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Departamento de Serviço Social

A INTERVENÇÃO DA FUNDAÇÃO LEÃO XIII NAS FAVELAS DO


RIO DE JANEIRO ENTRE OS ANOS DE 1940-1950

Aluno: Lohana Campos


Orientador: Rafael Soares Gonçalves

1. INTRODUÇÃO
O presente relatório é fruto do trabalho desenvolvido enquanto bolsista CNPq/PIBIC, sob
orientação do professor Rafael Soares Gonçalves, coordenador do Laboratório de Estudos
Urbanos e Socioambientais (LEUS). A ideia central da pesquisa mais ampla do orientador se
expressa na compreensão a respeito do desenvolvimento dos bairros informais no período entre
1945 e 1964, em especial das favelas cariocas, debruçando-se, mais especificamente, nas
formas de controle e administração estatal direcionada a esses territórios. Porém, neste relatório,
buscaremos realizar um recorte e apresentar reflexões acerca da forma que se deu a intervenção
da Fundação Leão XIII na favela da Praia do Pinto nas décadas de 1940 e 1950.
Em meados da década de 1940, observa-se a consolidação do processo de industrialização
e urbanização, que acarretou em um importante fluxo de migração para a cidade do Rio de
Janeiro. A insuficiência de moradias para atender a demanda crescente da população migrante
na cidade conduz o Estado Novo a elaborar um plano para construção de habitações populares,
o que reforçou a popularidade de Getúlio Vargas. Após a destituição de Vargas e a eleição de
Dutra, as políticas federais e municipais de habitação no Rio de Janeiro se estruturam em torno
dos Institutos de Aposentadoria e Pensões, da Fundação da Casa Popular e do Departamento de
Habitação Popular.
O esforço em responder às demandas de habitação popular se concentrava também no
esforço de limitar a influência do Partido Comunista, que obteve expressivas vitórias eleitorais
nas eleições de 1945 e 1947. O cenário das eleições no Rio de Janeiro despertou para a
necessidade de contrapor a influência do partido, especialmente nas favelas do Distrito Federal.
Dentre as alternativas criadas para solucionar o “problema das favelas” no contexto da
“ameaça” comunista, foi criada a Fundação Leão XIII com o objetivo de prestar assistência
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social e “recuperar” a população das favelas. A lógica da época afirmava que a condição
precária material e de princípios morais era motivo para se tornarem reduto eleitoral do Partido
Comunista (Iamamoto e Carvalho, 2014).
O presente projeto de pesquisa se debruça sobre o estudo das fichas registradas pelo
Serviço Social da Fundação Leão XIII. Essas fichas foram deixadas no Salão Paroquial da
Paróquia Santos Anjos e se referem às famílias da favela da Praia do Pinto reassentadas no
conjunto construído pela Cruzada São Sebastião no bairro do Leblon. Os registros são como
narrativas do cotidiano da população dessas favelas, situada à beira da Lagoa Rodrigo de
Freitas.1
Através da ótica das profissionais de Serviço Social da Fundação, é possível observar a
intenção por detrás das visitas domiciliares, bem como os atores presentes, aspectos históricos,
políticos, culturais e o processo social da formação e consolidação da favela. Em vista disso, o
estudo das fichas se constitui em uma rica fonte de dados descritivos, sendo de extrema
relevância para compreensão do cotidiano da população favelada carioca em um período que
se buscava modernizar a cidade, excluindo as favelas desse processo.

2. OBJETIVOS

O objetivo geral se expressa em analisar as fichas do Serviço Social da Fundação Leão


XIII para identificar de que forma se dava a intervenção com os moradores das maiores favelas
cariocas, em especial a favela da Praia do Pinto, durante os anos de 1940 e 1950.
Dentre os objetivos específicos estão: relacionar o discurso das trabalhadoras da
Fundação com os aspectos inerentes a gênese do Serviço Social, identificar os estigmas sociais
atrelados à população de favela e constatar que a intervenção da Fundação nas favelas tinha o
interesse de ajustar os moradores nos padrões de família almejados pela burguesia brasileira.

3. METODOLOGIA
Na primeira parte da pesquisa, foi realizado um levantamento bibliográfico com assuntos
relacionados a Fundação Leão XIII, Cruzada São Sebastião e habitação popular no período de
1946 a 1962, assim como movimentos sociais de favela e o Serviço Social tradicional. Também
foi realizado um recorte de revistas e periódicos da época através da Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional. O tratamento das 1.000 fichas de acompanhamento familiar encontradas

1
A grande maioria das fichas são de famílias da Praia do Pinto, mas há um pequeno número de fichas sobre
famílias das favelas Areinha, Ilha das Dragas, Pedra do Bahiano ou Catacumba.
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na Paróquia Santos Anjos, na Cruzada São Sebastião, começou com a higienização e


organização em sequência numeral. Posteriormente, conseguimos transferir as fichas para os
arquivos da Pastoral de Favelas.
A pesquisa se encontra em andamento, no processo de cadastramento das fichas nas
planilhas de Excel, extraindo informações pessoais, familiares e habitacionais dos moradores
de favelas e recortes de comentários das visitadoras sociais da Fundação Leão XIII. Também
foram realizadas e transcritas entrevistas com moradores da Cruzada São Sebastião, que
residiam anteriormente na favela Praia do Pinto, e que viabilizaram informações a respeito da
intervenção da Igreja Católica com as famílias selecionadas para o conjunto habitacional.
No momento atual, devido às complicações inerentes ao cenário pandêmico que se
encontra o país, estamos realizando o cadastro das fichas através de registros fotográficos das
mesmas, ao invés de efetuar o processo de coleta de dados na própria Pastoral de Favelas da
Arquidiocese.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

4.1 Breves apontamentos sobre a “problemática” da favela

O Código de Obras de 1937 aponta a condição marginalizada das favelas, destacando a


importância da sua erradicação e também destacava a proibição de obras para melhoria, ou
aumento dos territórios. A partir do Código de Obras que o projeto de parques proletários será
implementado na década de 1940. A intervenção nesses territórios identificou as favelas como
problema a ser “solucionada” pelo poder público. (Burgos, 2006)

O poder público enxerga a favela como um “reduto da pobreza extrema”, “aglomerações


pobres, ocupações irregulares e ilegais” associados a doença e a desordem, problema que deve
ser administrado e controlado. Aos moradores é destinada a culpabilização de sua condição
precária e dos “males da cidade”, também os estigmatizando com características d tipo
“malandros”, “vagabundos”, “mendigos”, “desprezados da sorte”. (Valladares, 2000) Essa
população necessitava de uma “pedagogia civilizatória” para habitarem moradias adequadas
ao projeto de modernização da cidade. (Burgos, 2006)
Atores sociais distintos como a imprensa, a Igreja Católica, arquitetos, engenheiros,
médicos, assistentes sociais passam a se aproximar da questão para conhecer e contribuir com
soluções para ordem urbana da cidade, através de uma intervenção higienista. Entre os
primeiros trabalhos sobre a intervenção nas favelas está o trabalho de conclusão de curso da
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assistente social Maria Hortência do Nascimento e Silva, demonstrando que o Serviço Social
participou ativamente nesse processo. (Valladares, 2000) Nesse sentido que diversos atores
sociais passam a buscar contribuir com a questão das favelas, buscando adentrar para conhecer
e apontar meios de intervenção.
A campanha iniciada pelo então jornalista Carlos Lacerda, no Correio da Manhã em
1948, denominada “A Batalha do Rio” buscava travar uma guerra às favelas, porém não aos
favelados. Em uma matéria do mesmo periódico e referido ano, afirma que a batalha era contra
o egoísmo e a inércia, sendo essas características fundantes das favelas, assumindo que a
“solução” era trabalhar pela “reabilitação” das “criaturas das favelas”. 2
Carlos Lacerda utiliza do mecanismo de disseminar informação para conclamar a ajuda
do governo para a batalha, porém buscando se colocar contrário a medidas coercitivas e
punitivas de fiscalização, afirmando que a solução inteligente seria a prefeitura realizar um
recenseamento das favelas, pois a batalha não era contra os favelados e sim a favor deles.3
Dentre as instituições que buscam colaborar com a famosa “Batalha do Rio”, encontra-se a
Fundação Leão XIII.

4.2 A intervenção da Fundação Leão XIII e a assistência social

A Fundação Leão XIII (FLXIII) foi a primeira grande instituição de cunho assistencial,
oficializada pelo Decreto Municipal nº 8.797 de 1947, uma parceria entre a Prefeitura do
Distrito Federal, Ação Social Arquidiocesana e Fundação Cristo Redentor. A instituição é
arquitetada para atuar com os moradores das maiores favelas cariocas, com a implantação de
Centros de Ação Social (CAS), dispondo de serviços de saúde, serviço social e educação
popular. (Costa, 2015, Pereira, 2007, Iamamoto & Carvalho, 2014)

De acordo com matéria do periódico “A Cruz: Órgão da Parochia de S. João Baptista (RJ)
- Edição 00004, no ano de 1947, a Fundação atuava por seus “centros de ação social” e custeado
por “subvenções do governo da União” e de donativos particulares, com o evidente discurso de
“arrancar do coração da cidade” as famílias que “secularmente” ali residiam e utilizar um
“Serviço Social” da Prefeitura do Distrito Federal para reassentar a população de favela para o
“cinturão rural semi abandonado ” da cidade.

2
LACERDA, Carlos. Na Tribuna da Imprensa: Política de vida e não de morte, Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 15 de Maio de 1948, Edição 16918.
3
LACERDA, Carlos. Na Tribuna da Imprensa: O que pretendemos do Governo?, Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 26 de Maio de 1948, Edição 16922.
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Assim, em cooperação, o Estado e a Igreja Católica passam a administrar e executar


serviços assistenciais às populações residentes em favelas, com o apoio de diversos atores,
como às forças armadas, igreja católica e clubes esportivos, etc. Além disso, inauguram Centros
de Ação Social (CAS) para facilitar o controle social, os centros são “os principais espaços de
planejamento, organização, administração [...] de realização das atividades políticas e sociais
no interior das favelas cariocas” (Robaina, 2013) A Fundação construiu os centros sociais nas
maiores favelas cariocas, como Rocinha, Jacarezinho, Barreira do Vasco, Telégrafos, São
Carlos, Praia do Pinto, Salgueiro e Cantagalo. Além disso, também proporcionou serviços
básicos de água, luz e esgoto em algumas delas. (Burgos, 2006)

Ainda que o principal objetivo da Fundação se expressava em “solucionar racionalmente


os problemas humanos e cristãos” dos indivíduos, com base nas “encíclicas sociais” como
Rerum novarum. A ação nas favelas cariocas se expressava por via da assistência social e
também tinha como objetivo limitar a influência do Partido Comunista do pós-guerra nas
populações mais pobres (Gonçalves et. All, 2010).
O receio pela crescente força política do PCB conduziu a necessidade de “trabalhar pela
“recuperação” das populações faveladas do Distrito Federal, em vista de solucionar a “lacuna
de princípios morais e materiais” e impedir a disseminação de “ideologias exóticas”. Nesse
sentido, é possível afirmar a intenção de prestar assistência social, também atendia um objetivo
de uma agenda política. (Iamamoto & Carvalho, 2014)
Dentre a justificativa da Ação Social Católica para prestar essa assistência também está a
reconquista das massas para a Igreja, da fé cristã, com evidente percepção das desigualdades
provenientes dos países capitalistas, como visualizamos no seguinte parágrafo encontrado no
periódico “A Cruz” no ano de 1949:

“Por haver perdido esse domínio, o sublime magistério sente fugir a sua autoridade no
terreno espiritual, sobre as nações. Assim é que vemos em países, outrora tidos como
católicos, crescer a onda comunista. Sem assistência e abandonado á miséria pelo
regime capitalista, o operariado se deixa arrastar pela demagogia de falsos profetas e
começa a ver no clero que só lhe fala de coisas espirituais, uma peça do regime opressor.
Ensina Santo Tomás, que até para se ter fé, faz-se preciso um mínimo de conforto. E
os operários nos países capitalistas não tem esse mínimo indispensável.” (Fundação
Leão XIII. Jornal A Cruz: Órgão da Parochia de S. João Baptista (RJ), Rio de
Janeiro, 26 de Jun. de 1949. Edição 00026.)

Assim, a assistência social prestada pela Fundação tinha a função de fortalecer a


influência da Igreja Católica e evitar a disseminação de ideais comunistas, mas também de
responder, minimamente, às consequências do desenvolvimento do capitalismo para a classe
trabalhadora. A prática tinha a função de amenizar conflitos e tensões sociais, e visava
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minimizar de forma pontual as condições precárias de vida de trabalhadores, que estavam do


lado desprivilegiado na balança da desigualdade social. (Passos, 2017)

A prática de prestar assistência social é antiga na humanidade, atualmente é entendida


como política pública, porém neste relatório ressaltamos a utilidade da assistência social
empregada com caráter filantrópico, pois identificamos nas fichas estudadas que era através
dessa assistência que o Serviço Social da Fundação Leão XIII exercia sua função educativa,
atendendo aos padrões almejados pela burguesia brasileira.

4.3 As fichas familiares e o Serviço Social: entre a vigilância, sindicância e o contra-


inquérito

Previamente a reflexão das fichas familiares do Serviço Social da Fundação Leão XIII, é
necessário abordar questões referentes ao Serviço Social nestas décadas, mais especificamente
da sua orientação e características fundantes para intervenção, buscando evidenciar sua
colaboração na atuação da Fundação com as favelas.

De acordo com a pesquisa de jornais, a Fundação Leão XIII tinha o objetivo de combater
a condição de miséria excessiva, a falta de higiene e a ignorância das famílias que residiam nas
favelas. A preocupação inicial após instalar um centro de ação social nas favelas era de criar
um Serviço Social, uma escola, um lactário e um ambulatório. O Serviço Social era a forma de
realizar contato com os moradores da favela, para “desabrochar sua inteligência”, seu “espírito
de solidariedade humana e para compreenderem os “problemas próprios e do próximo.”4

Entende-se que a história do Serviço Social é configurada numa decorrência de fatos e


acontecimentos no tempo e espaço, diretamente vinculada aos processos sociais e históricos de
um território e das influências internacionais. Dessa forma, em 1940, a profissão deve ser
pensada a partir das relações de interesses de países com o desenvolvimento do capitalismo no
Brasil. (Guilherme, 2012)

O Serviço social brasileiro surge em meio ao capitalismo monopolista, influenciado por


produções teóricas estadunidenses de ajuste do indivíduo a sociedade, como resposta do Estado,

4
De Favela a bairro operário. A solução prática e imediata através da ação da Fundação Leão XIII, Correio da
Manhã, Rio de Janeiro, 26 de maio de 1948. Edição 16927.
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Igreja e organizações sociais assistenciais para atuar no pauperismo que se encontravam os


trabalhadores. (Da Costa, 2017)

Em 1947, surge um primeiro Código de Ética para a profissão do Serviço Social,


elaborado pela Associação Brasileira de Assistentes Sociais. Esse código ainda apresentava
abordagens neotomistas, com fortes influências da Doutrina Social da Igreja Católica. As
intervenções previstas eram de cunho “a-históricas, idealistas e neutras” com os clientes
atendidos pelo Serviço Social. A prática visava uma intervenção com objetivo de “solucionar a
ampliação da miséria”, através da regeneração de “pessoas humanas desajustadas ou
empenhadas no desenvolvimento da própria personalidade.” (Barroco & Terra, 2014, Iamamoto
& Carvalho, 2014)

Em 1949, no Rio de Janeiro, ocorre o 2º Congresso Pan-Americano de Serviço Social,


dando ênfase ao “Serviço Social de Casos” como método satisfatório para situação de
“desajustamento” do homem ao coletivo. Além de um debate sobre métodos de Grupo e
Comunidade e o trabalho do Serviço Social com a população rural. No Brasil, a implementação
desses métodos como prática se deu entre as décadas de 1950 e 1960. (Guilherme, 2012)

Nesse contexto, buscamos estudar as fichas do Serviço Social, datadas e preenchidas por
visitadoras sociais da Fundação Leão XIII, pessoas que realizavam visitas domiciliares e
descreviam o cotidiano das famílias atendidas. Atentamos que as “visitadoras sociais” foi um
termo encontrado em um periódico do Correio da Manhã (RJ)5, ainda que acreditemos que as
profissionais eram Assistentes Sociais por atuarem junto ao Centro de Serviço Social da
Fundação, procuramos demonstrar o cuidado em não afirmar sem comprovação, apenas
ressaltando que as fichas pertenciam ao Serviço Social da Fundação.

Como demonstra as imagens abaixo (Figura 4 e 5), as informações registradas nas fichas
atendiam uma divisão em três setores: I. características individuais, II. características da família
e III. características da habitação. Assim sendo possível recolher informações dos moradores
de favelas.

Figura 4. Ficha de acompanhamento familiar da Fundação Leão XIII.6

5
Como se fixam no Rio os retirantes do interior, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19 de fev. de 1948. Edição
16347.
6
Registro Nº 242 da Fundação Leão XIII – Datada 19/08/1948.
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O espaço destinado para as características individuais se expressa na coleta de


informações a respeito do parentesco com o chefe7, sexo, estado civil, profissão, cor, idade,
instrução, escola, reserva, registro civil, religião, instituição ou caixa, salário mensal, vacinas,
batizado e 1ª comunhão e observações. O Serviço Social utilizava a parte das observações para
registrar as visitas domiciliares e atendimentos realizados nos Centros de Ação Social.

Já o espaço a respeito das características da família era destinado ao cadastro de


informações referentes a quantidade de pessoas e a renda, atendendo ao número de moradores,
número de filhos (vivos e mortos), pessoas doentes (tuberculose, lepra, câncer, sífilis,
psicopatia), receita, despesas (alimentação, outras e total) e saldo. Foi observado que esse
espaço era preenchido durante a visitação, porém não era atualizado, conforme as mudanças
iam se sucedendo na família, como, por exemplo, algum membro do grupo familiar se mudava,
falecia ou nasciam novos membros.

7
No Código Civil de 1916 (Lei 3.071/1916) consta em seu Art. 233 que “o marido é chefe da sociedade conjugal,
função que exerce com colaboração da mulher, no interesse comum do casal de dos filhos.” Antes da revogação,
em 1962, o “chefe” era o homem, então responsável por prover a manutenção familiar, pela representação legal
da família, administração de bens comuns e particulares da mulher. Tinha o direito de autorizar a profissão da
mulher e sua moradia fora do teto
conjugal.<https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=LEI&numero=3071&ano=1916&ato=c160zYE1UNn
RVTa37>
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Figura 5. Ficha de acompanhamento familiar da Fundação Leão XIII. 8

Em relação a parte da ficha referente a habitação do grupo familiar, as informações


relevantes se expressavam na condição de posse e manutenção do terreno, sendo ressaltada a
conservação, se possuía cozinha, o número de quartos, valor da habitação, do chão, se pagava
aluguel e observações que as profissionais achavam relevantes.

Nessa última parte, foi identificado que as fichas da Fundação possuíam um modelo de
questionário para preenchimento, sendo dividido em 7 questões referentes: i)a presença do
chefe da casa no momento da visitação, ii)motivo da ausência, iii)se possuía terreno,
iv)possibilidade de comprar terreno ou se mudar para outro território, v)local de trabalho,
vi)ambição da família e vii)melhorias das condições da habitação, como falta de saneamento
básico, condições de higiene e falta de água.

Na área destinada para as observações, observamos que a escrita se dava de forma


descritiva, com perspectivas pessoais e morais das profissionais, que realizavam a visita,
trazendo-nos a reflexão do grau da “neutralidade” do Serviço Social na época. Muitas vezes, as
profissionais buscavam comunicar ordem de despejo de moradores, fazer investigações quanto
a situação de irregularidade de moradores.

8
Registro Nº 242 da Fundação Leão XIII. Data 19/08/1948.
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É possível verificar que contavam com a sindicância de vizinhos para apurar a verdade.
Também é possível observar a função de vigilância e de controle sobre a habitação, através das
solicitações de obras, reparos e ampliação dos barracos. Vide trechos de comentários destacados
na tabela 1 a seguir:

Tabela 1. Trechos de comentários nos registros familiares da FLXIII


“Fomos neste barraco “Não quer as casas novas e “Fomos avisar a esta
avisar estas para nem subúrbio. Sofre muito família de que a Cia Leblon
tomarem alguma do coração e precisa estar pede ao povo de Areinha
providência porque a perto dos hospitais. Mesmo arrumar um lugar para se
Ordem de despejo companhia Leblon nas casas novas não há mudar pois as construções
estão querendo o local liberdade conforme ela foi precisam avançar e nosso
para construções.”9 informada e como não gosta desejo é que ninguém fique
de imposições, prefere ir para nas ruas esta sra apenas nos
o Anglo Brasileiro.”10 disse: vou falar com
Joaquim deixando escapar
um “risinho de mofa”.11

“N. está noiva de um “Fomos fazer contra “Fomos hoje mais uma vez
rapaz chamado N., inquérito e vimos que a visitar a família e não
residente aqui na favela situação da família é encontramos ninguém. Os
e diz trabalhar em completamente diferente. Ele vizinhos informaram que
Sindicância e contra padaria. Aconselhamos é casado e separado da todas as noites tem rendez-
inquérito para fazer uma esposa, mais por infidelidade vous.14 Procuramos saber
sindicância pois ele não dela.”13 os nomes dos
consta na ficha e se for frequentadores.”15
apelido e o nome for A.
ele não recomenda
muito, é necessário ver
se ele realmente
trabalha lá”12

9
Registro 18 Fundação Leão XIII. Data 09/11/1949
10
Registro 153 Fundação Leão XIII. Data 05/10/1948
11
Registro 41 Fundação Leão XIII. Data 04/10/1949
12
Registro 8b Fundação Leão XIII. Data 02/05/1951
13
Registro 10 Fundação Leão XIII. Data 30/08/1950
14
Local destinado a prostituição. Disponível em:<https://www.dicio.com.br/randevu/>
15
Registro 179 Fundação Leão XIII. Data 09/11/1952
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“Achamos que a “N. veio queixar-se que o “Esteve em nosso serviço


presente família, companheiro está fazendo social o Sr. J. pedir para
embora constituída desordem no barracão e construir um cômodo nos
ilegalmente, vive em pediu para mandarmos o fundos do barraco, porque
Ajustamento moral harmonia e pode guarda expulsá-lo da favela. vai casar-se no dia 29,
e classificação de constituir elemento Fizemos ver a ela que já porém a diretora não
famílias aproveitável na havíamos recriminado por tê- concordou. Aconselhamos
urbanização da lo arranjado por companheiro para o sarjão arranjar
favela.”16 e hoje ela estava recebendo o depois que se casasse outro
resultado da desobediência. local para morarem, do
”17 contrário terá que ir com a
família que está
classificada no tipo c.”18

“Passando pelo local “Veio a nossa agência Dona “Esteve na agência Dona L.
vimos que o sr. J. estava E., depois Sr. A., pedir e solicitou licença para o
consertando o telhado, licença para consertar seu conserto do barraco.
porém não tinha a barraco, fomos ao local Imediatamente
devida licença, alegou- vimos o estado do mesmo, de providenciamos.
nos que não sabia e fato está em ruínas, mas Aproveitamos a
prontificou-se em vir negamos esta licença para oportunidade e falamos-lhe
Vigilância e buscá-la. Ele disse-nos consertar seu barraco fomos sobre o congresso
controle de obras que tem promessa de ao local vimos o estado do paroquial e a Nossa senhora
uma casa no Parque e mesmo, de fato está em das graças, que está
que de lá virá um ruínas, mas negamos esta visitando os lares
parente aqui. licença dando apenas organizados, sendo a
Avisamos-lhe que não permissão para consertar a assistida, senhora viúva e
será permitido.”19 calha e algumas goteiras. religiosa propomos a visita
Aconselhamos a compra de da Nossa senhora, assim
um terreno, pois sua situação que o barraco fique
financeira não é das pronto.” 21
piores.”20

Os registros sobre o cotidiano dos moradores de favela apresentam características


importantes para análise, porém nesse relatório não tivemos o interesse de apontar informações
pessoais da população atendida pela Fundação, mas de interpretar a intenção por detrás dos
registros, que mais diziam sobre a intenção de quem escrevia do que sobre a vida dos
moradores. De acordo com Carlos Lacerda, o objetivo das fichas era um recenseamento das
famílias, com questionários a respeito a composição familiar, condição da habitação,

16 Registro 170 Fundação Leão XIII. Data 05/05/1956


17 Registro 179 Fundação Leão XIII. Data 11/09/1953
18 Registro 152 Fundação Leão XIII. Data 24/03/1958
19 Registro 10 Fundação Leão XIII. 14/09/1949
20 Registro 19 Fundação Leão XIII. 12/08/1949
21 Registro 42 Fundação Leão XIII. Data 12/03/1955
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observações médicas sociais, orçamento familiar para o Serviço Social realizasse o diagnóstico
social22 e estudar o caso social23 para apresentar a “solução humana”.24

Dentre os registros, foi identificado que a atuação tinha princípios higienistas e


reafirmaram estigmas relacionados à favela, demonstrando a intenção de eliminar
principalmente a favela da Praia do Pinto. Quanto aos moradores, havia uma classificação para
famílias que seriam reassentadas ao conjunto da Cruzada São Sebastião e as famílias que eram
orientadas a comprar terrenos na periferia da cidade.

A respeito da classificação, também observamos nas pesquisas em jornais um


agrupamento de moradores da Barreira do Vasco realizado pela Fundação Leão XIII e exposto
através do Correio da Manhã, que nos remete a ideologia da época:
Qualquer que seja a solução a adotar, o Inquérito encarece a necessidade de classificar
os moradores de favelas, de modo a poder ser estudada uma solução para cada grupo.
Pela pesquisa feita, pareceu aos assistentes sociais da Fundação Leão XIII aceitável a
seguinte classificação: a- exploradores, vadios, desordeiros, etc. b- contribuintes dos
I.A.P. e Caixas, c- emigrados da lavoura, d- os totalmente desamparados. (De Favela a
bairro operário. A solução prática e imediata através da ação da Fundação Leão XIII,
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 26 de maio de 1948. Edição 16927.)

De acordo com o referido periódico, os moradores do primeiro grupo são casos de polícia,
devendo ser retirados de imediato das favelas. O grupo b são os contribuintes, aqueles que
devem ser encaminhados ao Instituto ou Caixa para retirarem seus benefícios. Os moradores do
grupo c são orientados a regressarem ao campo por mediação do Ministério da Agricultura,
porém o Inquérito reconhece ser uma proposta inacessível, tendo em vista que buscaram uma
vida melhor na cidade e o retorno apenas seria possível após uma reforma rural, que lhes
proporcionasse uma vida digna. Já o grupo d são famílias sem chefe, inválidos e idosos, estes
são “problema de assistência”.

É possível observar que o Serviço Social realizava pesquisas durante as visitas


domiciliares e preenchimento das fichas das famílias. Também direcionavam orientações com
a intenção de doutrinar e educar a população, de acordo com preceitos morais católicos e
encaminhamentos para legalização de casamento e registro civil.

22
Da Costa (2017) afirma que a prática do Diagnóstico social é realizada após uma investigação empírica. Essa
prática é proveniente da produção teórica positivista do Serviço Social defendida por Mary Richmond, pioneira
do Serviço Social profissional.
23
A mesma autora supramencionada defende que o Serviço Social de Casos individuais foi a base que orientou a
produção teórica na área. Além disso, ressalta que a influência desse pensamento no Brasil foi presente a partir
da década de 1940.
24
Um Retrato da favela da barreira do Vasco num inquérito da Fundação Leão XIII, Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 25 de maio de 1948. Edição 16926.
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Observamos como era realizado o ajustamento moral das pessoas ao padrão da sociedade
vigente, evidenciando a estratégia de controle da massa trabalhadora para evitar conflitos. Dessa
forma, ao invés da repressão e remoção de favelas com a força do braço armado do Estado, foi
iniciado um movimento de negociação e persuasão para estabelecer um controle ideológico
direcionado a população de favelas. O Serviço Social corroborava com essa intenção, através
de orientações, investigações e na sindicância da vida das pessoas, impondo princípios morais
e conceitos de ordem da habitação estabelecidos pela classe dominante. (Slob, 2002)

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A década de 1940 foi um momento em que há um início na produção de pesquisa em


favelas nas áreas de urbanismo, serviço social e antropologia, servindo de subsídio para a
intervenção nos territórios. A FLXIII participa desse processo de conhecimento das favelas e
intervém com suas características fortemente marcadas pelo “ideário autoritário, personalista,
higienista e remocionista.” (Costa, 2015)

De fato, o desenvolvimento acelerado do modo de produção capitalista gerou um aumento


da desigualdade social e uma intenção de remodelar as cidades, exigindo um ajustamento social
da massa trabalhadora. As práticas do Serviço Social da Fundação Leão XIII visavam prestar
assistência social e moral à população das favelas, com ação vinculada aos dogmas da igreja,
não havendo, assim, uma reflexão aprofundada das contradições entre capital e trabalho como
expressões da Questão Social. Através das fichas de acompanhamento familiar, tivemos a
possibilidade de revisitar a intervenção da FLXIII nas favelas cariocas, identificando atores
sociais participantes e obtendo maiores informações sobre discursos, ideologias e doutrinas,
que fizeram parte da intenção de controle das massas populacionais nos padrões almejados pela
burguesia dominante.

Cabe também ressaltar a importância de revisitar a intervenção profissional do Serviço


Social nos anos de 1940 e 1950, como meio de reafirmar o compromisso ético-político da
profissão, consolidado apenas no Código de Ética de 1993, sendo ainda novo para profissão.
Buscar romper com o conservadorismo, que frequentemente se reatualiza com o passar dos
anos, exige esforço da categoria, reconhecimento como classe trabalhadora e comprometimento
com os direitos e demandas da população usuária (Barroco & Terra, 2014).
Departamento de Serviço Social

Diante do exposto, o estudo das fichas da Fundação Leão XIII proporcionou reflexões a
respeito da urbanização e do projeto societário para a cidade do Rio de Janeiro, assim como da
história e os estigmas relacionados às favelas e sua população e, por fim, sobre a atuação
tradicional do Serviço Social, baseada nos princípios morais da época.

REFERÊNCIAS

[1] BARROCO, Maria Lucia Silva; TERRA, Helena Sylvia. Código de ética do (a)
assistente social comentado. Cortez Editora, 2014.

[2] BURGOS, Marcelo Baumann. Dos parques proletários ao Favela-Bairro: as políticas


públicas nas favelas do Rio de Janeiro. Um século de favela, v. 5, p. 25-60, 1998.

[3] COSTA, Marcos de Oliveira. O Departamento de Habitação Popular: política e


habitação entre 1946 e 1962. 2004. Tese de Doutorado.

[4] COSTA, Reginaldo Scheuermann. A Fundação Leão XIII Educando os Favelados


(1947-1964). 2015. 350f. 2015. Tese de Doutorado. Tese (Doutorado em Educação) -
Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.

[5] DA COSTA, Gilmaisa Macedo. Revisitando o Serviço Social clássico. Revista Em


Pauta: teoria social e realidade contemporânea, v 15, n. 40, 2017.

[6] GONÇALVES, Rafael Soares; SIMÕES, Soraya Silveira; DE LUNA FREIRE, Leticia.
A contribuição da Igreja Católica na transformação da habitação popular em problema
público na França e no Brasil. Cuadernos de antropología social, n. 31, p. 97-120, 2010.

[7] GUILHERME, Rosilaine Coradini. Desenvolvimento de Comunidade e o Serviço


Social: entre o conformismo e a crítica. Emancipação, Ponta, 2017.

[8] IAMAMOTO, Marilda Villela. CARVALHO, Raul de. Relações sociais e serviço
social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica – 41. Ed. – São
Paulo: Cortez, 2014.

[9] PASSOS, Rachel Gouveia. Entre o assistir e o cuidar: tendências teóricas no Serviço
Social brasileiro. Between assisting and caring: theoretical tendencies in Brazilian
Social Work. Revista Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea, v. 15, n. 40,
2017.

[10] PEREIRA, Cristiane de Barros; Fonseca, Denise Pini Rosalem da. Assistência Social
em territórios estigmatizados: um estudo da atuação da Fundação Leão XIII em Vila
Ipiranga, Niterói. Rio de Janeiro, 2007. 86 p. Dissertação de Mestrado – Departamento
de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

[11] ROBAINA, Igor Martins Medeiros. Assistência social ou controle sócio-espacial: uma
análise das espacialidades políticas da Fundação Leão XII sobre as favelas cariocas
(1947-1962). Revista Espacialidades [online], v. 6, n. 5, p. 1984-817x, 2013.
Departamento de Serviço Social

[12] SLOB, Bart. Do barraco para o apartamento–a humanização e a urbanização de uma


favela situada em um bairro nobre do Rio de Janeiro. Universidade de Leiden, Holanda,
2002.

[13] VALLADARES, Licia. A gênese da favela carioca. A produção anterior às ciências


sociais. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo , v. 15, n. 44, p. 05-34, 2000.

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