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FESTAS DA MORTE.

Luiz Antonio Simas

Para os astecas, a morte está na origem da possibilidade de vida. O mito da


criação mais conhecido diz que quatro mundos existiram antes do atual. Cada
um terminou de forma violenta, mas os seres vivos sempre têm evoluído. Na
primeira criação os seres humanos foram feitos de cinza. Na segunda, eram
frágeis, caiam e nunca mais se levantavam. Na terceira, foram transformados
em aves. Na quarta, viraram macacos.

Depois da quarta criação, o deus Quetzalcóatl criou os humanos como somos


hoje. Com a ajuda de abelhas conseguiu roubar os ossos de gerações
passadas, guardados no País dos Mortos por Mictlantecuhtli (o venerável
Senhor dos Mortos). Auxiliado por Quilaztli, a deusa da fertilidade e da
maternidade, Quetzalcóatl triturou os ossos e os colocou em uma taça. Feito
isso, os banhou com o sangue de partes do seu corpo e do de Quilaztli:
nasceram assim Oxomoco e Cipactónal, os primeiros homem e mulher. Para
alimentá-los, o deus recorreu aos conhecimentos da formiga negra, que sabia
onde havia a comida que faria a humanidade prosperar: o milho.

Mictlantecuhtli ficou irritadíssimo com os ossos que foram roubados da morte


para possibilitar a vida. Só se acalmou quando Quetzalcóatl garantiu que os
ossos dos humanos sempre seriam restituídos ao reino dos mortos. Para que
os humanos não ficassem inconformados com a devolução dos seus ossos,
Mictecacihuatl, a deusa, prometeu: aqueles que devolveram os ossos serão
para sempre festejados com alegria.

O grande carnaval mexicano do "Dia de los muertos" tem origem em ritos


funerários dos astecas. Diz a tradição, bebendo na fonte do mito acima
exposto, que o furdunço do dia de finados mexicano é comandado pela deusa
Mictecacihuatl, esposa de Mictlantecuhtli, o senhor do reino dos mortos. A
circulação entre informações culturais fez com que a figura da deusa indígena
fosse aproximada à La Catrina, uma dama defunta da alta sociedade que - em
forma de esqueleto e sempre bem vestida - comanda a farra. La Catrina teve a
imagem popularizada no século XIX pelas gravuras do artista plástico José
Guadalupe Posada.

Os mexicanos acreditam que os mortos visitam seus parentes no segundo dia


de novembro para se divertir e não querem saber de melancolia. Se prevalecer
a tristeza, os finados ficam furiosos. A ordem é comer, beber, cantar, dançar e
o escambau. As crianças se esbaldam com caveirinhas de açúcar e chocolates
em forma de caixão, enfeitados com fitinhas roxas.

O mito da morte como propiciadora da vida, fundamento da visão dos astecas,


também se apresenta entre os iorubás. Olodumare, o deus maior, um dia deu a
Obatalá a tarefa da criação dos humanos, para que eles povoassem a terra.
Obatalá moldou os seres a partir do barro. Para isso, pediu a autorização de
Nanã, a senhora que tomava conta da lama. Os seres humanos, depois de
moldados, recebiam o emi - sopro da vida - e vinham para a terra. Aqui viviam,
amavam, tinham filhos, plantavam, se divertiam e cultuavam as divindades.
Um dia, o barro do qual Obatalá moldava os seres foi acabando. Olodumare
convocou os orixás para que eles apresentassem uma alternativa para o caso.
Como ninguém encontrou uma solução, e diante do risco da interrupção do
processo de criação, Olodumare determinou que se estabelecesse um ciclo.
Depois de certo tempo vivendo, os seres deveriam ser desfeitos, retornando à
matéria original, para que novas pessoas pudessem, com parte da matéria
restituída, ser moldadas.

Resolvido o dilema, restava saber de quem seria a função de tirar o sopro da


vida e conduzir as pessoas de volta ao todo primordial - tarefa necessária para
que outras viessem ao mundo.

Obatalá esquivou-se da tarefa. Vários orixás argumentaram que seria difícil


reconduzir os homens e mulheres ao barro original, privando-os do convívio
com a família, os amigos e a comunidade. Foi então que Iku, até ali calado,
ofereceu-se para cumprir a tarefa. Olodumare abençoou Iku. A partir daquele
momento, com a aquiescência de Olodumare, Iku tornava-se imprescindível
para que se mantivesse o ciclo da criação.

Desde então, Iku vem todos os dias ao mundo para escolher os homens e
mulheres que devem ser reconduzidos ao invisível. Seus corpos devem ser
desfeitos e o sopro vital retirado para que, com aquela matéria, outros seres
possam ser feitos - condição imposta para a renovação da existência.
Ao ver a restituição das mulheres e dos homens ao barro, Nanã chora. Suas
lágrimas amolecem a matéria-prima e facilitam a tarefa da moldagem de outras
pessoas.
Iku é o único orixá que tem a honra de baixar na cabeça de todas as pessoas
que um dia passaram pela terra. É por isso que no axexê, o ritual fúnebre que
celebra, prepara e comemora a volta das mulheres e dos homens ao todo
primordial, prestam-se homenagens a ele, com cantos de júbilo e louvação.
Os iorubás reafirmam no mito de Iku o mistério maior que os astecas também
celebraram: a beleza da morte como viabilidade, pela restituição dos seres ao
todo primordial, da grande festa da vida.

Já os ritos religiosos de diversas comunidades indígenas brasileiras, em sua


maioria, fundamentam-se na força da ancestralidade e na evocação do poder
da vida sobre a morte, mesmo quando esta última é celebrada. Entre danças,
pinturas corporais, adornos e máscaras, os ritos fúnebres louvam a
continuidade e reverenciam os que já se foram e, por isso mesmo, continuam.
Contam na praia sagrada de Morená, onde os rios Kuluene, Batovi e Ronuro se
encontram para formar o Xingu, que Mavutsinim, o primeiro homem do mundo,
queria ressuscitar os mortos. Cortou toras de madeira (kuarups) e levou-as
para a aldeia. Pintou as toras e as enfeitou com adornos coloridos de penas e
miçangas.
Mavutsinim começou então a cantar e dançar, para que as toras adornadas
fossem animadas pelos espíritos dos mortos e eles voltassem a viver. Assim
aconteceu. O pajé anunciou, todavia, que os homens que tivessem tido
relações sexuais nos dias da cerimônia não poderiam ver os ressuscitados. Um
índio foi vencido pela curiosidade e desrespeitou, mesmo depois de ter mantido
relações sexuais, o recado do pajé.

Assim que a proibição foi quebrada, os ressuscitados foram embora,


desanimando as madeiras que os trouxeram de volta à vida. Mavutsinim disse,
então, que a partir daquele instante os mortos não mais viveriam na matéria. O
Kuarup seria a cerimônia que celebraria a libertação da alma dos mortos para a
vida em outro mundo.

O Kuarup costuma acontecer uma vez por ano no Xingu. Cada tronco pintado e
adornado representa um morto da comunidade. Entre cantos, danças,
lamentos e objetos dos mortos, o Kuarup marca o fim do período do luto. Com
as toras que vão embora, morre o morto e acaba a dor. Quem vive agora é o
ancestral, na dimensão da memória da comunidade e na força sagrada da
natureza de Morená; onde o sol e a lua moram.

Não conheço coisa mais humana que essa luta lindamente perdida: a de
bordar de encantamentos a nossa necessária finitude.

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