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DESIGUALDADE SOCIAL

NA ANTIGUIDADE
AGENCIAMENTOS E LINHAS DE FUGA

2ª EDIÇÃO

1
2
FILIPE NOÉ DA SILVA
PEDRO PAULO A. FUNARI
SOFIA HELENA CARDOSO RODRIGUES
(ORGANIZADORES)

DESIGUALDADE SOCIAL
NA ANTIGUIDADE
AGENCIAMENTOS E LINHAS DE FUGA

2ª EDIÇÃO

3
Copyright © Autoras e autores

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos das autoras e
dos autores.

Filipe Noé da Silva; Pedro Paulo A. Funari; Sofia Helena Cardoso Rodrigues
[Orgs.]

Desigualdade social na Antiguidade: agenciamentos e linhas de fuga. 2ª


ed. São Carlos: Pedro & João Editores, 2023. 301p. 16 x 23 cm.

ISBN: 978-65-265-0454-3 [Impresso 1ª ed.]


978-65-265-0523-6 [Impresso 2ª ed.]

1. Desigualdade social. 2. Antiguidade. 3. História. I. Título.

CDD 370

Capa: Petricor Design


Ficha Catalográfica: Hélio Márcio Pajeú CRB - 8-8828
Revisão: Tiago Garcias
Diagramação: Diany Akiko Lee
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Hélio
Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da
Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil);
Ana Cláudia Bortolozzi (UNESP/Bauru/Brasil); Mariangela Lima de Almeida
(UFES/Brasil); José Kuiava (UNIOESTE/Brasil); Marisol Barenco de Mello
(UFF/Brasil); Camila Caracelli Scherma (UFFS/Brasil); Luís Fernando Soares Zuin
(USP/Brasil).

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 São Carlos SP
2023

4
À professora (e pioneira) Maria da Glória Alves Portal,
in memoriam.

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6
SUMÁRIO

PREFÁCIO 9
DESIGUALDADES ANTIGAS E OS DESAFIOS DO
PRESENTE
JULIO CESAR MAGALHÃES DE OLIVEIRA

DESIGUALDADE E AGENCIAMENTOS: UMA 17


INTRODUÇÃO
PEDRO PAULO A. FUNARI
FILIPE NOÉ DA SILVA
SOFIA HELENA CARDOSO RODRIGUES

A POPULAÇÃO NEGRA NA ANTIGUIDADE: AS 29


EMPODERADAS RAINHAS CANDACES
MARIA REGINA CANDIDO

UM ESTUDO DE GÊNERO A PARTIR DO UNIVERSO 47


DIONISÍACO DO SÉCULO V AEC
KAROLINI BATZAKAS DE SOUZA MATOS

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA PÓLIS ATRAVÉS DAS 61


FILHAS DE PANDORA: O CASO DAS MULHERES
HELENAS NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA
NATHALIA MONSEFF JUNQUEIRA

MULHERES, TRABALHO E DESIGUALDADE NO 87


IMPÉRIO ROMANO UMA LEITURA A PARTIR DA
EPIGRAFIA
FILIPE N. SILVA
CATARINA DE FARIA RODRIGUES

OS AGENCIAMENTOS DE LÍVIA E A DESIGUALDADE 115


SOCIAL POR CONTA DE GÊNERO NA ELITE ROMANA
TAIS PAGOTO BÉLO

7
A IDENTIDADE COMUNAL PAULINA E A PRÁXIS 143
IGUALITÁRIA EM GL 3,28
ROBERTA ALEXANDRINA DA SILVA

TEATRO E ATORES NA ROMA ANTIGA 167


CONSIDERAÇÕES SOCIAIS A PARTIR DO
SATYRICON DE PETRÔNIO
PEDRO PAULO A. FUNARI
FILIPE N. SILVA

DAS DESIGUALDADES, LINHAS DE FUGA. UM 181


ENSAIO SOBRE O SATYRICON DE PETRÔNIO E DE
LEMINSKI
RENATA SENNA GARRAFFONI

ASSIM COMO ESCREVO ISTO DE UM MODO HOSTIL, 211


QUE TUDO DÊ ERRADO PARA ELE: USOS E RELAÇÕES
SOCIAIS DAS DEFIXIONUM TABELLAE
MOGONTIACENSES
JESSICA REGINA BRUSTOLIM

ESTEREÓTIPO E DESUMANIZAÇÃO NAS 227


REPRESENTAÇÕES SOBRE OS HUNOS (SÉCULOS IV
V EC)
RODRIGO DOS SANTOS OLIVEIRA
SEMÍRAMIS CORSI SILVA

UMA MULHER ENTRE HOMENS INFLUENTES: 263


O ASSASSINATO DE HIPÁTIA DE ALEXANDRIA À
LUZ DE SÓCRATES E DAMÁSCIO
JOSÉ PETRÚCIO DE FARIAS JUNIOR

EPÍLOGO: OTREDAD, MORALISTAS Y PERSPECTIVAS 281


JORDI PÉREZ GONZÁLEZ

AUTORAS E AUTORES 297

8
TEATRO E ATORES NA ROMA ANTIGA
CONSIDERAÇÕES SOCIAIS A PARTIR DO
SATYRICON DE PETRÔNIO

Pedro Paulo A. Funari


Universidade Estadual de Campinas UNICAMP

Filipe N. Silva
Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC

Petrônio vê de cima o mundo que retrata


ERIC AUERBACH

O Satyricon fala a linguagem do baixo-ventre, sob o signo


da orgia, da bacanal,
da embriaguez, de Dionísio, da confusão carnavalesca de
todos os apetites
PAULO LEMINSKI

O SATYRICON DE PETRÔNIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Poucos textos oriundos da Antiguidade suscitaram tantos


debates como o Satyricon de Petrônio (SILVA, 2001). A chamada
Questão Petroniana, conforme já demonstrado por Cláudio Aquati
(2008), permanece até os dias atuais. Sobre esta obra, em particular,
são muitos os estudos que versam, entre outras coisas, a respeito
da
fragmentos, a extensão original, sua relação com outras obras
AQUATI, 2008, p. 223). Embora haja quem reivindique
sua datação para o período dos Flávios, estudos recentes sobre o
Satyricon atribuem sua composição para o período neroniano, por
volta de 62 e 64 d.C. (AQUATI, 2008, p. 223) ou cerca de 63 e 65 d.C.
(GARRAFFONI, 2002, p. 55).

167
Tal atribuição temporal, por sua vez, se relaciona à questão da
própria autoria do Satyricon. Com base na narrativa do historiador
latino Tácito (Anais, 16.17-19), ao menos desde o século XVI
(CONNORS, 1998), a feitura da obra em questão tem sido atribuída a
Tito (ou Gaio) Petrônio Níger, cônsul romano entre 60 e 62 d.C.,
procônsul da província da Bitínia e arbiter elegantiae na corte de Nero.
Em decorrência de uma acusação de conspiração contra o imperador,
Petrônio teria sido condenado ao suicídio em 66 d.C. (GARRAFFONI,
2002, p. 54-55; JOLY, 2010, p. 177; FLORES, 2016, p. 175).
Além do aspecto textual fragmentado, composto por cinco partes
independentes entre si (JOLY, 2010, p. 177), o Satyricon tem
despertado interesses diversos, de ordem histórica, literária,
sociológica, filológica, entre outros. Alguns desses percalços
começam, aliás, com a busca pelo significado do próprio título da
obra. Como demonstrado no livro Bandidos e salteadores na Roma
Antiga, de Renata Garraffoni (2002), acerca dessa questão haveria duas
possibilida pode ser satyrikos, palavra de origem
grega utilizada para mencionar pessoas que viviam do prazer sexual
ou satura
(GARRAFFONI, 2002, p. 55). Para a autora, aliás, a referida
denominação seria uma antecipação do próprio conteúdo do texto
proposto por Petrônio (GARRAFFONI, 2002, p. 56).
Em geral, a obra de Petrônio é interpretada como um romance,
ou um protorromance, mas também tem sido aproximada de outros
gêneros textuais: para Guilherme Gontijo Flores (2016, p. 175), o texto
petroniano se adéqua melhor a uma definição como prosimetrum, que

(FLORES, 2016, p. 175). Connors (1998, p. 04) e Joly (2010, p. 178), por
constatarem as variações temáticas e estilísticas contidas no Satyricon,
o aproximam da sátira, do romance, da literatura simposiática (à
maneira do Banquete de Platão) e também do mimo.
A proximidade entre o texto de Petrônio e o teatro romano
antigo, aliás, tem sido vislumbrada de maneiras distintas por
diversos estudos. Tais referenciais, apresentados a seguir,
nortearão nossa leitura posterior sobre a obra. Duas perguntas

168
delimitam os objetivos deste breve ensaio: 1) em quais excertos do
Satyricon podemos observar encenações teatrais? 2) Quais
informações a obra petroniana nos traz acerca do status social dos
atores de teatro na Roma Antiga, e dos grupos sociais subalternos
(FUNARI, 2021), em particular?

O SATYRICON E O TEATRO ANTIGO: ALGUMAS


APROXIMAÇÕES

Publicado por Gerald N. Sandy em 1974, o texto Scaenica


Petroniana (texto que, segundo o próprio autor, retoma
considerações anteriores sobre este mesmo tema) propõe uma
leitura do Satyricon de Petrônio, em geral, e da Cena Trimalchionis,
em particular, enquanto um espetáculo teatral (SANDY, 1974). De
acordo com Sandy (1974), essa aproximação seria plausível devido
à presença constante de performances cênicas no banquete de
Trimalquião. Exemplo disso é a encenação dos versos gregos pelos
homeristas (PETRON. Sat. 59; 03-07), marcado por uma grande
confusão histórica por parte de Trimalquião. Presumimos que este
episódio teria sido construído por Petrônio com o intuito de
reforçar a origem servil e popular do anfitrião (SILVA, 2021).
Também são mencionadas, no referido banquete, as participações
de músicos e acrobatas, sempre acompanhados pelas reações da
Cena.
A perspectiva defendida por Sandy (1974) também foi
utilizada a posteriori por outros estudiosos, tanto do texto
petroniano, quanto do teatro romano antigo. Esta postura pode ser
observada, por exemplo, no estudo Dinner Theater, de Christopher
Jones (1991). Pensando na teatralidade da Cena Trimalchionis, Jones
(1991, p. 185-186) destaca que a percepção deste episódio enquanto
um espetáculo teatral (com a presença de atores, do coro, de música
e encenações trágicas) encontraria guarida na própria composição
da narrativa, e teria sido elaborado com esta finalidade. Para
embasar seu argumento, o estudioso se reporta à seguinte
passagem do texto de Petrônio:

169
Por fim, nos acomodamos à mesa. Enquanto alguns escravos alexandrinos
derramavam em nossas mãos água refrescada pela neve, outros, indo
imediatamente aos nossos pés, tiravam os calos com imensa habilidade. Nem
nessa tarefa tão desagradável eles se calavam; ao contrário, cantavam em coro.
Eu quis verificar se todos os escravos cantavam e por isso pedi uma bebida.
Um escravo muito bem preparado atendeu-me com um canto não menos
estridente e, a qualquer um que algo fosse solicitado, era assim que ele servia.
Parecia mais um coro de pantomimos do que o triclínio de um homem
respeitável (PETRON. Sat. 31; 03-07. Tradução: Cláudio Aquati, 2008).

Apesar do caráter ficcional do Satyricon, Jones (1991, p. 190)


considera a possibilidade de a narrativa petroniana ecoar, já à época
imperial romana, um referencial cultural de tradição grega mais
antigo, e que, desde o Symposium de Xenofonte, tornaria comum à
literatura clássica a intersecção entre banquetes e espetáculos teatrais
com a presença de músicos, coro, pantomimoi e histriones. A propósito
do excerto supracitado, aliás, convém (de antemão) destacar a

A presença de escravos,
indivíduos pertencentes à nuança social desprovida de plenos direitos
e associados a características negativas, ademais, corroboram uma
visão pessimista (comum a alguns autores antigos) em relação aos
atores de teatro (EDWARDS, 1993). Voltaremos a este tema noutro
momento, procurando interpretar a relação entre esses referenciais e
a economia do texto de Petrônio. O estudo de Costas Panayotakis
(1995), com efeito, foi decisivo ao substanciar e difundir a percepção
de que o Satyricon pode ser lido à luz da sua possível representação
teatral, na convicção de que o autor tinha essa teatralidade em mente
ao compor a obra tão original e difícil de definir.
De maneira similar, Joly (2010) interpreta os episódios
narrados no banquete oferecido pelo liberto Trimalquião como um
conjunto de encenações teatrais pautadas nas relações escravistas
da sociedade romana do primeiro século. Além de reconhecer
semelhanças entre o Satyricon e o mimo, Joly (2010) destaca que a
referida Cena foi descrita:

170
Sob o comando de Trimalcião, o rico liberto que oferece o banquete, os
escravos cantam e dançam enquanto servem os convivas e até a apresentação
dos pratos principais, trazidos por escravos, é pautada por uma teatralidade e
artifícios de ilusão (JOLY, 2010, p. 179).

Antes de observarmos no Satyricon como os atores de teatro e


as encenações foram narradas por Petrônio, convém apresentar,
ainda que de maneira preambular, algumas considerações sobre o
mimo e seu lugar dentro do teatro romano antigo. Espera-se que
essa breve digressão permita uma leitura mais acurada do texto
petroniano e sua relação com o teatro romano antigo.

O MIMO E O TEATRO ROMANO ANTIGO:


CONSIDERAÇÕES SOCIAIS

De acordo com Marshall (2006), o mimo poderia ser definido


como um gênero teatral popular, de origem helenística, comum às
cidades gregas e de importante ressonância sobre as obras de
Plauto e de outros comediógrafos. Em sua acepção principal, mimus
poderia fazer referência a performances teatrais bastante distintas
entre si, o que sugere certa heterogeneidade a esse gênero teatral.
Tratava-se, portanto, de uma modalidade teatral realizada
inicialmente sob certo improviso, e que, a princípio, não requeria o
uso de máscaras. Sob essa condição, as apresentações de mimo
poderiam depender das expressões faciais de seus respectivos
praticantes (CALDELLI, 2015, p. 591). Ainda que sejam poucas as
produções literárias sobre o mimo, restando-nos referências
indiretas, menções na documentação papirológica e nos breves
escritos do liberto Publílio Sírio e as produções de Décimo Labério,
os mimos, no entanto, poderiam possuir um enredo literário como
base: suas encenações ocorriam sobretudo em espaços urbanos, em
teatros, anfiteatros e simpósios. Sua incorporação aos festivais
romanos, de acordo com Medeiros (2009, p. 426), por sua vez, teria
colaborado para o paulatino abandono dos arranjos de improviso.

171
Graças à epigrafia, ao estudo das inscrições transmitidas de
maneira direta da Antiguidade, podemos conhecer um pouco
melhor sobre a composição social dos grupos teatrais associados ao
mimo. Marshall (2006, p. 08) destaca que uma das particularidades
deste gênero teatral era, precisamente, a participação de mulheres.
Nas inscrições, aliás, pode-se observar a presença feminina não

protagonismo junto às referidas encenações. A inscrição a seguir,


atribuível ao segundo século da nossa era, faz menção a uma
mulher, provável liberta, e que era a chefe (arquemima) de um
mimo. Na inscrição funerária, a referida Cláudia Hermione é
elogiada como a melhor de sua época, por seus herdeiros
(FERRAGUT, 2018, p. 44-45).

Dormi / Claudiae / Hermionae / archimimae su/i temporis pri/mae


here/des.
CIL 6. 10106.
Localização: Roma.
Data: Séculos I-II d.C.

172
Tradução nossa:
Durma. À Cláudia Hermione, primeira arquemima de seu tempo.
Seus herdeiros.

Imagem: Manfred Clauss Epigraphik-Datenbank

Dentre os possíveis temas adotados pelo mimo, Marshall


(2006, p. 10) destaca o adultério e as relações sexuais. Contudo, não
convém tomar essa característica como uma regra principal e
absoluta: o mimo possuiu inúmeras variações temáticas ao longo
dos séculos (MEDEIROS, 2009, p. 427). Do ponto de vista da
performance, poderia haver também a utilização de componentes
musicais e acrobáticos (à maneira, portanto, do Satyricon de
Petrônio). Como destacado pelo estudo de Caroline Barbosa
Ferreira (2012):

O mimo caracterizava-se pelos gestos mímicos, da expressão corporal e da


dança, e era conhecido por suas palavras licenciosas e pelas danças lascivas,
que eram geralmente apresentadas pelas mulheres . Em Roma, o mimo
teve grande aceitação, possivelmente por ser mais livre e variado, mais
parecido com a vida, mais realista mesmo que a palliata e a togata
(FERREIRA, 2012, p. 26).

Apesar de ter possuído, ao que tudo indica, boa aceitação do


gosto popular (HORSFALL, 1996), o mimo não ficou imune às
restrições morais e críticas explícitas, e que podemos conhecer graças
às produções de escritores romanos como Catão, Marco Aurélio,
Tertuliano e outros tantos (EDWARDS, 1993, p. 105-106; PEREA
YÉBENES, 2004, p. 31-34). É importante destacar, no entanto, que
para Edwards (1993), em geral, o universo teatral ocupa uma posição
ambígua entre as elites romanas. Se, por um lado, reconhece-se que
os atores dos ludi scaenici, em geral, são denominados como infames,
por outro lado, deve-se constatar que o teatro possui, entre outras
coisas, um significado religioso para a cidade de Roma desde o ano
364 a.C. (TITO LÍVIO. Ab urbe condita. 7. 02).

173
Ainda que não seja uma obra de caráter teatral, presumimos,
o Satyricon pode nos oferecer considerações importantes, tanto no
que concerne às encenações ocorridas nos banquetes
aristocráticos (a partir sobretudo da Cena Trimalchionis), quanto
no que se refere às visões sociais sobre os atores/atrizes
envolvidos no mundo do teatro romano antigo. A seguir, alguns
excertos da obra de Petrônio foram selecionados conforme os
objetivos, já explicitados, deste capítulo.

AS ENCENAÇÕES NO BANQUETE DE TRIMALQUIÃO

A Cena Trimalchionis, o banquete capitaneado pelo liberto


Trimalquião, é um episódio que tem recebido significativa atenção
por parte dos estudiosos. O excerto do banquete, com efeito, remete
a um contexto histórico marcado por inúmeras contradições sociais
decorrentes da escravidão evidenciada na sociedade romana
antiga: em um conhecido artigo sobre esse tema, Paul Veyne (1990)
demonstrou como, por meio da leitura do excerto em questão,
podemos entrever os efeitos deletérios da escravidão sobre os
indivíduos a partir desse texto. Para o filósofo e historiador francês,
Trimalquião, embora rico e retirado da servidão por via
testamentária, carrega consigo toda a mácula associada àqueles que
outrora vivenciaram a experiência servil (VEYNE, 1990).
Esbanjando, em seu banquete, gostos e comportamentos mal
digeridos do refinado mundo aristocrático, Petrônio faz com que o
anfitrião do banquete deixe transparecer características
pertencentes a um indivíduo de baixo nível social. Nesse sentido, o
liberto Trimalquião seria, segundo a definição proposta por Veyne
(1990), um imitador dos ricos:

Assim, e para terminar, os ricos libertos colocam o sentido da sua condição


fora de si mesmos, numa perpétua imitação dos homens livres; eles não têm
uma consciência autônoma. Vivem num universo resplandecente no qual
se esforçam por acreditar , mas as durezas dos requisitórios pro domo e os
excessos de comportamento traem a sua inquietação e o seu mal-estar
(VEYNE, 1990, p. 43).

174
As encenações apresentadas no banquete de Trimalquião,
conforme já demonstrado por Sandy (1974) e Jones (1991), de certa
forma atendem à demanda do gosto popular: daí a sua
proximidade, argumentam os autores, com o mimo. Atendendo às
preferências do proponente do banquete, o espetáculo possuiria as
respectivas atrações:

Foi então que chegaram os acrobatas. Um idiota muito sem graça veio com
uma escada e foi mandando que um garoto dançasse pelos degraus e no topo,
ao ritmo das canções; depois, mandou-o atravessar círculos de fogo e erguer
uma ânfora com os dentes. Apenas Trimalquião admirava essas coisas, e dizia
que era uma profissão ingrata: de resto, dizia haver duas entre as coisas
humanas a que ele assistia com bastante prazer, equilibristas e corneteiros; o
restante, animais, números de música, era pura porcaria. Para falar a verdade
disse ele , eu tinha comprado atores cômicos, mas preferi que eles fizessem
uma atelana, e mandei o flautista do meu coral tocar músicas latinas
(PETRON.. Sat.. 53; 10-13. Tradução: Cláudio Aquati, 2008).

Em primeiro lugar, pode-se constatar a presença de músicos,


coreógrafos, dançarinos e outros tipos de artistas, inclusive atores
cômicos e da fábula atelana, contratados para atuar em um
banquete. Como observou Veyne (1990), Petrônio cria uma

Trimalquião em relação às apresentações dos artistas. Tal


caracterização, observável por meio da assertiva Apenas
Trimalquião admirava essas coisas , à luz das propostas
interpretativas sugeridas por Veyne (1990), pode ser relacionada à
origem popular do anfitrião que, embora rico, era oriundo de um
grupo social servil. Sobre o ramo artístico, em geral, Trimalquião
parece manifestar algum tipo de identificação ou simpatia ao

ingratum artificium esse).


As encenações na Cena Trimalchionis também fazem alusão a
cenas com animais. É notória, também, a maneira com que Petrônio
reconstitui esse tipo de apresentação no referido banquete

175
oferecido pelo liberto rico: a entrada, a performance e a reação de
aplausos da plateia remete a um ambiente similar ao do teatro:

Entrou um grupo e imediatamente bateu com estrépito as lanças nos


escudos. O próprio Trimalquião sentou-se numa almofada, e como os
homeristas dialogassem em versos gregos de modo incômodo como
costumam fazer, ele lia o livreto em latim, com voz de orador. Sem demora,
depois de feito silêncio, falou:
- Vocês sabem de que lenda eles estão tratando? Diomedes e Ganimedes foram
dois irmãos. Helena era irmã deles Agamêmnon raptou-a, e no lugar dela
sacrificou uma corça em honra a Diana. De modo que agora Homero conta
como troianos lutam entre si. Agamêmnon venceu, é claro, e entregou sua filha
Ifigênia como esposa a Aquiles. Por isso Ájax enlouquece, o que logo a seguir
vai mostrar a trama da história. Nem bem Trimalquião falou isso, os
homeristas soltavam gritos de aplauso e, entre os escravos que corriam para
todos os lados, apareceu um novilho cozido tinha um elmo na cabeça ,
trazido numa travessa de duzentas libras. Um Ájax veio em seguida e, com a
espada desembainhada, como se tivesse enlouquecido, retalhou o novilho,
tendo-o golpeado a torto e a direito. Recolheu os pedaços com a ponta da
espada e os repartiu entre os convidados que assistiam espantados à cena
(PETRON. Sat.. 59; 03-07. Tradução: Cláudio Aquati, 2008).

Neste excerto, a alusão (implícita) à origem social de


Trimalquião, bem como seu desconhecimento de uma cultura que
poderíamos denominar como erudita, está relacionada a seu
profundo no que concerne aos personagens mitológicos (Ájax,
Agamêmnon, entre outros) e seus feitos narrados pela poesia épica.
Por gozarem de um otium impossível à população comum, os
integrantes das classes altas valorizavam a erudição literária e o
conhecimento da tradição como forma de se distanciar dos grupos
sociais populares e suas respectivas manifestações culturais,
repletas de encenações, comédias, cantos, lutas de gladiadores e
outros tantos referenciais (FUNARI, 2003; SILVA, 2021).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda que Petrônio não tivesse por finalidade construir uma


narrativa que correspondesse precisamente à realidade histórica do

176
seu tempo (SILVA, 2001, p. 102), é inegável que seus escritos, de
certa forma, conduzem-nos a referenciais da sociedade da qual
autor e obra são oriundos. Como bem observou Glaydson José da
Silva (2001), Petrônio chega até nossos dias como um pintor, um
pintor de quadros sociais, que toma de empréstimo da vida social
os motivos que compõem sua obra, reelaborando-os pela ótica de
seu segmento social (SILVA, 2001, p. 104).
Em relação às imagens que faz dos atores e do teatro romano
do século I d.C., em geral, o Satyricon não se trata, portanto, de um
retrato fidedigno sobre como ocorria uma ou outra apresentação
cênica (seja do mimo ou mesmo dos espetáculos de banquetes).
Deve-se considerar que o grotesco, o cômico e a ironia retratados
por Petrônio (sobretudo na Cena Trimalchionis) têm a finalidade de
elaborar uma feição a um personagem social específico:
Trimalquião. Tais excertos, com efeito, dizem-nos mais sobre os
gostos de um antigo escravizado, um alforriado ou liberto, que
imita os ricos, do que do mundo teatral romano apesar de muitos
estudiosos, conforme procuramos demonstrar, associarem toda
essa trama ao mimo.
Serve como ressalva o fato de a narrativa petroniana oferecer
alguns indicativos sobre o universo social dos atores romanos: por
um lado, o amplo riso de Quartilha (PETRON, Sat. 19.01, Omnia
mimico risu ex sonuerant) é caracterizado como mímico, teatral
(PANAYOTAKIS, 1994). Esse é mais um indício sobre a já aludida
presença feminina nos mimos romanos. Por outro lado, o relato de
Críside (PETRON. Sat. 126; 05-07) nos apresenta os atores de teatro
em direta relação com as camadas mais baixas da sociedade. A
subalternidade de mulheres e de outros segmentos sociais fazia
parte do teatro romano popular e a relação entre o teatro erudito e
o popular encontra no Satyricon uma rara e profícua intersecção.

177
REFERÊNCIAS

Fontes Documentais
PETRONIUS; SENECA Satyricon; Apocolocyntosis. Translated by
Michael Heseltine. LOEB Classical Library. Harvard: University
Press, 1925.
PETRÔNIO. Satíricon. Trad. Cláudio Aquati. São Paulo: Cosac
Naify, 2008.
BIANCHET, Sandra M. G. B. Satyricon de Petrônio: Estudo
linguístico e tradução. Tese de Doutorado apresentada à
FFLCH/USP. São Paulo, 2002.

Referências Bibliográficas
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BRUNN, C.; EDMONDSON, J. (Ed.). The Oxford Handbook of Roman
Epigraphy. Oxford: University Press, 2015, p. 582-604.
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tradition in the Satyricon. Cambridge: University Press, 1998.
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Cambridge: University Press, 1993.
FERRAGUT, Helena Lorenzo. Mujeres en la escena romana a través
de la epigrafía. Revista de Iniciación en la Investigación del teatro clásico
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apresentada à UFES. Vitória, 2012.
FUNARI, Pedro Paulo Abreu. A vida quotidiana na Roma Antiga. São
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FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Epilogue: Agency, past, present and
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HORSFALL, Nicholas. La cultura della plebs romana. Barcelona, PPU,
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178
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