticos foram bem organizados, com ampla
participação de uma parcela das elites dominantes africanas, com potencialização dos
colonizadores europeus para os tráficos de populações escravizadas oriundas das guerras
entre Estados nas suas rivalidades clânicas.

Explicamos aqui que o escravismo como modo de produção à custa de mão-de-obra


escravizada nas Américas e, posteriormente, como atividade lucrativa por si só, ocorreu em
contexto bem distinto do escravismo que acontecia na África. A escravidão que existia, bem
anterior ao tráfico atlântico, era decorrente da punição aos prisioneiros de guerra. A
escravidão no interior da África obedecia a modalidades bem diferentes das que se
processaram no Brasil. Lá, o escravizado não era considerado como ser inferior; pertencia
ao clã. Apesar de serem tolhidos de muitos de seus direitos, seus filhos nasciam livres
(PAULME, 1977 apud NASCIMENTO, 1989).

A instituição escravista africana pré-colonial constituiu-se de uma prática em contexto


diverso do que se tornou o violento e desumano escravismo comercial, em que o
escravizado, onde fosse incorporado, contribuía para o acúmulo da energia vital. Segundo o
escritor nigeriano Chinua Achebe (1983), retratando esta filosofia no romance O mundo se
despedaça, o outro, o escravizado, era respeitado em sua diferença, merecedor das honras
de hospitalidade, realçando a identidade própria do hospedeiro e valorizado pela diferença,
destacando a sua pertinência grupal.

No Brasil, a presença de africanos é marcada majoritariamente de forma compulsória pela


escravidão, que resultou no terror racial marcado pela desumanização, pela exploração e
pela dominação, e que hoje chamamos de racismo. Segundo Hernandez (2006), somos
descendentes de cerca de quatro milhões de africanos escravizados, vindos da África entre
os séculos 16 e 19.

Numa revisão de autores e produções sobre estudos afro-brasileiros na Bahia, Soares (2012)
evidencia em Luiz Viana Filho (1946), em O Negro na Bahia, as procedências dos africanos
para o Brasil, estabelecendo ciclos do tráfico negreiro entre os séculos 16 e 19. A
historiadora considera importante a contribuição do autor para a compreensão da dinâmica
do tráfico:
163
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Para o século XVI, o autor denomina de Ciclo da Guiné, ciclo de Angola para
o século XVII; Costa da Mina e o Golfo do Benin compreendem o terceiro
Ciclo, ocorridos nos Setecentos aproximadamente até 1815. Já o último
Ciclo, ou seja, o quarto se distingue pela sua vigência na “fase da
ilegalidade”, compreendida entre 1816 a 1851 (VIANA FILHO, 1988 [1946],
p. 38 apud SOARES, 2012, p, 277).

Também convém evidenciar que nem todos os africanos vieram para o Brasil sob a
condição de escravizados. Já havia um intercâmbio entre Brasil e África na
comercialização de produtos, havendo uma imigração por interesses econômicos. Ou
ainda por perseguição religiosa: Videira e Cunha Junior (2007) ressaltam que africanos
exilados-políticos da região do Marrocos também foram deportados quando da ocupação
portuguesa no norte africano. Estes africanos foram fixados pelos colonizadores
portugueses no norte do Brasil, na região do atual estado do Amapá, como parte da
estratégia de ocupação do território.

O geógrafo e professor Rafael Sanzio elaborou vários mapas relativos aos fluxos
migratórios da Diáspora Africana, expondo rotas de deslocamentos humanos e culturais,
com a peculiaridade de serem mapas recentes e direcionados para a especificidade
brasileira51. No entanto, as imagens dos mapas de grandes dimensões não estão
disponíveis em arquivos digitais para a reprodução impressa.

Utilizamos, portanto, o Mapa do professor americano Joseph Harris, que também


apresenta com várias rotas em períodos distintos da Diáspora Africana, como mostra o
mapa da Figura 62:

51
O mais recente dos mapas produzidos por Anjos é:
ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. Geopolítica da Diáspora África - América - Brasil Séculos XV-XVI-XVII-
XVIII-XIX - Cartografia para Educação. 1. ed. Brasília - DF: Mapas Editora & Consultoria, 2012. v. 1. 18p.
A Ficha Técnica está disponível em: <http://www.rafaelsanziodosanjos.com.br/images/PDF/ftpt.pdf >. Acesso em:
30 abr. 2013.
Há também um vídeo do mapa disponível no YouTube: Geopolítica da Diáspora: África - América - Brasil.avi.
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=ircSmqZvPwI&feature=youtu.be>. Acesso em: 30 abr. 2013.
164
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

52
Figura 62 - Mapa da Diáspora Africana por Joseph Harris
Fonte: Bertol, 2005 - Editado pela Autora

Vemos no mapa da Figura 62 as dinâmicas dos trânsitos migracionais da diáspora africana,


e, a partir deles, uma fusão de culturas se processou, não só em países diferentes, mas
também nos próprios países. No Brasil e em Salvador esta integração de populações e
culturas foi bem acentuada.

Segundo Schwartz (1995 apud ALKMIM, 2002), a mistura de povos de diferentes regiões
africanas sempre caracterizou a população africana na Bahia:

Mesmo no auge do tráfico no golfo de Benin, por volta de 1780 a 1820,


quando os jêjes, nagôs (iorubás), tapas (nupês) e outros povos sudaneses
predominavam entre os cativos na Bahia, cerca de 1/3 dos escravos
nascidos na África provinham de povos bantos de Angola e da África Central
(SCHWARTZ, 1995, p.282 apud ALKMIM, 2002, p. 9).

O trabalho através do escravismo era predominante na organização do trabalho vigente no


Império, sendo esta relação de trabalho posteriormente substituída, após 1850, pelo
trabalho livre por conta da proibição do tráfico de escravos no Brasil (COSTA, 1989).

Isso explica porque havia escravizados que possuíam escravizados, sobretudo os


escravizados de ganho, bastante comuns em meio urbano. Assim, o escravizado poderia

52
Ver também a versão original (on line) do Mapa de Harris:
HARRIS, Joseph E. Mapa da Diáspora Africana: 1492-1992. 1990. Disponível em:
<http://www.bc.edu/schools/cas/aads/DiasporaMap.html>. Acesso em: 09 nov. 2012.
165
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

com acelerar o acúmulo de bens para a aquisição de sua própria alforria, não dependendo
da decisão de sua libertação por parte do escravizador. É o que expõe Gomes:

Se o ganho propicia ao escravo urbano apropriar-se de uma parte do


produto de seu trabalho, a qual lhe permitirá arcar com as despesas de sua
própria manutenção, ele se constituirá, igualmente, elemento importante
para o acesso à alforria remunerada... (GOMES, 1990, p. 10).

As juntas de alforria, segundo Reis (1986), eram organizadas em confrarias e irmandades,


consistiam em espécies de instituições de crédito de ajuda mútua com contribuições
financeiras dos seus associados, tanto dos escravizados quanto dos já libertos, retirando-se
a soma necessária para a compra da alforria e continuando a pagar o saldo restante. E
ainda podemos evidenciar aqui a atuação das ganhadeiras, quituteiras e quitandeiras que se
destacavam pela facilidade que muitas destas mulheres negras detinham para fazer fortuna.
Cecília Soares (1994) destaca que

houve quem conseguisse marcar seu lugar na sociedade, trilhando a


trajetória da alforria e da ascensão social, superando os obstáculos,
personificando modelos de resistência e independência no mundo patriarcal
e escravista (SOARES, 1994, p. 03).

E, de fato, o índice de alforrias obtido ao final do século 19 era bastante elevado: segundo
Mattoso (1992), no censo de 1872 (16 anos antes da abolição), apenas 12% da população
de Salvador era escravizada. Segundo Chalhoub (2006), conforme a Constituição de 1824,
a alforria dava ao negro ‘a sua condição natural de pessoa’.

E assim, segundo Bertol (2005), somos um país que já reunia, em 2005, o maior número de
afrodescendentes do mundo, com aproximadamente 80 milhões de pessoas. Atualmente,
segundo o IBGE, somos mais de 100 milhões.

3.1.2 - Africanidades Brasileiras

Tomamos em conta que o universo do conhecimento africano é variado, complexo e produz


diversas ramificações de conhecimento para as populações negras no Brasil. Este
conhecimento denominado Africanidades por alguns autores, Cunha Junior, Adonias Filho,
Petronilha Silva, entre outros, é dinâmico, sendo um processo em constante reelaboração,
produzindo um conhecimento diaspórico africano.

O conceito de Africanidade surge pelas dificuldades em considerar a história material da


população negra e nela retratar a continuidade do legado africano no Brasil. Com este
conceito busca-se recensear o patrimônio histórico e cultural de base africana, material e
imaterial, transportado e transformado na sociedade brasileira (CUNHA JUNIOR, 2001).
166
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Segundo Cunha Junior, como parte da cultura material africana, produtos africanos tiveram
diversas aplicações econômicas, farmacológicas, medicinais, nutricionais e religiosas, todos
resultantes de uma grande experiência civilizatória africana e que foram importantes para a
constituição da sociedade brasileira. As plantas africanas ou cultivadas em grandes
proporções em países africanos formam um capítulo à parte, pois a importação de plantas e
produtos africanos ou mesmo de culturas amplamente desenvolvidas por africanos, implicou
numa transformação da flora brasileira, como a introdução do dendê, com a utilização do
coco na culinária, e da mamona53 com seus efeitos religiosos e curativos, combinando
riqueza e formas de vida. No sentido da qualificação dos africanos, é preciso considerar este
patrimônio para as questões das técnicas de trabalho e daquilo que o Brasil usufruiu vindo
da participação de africanos e afrodescendentes nos diversos ramos da produção artesanal:
a criação de embarcações e edificações tem um saldo importante da contribuição africana.

Além da cultura material africana, há também o patrimônio histórico e cultural imaterial, parte
das africanidades como ‘elementos’ intrínsecos dos povos africanos, quer estejam na África,
quer estejam fora do continente, na diáspora africana.

Através dos aspectos positivos, a perspectiva desta pesquisa procura evidenciar caminhos para
reverter esta situação negativa que se abate sobre a população negra. Os africanos e seus
descendentes recriaram e promoveram formações culturais, filosóficas, ideológicas, intelectuais
e políticas, dada a própria ‘resistência’ desta população, constituindo instituições afro-brasileiras.

Portanto, evidenciamos Africanidades que se desenvolveram em circunstâncias brasileiras


que nos auxiliem para o que buscamos para esta pesquisa, entre heranças culturais e
históricas dos afrodescendentes, bem como as experiências vividas por este grupo. Neste
processo permeiam complexos aspectos do negro, tanto no campo do indivíduo, quanto no
âmbito coletivo, na compreensão do ser negro, de ver-se como negro, de sentir-se negro, no
âmbito de uma produção de espacialidade negra.

Um dos vieses evidenciados na pesquisa, dentre as variações das culturas de matriz africana
em seu processo diaspórico brasileiro, foi dar visibilidade também à cultura bantu, cuja influência
cultural, sobretudo na Bahia, é anterior a outras matrizes culturais que aqui chegaram e que, no
entanto, é menos pesquisada nos estudos culturais, sendo esta cultura de origem bantu
permeada e valorizada como parte das culturas negras, também na cidade de Salvador.

53
Segundo pesquisadores, a origem da mamona é muito discutida, já que existem relatos, em épocas bastante
longínquas, de se cultivo na África e na Ásia. A diversificação de um grande número de variedades desta planta,
encontradas tanto no continente africano, como no asiático, impossibilita qualquer tentativa de estabelecer uma
procedência efetiva da mamona. Alguns pesquisadores acreditam que a mamona tenha sido originária da África,
mais precisamente da Etiópia, estando essa região situada entre os paralelos 5º e 15ºS. Disponível em:
<http://www.biodieselbr.com/plantas/mamona/historia-mamona.htm>. Acesso em: 14 mar. 2013.
Disponível em: <http://www.fmb.edu.br/revista/edicoes/vol_1_num_2/mamona.pdf>. Acesso em: 14 mar. 2013.
167
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Na cidade de Salvador, encontramos, portanto, forte colaboração das vertentes culturais


bantu e nagô-iorubá. Neste sentido é importante salientar a cultura bantu como importante,
e talvez primordial, formadora da cultura brasileira, sobretudo na gênese da instituição do
terreiro, dada pela proposição do acordo, do acerto. O conjunto cultural bantu reelaborado no
Brasil, como as demais culturas africanas, em condições históricas específicas e sob a cultura
dominante ocidental judaico-cristã, resultou em manifestações mistas que foram constituídas
através de acordos e negociações, como dinâmica própria da cultura e de estratégias de
resistência e permanência.

Soares (2012) destaca, a partir de Viana Filho (1946) no tocante à supremacia da importação
dos negros bantos para a Bahia do século 17, o que explicaria, em todos os sentidos, a
disseminação da cultura banto.

O expressivo contingente populacional de origem bantu trazido para a Bahia, por exemplo,
contribuiu para a disseminação de terreiros bantu (Angola, Angola Bantu e Bantu) por todo o
município de Salvador, constituindo 25% do total de todos os 1165 terreiros mapeados entre
as demais nações, segundo o Mapeamento de Terreiros de Salvador (2008).

Outros exemplos das manifestações bantu vão desde as irmandades dos homens pretos, os
calundus54, candomblés de caboclo, às umbandas, às macumbas, às congadas, aos
maracatus...

Além das manifestações pontuais de caráter religioso e das festas, há o pensamento


filosófico e as estratégias de resistência que os bantu articularam e desenvolveram.
Encontramos tal referência em Luz, observando que há um entrelaçamento das tradições:

Os nagôs e jêjes se utilizariam das mesmas estratégias de luta


desenvolvidas pelos bantu no objetivo de se libertarem do jugo da
escravidão e de implantarem seus valores culturais característicos de sua
identidade própria, afirmando seu direito à existência no contexto nacional
nascente (LUZ, 2000, p. 373).

As influências dos negros oriundos dos territórios de Angola e de seus descendentes


nascidos no Brasil foram marcantes na Irmandade dos Homens Pretos do Pelourinho.
Segundo Santana (2011), a Venerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora às
Portas do Carmo (Irmandade dos Homens Pretos) do Pelourinho é uma trissecular entidade
religiosa, social, cultural e que luta pela continuidade de suas tradições negro-africanas e do
Culto a Mãe do Rosário iniciados há mais de quatrocentos anos pelos primeiros negros
54
Segundo Renato da Silveira, em O Candomblé da Barroquinha, o calundu (palavra quimbundo) seria o
ancestral do candomblé. Em Parés (2006), o termo calundu já aparecia no século 18 como termo genérico
utilizado para designar atividades religiosas de origem africana. Estas atividades eram desenvolvidas de forma
individual pelos benzedeiros, curadores, adivinhos em práticas e cultos domésticos, em acordo com as tradições
congo-angola, dando subsídios ao que mais tarde seria o candomblé.
168
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Bantu. A autora se referencia também a Viana Filho (1946), para quem “no século XVII os
bantus eram os donos da Bahia... se catequizavam em línguas de Angola, Quimbundo,
provavelmente” (VIANA FILHO, 1946, p. 56 apud SANTANA, 2011, p. 04).

As associações com o cristianismo55 se deram também pela referência das experiências do


cristianismo Bakongo, no antigo Reino do Congo na África Bantu, onde, segundo Souza
(2001 apud SANTANA, 2011), nos primeiros tempos, as cruzes, os ostensórios cristãos
eram chamados de ninkisi pelos próprios missionários católicos portugueses.

Em Silveira (2010), temos que a cruz também já fazia parte do repertório simbólico da área
congo-angolana antes da chegada dos portugueses, ao traçar uma conjunção indissolúvel
entre o mundo horizontal da natureza (nza yayi) e o mundo vertical dos espíritos (nsi a
bafwa). Segundo Sodré (1988), as imagens dos santos e a cruz católica atuavam como
símbolos mediados entre a cosmovisão negra e o universo branco-europeu, como também
engendradores de axé, porque eram “santos” [sagrados], logo, seres-força. A cruz católica,
além de ser objeto sagrado dos cristãos, pertencia à tradição litúrgica dos Bakongo (bantu)
enquanto símbolo das quatro fases solares.

Os nagôs também fizeram uso desta plasticidade das crenças, seguindo as estratégias
abertas pelos bantu, utilizadas como recurso de um continuum africanista no exílio, como
também lhes era conveniente. O caso da Irmandade da Boa Morte é exemplar: liderada
por mulheres nagôs, na qual ‘Boa Morte’ é a morte sem mácula, representando um valor
tradicional africano inscrito no código das relações entre os vivos e os mortos, o culto
aos ancestrais.

Além das várias instituições originariamente bantu que foram incorporadas por outras
vertentes culturais, herdamos também uma significativa carga linguística africana de origem
bantu. Os africanos que foram trazidos para o Brasil durante três séculos são, em grande
maioria, de origem bantu. Por isso mesmo, a predominância das palavras africanizadas do
português do Brasil vêm dessa nascente. Diferente, portanto, do teor de influências dos
falantes de iorubá (nagô), procedentes da Nigéria Ocidental e do Benin Oriental (Reino
Ketu), que foram trazidos já no terceiro ciclo da escravidão (CASTRO, 2001).

55
Autônomas em relação à Igreja Católica (religião europeia), os registros destas instituições cristãs originadas
na África são encontrados já no século 5, conforme Murray (1998). Segundo Bernal (1987), o cristianismo não
surge na Europa e sim no Oriente Médio, difundido anteriormente na África, logo nos primeiros séculos. Assim,
temos as magníficas igrejas coptas cristãs escavadas na rocha, no século 7, em Lalibela, Etiópia.
Sobre o cristianismo africano, ver também:
AYELE, Bekerie. Ethiopic: History, principles and influences of African writing system. Doctoral
Dissertation. Phaladelphia, PA: Temple University, 1994.
BÍBLIA SAGRADA - Antigo e Novo Testamento.
169
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Na mesma linha, Lucchesi (2008) afirma que, enquanto em todo território brasileiro teriam
predominado africanos escravizados bantu, na Bahia, após um predomínio bantu verificado
no século 17, os escravizados dessa procedência teriam sido substituídos pelos oeste-
africanos, com a primazia para os iorubás, aqui denominados nagôs. Isso se confirma no
predomínio e na maior antiguidade da presença bantu no Brasil, que se reflete em sua
contribuição para a língua nacional.

Os trabalhos de Castro mostram que o português brasileiro tem sua especificidade dada pelas
línguas africanas, não só pelas palavras introduzidas, pela forma de composição das frases,
como também pela entonação. Temos, no Brasil, 07 vogais: a, é, ê, i, ó, ô, u. Grande parte de
palavras africanas de origem bantu, principalmente das línguas como o quicongo, o quimbundo
e o umbundo, são mais utilizadas que seus sinônimos na língua portuguesa, sem mesmo haver
palavras equivalentes no português de Portugal. Os exemplos dados por Castro (2001) são
muitos: bagunça, banzo, curinga, gangorra, fubá, caçula, moleque, molambo, Cafundó,
camundongo, cachaça, bunda, sunga, macumba, quitanda, tanga, mucama, berimbau, senzala,
mocambo, quilombo, Tabatinga, camundongo, marimbondo, xingar, dengo, cafuné, cochilo,
inhaca, cachaça, cacimba, caçamba, dendê, moringa, Engomadeira56, carimbo, cachimbo,
catinga (inhaca), marimba, mocotó, cafuzo, balangandã, samba57. Entre as palavras de origem
iorubá, temos como exemplos abará, acarajé, orixá, axé, Iemanjá, assento (assentó), estando
associadas ao vocabulário da culinária e da religião, sendo mais recorrentes na Bahia.

As práticas de cura natural raramente dissociam questões fisiológicas da cura espiritual:


para o Tata Mutá Imê do Terreiro Angolão Paquetan, os vegetais têm o poder de afastar
energias negativas, promover a limpeza espiritual, purificar e neutralizar pessoas, curando
através da força do sagrado mobilizada pelos rituais e pelo efeito medicinal das plantas
(SILVA; ALENCAR, 2010).

A introdução destas técnicas religioso-medicinais se deu pelos negros bantu. Segundo


Silveira (2010), a tradição curandeira sempre esteve bem implantada nos candomblés-de-
angola. Posteriormente, os nagôs também contribuíram para as técnicas religioso-
medicinais com seu próprio repertório medicinal58.

56
Bairro em Salvador, Engomadeira vem da origem bantu “ngoma”, que significa tambor no candomblé de
Angola.
57
A palavra samba significa rezar, orar (CASTRO, 2001). Fazendo uma articulação com Cunha Junior, a
circularidade é um conceito filosófico africano, em que o tempo presente é a junção do passado com o futuro
dada a circularidade em espiral. Ao unir samba (reza) à roda (círculo), entendemos que a expressão samba-de-
roda é um exemplo de manifestação de africanos e descendentes (típica da Bahia), de rezar também com o
corpo, para além das manifestações do terreiro, sendo a integração com o divino uma concepção filosófica de
vida. A mesma roda está presente na capoeira, no jongo, no tambor de crioula, na gira do terreiro. Novamente o
lúdico nas brechas da negociação social do negro à qual se refere Sodré.
58
Ver: SERRA, Ordep et al. O Mundo das Folhas. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de
Santana; Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2002.
170
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

A cura pela religião do candomblé utiliza folhas, raízes e caules que são como remédios em
forma de banhos, chás, defumadores, xaropes. Apesar de amplamente difundida pelos
moradores de bairros negros, esta cura pelo candomblé perpassava pela reserva de
determinados segmentos sociais, como Tonho nos conta:

Muitas pessoas da alta sociedade de Salvador faziam tratamento de cura no


candomblé, mas ninguém podia saber...

Concomitante à acepção religiosa, como parte dela, a utilização das plantas para as práticas
medicinais são recorrentes nas comunidades que circundam os terreiros. Assim, as plantas são
partes desta consciência como forma de proteger a casa de maus agouros, mantidas em casa,
em pequenos canteiros domésticos, além do aspecto cultural-religioso. É importante ressaltar
que as plantas de uso medicinal são utilizadas como remédios caseiros cujo preparo foi
assimilado face às práticas dos terreiros. Como nos informa a bióloga Jussara Rego Dias em
relação às comunidades de terreiro e entorno, é que “existem membros na comunidade com
inegável conhecimento botânico, o que não é comum na sociedade atual” (DIAS, 2003, p. 56).

Nos bairros negros, esta utilização do que se denomina de medicina alternativa é a regra, é o
costume, mediante as práticas de cura cujos ensinamentos advêm dos terreiros, dada a crença
que os moradores atribuem às práticas de curas religiosas, sendo o acesso à cura de doenças,
refletindo-se também na economia doméstica. As plantas, além do aspecto cultural-religioso
afro-brasileiro, também refletem a economia doméstica do bairro negro, quando as plantas de
uso medicinal são utilizadas como remédios caseiros, dispensando-se a compra de
medicamentos industrializados. Há também a possibilidade de ganho de renda com o comércio
destas plantas e ervas por quem conhece suas propriedades, os erveiros.

Em relação às economias domésticas e seu rebatimento na economia do bairro, partimos para


um outro aspecto das africanidades que é a relação com o trabalho.

As particularidades das visões de mundo nos pautam entendimentos diferenciados das


instituições sociais, dentre elas o trabalho, que, nos diversos contextos culturais, terá
(re)significações em função da sociedade sob o qual será analisado. No contexto brasileiro, com
pensamento hegemônico ocidental e capitalista, em que o Estado adota a configuração do
sistema neoliberal (reorganização do capitalismo), o trabalho e seus desdobramentos, aos
moldes das interpretações de Marx, serão entendidos e agenciados quase que exclusivamente
como meio de obtenção de lucro.

Lefebvre (2006) interpreta o trabalho e suas variações de representação, ressaltando a


representação moral do trabalho numa formação judaico-cristã como imperativo social, como
necessidade social para "ganhar" o pão (nosso) de cada dia, da expressão: “Ganhar o pão nosso
de cada dia”...

171
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

No âmbito do sistema escravista no Brasil, por quase quatro séculos, a formação do


pensamento vem carregada do trabalho como castigo, como submissão. Extraindo referências
do livro Boca do Inferno, de Ana Miranda, tendo como personagem principal o advogado e
poeta Gregório de Matos Guerra, o Boca do Inferno, em suas sátiras ambientadas na cidade de
Salvador do século 17, percebe-se a caridade proposta pelo catolicismo como alternativa digna
ao trabalho: havia mais dignidade em se obter dinheiro pela caridade, pela esmola (e ainda nos
diais atuais o esmolar possui um forte apelo) do que recebê-lo pelo trabalho, sendo esta uma
atividade exclusiva dos escravizados africanos, atividade não digna e motivo de vergonha.

Segundo Luz (2000), “por todo o Brasil, havia um investimento ideológico envolvendo o
significado do trabalho, que promovia o afastamento do branco livre de qualquer atividade
caracterizada como a ser realizada apenas pelos negros” (LUZ, 2000, p. 375).

No entanto, em outras matrizes culturais, o trabalho possui outras significações. Em contextos


africanos, o trabalho não é tido somente como valor de troca; está também associado com
valores morais. Para o teólogo nigeriano Chukwudum Okolo (2002), existe o contraponto da
visão africana do trabalho e da dificuldade de adaptação de grupos africanos ao mundo urbano
capitalista, no qual se inserem diversas cidades africanas no período pós-independência: ao
tentarem inserir-se numa economia globalizada, seguem os moldes do trabalho capitalista.

No contexto afro-brasileiro ou ainda afro-baiano, o ‘trabalho’ não pode se restringir às


análises das relações ocidentais capitalistas. A relação com o trabalho passa por outras
significações que não somente a remuneração ou o dinheiro. Passa pelos processos de
sociabilização, de interação com a natureza dados pelas religiões de terreiro, etc. Como nos
lembra Sodré, a análise simplista das relações de produção deixará escapar o movimento
real de organização do grupo negro. A aproximação entre os aspectos econômicos, políticos
e étnico-religiosos permite uma melhor compreensão de como efetivamente funciona esse
modo de relacionamento de um grupo com seu real (sua singularidade, seu ser único no
mundo) chamado cultura: o processo de simbolização e a organização das atividades vitais
por identificação de invariantes na diversidade são, ao mesmo tempo, econômicos, políticos
e míticos. O dinheiro é, no entanto, de extrema importância: é tanto um equivalente de trocas
econômicas quanto um equivalente simbólico de potência e bem-estar (SODRÉ, 1988).

Sodré refere-se ao trabalho, no qual o fazer objetivo e cego é apenas um dos momentos da
ação humana: no qual existe também o aspecto da transformação interna do agente, ao
mesmo tempo em que faz o trabalho. Na cosmovisão negra, a ação regula-se pelo padrão
do indivíduo total, de um sujeito articulado consigo mesmo e com outros, em comunidade. A
intuição negra de mundo tem a força de promover certa integração da existência, quase
orgânica, da vida.
172
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Lembramos aqui das numerosas iniciativas individuais dos pequenos comércios nas
residências dos bairros, protagonizados, sobretudo, por mulheres negras, mães de família
que conciliam este trabalho com as atividades domésticas, numa evidente liderança das
mulheres negras. Entendemos esse fato como um desdobramento do predomínio das
mães e filhas de santo na vida comunitária dos terreiros, com a preponderância de
mulheres também como chefes de família.

Soares (1994) explora este protagonismo da mulher negra desde o período da escravidão,
em que a autora destaca, em meio de tantas mulheres negras e no enfrentamento aos
conflitos, trajetórias de sucesso na alforria e ascensão social “superando obstáculos,
personificando modelos de resistência e independências no mundo patriarcal e escravista” (p.
3). Soares (2012) também evidencia Ruth Landes, na sua comparação das mulheres negras
em outras sociedades como a norte-americana e a africana, reconhecendo que as negras
baianas contribuíram “no desenvolvimento das instituições matriarcais, numa sociedade
rigorosamente patriarcal [...] as negras brasileiras, ao controlarem os mercados públicos e as
sociedades religiosas, também controlavam o âmbito familiar” (SOARES, 2012, p. 293).

Salvador é herdeira das quitandeiras africanas, homenageadas em Luanda como pode ser
visto na Figura 63, chamadas aqui de ganhadeiras, e aqui também podemos apontar como
ícones as baianas de acarajé. Estas vendedoras têm no trabalho do acarajé diversas
significações: de um trabalho sagrado, cumprindo a obrigação de preparar e oferecer a
comida sagrada ao orixá, à flexibilização dos dias e horários de trabalho, ao rendimento
lucrativo do negócio, que, em muitos casos, incorpora familiares, bem nos moldes da
dinâmica da civilização africana.

173
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 63 - Quitandeira Angolana (Ano: 2011)


Estátua defronte ao Mercado de São Paulo
em Luanda
Fonte: Foto da Autora

Os registros mostram que a profissão de ganhadeira exigia uma espécie de ‘faro para o
negócio’: Kidder afirmava, já em 1839, que as ganhadeiras revelavam um "grande tato e tino
comercial" (KIDDER, 1972, p.73 apud SOARES, 1996).

O fazer dinheiro, diferente do ganhar dinheiro, denota um senso empreendedor, uma


iniciativa que permite uma autonomia para trabalhar com o tipo de negócio que "agrada",
gerenciar o próprio tempo, "não ter patrão", além do próprio perfil do trabalho em suas
relações que combinam (e não opõem) o compromisso do ofício com o lúdico e a busca de
uma vida digna a partir do trabalho. São formas de trabalho que, pela improvisação ou pelos
parcos investimentos, geralmente acarretam poucos rendimentos e retorno financeiro, mas
geram uma economia urbana que incorpora valores de vida próprios de culturas africanas.

Em relação ao ‘gerenciar o próprio tempo’, o pensador africano nigeriano John Mbiti (1999
apud PRANDI, 2001) afirma que nas sociedades ocidentais o tempo é entendido como algo a
ser consumido, podendo ser vendido e comprado como se fosse uma mercadoria, submetido à
máxima “tempo é dinheiro”. Nas sociedades africanas tradicionais, o tempo tem que ser criado
ou produzido. Mbiti afirma que o homem africano é alheio ao tempo no sentido ocidental, não
sendo escravo do tempo, fazendo, ele próprio, o seu tempo: tanto tempo quanto queira.

174
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Há ainda outra configuração de trabalho quando nos referimos aos terreiros: nem todo
trabalho se reverte em produção (produto ou serviço) ou tem esta finalidade. O trabalho do
terreiro é um trabalho criterioso, árduo, intelectual e artesanal, e tem por finalidade atender
ao equilíbrio com o sagrado, com o plano espiritual.

E, no âmbito das representações, nesta visão particular de trabalho, o baiano carrega a


fama nacional de ser preguiçoso...

Este trabalho das mulheres negras, cuja aplicação é, em muito, derivada do aprendizado
junto às famílias-de-santo, é compartilhada com a família consanguínea e/ou estendida,
envolvendo-a nas formas de obtenção de renda familiar.

A noção de família é outro importante valor nas comunidades negras. A família é uma
importante instituição que se desdobrou, na diáspora africana no Brasil, na família estendida
que se consagrou nas famílias-de-santo.

Na verdade, "todo mundo está relacionado com todos os outros membros, vivos ou mortos,
por meio de uma complexa rede de relações espirituais, em uma espécie de corpo místico”
(RUCH; ANYANWU, 1981, p. 328 apud OKOLO, 2002). Por isso, os valores africanos
revelam que não é apenas "ser"; é "ser-com-outros". Estar enraizado no parentesco é uma
importante característica existencial generalizada entre os africanos, nunca se está isolado,
desde que as pessoas assimilem um papel parental de pai, mãe, filho, irmão..., por extensão
familiar (OKOLO, 2002). Uma pessoa é um indivíduo na medida em que ele é um membro
de uma família, um clã ou uma comunidade.

O culto aos ancestrais é um dos valores mais importantes da cultura africana tradicional.
Sendo assim, o respeito aos mais velhos se dá pela proximidade destes com os
antepassados, sendo os idosos os parentes mais próximos de seus ancestrais ou parentes
mortos, valor pautado na grande hierarquia de seres do esquema conceitual ontológico
africano. É uma ação contínua a interação entre os mortos e os vivos. Os antepassados não
são apenas fantasmas, nem heróis mortos simplesmente, mas seres presentes envolvidos
diretamente em todos os assuntos da família, vigiando a casa, contribuindo para a
fertilidade e as colheitas abundantes. Os bons ancestrais podem atuar como intermediários
entre Deus e os membros de suas famílias.

Temos que esta relação familiar que une a vida espiritual à vida terrena, ou estas como
partes diferentes de um mesmo todo, se aproxima muito de como se organiza a família-de-
santo na diáspora.

Entendemos que, desde a escravidão, os negros viam na família estendida a possibilidade


de se aproximar ou de dar continuidade aos valores sociais africanos: a família para os
175
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

africanos continuava, mesmo no contexto diaspórico, a consistir essencial valor social. Reis
(1986), em seu estudo sobre o levante malê, afirma que:

a rebelião não foi exatamente resultado do desenvolvimento da consciência


de classe dos escravos africanos, mas a ausência de família e de
descendência entre eles contribuiu para o florescimento de uma consciência
étnica mais forte e o fortalecimento de instituições africanas mais amplas,
como os grupos religiosos (REIS, 1986, p. 232).

Também Nascimento (1989) destaca os vínculos da instituição da família reforçados no


espaço de dentro dos territórios negros, nos terreiros, de onde emergia sempre novas
ordens sociais que se estruturavam a partir da redefinição no contexto diaspórico.
Entendemos que a noção de família não foi desfeita, havendo a interrupção das relações
familiares consanguíneas africanas nos contextos escravistas, mas que se refaziam, de
outra maneira, no terreiro, na família-de-santo.

Evidenciamos que há um desdobramento da dinâmica do terreiro em torno do agrupamento


das famílias-de-santo que se estendeu para os novos núcleos familiares consanguíneos e/ou
famílias estendidas.

3.2 - Uma Forma do Fazer Científico a partir do Conhecimento Diaspórico Africano

Estamos construindo um trânsito entre antigas e novas perspectivas neste trabalho de


pesquisa, no sentido de compor uma análise urbana que absorva elementos culturais pouco
explorados nos estudos urbanos. Abordamos um novo enfoque, numa tentativa de
acomodar novas visões no âmbito do urbanismo sob o prisma da diversidade cultural e da
complexidade de abordagem, esta por via de contribuição multidisciplinar.

Assim, evidenciamos, suscintamente, alguns estudos e experiências sobre/no continente


africano, como também algumas reflexões de urbanistas africanos. Como parte do estudo
da espacialidade urbana nesta pesquisa, buscamos referências no tocante às organizações
espaciais em comunidades africanas e nosso entendimento do seu rebatimento na produção
do espaço urbano no bairro negro do Engenho Velho da Federação como uma produção de
conhecimento a partir do conhecimento diaspórico africano, buscando a dinâmica social, o
conteúdo, antecessor da forma.

Um abrangente estudo elaborado por Sandro Bruschi sobre Campo e Cidades da África
Antiga reúne documentos sobre as origens da arquitetura e modelos urbanos da África
antiga. Em análise minuciosa, Bruschi (2001) busca esclarecer a incerteza da existência de
uma civilização urbana autóctone no continente africano:

176
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Actualmente, a hipótese que mais se acredita é a de que a civilização


urbana apareceu no continente africano em vários períodos e em diferentes
locais, mas a profunda diferença entre as sociedades europeias e africanas
dificultou, até recentemente, o seu reconhecimento (BRUSCHI, 2001, p. 4).

Bruschi (2001) salienta que os assentamentos africanos foram descritos com palavras e
imagens próprias da cultura urbana pelos mais antigos geógrafos e viajantes que, na idade
moderna, trataram do interior da África: árabes, a partir do século 8, e europeus, a partir do
século 9. Os escritos discorrem sobre impérios poderosos e apresentam ilustrações de
cidades majestosas escondidas no interior de florestas ou às margens dos desertos. Na
época das grandes explorações e, mais tarde, no período colonial, “cada manifestação da
cultura africana, incluindo os assentamentos, foi etiquetada como produção de selvagens,
para justificar a presumível inferioridade racial dos africanos” (p. 2). Bruschi destaca que a
construção ideológica de dominação transformou as cidades, que precedentemente tiveram
sido relatadas com entusiasmo, em “miseráveis conjuntos de palhotas”, ou foram negadas
como não existentes: “os restos arqueológicos, que não podiam ser negados, foram
atribuídos à intervenção de antigos colonizadores ou chegados de outros continentes” (p. 2).

Ao contrário da história da Europa, Bruschi entende que, avaliando a história africana, a


cidade não foi a única expressão de evolução da sociedade. A ligação profunda entre o
mundo rural e o mundo urbano teve uma influência marcante sobre as características das
cidades antigas africanas: o autor expõe como exemplo um sistema de assentamentos,
localizado na Bacia do Níger entre os séculos 3 a.C. e 9 d.C., depois da difusão da
metalurgia e antes da influência islâmica, no qual existia um artesanato florescente, cujas
pesquisas arqueológicas não encontraram vestígios de monumentos ligados à autoridade ou
a uma classe dominante:

Esta seria, portanto, uma prova demasiada que no caso africano existiam
também sociedades economicamente evoluídas, organizadas em
assentamentos contíguos, autônomos e especializados, em nenhum dos
quais se encontrava um centro de poder (MCINTOSH, 2000 apud
BRUSCHI, 2001, p. 4).

Ao sair da comparação apenas do ponto de vista formal, Bruschi aponta que o poder no
caso de sociedades africanas se encontrou localizado em vários modelos de assentamento
que podem ser chamados de cidade, na medida que responderam de forma eficaz às
exigências de sua gestão.

Análogo a este pensamento de Bruschi, temos Risério, no reconhecimento dos


ajuntamentos citadinos no antigo espaço amazônico como formas urbanas, em que:

177
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Assentamentos que podem nos servir, inclusive, para alargar ou mesmo


subverter o conceito ocidental-moderno de cidade, que é certamente
incapaz de dar conta de todo o espectro de fatos e aspectos encontráveis
na universalidade da experiência urbana (RISÉRIO, 2012, p. 13).

Entre as características apontadas para cidades africanas antigas, Bruschi atenta para o
valor hierárquico do espaço, em que a organização dos bairros e quarteirões reproduzia o
esquema hierárquico da família alargada, com membros que “reconheçam antepassados
comuns e desenvolvem ritos religiosos em conjunto”, sendo também os lugares em que se
concentravam os diferentes tipos de artesãos ou comerciantes.

Portanto, as análises feitas para as cidades europeias não devem ser as mesmas que para
as cidades africanas.

Numa investigação sobre a urbanização em Moçambique, Alexandre Baia, geógrafo


moçambicano, nos informa que esta perpassa pela ocidentalização e pela persistência do
modo de vida derivado das sociedades africanas pré-coloniais, apoiado no sistema de
linhagem (p. 4). Em sua pesquisa na cidade de Nampula, Baia verifica a coexistência das
relações sociais pautadas pela expansão do capitalismo, cujo modo de vida ocidental e
relações sociais mediadas pelo dinheiro, e das relações centradas na solidariedade e
integração comunitária do grupo familiar, como parte do modo de vida.

Numa outra análise de assentamentos africanos, Acioly Junior (1993) estuda as moranças
da Guiné Bissau. Este modelo de assentamento é organizado social e espacialmente de
forma segmentária, com famílias alargadas [extensas] habitando, geralmente, uma mesma
morança. Uma morança, como é localmente denominada, possui um caráter simbólico e
cerimonial e sua morfologia espacial segue uma lógica de organização na qual estão
determinadas as várias atividades básicas e os locais de moradia de seus vários membros.
Segundo Acioly Junior, até então, esta forma peculiar de organização espacial continuava a
ser reproduzida de diversas maneiras no processo de urbanização, em vários núcleos
urbanos de Bissau, fundados posteriormente à colonização.

Participando de experiências habitacionais em Bissau, Acioly Junior identificou nos bairros


muitas moranças pertencentes a um mesmo grupo familiar, com grupos de casas
construídas lado a lado ou respeitando certa orientação espacial, com acessos exíguos e
espaços coletivos, como podemos ver na Morança Balanta na Figura 64 e na Morança Fula,
na Figura 65.

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 64 - Morança Balanta - Bissau Figura 65 - Morança Fula - Bissau


Fonte: Blazejewicz, 1981 (apud Acioly, 1993) Fonte: Blazejewicz, 1981 (apud Acioly, 1993)

Além das moranças, Acioly Junior identificou também outra forma de assentamentos, mais
restritos às áreas rurais, as tabancas.

Com estas imagens relativas à forma, à implantação no sítio, às tipologias arquitetônicas,


não estamos nos limitando à análise das configurações espaciais, mas as apreciamos pelo
sentido que possuem para as comunidades, numa relação forma-conteúdo. Estas
organizações espaciais africanas decorrem de uma necessidade real, de acordo com os
modos e meios e as condições de vida das comunidades. Ou, como afirma David Adjaye,
arquiteto britânico nascido na Tanzânia: “é a ‘concepção’ do homem que lá vive a sua
maneira de estar no mundo que assim se torna legível” (apud RAPOSO, 2011).

Numa perspectiva contemporânea, encontramos reflexões de urbanistas africanos como


Paul Goodwin e John Oduroe59, fundadores do Office for Metropolitan Alternatives
(Office/MA) para investigar como a estética da cultura da diáspora negra pode inspirar e
influenciar a forma de se criar arquitetura e urbanismo. Paul Goodwin (2011), geógrafo e

59
Urban Africa: Office/MA, Urbanismo Negro. Disponível em: <http://www.buala.org/pt/cidade/urban-africa-
officema-urbanismo-negro>. Acesso em: 22 mai. 2012.
179
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

urbanista, cogita a existência de um Urbanismo Negro60, como estratégia de resistência de


comunidades negras urbanas. Conforme Goodwin:

Do meu ponto de vista, urbanismo negro é uma ferramenta de diagnóstico


para a compreensão do urbanismo no século 21. Negritude se tornou uma
forma de subjetividade urbana neste particular momento histórico global,
quando o hip hop e várias formas de cultura popular negra se difundem por
todo o mundo. Estamos interessados na relação entre as várias formas de
cultura urbana e a produção de um espaço urbano. A questão que estamos
levantando é como esta incrível energia cultural - não apenas o hip hop,
mas também práticas sócio-espaciais cotidianas - podem ser traduzidas em
formas espaciais. Comunidades negras e imigrantes contribuíram e têm
contribuído para o desenvolvimento das cidades ocidentais; este é o espaço
que quero chamar de urbanismo negro.

Para o pesquisador, o Urbanismo Negro não é um produto final: não é algo fixo para o qual
você pode apontar, é um processo. Este processo inclui desde as lutas históricas das
comunidades negras, formadas pela diáspora africana, até as expressões culturais. Citando
o caso da cidade de Nova Orleans, diante da reconstrução da cidade depois da tragédia
causada pelo furacão Katrina:

Como iremos reconstruir Nova Orleans? Reconhece-se que a cidade foi


construída com jazz e blues e sua estética, dinâmica e ritmos precisa de
algum modo alimentar o processo de reconstrução. De certo modo esta é
uma forma de urbanismo negro.

O arquiteto John Oduroe, parceiro de Paul Goodwin, entende que não há uma única forma
ou estilo estético predominante que sintetiza a negritude como um todo, já que a negritude
evidentemente não é uma formação cultural monolítica. Cada lugar, cada local, cada prática
ou atividade deve, conforme Oduroe, ser lida como única e contingente de circunstâncias
ambientais, culturais, sociais e econômicas específicas:

Esperamos reunir um corpo dessas descrições e imagens que


coletivamente começam a sugerir outras maneiras de existir na cidade.
Essas representações podem parecer indesejáveis a alguns, mas para uma
quantidade de pessoas cada vez maior, elas representam uma forma de
sobrevivência (apud GOODWIN, 2011).

Para Sodré (1988), o mito, o símbolo e o imaginário de um estilo de vida foram apreendidos
no relacionamento com o espaço. Tomando a referência do mito pela realidade, como
propõe Lefebvre (1999), entendemos estas relações espaciais orientadas pela
ancestralidade, cujo rebatimento também se dá em nosso lugar de pesquisa, o bairro do
Engenho Velho da Federação, como veremos adiante.

60
Disponível em: <http://www.terceirametade.com.br/#/2011/02/paul-goodwin/>. Acesso em: 22 mai. 2012.
180
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Günter Weimer (2005, 2008) identifica o kraal africano em assentamentos unifamiliares


(família polinuclear):

[...] permanece uma tendência latente na forma de associação de


construções independentes de casas unifamiliares, mas conexas, de uma
mesma parentela, ao construírem suas residências num mesmo lote. Não
deixa de manter viva a organização clânica (WEIMER, 2005, p. 226).

Numa interpretação da forma de ocupação espacial de uma família da diáspora africana no


Brasil, Michele Sommer (2005) analisa, com base nas referências de Weimer, a
configuração sócio-espacial de uma área remanescente de quilombo em Porto Alegre, a
Família Silva. A autora investiga diversos kraals africanos e os reconhece na organização da
família pesquisada, permanecendo, portanto, latente nas configurações espaciais urbanas,
sobretudo nos territórios negros:

O kraal africano é a estrutura configuracional primária onde a matrilinearidade


e os laços de parentesco norteiam a morfologia do assentamento. Os
domínios espaciais diferenciados por sexo, a ocupação de caráter coletivo e
comunitário, a ausência de transições entre os espaços internos/externos e
acessibilidades com alto grau de controle local são atributos facilmente
perceptíveis no assentamento kraal (SOMMER, 2005, p. 84).

Sommer (2005) entende que as uniões consanguíneas reforçam os laços de solidariedade


interna do grupo específico pesquisado no Brasil, a Família Silva, colaborando na
manutenção de coesão e unidade do conjunto. O parentesco, semelhante ao que ocorre no
kraal africano, está na base de organização social de grupos étnicos descendentes de
africanos no Brasil, aglutinador dos integrantes de um território negro. No Brasil, as relações
de laços afetivos baseados na consanguinidade, no casamento e na afinidade unem homens
e mulheres e se tornam um fenômeno filosófico adotado pelos grupos de acordo com seus
anseios, aspirações e necessidades, demonstrados nas relações sociais e espaciais.

Faria (2011), num estudo sobre a influência africana na arquitetura de terra do período
escravista em Minas Gerais, identifica o próprio conceito de habitação à luz da continuidade
familiar e de sua organização social. A autora aponta a casa como local central da
existência humana, encontrando sua identidade, sendo também uma expressão concreta da
continuidade que marca o ciclo da vida da família.

Por estas referências culturais, temos que o urbanismo convencional não possui
ferramentas teóricas capazes de analisar a realização urbana dos diversos grupos sociais,
numa dimensão multicultural da cidade, bem como não apreende contextos sociais distintos
face à própria epistemologia do urbanismo, no sentido de disciplinar, nos moldes de um

181
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

único modelo de uma cultura tida por dominante, e atender ao capital, na sua dinâmica de
fluidez de pessoas e mercadorias.

E em busca de evidenciar formas espaciais que fujam à lógica do capital, é que exploramos
Muniz Sodré, cuja abordagem já foi apontada anteriormente, no sentido de que as
comunidades negras deram sentido à cidade também pela via do lúdico, numa invenção do
urbano pela ludicidade.

Sodré apresenta esta ludicidade do espaço negro:

Os terreiros, a disseminação e a reelaboração de cultos em todo o território


nacional, o espraiamento de organizações sócio-lúdicas, a música urbana,
pequenas redes de sociabilização, tudo isso, resulta de uma inflexão histórica da
capacidade realizante que autoriza o grupo economicamente subalterno (SODRÉ,
1988, p. 107-108).

Além da dinâmica das subjetividades dos terreiros de candomblé no espaço urbano, há


também dinâmicas centralizadas em outros alicerces culturais, como congadas, escolas de
samba, etc. Em relação aos bairros negros de New Orleans, Sodré coloca:

A força de conviver com a diversidade e de se integrar às diferenças sem perder o


horizonte da matriz simbólica originária é a principal característica do jogo negro.
[...] Combinada com a tradição rural do espetáculo negro e com as bandas
musicais surge a principal expressão da cultura negra urbana, o jazz (SODRÉ,
1988, p. 130).

Esta forma lúdica da forma social negro-brasileira de Sodré é também espaço de


negociação social: a atividade lúdica é parte do jogo negro.

Deste modo, temos evidenciado nesta pesquisa a centralidade do candomblé, como forte
expressão da religiosidade de matriz africana, dada por distintas nações, e, com elas, seus
respectivos toques, ritmos, danças, indumentárias, rituais e éticas, entre outras
manifestações, próprias de cada nação, nas suas variantes dadas pela diversidade dos
corpos sociais nos espaços-tempos (nas suas territorializações em vários momentos
históricos). Destes desdobramentos culturais, as expressões musicais são as mais
evidentes e ‘espacializantes’, isto é, ecoam e se estendem pelo espaço, podendo-se mapear
esta ludicidade no espaço urbano.

As expressões musicais, por exemplo, participaram de um processo amplo de afirmação do


negro na sociedade brasileira.

Quando nos referimos aos cânticos do candomblé e sua sofisticada erudição expressa na
música sacra, podemos compreender o vasto desdobramento, no contexto brasileiro, para
outros ritmos e nuances musicais.

182
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Temos, assim, como ilustramos no diagrama da Figura 66, alguns exemplos de


manifestações culturais a partir do candomblé, como uma expressão da cultura, em suas
expressões intrínsecas de suas nações e cultos a orixás, inquices, voduns e encantados
como geradores de repertórios:

Ali guardavam-se conteúdos patrimoniais valiosos (o axé, os princípios


cósmicos, a ética dos ancestrais), mas também os ensinamentos do “xirê” -
ritmos e as formas dramáticas - que se desdobrariam ludicamente na
sociedade abrangente (SODRÉ, 1988, p. 135).

O samba de roda, o afoxé, o axé music, mais caracterizados na Bahia; as escolas de


samba, no Rio de Janeiro; as congadas em Minas Gerais; os spirituals, os blues rurais e
jazz, na Louisiana e New Orleans; o marabaixo em Macapá, o maracatu em Recife e Olinda
ou o candombe de Montevidéu são algumas das variantes culturais, não sendo, portanto,
expressões exclusivas, mas proeminentes, nestes lugares.

Figura 66 - Religiosidade de Matriz Africana e Manifestações Culturais.


Fonte: Elaboração da Autora

Ou, comoFonte:
podeElaboração da autora
ser visualizado na expressão artística do painel do candombe uruguaio61,
um ritmo proveniente da África e que tem sido parte importante da cultura uruguaia por
mais de 200 anos, marcando o centro tradicional de Montevidéu, como podemos observar
na Figura 67.

61
Disponível em: http://www.candombe.com (Acessado em: 04.01.2012).
183
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 67 - Painel Candombe Uruguaio - Montevidéu (Ano: 2011)


Fonte: Foto da Autora

A festa propicia a troca de energia; promove o equilíbrio. Das festas do candomblé às festas
de rua, a festa é religiosa, é lúdica, e retorna ao mítico porque, segundo Sodré, “a festa
destina-se, na verdade, a renovar a força” (1988, p. 124).

Sodré reafirma esta vinculação originária dos terreiros que se perpetua pelos grupos de
festa, cordões, blocos carnavalescos e ranchos. Estes sempre estiveram ligados direta ou
indiretamente através dos músicos, compositores ou pessoas de influência ao candomblé.
Cada casa de culto, à qual o autor se refere no contexto carioca, tinha seu bloco
carnavalesco, dando corpo às escolas de samba.

Rolnik (1989) faz esta descrição da formulação de Sodré da dinâmica cultural negra no
contexto das habitações coletivas do início do século 20 em bairros de São Paulo, como o
Lavapés ou a Barra Funda:

Em suas habitações coletivas moravam as tias negras e seus clãs, que


praticavam o jongo, macumba ou roda de samba como extensões da
própria vida familiar; pouco a pouco esses batuques familiares foram se
transformando em cordões de carnaval (ROLNIK, 1989, p. 33).

184
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Para Sodré (1988), o terreiro, enquanto uma elaboração autônoma de estratégia político-
cultural, opera uma poderosa condensação espaço-cultural de uma territorialização através
da dimensão sagrada, como continuidade cultural africana em território brasileiro, dado que
originalmente o culto às entidades (inquices, orixás, voduns, encantados), no continente
africano, se realizava de forma separada, seja em palácios, templos ou cidades. Risério
(2012) também expõe que os

terreiros de candomblé, tal como os conhecemos, não existiam na África. São


[62]
uma invenção brasileira. Na Iorubalândia , os deuses eram cultuados não só
em regiões ou templos distintos, como dentro da linhagem familiar (RISÉRIO,
2012, p. 158).

Se, no continente africano, a religião se dava por família, cultuando os ancestrais familiares,
sobretudo entre os bantos, o terreiro brasileiro reelabora este culto. Nas palavras de Mateus
Aleluia, cantor e compositor cachoeirense, surge na Bahia uma forma de pan-africanismo,
quando pessoas de diferentes etnias, e às vezes rivais na África, se unem para cultuar seus
ancestrais.

Deste modo, a perspectiva africana do terreiro inclui outros parceiros e incorpora a


paisagem local para permitir a prática de uma cosmovisão africana no exílio. Esta
condensação só foi possível mediante negociações, transações, acertos, acordos. O
entrecruzamento das diferenças, a aproximação dos contrários, não produziram uma
dissolução das diferenças, mas estrategicamente geraram um jogo de contatos com vistas à
preservação de um patrimônio mítico-cultural comum na origem e à conquista de um
território social mais amplo para o grupo negro, uma reterritorialização étnica, de forma a
consolidar uma identidade cultural própria e firmar-se politicamente (SODRÉ, 1988).

A atração cultural dos terreiros não ficou limitada a seu espaço físico. Sodré afirma que os
terreiros, enquanto comunidades responsáveis pela preservação de um patrimônio mítico-
cultural, sempre foram polos de identificação ou plataformas de penetração em espaços
intersticiais, nas fissuras, infiltrando-se e propiciando um desdobramento de suas matrizes
simbólicas através de manifestações culturais como os afoxés, as congadas, os maracatus,
as escolas de samba. Dessa base territorial, teatro de uma memória coletiva ancestral,
irradiaram-se para os corpos negros e não-negros as inscrições simbólicas que constituiriam
o “jeito negro-brasileiro de ser” (SODRÉ, 1988). Luz (2000) também admite esta ideia dos
desdobramentos dos valores e linguagem da tradição dos orixás no âmbito da cultura do
que se convenciona chamar de mundo do samba.

62
Que corresponde à uma parte da Nigéria, de Togo e do Benim (antigo Daomé).
185
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Segundo Serra (2000), a tradição oral do Terreiro da Casa Branca registra a célebre Tia Ciata,
matriarca das escolas de samba cariocas; ela foi uma filha de Oxum iniciada no terreiro,
acompanhando Bamboxê Obitikô em sua ida para o Rio de Janeiro, onde o famoso sacerdote
fundou (na Saúde) talvez o primeiro terreiro carioca de nação nagô: o candomblé de João de
Alabá, explicando o porquê o terreiro baiano da Casa Branca ser uma referência preciosa
para a Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira, tendo, inclusive, recebido uma visita
da Velha Guarda. Em Salvador, os exemplos de extensão dos terreiros para os blocos de axé
no carnaval são inúmeros, como o bloco afro Ilê Aiyê que tem sua vinculação ao Ilê Axé Jitolu.

Também Rolnik (1989) exemplifica a tradição do terreiro no samba, em que o Morro da


Mangueira, que entre os séculos 19 e 20 era o Morro do Telégrafo, foi um dos primeiros
locais de samba de terreiro da cidade do Rio de Janeiro juntamente com os morros do
Salgueiro, Andaraí, Tijuca e Serrinha, passando a ser ocupados de forma mais intensa
naquele momento. Rolnik, inclusive, denomina estas áreas de compound semi-rural, uma
série de cômodos contíguos que dão para um pátio ou quintal comum, que pouco a pouco
deram lugar à habitação densa do morro, se consolidando posteriormente nas favelas.

Sodré (1988) reafirma esta vinculação originária que se perpetua pelos grupos de festa, os
cordões e blocos carnavalescos, os ranchos que sempre estiveram ligados direta ou
indiretamente através dos músicos, compositores ou pessoas de influência do candomblé.
Esta vinculação e complementação do mito e os interesses comunitários propiciavam
também a ascensão econômica e social, pela ampliação de contatos sociais com grupos
não-negros como forma de integração, como uma construção autônoma mítico-política da
comunidade negra, com recursos intelectuais próprios.

A aproximação entre os aspectos econômicos, políticos e étnico-religiosos permite uma


melhor compreensão de como efetivamente funciona esse modo de relacionamento de um
grupo com seu real (sua singularidade, seu ser único no mundo) chamado cultura. O
processo de simbolização, bem como a organização das atividades vitais por identificação
de invariantes na diversidade, são, ao mesmo tempo, econômicos, políticos e míticos
(SODRÉ, 1988). É sob esta dimensão cultural que relembramos a questão do trabalho posta
anteriormente e da existência de uma economia urbana particular.

A fundação de um território especificamente negro no espaço urbano brasileiro dava


continuidade às relações de solidariedade e de iniciação a ofícios (como forma de
compensação à falta de oportunidades na educação sistemática) tais como barbearia,
marcenaria, alfaiataria, bordados, doceiras, etc. Essa transmissão grupal de conhecimentos,
técnicas, competências, em suma um patrimônio social, criou uma tradição de ofícios
urbanos (SODRÉ, 1988).
186
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Segundo Cunha Junior (2011b), em suas (re)construções teóricas dos territórios de maioria
afrodescendente, ao pensá-los como lócus de formação de identidades coletivas e de
educação para as populações negras, os terreiros propagaram a forma existencial do ser
negro para além do sentido religioso, pautada pela sinergia entre os campos social, político e
econômico, enquanto parte do conjunto cultural filosófico que compõe o pensamento africano
e afrodescendente. Conforme o autor, os terreiros deram os subsídios para a formação dos
blocos afros, afoxés, grupos e escolas de samba, congadas, maracatus, os batuques, os
jongos, grupos de movimentos de Rap e Hip Hop, etc. (e também os bailes funk, a capoeira,
os saraus afro 63), se transformando neles em consequência de sua gênese cultural, como
expressões das formas africanas de ser brasileiro. Na Figura 68 temos um grafite Hip Hop
identificado com a cultura de samba no bairro do Engenho Velho da Federação.

Figura 68 - Grafite na Rua Santo Amaro, no Engenho Velho da Federação (Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora

Entendemos que os terreiros são a instituição mais evidente do desdobramento da cultura


de matriz africana em formações urbanas. Talvez os quilombos em áreas centrais também
tivessem este papel com maior eminência, não fossem as perseguições e aniquilamentos
sofridos por muitos quilombos distribuídos no território brasileiro e que atualmente se
encontram com maior frequência em áreas rurais.

63
“O sarau do Sankofa é quase um terreiro”, Nelson Maca, professor de Literatura da UCSal e articulador do
Coletivo Blackitude, referindo-se ao Sarau Bem Black que ocorre no Sankofa African Bar, Pelourinho, Salvador,
onde acontecem leituras de poesia, discursos, cantos, música, dança, etc.
187
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Na concepção de Rafael Sanzio Araújo dos Anjos (2005), os quilombos, ou outras


denominações como territórios quilombolas, remanescentes de antigos quilombos,
‘mocambos’, ‘comunidades negras rurais’, quilombos contemporâneos ou ‘terras de preto’
referem-se a um mesmo patrimônio cultural e territorial, inestimável e em grande parte
desconhecido, em sua essência, pela sociedade brasileira. Para o autor, os quilombos, que
ocorreram em diversas regiões do espaço brasileiro e em períodos diferenciados, constituíram
e constituem espaços geográficos de matriz africana e são fundamentais para a compreensão
da formação e consolidação territorial brasileira. As atuais comunidades quilombolas
constituem territórios étnicos concentrados na faixa litorânea do Brasil, mas pulverizados em
todo território nacional, principalmente no espaço rural brasileiro, mas também há muitos
núcleos que estão incorporados nas áreas periurbanas e urbanas do país (ANJOS, 2005).

Deste modo, muitas das nossas cidades são marcadas por sua dinâmica social. É o que
afirma Joel Rufino dos Santos, destacando comunidades do Rio de Janeiro (Santos apud
LUZ, 2000, p. 342): “a continuidade dos valores, que caracterizou a luta de afirmação sócio-
existencial dos quilombos, se desdobrando nas comunidades negras da atualidade [...] onde
os chamados morros ou favelas reproduzem-se como os quilombos de hoje”; originalmente
morros que foram ocupados e que se transformaram em favelas. Destacamos no Rio de
Janeiro a Pedra do Sal, no bairro da Saúde, e Sacopã, na Lagoa Rodrigo de Freitas. Em
São Paulo, Siqueira (2005) exemplifica com o Quilombo de Jabaquara.

Em Salvador, são poucos exemplos de quilombos que se perpetuaram em área urbana.


Segundo Passos (1996), Santos Neto (1984) e Siqueira (2005), os quilombos localizados (e
suas respectivas descobertas) em Salvador que conseguimos mapear em breve pesquisa
são: Quilombo do Rio Vermelho (1620), Quilombo Buraco do Tatu (1744) em Itapuã,
Quilombos dos Mares e Cabula (1807) e Quilombo do Urubu (1826) em Pirajá.

O levantamento de Anjos aponta que existem em Salvador 05 territórios de comunidades


quilombolas: Alto da Sereia, Calabar, Candeal, Curuzu, Ilha de Maré e
Grande/Bananeira/Martelo (INCRA/BA, 2004 apud ANJOS, 2005).

Muitos destes quilombos foram invadidos pelo crescimento urbano, e vários deles se
tornaram áreas valorizadas em meio urbano. Em Porto Alegre, temos o Quilombo da Família
Silva, que, segundo Sommer (2005), foi o primeiro “quilombo urbano” reconhecido em
território nacional. O conceito jurídico de quilombo urbano mais utilizado é aquele
relacionado às comunidades remanescentes de quilombos que tiveram seus territórios
circundados pelo perímetro urbano, conforme Corrêa (2010). Embora estas territorialidades
negras sejam históricas, o conceito de quilombo urbano é recente.

188
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

De fato, nós entendemos esta interpretação e esta imputação ao bairro como quilombo
urbano como uma nova ressignificação, uma vez que em nossas entrevistas com moradores
nunca tivemos referência de que o bairro se originava de quilombo, no sentido histórico do
período escravista.

Acreditamos que muitos quilombos urbanos não se originaram de quilombos do período


escravista, no entanto, alcançaram este status de quilombo na atualidade como uma
ressignificação, como reconhecimento da resistência de comunidades negras em meio urbano.

Mas quilombo também pode ser, na definição de Narcimária Luz, “uma reterritorialização
sinérgica, que acolhia a todos que procuravam manter sua liberdade e direito à alteridade
civilizatória e com elas suas comunalidades” (LUZ, 2012, p. 74),

Esta significação de Luz (2012) também pode ser aplicada aos terreiros que, enquanto
comunidades religiosas, mantêm uma estrutura organizacional de solidariedade grupal
concentrada numa espacialidade, lembrando a configuração dos quilombos localizados em
áreas urbanas.

No entanto, terreiros de candomblé e quilombos constituem duas formas culturais distintas


que consideramos de importância como referências na formação urbana no Brasil. Os
terreiros, entretanto, tiveram maior visibilidade e maior multiplicidade em relação aos
espaços urbanos, tanto quanto suas culturas e implicações sociais. Assim, temos também
maiores informações e referências bibliográficas. Por esta razão escolhemos apenas os
terreiros como foco do estudo desta pesquisa de doutoramento.

Conhecimentos afro-brasileiros foram processados no Brasil, nos quilombos e, sobretudo,


nos terreiros, impregnando espaços, base concreta dos espaços de comunalidade
afrodescendente urbana, evidenciando aqui a maneira como os terreiros de candomblé
estão inseridos em nossa localidade particular, o Engenho Velho da Federação.

Quando Cunha Junior (2011b) nos aponta a sinergia entre os campos social, político e
econômico, enquanto fatores imbricados e indissociáveis, como parte de uma matriz filosófica
africana, compreendemos porque os bairros negros não podem ser analisados apenas como
resultado das relações capitalistas que incidem sobre as cidades. Numa sociedade industrial,
as relações econômicas estão imbricadas na forma cultural de ver o mundo.

Entendemos que é em função das permeabilidades, trocas, acordos e também pelas


assimilações e reproduções das formas dominantes do planejamento urbano que existe a
dificuldade de se reconhecer e/ou diferenciar o bairro negro do bairro popular, sempre
generalizados como “a mesma coisa”, sintetizados na expressão popular: “bairro de pobre é
tudo igual”.
189
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Assim, quando pomos em pauta um bairro negro com suas especificidades, estamos
relativizando também as ambiguidades e sobreposições que este bairro sedia como reflexo
das influências das culturas africanas nos seus processos de uma construção cultural
diaspórica negra, no Brasil.

Levando em conta as histórias e culturas negras, pois sem estas não se entende o negro no
contexto em que está inserido, damos seguimento à análise do espaço urbano habitado por
populações negras, a fim de apreender a organização destes espaços, no próximo Capítulo.

190
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

CAP. 4 - BAIRRO NEGRO E FORMA URBANA NEGRA

Conforme apontado nos capítulos anteriores, diante do imenso conjunto cultural que
compõe o pensamento diaspórico africano no Brasil e suas interações na produção de
cidade, pode-se admitir possibilidades em termos outros referenciais nas análises sobre
cultura e produção de cidade.

Em Hall (1989), temos que o meio ambiente arquitetônico e urbano criado pelas populações
de visões culturais diferentes geram expressões resultantes de um processo de filtragem-
peneiramento da cultura dominante, resultando numa linguagem própria.

O presente capítulo toma este raciocínio sobre as expressões resultantes de diversas


culturas, sendo uma proposta conceitual, indicando uma nova interpretação urbanística,
expondo nossas ideias conceituais sobre bairro negro e forma urbana negra.

Com base nos aspectos subjetivos do arcabouço civilizatório e cultural produzido no


contexto da diáspora africana, expomos aqui algumas implicações e evidências iniciais que
foram consideradas para o avanço desta pesquisa sobre espacialidade urbana negra.

Esta tessitura se fundamenta nas subjetividades dos conhecimentos da diáspora africana,


através de conhecimentos africanos que foram reelaborados e ressignificados,
desencadeando, em nosso país, no que chamamos de africanidades brasileiras, já
abordadas anteriormente. Estas africanidades são amplamente experienciadas e
vivenciadas por comunidades negras, conjugando significados, sentidos e emoções. Estas
subjetividades compuseram um plano das ideias. O rebatimento destas subjetivações na
base concreta do espaço constituem espaços de comunalidade afrodescendente, tal qual
pode ser observado no diagrama da Figura 69:

Plano das Ideias

Conhecimentos Conhecimentos Africanidades Comunalidades


Africanos Diaspóricos Brasileiras

Base
Concreta

Espaços de
Comunalidade
Afrodescendente
Figura 69 - Diagrama do Plano das Ideias e Base Concreta.
Fonte: Elaboração da Autora

191
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Estas ponderações iniciais, enquanto parte da formulação do problema, foram


paulatinamente articuladas, combinadas e elaboradas, permitindo-nos delinear o raciocínio e
avançar para a identificação do bairro negro e conceituação da forma urbana negra.

4.1 - O Bairro Negro

Para o entendimento da nossa concepção de bairro negro, vamos anteriormente expor


nossa definição do que é o bairro. Existem inúmeras definições de bairro, considerando que
podem ser tomados diversos enfoques metodológicos, como recortes morfológico-espaciais,
político-administrativos, histórico-sociais.

A definição geográfica clássica de bairro passa por sua paisagem urbana (tipologia e tempo
das construções, traçado das ruas), por seu conteúdo social (modo e padrão de vida de sua
população) e pela função (atividade básica dentro da cidade: residencial, comercial,
administrativa ou industrial), além de seu suporte territorial (TEIXEIRA; MACHADO, 1986).

Neste interim, tomamos por paisagem, o sentido proposto por Lamas (2000) como
“descrição dos aspectos exteriores de uma realidade” (p. 543), não sendo, no entanto, a
própria realidade. Paisagem é também, como conceitua Milton Santos (2006):

o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que


representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza
[...]; se dá como um conjunto de objetos reais-concretos. Nesse sentido a
paisagem é transtemporal, juntando objetos passados e presentes, uma
construção transversal (SANTOS, 2006, p. 66-67).

Enquanto unidade de planejamento na orientação/definição de políticas públicas, a


delimitação de bairros vem sendo utilizada na estruturação da gestão pública municipal,
mas, na maioria das vezes, as administrações municipais se utilizam de uma delimitação
forjada por regiões administrativas cujos limites são ainda maiores e com demarcações
abstratas, não correspondendo à vida cotidiana de seus moradores (SERPA, 2007a).

No que tange aos aspectos histórico-sociais, as pesquisas dos bairros salientando suas
culturas particulares é um campo ainda lacunar, que pode revelar diversas formas de
constituir o urbano.

Enfatizando nesta pesquisa um enfoque diferenciado do entendimento de bairro, temos em


Serpa (2007a) uma coletânea de artigos referentes a bairros populares que discutem
conceitos de redes sócio-espaciais, cultura, lugar e bairro como forma de compor subsídios
técnicos para processos participativos de planejamento urbano. Nos estudos dos bairros
populares e das áreas de urbanização popular na Geografia, Serpa enfatiza as evidências

192
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

históricas, as relações sócio-espaciais e suas redes, as manifestações culturais,


conformando rica trama de conteúdos e significados. Além da produção do conhecimento
empírico a partir da realidade dos bairros populares, o autor busca a possibilidade de
aprofundamento teórico-conceitual da noção de “bairro” nas áreas de urbanização popular,
articulando a ideia de espaço vivido, como reflexo e condição das experiências cotidianas
dos moradores, considerando-os como os verdadeiros agentes de produção do espaço
“popular” das metrópoles.

A valorização da escala do bairro como espaço vivido e sentido, como lugar da experiência e
da ação, implica em vê-lo como um sistema de relações singular que exprime a experiência e
o envolvimento com o mundo, de forma identitária, relacional e histórica (AUGÉ, 1994 apud
SERPA, 2007a). Lamas (2000) também diferencia a escala, entendendo a escala da rua
oferece a dimensão setorial e a cidade, a territorial, enquanto que que é na escala do bairro
que se tem a dimensão urbana.

Ainda em relação à escala, podemos expor aqui o(s) lugar(es) na acepção de Frémont
(1980), que forma a trama elementar do espaço, constituindo e revelando uma superfície
reduzida e em redor de um número reduzido de pessoas, as combinações mais simples, as
mais banais, mas talvez também as mais fundamentais das estruturas do espaço: o campo,
o caminho, a rua, a oficina, a casa, a praça, a encruzilhada.

O bairro torna-se, portanto, uma escala importante, para além do sentido comunitário
enquanto relações sociais, em que os moradores se sentem parte de uma coletividade que
os localiza espacial, social, política, econômica e culturalmente no conjunto da cidade.

Serpa afirma que os bairros expressam e condicionam as redes de relações sociais, de


vizinhança, de parentesco, de amizade, e também as redes associativistas (igrejas, terreiros
de candomblé, clubes esportivos, associações de moradores, clubes de mães, etc.), sendo
seus moradores os agentes de transformação do espaço.

Parte da literatura urbanística relativa às cidades brasileiras prioriza a condição de renda


para a classificação dos bairros ou regiões urbanas (VASCONCELOS, 2006;
VALLADARES, 2000), que, quando tomados como áreas de pobreza, são denominados de
forma genérica como bairros populares. Entretanto, podemos destacar uma variedade de
sinais intrínsecos a estes bairros, resultante de diversos fatos históricos.

No âmbito desta tese nos dedicamos aos bairros que denominamos negros por critérios
históricos, culturais, políticos e econômicos tendo como principal enfoque o eixo das
africanidades e afrodescendências. Evidentemente, dados os contextos históricos das
populações descendentes de africanos no Brasil, há sobreposições entre bairros negros e

193
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

bairros denominados como populares, graficamente representadas na Figura 70, revelando


que parte do conjunto daqueles tem interseção com parte do conjunto destes.

BAIRROS NEGROS 
 BAIRROS POPULARES

Figura 70 - Sobreposição Bairros Negros e Bairros Populares


Figura
Fonte: 70
Elaboração da Autora

Evidenciamos novamente a cultura como ponto de partida para compreensão das relações
sócio-espaciais, tendo as culturas negras como referência conceitual para identificar o bairro
negro. O bairro negro é aquele onde predomina a cultura negra, conforme Figura 71.

bairro negro cultura negra

Figura 71 - Diagrama do bairro negro e da cultura negra


Fonte: Elaboração da Autora

Um esboço desta proposta ocorre em Ramos (2007), relativo ao bairro da Liberdade,


Salvador, no qual estudos referentes ao histórico do bairro, às percepções e suas culturas
foram articulados sob o enfoque teórico de Cunha Junior, da Afrodescendência e dos
Territórios de Maioria Afrodescendente, em que estes

são espaços urbanos em que encontramos outros grupos sociais de origens


históricas e culturais diversas, mas onde encontra-se a população
afrodescendente como maioria, sendo esta a que determina a dinâmica
cultural e social desses territórios (CUNHA JUNIOR, 2007b, p. 71).

O bairro negro é decorrente de uma história coletiva que explora possibilidades de uma
criação autônoma pela forte expressão cultural afro-brasileira, embora condicionada aos
contextos brasileiros. Entendemos o bairro negro também como um território construído a
partir dos saberes dos moradores fundadores, que construíram, de certa forma, com êxito,
estratégias de solidariedade e de relações sociais.

O bairro negro resulta do campo de produção de conhecimento da diáspora africana, da


criatividade de suas soluções e argumentações que se desenvolveram nos interstícios, nas
brechas da sociedade dominante. Tal qual Sodré aponta: na conjuntura de um “contra-lugar
194
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

(em face daqueles produzidos pela ordem hegemônica), concreto de elaboração de identidade
grupal e de penetração em espaços intersticiais do bloco dirigente” (SODRÉ, 1988, p. 103).

O bairro negro, como fruto de toda dinâmica cultural, apresenta assimilações e


reelaborações dos bairros planejados não-negros, como forma de complementaridade (de
status social) , sem deixar, no entanto, de “ser” um bairro negro. O bairro negro incorpora
populações negras e sua relação com os espaços criados a partir de culturas negras,
articuladas também com assimilações da cultura tida por dominante.

Esta riqueza cultural, dada pela integração de várias culturas, é lapidada nos bairros negros.
Assim, muitos bairros negros surgem, social e/ou espacialmente, desta dinâmica cultural
oriunda de culturas negras difundidas em várias cidades do mundo. Portanto, não existe, na
constituição destes bairros negros, uma homogeneidade histórica, espacial, temporal,
econômica ou mesmo da própria cultura negra: os bairros negros também são diversos. A
formação de um bairro negro é marcada por um processo histórico das várias expressões
de culturas negras que configuram diferentes sociabilidades e espacialidades.

Nas reflexões de Sodré sobre o conceito de espaço, o autor associa o morar a um fazer
comunitário que indica a própria identidade de um grupo, dado por um ordenamento
simbólico da comunidade:
A história de uma cidade é a maneira como os habitantes ordenaram as suas
relações com a terra, o céu, a água e os outros homens. A história dá-se num
território, que é espaço exclusivo e ordenado das trocas que a comunidade
realiza na direção de uma identidade grupal (SODRÉ, 1988, p. 22).

Estas reflexões de Sodré se alinham com as de Rossi, para quem a cidade é a sede do
patrimônio cultural dinâmico, registro de diversos tempos históricos e das manifestações da
cultura dos diversos grupos sociais e na qual a memória coletiva se torna a própria
transformação do espaço, como um fio condutor que orienta o espaço urbano, como
consciência deste espaço. Segundo Sodré, a memória coletiva instrui, portanto, a identidade
do grupo e gerencia o ordenamento simbólico da comunidade, como também sua dinâmica.

Dentro desta ótica, entendemos que o sentido do morar passa pelas referências do lugar,
acumulando o limo das experiências coletivas ao longo do tempo. Em relação ao bairro,
temos em Rossi que:
O bairro é uma das partes da cidade como uma experiência concreta. Sua
morfologia social é caracterizada por certa paisagem urbana, por um
conteúdo social [...] Também é necessária uma análise do bairro como fato
social baseado na segregação de classe ou raça, nas funções econômicas
e que atuam como partes autônomas de toda estrutura urbana da cidade
(ROSSI, 2001, p. 70).

195
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Tomando as referências acumuladas que são partes intrínsecas do lugar, retomamos Sodré,
em que o autor cita Hall (1989 [1966]), para quem, nas abordagens científicas do social, o
espaço (e seu relacionamento com o indivíduo) é uma dimensão oculta da cultura. Sodré
compreende que esta noção torna-se evidente na modelização universalista, que opõe-se a
uma apreensão topológica e admite a heterogeneidade de espaços, a ambivalência dos
lugares, a indeterminação.

Sodré refere-se à dimensão territorial de uma cultura ou à “lógica do lugar” de uma cultura.
O território e suas articulações sócio-culturais aparecem com dinâmica própria e irredutível
às representações que o convertem em puro receptáculo de formas e significações. Sodré
cita o exemplo dos povos bantu do Kavirondo (África): para eles a direção leste/oeste
constitui o eixo principal de organização do mundo, dado pelas importantes chuvas que vêm
do leste. O dado geográfico (sentido das chuvas), acrescido de valores simbólicos
[fertilidade, prosperidade], condiciona o modo como estes grupos bantu se relacionam com
seu território particular. Sodré apresenta outro exemplo, a partir de Paul-Lévy: índios bororós
que só foram convertidos pelos salesianos quando deixaram suas aldeias circulares para
habitar as vilas alinhadas à maneira europeia. Ao romper com a estrutura tradicional do
espaço construído - que se relaciona diretamente com as práticas ritualísticas - os
missionários provocaram o desmoronamento das marcas simbólicas básicas do grupo
indígena. A hipótese bororó introduz a dimensão territorial na própria elaboração das
estruturas sociais. Pelo modo de morar, de se instalar no espaço, as sociedades arcaicas ou
históricas, singularizam-se, mostrando assim o seu “real”.

Nestas dimensões espaciais e sensitivas, as formações de identidades negras em relação


recíproca com a formação do bairro [identidade  bairro] são construídas pelo sentido que os
grupos dão aos objetos, à materialidade da cultura. No bairro negro, o espaço não é uma dimensão
oculta da cultura; ele é uma dimensão consciente e condicionante existencial para os grupos.

No nosso Engenho Velho da Federação é o candomblé, enquanto religião de matriz africana,


que atua como lugar de irradiação de alicerces que conformam manifestações culturais e
espaços sociais negros. Diante das práticas de terreiro, temos que, em culturas negras, o
espaço sempre esteve como dimensão consciente e presente no relacionamento com o real.

Incorporado ao conceito espaço-tempo, o ser humano é parte do espaço natural e, portanto,


não deve ser uma imposição sobre este espaço. Há um exercício mútuo entre o ser humano
e o espaço, já que este também impõe suas condições ‘espaciais’, constituindo-se em uma
interatividade constante (ser humano  espaço); temos aqui uma referência aos valores
filosóficos e civilizatórios da cultura de base africana, no respeito à natureza, o ser humano
fazendo parte dela e não se sobrepondo a ela, valores amparados pelas religiões de matriz
196
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

africana, verificáveis nas vivências e práticas dos terreiros. A integração com a natureza não
é apenas simbólica, é simbiótica, é conceitual: é parte da prática cotidiana.

À medida que estes espaços são processados ao longo do tempo no seio de uma
comunidade, constitui-se um território, impregnado de elementos culturais, definido por
identidades e simbolismos, gerando um conjunto dinâmico de práticas que se processam
continuamente, aqui, através das gerações.

Verificamos que pela contínua acumulação de experiências, o território tanto demarca uma
relação interativa com as pessoas, como também permite que esta relação seja criativa e
educativa, passando informações e significações também para as gerações futuras.

Sob esta ótica, as identidades são construídas cotidianamente no espaço urbano, composto
de fatores interdisciplinares e de naturezas complexas que estão intimamente relacionados
à localidade, ao bairro. Se é no bairro que as pessoas vivem, produzem sua vivência
concreta e suas subjetividades, este espaço urbano também tem a função de reproduzir
conhecimento.

O morar ao qual nos reportamos quando nos referimos aos bairros negros pode ser
abordado tanto quanto à habitação em si, quanto à ocupação de um espaço físico, lugar,
incluindo a espacialidade, sendo parte de um patrimônio histórico, parte da identidade
coletiva.

Neste sentido, o morar envolve os bens materiais e imateriais da casa e seu entorno,
abrangendo a espacialidade, os bens sociais como parte da cultura que se faz importante
para as comunidades negras.

Nesta relação do morar, temos Rossi que se refere ao bairro como a área-residência, sendo
caracterizado por uma função (do qual discordamos, pois, para nosso entendimento, um
bairro pode contemplar múltiplas funções, embora predomine a residencial). Para Rossi, a
área-residência é a representação do modo concreto de viver de um povo [grupo social], da
manifestação pontual de uma cultura, que se modifica muito lentamente.

Rossi cita Viollet-le-Duc que analisa:

A casa com o que melhor caracteriza os costumes, os gostos e usos de um


povo; sua ordem, assim como a sua distribuição, só se modifica em tempos
muitos longos (VIOLLET-LE-DUC, 1854-1869 apud ROSSI, 2001, p. 80).

José Forjaz também conjuga deste pensamento a partir das análises da casa africana, na
apresentação do livro de Bruschi (2001), atentando que “as formas do habitar são aquisições
profundamente encrustadas em níveis do subconsciente social e do indivíduo” (p. 5). Forjaz

197
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

refere-se também às formas do espaço doméstico ou urbano das cidades africanas


analisadas no livro que esta permanência de usos se dá pela “adequação, tão perfeita por
vezes, ao modelo social e ao meio natural” (p. 5).

Deste modo, nestas referências culturais provenientes das trajetórias afro-brasileiras, que
aqui em parte foram reelaboradas pelos terreiros, apontamos na base concreta do bairro
negro, na sua materialidade, elementos que estão tanto no espaço doméstico ou no espaço
urbano, conforme pode ser visualizado no diagrama da Figura 72.

Espaços
Coletivos

Áreas
Quintais
Vegetais
BAIRRO
NEGRO

Espaços
Mercados
Sagrados

Figura 72 - Diagrama do Bairro Negro e Elementos Espaciais


Fonte: Elaboração da Autora

Assim temos os espaços coletivos para práticas de uso comunitário; os quintais na sua
organização espacial, no plantio de espécies e ornamentação das plantas, por vezes,
assentamentos religiosos; os espaços sagrados; os mercados: lugares dos tabuleiros,
ambulantes, quitandas, feiras; e as áreas vegetais, constituindo a materialidade do bairro negro.

4.2 - A Forma Urbana Negra

Uma forma urbana é gerada por uma série de combinações de elementos da estrutura
urbana, a partir da dinâmica sociocultural e contextos históricos, com a adaptação ao
sistema de parcelamento do solo, as condições topográficas, submetidos a fatores externos
da sociedade dominante, sobretudo econômicos e políticos.

198
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

A descrição da morfologia, segundo Lefebvre, não alcança determinadas relações sociais,


aparentemente abstratas em relação ao dado e ao vivido. A descrição fenomenológica
ocupa-se dos laços entre os citadinos e o sítio. A descrição empírica enfatiza a morfologia,
dando conta com exatidão do que as pessoas vêem e fazem num contexto urbano.

No que tange à morfologia urbana, no campo da arquitetura e urbanismo, enquanto


disciplina que estuda o objeto, a forma urbana, vários autores tratam amplamente do tema
por uma perspectiva da forma urbana, sobretudo planejada e projetada, como Spiro Kostof,
José Lamas, entre outros.

Para Kostof (1991), a morfologia urbana reflete um repositório de significado cultural na cidade
e a incorporação da sua comunidade numa análise histórica. O autor reconhece a forma
urbana como resultado histórico de fatores imbricados ao longo do processo de ocupação.

Em Lamas (2000) temos que: “o conceito mais geral de forma de um objeto refere-se à sua
aparência ou configuração exterior” (p. 41). O autor reconhece que um instrumento de leitura
visual certamente não revelará todos os conteúdos da forma: “A descoberta de outros
conteúdos implica outros instrumentos de leitura” (p. 41).

Lamas toma a forma urbana “enquanto corpo ou materialização da cidade capaz de determinar
a vida humana em comunidade” (p. 22). Para o autor, as formas urbanas estão relacionadas
não somente às concepções estéticas, ideológicas, culturais e arquitetônicas, mas estão
também “indissociavelmente ligadas a comportamentos, à apropriação e utilização do espaço e
à vida comunitária dos cidadãos” (p. 28). A forma urbana também é, para Lamas, o resultado
da produção voluntária do espaço, enquanto um processo que organiza e resolve, utilizando os
conhecimentos culturais e arquitetônicos sobre esse mesmo espaço.

Para Lamas (2000), a forma urbana é um objeto teórico de múltiplas leituras e depende das
categorias ou instrumentos de análise utilizados, resultando em inúmeras significações
políticas, filosóficas, econômicas, sociais, psicológicas, etc. cruzando vários tipos de leituras
e informações, de modo a explicar, e não apenas descrever, parte da cidade.

Temos também em Sampaio (1999), a partir de Milton Santos, uma análise da forma urbana
numa perspectiva no âmbito urbanístico e arquitetônico, que aparece como estrutura revelada:

A morfologia urbana seria o campo abrangente de estudo da forma-urbana,


tanto no seu sentido mais restrito - de configuração - como no seu sentido mais
amplo e complexo, de formas como resultado de vários processos históricos,
em seus conteúdos, sentidos, intenções, etc. (SAMPAIO, 1999, p. 331).

Gordilho-Souza (1998), ao explorar em suas pesquisas a fragmentação sócio-espacial das


cidades brasileiras, afirma que o processo de segregação desses espaços ao nível urbano,
199
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

gradativamente, conduz à formação de verdadeiros territórios dentro da própria cidade,


originando, possivelmente, “novas práticas sociais, próprias do lugar, a serem interpretadas”
(p. 183). Com ressalva ao que a autora sugere em relação a novas práticas sociais, que
talvez sejam práticas sociais apenas estranhas ao urbanismo, salientamos:

Essas formas urbanas parecem se configurar em espaços construídos que,


além de segregados, são diferenciados entre si; constructos urbanos que,
tendendo à consolidação e proliferação, possibilitam dinâmicas próprias ao
nível social e urbanístico (GORDILHO-SOUZA, 1998, p. 183).

Nesta mesma linha de raciocínio, temos em Bárbara Freitag (2006) que o interesse na
questão das cidades é, e precisa sempre ser, interdisciplinar, envolvendo vários registros da
realidade, como o urbano, o econômico, o político, o social e o cultural. O estudo pela via
das formas urbanas, por exemplo, é insuficiente para explicar “o porquê destas formas, seus
efeitos sobre a vida social, seu potencial e seus limites na organização política e econômica
de uma sociedade” (FREITAG, 2006, p. 13).

Diante destas referências sobre a forma urbana, como resultado de conteúdos históricos,
culturais e sociais.

Assim, constituímos nossos subsídios para conceituar a forma urbana negra, conjugando
preliminarmente a associação da forma como ação que se apresenta, de uma maneira, de
um modo, de um jeito, de um feitio pelo qual um fenômeno pode ser apreendido. Segundo
Milton Santos (1985), forma é o que é percebido, é o visível, é a descrição dos fenômenos
ou de suas particularidades; do urbano é compreendido aqui no aspecto relativo ou
vinculado à cidade, em que um conjunto de características próprias da vida social coletiva
pertinente à cultura é compartilhado entre os seres daquele urbano. Em Lefebvre (1999), o
urbano se define pelo nível privado, nas modalidades da vida cotidiana, compreendendo a
diversidade das maneiras de viver; e do negro, relativo às tradições negras, diante das
múltiplas expressões culturais negras.

Nestas descrições, observamos que os extratos urbano e negro encaminham-se para uma
forma vinculada à cultura, no escopo da forma-conteúdo. Esta forma urbana negra é
estabelecida pela cumplicidade intrínseca entre o saber (relativo ao conteúdo gerador da
forma) e o fazer concreto (relativa à forma urbana resultante), processo no qual os
moradores são ativamente participativos, esvaziando o anonimato e a passividade impostos
pelas sociedades modernas em nossas cidades.

Nos propomos nesta pesquisa conceituar a forma urbana negra, fundamentada numa premissa
das culturas negras como determinante do espaço, a partir de uma realidade local. Diante do
panorama do bairro, na sua complexidade de vias e acessos, massas edificadas e vazias, nossa
200
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

análise urbanística não se restringiu às formas construídas aparentes e suas relações espaciais,
mas foi ponderada pelo contexto forma-conteúdo.

Segundo Santos (2006), a ideia de forma-conteúdo une o processo e o resultado, a função e a


forma, o passado e o futuro, o objeto e o sujeito, o natural e o social. Essa ideia também supõe o
tratamento analítico do espaço como um conjunto inseparável de sistemas de objetos e sistemas
de ações. Na análise de Rossi, os fatos sociais, na medida em que se apresentam como
conteúdo, precedem as formas e as funções, nos levando também ao entendimento do conceito
de forma-conteúdo. E Serpa (2007a) destaca as reflexões de Rossi sobre o bairro como uma
unidade morfológica e estrutural. Rossi, incorporando os estudos da Geografia Social de Tricart
(1963 apud ROSSI, 2001), evidencia a base de leitura da cidade como conteúdo social que deve
vir antes da descrição dos fatos geográficos que dão à paisagem urbana seu significado. E nesta
incorporação do conteúdo social, Tricart propõe uma convergência de disciplinas como
urbanismo, sociologia, história, economia política e direito para oferecer maior plenitude ao estudo
da morfologia urbana.

A forma urbana negra é o conceito estrutural da proposta deste trabalho e se situa no âmbito das
reflexões sobre a convergência de população negra e espacialidade urbana, na sua relação deste
grupo social com o meio urbano. População negra e espacialidade urbana foram as premissas
conceituais dos elementos operacionalizados no sistema de reflexão elaborado no curso desta
pesquisa.

Os conceitos complementares são apresentados a seguir, sendo um conjunto de outros conceitos


que dá subsídios à compreensão do conceito estrutural, a forma urbana negra.

Relembrando Lencioni (2008), o conceito é sempre uma simplificação do real e ao mesmo tempo
uma generalização deste, e com o qual não conseguiremos alcançar sua plenitude. Para a autora,
a construção de um conceito, aqui, a forma urbana negra, exige sempre um exercício de captura
do que é essencial ao objeto, o bairro negro, que é motivo da reflexão.

Consubstanciando o exercício conceitual, temos que a prática da pesquisa demonstra "a


necessidade de se separar as partes da totalidade para se proceder à análise" (LENCIONI, 2008,
p. 109). Para a autora, todo conceito serve para se compreender a essência dos objetos, dos
fenômenos, das leis e, nesse sentido, se constitui num instrumento de conhecimento e pesquisa;
o conceito é um reflexo do real, uma representação do real, na esfera do pensamento sobre o
real. Os conceitos se constituem como elementos fundamentais para a interpretação da realidade.

Os conceitos complementares explicitam algumas formulações importantes relativas ao


conceito estrutural da pesquisa: a forma urbana negra. Estas formulações paulatinas
consubstanciaram o exercício da pesquisa empírica.

201
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Deste modo, contribuíram na definição da forma urbana negra cinco núcleos conceituais,
como mostra a Figura 73, que são trabalhados nos itens seguintes, de modo a capturar uma
forma urbana negra para refletirmos sobre o bairro negro.

Figura 73 - Diagrama das Premissas Conceituais e Conceitos Complementares


Fonte: Elaboração da Autora

Assim, desenvolvemos os conceitos complementares que fundamentaram o entendimento


do bairro negro.

Resgatando Lefebvre (1999), buscamos entender o bairro do Engenho Velho da Federação,


criando novas palavras/novos termos para capturar a realidade urbana que escapa (p. 151)
nas interpretações convencionais do urbano.

Os conceitos como Convivibilidade, Afro-consciência Espacial, Assentamentos Familiares,


Caminhalidade e Multifuncionalidade foram construídos para dar embasamento a este
estudo do bairro negro, tendo como base os valores culturais afro-brasileiros.

Como mencionamos anteriormente no item relativo, estamos construindo um fazer científico a


partir da produção do conhecimento no âmbito da diáspora africana, diante da condição
dinâmica da história social de africanos e de seus descendentes, específica de como ocorre no
Brasil, destacando a exclusão espacial, tendo em conta as referências das africanidades.

202
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Assim, elaboramos nossos referenciais conceituais e encaminhamentos metodológicos.

Formulamos o conceito de Convivibilidade como uma relação social africana ‘ajustada’ às


novas possibilidades de ‘sobrevivência’ e ‘convivência’ em solo brasileiro, ambientada tanto ao
meio rural, comunidades de quilombo, por exemplo, quanto ao meio urbano, como terreiros de
candomblé ou bairros negros.

Nos meios rural e urbano, vige o problema de onde e como morar dos africanos e
descendentes, sendo que no meio urbano, de um modo particular, conceitos e práticas foram
produzidos tendo a convivibilidade como um ponto de grande importância. Pensamos ser esta
convivibilidade particular a explicação de muitas das decisões tomadas por estas populações
na solução de onde e como morar.

A convivibilidade é aqui um conceito através do qual evidenciamos a importância de valores


sociais que possuem relevância no relacionamento social coletivo das populações negras,
moradoras destes bairros negros, derivada da palavra conviver: viver com.

Iniciamos esta análise quando pesquisamos o bairro da Liberdade (RAMOS, 2007), trabalho
no qual abordamos a sociabilidade que encontramos nas relações entre os moradores. Uma
convivência baseada nas relações entre pessoas e suas ações/atitudes que foram se
acumulando nas experiências passadas, constituindo e fortalecendo o entrosamento
comunitário, pela via lúdica ou pela solidariedade, tornando-se referências para as relações,
tanto no presente, quanto no futuro.

Esta noção do tempo acumulado nas relações humanas ao longo das gerações tornou-se mais
compreendida e mais acentuada pelo nosso amadurecimento conceitual, ao observar as
relações sociais entre os moradores no Engenho Velho da Federação, como uma forma de
sociabilidade amparada na/pela ancestralidade africana: a convivibilidade.

A proximidade/interação entre a vizinhança gera maior interatividade no entorno espacial das


casas, no qual, através das atividades cotidianas, são desenvolvidas práticas do não-
isolamento, o que caracteriza as múltiplas dimensões da vida cotidiana dos moradores do
Engenho Velho da Federação, não apenas o habitat, mas sim o habitar.

A gênese desta forma de valorizar a convivência social, a convivibilidade, está nas


comunidades afro-brasileiras, na interpretação social da energia vital, na incorporação dos
elementos como a união vital, a participação, a solidariedade e outros princípios sociais que
possibilitam a expansão da vida.

Esta convivibilidade, este conviver, estas relações ‘quase’ familiares estabelecem formas do
convívio, do trato diário, baseadas em regras e instituições africanas muito profundas. Vimos
anteriormente em vários autores que, apesar das diferenças entre os vários povos e etnias,

203
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

esta é uma premissa filosófica africana: “todos devem concorrer para que o universo se
expanda e o mundo nunca se acabe” (LUZ, 2000, p. 93).

Em torno das referências africanas, temos em Altuna (1985) que a chave para a
compreensão dos costumes e instituições das sociedades africanas parece ser o fato da
comunidade, da unidade da vida, da vida comunitária. A interação [inter-ação] envolve tudo:
seres humanos, plantas, animais, minerais, fenômenos naturais, já que encerram vida e
energia. Tanto a participação inter-ativa (pela interação) quanto a união vital desempenham
o primeiro papel na vida humana como princípio-base, que fundamenta a religião tradicional
e orienta as instituições políticas, sociais, econômicas e artísticas. A participação é o eixo
das relações dos membros de uma mesma comunidade, unindo indivíduos e coletividades
(ALTUNA, 1985), justificando as ações individuais, em conformidade ou dependentes das
ações coletivas. O coletivo da comunidade precede ao individual. Isso se desdobra tanto em
termos da pessoa como da família estendida, que embora seja um coletivo, ainda é menor
que a comunidade.

Esta visão de mundo é parte da tradição, de grande importância nas sociedades africanas e
afrodescendentes, e é definida e compreendida, assim, por Sodré (1988):

A tradição é mesmo um conjunto de “regras”, de princípios simbólicos sem


projeto universal implícito, conhecidos e vivenciados pelos membros da
comunidade, com o objetivo de coordenar grupos negros na diáspora
escravizada. A regra vige por força do consenso, não pela imposição de
uma essência transcendente (p. 92).

Neste sentido é que trabalhamos o conceito de convivibilidade, condicionado pela cultura,


contendo uma parte subjetiva que não só engendra a instituição da convivência como
incorpora a necessidade de acordo quando existe a presença de conflitos, também
implicando na ideia de expansão da vida como objetivo.

A expansão da vida se traduz no crescimento da comunidade. Trata-se da existência da


construção de projetos comuns e da produção de benefícios coletivos visando ao bem-estar
e à continuidade da comunidade como uma força atemporal, quase que eterna. A
convivibilidade contribui para a potência do viver de modo pleno neste mundo terreno e no
momento presente: potência de ser.

Em Sodré (1988), a força da Arcké negra é o próprio movimento da vida, com vistas à
expansão do ser.

Como já dissemos, esta convivibilidade, não como conceito, pode ser constatada também
em nossa pesquisa de mestrado:

204
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Na vida dos moradores entrevistados, residentes na Liberdade desde o


início do século passado, a relação de aproximação com a rua, a articulação
com o bairro, a convivência com a vizinhança, mesmo em graus
diferenciados, eram bastante estreitas. Aqui a socialização é fundamental
como meio de vida (RAMOS, 2007, p. 171).

É importante evidenciar a instituição do acordo, acerto que origina do Kisoko (palavra


quimbundo)64, costume bantu que consiste no acordo íntimo entre duas famílias,
transmissível aos descendentes, conservada no Brasil pelos bantu e absorvido por outras
tradições africanas. Sob esta ótica, podemos compreender as irmandades negras com suas
características ecléticas e plurais, implantadas pelos bantu.

Neste contexto, nos apoiamos em Luz (2000), que se refere à coesão grupal de base
comunitária africana: “As formas de cooperação extensa foram implantadas no Brasil,
constituindo instituição chamada mutirão” (p. 96).

Assim temos como exemplo a construção das igrejas das ‘irmandades dos homens de cor’,
realizada em mutirões noturnos, representando esses grandes feitos através de belíssimas
igrejas. Analogamente, podemos pensar que deste modo foram constituídos os bairros negros.

Quando nos referimos ao conceito da convivibilidade, destacamos o morar como uma forma
constituída de modo compatível com as instituições filosóficas e civilizatórias afro-brasileiras
que integram o material e o imaterial, o visível e o invisível.

Os registros de nossa dissertação de mestrado (RAMOS, 2007) nos introduziram as


questões espaciais no bairro negro, em que pontuamos sobre os inconscientes culturais de
Carlos Nelson dos Santos (1981) nos seus estudos sobre apropriação de espaço de uso
coletivo. Para Santos é preciso relativizar as concepções e entendimentos populares
sobre o que é espaço e para que serve. O autor afirma que tais conceitos:

[...] assemelham-se a valores ocultos em áreas silvestres, a tesouros


encerrados em jazidas que é preciso explorar em busca de inconscientes
culturais (SANTOS, 1981, p. 12).

Para Santos, os ‘inconscientes culturais’ podem ser identificados na apropriação do espaço.


Sugerimos em Ramos (2007) que estes ‘inconscientes culturais’ podem ser identificados
tanto na apropriação do espaço como na (auto)construção do espaço.

Assim temos o que denominamos, nesta pesquisa, de Afro-consciência Espacial, como


um conceito que desvela alguns dos inconscientes culturais e tornam-se, aqui na tese, uma

64
Vocabulário de Kimbundu no Português de Luanda: Organizado com base no Dicionário de Kimbundu-
Português de António de Assis Júnior, no Dicionário Complementar de Português-Kimbundu-Kikongo do Padre
António da Silva Maia e no Dicionário de Regionalismos Angolanos de Óscar Ribas. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/49893916/7134971-Cultura-Bantu-Parte-2-1>. Acesso em: 22 dez. 2011.
205
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

consciência cultural ancestral africana aplicada na espacialidade. Com este conceito, vamos
refletir sobre uma concepção específica de espaço no bairro negro, bem como a consciência
de seus moradores sobre esse espaço. Através deste conceito, discutimos aqui o espaço, e
o território, enquanto espaço físico e também como espaço social, de sociabilidade e de vida
comunitária.

Antes, no entanto, vamos fazer considerações sobre as noções de espaço e território que
aparecem articuladas na conformação deste conceito.

Partimos das considerações de Milton Santos na Geografia. Adotaremos aqui a ideia de


espaço e suas categorias de análise - forma, função, estrutura e processo (SANTOS, 1985)
e a dialética entre objetos e ações que constituem o espaço geográfico (SANTOS, 2006)
como base para a compreensão do bairro negro e da forma urbana negra.

A partir do par de categorias configuração territorial e relações sociais, Santos define que

a configuração territorial é dada pelo conjunto formado pelos sistemas


naturais existentes em um dado país ou numa dada área e pelos
acréscimos que os homens superimpuseram a esses sistemas naturais. A
configuração territorial não é o espaço, já que sua realidade vem de sua
materialidade, enquanto o espaço reúne a materialidade e a vida que a
anima (SANTOS, 2006, p. 62).

Na observação de Santos, cria-se uma configuração territorial que é cada vez mais um
resultado histórico que tende à negação da natureza natural, substituindo-a por uma
natureza totalmente humanizada.

Destacamos em Santos (2006) que o espaço, como um conjunto indissociável de sistemas


de objetos e sistemas de ações que interagem entre si, é atualmente um sistema de objetos
cada vez mais artificial, povoado de sistemas de ações cada vez mais imbuídos de
artificialidade e cada vez mais tendentes a fins estranhos ao lugar e a seus habitantes.
Santos prossegue nessa indivisibilidade entre o material e o simbólico dizendo que o espaço:

[...] é um misto, um híbrido, formado da união indissociável de sistemas de


objetos e sistemas de ações. Os sistemas de objetos, o espaço-
materialidade, formam configurações territoriais, onde a ação dos sujeitos,
ação racional ou não, vem instalar-se para criar um espaço (SANTOS,
2006, p. 199).

Para Santos, o espaço deve ser considerado como um fator da evolução social, não apenas
como uma condição. Neste sentido, busca-se pensar a afro-consciência espacial na
compreensão dos bairros negros, diante de elementos espaciais-culturais que são

206
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

significados e atualizados, como as já mencionadas formas-conteúdo, cujas significações


não estão alienadas da experiência dos moradores.

A afro-consciência espacial está no âmbito do processo das funções que se desdobram nas
formas [processo → funções → formas] (SANTOS, 2006). E também nas formas que se
desdobram em funções, na dialética forma-função, forma-conteúdo. Assim, temos aqui,
neste conceito, que o espaço não é entendido somente pela projeção das relações sociais,
mas também é reflexo do espaço nas relações sociais, que o impregnaram de elementos
culturais: identidades e simbolismos.

Tomamos o sentido de espaço construído por Milton Santos:

[...] o espaço se define como um conjunto de formas representativas de


relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura
representada por relações sociais [...] através de processos e funções
(SANTOS, 2002, p. 153).

Santos afirma que é da interação mútua entre objetos e ações que o espaço encontra sua
dinâmica e se transforma; o resultado conjunto desta interação permite sua análise,
simultânea, como processo e como resultado. Nesta ótica, passaremos a articular a
ação/ato/atuação (GIDDENS, 1978 apud SANTOS, 2006) como processo, dotado de um
propósito (MORGENSTERN, 1960 apud SANTOS, 2006). Santos afirma que a ação é
subordinada a normas, escritas ou não, formais ou informais e que a atuação está
diretamente ligada à ideia de práxis e as práticas são atos regularizados, rotinas.

Assim, a afro-consciência espacial é um conceito voltado para a interpretação do espaço


dos bairros negros, carregado de ações implícitas de seus habitantes, de caráter material e
imaterial. Interessa-nos com este conceito evidenciar, principalmente, a subjetividade das
interpretações, de como o real pode ser pensado, incorporando o espaço físico nas relações
e práticas sociais na produção do espaço do bairro negro.

Na sequência do exercício conceitual, a afro-consciência espacial dá continuidade à ideia da


convivibilidade como valor social, promotor de práticas de relacionamentos sociais,
resultantes do/no uso do espaço e contemplando a compreensão do espaço como parte da
expansão da vida, inerente à compreensão do sentido de viver.

Dados a participação coletiva e o transcorrer do tempo (histórico), os territórios são suportes


físicos da vida cotidiana, contendo significados simbólicos com importância primordial do
sagrado, visto que partimos de valores sociais de sociedades afrodescendentes, nas quais o
sagrado rege a prática social, havendo constante relação entre a natureza e os seres
humanos, entre o plano físico ou do plano espiritual.

207
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Temos, portanto, como princípio da existência, o profundo processo de interação de todos


com tudo. Tudo que existe no universo é percebido e interpretado como parte de um
sistema de ações e reações múltiplas, no tempo e no espaço.

Assim, o território no bairro negro é pensado no campo da afro-consciência como uma


localidade de aspectos contínuos e descontínuos. Os lugares como porção do espaço físico
são pensados como partes e adquirem sentidos particulares, sendo nomeados ou
especificados nos discursos pela interpretação deste sentido próprio, que é submetido à
lógica da percepção cultural desses indivíduos e de seu coletivo.

Deste modo, os indivíduos e os coletivos são os que orientam, com base em sua afro-
consciência espacial, a produção e o ordenamento do espaço no momento de sua tessitura,
isto é, pelos indivíduos e pela coletividade que impõem sua consciência na produção destes
espaços, por partes ou no conjunto. Aqui há a consciência do espaço em contraposição à
alienação do espaço65.

Sodré afirma que o território aparece, assim, como um dado necessário à formação da
identidade grupal/individual, ao reconhecimento de si por outros, processos nos quais o
território é como o espaço exclusivo e ordenado das trocas que a comunidade realiza na
direção de uma identidade grupal. Assim também coloca Altuna (1985), quando afirma que,
mediante a interação que envolve tudo (seres humanos, plantas, animais, minerais,
fenômenos naturais já que encerram vida e energia), as comunidades bantu (e que aqui
generalizamos às comunidades negras) não se realizam diante de uma prioridade territorial.

Considerando-se essa interação, o território é um polo de irradiação de forças. De acordo


com Sodré, a territorialidade atua como força de apropriação exclusiva do espaço, resultante
de um ordenamento simbólico, capaz de engendrar regimes de relacionamento, relações de
proximidade e distância. Nesta simbiose, a vizinhança, pela proximidade, desenvolve
maiores laços de solidariedade.

Como parte da afro-consciência espacial, é preciso interagir com os espaços para


harmonizar (proteger) o todo (pessoas, plantas e animais, objetos). É necessário promover
uma vida terrena em harmonia, em constante e recíproca interferência entre os planos
terreno e metafísico.

Como já nos referimos anteriormente, as plantas são partes da consciência dos moradores
do Engenho Velho da Federação como forma de proteger a casa de maus agouros: os
pequenos canteiros domésticos, como prática de manter, mesmo em espaços muito

65
Sobretudo nas formas urbanas das geometrizações cartesianas/euclidianas, abstratas aos modos de vida dos
moradores.
208
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

pequenos, o cultivo de plantas medicinais como tapete de Oxalá (boldo), e ervas para a
realização de banhos, muito utilizadas nos terreiros, como alfazema, manjericão, folha-da-
costa, entre outras.

Além do uso medicinal e do efeito estético, paisagístico, e que nós chamamos de ‘paisagismo
sagrado’, as plantas são naturalmente utilizadas como forma de proteção espiritual, dispostas
do lado externo, junto às entradas das casas, para espantar o ‘mau-olhado’: espada de Ogum
(ou espada-de-são-jorge), comigo-ninguém-pode, arruda, guiné, maria-preta, vence-tudo, etc.

As plantas são cultivadas em pequenos potes, caqueiros, vasos, canteiros, jardineiras e


jardins, jardins privados, jardins coletivos. Quando não há muito espaço, as plantinhas são
postas em soleiras, peitoris, muros, tetos, etc., como pode ser visualizado na Figura 74:

Figura 74 - Vasos de plantas sagradas nas casas no Engenho Velho da Federação


Fonte: Fotos de Gina Leite - Crédito: Instituto Cultural Casa Via Magia (Ano: 2005)

A Multifuncionalidade é conceito marcado pela multiplicidade de funções que um mesmo


espaço comporta, pela sua simultaneidade, ou não, havendo uma sobreposição de funções
no mesmo espaço e/ou ao mesmo tempo.

Na multifuncionalidade, novamente temos o acordo, o acerto. Mediante as disputas e


conflitos cotidianos resultantes dos constantes processos de construção, sendo possível a
209
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

ocupação e a distribuição dos espaços disponíveis para a instalação da moradia ou


pequenos pontos de comércios, como as quitandas, e serviços de pessoas da comunidade,
dadas às negociações.

A simultaneidade e a multiplicidade são representadas na flexibilidade dos espaços. Para


além das atividades desenvolvidas, estes espaços também estão relacionados às múltiplas
ambiências. Lembramos aqui de uma referência de Sodré em relação à “concepção
pluralista do espaço”, em relação às culturas de Arkhé, acolhida também pelo terreiro, em
que cada espaço é afetado por muitas forças (diferentes qualidades de energia vital). Estas
energias geram múltiplas ambiências.

A simultaneidade e a multiplicidade de atividades que se desenvolvem nestes espaços


possuem a mesma tônica que vemos na relação com o trabalho, em que é possível
trabalhar, se alimentar, se divertir, ‘namorar’, tudo ao mesmo tempo... É o que vemos, por
exemplo, nas feiras, no comércio ambulante, nas quitandas, nas ruas, no trabalho em casa:
é possível vender as mercadorias ou prestar serviços, brincar com os clientes, paquerar,
‘fazer uma boquinha’, ‘fazer uma fezinha’ (fazer um jogo), em que o espaço e o tempo do
trabalho não necessariamente estão dissociados do lúdico. A ludicidade não é obstáculo ou
prejuízo para o trabalho...

Ilustramos nosso conceito com musseques angolanos. Segundo Quelhas (2008), a palavra
musseque tem origem no kimbundo (mu seke). Em relação à organização espacial, o
musseque é um entrelaçado complexo e orgânico de ruelas, "pracetas" e corredores,
semelhantes a algumas favelas brasileiras.

Tomamos um exemplo de um musseque de Luanda, onde estivemos e presenciamos cenas


muito semelhantes às do bairro do Engenho Velho da Federação. Nos referimos ao
musseque de Chicala, uma ocupação na região central de Luanda.

Notemos que na Figura 75 existe um ‘largo’, com característica de espaço coletivo,


reservado e ambientado pelos moradores, onde observamos que este mesmo espaço
funciona como circulação, como ponto de encontro, como sala de estar, como local de
trabalho, como é o caso da costureira ou da senhora que prepara e vende o churrasquinho...
Uns passam e se cumprimentam, outros sentam e conversam, outras já estão ali olhando as
crianças brincarem, outros riem e se divertem.

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Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 75 - Musseque de Chicala - Luanda (Ano: 2011)


Fonte: Foto da Autora

O que vimos e vivemos neste musseque, este compartilhamento do espaço, os


comportamentos de intimidade, a camaradagem e a cortesia com as pessoas conhecidas e
desconhecidas, como eu, indicam que aqui, no Engenho Velho da Federação, e lá, no
musseque em Luanda, são mantidas as relações de vizinhança, quase que de parentesco,
de amizade, respeito e solidariedade, revelando aspectos de senhoridade e ancestralidade.

Estas relações de afinidade entre a vizinhança são derivadas das relações familiares, nos
induzindo ao conceito que denominamos de Assentamentos Familiares, que se refere ao
sentido de que a agregação sócio-espacial é definida pela existência de ancestrais comuns
a todos os membros da família, refletindo na proximidade entre as casas de familiares,
sejam estes consanguíneos ou pela instituição da família extensa. Novamente a
convivibilidade está no seio desta forma de manter próximas as relações familiares: os filhos
crescem e geram suas próprias famílias; os filhos constroem casas para os pais idosos ou
outros parentes e agregados, com diferentes tipos de arranjos familiares, não
necessariamente seguindo a tipologia da família nuclear.

211
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Nesta lógica cultural, notamos que predomina outro entendimento da terra, do fundiário, da
propriedade da terra. Não há rígida limitação do que é meu ou do que é seu. O território é
entendido como irradiação de força e a força deve ser aumentada, logo quanto mais seres -
força, melhor: se você precisa morar, pode vir, vai somar. É a lógica da expansão da vida. É
naturalmente um interesse da comunidade, do coletivo.

Podemos identificar os assentamentos familiares, por exemplo, nos quilombos que, na


maioria das vezes, estão localizados em áreas rurais, que apresentam diferente relação entre
áreas vazias e áreas edificadas das áreas urbanas, e que também se utilizam desta
estratégia de proximidade entre os familiares através das habitações. Portanto, a distância
física é dada em função da concentração ou espraiamento das habitações, em função das
dimensões das áreas ocupadas uma vez que podemos pensar nos assentamentos familiares.

Vimos que o Engenho Velho da Federação é permeado por caminhos. Esta rede de
caminhos, assim constituída pela convivibilidade, que por sua vez é possibilitada pela
ancestralidade, é o que nós chamamos de Caminhalidade.

Esta caminhalidade, além de compor o a rede de vias e caminhos, no fluxo de pessoas e


objetos pelo interior do bairro, é também um espaço onde se cultivam as relações da
convivibilidade, através dos encontros e das referências familiares. Na verdade, parte da
origem desta rede de caminhos foi criada através destas relações sociais, e não através de
um desenho planejado, do ‘concebido’, mas resultado do ‘vivido’, do apreço conquistado entre
os vizinhos, numa demonstração da convivibilidade.

No sentido da expansão da vida, os quintais, cercados com cercas vivas, serviam de


passagem consentida, autorizada, entre vizinhos. Estas passagens constituídas em áreas de
terrenos particulares serviam de desvios e atalhos que foram se perpetuando ao longo do
tempo, se consolidando nos caminhos que configuram o mapeamento do sistema viário que
existe hoje no bairro.

Muitos dos caminhos entre os quintais constituíam as passagens, que se encontraram em


largos, se perpetuando mantendo uma ética, derivada da convivibilidade. Visto a maneira
como foram conformados, acumularam além da função de circulação, a função de espaço de
sociabilização entre os moradores. Os próprios caminhos serviram, posteriormente, de
referência para a divisão dos terrenos, pois foram se consolidando ao longo do tempo.

A partir destas referências e da formulação destes conceitos, vimos que grupos sociais
negros, diante de certa autonomia criativa na construção coletiva do bairro negro, norteada
pelas formas de conduta e de comportamento pautadas pelas culturas negras puderam
exercer uma produção de conhecimento, sobretudo face às suas visões de mundo que
enunciam formas compartilhadas de entendimento.

212
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

CAP. 5 - O BAIRRO DO ENGENHO VELHO DA FEDERAÇÃO COMO EXTENSÃO DO TERREIRO

Sinalizamos anteriormente que os bairros negros são diversos, podendo ser originados por
distintos alicerces culturais negros.

Tomamos aqui o bairro negro do Engenho Velho da Federação como extensão do terreiro,
que através desta especificidade pela concentração de terreiros, tornou-se uma antiga e
importante confluência de população negra na cidade de Salvador. Este lugar apresenta um
diferencial pela consolidação do bairro a partir de uma instituição cultural importante para os
grupos sociais negros, os terreiros de religião de matriz africana, nas suas variadas
vertentes.

Deste modo, temos o Engenho Velho da Federação, bairro negro como extensão do terreiro,
fundamentando a pesquisa, tendo aqui os conceitos operacionalizados.

5.1 - O Bairro Negro do Engenho Velho da Federação

Pontuamos no subitem 2.2.2, que existe um consenso da pobreza na paisagem urbana do


bairro do Engenho Velho da Federação. No entanto, se observarmos a paisagem do bairro
com olhares mais atentos, não veremos apenas o aspecto das construções inacabadas ou
do lixo não recolhido, por exemplo. Segundo a estética capitalista, consumista e industrial,
signos e símbolos peculiares desaparecem em meio às construções.

Uma série de referências culturais, signos e símbolos são reconhecíveis por quem os
conhecem: moradores ou outros visitantes íntimos daquelas culturas impregnadas no bairro.
Estes signos, símbolos, sinais diacríticos, talvez sejam muito mais significativos para esta
população do que a aparência de suas casas.

Em se tratando de uma pesquisa que lê o bairro negro através dos terreiros, são suas
referências que serão sinalizadas para seu entendimento, sendo o Engenho Velho da
Federação permeado por uma cultura negra advinda dos referenciais irradiados pelo terreiro.

Neste item ressaltamos as nossas percepções do bairro do Engenho Velho da Federação


como bairro negro, somadas às percepções dadas pelas conversas e entrevistas. Como
metodologia já usual em nossos estudos (RAMOS, 2007) e já citada anteriormente,
utilizamos caminhadas aleatórias pelo bairro, observando e registrando ‘aquilo’ que
impressionou a nossa percepção como interessante na expressão deste trabalho. O ‘aquilo’
pode ser qualquer ‘coisa’: um objeto, uma construção, uma paisagem, uma pessoa, uma
cena, um som, um cheiro... ‘Aquilo’ que nos ajuda a compreender o bairro, não apenas pelo
traçado das ruas ou características das edificações.

213
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

A ideia é semelhante à proposta do urbanista errante (JACQUES, 2006), que busca


experimentar a cidade de dentro e não somente pela observação de cima, através das
representações de mapas e planos.

O intuito é apreender e compreender o bairro pela experiência da prática urbana relacionada


com o cotidiano das pessoas do bairro; não só pelas nossas experimentações, enquanto
pesquisadora, mas principalmente pelas experimentações dos seus moradores, face aos
movimentos, sons, cheiros e estímulos resultantes da interação das ações e reações entre
as pessoas e o espaço urbano nas suas ambiências perceptíveis através da dimensão
tridimensional e também sensorial.

Assim, nestes percursos descobrimos partes do bairro e exploramos, aqui, sua toponímia. É
importante ressaltar aqui que muitos dos caminhos, ruas, avenidas e travessas têm seus
nomes relacionados à vivência de seus moradores. Os caminhos permeiam o bairro,
constituindo grande parte do sistema viário, sendo lidos com facilidade pelas peculiaridades
que consolidaram esta rede de caminhos, utilizada pelos moradores do Engenho Velho da
Federação e dificilmente reconhecida por um visitante estranho ao Iocal.

Essa rede de acessos, criada à maneira dos moradores à época da construção de suas
moradias, definiu as quadras e os largos do bairro na atualidade, como informa Seu Orlando
explicando como surgiu a Avenida Parente:

Quando começou o bairro, os próprios moradores fizeram o arruamento. As


ruas aqui foram feitas pelos moradores. “Eu moro na Avenida Parente. Quem
fez a Avenida Parente? Meus parentes!” E outras pessoas lá, que cavaram
com picareta, com enxada, pã pã, e abriram a rua. Derrubou mangueira,
derrubou jaqueira, tirou... E fez a rua! Aqui era uma fazenda. Então tinha
muitas árvores. Foi tudo desbravado pelos próprios moradores.

As distintas localidades existentes no bairro são conhecidas pelo Alto do Bogum (ou Largo
do Bogum), Largo do Engenho Velho, Baixa da Égua, Fonte do Forno, Largo da Torre, Beco
da Rabada, Pedra da Marca, Avenida Parente, Beco Júlio das Neves (atual Avenida
Fonseca), Ladeira do Scorpio, Madruga, Lajinha, Rua São Romão, entre outras, cujas
indicações estão assinaladas em 03 Figuras: Figura 32, Figura 33 e Figura 34, apresentadas
anteriormente.

A localidade Pedra da Marca, embora não esteja inscrita geográfica, social ou


urbanisticamente nos limites do Engenho Velho da Federação, faz parte do imaginário
coletivo do bairro. Esta nomenclatura se refere a uma grande pedra de granito que foi
posicionada para limitar uma divisa entre terras, atuando como um marco topográfico. Ao
seguir para o Rio Vermelho pela cumeada, esta ‘pedra da marca’ era uma referência.

214
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

O Largo do Engenho Velho, também chamado de Primeiro Largo em referência à Av.


Cardeal da Silva e ao trajeto dos ônibus, vindos desta Avenida, é a segunda centralidade
mais antiga do bairro, depois do Alto do Bogum. Neste largo (e também no Largo do Bogum)
estão concentrados quitandas, mercadinhos, barzinhos, farmácias, pequenos comércios e
prestadores de serviço, tornando estas áreas bem movimentadas, tanto durante o dia,
quanto à noite, e também nos fins-de-semana. Segundo Dona Lindaura, que também
mantem um pequeno comércio, o largo se constituiu por conta de um grande pé de sapoti
que existia no lugar e, a partir dele, se formou a bifurcação da Rua do Engenho Velho (Rua
Apolinário de Santana) com a Rua São Sebastião, que desce e saía numa das fontes da
Baixa da Égua.

A Baixa da Égua tem esta denominação devido à área de várzea que existia, contendo um
braço de rio, onde os produtores das hortas e os aguadeiros abasteciam seus animais
(mulas, cavalos e éguas) para venderem água nas proximidades, concentrando nesta
baixada um grande número de animais e muitas cocheiras.

O Beco Júlio das Neves também é uma denominação antiga. O casal Seu Manoel e Dona
Adalgisa contaram detalhes de moradores antigos, como Seu Júlio, que morava na esquina
com a Vasco da Gama e vendia carvão. A atual Avenida Fonseca, antes, era chamada de
Beco Júlio das Neves, nome do carvoeiro.

O Largo da Torre, situado entre a Casa Branca e o Terreiro do Bogum, se refere à


localização da instalação da torre da linha de transmissão, na década de 1970, cuja área
non aedificandi é o prolongamento da Rua Alafin, transformando-se na Rua São João,
fazendo ligação viária de pedestres na Ladeira do Bogum (Rua Manoel Bonfim). Supomos
que a localização da torre se deu pelo fato de ser uma área aberta: o largo já aparece na
fotografia aérea de 1959 (Figuras 55 e 56).

O Beco da Rabada é próximo ao Primeiro Largo da Rua Apolinário de Santana. Conta Dona
Maria Angélica que no Beco da Rabada tinha muita confusão, sempre foi muito [mal] falado:
“Tinha muita jogatina, jogo...”.

A Ladeira do Scorpio é uma denominação relativamente recente, das décadas de 1980 e 1990,
à Rua São Sebastião, tornando-se assim também conhecida por conta do Samba Scorpio,
grupo de samba que ficou bastante conhecido, revelando o cantor Tatau, vocalista do Araketu.

A Rua Alafin é um nome que os moradores, a quem perguntamos, desconhecem a origem,


mas o nome é relativo aos reis na região da Nigéria.

Além dos nomes dados pelos moradores a partir das suas vivências no bairro, vimos que
também terreiros ou pessoas vinculadas aos terreiros também nomeiam partes do bairro,
215
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

como no exemplo da antiga Rua Pau Zerrém (atual Rua Xisto Bahia), mencionadas por Seu
Valter Neves, Dona Jane e Dona Joana; da Rua Elizabete, nome da fundadora do Terreiro
Tanuri Junçara; da Rua São Romão, cujo nome é referência ao Seu Romão, que foi ogã do
Terreiro do Bogum, segundo Seu Valter Neves; ou ainda da Villa Flaviana, ladeada pelo
Terreiro do Cobre, cuja área do entorno deste terreiro se desdobrou em moradias, ficando a
localidade chamada de Villa Flaviana, em referência ao nome da fundadora do terreiro que
hoje é liderado pela bisneta, Mãe Val.

O Alto do Bogum, ou Largo do Bogum, se refere à localidade do Terreiro do Bogum e é a


mais antiga centralidade do bairro, mais próxima da Av. Vasco da Gama e é também chamado
de Final de Linha do Engenho Velho. O Largo do Bogum, onde está localizado o Busto de Mãe
Runhó, sempre foi conhecido deste modo, até a regularização das ruas para a passagem de
ônibus, ficando assim hoje mais corriqueiramente chamado de Final de Linha, como vimos
anteriormente na fala do Seu Orlando.

No entorno do Alto do Bogum existem algumas vias que possuem nomes derivados do
terreiro, como o Largo do Bogum, a Vila Bogum, a Travessa do Bogum e a 2ª Travessa do
Bogum, além da própria Ladeira do Bogum, podendo ser observado na Figura 76, sobre a
área original do Terreiro do Bogum proposta por Rêgo (2006).

216
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

217
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Segundo os moradores, a Ladeira do Bogum era uma trilha interna do Terreiro do Bogum,
um caminho para a fonte d’água e para o Rio Lucaia. Segundo seu Valter Neves: “depois
que passou a rua, cortou o terreiro ao meio”. Serra (2007) afirma que a abertura desta via
pública, cujo nome oficial atualmente é Ladeira Manoel Bonfim, se consumou com o
asfaltamento da ladeira no final da década de 1950, sendo um dos fatores de redução de
área do terreiro, separando entre espaços do terreiro, precipitando a perda de uma
importante parcela do mesmo, sobretudo no que tange às áreas de mata, reduzindo-o a um
quinto da área original.

É nesta Ladeira do Bogum que acontece na madrugada de 1º de Janeiro o cortejo que


compõe o ritual das Águas de Oxalá, cujo deslocamento feito pelos adeptos e simpatizantes
do terreiro do Bogum e do orixá é feito nesta via, entre o terreiro e a fonte, situada na sede
do Educandário Nabuco, junto à av. Vasco da Gama (ver Figura 76). Tonho lamenta como a
abertura da via dividiu as áreas do terreiro do Jêje:

O Bogum faz as Águas de Oxalá na fonte da Escola Nabuco. Já pensou


aquelas pessoas de branco, concentradas com suas quartinhas na cabeça,
com o carro subindo e descendo a ladeira? Pode perder o axé! E se um
carro louco atropela o orixá? O orixá era acostumado a descer a ladeira no
meio do mato, no silêncio...

E Seu Valter explica a continuidade de utilização desta fonte pelo Terreiro do Bogum:

Dona São Pedro era do Bogum. Meu pai cuidou dela, de certa idade até a
morte, e herdou esta área daqui. E aí continua fazer as oferendas de Oxalá
aqui.

Ao que nos parece, o Bogum foi o terreiro que exerceu maior influência na configuração
atual do bairro do Engenho Velho da Federação. O Alto do Bogum, como ficou conhecida
esta localidade que integrava o terreiro, é assim caracterizada por Serra et al (2007):

Como se vê, este estabelecimento religioso motivou a designação do local


onde se situa e uma sua dirigente se tornou epônima de um logradouro nas
suas cercanias. Tais dados já dão testemunho do grande prestígio popular
do dito templo, que constitui uma referência local indiscutível: trata-se de um
verdadeiro marco urbano. Por outro lado, não há a menor dúvida de que a
instalação do Terreiro do Bogum teve um papel decisivo na configuração da
localidade. É, com certeza, um dos mais antigos estabelecimentos da área
e desempenhou um papel significativo na história da sua ocupação, da
formação do bairro.

Ainda em relação à toponímia do bairro, a Fonte do Forno deve seu nome a uma importante
fonte d’água do bairro e dela se derivaram vários caminhos: Travessa Fonte do Forno, 2ª, 3ª
e 4ª Travessas Fonte do Forno e Rua Forno da Mangueira.
218
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Entendemos também que as fontes d’água foram referências sócio-espaciais importantes do


bairro, foram. Havia muitas fontes no bairro e muitas lembranças e histórias em torno delas.

As fontes d’água existentes no bairro, mesmo localizadas em terrenos de proprietários, eram


cedidas, nunca vendidas. Algumas fontes, além de oferecer água, eram também lugares de
brincadeiras para as crianças. Outras não, como a fonte do terreiro de Dona Minacó, como
lembra Dona Maria Angélica:

A fonte de Minacó era a melhor água do Engenho Velho, saía da pedra. Ela
era mãe-de-santo. Mas candomblé tinha aqueles preceitos. Porque era
terreiro, tinha que ser na hora certa, não podia brincar, não podia tirar
folha...

Também havia diferenciação entre as fontes em relação à finalidade da água: ‘água de


gasto’ e ‘água de beber’, como conta Dona Joana:

Tinha uma que era mais aberta, a fonte do Seu Nascimento, que minha mãe
usava para lavar roupa. [...] Eu também carregava água desta fonte para
encher os tonéis para água de gasto, que era para lavar louça, limpar a
casa, o chão, essas coisas... Tinha também a água de beber, que a gente
pegava na fonte do Seu Catarino, que era tinha um tampão, tudo
cimentadinho em volta, tinha cadeado, era bem cuidada.

Eram muitas fontes: Seu Nelito lembra das fontes “de Zé Boiadeiro, pai de santo, na Fonte
do Forno, de Dinorá, da fonte de Príncipe Negro, de Carrinho, de Dona Glória, fonte de
Dona Mineira...”; Dona Emerita informa sobre outras: “Dona Baíta e Dona Joana, no Vale da
Muriçoca”; Dona Albertina lembra de muitas fontes: “de Dona Emília, filha de Dona Bela, o
minador de Dona Juanita”; Seu Edson buscava água na fonte do Seu Lídio.

Muitas fontes destas fontes d’água desapareceram, outras foram soterradas, mas muitas
ainda existem, mantidas por particulares e, mais cuidadosamente, por terreiros de
candomblé, pelo uso litúrgico. Atualmente algumas fontes ainda são utilizadas pelos
moradores devido às frequentes falhas no abastecimento de água tratada.

Os moradores do bairro diante da carência de infraestrutura sempre se organizaram


associativamente, compondo as redes de relações associativistas apontadas por Serpa (2007a).
O Engenho Velho da Federação constituiu suas associações, ora como parte dos processos
políticos, de reivindicação de moradores dos bairros, ora cumprindo a dinâmica cultural negra.

Dentre as associações de moradores, identificamos entidades muito antigas: a


Associação de Moradores do Engenho Velho da Federação, fundada em 1955 cuja sede
está localizada na Av. Apolinário de Santana, que também sedia o JUSPOPULI -
Escritório Popular de Mediação de Conflitos e Orientação sobre Direitos; a Associação

219
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Cultural em Defesa dos Moradores da Ladeira João de Deus, criada em 1958 e localizada
na Ladeira Cel. João de Deus e nas proximidades do Largo do Bogum; e a Associação de
Moradores do Vale da Muriçoca, sendo esta com menor articulação com o bairro.

Dentre as associações de mulheres, encontramos a AMEF - Associação de Mulheres da


Federação, cuja sede é na Associação Cultural em Defesa dos Moradores da Ladeira João
de Deus, que entre os trabalhos de qualificação profissional para os serviços de corte e
costura, artesanato, produção de alimentos e inclusão digital (esta associação de mulheres
de âmbito maior articula-se com o Fórum de Combate à Violência); a outra é a AMEVF
Associação de Mulheres do Engenho Velho da Federação, localizada na Rua das
Palmeiras, mais direcionada para as moradoras do bairro, e está vinculada a projetos de
corte e costura, estética afro e cursos profissionalizantes na área da construção civil, como
pintura predial e instalações elétricas.

Mas ainda existem outras associações de caráter mais cultural, marcadamente relacionadas
às culturas negras como as práticas de percussão, capoeira, dança afro, entre outras. Assim
exemplificamos o Centro Cultural e Recreativo Bombocado, com cursos de percussão e
formação musical, e como diz a fundadora Rita Pinheiro, “É com partitura e tudo!”, além de
cursos de artesanato, estética afro, corte e costura.

Para a prática da capoeira, são muitas as associações voltadas para esta atividade:
Associação Quilombo e Capoeira, Grupo Cultural de Capoeira Zumbahia, Grupo de
Capoeira Jovem de Angola, Grupo Ginga e Malícia, Associação de Capoeira Moenda, entre
outras. Entre os grupos de dança destacamos o Swing Dance, o Grupo Cultural de Dança
Eclipse e a Cia. Savana Dança de Raiz.

Estas associações fazem parte de um processo de conscientização étnica, cultural e política.

E também são agentes importantes na reação à violência que surgiu no bairro. Também o
bairro do Engenho Velho da Federação é vítima da violência característica do que se tornou
a vida urbana das grandes cidades.

O adensamento do bairro em torno da década de 1980 trouxe novas relações de


convivência entre moradores. Dona Maria Angélica nos situa informando que o bairro deixou
de ser residência de moradores antigos e passou a abrigar também moradores novos,
através de aluguéis. Ela informa que as relações de vizinhança com estes novos moradores
é diferente, pautada pela indiferença e individualismo.

Diante de nossas pesquisas, acreditamos que a instalação de boa parte da violência no bairro
nestes últimos anos se dá por conta dos aluguéis para pessoas estranhas ao bairro. Completando
a fala de Dona Maria Angélica, temos na matéria on line, a respeito da morte de traficantes:
220
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

De acordo com a polícia, há três dias os dois tinham alugado uma casa no
bairro, com o objetivo de montar um ponto de venda de drogas (Aratu on
line, 27.10.2010).

Milton Moura, professor da FFCH da UFBA, informa na discreta matéria Lugar que já foi
aprazível sofre sem políticas públicas, publicada no Jornal Tribuna da Bahia, que a
ocupação da Baixa da Égua se intensificou na década de 1960, sendo que a criminalidade
se instalou na década de 1960 (MOURA, 2008). Esta matéria situa-se abaixo da manchete
principal, Baixa da Égua sofre com luta pelo tráfico, estampada com letras garrafais.

Estas representações negativas apontadas pelos jornais e programas televisivos


sensacionalistas servem para moldar a opinião pública, criando-se novos mitos (e recriando
realidades, segundo Lefebvre) sobre o bairro, como lugar de marginalidade, de
desorganização social, reduto de violência, justificando a ausência de políticas públicas nos
bairros pobres e negros.

O tráfico de drogas se instalou no bairro na década de 1980, situando-se em partes do


bairro mais reservadas, de difícil acesso para quem não conhece o bairro, ficando mais
‘protegido’ ao ataque da polícia. A ação dos traficantes nestas áreas, chamadas pelos
moradores de ‘boca quente’, alterou o comportamento dos moradores locais. A violência,
que já foi mais intensa no bairro que nos dias atuais, ocorre em vários graus, como o
constrangimento da vizinhança pela ação dos ‘olheiros’, as restrições dos horários no
trânsito de pessoas estranhas ao bairro, embora exista a permeabilidade de não-moradores
para transitar nestas áreas; jovens moradores se tornando usuários de drogas; o aliciamento
de jovens para se tornarem ‘soldados’ do tráfico; o receio das balas perdidas que resultavam
da disputa dos pontos de venda entre quadrilhas e a troca de tiros entre estas e a polícia,
além da maior circulação no bairro de armas de fogo e dos roubos e assaltos praticados por
dependentes de drogas.

No entanto, sem querer mascarar a ação extremamente violenta do tráfico de drogas que
vitima a cidade de Salvador como um todo, o tráfico no Engenho Velho da Federação não é
o mais intenso da cidade. E consideramos que a vivência comunitária dos moradores
desenvolvida ao longo de gerações e as estratégias de articulação e reação dos moradores
e associações do bairro são, em grande parte, responsáveis pela onde de apaziguamento
que o bairro revive atualmente66.

Esta violência visível nos bairros mais pobres, mais vulneráveis, não é exclusividade do
Engenho Velho da Federação. Lembrando que a violência do narcotráfico é parte do crime

66
Percorrendo os caminhos do bairro, transitamos pelas partes tidas como perigosas, as ‘bocas quentes’, sem
sofrer abordagens ou constrangimentos.
221
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

organizado internacional, cujos traficantes são a ponta do iceberg estando mais expostos e
vulnerários que os agentes financiadores do tráfico, este bairro, como tantos outros, mais do
que gerador de violência, é vítima da violência urbana, estando vulnerável à impotência da
educação, da segurança pública, do sistema jurídico-penal da realidade brasileira.

Este bairro com perfil de moradores com baixa renda, mais do que consumidor de drogas, é
distribuidor de drogas. A proximidade de faculdades particulares ao bairro é fator de
introdução e permanência do tráfico, acarretando aumento de usuários de drogas com alto
poder aquisitivo circulando pelo bairro.

Em uma de suas falas, Makota Valdina diz:

O bairro era uma tranquilidade. Com o tempo, o bairro viu um passa-passa


de moto correndo, que descia e subia, que tirava, pouco a pouco, nosso
sossego: eram estudantes da UCSal que desciam o bairro para comprar
67
droga lá embaixo .

Como informam dados do Fórum Comunitário de Combate à Violência - FCCV, o número de


homicídios acumulado no bairro entre 1998 a 2004, um período de 07 anos, foi de 75 casos;
já para o período de 2008 a 2012, período de 05 anos, é de 106 mortes por homicídio,
segundo fontes da SMS/SUIS-SINANNET (Secretaria Municipal de Saúde / Subcoordenação
de Informações em Saúde - Sistema de Informação de Agravos de Notificação).

A violência, em seus períodos mais intensos, interferiu diretamente na espacialidade do


bairro e na sociabilidade entre os moradores, sobretudo porque esta se dá amplamente no
espaço coletivo das ruas, largos e caminhos. Deste modo, as casas e quintais passaram por
adaptações para promover maior segurança, nas quais foram instaladas grades nas janelas
e varandas e muros altos; alguns dos caminhos foram interrompidos, fechados com portões,
limitando o acesso àqueles moradores residentes; a convivência nas ruas passou por
restrições, tanto nas relações entre as pessoas, sobretudo as desconhecidas, quanto em
relação aos horários, evitando-se circular pelo bairro nas altas horas da noite ou mesmo
permanecer nas calçadas e largos, em conversas com os vizinhos, tão habituais no bairro.

A explosão de um módulo policial que ocorreu no mesmo contexto dos ataques e explosões a
vários módulos policiais e ônibus em vários bairros da cidade de Salvador, em 2009, também
gerou pavor entre os moradores. Os moradores sentem-se assustados com tais eventos
violentos e estranham como num bairro tão tranquilo podem acontecer tantos crimes. E até os
dias atuais, pela ausência do poder público, o módulo policial ainda não foi reativado.

67
Informação oral na Palestra de apresentação da ‘Premiação Melhores Práticas’, projeto da CEF, em Maio de
2009.
222
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Os moradores, desacostumados e assustados com tal ambiência no bairro, reagiram ao


aumento da violência. Seu Valter conta que moradores realizaram protestos para chamar
atenção do poder público. Ele conta sobre uma passeata, que saiu do Cemitério Campo
Santo indo até ao Engenho Velho da Federação. Os moradores manifestantes atearam
fogo em caixotes e atrapalharam o trânsito na Avenida Cardeal da Silva, pedindo justiça e
paz. As lideranças comunitárias do bairro reivindicaram segurança e políticas públicas.

Para estas e outras ações contra a violência, através da força comunitária do bairro,
moradores do bairro juntamente com outras organizações participaram do Fórum
Comunitário de Combate à Violência, que estando no âmbito do Projeto AMPLA PAZ
envolvendo também os bairros do Nordeste de Amaralina e Alto das Pombas, resultou numa
publicação reunindo nomes de diversas associações (ong’s, entidades particulares e
governamentais, escolas, grupos sociais e culturais, etc.), com o intuito de articular redes de
solidariedade, buscando o fortalecimento e desenvolvimento político de moradores
(RODRIGUES, 2005-2006).

Esta força comunitária, no qual os terreiros possuem um papel fundamental nesta


construção, é também parte da resistência dos moradores do bairro contra à instalação de
mais traficantes ou pelo maior empoderamento dos mesmos68.

Felizmente, nos dias atuais, com um período de tranquilidade no bairro dado pelo acordo
entre os traficantes, a tradição da convivência nas ruas do bairro permanece.

Ressaltamos que os eventos de violência que assustam os moradores, sobretudo a partir


dos anos 2000, não constituem uma característica do bairro do Engenho Velho da
Federação, contra décadas de convívio pacífico. O bairro não é reconhecido pelos seus
moradores como bairro violento e, sim, pelas vivências e experiências cotidianas marcadas
pela cordialidade, solidariedade e companheirismo entre dos moradores, tendo as
referências dos terreiros do candomblé pautando a forma negra de ser.

Este jeito negro de ser vem aos poucos, ao logo de gerações, se transformando, no âmbito
das relações étnicas, de uma consciência de que os moradores são descendentes de
africanos que foram escravizados, relacionados ao estigma da escravidão, para uma
consciência negra de resistência política e de valorização cultural.

68
Os terreiros são, portanto, uma ameaça ao tráfico, sendo, pelos traficantes, também alvo de ataques. Nesta
afinidade comum, foram identificados acordos entre igrejas neopentecostais e o tráfico de drogas para ataque
aos terreiros. As formas de ataque são das mais violentas como de um caso, que soubemos de forma reservada,
de aliciamento de um dependente de drogas, adepto de um terreiro do bairro, para que, depois do pagamento de
sua dívida com os traficantes, fosse convertido para estas religiões. Nossa fonte não cita nomes e não informa
qual é o terreiro.
223
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

O sentido de pertencimento étnico sempre permeou a vida dos moradores do Engenho Velho da
Federação e também aparece explicitamente nas falas, como exemplifica Seu Edílzio, num
relato da vida cotidiana, no período de sua infância:

A pobreza era grande. A gente comia melhor quando minha mãe vinha da
casa de família de branco: a branca liberava uma lata de leite ninho com
arroz, feijão, carne...

Percebemos nas falas de alguns moradores, sobretudo os mais antigos, vítimas mais
vulneráveis de práticas racistas, a cor da pele negra como como um defeito, internalizado como
se fosse uma falha. Dona Joana abriu a Escola Amélio Cruz, uma das mais conceituadas do
bairro, porque, depois de formada, não conseguiu o emprego prometido por uma das famílias
que eram clientes de sua mãe. Ela nos contou:

Esta cor me prejudicou! Desde muito novinha, quando ajudava minha mãe
levar as trouxas de roupas, o marido da freguesa sempre me cobrava a
tabuada. Eu ficava com medo, mas sempre acertava! Então ele disse que
quando eu me formasse, ia arranjar um emprego para mim. Os anos
passaram. Me formei e ele me mandou ir até o escritório. Quando eu fui no
escritório, sem carta de recomendação, sem nada, passavam as loiras, as
morenas e até as sararás passavam na minha frente para fazer a entrevista.
Quando era a minha vez, encerrava... O pessoal me mandava voltar quinze
dias depois. Fui lá três vezes, até que caiu a ficha...! Foi aí que eu decidi
abrir a escola. Começou nesta sala...

Felizmente as novas gerações tendem a ser orgulhar de seu pertencimento étnico e de sua
negritude, multiplicando a estética negra, graças também à atuação destas associações e aos
grupos culturais do bairro, comprometidos com a consciência negra, precedidos também pela
atuação dos terreiros.

Além das associações culturais, ainda existem muitos grupos musicais como o Grupo
Kissukilas, já mencionado, o Quatro do Samba (com Seu Valdir da Cuíca), o Grupo Tambores
do Engenho, Seu Germano e, ainda, o Bloco Carnavalesco Afro Bogum e a Associação
Carnavalesca Bloco Proibido Proibir, etc.

Seu Valdir da Cuíca, que juntamente Makota Valdina e Seu Nelito são reconhecidos Mestres
Populares da Cultura pela Fundação Gregório de Matos, conta que o bairro do Engenho
Velho da Federação possui muitos músicos e grupos musicais por causa dos terreiros:

Muita gente aprendeu no terreiro: Luizinho do Jêje, do Bogum, Queinho, do


Tanuri Junçara, Toninho...

O aprendizado nos terreiros começa na infância, quando os meninos naturalmente, por


observação e prática, começam a tocar, afinar ou mesmo fabricar um atabaque. E mais tarde, ao
serem iniciados, iniciam o aprendizado dos significados e as energias emanadas de cada toque.

224
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Esta sonoridade advinda da formação musical proporcionada pelos terreiros, que é tão
característica do Engenho Velho da Federação, é parte também do que apontamos da
cultura negra como cultura hegemônica no bairro, em evidência na vivência cotidiana do
bairro negro, gerando ambiências negras, como as ambiências que nos despertam os
sentidos, tal como evidenciado por Thibaud (2004).

Não só a musicalidade é presente, mas também os odores atravessam a atmosfera do


bairro, como um cheiro de incenso, de um pé de arruda ou da fritura do acarajé; os
movimentos do corpo: um movimento de capoeira ou um passo de samba; geram
ambiências muito próprias de um bairro negro.

Boa parte destas ambiências advém dos desdobramentos das práticas do terreiro
espalhadas pelo bairro: uma oferenda, um despacho, um cântico, um estalar de fogos de
artifício. É gostoso passar pelo bairro e sentir um perfume de incenso de folhas de terreiro. É
bonito, por exemplo, ver as roupas brancas bordadas dos filhos e filhas-de-santo
penduradas no varal das casas vizinhas aos terreiros.

Em dias de festa no terreiro, há uma movimentação diferente, uma alteração ao redor com a
circulação de pessoas não-moradoras do bairro e de diferentes poder aquisitivo, maior
trânsito de carros nas ruas, pessoas vestidas com roupas brancas. Há também os
moradores do bairro, mesmo não adeptos da religião do candomblé, que usufruem da
presença do terreiro, frequentando as festas públicas, tidas como um evento social na
localidade, e partilhando da amizade dos adeptos e das comidas, bebidas, música e dança.

Os terreiros são o bairro! Apesar de existirem referências de outras religiões no bairro, já


apontadas, os terreiros são a referência do lugar. Mesmo para os moradores não ligados à
religião do candomblé, são envolvidos pela atmosfera do universo dos terreiros. Se
perguntarmos onde existe um terreiro, os moradores sempre vão apontar onde é um ou outro
candomblé.

No linguajar da comunidade do Engenho Velho da Federação, as pessoas se referem ao


terreiro por candomblé. Como Dona Maria Angélica diz:

Aqui era chamado de ‘aldeia dos candomblés’. Aqui era cercado de


candomblé. O que mais tinha aqui no Engenho Velho era candomblé... Para
onde você ia, candomblé. Virava para cá, candomblé. Virava para lá,
candomblé...!

Vemos nesta fala, que o candomblé também é o espaço onde é praticado: além da religião,
tornou-se o próprio templo e o território circundante.

225
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Assim, no caso do Engenho Velho da Federação, os ‘simbolismos territoriais’ dos terreiros


(Dias, 2003), a bandeira branca, as quartinhas, o ojá e o mariô, estão presentes por toda
parte, como aparece na Figura 77.

Figura 77 - Mariô disposto nas janelas do Terreiro Omin Onadô no Engenho Velho da Federação (Ano 2012)
Fonte: Foto da Autora

E ainda os símbolos culturais, referência nos próprios terreiros, como as insígnias de orixás
nas fachadas e muros, como mostra a Figura 78, ou enfeites e ornamentações até mesmo
nas entradas de ruas, como ocorre na Rua São Romão, caraterizada com adornos do
Terreiro do Awá Negy, que podemos observar na Figura 79.

226
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 79 - Bandeira branca e insígnias de Xangô Figura 78 - Entrada da Rua São Romão junto
no Terreiro do Cobre (Ano 2012) ao Terreiro Awá Negy (Ano 2012)
Fonte: Foto da Autora Fonte: Foto da Autora

Moradores antigos recordam da época que os terreiros eram totalmente integrados ao bairro, quer
dizer, o bairro era a extensão do terreiro: não havia cercas, muros ou elementos limitadores de
acesso às áreas dos terreiros: o limite entre o público/privado e o sagrado/profano era simbólico.
As crianças entravam no ‘quintal’ do terreiro e pediam aos integrantes das comunidades frutas das
árvores. Mas, às vezes, as frutas eram roubadas mesmo, como recorda Rita Pinheiro nos seus
tempos de infância: “A gente ia lá, dava uma roubadinha e saía correndo...”

Esta integração dos terreiros com o bairro se dava também entre terreiros, como no caso
dos Terreiros do Bogum, Casa Branca e o Patiti Obá, havendo uma permeabilidade entre
estes terreiros vizinhos. Entre estes, os limites de arrendamento eram contíguos, havendo
intenso intercâmbio entre os terreiros e integração religiosa, apesar de serem de diferentes
nações, que se materializava por caminhos que uniam os domínios espaciais dos terreiros,
tal qual pode ser visto na Figura 52, em delimitação elaborada por Dias (2003).

Como vimos anteriormente, em função das perdas de área dos terreiros por conta da
ocupação de moradias ao longo dos anos (DIAS, 2003; REGO, 2006), estes caminhos

227
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

existem atualmente, mas perderam sua configuração original, não sendo mais possível
acessar um terreiro pelo outro.

Atualmente os acessos secundários à Casa Branca se fazem por um caminho entre a Rua
Manoel Bonfim e a Av. Vasco da Gama e que hoje é uma escadaria chamada Avenida
Fonseca, como pode ser visto na Figura 80, bem como por um acesso pela Ladeira Manoel
Bonfim, fazendo divisa com o Terreiro Patiti Obá, como pode ser visto na Figura 81.

Figura 80 - Portão do acesso secundário ao Figura 81 - Acesso secundário ao Terreiro da


Terreiro da Casa Branca (Ano: 2012) Casa Branca pela Ladeira Manoel Bonfim (Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora Fonte: Foto da Autora

A permeabilidade entre os terreiros e o bairro, ou o bairro como extensão do terreiro, ou a


vida do terreiro que se mistura à vida do bairro, faz parte das experiências das pessoas, dos
moradores. Estas experiências pessoais e sua acumulação também constituem a cidade.
Retomando Rossi, em relação ao fato urbano e como os seres humanos se orientam na
cidade, temos aqui uma ilustração de Tonho em relação ao Terreiro do Cobre, quando era
criança e ainda não familiarizado com o candomblé:

Eu estudava na Henriqueta, e quando eu passava lá, eu via aquele casarão


comprido, longo, largo, era diferente, me chamava atenção. Tinha assim,
escrito em mármore: Villa Flaviana. Era villa com dois ‘éles’. Já era o
candomblé. Eu via que tinha fonte lá embaixo, na Muriçoca, que fazia parte
de lá.

228
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Paralelamente à curiosidade, à empatia, à identificação, há também recusas ou temores pelos


símbolos do candomblé e suas demarcações nos espaços visuais, sonoros e imaginários,
geradas na atmosfera do bairro, em relação às lendas e histórias dos terreiros.

Esta vivência das crianças e seu imaginário com as histórias dos terreiros fazem parte
também do universo particular do bairro negro. Retomando a Figura 59 (p. 151), vemos
entre as crianças, uma menina ‘brincando de terreiro’, filha da Dona Albertina e seu Ioiô, em
que ela era a mãe-de-santo, utilizando torso e colares, o que denota uma intimidade com o
universo dos terreiros.

Como parte destas vivências e ambiências particulares do bairro, Dona Joana também
conta sobre uma lembrança que marcou sua infância:

Tinha as iaôs, que ficavam recolhidas lá dentro, andavam pelos matos...


Num certo período elas saíam pelas ruas, vestidas de branco, cantando as
músicas do terreiro. A gente que era criança e não conhecia, saía todo
mundo correndo e gritando, n’é? Lá vem as iaôs...

Dona Maria Angélica, quando criança, frequentava o terreiro de Dona Minacó, vizinho à sua
casa. Apesar da família ser proibida de frequentar terreiros pelo pai de Dona Maria Angélica,
ela conta:

Papai aqui era implicado com o candomblé. Tanto assim que eu nunca pude
assistir. Ele implicava com as roupas: aquelas saias compridas, os pés
descalços, aqueles turbantes na cabeça. Ele falava com a gente: é isso que
vocês querem para vocês? Para eu assistir candomblé aqui, fui escondida.
Uma vez, eu e minha irmã, já falecida, saímos descalças, de pontinha de
pé, saímos de madrugada só para ver a saída de uma iaô de Dona Minacó
e saber o nome do santo. E todo mundo dormindo aqui...

Dona Maria Angélica conta hoje rindo, que comia as comidas de santo escondida do pai:

Ah, eu era apaixonada por comida de azeite. No período de festa no terreiro


de Minacó, quando era quase meio-dia e tocava o primeiro foguete, eu
pegava uma lata e inventava que ia buscar água só para comer comida de
candomblé. E ela falava: Maria, Maria! Isso aqui é comida de candomblé!
Olha, menina! Seu pai...!

Mas sentia temores do Bogum e da Casa Branca:

Quando eu passava para a Vasco da Gama, tinha aquela casa toda branca
[Casa Branca]. Eu passava, mas nem olhava para o lado... Ave Maria...!
Aqueles enfeites prateados...

Os dendezeiros, como outras árvores sagradas, como os bambuzais, gameleiras brancas e


jaqueiras, bananeiras, cajazeiras ou recursos naturais, como fontes d’água, ou mesmo
229
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

certas oferendas, causavam percepções e sensações físicas ou extrafísicas, corpóreas ou


psicológicas, que alimentavam ou eram alimentadas pelo imaginário coletivo, como
símbolos ou parte de mitos.

É o que Dona Maria Angélica conta, ao lembrar que tinha receio quando passava perto do
Terreiro do Bogum:
Eu tinha um medo desse Bogum... Ali tinha um bocado de dendezeiro,
entendeu?

“O terreiro é onde uma pedra pode não ser somente uma pedra, uma árvore pode não ser
somente uma árvore, mas uma entidade radiante e irradiadora, franqueada à manifestação
do sagrado”, coloca de Risério (2012, p. 161), que, no seu desdobramento nas áreas
exteriores ao terreiro, isto é, no bairro, constitui ambiências singulares em determinadas
partes do Engenho Velho da Federação, configurando lugares do lúdico, lugares
sacralizados, ‘lugares proibidos’.

Dona Justina, mãe pequena do Terreiro Patiti Obá, narra que certas partes do bairro eram
mais carregadas de energia, como alguns caminhos próximos a jaqueiras, bambuzais ou
outras árvores “sacralizadas” por adeptos de terreiro ao fazer seus assentamentos às
entidades sagradas, assustando os desavisados ou descrentes, que levavam sustos,
ouviam sons ou viam vultos e pessoas. Como havia caminhos por dentro da área do terreiro,
sendo um deles bem próximo ao pé de aroeira sacralizado pela casa, Dona Justina conta,
impressionada, sobre as ações do plano invisível: “Quem passasse sem pedir licença levava
era tapa!”

Estas ambiências perceptíveis pelas vivências e experiências ainda são muito recorrentes
na extensão do bairro e compõem as particularidades deste bairro negro dada pela
transmissão de energia por objetos, minerais, plantas, cores e vibrações visuais e
energéticas, expressões sonoras e musicais (toques percussivos, cânticos, etc.).

Mas, para além da delimitação do Engenho Velho da Federação, o terreiro do Bogum, como
outros terreiros, expande o sagrado para além dos limites originais do próprio terreiro,
contexto no qual os elementos naturais desempenham funções sagradas e viabilizam as
práticas rituais. Assim, uma gameleira na Estrada de São Lázaro era cultuada pelo terreiro.

Segundo Serra (2007), com a morte do espécime na década de 1980, a árvore de culto ao
vodum Loko, o plantio de uma nova muda foi executado pela ação da prefeitura de Salvador,
sendo edificada uma espécie de precinto, elevado e gradeado, para sua proteção, como
mostra a Figura 82. A muda foi consagrada por sacerdotes do Bogum, sob a presidência da
sacerdotisa que detinha, então, o mais alto posto no referido terreiro, Mãe Nicinha.

230
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 82 - Árvore da Gameleira e seu ojá, localizada na Estrada de São Lázaro - Federação (Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora

Apontamos, portanto, que a presença do terreiro e da religiosidade do candomblé são uma


constante no bairro. No entanto, o reconhecimento da religião é uma outra questão. Como
vimos anteriormente, os dados de Religião do IBGE não refletem a realidade vivida do
Engenho Velho da Federação. No imaginário social nacional, a religiosidade baiana é
lembrada pelo candomblé. No entanto, temos um contrassenso com estes números tão
pouco expressivos de adeptos das religiões de matriz africana para uma quantidade tão
significativa de terreiros na cidade de Salvador, como um todo, o que demonstra claramente
o receio de manifestar-se e sofrer o preconceito que é deflagrado contra estas religiões. O
próprio IBGE, atualmente representado na Bahia na pessoa de Joilson Rodrigues, alega que
a baixa estatística é resultado do preconceito que historicamente atinge as religiões de
matriz africana.
69
Para o Censo 2010 foi lançada a Campanha Nacional “Quem é de Axé diz que é!” ,
coordenada pelo Coletivo de Entidades Negras (CEN) e pela Superintendência de Direitos

69
Sobre a Campanha Nacional Quem é de Axé diz que é!: http://cenbrasil.blogspot.com.br/2010/03/lancamento-
da-campanha-quem-e-de-axe.html (Acesso em 22/04/2012).
231
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Humanos Coletivos e Difusos (SUPERDIR), órgão do Governo do Estado do Rio de Janeiro,


com o objetivo de ampliar o universo de candomblecistas e umbandistas. No entanto, o
resultado ainda não é representativo.

Este fenômeno que não acontece somente no Engenho Velho da Federação, mas que
também é expressivo em Salvador e no restante do Brasil deve-se ao histórico de
perseguições da igreja católica, do Estado, através da polícia. Ultimamente, as perseguições
se revelam pelo ataque das igrejas evangélicas neopentecostais. Se antes havia, por estes
grupos, uma depreciação e demonização da religião, atualmente pretendem criminalizar a
religião70.

Dado o fato desta perseguição aos adeptos de candomblé, é preocupante o aumento


significativo deste segmento religioso. Segundo os dados do IBGE, em 2000, os evangélicos
representavam 15,4% da população do Brasil. Em 2010, chegaram a 22,2%, um aumento
de cerca de 16 milhões de pessoas (de 26,2 milhões para 42,3 milhões).

Este aumento é resultado da disputa de adeptos mediante a uma nova lógica mercadológica
no campo religioso brasileiro. Já apontamos que as práticas culturais afro-brasileiras são
amplamente diluídas na vida cotidiana de boa parte da população brasileira, muitas vezes
não sendo correlacionadas ao repertório cultural de religiões afro-brasileiras. Segundo Silva
(2007), as igrejas neopentecostais empregam estratégias71 de proselitismo junto às
populações de baixo nível socioeconômico e potencialmente consumidoras dos repertórios
religiosos afro-brasileiros, utilizando, paradoxalmente, as mediações mágicas e a
experiência do transe religioso do aporte religioso afro-brasileiro, sendo uma mais forma de
atrair fiéis íntimos das experiências de religiões que apresentam interferência junto ao plano
metafísico, com a vantagem da legitimidade social conquistada pelo campo religioso cristão.

Em reação a este comportamento destas religiões neopentecostais, as lideranças dos


terreiros se organizaram e promovem a caminhada contra a intolerância religiosa, de caráter
político-religioso, tornando-se uma manifestação pública que vem se tornando uma tradição,
reunindo vários representantes de terreiros do Engenho Velho da Federação, cuja
organização vem sendo liderada pelo Terreiro do Cobre, na pessoa da Mãe Val de Ayrá.

70
A criminalização de algumas religiões afro-brasileiras se dá atualmente por conta do sacrifício de animais,
como se estes sofressem maus tratos, sendo exatamente o contrário: os animais a serem oferecidos às
divindades são consagrados e não podem passar por situações de estresse, tendo, inclusive, um religioso
preparado para tal fim. Além da função religiosa, o sacrifício é também de ordem alimentar. Depois de retirados
os órgãos a serem ofertados, as demais partes são oferecidas como alimento aos frequentadores dos terreiros.
71
Segundo Silva (2007), entre as estratégias de expansão destas igrejas está a valorização do pragmatismo, a
ênfase na teologia da prosperidade, a utilização de gestão empresarial na condução dos templos, da mídia para
o trabalho de proselitismo em massa e de propaganda religiosa, sendo assim também chamadas de “igrejas
eletrônicas”.
232
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

A caminhada é repúdio aos ataques às religiões de matriz africana, nos mais variados
graus, dos sutis aos mais violentos, sobretudo pelos evangélicos neopentecostais 72. As
ações variam da violência religiosa e moral à violência física às instalações dos terreiros
e/ou aos adeptos dos terreiros.

Além de membros das famílias-de-santo dos terreiros, também participam representantes


de diferentes organizações da sociedade civil, políticos defensores da causa e
simpatizantes, geralmente pessoas conhecidas umas das outras, numa ambiência
‘familiar’ bastante acolhedora.

Como parte da cosmovisão africana, a caminhada é simultaneamente civil, religiosa e


lúdica. Tradicionalmente, a caminhada ocorre no feriado da Proclamação da República,
em 15 de novembro, com início no período da tarde, no Largo do Bogum.

A espacialidade é ambientada com fitas, faixas e bandeirinhas brancas que simbolizam a


paz, os postes são amarrados com panos brancos, à semelhança dos ojás, todas as
pessoas vestidas de branco, membros dos terreiros vestidos com os trajes religiosos, e o
acompanhamento dos batuques, cânticos e discursos amplificados pelos minitrios.

Após o lançamento dos fogos, as mães e pais de santo lançam milho branco para
abençoar a caminhada, seguidos por meninos posicionados à frente do cortejo que soltam
pombas brancas, dando início à caminhada abençoada com palavras, batuques e acordes
sagrados. Quem se faz presente, sente a energia circundante e toma a dimensão do
‘sentido’ e do ‘vivido’.

A caminhada segue com cânticos de terreiro mesclados com palavras de ordem contra a
intolerância religiosa, o racismo e demais injustiças cometidas contra o povo negro,
conforme pode ser visto nas Figuras 83, 84 e 85:

72
A intolerância religiosa é muito evidente em Salvador, parecendo contraditório visto que estamos numa cidade
majoritariamente negra e que guarda muitas referências africanas, ou talvez, por isso mesmo, em que aparece o
racismo de forma mais contundente. Os ataques vão desde agressões verbais aos candomblecistas a ações
violentas, como agressões físicas aos pais e filhos de santo (inclusive com surras de bíblia!), à demonização da
religião e agressões materiais aos terreiros. Em Salvador, o caso mais emblemático é o da morte de Mãe Gilda
do Terreiro Abassá de Ogum, em Itapuã, vítima de enfarte fulminante em impedimento à invasão de seu terreiro,
em 2002, por evangélicos neopentecostais.
233
Figura 83 - VII Caminhada contra a Violência, a Intolerância
Religiosa e pela Paz na Rua Apolinário de Santana (Ano: 2011)
Fonte: Foto da Autora

Figura 84 - VII Caminhada contra a Violência, a Intolerância


Religiosa e pela Paz na Rua Apolinário de Santana (Ano: 2011)
Fonte: Foto da Autora

Figura 85 - Concentração da VIII Caminhada no Largo do Bogum (Ano: 2012)


Fonte: Foto da Autora
Ao longo do percurso, são feitas saudações e reverências, como mostra a Figura 84, aos
terreiros situados no trajeto que segue pela Av. Cardeal da Silva, descendo pela Av. Anita
Garibaldi e retornando pela Av. Vasco da Gama, culminando num abraço ao Busto de Mãe
Runhó. Ao final, tem-se a celebração através do alimento, em que é servido um caruru
preparado por adeptos e simpatizantes do Terreiro do Cobre, acompanhado de samba,
propiciando o encontro, a reunião, se desdobrando na via lúdica...

No âmbito do universo do terreiro, após os ritos secretos, são celebradas as festas públicas,
propiciando o entrosamento comunitário pela via lúdica, como lugar de trocas e dimensão
cultural da vida coletiva, sendo formas de acesso ao lazer festivo através dos sambas
tocados, cantados e dançados por pessoas ligadas ou não ao terreiro e da oferta das
comidas de santo.

E no bairro a ludicidade se repete, tal como vimos com os inúmeros grupos culturais e
musicais do bairro. O tempo livre que resta do tempo dedicado ao trabalho é utilizado nas
atividades lúdicas, em que o entrosamento comunitário, pela via lúdica, é propiciado pelas
festas às quais Makota Valdina se refere, que são os carurus de setembro oferecidos pelas
famílias do bairro, as rezas de Santo Antônio, os ternos de reis, os blocos de carnaval, etc.
Em sintonia à fala de Makota Valdina, Dona Maria Angélica também conta:

A gente fazia roupa igual, as meninas da rua. Fazia bloco de São João,
bloco de carnaval... Tinha também terno de reis, aqui mesmo no Engenho
Velho. Aí em cima, no largo [em frente à casa da Dona Lindaura].

Esta forma lúdica é, mais uma vez repetindo Sodré, uma forma social negro-brasileira que
os negros souberam explorar. Até as manifestações católicas foram transformadas num
‘catolicismo de preto’, ganhando novas tonalidades nas comunidades negras, se
diferenciando dos rituais católicos praticados pela igreja católica73.

Nas rezas domésticas, por exemplo, o sagrado e o profano se fundem nas rezas seguidas
pelas comidas, também trazidas pelos convidados (bolos, mungunzá, cuscuz, amendoim
cozido, arroz doce, licores), cantorias, danças e sambas até a madrugada: novamente a
festa, que transcende pela busca do equilíbrio.

73
Muitos são os estudos sobre o ‘catolicismo de preto’, ‘afrocatolicismo’ ou ‘catolicismo negro’:
SOUZA, Marina de Mello e. Catolicismo Negro no Brasil: Santos e Minkisi, uma reflexão sobre Miscigenação
Cultural. Revista Afro-Ásia, 28 (2002), 125-146. Disponível em: <www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia_n28_p125.pdf>
Acesso em: 12 nov. 2012.
SILVA, Rubens Alves. Negros Católicos ou Catolicismo Negro: um Estudo sobre a Construção da
Identidade Negra no Congado Mineiro. Belo Horizonte: Editora Nandyala, 2010.
SANTANA, Anália. A Irmandade do Rosário dos Homens Pretos do Pelourinho: memória e identidade
afrocatólica na Bahia. Africanias.com, v. 01, p. 1-13, 2011. Disponível em:
<http://www.africaniasc.uneb.br/pdfs/ac_01_santana.pdf > Acesso em: 12 nov. 2012.
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

A fala de Dona Joana exemplifica:

A reza de Santo Antônio eram 13 noites. Cada noite tinha um mordomo: a


primeira noite era das crianças, então o altar era branco; depois das rezas
distribuía o arroz doce, o chocolate, bolo, mungunzá. Na noite das moças,
mudava o altar para cor de rosa ou vermelho; a noite dos moços, altar azul.
Aí era mais adulto, aí já tinha licor, batida de limão... Os vizinhos se
juntavam, cada um dava o que podia! Havia muita união. Depois da reza,
tinha samba-de-roda, era festa. Tinha família que até contratava orquestra e
tudo, como na casa da Dona Áurea. No dia seguinte, todo mundo acordava
cedo para trabalhar.

Além das festas nas casas, havia também as trocas de pratos culinários entre os vizinhos.
Nesta apropriação de valores religiosos, podemos intuir porque muitos praticantes de
religiões afro-brasileiras também se denominam católicos, sendo estes mais aceitos pelo
conjunto da sociedade, mascarando os dados de Religião do IBGE. Estas formas de
apropriação das festas católicas pelas comunidades negras também influenciou as
manifestações católicas mais tradicionais.

Das festas às romarias, que sempre aconteceram no bairro, destacamos a Romaria de São
Lázaro e São Roque que saiu por uns 40 anos e que era organizada pelo Seu Ioiô, pai de
santo de um terreiro localizado na Av. Passos, ficando desativado com seu falecimento.

Por anos seguidos, a romaria saiu de seu terreiro caminhando até a Igreja de São Lázaro e
São Roque, na Federação, em devoção a Obaluaê. A organização envolvia a família, os
filhos-de-santo da casa e a vizinhança, e ia agregando, ao longo do percurso, filhos do orixá,
devotos do santo católico e simpatizantes da romaria, como podemos ver nas Figuras 86 e 87.

236
Figura 86 - Saída da Romaria de São Lázaro na Avenida Passos (Ano: 1992)
Fonte: Foto da Família Santos

Figura 87 - Romaria de São Lázaro na Travessa Assis (Ano: 1990)


Fonte: Foto da Família Santos

E no retorno da romaria ao terreiro, Dona Albertina conta: “Aí começava a segunda parte,
que era o feijão ou o caruru. Era todo ano”.
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

E este modo de vida foi para alguns moradores também meio de vida. Os valores irradiados
pelos terreiros desdobram-se em outras manifestações culturais do bairro, revelando
sempre a ludicidade da forma social negro-brasileira.

O Seu Nelito, bastante conhecido no bairro, foi criado em Santo Amaro, no Recôncavo
Baiano. Teve seu aprendizado do samba transformado em ofício, sendo fundador de vários
grupos de samba (samba chula e samba corrido), diretor de percussão de blocos de
carnaval, ensinando vários percussionistas famosos em Salvador. Seu Nelito conta que
também foi um dos introdutores da capoeira no bairro:

Quando eu vim, trabalhei em casa de família, servindo mesa. Depois ganhei


idade e fui trabalhar na construção civil e hoje sou oficial de pedreiro.
Paralelamente eu trabalhava com o samba e a capoeira. Eu montei três
blocos: “Os Invasores”, o “Camisa Rosa” e participei do bloco “A Fofoca”.
Fiquei 28 anos como mestre de bateria em blocos do Garcia. Hoje tenho
“Os Vendavais”. Fiz muita coisa... Fiz um trabalho com o Riachão que
passou na TVE...

Seu Nelito recorda de Dona Abigail, a que era parteira, e que também fazia feijão para
vender:
Tinha uma parteira famosa aqui no bairro, Dona Abigail, a Biga. Ela também
tinha um feijão tradicional: o Feijão da Biga, na Apolinário de Santana. Era
uma quitanda coberta de palha, bem rústica. Eu fazia o samba-chula lá.

Seu Valter também lembrou de Dona Abigail, dona do samba que se transformou em bloco,
e aponta os blocos de carnaval do bairro, inclusive um afoxé, fundado também por ele:

O Engenho Velho não tem só candomblé, não! Tem também as histórias


carnavalescas! Aqui existiu A Malandrinha, bloco feito por Dona Abigail, a
Biga. Tutu, que tinha um armazém, também teve bloco. Nós tivemos o
segundo bloco afro da Bahia que era o Melô do Banzo, depois do Ilê Aiyê. E
bloco de índio teve o Xavantes, que eu que fiz... acabou! E hoje tem o Afoxé
Korin Efan. Ele saiu daqui do Engenho Velho.

E Dona Lindaura lembra:

Os blocos carnavalescos que tinha era o Terror do Samba e Malandrinha.


Tinha outros também...

Seu Valter evidencia as festas carnavalescas, mas não desconecta a origem no candomblé,
explicando que o afoxé, por exemplo, é desprendido dos preceitos reservados do terreiro:

O afoxé é o candomblé de rua!

E ainda surgiram com muita força no bairro do Engenho Velho da Federação os sambas
juninos, como fala Makota Valdina:
238
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Nos sambas de São João, a gente saia de porta em porta. Nessas trocas é
que os saberes e os valores eram passados (Makota Valdina apud ARAÚJO,
2005, p. 76).

Com o tempo, o ‘samba duro’ junino foi ganhando maior proporção no Engenho Velho da Federação.
Os festivais foram pródigos em revelar grupos de samba nos palcos montados pelo bairro durante a
festa. Este samba aparece na fala de Dona Amália:

No Largo do Bogum tinha o encontro de samba. Era muito bonito... Era


muito animado. Depois passou a ser no primeiro largo do Engenho Velho.

Seu Valdir da Cuíca conta que apresentavam-se na época bandas como Pião Doido, Revela
Samba, Os Negões, Prego Duro e Samba Scorpio, dos quais saíram nomes hoje bastante
conhecidos na música baiana. Entre eles, Tatau, vocalista do Araketu, que comandava na
época o Samba Scorpio, grupo mais conhecido e prestigiado pelo público na época. Outro
famoso que já participou dos festejos do samba junino no Engenho Velho da Federação foi
o ex-vocalista do ‘Terra Samba’, Reinaldo. E ainda o Grupo Kissukilas (provém do vocábulo
kisukila, originado da língua bantu quimbundo, significa sonho real), fundado por Luizinho do
Jêje, do Terreiro do Bogum. Na fala do Seu Orlando:

O tempo áureo do samba junino começou a ter fim na metade dos anos 90 no
Engenho Velho da Federação. [...] O festival reunia muita gente que vinha de
outros bairros da cidade, mas com o crescimento da violência, alavancado
principalmente pelo tráfico de drogas, o evento foi perdendo força.

Apesar de não se ter mais o mesmo espírito comunitário dos tempos de outrora, o ‘feijão’ e
o samba-de-roda continuam presentes na vida do bairro, como podemos observar no cartaz
da Figura 88:

Figura 88 - Cartaz da feijoada e samba-de-roda


(Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora

Esta forma social negra derivada do terreiro cimenta o entrosamento comunitário, estando
presente nas reivindicações, como parte do movimento político dos moradores:

239
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Na década de 60, quando lutamos pela associação dos moradores, meus pais
e outros fizeram campanha para uma nova sede. Fizemos quermesses,
leilões, listas, todos se envolviam (Makota Valdina apud ARAÚJO, 2005, p. 78)

Esta dinâmica sociocultural nos reporta novamente à concentração dos terreiros no bairro, o que
deu visibilidade nacional ao Engenho Velho da Federação.

Durante o processo desta pesquisa, identificamos a indicação do bairro do Engenho Velho da


Federação para a titulação de “quilombo urbano”. Segundo Serra et al (2007), em setembro de
2005, quando da celebração de um convênio entre o Governo Federal e a Prefeitura Municipal do
Salvador com vistas a sua requalificação urbana, este bairro foi classificado pelas autoridades
envolvidas (o Secretário Municipal da Reparação - SEMUR, o Presidente da Fundação Palmares e
a titular da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - SEPPIR, ligada,
esta, à Presidência da República) como “quilombo urbano”, com base em interpretação do Decreto
nº. 4.887, de 20 de novembro de 2003, assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, decreto
este que faculta entender por característica definitiva de um quilombo a resistência cultural negra
concentrada em um determinado espaço (A Tarde apud SERRA et tal, 2007). Na interpretação do
Decreto 4.887/2003, há o entendimento que esta é uma característica de uma comunidade
quilombola, interpretação que ampliou a definição até então, centrada nos espaços rurais herdeiros
das comunidades que, historicamente, serviram como espaço de refúgio e luta contra a escravidão.

A presença estabelecida pela intensidade dos terreiros gerou uma imagem ‘positiva’ do bairro,
tornando-se um dos elementos de identificação, como um marco simbólico.

Em função desta interpretação como marcos de resistência negra, com base nos terreiros, o
bairro do Engenho Velho da Federação foi escolhido, favoravelmente, como projeto-piloto para
requalificação urbana.

Na publicação do Mapeamento dos Terreiros de Salvador, Angela Gordilho informa, no artigo


sobre Regularização Fundiária dos Terreiros em Salvador, que algumas melhorias urbanísticas
no sistema viário (caminhos e escadarias) foram executadas, reparando parte da circulação no
bairro com recursos financeiros do Ministério das Cidades, no âmbito do Programa de
Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários. Angela Gordilho aponta
ainda que “adotou-se como diferencial o reconhecimento da presença dominante da cultura e da
religiosidade afro-brasileira neste bairro...” (MAPEAMENTO, 2008, p. 08).

Na sequencia do reconhecimento nacional, ocorre atualmente a implantação, intermediada pela


ACBANTU (Associação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu) juntamente com o
governo estadual (SEDUR/SUCAB), do Projeto de Revitalização de Territórios Culturais de
Matrizes Africanas (Convênio nº 08/2009), consistindo na reforma de terreiros em vários bairros
de Salvador. O objetivo deste Plano de Trabalho previsto nos Termos de Referência deste
Projeto é a execução de serviços de reforma, ampliação e reparos gerais em 53 Territórios

240
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Culturais de Matrizes Africanas no município de Salvador, com vistas à valorização,


fortalecimento e preservação do patrimônio cultural afro-brasileiro.

Os recursos são provenientes de uma emenda parlamentar do deputado federal Zezéu


Ribeiro ao Orçamento da União, resultado de articulações da bancada parlamentar baiana,
com apoio da SEMUR. O projeto prevê pequenas melhorias nos terreiros, como conservação
e ampliação de suas estruturas físicas, reforma de telhados, pintura, construção de
contenções e muros, recuperação de parques e jardins, iluminação, entre outras ações em
53 terreiros do município de Salvador. A iniciativa é parte do reconhecimento do Estado
tentando reparar uma dívida histórica que possui com os descendentes de povos africanos.
No Engenho Velho da Federação, os terreiros beneficiados pela ação são a Casa Branca, o
Terreiro Patiti Obá, Terreiro do Cobre, Ojo Bomim e Odê Mirim.

O reconhecimento da importância dos terreiros, dada sua dinâmica cultural, se dá porque os


terreiros também desenvolvem uma relação econômica com o bairro, oferecendo
oportunidades de prestação de serviços à comunidade do terreiro (filhos e filhas-de-santo),
na solicitação de trabalhos de costureiras, bordadeiras, artesãos, entre outros, e também na
própria qualificação de pessoas para estes serviços.

Neste ínterim, destacamos o casal Dona Adalgisa e Seu Manoel, vizinhos da Casa Branca. “No
tempo das mães-de-santo velhas”, como afirma Seu Manoel, ele sempre era chamado para
fazer os trabalhos de substituição de telhas. Mesmo não sendo iniciado, era orientado a ficar de
resguardo sexual e era “benzido” antes de fazer o trabalho. Dona Adalgisa, como costureira,
aprendeu a modelar e costurar as roupas de santo e diz: “Já fiz muita roupa das filhas de santo
deste terreiro...”. Além das costureiras, como ela, ela também se recorda das engomadeiras.

Estas profissões já foram muito presentes entre os moradores do bairro. Muitas moradoras
trabalharam como lavadeira de ganho, cuja expressão lavar de ganho, referente à condição
de escravizado, sobreviveu ao pós-abolição, como é o caso das mães de Dona Maria
Angélica e de Dona Joana, sendo estas professoras aposentadas.

Assim, Dona Joana conta:

Minha mãe lavava roupa lá embaixo, nessa fonte grande do Seu


Nascimento, que era essa fonte mais aberta. Tinha um quarador enorme.
Ela descia com as trouxas de roupa suja. Descia com as trouxas, as bacias,
o banco. Eu mesma descia com a minha mãe, ajudava minha mãe a lavar
roupa. Minha colocava uma bacia pequena para mim. Ela separava
guardanapo, as toalhas de rosto, todas as peças pequenas, roupas íntima
que eles botavam para lavar. Minha mãe lavava as peças maiores, os
lençóis, as toalhas, blusas, calças... Tinha os quaradores, era dividido. Um
pedaço era de Dona Áurea, daqui até ali era de Marcelina, que é minha
mãe, outro pedaço de Dona Cecília e assim ia. Era muita gente que lavava
roupa lá.
241
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

No bairro do Engenho Velho da Federação, a existência da lavanderia comunitária da Av.


Cardeal da Silva é justificada pela grande demanda de lavadeiras, onde muitas mulheres
tiram seu sustento e de suas famílias neste ofício.

O trabalho de lavadeira era muito árduo, pois também consistia em passar e engomar, como
conta novamente Dona Joana:

Era trabalho: tinha que esfregar, quarar, ferver para clarear a roupa, para
ficar alvinha, torcer, estender para secar aqui em cima... E tinha roupa que
era de engomar. E para passar? Antigamente era ferro de carvão, um ferro
pesado. E no inverno que o carvão ficava molhado em época que chovia
muito? Era uma trabalheira... Eu e minha mãe, nós íamos na Graça para
pegar pó-de-serra e madeira de desmanche para ferver a roupa. Vinha com
as madeiras na cabeça da Graça até aqui.

As histórias de Dona Joana e Dona Maria Angélica são parecidas, como esta conta:

Meu pai era pedreiro e minha mãe foi lavadeira mesmo. Criou a gente
lavando roupa. Neste quintal tinha uma fonte, mas a fonte secou. A gente,
os filhos, era quem carregava a água. Para começar a minha atividade do
dia, de manhã, enchíamos dois tonéis: eu e meu irmão. Tinha muita fonte:
tinha fonte por aqui, por ali, por tudo quanto é canto tinha fonte. Eu ajudava
a lavar. Mamãe depois fervia a roupa. Era daquele tempo que fervia,
quarava... Eu tenho orgulho disso. Meu anel foi comprado com dinheiro de
roupa. Todo mundo ajudava a mamãe a lavar roupa, passar. Todo mundo
trabalhava, estudava e brincava. Até hoje eu tenho comadre e compadre da
época de batizado de boneca, de fogueira de São João...

Outras profissões antigas entre as mulheres do bairro: parteiras e rezadeiras/benzedeiras.

A conversa com Rita Pinheiro, moradora do bairro e diretora do Bloco AfroBogun, nos contou a
experiência de sua avó no bairro, Dona Chica, já falecida, que era benzedeira. As benzedeiras
ou rezadeiras, curavam através de suas rezas e orações os “males do corpo e da alma”,
entendendo a pessoa na sua totalidade: indicavam chás, banhos de folhas, incensavam as
pessoas, rezavam o corpo todo ou somente uma parte. Como conta Rita Pinheiro:

Bastava ela olhar para a pessoa para saber o que estava acontecendo. Aí
ela ia rezar. O quintal dela era pequenininho, mas tinha todas as plantas
que ela precisava ali [...] Ela sabia fazer um remédio com o entrecasco do
pé do cajá para queimadura. Esquentava na panela de barro e passava
aquela gosma... Aí saía aquela pele morta e depois crescia a pele normal. E
não ficava parecendo aquela pele de plástico derretido não...

Dona Joana também explica:


Quando as mães achavam que as crianças estavam doentes, quando
estavam molinhas, que estavam de olhado, aí chamavam sempre as
benzedeiras para rezar. Elas ensinavam folha para dar o chá ou para dar
banho na criança. A tia do meu marido mesmo era benzedeira.

242
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Nas rezas há um ritual de cura que une a fé de várias crenças, que mistura o candomblé, o
catolicismo de preto e elementos da cultura indígena, com a combinação de ervas: folhas,
sementes, fumos, objetos rituais (amuletos, velas coloridas, santos, terços, incensos), entre
outros. Sempre com grande conhecimento botânico, aprendido com familiares antepassados
e/ou pelo dom espiritual, muitas das rezadeiras/benzedeiras também atendiam as pessoas
nas casas das famílias do bairro. Muitas delas também eram parteiras, como a Dona Chica.

Rita Pinheiro conta que sua avó “era muito sábia das coisas da vida” e através da tradição
oral, transmitia costumes, crenças e valores, de geração em geração, que neste caso se fazia
de avó para neta.

Como parteira, mais do que “aparar” a criança, ela sabia interpretar a hora certa do
nascimento:
Vó também era parteira: quando ela ia fazer um parto, ela olhava para as
nuvens do céu. Dependendo do que ela via, atrasava o parto. Ela pressentia
quando alguém ia morrer, sabia quando alguém estava grávida... Dizia para
não comer nada que alguém dá à toa e para não confiar em quem não olha
no olho...

Outra parteira bem conhecida era Dona Abigail, a Biga, lembrada por Mãe Val. Outras
parteiras citadas pelos moradores do bairro são a Cabocla, Dona Neca (mãe de Makota
Valdina), Dona Clara, Dona Lindaura “Branca” (chamada assim para não ser confundida com
Dona Lindaura Farias, moradora mais antiga e de pele negra), e muitas outras. Dona Joana
também lembra:
Tinha a mãe de Makota Valdina, Dona Neca, que pegava criança. Tinha Dona
do Carmo, aqui embaixo, que pegava menino também.

Muito do prestigio destas benzedeiras foi prejudicado em função de preconceito, na


atualidade, com as parteiras, rezadeiras, benzedeiras e erveiros nos seus processos de cura
em direção às técnicas da medicina oficial.

Entendemos que as rezadeiras/benzedeiras também são uma extensão das práticas dos
terreiros, ainda que muitas não tenham sido iniciadas pelo candomblé, como é o caso de
Dona Chica. Dona Paula não é benzedeira, mas é muito conhecida no bairro por acumular um
grande conhecimento de plantas medicinais que aprendeu desde menina com sua mãe,
misturando conhecimentos indígenas e africanos.

Dentre os conhecimentos tradicionais, destacamos também os raizeiros, na figura masculina.


O mais visível é Seu Pedro, conhecido como Pai Helinho, cuja barraquinha está situada no
Largo do Bogum, como pode ser visto na Figura 89.

243
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 89 - Barraca do erveiro Pai Helinho no Largo do Bogum (Ano: 2012)


Fonte: Foto da Autora

No âmbito do espaço de domínio público, temos as áreas vegetais constituídas das plantas
espirituais e/ou medicinais. São muitas as áreas vegetais existentes no bairro, entre caminhos
e largos, constituindo áreas de cultivo de plantas, como temos no exemplo da Figura 90, com
a existência de plantas religiosas e/ou medicinais, parte do patrimônio afro-brasileiro e de
domínio dos moradores, como vemos também na Figura 91, onde aparece o Tapete de Oxalá.

244
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 90 - Área Vegetal com ‘paisagismo sagrado’ Figura 91 - Área Vegetal com ‘paisagismo sagrado’
na 3ª Trav. São José do Egito (Ano: 2012) na Avenida Fonseca (Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora Fonte: Foto da Autora

Também como áreas de cultivo de plantas e árvores, temos no âmbito do espaço


particular os quintais. Os quintais são os espaços abertos no entorno das casas e
geralmente estão nos fundos, no término da cozinha, mantendo o ‘bafafá’, aquele
burburinho da cozinha. Há uma certa repetição na organização espacial da casa: uma
copa-cozinha, sempre arrumada e enfeitada com paninhos bordados, e uma cozinha
avarandada, com fogão de panelas grandes, panelas de barro, meio misturada com uma
espécie de lavanderia e que dá acesso diretamente para o quintal.

Além do espaço da rua e dos largos, dos espaços coletivos, os quintais também podem
atuar como espaços de convivência coletiva. “Nos quintais, vez ou outra, tinha samba de
roda”, como informa Seu Nelito.

Os quintais, além desta referência de uso como extensão da cozinha, é também ambiente
de lazer, da ludicidade, o lugar do churrasquinho, do samba, etc., e é também um espaço
criativo. Este espaço criativo permite que a casa não seja apenas restrita ao descanso, à
alimentação, à reprodução, à criação dos filhos, mas um lugar que também comporte o
saber-fazer. E este saber-fazer, que se aprende fazendo, não é ensinado na escola e
aponta para as habilidades de cada um. Dona Joana, Dona Maria Angélica e Seu Edílzio
contam como era o fazer o cuscuz, o bolo de carimã, o mungunzá, tudo cozido no fogão a

245
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

lenha, “no lado de fora”, no quintal; o acarajé feito com feijão ralado nas placas de pedra
que ficavam no quintal, as cocadas e doces feitos no tacho de madeira, o pisar do barro
da casa de taipa e até mesmo para modelar tijolos de adobe, que Dona Paula fazia
devagarinho, mesmo grávida.

Quando este espaço particular dos quintais inexiste, são os espaços coletivos que
servem de suporte para as práticas cotidianas. Estas populações negras são herdeiras de
uma educação doméstica que abrange as necessidades do viver, desde pequenos: cuidar
de si, cuidar dos outros, cuidar de uma casa. Estas comunidades não tinham a facilidade
de comprar pronto ou de mandar fazer.

Em relação aos mercados, temos presente no bairro as quitandas, cuja palavra kitanda é
de origem africana bantu (quimbundo), significa o tabuleiro em que as vendedoras
africanas vendiam suas mercadorias diversas (gêneros alimentícios) como ganhadeiras
ambulantes ou em pontos fixos nas ruas ou em feiras livres. Com o passar do tempo, as
quitandas tornaram-se estabelecimentos comerciais modestos e informais, instalados em
comunidades negras e pobres, geridos pelos próprios donos, em geral mulheres,
envolvendo filhos e demais familiares, empregando, quando muito, uma pessoa,
basicamente, conhecida ou vizinha e no qual se vendem gêneros de primeira
necessidade, que é o caso de Dona Lindaura, já mencionado, ou da ‘Barraca da Neide’.

Além das quitandas em estabelecimentos, ainda temos as vendedoras de tabuleiro, em


pontos fixos, como Dona Kalu, antiga e conhecida baiana de acarajé, cuja prática
cotidiana contribuiu para demarcar a espacialidade peculiar no bairro negro do Engenho
Velho da Federação.

5.2 - O Engenho Velho da Federação e sua Forma Urbana Negra

Como comprovação da hipótese proposta na tese da existência de uma forma urbana


negra temos, neste subitem, como exercício empírico-conceitual, explicitados e
operacionalizados os conceitos de Convivibilidade, Afro-consciência Espacial,
Assentamentos Familiares, Caminhalidade e Multifuncionalidade, associados entre si
numa relação forma-conteúdo, que articulados simultaneamente também nos oferecem a
identificação do bairro negro.

Vários exemplos e expressões destes conceitos já foram apresentados ao longo da tese.

246
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Convivibilidade

Iniciando pelo conceito da convivibilidade, conceito gerador dos demais, observamos e


experimentamos esta sociabilidade no bairro do Engenho Velho da Federação.

Assim, relatamos uma das nossas experiências vividas. Andando distraidamente pelas ruas
do bairro, ouvimos uma voz firme: “Cuidado com o carro, menina!” Me virei, retornei e
agradeci ao senhorzinho, um velhinho. Ele continuou andando e dizendo que os carros
andam correndo muito ultimamente. E seguiu o seu caminho, mas antes me disse: “Que
Deus lhe abençoe, minha filha”.

O valor da senhoridade autorizou este senhor, uma pessoa desconhecida, a me abençoar, a


me conduzir palavras de proteção. O fez por mim, mas faria por qualquer pessoa mais
jovem que ele. Nas relações cotidianas do bairro, estes exemplos são recorrentes. Nas
conversas com Dona Helena e com Dona Paula, senhoras bem idosas, elas também
sempre me abençoam.

Tonho também menciona sobre o tratamento entre os moradores idosos do bairro e os mais
novos, os jovens:
Às vezes você passa: Bom dia, D. Maria. Bom dia o quê, menina?! Cadê
minha benção? Ou Seu José, como vai o senhor? Deus te abençoe, meu
filho!

As relações de vizinhança dão continuidade às relações familiares, como no exemplo dos


pedidos de bênçãos, compondo o sentido da família estendida. Nesta relação de quase
parentesco, os apadrinhamentos eram constantes. Era muito comum, segundo Seu Nelito:
“um vizinho apadrinhava o filho do outro”.

Também temos a relação ancestral como um valor cultural importante para as comunidades
negras: a morte de um ente querido da família altera o equilíbrio da energia vital. Este fato se
mostra relevante na vida cotidiana dos moradores do Engenho Velho da Federação, nos
chamando atenção na entrevista com o radialista Beto Mendes, relativo aos avisos
solicitados pelos moradores: as notas fúnebres. O radialista afirma a importância que estes
avisos representam para os moradores e que, em função deste interesse, são vários os
anúncios feitos por dia na ocasião da morte do morador.

Estas relações sociais são estabelecidas de forma mais estreita, em relações de compadrio,
de amizade e de respeito aos mais velhos e às crianças, estes pelos conhecimentos
acumulados, e aos mais novos como continuação do grupo, com pedidos de bênção aos
mais velhos em respeito à senhoridade, etc., em graus de afetividade, dependência e/ou
solidariedade mútua relativa a fatos corriqueiros do cotidiano, como é o caso da relação
entre as famílias de Dona Maria Angélica e do Seu Edílzio.
247
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Um exemplo da infância de Seu Edílzio:

Na casa da Dona Maria Helena ali, que não faltava comida, eu ia almoçar
lá, até minha mãe chegar de noite. Ela e Dona Francisca praticamente que
me criou.

Ou então como conta Dona Adalgisa, lembrando de Dona Rosa, adepta do terreiro da
Casa Branca e que vendia fato74 no Rio Vermelho: “O que sobrava da feira, ela dividia
entre os vizinhos”.

Este sentido solidário e de camaradagem era presente e aprendido desde cedo, praticado
também pelas crianças. Como conta Dona Joana, sobre um dos momentos de sua infância
que exemplifica o aprendizado de um valor social, que misturava trabalho e brincadeira:

A gente carregava água até de turma. De turma era assim: juntava eu e


minhas amigas. Turma de cinco: Vamos todo mundo encher os tonéis da
casa de Joana! A gente descia, subia e enchia; agora a casa de fulana,
enchia; agora cicrana, e assim ia, até encher os tonéis de todo mundo.

Estas práticas solidárias não são exclusivas de bairros negros, mas são características
marcantes no Engenho Velho da Federação, compondo o perfil sociocultural deste bairro. A
camaradagem também: numa das visitas à Dona Paula, com pouco tempo de amizade, nos
sentimos um pouco parte daquele universo familiar, assistindo o vai-e-vem do preparo do
almoço do domingo, o entra e sai das netas arrumando o cabelo para sair à noite, o neto
que ganha um dinheirinho cortando o cabelos dos colegas na varandinha em frente à casa,
e neste meio tempo, ganhei um CD da Dona Paula, no qual ela canta uma das gravações de
samba-de-roda com o filho, Seu Germano.

É importante destacar o adensamento populacional que ocorreu no bairro produziu novas


relações de vizinhança, entre elas o evento de vizinhos estranhos entre si, em que os
conflitos aparecem com mais força.

Mas a escala da vida comunitária do bairro não se perdeu: são recorrentes expressões do
não-anonimato como vemos no cartaz em via pública, que aparece na Figura 92, no qual não
é o endereço, telefone ou e-mail que indicam a prestação do serviço de cópias e impressão
de documentos, mas a simples indicação da residência do morador prestador dos serviços.

74
Partes dos miúdos (vísceras) de boi.
248
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 92 - Serviços prestados por Matheus


nas proximidades do Largo da Torre
Fonte: Foto da Autora

Afro-consciência Espacial

Seguindo para a afro-consciência espacial, vamos ter as ambiências geradas pela


espacialidade permeadas por elementos das culturas negras. Assim, um cheiro de arruda ou
uma fumaça de incenso ‘sagrado’ remete ao repertório cultural afro-brasileiro, que está
íntima e energeticamente vinculado a um lugar, à espacialidade.

Nesta acepção da afro-consciência espacial, temos o caso contado por Dona Jane, da
Rocinha, como uma das histórias “dos africanos”, como ela diz, compondo a história do
bairro e também dos seus moradores, formando o imaginário coletivo:

Foi quando o pé de Loko caiu. Era uma árvore enorme... A árvore era muito
antiga, daquela do Dique... Ele [orixá] ficava na ladeira e a copa cobria tudo
isso aqui embaixo. Mas ele avisou que ia cair: primeiro foi uma galha seca.
Depois foi uma galha verde... Mas no dia que ele caiu mesmo, não caiu em
cima de ninguém, de casa nenhuma. Não tava passando ninguém na hora.
Foi coisa planejada dos orixás mesmo! Dona Caetana disse que não era
para ninguém mexer na árvore antes de fazer o preceito.

E de fato, pela senhoridade e autoridade de Dona Caetana, mãe-de-santo, os moradores


aguardaram a realização das cerimônias de preceito para que a árvore fosse retirada da
ladeira.

Este caso do pé de Loko marca a história de moradores antigos do bairro e cada um lembra
dele a seu modo. Dona Joana, da Rua das Palmeiras, conta:

Aí na [rua] Xisto Bahia tinha um pé de Loko, que fazia parte de um


candomblé, e tinha sempre aquele pano branquinho amarrado... Era uma
árvore grandona. Tinha raízes enormes. A rua chamava Pau Zerrém, Rua
do Pau Zerrém.

249
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Os moradores, mesmo não ligados ao candomblé, também sabem o que significa uma árvore
com um “pano branquinho amarrado” quando visualiza-se uma destas na paisagem do bairro,
em meio ao arranjo das construções: o assentamento de uma árvore sagrada e seu ojá, atrás
da construção pintada na cor branca (terreiro), como podemos observar na Figura 93.

Figura 93 - Árvore sagrada e seu ojá no Terreiro Ojo Bomin no


Engenho Velho da Federação (Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora

Esta afro-consciência espacial é presente no cotidiano. As plantas fazem parte da paisagem


do bairro, como ‘paisagismo sagrado’, como fonte de equilíbrio de energia. A noção de
proteção pelas plantas é constante no âmbito do ‘sentido’ e do ‘vivido’, como define Seu
Valter Neves:
Veja a espada de Ogum: Ogum é vencedor de batalha. O cara para se
proteger, com aquela fé, bota na porta. A espada de Ogum corta tudo! A
espada de Oxossi é a verde e amarela; tem comigo-ninguém-pode, tudo
ligado ao candomblé...

Temos, então, que as práticas culturais afro-brasileiras são amplamente difundidas na vida
cotidiana de boa parte da população brasileira, muitas vezes não sendo correlacionadas ao
repertório cultural de religiões afro-brasileiras.
250
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Nestes cuidados com a casa, tomamos a lembrança de Seu Edílzio que conta que sua mãe,
Dona Das Neves, que também era mãe-de-santo, dizia, de tempos em tempos, que era para
limpar a casa: “limpar a casa era pintar com cal”: de fato, nesta expressão, mostra que sua
mãe sabia que esta pintura afastava os insetos75, além, de realmente, conferir um novo
aspecto à casa. A arruda também possui efeito inseticida cujo cheiro que exala também
afasta as moscas, além de absorver energias negativas.

Na varanda de Dona Jane, da Rocinha, tem muitas plantas. Quando pergunto por que ela
tem espada-de-ogum, ela responde: “Ôxe?! Para proteger! Não tenho só ela, não: tenho
abre-caminho, vence-tudo, arruda, guiné...”

Dona Santa, esposa do Seu Nelito, enumera as plantas do seu quintal:

O quintal lá em cima tinha muito remédio, limão, capim-santo, pitanga, guiné


para quebrar olhado, maria-preta, etc. De noite, de madrugada, os vizinhos
iam pedir folha para isso, folha para aquilo, a gente ajudava...

E também Seu Edílzio:

No quintal aqui tinha capim-santo, erva-cidreira, folha de omolu, quebra-


pedra. Na Dona Francisca, a vizinha, era quioiô para fazer banho de abô,
corana para rezar a pessoa de mau-olhado... No quintal dela tinha tudo isso:
ela dava e vendia. Tinha quintal que tinha jaca de pobre, hoje é graviola,
jenipapo, fruta-pão para tomar café...

Um exemplo é o caso de Dona Emerita, que pode ser visto na Figura 94. Não sendo
adepta de terreiro, Dona Emerita conta que faz uso dos banhos de folhas. Os banhos não
são utilizados apenas na forma espiritual, mas são incorporados na vida cotidiana como
terapia medicinal.

O sagrado se difunde pelo ‘paisagismo sagrado’, já posto anteriormente, no qual as


plantas são uma constante no uso medicinal e terapêutico, espiritual e também pelo efeito
estético, recorrentes mesmo nos quintais cimentados ou nas vias públicas, como nas
Figuras 95 e 96.

75
A pintura à cal possui ampla ação fungicida, inseticida e acaricida.
251
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 94 - Vasos de plantas medicinais na


circulação lateral da casa de Dona Emerita
(Ano: 2012)
Fonte: Fotos da Autora

Figura 95 - ‘Paisagismo sagrado’ na


2ª Travessa do Bogum (Ano: 2012)
Fonte: Fotos da Autora

252
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 96 - ‘Paisagismo sagrado’ na


Rua dos Coqueiros (Ano: 2012)
Fonte: Fotos da Autora

Esta noção de proteção destas plantas no desdobramento da cultura afro-brasileira se


processa continuamente nas práticas cotidianas, como incensar a casa ou espalhar folhas
de pitangueira pelo chão da casa. É o que completa Makota Valdina em relação ao
loteamento Parque São Gonçalo:

[...] aquela área era chamada de “quebra-laço”, onde a gente ia pegar folhas
pra sacudir a casa em fim-de-ano e sábado de aleluia (Makota Valdina apud
ARAÚJO, 2005, p. 78).

Esta fala de Makota Valdina refere-se aos dias de festa. Nos terreiros, as folhas espalhadas no
chão do barracão atuam como emanadoras de energia vital, equilibrando o ambiente sagrado.

A dinâmica do terreiro se realiza sob a ação da força vital. Esta prática dos terreiros se
desdobrou numa tradição doméstica. Muitas casas, por questões de dificuldades
financeiras, possuíam o piso em terra batida e as famílias mantinham a tradição, na época
de Natal, de lançar areia alva. Mesmo nas casas em melhor condição financeira, mesmo
com o piso cimentado e encerado, a prática de se jogar as folhas de pitangueira no chão da
casa se repetia, como desdobramento das práticas do terreiro. Dona Joana, que é de
tradição católica, também se recorda da prática de se jogar as folhas de pé-de-pitanga, mas
não se lembra do porquê:
253
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Na época era piso de chão, não era piso cimentado. Para baixar poeira,
molhava o chão e jogava areia, areia alva, areia fina, para não subir a
poeira. No Natal, jogava folha de pitanga no chão. Eu realmente não sei o
verdadeiro sentido de jogar as folhas no chão, mas que jogava, jogava.

Como apontou Santos (2006), as ações são subordinadas às normas, a atuação ligada à ideia
de práxis e as práticas são atos regularizados, rotinas.

Assim, temos nestes exemplos uma demonstração de afro-consciência espacial, norteando um


ordenamento simbólico e espacial que marca uma determinada comunidade. E temos também a
dinâmica do terreiro se realizando sob a ação da força vital.

Assentamentos Familiares

Ao longo da tese, apontamos que o surgimento do bairro se deu a partir da instalação de


terreiros como núcleos de povoamento. Também vimos nas falas de entrevistados que os
terreiros sediaram espaços de moradias para seus filhos e filhas-de-santo, e que, com o passar
das gerações, viraram também moradia de seus filhos.

É o que vemos nas Figuras 97 e 98, conjuntos de moradias no terreiro da Casa Branca no
Engenho Velho da Federação. E ainda na Figura 99 aparecem casas nos limites do terreiro
voltadas para a via pública.

Figura 97 - Casas no Terreiro da Casa Branca no Engenho Velho da Federação (Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora
254
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 98 - Casas no terreiro da Casa Branca no Engenho Velho da Federação (Ano: 2012)
Fonte: Foto da Autora

Figura 99 - Casas nos limites do Terreiro da Casa Branca (Ano: 2012)


Fonte: Foto da Autora
255
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Advindos de uma aproximação da lógica da família-de-santo, originada no terreiro, os


assentamentos familiares são a materialização da proximidade familiar através das
moradias, no sentido de agregação sócioespacial, definido pela existência de ancestrais
comuns a todos os membros da família.

Esta nossa antiga percepção e dedução de experiências anteriores76 e na pesquisa desta


tese se confirmam na fala de Rita Pinheiro:

Isso é cultural, veio pela parte dos ancestrais. Desde a época dos escravos,
quando isso aqui era um engenho... Todo mundo com seus grupinhos,
morando perto.

Vemos aqui, claramente expresso na voz de uma moradora do bairro, que este
agrupamento familiar dos assentamentos familiares advém de uma relação cultural,
ancestral. Este agrupamento familiar, que africanos e descendentes utilizaram desde o
engenho, neste bairro, provavelmente se reportou ao clã africano mencionado no Capítulo 3,
e estava desvinculado, neste momento, do valor do solo, não relacionado ao valor
mercadológico da terra urbana.

Dona Joana também confirma este fato, contando quando seu pai veio do interior, em 1951:

Quando meu pai veio para cá, na casa da frente já morava a tia dele, Tia
Genésia, na frente. E morava também outros parentes: Tia Alice e mais
outros. A relação dos parentes era muito forte! [...] Ele ficou na casa de um
desses tios e depois que ele estava acertado na prefeitura, ele alugou uma
casa. Depois é que ele comprou este terreno. Quando ele alugou, era uma
casa de avenida. Alugou nesta avenida que já tinha uns parentes. Os terrenos
eram muitos grandes: cada parente que vinha do interior, quem já estava,
cedia e ia agregando a família. Era uma maneira em que a gente se ajudava.

A família da Dona Paula é também um exemplo destes assentamentos familiares, em que


várias gerações moram na edificação composta de várias moradias ou em casas anexas.
Lícia, uma das filhas, conta que “quase todo fim-de-semana é uma folia”, que reúne
família e vizinhos.

Os assentamentos familiares possuem referência nos valores conjugados pela família-de-


santo, nas relações de manutenção da ancestralidade, mesmo que de forma inconsciente,
mas parte de um valor social, representada pela expansão da vida, pela doação de energia
vital, na solidariedade entre os familiares.

Podemos apontar, de forma mais evidente, dois exemplos no Engenho Velho da Federação:
a família da Rocinha, cujo assentamento familiar situa-se nas proximidades da Ladeira Xisto
Bahia. Dona Jane afirma que a família está nesta área há seis gerações. Esta família não é

76
Em nossas atividades de trabalhos voluntários, consultorias de assistência técnica e pesquisa do mestrado.
256
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

vinculada ao candomblé, mas sempre conviveu harmonicamente com os vizinhos: o pai-de-


santo Seu Cosme, que era dono do terreiro ladeado pela Avenida Cosme (hoje é o Terreiro
Omim Onadô), e Dona Caetana, outra mãe-de-santo, ambos falecidos.

Explorando os assentamentos familiares, estamos no âmbito do conceito que, no nosso


entendimento, mais contribuiu na organização espacial, enquanto conteúdo, como elemento
de maior contribuição à morfologia do bairro, a sua forma. Em relação à forma, relacionada
ao conteúdo da convivibilidade, temos os processos coletivos de construção.

Já apontamos a descrição de alguns autores e de entrevistados como eram os processos


construtivos das casas, passando pelas casas de taipa, cobertura com palhas de dendê e
chapas de zinco. À medida que a situação financeira das famílias ia melhorando, os
materiais foram substituídos pelos blocos de adobe e coberturas de telhas cerâmicas.
Atualmente, as construções são em blocos cerâmicos e coberturas com telhas de
fibrocimento, telhas cerâmicas e/ou lajes.

Seu Edílzio explicava como foi o processo construtivo de sua casa:

A casa aqui era de taipa: nós, meu pai e meus irmãos, fizemos e os vizinhos
ajudavam. Uma casa de taipa fazia num dia... Era rápido! Barreava também
rápido... Era muito vizinho, muita gente ajudava.

Seu Edílzio também conta das condições de precariedade que a casa foi acumulando com o
tempo:
A casa ia ficando velha, velha, mas a gente ia escorando aqui, ali, porque
casa de taipa não cai de vez, como a casa de bloco... Casa de taipa quando
já tava ficando velha ou já tava para cair, a gente continuava dentro de casa
e a gente fazia outra em volta. Depois que tava toda pronta, aí derrubava...

Dona Joana também explica:

Pagava alguém para cortar as varas. Era vara e arame. Fazia aqueles
quadradinhos, amarrava com arame, e depois cobria com barro. E não caía,
porque a consistência da massa, do barro, ele ficava preso na parede até
secar. A gente pisava o barro, pisava, pisava... A família, os vizinhos, todo
mundo participava.

Evidenciamos que os processos de construção do bairro perpassam não apenas pelas


técnicas construtivas, pelas questões morfológicas, mas, sobretudo pelas relações sociais,
no âmbito da forma-conteúdo. A iniciativa da construção das casas era individual, se fazia
por família, mas, como apontamos anteriormente, o processo de ocupação e de construção
se dava por uma ação coletiva. Dona Joana reforça sobre a construção da casa que hoje
sedia sua escola:

257
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Esta casa aqui foi toda construída na base ajuda. Fazia os adjutórios,
porque comprava o material aos poucos. Foi muito adjutório! Fazia batida
de limão, com a cachaça Jacaré, que era famosa, fazia o feijão e com toda
energia, construía mesmo. Na época da pintura, outra vez! E assim ia... Não
era como hoje em dia é que a gente tem que pagar o pedreiro, tem que
pagar pintor... Era muito unido.

Na construção das casas, como conta Makota Valdina, era o adjutório, como marco da
convivibilidade, que caracterizava a construção das casas:

Se íamos construir uma casa, ia pai, mãe e filhos para fazer o adjutório, que
não era chamado mutirão. Naquele tempo dizia-se: dar um adjutório. E a
gente fazia as festas. Não se fazia nada pra ficar só, era família, era
comunidade. Vizinho era parente. Todo mundo era tio, tia, avó, avô, sem
que necessariamente fosse parente de sangue (Makota Valdina apud
ARAÚJO, 2005, p. 76).

E há também desdobramentos dos valores sagrados do terreiro na materialidade concreta


do bairro. Como nos contou Makota Valdina, nas casas, ao serem finalizadas depois do
ajutório, era colocada uma plantinha na cumeeira, como referência e influência do ‘sagrado’.

À medida que as condições financeiras da família iam melhorando, construía-se uma nova
casa com adobe ou tijolos cerâmicos, como conta Seu Edílzio.

Esta casa aqui levou dez anos fazendo, sem janela e sem porta. Não tinha
ladrão, não fazia medo... A gente dormia na esteira.

Inicialmente as moradias eram construções térreas, do tipo ‘frente de rua’ ou nos quintais,
agregando filhos, irmãos ou demais parentes.

Para a manutenção da agregação das famílias, os terrenos vão servir de suporte a


múltiplas moradias. Com a ocupação contínua e a redução de áreas vazias para novas
moradias, surge a verticalização, mantendo o agrupamento familiar: constrói-se no
pavimento superior, no subsolo ou de ambas maneiras.

Com o passar dos anos e a escassez de áreas livres para as novas casas, as construções
sobre ‘a laje’ da casa dos pais são parte destes assentamentos familiares, passando da
moradia unifamilar para multifamiliar, em que um imóvel pode reunir diferentes domicílios.
É prática comum o terreno da família servir de suporte para as casas de irmãos ou dos
filhos, que vão se casando e ocupando o terreno. Se as áreas do terreno não são
suficientes, há a verticalização.

No tocante a esta verticalização, em sobrados que vão surgindo através de novas


moradias sobre lajes ou na ocupação nos subsolos, temos as sobreposições de casas, tal
qual vimos no subitem 2.2.2 (Figuras 27 e 28). Relembramos que esta lógica está
258
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

vinculada ao conteúdo dos assentamentos familiares, enquanto materialização da


agregação familiar, que concomitantemente a este sentido da convivibilidade, e à medida
que se passam as gerações, também está correlacionada a questões de herança.

Caminhalidade

A Caminhalidade é também um forte elemento da morfologia urbana, na qual boa parte dos
caminhos foi definida concomitantemente aos assentamentos familiares. Vários caminhos
serviram de referência como divisa para demarcação de novos terrenos a serem
arrendados. Esta rede de caminhos disposta pelos moradores é a que caracteriza o sistema
viário do bairro, como relembra Dona Amália: “um caminho encontrava com outro”.

A Caminhalidade do bairro é marcada pelas relações de convivibilidade entre os vizinhos, no


sentido da concepção de expansão da vida. Muitos desses caminhos são resultados desta
forma social, servindo de atalhos e desvios para as vias principais ou para as fontes d’água,
formando uma rede de caminhos. Estamos nos referindo a áreas arrendadas que possuíam
caráter de área particular dos moradores. No entanto, a condescendência entre vizinhos ao
permitir a passagem era uma característica deste bairro negro, na relação de proximidade
de vizinhança, uma vez que “um quintal de uma casa dava para o quintal da outra”.

Muitos caminhos surgiram com as pessoas passando por dentro dos quintais dos vizinhos,
como conta Dona Joana:

Ah, os vizinhos passavam, as pessoas conhecidas... Mas também naquela


época era tudo tranquilo, todo mundo se entendia... Não era assim como
hoje. Todo mundo confiava nas pessoas, entendeu?... Minha mãe mesmo,
quando descia para a fonte lavar roupa, passava pelos quintais. Já tinha os
caminhos e não tinha muro. Era cerca: cerca de nativo, tinha cerca de
mamona também, mas o forte mesmo era o nativo, que separava um
terreno do outro.

Seu Valter também conta:


Os quintais eram cercados, mas tinha a passagem entre os quintais. Os
vizinhos passavam e se cumprimentavam: ô cumade, cumpade...

A afro-consciência espacial também fez parte desta formação dos caminhos, como explica a
fala de Rita Pinheiro:

A gente, para ir nos lugares, cortava caminho por dentro dos terreiros: tinha
o lugar de passar e tinha o lugar que não podia passar!

Muitos destes caminhos perderam estas referências históricas e lúdicas, relacionadas


com a vivência de seus moradores, e perdendo também o sentido de lugar do encontro
entre vizinhos, ficando reduzidos a passagens muito estreitas, se transformando, com o
259
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

passar do tempo, apenas em vias de circulação. Um exemplo é a Avenida Falcão, como


mostra a Figura 100, que dava acesso à fonte da localidade da Fonte do Forno pela Av.
Cardeal da Silva.

Figura 100 - Avenida Falcão (Ano: 2012)


Fonte: Foto da Autora

Diante de novas interferências da vida urbana, alguns destes caminhos não existem mais,
ou foram interrompidos, com fechamentos com portões face às novas necessidades de
segurança, numa reprodução das ruas particulares, ou mesmo foram ocupados com
moradias, impedindo o livre ir e vir.

Dona Amália também conta sobre o caso de um vizinho, que era morador antigo do bairro e
permitiu a passagem no seu quintal ao longo de anos. Na venda da casa, o novo morador
tentou recuperar a área do caminho, gerando uma situação de conflito por este morador
indiferente aos valores sociais compartilhados pelos moradores antigos. Como previsto no
direito romano ocidental, vigente no Brasil, a passagem foi garantida judicialmente pelo
direito consuetudinário baseado na relação de uso e costumes.
260
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Outros caminhos não surgiram como passagem por entre os quintais, mas foram abertos
em meio às matas pelos próprios moradores, além daqueles que compõem a toponímia do
bairro, como já apresentado, como forma de registro da convivência dos moradores.

Multifuncionalidade

No tocante a multifuncionalidade, dada pela simultaneidade e pela multiplicidade de


atividades que se desenvolvem no espaço público do bairro, pudemos observar nas
caminhadas de pesquisa pelo bairro, principalmente as caminhadas nos fins-de-semana,
quando há um aumento de pessoas nas ruas e travessas do bairro, que praticamente todos
os lugares podem se tornar local de trabalho e de lazer. Não é necessário um lugar
específico para que o ‘lazer’ aconteça e também nem sempre ele ocorre desvinculado das
atividades de trabalho. O lúdico pode acontecer a qualquer hora, durante o dia ou à noite,
entre familiares, vizinhos ou conhecidos que passam pela rua.

A multifuncionalidade ocorre nos lugares intermediários entre a casa e a rua, como espaços
de transição. São os espaços mais protegidos da visão da rua, que surgem ‘naturalmente’
das necessidades cotidianas, das práticas de caráter particular da comunidade local. Estes
lugares são os pequenos largos, cantos e fins de ruas e becos sem saída. Também
encontramos estes espaços descendo os brongos e quebradas das encostas, nos patamares
entre as escadas, onde também acontece esta sociabilização pautada pela convivibilidade.

Assim, o espaço multifuncional no âmbito do espaço coletivo é utilizado para as brincadeiras


de crianças, cuidar das roupas (lavar, estender e quarar), fazer as unhas, cuidar dos cabelos
(trançar, cortar), fazer pequenos serviços domésticos como pintar uma prateleira, consertar
um fogão ou lavar um carro, como é no Largo da Travessa Assis. Estes espaços surgem de
negociações e acordos entre vizinhos no momento em que constroem suas casas, cedendo
e ganhando espaços, sendo que a maior parte deles é de domínio da comunidade local,
sobressaindo o sentido do coletivo.

Enfim, através destas experiências urbanas de populações negras, apresentamos uma


leitura da configuração urbana e uma análise do urbano, a partir das práticas, histórias e
sentidos do ‘vivido’ de moradores do bairro do Engenho Velho da Federação.

Observamos em um dia de domingo a Avenida Parente, como ilustra a Figura 101, a


calçada da rua, local de passagem, que se converte também como lugar do encontro, do
bate papo, do comer e beber, do cumprimentar e brincar com quem passa, sendo assim o
espaço público apropriado pelos moradores. Na Figura 102, tem-se outra experiência na
Lavagem da Rua Manoel Bonfim, com a força do lúdico, da música, da dança, das
brincadeiras, da festa.

261
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Figura 101 - Avenida Parente


Fonte: Foto da Autora (Ano: 2012)

Figura 102 - Lavagem Manoel Bonfim


Fonte: Foto da Autora (Ano: 2013)

E nesta apropriação que não é só do espaço público, mas que é também apropriar-se do
próprio jeito negro de ser e que constitui uma forma de fazer cidade, é o que
consideramos a vivência plena do urbano, na sua diversidade.

262
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

CONCLUSÕES

Bairro Negro e Forma Urbana Negra: Produção de Conhecimento e Orientação às Políticas Públicas

Nossa inspiração acadêmica para esta tese partiu do princípio de que há um “jeito negro”
de fazer cidade.

Esta problemática da tese foi aos poucos sendo amadurecida e estabelecida pela
observação de nossa experiência com populações negras, sendo parte dela, e de
convivência em localidades de culturas negras. A partir de trajetórias sociais, culturais e
políticas, evidenciamos nesta tese formas próprias de apropriação e constituição de
espaços urbanos. Em nossa observação, de forma sistemática, verificamos um jeito negro
de ser, de estar e de fazer a cidade. Mesmo sob as imposições da cultura tida por
dominante, há um protagonismo histórico e cultural de populações negras que se dá
através de formas de produção e apropriação da cidade, expressando seu próprio processo
de criação e recriação, incorporando estratégias de lutas de resistência cotidianas.

Sob intervenções urbanas e tendências à estetização da experiência coletiva impostas


pela ação dominante, a permanência destas culturas negras possibilita a visualização de
suas formas de expressão, das vivências do cotidiano, das identidades e práticas, que se
impõem à manipulação da experiência urbana, visualização esta que também é declarada
pelos conflitos sociais.

Enquanto geradoras de formas urbanas, as culturas negras estiveram invisibilizad as nos


estudos urbanísticos. Para evidenciá-las neste campo do conhecimento do urbanismo,
pesquisamos, desenvolvemos e apresentamos nesta tese, como parte do resultado, um
reposicionamento do fazer científico a partir do conhecimento das culturas afro-brasileiras,
resultando em uma novidade nos estudos urbanos. O desafio foi compor uma base
epistemológica diferenciada para encontrarmos esta forma urbana.

Ao valorizar as práticas enquanto parte de conteúdos culturais, buscamos uma orientação


diferente ao que o urbanismo se propõe, enquanto campo de conhecimento, ao disciplinar a
vida em cidade, cumprindo uma lógica de uma ciência voltada para o controle político e para
favorecer a produção capitalista e higienista, impondo padronizações técnicas espaciais e
novas formas de viver artificiais e abstratas, como já nos referimos anteriormente.

A partir das referências sociais e culturais do bairro negro, podemos afirmar que a ciência
pode ser construída a partir da vida das pessoas e de suas realidades. A partir de seus
particulares contextos de vida, de relações de existência e sobrevivência, pessoas e grupos
geram conhecimentos, sob diversas condições materiais e históricas, cobrindo as lacunas
da vida cotidiana, através de práticas criadoras e inventivas.
263
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Nossa preocupação, enquanto pesquisadora e cidadã, é pensar o uso da cidade como


efetivação de práticas concretas cotidianas, derivadas de práticas culturais, no caso culturas
negras, partindo do conteúdo gerador de forma, tendo sido este, portanto, o viés de
propulsão para o desenvolvimento da pesquisa.

Deste modo, nosso campo referencial das culturas negras foi a cidade de Salvador, a
mais negra das cidades brasileiras, com alta concentração populacional de pessoas
negras e da contribuição destas pessoas na formação histórica da cidade, impregnando-a
intensamente com a dinâmica das culturas negras.

A pesquisa se concentrou num dos bairros mais antigos da cidade. Tivemos o bairro do
Engenho Velho da Federação como panorama para nossa interpretação do urbano.
Salientamos que esta tese, como parte de pesquisa científica, é apenas um recorte
parcial do bairro, naqueles elementos que nos serviram para comprovação da hipótese
proposta. Não tivemos e não temos a pretensão de resolver todos os aspectos da
complexidade que é a totalidade do bairro, nas suas relações internas e externas.
Consideramos que a plenitude do conhecimento e da compreensão dos significados da
vida deste local pertence apenas aos moradores, nas suas múltiplas gerações, sobre os
quais os meios científicos incorrem em limitações.

No início da pesquisa, foi nossa proposta nesta tese, através de um estudo empírico-
conceitual, identificar elementos da cultura negra que caracterizem o bairro negro e que
servissem para conceituar uma forma urbana negra. Através do bairro do Engenho Velho
da Federação, o fizemos. Concluímos que este bairro negro é um espaço urbano fundado
em torno de referências culturais de populações negras e, que no caso desta pesquisa, o
bairro negro tem como base de sua construção física e material, nos seus usos e sentidos,
a cultura dos terreiros de candomblé, correlacionada à história do bairro, transmitidas pelas
percepções e ideias dos moradores demonstradas nos seus depoimentos e ações.

Como identificamos o bairro negro devido à história social, cultural, política e econômica
no contexto da cidade, tendo como principal enfoque o eixo as culturas negras no campo
das africanidades e afrodescendências, ficou estabelecido uma forma urbana negra como
uma das contribuições desta pesquisa. Uma vez concluída a existência do bairro negro e
deduzida uma forma urbana negra, então também podemos afirmar que podemos ter
outras formas urbanas, diversas. Com este estudo consideramos que a cidade é um
conjunto complexo, cuja compreensão depende de várias categorias sem explicações
únicas, por exemplo, a cor da pele dos moradores ou as relações de renda. A explicação
dos bairros e das cidades depende de múltiplas possibilidades conceituais e teóricas.
Pensamos que são hipóteses a serem pensadas.

264
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

É parte do processo desta pesquisa evidenciar nossa opção intelectual e política. Para
Lencioni (2008), os conceitos utilizados e construídos se referem a um corpo teórico: “ a
pesquisa exige, permanentemente, escolhas e pesquisar significa viver opções ” (p. 120).
O que é importante no conhecimento é a coerência com as referências assumidas.

Deste modo, estabelecemos uma leitura de cidade coerente com as nossas referências
culturais negras. E, assim, nos posicionamos nesta pesquisa em produzir um
conhecimento científico a partir do conhecimento diaspórico africano, incluindo as
culturas negras de bairros negros nas reflexões e estudos da Arquitetura e do Urbanismo.
Realizamos esta tarefa tomando conceitos e ideias de Sodré, Cunha Junior, Goodwin,
entre outros, levando a cabo a explicitação do bairro negro e da forma urbana negra.

Assim, como propõe Edgard Morin (2007), a partir de um “novo” posicionamento do


indivíduo diante da realidade e, portanto, uma nova forma de conhecimento, buscamos
entender a cidade, bem como o bairro negro, pela perspectiva da diversidade das
culturas.

Nossas dificuldades nos processos de pesquisa, nas discussões sobre a temática com os
colegas e na escrita da tese perpassaram pela novidade e pelo enfrentamento à
resistência desta temática nos estudos urbanos. As mudanças de paradigmas e conceitos
na realização da ciência sempre enfrentam dificuldades de aceitação e de compreensão
pelos corpos científicos, muitas vezes conformados por ideologias que, segundo Cunha
Junior (2008a), realizam processos de dominação sobre a ciência e eliminam o seu
caráter de abertura a novas proposições.

O pensamento de John Maynard Keynes, em que “o difícil não é aceitar ideias novas, mas
escapar das velhas”, está neste âmbito da epistemologia das ciências, em que ao buscar
novas análises interpretativas da realidade, tem que se confrontar, a todo tempo, ao que
está estabelecido como verdade.

Devido à novidade da temática, tivemos poucas referências bibliográficas disponíveis. No


entanto, esta dificuldade, no nosso entender, foi também uma possibilidade de enriquecer
a pesquisa, na qual utilizamos conhecimentos de outras áreas, para além da Arquitetura e
Urbanismo, absorvendo múltiplos aspectos de visibilidade da realidade, como tal são as
pesquisas interdisciplinares.

A pesquisa empírica junto ao bairro do Engenho Velho da Federação e adjacências e


com os moradores, através de conversas e entrevistas, foi, portanto, imprescindível, sem
a qual não poderíamos ter obtido avanço na produção de conhecimento, para além do
conhecimento existente na vida dos moradores e na realidade do bairro, enquanto
sujeitos sociais, com forma própria de pensar o mundo e de atuar sobre ele.
265
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Diferente do estágio que o bairro se apresenta na sua paisagem urbana atual, pudemos fazer
deduções sobre os vários períodos históricos do bairro e nele encontramos, há algumas
décadas, o ‘tempo áureo’ que aparece nas palavras de seus moradores, quando o lúdico
nestas comunidades negras, apontado por Muniz Sodré, compensava até mesmo a ‘vida dura’,
desde os exíguos recursos financeiros das famílias às deficiências da infraestrutura urbana do
bairro. As dificuldades sempre foram muitas, como afirma Dona Emerita: “o povo comia fogo”.

Vemos no bairro do Engenho Velho da Federação uma constatação da sag a de vida de


muitas pessoas que ali puderam realizar seus projetos de vida, a partir de suas iniciativas
individuais e coletivas, consolidando uma eficácia social dada pelo êxito de conseguirem
manter suas famílias, construírem suas casas, criarem e educarem bem seus filhos.
Neste bairro detectamos que a pobreza material se mostrou característica. No entanto, a
riqueza das histórias de vida que encontramos nos depoimentos destes entrevistados não
provém da relação com esta pobreza e sim com seus valores éticos e morais. A saga
histórica destas pessoas está na realização de desejos de uma determinada época,
dentro de um contexto social. Existe uma base cultural que delineia estes desejos, dada
pela história, pela cultura, pela proximidade e pela relação com o lugar. Confirmamos isso
na fala de Dona Joana:

Eu hoje conto a minha história com a maior felicidade. Eu tenho o maior


orgulho de dizer que meu pai, que é o patrono da minha escola, foi um
varredor de rua e que minha mãe foi lavadeira.

E nestas histórias de êxito, destacamos que este é um bairro que conta com a força das
mulheres negras, mães, chefes de família, lideranças comunitárias, religiosas,
professoras, com vontade para vencer suas dificuldades, como Dona Joana, Valdina
Pinto, Dona Maria Angélica, Dona Paula, Dona Joana, Mãe Valnízia, Rita Pinheiro, entre
tantas outras não tão conhecidas, são mulheres que superaram suas dificuldades,
atuando cada uma a seu modo, e obtiveram destaque em sua comunidade e até mesmo
com alcance internacional.

Os moradores antigos que foram entrevistados contam, com vivacidade, histórias do bairro
e relembram como tudo era diferente e fazia sentido! Os adjutórios, o trabalho árduo, a
conversa entre os vizinhos, o carnaval de rua, as rezas e festas de Santo Antônio, as
noites de São João, os sambas juninos, as festas e cortejos dos terreiros, os carurus...

Assim, ressaltamos que a forma urbana negra no bairro negro do Engenho Velho da
Federação é datada, isto é, consideramos que houve um ápice, no qual este bairro viveu
o momento de sua maior força enquanto suporte desta forma urbana, que vislumbramos
entre os anos de 1950 e 1980. Makota Valdina rememora esse período com nostalgia:

266
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Eu considero um privilégio ter nascido aqui e ter vivido minha infância e


juventude num tempo em que muitos dos valores de comunidades africanas
ainda existiam aqui. Quem vem morar no Engenho Velho hoje, as crianças,
os jovens de hoje não têm a mínima ideia de como era essa comunidade
antes. Era mesmo uma comunidade, com seu jeito próprio de viver, de
educar crianças e jovens, de realizar coisas coletivamente, de se entre
ajudar (Makota Valdina apud Nação Griô, 2008).

As condições de menor população e menor densidade construtiva, nas quais os moradores


cultivavam uma vivência coletiva mais intensa, possibilitaram que as relações sociais e
espaciais no bairro constituíssem esta forma urbana negra na sua plenitude, visibilizada e
conceituada aqui pela força mítico-religiosa do terreiro, que, através da energia vital como
força de vida, de poder de transformação e realização, ‘realizou’ o bairro.

Um bairro que se realizou pela (auto)construção coletiva pelos moradores, na acepção do


vivido, do sentido, do experimentado, onde suas subjetividades são cultivadas. Não
temos aqui um bairro surgido pelo planejamento urbano, no âmbito do concebido.

Reconhecemos, no entanto, a perda desta força do urbano (e de sua invenção de seus


momentos e seus atos, seu espaço e seu tempo, suas obras) por conta da penetração e
imposição do individualismo, do consumismo exacerbado e de maior violência -
atualmente dada pela ação do narcotráfico e pela atuação e intolerância das igrejas
neopentecostais - tendo, por consequência, menor atuação cultural dos terreiros na vida
cotidiana dos moradores do bairro.

Apontamos para o reconhecimento de uma estética negra na produção da cidade, que


precisa ser também reconhecida pelo planejamento urbano. É necessário desenvolver
metodologias para ler a estética e as qualidades dos bairros negros imersos na imensa
cidade “invisível” que se autoconstrói e se reconstrói no dia a dia, às margens das
instâncias oficiais de planejamento da cidade.

A pesquisa revelou uma forma urbana negra constituída no bairro do Engenho Velho da
Federação, compartilhando referências culturais afro-brasileiras. Outros bairros negros,
no Brasil afora, poderão também oferecer outras formas urbanas negras, reflexo da
diversidade das culturas negras no Brasil. E aqui insistimos que elas existem e se
inscrevem como parte da diversidade no espaço urbano brasileiro.

A partir da constatação desta tese, paira como proposta para trabalhos futuros novas
pesquisas em torno de outros bairros negros e formas urbanas negras, tanto no espaço
brasileiro como no exterior, evidenciando as produções urbanas negras, promovendo a
produção de novos discursos baseados na diversidade do urbano.

267
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Ao afirmar a possibilidade de existência de uma forma urbana negra, acreditamos oferecer


uma inédita e inicial contribuição: pode-se pensar em políticas públicas, sejam
habitacionais, educacionais, sobretudo em meio acadêmico na área da Arquitetura e do
Urbanismo, a fim de que as culturas negras possam, cada vez mais, se instrumentalizar
enquanto direito. Como nos aponta Luz (2012), valorizar a diversidade simbólica equivale
a utilizar “os recursos técnicos e científicos de dentro para fora, constituindo uma voz
autônoma, política e culturalmente diversa” (p. 15). Afinal, uma cultura dominante se
impõe a outra cultura, no nosso caso, culturas negras, por esta não oferecer argumentos
sistematizados, como meio de argumentação e proposição.

Nesse sentido, cabe como recomendação desta tese que as políticas públicas
administrativas e de planejamento deveriam ser revistas com enfoque nesta multiplicidade.
Pontuamos que para se trabalhar urbanisticamente em bairros identificados como bairros
negros deve-se administrar as políticas públicas considerando as formas urbanas negras:
seria um afro-urbano, nosso modo de intervenção urbanística para os bairros negros.

A forma urbana negra poderá ser, enquanto contribuição ao estudo da forma urbana a
partir da incorporação de vieses culturais das culturas negras, uma referência conceitual
para leituras metodológicas em demais bairros negros, como orientação para formulação
de políticas públicas. Ao incorporar a interpretação das culturas negras, escapamos à
tendência em tomar exclusivamente as relações de renda, o perfil econômico ou o poder
de consumo como motor das transformações das sociedades.

A identificação dos bairros negros na dimensão das políticas públicas urbanas é mais um
instrumento que pode ser revertido para orientação de políticas afirmativas, sendo este
reconhecimento uma forma de compensação às populações negras, como valorização de
suas histórias de resistência, convertendo-se em prioridade para as políticas públicas.

No âmbito da legislação brasileira, tais medidas tomaram força e reconhecimento político


em relação ao Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH - com o Decreto Federal
Nº. 4.229/200277, revogado pelo Decreto 7.037/200978, que aponta dentre as diretrizes, a
Diretriz 9, de Combate às Desigualdades Estruturais, tendo como Objetivo Estratégico I -
Igualdade e proteção dos direitos das populações negras, dos quais destacamos os itens:

h) Fomentar programas de valorização do patrimônio cultural das populações negras;


i) Assegurar o resgate da memória das populações negras, mediante a publicação da história
de resistência e resgate de tradições das populações das diásporas.

77
Dentre as Propostas de Ações Governamentais contidas neste decreto a de Nº 203: “Promover o mapeamento
e tombamento dos sítios e documentos detentores de reminiscências históricas, bem como a proteção das
manifestações culturais afro-brasileiras”.
78
Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7037.htm>. Acesso em:
22 abr. 2013.
268
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Ao priorizar ações de políticas públicas no bairro negro, observemos que os benefícios


não se referem apenas aos segmentos populacionais que se declarem negros, mas
atingiriam aqueles que compartilham de referências culturais negras, com amplo alcance
na sociedade brasileira, como um todo, favorecendo o desenvolvimento social e
econômico do país.

As políticas habitacionais no Brasil só utilizam os critérios de renda, perpassando pela


dimensão do financiamento, visando lucro para as agências estatais financiadoras ( !), aos
moldes do sentido do habitat lefebvriano, sem considerar as relações sociais e culturais
que interferem no habitar.

O que queremos ressaltar é que estes bairros produzidos pelos moradores permaneçam
no âmbito do habitar, com seu modo de vida próprio, com infraestrutura urbana de boa
qualidade.

As políticas públicas habitacionais tiveram um avanço ao ampliar o direito à habitação


para demais serviços de infraestrutura urbana. É importante destacar que houve uma
evolução política ao incorporar o conceito de moradia digna (PEHIS, 2006) nas políticas
públicas urbanas como ampliação aos direitos dos cidadãos, vinculando a habitação aos
demais serviços urbanos, como infraestrutura urbana (saneamento básico, calçamento,
iluminação pública, coleta de lixo e outros), creches e escolas, postos de saúde,
segurança, meios de transporte, centros culturais, ginásios esportivos, áreas de lazer,
dentre outros; é o morar institucional, o habitat lefebvriano.

No entanto, o sentido de morar defendido por nós, nos bairros negros, indo além das
necessidades gerais básicas da moradia digna, não é compreendido pelas políticas
públicas habitacionais. Não basta a unidade habitacional no contexto da moradia digna,
uma vez que, ao identificarmos o bairro negro, encontramos uma série de relações
culturais e espaciais que se constituíram ao longo de gerações processadas com o lugar.

E esta série de relações culturais e espaciais que constituem a forma urbana negra, que
está relacionada ao conteúdo, aos usos e sentidos estabelecidos numa clara resistência
de sobrevivência e que, portanto, se legitima nas novas necessidades e visões
socioculturais que surgem.

Lefebvre (1983) reconhece que a lógica formal é válida em certos limites, pois nesta
lógica são tomadas essências fixas, congeladas, para sua compreensão. Lefebvre
mostra, por outro lado, a inadequação da aplicação de princípios lógico-formais na
compreensão de uma realidade em contínuo movimento.

269
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

Ao desenvolver o processo de construção conceitual nesta tese sobre a forma urbana


negra do Engenho Velho da Federação, corremos o risco de, exatamente, congelar algo
que um dia foi, mas que permanece em constante mudança, em adaptação às novas
demandas e à dinâmica que é próprio da cultura.

O que nos interessa salientar é a diversidade do urbano, que aqui é dada pela forma
urbana negra. A forma urbana se apresenta como diversidade porque seu conteúdo é
proveniente da lógica da cultura e das demais condições econômicas, sociais e políticas
de um determinado lugar. Sua forma é operacionalizada segundo seu conteúdo e sua
dimensão vivida.

A demonstração da forma urbana negra se fez nesta tese através de relações sociais
marcadas pela convivibilidade que, por sua vez, mantém referências ancestrais entre as
pessoas, no caso, moradores do bairro, que se relacionam entre si com vistas às gerações
passadas e futuras, entre familiares e vizinhança, preservando a valorização dos
ancestrais comuns, como forma de continuidade da vida familiar e comunitária, através da
manutenção e ampliação da energia vital. Parte deste conteúdo determina a forma dos
assentamentos habitacionais, que nós chamamos de assentamentos familiares, como
maneira de concretizar uma demanda sócio-cultural. Neste âmbito, também compôs esta
forma urbana negra a definição de caminhos, a caminhalidade, surgindo por dentro dos
quintais dos moradores, possível porque também está na acepção da convivência quase
familiar entre vizinhos, em função de uma vontade de que a vida flua, com toda sua
potencialidade. A multifuncionalidade representa a flexibilidade dos espaços e dos tempos,
do trabalho ao lúdico. E presente em todas estas dimensões da forma, lapidadas pelos
conteúdos, está a afro-consciência espacial, como fonte de equilíbrio e de força vital.

270
Maria Estela Rocha Ramos - Texto Defesa (Versão Provisória)

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