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Marginalidade: Do Mito a Realidade nas Favelas do


Rio de Janeiro 1969-2002
Janice E. Perlman.
Professora de Estudos Comparativos Urbanos/Universidade Trinity.
Coordenadora Geral do Projetos Megacidades/Rio de Janeiro

Palavras-chave
pobreza, marginalidade, políticas públicas.

Histórico do Estudo
Este trabalho corresponde a um estudo longitudinal sobre pobreza e mobili-
dade social no Rio de Janeiro. Continuidade de um estudo realizado por mim
em 1968/69, a análise do estudo atual tenta, além de compreender os fatores
que restringem ou promovem a mobilidade social nas favelas cariocas, avaliar
também o impacto de políticas públicas sobre a pobreza urbana no Rio de Janeiro.
Em 1968, durante minha pesquisa de doutorado, morei e realizei pes-
quisa em favelas do Rio de Janeiro, entrevistando 750 residentes das comuni-
dades de Catacumba1 (uma favela na Zona Sul, que foi posteriormente re-
movida para conjuntos habitacionais distantes), Nova Brasília (uma favela na
área industrial da Zona Norte) e oito comunidades de baixa renda em Duque
de Caxias, um município periférico localizado na Baixada Fluminense. A minha
proposta. era reunir informações sobre as trajetórias de vida, estratégias de
sobrevivência, sistemas de crenças e comportamento dos moradores destes
locais. Este trabalho resultou no livro O mito da marginalidade: favelas e
política no Rio de Janeiro2, publicado em inglês e português, tendo recebido o
prêmio C. Wright Mills em 1976. O livro argumenta que os "mitos" existentes
sobre marginalidade social, cultural, política e econômica eram “empirica-
mente falsos, analiticamente enganosos e devastadores quanto às suas impli-
cações em políticas públicas direcionadas a favelas”. Conclui que os favelados
não eram “economicamente ou politicamente marginais, mas explorados e re-
primidos; não eram socialmente ou culturalmente marginais, mas estigmati-
zados e excluídos de um sistema social fechado”. A pesquisa serviu como
crítica aos estereótipos predominantes sobre migrantes e moradores de fave-
las que fomentaram as políticas de erradicação, desabonando pressuposições
como a de que favelados eram "elementos marginais" e representavam uma
ameaça à estabilidade política.
Em cada comunidade estudada foram escolhidos aleatoriamente e entre-
vistados 200 homens e mulheres, entre 16 e 65 anos, e mais 50 líderes
comunitários, escolhidos por suas posições ou reputação dentro da comuni-
dade. A Figura 1 aponta a localização das três comunidades e dos atuais con-
juntos habitacionais Quitungo, Guaporé e Cidade de Deus, para onde foram
deslocados os moradores de Catacumba.

1 A Favela de Catacumba foi erradicada em 1970, seus residentes foram em sua maioria transferidos para os conjuntos
habitacionais de Quitungo e Guaporé, localizados na Penha, e Cidade de Deus, em Jacarepaguá.
2
PERLMAN, Janice E. - O mito da marginalidade. RJ, Paz e Terra, 1981.

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Figura 1. Localização das Favelas no Rio de Janeiro.

Fonte: Prourb – Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. www.fau.ufrj.br/prourb/index2.htm.

Conhecer as diversas realidades existentes dentro das comunidades


populares da cidade do Rio de Janeiro se faz primordial para que se produzam
políticas sociais adequadas aos interesses concretos dessa população. Além
disso, o conhecimento acumulado sobre favelas e comunidades pobres serve
como instrumento de organização e luta para os grupos sociais residentes
nessas áreas, fortalecendo o poder de negociação desses grupos frente ao po-
der público.
Foi com essa perspectiva que a Pesquisa a “Dinâmica da Pobreza Urbana
e Implicações para Políticas Públicas” buscou compartilhar seus resultados
anteriores com membros das comunidades estudadas, bem como obter deles
novas informações que pudessem orientar melhor a análise desses resultados
com planejamento de novas abordagens para o estudo. Assim como no estudo
original, essa nova etapa da pesquisa foi concebida a partir de métodos quan-
titativos e qualitativos sendo dividida em três fases conforme descritas a seguir:

Fase I
A Fase I do estudo, conduzida entre Março de 1998 e Abril de 1999, foi reali-
zada para testar a possibilidade de relocalização dos participantes do estudo
original realizado em 1969. Esta primeira fase, financiada pelo Banco Mundial,
além de ter desenvolvido as bases metodológicas e conceituais para as fases
seguintes, forneceu novas informações sobre os entrevistados de 1969. A
primeira fase também envolveu a realização de 65 entrevistas abertas e em
profundidade nas comunidades originais, e a reorganização da base de dados
e da história de vida dos 750 entrevistados em 1968-1969. Já nessa primeira
fase, aproximadamente 200 participantes ou familiares foram identificados
como possíveis entrevistados de 1968.

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Fase II
A Fase II do estudo, que começou em Junho de 2000, desenvolveu-se com a
aplicação de uma versão revisada do questionário de 1969 tanto aos entre-
vistados originais relocalizados quanto aos membros de suas famílias. Parale-
lamente à aplicação dos questionários foi efetuado um trabalho minucioso de
investigação e relocalização dos entrevistados originais (EOs)3. O trabalho de
relocalização é ininterrupto e atravessará todas as fases da pesquisa. Já foram
realizadas 271 entrevistas com os participantes originais (EOs), ou com seus
parentes (quando o EO é falecido), e 168 entrevistas com os seus filhos (EDs).
Os filhos dos entrevistados originais foram selecionados aleatoriamente a par-
tir de um grupo de 900 descendentes.

Fase III
A Fase III inclui o desenho de novas amostras aleatórias não só das comuni-
dades estudadas como também de outras três comunidades que tinham em
1968 o mesmo perfil das três comunidades aqui mencionadas. O objetivo des-
ta fase é fazer um estudo comparativo entre as comunidades de favelas do Rio
de Janeiro que foram alvo de políticas públicas diferentes ou até mesmo
opostas.

Contexto: Crescimento das Favelas no Rio de Janeiro.


O estudo sobre as políticas públicas aplicadas nas favelas tem sido marcado
por uma perspectiva que pouco considera ou desconsidera a história e as de-
mandas de cada comunidade, as práticas cotidianas utilizadas na resolução
dos conflitos e os diversos grupos que as compõem. As favelas costumam ser
observadas a partir de parâmetros definido pelos grupos sociais de maior po-
der econômico, político e cultural, e dessa forma, passam a ser caracterizadas
pelo que, aparentemente, elas não teriam em comum, em termos materiais
e/ou culturais com a metrópole. A definição dos espaços populares pela nega-
ção tem sido um elemento recorrente desde a instituição dos primeiros espa-
ços habitados pelas populações de baixa renda nas cidades brasileiras.
Apesar dos esforços públicos ao longo das três últimas décadas —
primeiro para erradicar as favelas, depois para melhorá-las e integrá-las à ci-
dade — o número de favelas e o número de pessoas vivendo nelas continuam
a crescer. De acordo com o Censo 2000 do IBGE, em 1970 existiam aproxi-
madamente 300 favelas no Rio; agora elas são 513 somente na área do mu-
nicípio do Rio. O Instituto Pereira Passos encontra um número ainda mais alto:
704 favelas, sem incluir os loteamentos clandestinos.
Em 1968 existiam aproximadamente três milhões de pessoas vivendo no
Rio e em torno de um milhão dessas viviam em favelas ou outras formas de
habitação irregular. Agora existem em torno de 12 milhões de pessoas na
Região Metropolitana do Rio de Janeiro e, de acordo com organizações sociais

3 Com o objetivo de distinguir os entrevistados de 1969 dos atuais (filhos e outros descendentes) utilizadas as seguintes
codificações: EOs - entrevistados de 1969 que se encontram vivos. Entre aqueles que já faleceram, a história de vida foi
reconstruída por parentes; EDs – entrevistados descendentes, filhos ou netos dos entrevistados originais.

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como a FAFERJ (Federação das Associações de Moradores de Favelas do


Estado do Rio de Janeiro), aproximadamente quatro milhões de pessoas vivem
em favelas ou outras formas de habitação irregular. Ainda com relação ao
número de habitantes de favelas, os dados oficiais do IBGE apontam para um
crescimento de aproximadamente 300 mil moradores em 1960 e para mais de
um milhão em 2000.
Figura 2
Evolução do crescimento das Favelas no Rio de Janeiro (1920-1990).

Fonte: Prourb – Programa de pós-graduação em Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. www.fau.ufrj.br/prourb/index2.htm.

Como mostrado na Fig. 2, de 1920 até 1990 as favelas não só cresceram


e se espalharam ao longo da cidade, como também formaram grandes com-
plexos ao longo de áreas adjacentes, alguns deles do tamanho de algumas
cidades brasileiras. As maiores, Rocinha, Jacarezinho, Complexo do Alemão e
Complexo da Maré, possuem juntas uma população de mais de meio milhão
de habitantes.
Vale aqui ressaltar que entre 1950 e 2000 a taxa de crescimento da
população moradora de favelas excedeu enormemente à taxa de crescimento
do resto da população da cidade. Como visto nas tabelas 1 e 2, o maior cres-
cimento das favelas ocorreu na década de 1950 (no período de pós-guerra
quando a migração urbana começou) e na década de 1960, época do estudo
original. A taxa de crescimento das favelas sempre excedeu em muito a taxa
de crescimento da cidade do Rio de Janeiro como um todo, exceto nos anos
70, quando a política de remoção maciça de favelas erradicou sessenta e duas
favelas e deslocaram aproximadamente 17 mil famílias e algo em torno de 100
mil pessoas.4
Entre 1980 e 1990, a taxa de crescimento da cidade diminuiu para 7,6%
enquanto a taxa de crescimento de favelas aumentou de 11.4% para 40,5%;
e entre 1990 e 2000 a população da cidade cresceu 6.9% ao ano enquanto as

4
Informações oficiais da Secretaria de Planejamento e Coordenação Geral do Estado da Guanabara (1973); Davidovich,
1997

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favelas cresciam em 24%. A porcentagem da população do Rio morando em


favelas, de acordo com as estatísticas oficiais apresentadas, é agora a mais
alta entre as cidades brasileiras. (Tabela 1)

Tabela 1 –Taxa de Crescimento de Favelas no Rio de Janeiro, 1950-2000.

III. Pop. de Favelas Mun. Pop. Rio a/b (%) % de cresc. % de cresc.
(a) (b) Pop. Favelas Pop.Rio

1950 169.305 2.337.451 7,24% - -


1960 337.412 3.307.163 10,20% 99,3% 41,5%

1970 563.970 4.251.918 13,26% 67,1% 28,6%

1980 628.170 5.093.232 12,33% 11,4% 19,8%

1990 882.483 5.480.778 16,10% 40,5% 7,6%

2000 1.092.958 5.857.879 18,66% 23,9% 6,9%

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

A Tabela 2 mostra que o crescimento não está concentrado apenas na


região mais central da cidade. No período de 1980 a 1992, por exemplo, o
percentual encontrado nas zonas sul e norte foram de 21% e 14,7% respecti-
vamente; enquanto que na zona oeste, o número de favelas aumentou em
108% no mesmo período.
Tabela 2 - Taxa de Crescimento por Zona de 1980 a 1992

Zonas Numero de Favelas População das Favelas

1980 1992 Taxa 1980 1992 Taxa cresc.


cresc.

Sul 25 26 4% 65,596 79,651 21%

Norte 22 25 14% 49,042 55,768 14%

Oeste 86 195 127% 94,002 195,546 108%

Suburbio 194 270 39% 416,307 532,340 28%

Central 45 57 27% 92,119 99,488 8%

TOTAL 372 573 54% 717,066 962,793 34%

Fonte: IPLAN/Rio.

A questão que esses dados suscitam é: já que o crescimento da cidade


vem se nivelando desde 1950, e o crescimento das favelas tem continuado em
níveis consideráveis, de onde estão vindo os novos moradores de favelas? É
preciso explorar em que extensão esse crescimento se deve à reprodução
natural (i.e. maior taxa de natalidade entre os moradores de favelas do que
entre o restante da população do Rio de Janeiro); imigração de fora da cidade
para as favelas com correspondente êxodo de não favelados para fora da ci-
dade; ou empobrecimento e a conseqüente favelização de parte da população
da cidade que não pode mais se manter no mercado formal de habitação.

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A Metamorfose da Marginalidade.
Na literatura sobre modernização, migrantes vindos do campo para a cidade
eram vistos como mal-adaptados à vida moderna na cidade, e assim respon-
sáveis por sua própria pobreza e fracasso em serem absorvidos pelos merca-
dos formais de trabalho e moradia5. Os assentamentos ilegais eram vistos
como "feridas cancerígenas no belo corpo da cidade", antros de crime, violên-
cia, prostituição e destruição social. Era amplamente pensado que os mora-
dores daquelas cabanas precárias eram eles mesmos precários, e que ao com-
pararem suas condições de vida com a opulência ao redor eles se tornariam
revolucionários raivosos. Esse era o pesadelo/medo da direita e o
sonho/esperança da esquerda. Era muito disseminada a idéia de que as fave-
las não eram parte da cidade "normal". Era o senso comum da maioria da
população, legitimada por cientistas sociais e usada para justificar políticas
públicas de remoção. Dessa forma a marginalidade era uma força material as-
sim como um conceito ideológico e uma descrição da realidade social6.
A partir dos anos 60 muitos escritores desafiaram essa "sabedoria"
acadêmica. Entre esses se incluem Alejandro Portes, Jose Nun, Anibal Quijano,
Manuel Castells, Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso7. Estudos
empíricos em cidades latino-americanas incluindo o Rio de Janeiro, Salvador,
São Paulo, Santiago, Buenos Aires, Lima, Bogotá, Cidade do México e Mon-
terrey serviram para refutar as proposições sobre marginalidade, e os es-
tereótipos equivocados ao redor da pobreza urbana8. Mangin e Morse escre-

5 A. Inkeles, “The Modernization of Man”, In M. Weiner, ed., Modernization: The Dynamics of Growth (New York: Basic
Books, 1966); D. Lerner, The Passing of Traditional Society (Glencoe, Ill. The Free Press, 1964); E. Hagen, On the Theory
of Social Change (Homewood, Ill: Dorsey Press, 1962); L. Pye, Aspects of Political Development (Boston, Mass: Little,
Brown and Co. 1966); D. McClelland, The Achievement Motive (New York: Appleton-Century-Crofts, 1953); and M. Millikan
and D. Blackmer, The Emerging Nations (Boston, Mass.: Little, Brown and Co., 1961).
6 Even Franz Fanon, em The Wretched of the Earth, fala sobre o camponês desarraigado circulando sem rumo pela cidade
como uma fonte natural de atividade revolucionaria.
7 A. Portes, “The Urban Slum in Chile: Types and Correlates”,Ekistics 202 (September 1972); A. Portes, “Rationality in the
Slum: An Essay in Interpretative Sociology,” Comparative Studies in Society and History 14, no. 3 (1972), 268-86; J. Nun,
“Superpoblación Relativa, Ejército Industral de Reserva y Masa Marginal,” Revista Latinoamericana de Sociología 69, no. 2
(1969); J. Nun, “Marginalidad y Otras Cuestiones,” Revista Latinoamericana de Ciencia Sociales (1972), 97-129; A.
Quijano, “Notas Sobre el Concepto da Marginalidad Social” (Santiago, Chile: CEPAL/ECLA (Economic Commission for Latin
America) Report, División de Asuntos Sociales, October 1966A. Quijano, “Dependencia, Cambio Social y Urbanización en
Latinoamerica,” (CEPAL/ECLA (Economic Commission for Latin America) Report, Social Affairs Division, 1967); A. Quijano,
“La Formación de un Universo Marginal en las Ciudades de America Latina,” in M. Castells, ed., Imperialismo y Urbanización
en America Latina (Barcelona: Gustavo Gili, 1973); M. Castells, “La Nueva Estructura de la Dependencia y los Procesos
Políticos de Cambio Social en America Latina,” paper presented to X Congreso Interamericano de Planificación, Panamá,
September 1974; M. Castells, “Clase, Estado y Marginalidad Urbana,” Estructura de Clase y Política Urbana en América
Latina (Buenos Aires: Ediciones SIAP, 1974); F. Fernandes, Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento (Rio de Janeiro:
Zahar, 1968); and F. Cardoso, “The Brazilian Political Model,” paper preparado para o Workshop on Brazilian Development,
Yale University, April 1971.
8 Para conhecer estudos sobre o Rio de Janeiro, ver A. Leeds and E. Leeds, “Brazil and the Myth of Urban Rurality: Urban
Experience, Work, and Values in ‘Squatments’ of Rio de Janeiro and Lima”, paper apresentado na Conferência de St.
Thomas, Novembro de 1967. Para estudos sobre Salvador e São Paulo, ver M. Berlinck, “Relações de Classe Numa
Sociedade Neocapitalista Dependente: Marginalidade e Poder em São Paulo” (São Paulo: mimeografado). Para estudos
sobre Santiago, ver Castells, “Clase, Estado y Marginalidad Urbana”; CIDU Report by the team on population sutdies
(Equipo de Estudios Poblacionales). “Reindicación Urbana y Lucha Política: Los Campamentos de Pobladores in Santiago de
Chile”, EURE 2, no. 6 (November 1972); e F. Kuznetzoff, “Housing Policies or Housing Politics: An Evaluation of the Chilean
Experience” (Berkeley, Calif.: Department of City and Regional Planning, University of California, 1974). Para trabalhos
sobre Buenos Aires, ver M. Marculis, “Migración y Marginalidad en la Sociedad Argentina,” Série SIAP 10 (Buenos Aires:
Paidos, 1968). Para trabalhos sobre Lima, ver J. Turner, “Four Autonomous Settlements in Lima, Peru”, paper apresentado
no Colóquio Latino Americano, Departamento de Sociologia, Brandeis University, Maio 1967. Para trabalhos sobre Bogata,
ver R. Cardona, “Los Asentiamentos Espontaneos de Vivienda”, in R. Cordona, ed., Las Migraciones Internas (Bogotá,
Columbia: ACOFAME, 1973). Para trabalhos sobre a Cidade do México, ver H. Munoz Garcia, O. Oliveira, e C. Stein,
“Categorías de Migrantes y Nativos y Algunas de sus Características Socio-económicas” (mimeografado, México:
Universidad Nacional, February 1971); e S. Eckstein, The Poverty of Revolution: The State and the Urban Poor in Mexico

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veram excelentes artigos sobre o assunto, que surgiu no meio da década de


60 e no início dos anos 70.
Esses trabalhos, incluindo o de minha autoria9, mostraram como o con-
ceito de "marginalidade" foi usado para culpar a vítima ("blame the victim")
nos discursos acadêmicos e das políticas públicas10. Nós demonstramos que
além de uma lógica e uma racionalidade nas atitudes e comportamentos, exis-
tiam também nas favelas da América Latina forças e valores que desmentiam
os estereótipos de déficits, deficiências, desorganização e patologias de todos
os tipos. Em O Mito da Marginalidade... foi mostrado ainda como o poder da
ideologia da marginalidade era tão forte no Brasil nos anos 70 que gerou uma
profecia auto-realizável: a política de remoção de favelas justificada pela
ideologia, perversamente criando a população marginalizada que pretendia
exterminar. A favela era uma solução extremamente funcional para muitos
dos problemas enfrentados por seus moradores, oferecendo acesso a trabalho
e serviços; uma comunidade relativamente unida, onde favores recíprocos
mitigavam as dificuldades; e acima de tudo, moradia de graça. Esse não era o
caso dos conjuntos habitacionais para onde foram mandados, onde eram
separados de suas redes de parentesco e amizade; distantes de seus traba-
lhos, escolas e hospitais; e onde eram cobrados pagamentos mensais além de
suas possibilidades11. Essa política aumentou o desemprego, acabando com
muitos dos pequenos serviços e “bicos” que os membros das famílias po-
deriam ter enquanto cuidavam de seus filhos, ou após a escola.
Em minha discussão final sobre Marginalidade e Pobreza Urbana explorei
isso em profundidade, contestando a validade dessas suposições que emba-
savam abordagens behavioristas, e mostrando a utilidade estrutural, funcional
e política dos mitos em relação às condições objetivas da pobreza e do desen-
volvimento dependente12.
O termo marginalidade não foi amplamente usado em meios acadêmicos
ou ativistas após os anos 70. Os anos 70 foram caracterizados pela descon-
strução das “teorias da marginalidade13”. Com a abertura democrática dos
anos 80, vozes de oposição se uniram e o discurso se orientou para os con-
ceitos de exclusão/inclusão social, desigualdade, injustiça e segregação
espacial. Esses estão ligados a questões de transparência, participação, de-
mocracia e cidadania. O conceito de exclusão foi além do dualismo econômico
e desemprego para uma questão de direitos e oportunidades de cidadania. Em
termos políticos, a resposta mais recente (pelo menos na cidade do Rio de Ja-
neiro) tem sido o Projeto Favela-Bairro, focado em melhorar a infra-estrutura

(Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1977). Para trabalhos sobre Monterrey, ver Balan, Browning, e Jelin “A
computerized approach to the processing and analysis of life stories obtained in sample surveys”. Behavioral science, 14,
n.2, 1969, p.105-120
9 PERLMAN, Janice E. - O mito da marginalidade ... op. cit
10 W. Ryan, Blaming the Victim (New York: Pantheon Books, 1971).
11 Eram cobrados por mês pagamentos no valor de 25% das rendas familiares dos moradores. O custo do transporte para
sair ou chegar aos conjuntos era tão alto que geralmente apenas um membro da família conseguia bancar a viagem e
continuar trabalhando, o que resultou em uma grande queda na renda familiar. Famílias que se atrasavam muito nos
pagamentos eram levadas para centros de triagem, abrigos ainda mais distantes do centro da cidade, em um local
chamado, ironicamente, de Paciência.
12 Perlman, The Myth of Marginality, 242-62
13 SILVEIRA, Caio. "Contribuições para a Agenda Social". In: Agenda de Desenvolvimento Humano e Sustentável para o
Brasil do Século XXII. Brasília, Fórum XXI/PNUD, 2000.

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urbana física das favelas como forma de integrar as favelas aos bairros vizi-
nhos. No entanto, é um projeto que não se direciona às questões de inserção
no mercado ou no Estado, ou em um modelo de desenvolvimento em termos gerais.
Ironicamente, no entanto, com exceção da década de 70, a palavra “mar-
ginal” na imprensa, na música popular e no vocabulário usual tem sido mais
comum agora do que em qualquer outra época, porém investida de novas
conotações. Ela agora vem sendo usada em referência a traficantes de drogas
e armas e bandidos. As manchetes diárias nos jornais gritam sobre a violência
entre bandidos ou marginais e a polícia. Cantores de rap e funk falam sobre
ser “marginal” como algo tipo bom/mau/difícil — quase como um orgulho ne-
gro, um chamado para a revolta. A classe média fala novamente sobre seu
medo da proximidade com as favelas e do som dos tiroteios quando policiais e
“gangues” bem armadas se confrontam.
Contudo, houve uma transformação positiva no uso do termo marginal.
Atualmente os moradores de favelas não são mais considerados marginais,
mas sim, as favelas são vistas como um território “controlado” por traficantes
que agora são definidos como “marginais”, a marginalidade ou “o movimento”.
Os moradores de favelas que tiveram seus espaços ocupados pelos trafi-
cantes de drogas (já que eram espaços desprotegidos e fáceis de se esconder)
agora são associados ao tráfico. Dentro da favela eles fazem a distinção, "nós
somos os trabalhadores e eles são o movimento". Porém, no Rio de Janeiro,
favelados são vistos tanto como reféns e vítimas de bandidos quanto como
seus cúmplices — e a mídia constantemente reforça isso. Ambos os es-
tereótipos estão na cobertura cotidiana feita pelo noticiário sobre favelados
sendo assassinados por policiais, expulsos de suas casas por traficantes (com
a cobertura policial), e queimando ônibus em protesto contra o assassinato
pela polícia de favelados supostamente ligados ao tráfico.
Nos últimos anos o conceito de marginalidade tem sido reinventado à luz
da persistência da pobreza nas cidades do Primeiro Mundo. Termos como
"classes baixas", "nova pobreza", "nova marginalidade" ou "marginalidade
avançada" têm sido usados para analisar populações excluídas em países de
capitalismo avançado, particularmente os "ghettos" negros nos Estados Unidos
e os estigmatizados bairros pobres (slums) da Europa. Wacquant aponta para
a contígua configuração de cor, classe e local no "ghetto" de Chicago, no
banlieue francês ou nas "inner cities" da Inglaterra e Holanda14.
Além dos efeitos da "marginalidade industrial" — na qual o desemprego
em massa leva a salários mais baixos, condições de trabalho deterioradas e
garantias de trabalho enfraquecidas (para aqueles que têm a sorte de ter um
emprego) — uma marginalidade "pós-industrial" tem surgido com característi-
cas bem distintas. Dessa maneira, trinta anos depois, nós estamos testemu-
nhando o ressurgimento do conceito de marginalidade relacionado a novos
constrangimentos, estigmas, separações territoriais, dependências - do Estado
de Bem-Estar - , e instituições dentro de "territórios urbanos banidos" com

14 L. Wacquant, “The Rise of Advanced Marginality: Notes on its Nature and Implications”, Acta Sociológica 39 (1996).

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funções paralelas àquelas do Estado15. Dentro de nossa amostra de favelados


de trinta anos atrás, apesar da persistência intergeracional da pobreza e do
crescimento da desigualdade, apenas um terço permanece morando nelas.
Dos “sobreviventes” de nossa amostra aleatória, 30% vivem em favelas, 37%
em conjuntos habitacionais, e 34% em bairros, a maioria de periferia. Da
amostra composta pelas lideranças, apenas 16% ainda moram em favelas e
48% estão em bairros. Entre a segunda geração, 17% estão em favelas e
50% em bairros. Isso pode ou não ser considerado um indicador de mobili-
dade sócio-econômica, mas é certamente uma poderosa prova de que os po-
bres não estão consignados a “territórios banidos da fronteira urbana16”.

O Mundo do Medo
Novas favelas têm crescido entre luxuosos condomínios na Zona Oeste (Barra
da Tijuca) e o maior crescimento de assentamentos de baixa renda não é mais
em favelas, mas em loteamentos clandestinos, com desenvolvimento e comer-
cialização ilegais. Quando comparadas com 30 anos atrás, percebe-se que há
uma grande diferença na vida das favelas atualmente: é a penetrante atmos-
fera de medo. A sensação de insegurança é palpável. Existe uma nova vulne-
rabilidade física e psicológica. No fim dos anos 60 as pessoas estavam temero-
sas de serem removidas de suas casas e comunidades e realocadas a força
pelas autoridades da ditadura. Hoje em dia eles temem morrer nos tiroteios
entre policiais e traficantes ou entre gangues rivais.
Eles têm medo de morrer cada vez que colocam os pés fora de suas
casas, e, temem que suas crianças não voltem da escola vivas. Eles não se
sentem seguros nem mesmo dentro de casa. A qualquer momento a polícia
pode chutar a porta de suas casas com a falsa — ou real — alegação de que
procuram um traficante de drogas ou armas; ou ao contrário, que alguma
pessoa fugindo da polícia possa colocar uma arma em suas cabeças e insistir
em ser escondido, alimentado e abrigado até que seja “seguro” sair. A violên-
cia se tornou parte da vida cotidiana e é o maior motivo para as pessoas se
mudarem das comunidades em que vivem.
Nos anos 60 existiam bebidas e algum uso de drogas, em sua maioria
maconha, ainda não tão disseminado nem tão rentável. A cocaína mudou
tudo. Desde os anos 70, a cocaína começou a aparecer em massa nas favelas,
onde era dividida e empacotada para venda local. Primeiro os ricos da cidade,
depois a classe média e eventualmente as classes populares entraram no mer-
cado e a quantidade de dinheiro envolvido nas operações cresceu dramatica-
mente. Essa grande quantidade de dinheiro permitiu aos traficantes serem
muito mais organizados. Nos anos 60 algumas pessoas tinham armas; agora
eles estão bem armados com uzis vindas de Israel, AK47 vindas da Rússia e
M16 vindos dos Estados Unidos.
As formas como isso se reflete nas vidas dos moradores de favelas é
múltipla e perniciosa. As comunidades nas quais eles estão tentando levantar

15 Wacquant, “Urban Marginality in the Coming Millennium,” Urban Studies 36 (Setembro 1999).
16 Wacquant, “Three Pernicious Premises.”

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suas vidas e criar seus filhos tornaram-se "espaço em disputa", crescente-


mente ocupadas por traficantes de médio porte e suas legiões. Os grandes
chefes, dizem, vivem no luxo em coberturas na Zona Sul, ou nos Estados Uni-
dos e Europa. A penetrante presença dos traficantes tem tido efeitos devasta-
dores na vida das comunidades. Comparado com trinta anos atrás, existe con-
sideravelmente menos "diversão" no espaço publico, menos participação nas
associações de moradores, e menos visitas entre amigos e parentes. Participa-
ção em qualquer tipo de organização, com exceção das igrejas, declinou
enormemente. Independente da idade, o espaço interno da comunidade não é
mais usado para lazer e recreação. Esses eram os fatores que antigamente
uniam e mantinham a comunidade unida.
A nossa pesquisa não encontrou evidências de que os traficantes de dro-
gas tenham montado um "estado paralelo" de benefícios paternalistas para os
pobres. Existe muita discussão sobre o novo "caciquismo" nas favelas em que
os traficantes de drogas ofereceriam educação, cuidados médicos, comida e
proteção aos moradores em troca de sua lealdade. Esse não é o caso das
comunidades que estudamos. Apesar de ser inegável que algumas pessoas
vão aos traficantes em casos de emergência (quando precisam de carona até
o hospital para um parente doente, dinheiro para comida caso estejam com
fome, ou talvez uma vaga na escola local) esses casos são mais uma exceção
do que uma regra. Apenas 10% dos entrevistados afirmaram que os trafican-
tes alguma vez os ajudaram de alguma forma (menos ainda disseram que a
policia ajudou – apenas 3%); e 13% disseram que os traficantes os prejudi-
caram (enquanto 10% afirmaram que a policia os prejudicou).
A maioria dos entrevistados, no entanto, estava assustada demais até
para responder às perguntas. O que parece ocorrer não é lealdade dos mora-
dores para com os traficantes, mas uma real dominação pela violência, onde
os traficantes contestam o monopólio da violência pelo Estado. Muitas pessoas
explicaram que precisam manter boas relações com os traficantes, porque "a
polícia vai para casa à noite e os deixam a mercê dos traficantes armados".
Como visto na Figura 3 abaixo, quase um em cada cinco entrevistados
teve um membro da família vitima de homicídio. Quando perguntados em
1969 "o que você mais gosta e desgosta sobre viver no Rio", 16% disseram
que crime e violência eram suas principais queixas; hoje, 60% dão essa resposta.

Figura 3. Crime e violência.


Você ou alguém da sua família já foi vítima de:

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Furto (sem violencia) 56%


Roubo 40%
Agressao 20%
Homicidio 18%
Invasao de domicilio 15%
Abuso sexual 2%
Extorsao policial 2%
Extorsão 1%
0% 10% 20% 30% 40% 50% 60%

Padrão de Vida, Mobilidade e Aumento da Desigualdade.


Contraditoriamente esta pesquisa mostra que enquanto ambos — consumo
coletivo de serviços urbanos e consumo individual de bens domésticos —
aumentaram notavelmente durante estas três últimas décadas, a distância
entre ricos e pobre também aumentou. Não há nenhuma dúvida de que houve
melhorias significantes na qualidade de vida das pessoas a quem eu entrevis-
tei. Isto é prontamente visto na aquisição de serviços urbanos coletivos como
água, sistema de esgoto, e eletricidade que são agora quase que universais
(Figura 4).
Talvez destas melhorias, a mais importante tenha sido água encanada.
Em 1969 somente um terço das casas tinham água. Já o segundo maior
evento em termos de melhoria da vida diária coletiva foi a eletricidade.
Figura 4. Consumo de Bens de Serviços Coletivos Urbanos

1969 29%
Água 2001 96%
1969 60%
Esgoto 2001 95%
1969 48%
Luz 2001 96%
1969 37%
Casa de alvenaria 2001
97%
0% 20% 40% 60% 80% 100%

Saindo dos serviços coletivos urbanos para o consumo individual de


aparelhos domésticos, o padrão é igualmente positivo. O mais interessante
nas figuras 5 e 6 é o poder de compra representado. O primeiro mostra com-
parações em um período de 30 anos em termos de propriedade de televisões,
geladeiras e som, e reforça o ponto sobre aumento dos padrões de vida. Junto
com o crescimento da posse da televisão de 64% para 95% (que pode ser
considerado uma benção ou uma praga) o maior choque de mudança no estilo

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de vida foi a aquisição de geladeiras — que cresceu de 58% para 96%. Isso
representou liberdade para a mulher de idas diárias as compras.
Figura 5. Consumo de aparelhos domésticos em 1969 e 2001
appliances compared with '69

1969 64%
TV
20 95%

1969 58%
Geladeira
20 96%

1969 25%
Som
20 79%
0% 20% 40% 60% 80% 100%

Para qualquer um que lembre dos níveis de vida nas favelas do Rio de
Janeiro há trinta anos atrás, ou é familiarizado com favelas nas cidades africa-
nas e moradores de rua nas cidades indianas, os favelados e ex-favelados do
Rio parecem viver em relativo luxo. Eles podem não ter poupança, mas seu
nível de consumo de bens na figura 6 acima é uma prova impressionante da
elevação dos seus padrões de vida. A realidade ainda é consideravelmente
mais complexa do que as percentagens apontam.
Figura 6. Bens de Consumo

Geladeira 96%
Televisão 98%
Liquidificador 89%
Som Stereo 79%
Telefone (fixo ou celular) 67%
Máquina de Lavar 48%
Vídeocassete 48%
Microondas 22%
Carro 14%
Computador 8%

0% 20% 40% 60% 80% 100%

A renda familiar desses entrevistados originais também cresceu, apesar


de restringida pela queda no poder de compra do salário mínimo, mostra a
comparação nas rendas familiares entre 1969 e 2001. Cerca de 47% dos en-
trevistados têm renda familiar maiores em 2001, 32% têm rendas menores e
21% permanecem na mesma posição.
Tabela 3. Renda Familiar em 1969 e 2001
Salários Mínimos (%)

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ANO 1969 2001


1SM ou menos 11 15
1 SM a 2 SM 38 29
2 SM a 3 SM 29 11
3 SM a 4 SM 12 14
4 SM a 5 SM 3 11
5 SM ou mais 6 20
Total 100% 100%

O que faz desse dado particularmente interessante é que as mesmas


pessoas que possuem todos esses itens ainda se consideram "pobres" e sen-
tem que não ganham o suficiente para viver uma “vida digna”. Por exemplo,
48% têm uma renda familiar mensal de R$500,00 aproximadamente, ou
menos, mas apenas 18% desses sentem que esse valor é suficiente pra uma
"vida decente". Quando perguntados, a maioria disse que R$1.000,00 por mês
seria o mínimo para uma vida decente, mas apenas 18% estão nessa faixa de
renda. Apenas um quinto desses entrevistados originais está recebendo atu-
almente o suficiente para viverem decentemente de acordo com seus próprios
padrões.
Mas essa não é apenas uma questão de dinheiro. Algo esta acontecendo
que faz com que essa população sinta que tem retrocedido e que a distância
entre eles e o resto da sociedade tem se ampliado. Em primeiro lugar, isso é
verdade. A desigualdade de renda no Brasil, já uma das maiores do mundo,
piorou ao longo desses 30 anos, ou seja, enquanto os pobres melhoraram em
termos absolutos, eles se afastaram do resto da população em termos relativos.
Tal fato pode ter contribuído para o crescimento da consciência de todos
os tipos de discriminação. Em 1969, 64% dos entrevistados disseram que a
discriminação racial existia; hoje, 85% afirmaram o mesmo. Esse aumento
pode ser atribuído tanto à crescente consciência do preconceito que sempre
existiu, quanto ao efetivo crescimento na discriminação, ou a ambos. Mais tra-
balhos deverão ser feitos para determinar qual, mas desconfio que ambos
estão atuando. Houve muitas campanhas organizadas pelos movimentos soci-
ais nas favelas, elevando a consciência sobre a herança afro-brasileira e
usando o teatro, arte, e a cultura para aumentar a conscientização sobre as
"raízes culturais".
Não é uma surpresa, portanto, que de todos os estigmas enfrentados
pelos moradores pobres do Rio de Janeiro a cor da pele seja o mais
amplamente percebido (88%), junto com morar em favela (também 88%).
Como demonstrado na figura 7 abaixo, discriminação racial não é o único fator
dividindo “nós” e “eles”.
Figura 7. Tipos de Preconceito

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cor da pele 88%

localderesidência 88%

estiloderoupa 75%

localdenascimento 67%

morador da Baixada 60%

moradordaZ.Norte 56%

sermulher 56%

morador de conjunto 45%

0% 20% 40% 60% 80% 100%

Novos Tempos: Esperanças e Decepções.


Era uma esperança e uma expectativa que a abertura (re-introdução gradual
dos direitos e princípios democráticos) e o fim da ditadura em 1984 trou-
xessem novas oportunidades de mobilidade social ascendente para a classe
mais baixa. Parecia razoável que a conquista novamente do direito ao voto
para prefeito, governador e presidente, junto com a liberdade de expressão,
assembléia e de imprensa (negados desde o golpe militar de 1964), levariam a
melhorias para os pobres urbanos. Durante a ditadura a censura bruta im-
pediu o fluxo livre de idéias; as pessoas foram presas e torturadas por crenças
e atividades oposicionistas; e a presença ubíqua da policia militar constrangeu
severamente as atividades civis.
De fato, nos primeiros anos após o fim da ditadura, houve uma explosão
de atividades participativas, com muitas organizações populares surgindo nas
favelas e um excesso de organizações não-governamentais tomando um papel
de destaque na causa da justiça e igualdade para a população favelada.
No entanto, outros aspectos surgiram com o passar do tempo. Organiza-
ções comunitárias internas se tornaram frágeis e fragmentadas por falta de
recursos; as ONGs passaram a focar sua atenção em campanhas mais amplas,
como o combate a fome e violência; os traficantes apareceram em cena; e os
partidos políticos mostraram sua face volúvel — muitos candidatos vieram
cortejar os votos das favelas com muitas promessas que não foram cumpridas

ST2, 3 | Re-configurações territoriais: re-estruturações econômicas e sócio-espaciais


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após as eleições; a corrupção policial se tornou visível demais; e o cinismo se


instalou.
Dessa maneira, a imagem de uma democracia participativa florescente
traduzindo-se em uma distribuição mais igual dos recursos ainda não se con-
cretizou. Pelos depoimentos dos entrevistados o que melhorou desde o fim da
ditadura inclui habitação, saneamento, transporte e acesso à educação (mas
sem qualidade). Por outro lado pioraram os serviços de saúde, segurança,
exclusão e, o mais doloroso de todos, a situação econômica. O Rio perdeu
muitos postos de trabalho na indústria ao longo desses 15 anos e não houve
realocação para os trabalhadores pouco ou não qualificados que saíram desse
setor. Tal fato tornou difícil saber se a nostalgia pelo período da ditadura é
realmente um desejo por melhores tempos em termos econômicos e por mais
segurança pessoal.

Novas Questões de Pesquisa e Próximos Passos


As descobertas preliminares apresentadas aqui fazem parte de um esforço de
pesquisa muito mais ambicioso. Estamos investindo agora na idéia de recons-
truir as histórias de vida das mesmas pessoas entrevistadas em 1968 e 1969
ao longo do tempo, procurando por padrões e pistas sobre mobilidade intra e
intergeracional ano a ano de suas vidas. No geral, os nossos principais ob-
jetivos se resumem em :
• Compreender as dinâmicas da pobreza urbana, exclusão e mobilidade
socioeconômica;
• Investigar o significado e a realidade da marginalidade e como ambos
têm se transformado;
• Construir os padrões das histórias de vida em relação aos níveis macro-
políticos e econômicos em termos nacionais e locais e dentro do contexto
da evolução espacial do tecido da cidade;
• Investigar o impacto das intervenções das políticas públicas nos níveis
local, estadual, nacional e internacional, não apenas aquelas direcionadas
as favelas e a pobreza, mas também as iniciativas não direcionadas que
tiveram impacto na vida dos mais pobres;
• Explorar os efeitos mediadores da sociedade civil e das redes sociais em
ajudar a pessoas e famílias a agüentar os tempos difíceis e a aproveitar
as oportunidades disponíveis nos bons tempos.
Muitos estudos longitudinais são baseados em entrevistas com amostras
aleatórias de pessoas nas mesmas comunidades, tornando impossível discernir
se a aparente mobilidade positiva deve-se à melhoria na qualidade de vida das
mesmas pessoas, ou ao "desalojamento" dessas pessoas por melhores
condições de vida. Esse é o problema com o uso de dados agregados como os
censos domiciliares. Poucos estudos longitudinais de favelas têm sido feitos e
nós não sabemos de outro no Brasil que tenha sido feito com a mesma me-
todologia e abordagem do nosso. O fato de termos as histórias de vida ano a
ano dos entrevistados nos permitirá avançar em novos territórios e também

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analisar coortes de idade contra o pano de fundo de mudanças macro no nível


nacional e local.

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