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NA ANTIGUIDADE
AGENCIAMENTOS E LINHAS DE FUGA
2ª EDIÇÃO
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FILIPE NOÉ DA SILVA
PEDRO PAULO A. FUNARI
SOFIA HELENA CARDOSO RODRIGUES
(ORGANIZADORES)
DESIGUALDADE SOCIAL
NA ANTIGUIDADE
AGENCIAMENTOS E LINHAS DE FUGA
2ª EDIÇÃO
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Copyright © Autoras e autores
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos das autoras e
dos autores.
Filipe Noé da Silva; Pedro Paulo A. Funari; Sofia Helena Cardoso Rodrigues
[Orgs.]
CDD 370
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À professora (e pioneira) Maria da Glória Alves Portal,
in memoriam.
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SUMÁRIO
PREFÁCIO 9
DESIGUALDADES ANTIGAS E OS DESAFIOS DO
PRESENTE
JULIO CESAR MAGALHÃES DE OLIVEIRA
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A IDENTIDADE COMUNAL PAULINA E A PRÁXIS 143
IGUALITÁRIA EM GL 3,28
ROBERTA ALEXANDRINA DA SILVA
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TEATRO E ATORES NA ROMA ANTIGA
CONSIDERAÇÕES SOCIAIS A PARTIR DO
SATYRICON DE PETRÔNIO
Filipe N. Silva
Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC
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Tal atribuição temporal, por sua vez, se relaciona à questão da
própria autoria do Satyricon. Com base na narrativa do historiador
latino Tácito (Anais, 16.17-19), ao menos desde o século XVI
(CONNORS, 1998), a feitura da obra em questão tem sido atribuída a
Tito (ou Gaio) Petrônio Níger, cônsul romano entre 60 e 62 d.C.,
procônsul da província da Bitínia e arbiter elegantiae na corte de Nero.
Em decorrência de uma acusação de conspiração contra o imperador,
Petrônio teria sido condenado ao suicídio em 66 d.C. (GARRAFFONI,
2002, p. 54-55; JOLY, 2010, p. 177; FLORES, 2016, p. 175).
Além do aspecto textual fragmentado, composto por cinco partes
independentes entre si (JOLY, 2010, p. 177), o Satyricon tem
despertado interesses diversos, de ordem histórica, literária,
sociológica, filológica, entre outros. Alguns desses percalços
começam, aliás, com a busca pelo significado do próprio título da
obra. Como demonstrado no livro Bandidos e salteadores na Roma
Antiga, de Renata Garraffoni (2002), acerca dessa questão haveria duas
possibilida pode ser satyrikos, palavra de origem
grega utilizada para mencionar pessoas que viviam do prazer sexual
ou satura
(GARRAFFONI, 2002, p. 55). Para a autora, aliás, a referida
denominação seria uma antecipação do próprio conteúdo do texto
proposto por Petrônio (GARRAFFONI, 2002, p. 56).
Em geral, a obra de Petrônio é interpretada como um romance,
ou um protorromance, mas também tem sido aproximada de outros
gêneros textuais: para Guilherme Gontijo Flores (2016, p. 175), o texto
petroniano se adéqua melhor a uma definição como prosimetrum, que
(FLORES, 2016, p. 175). Connors (1998, p. 04) e Joly (2010, p. 178), por
constatarem as variações temáticas e estilísticas contidas no Satyricon,
o aproximam da sátira, do romance, da literatura simposiática (à
maneira do Banquete de Platão) e também do mimo.
A proximidade entre o texto de Petrônio e o teatro romano
antigo, aliás, tem sido vislumbrada de maneiras distintas por
diversos estudos. Tais referenciais, apresentados a seguir,
nortearão nossa leitura posterior sobre a obra. Duas perguntas
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delimitam os objetivos deste breve ensaio: 1) em quais excertos do
Satyricon podemos observar encenações teatrais? 2) Quais
informações a obra petroniana nos traz acerca do status social dos
atores de teatro na Roma Antiga, e dos grupos sociais subalternos
(FUNARI, 2021), em particular?
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Por fim, nos acomodamos à mesa. Enquanto alguns escravos alexandrinos
derramavam em nossas mãos água refrescada pela neve, outros, indo
imediatamente aos nossos pés, tiravam os calos com imensa habilidade. Nem
nessa tarefa tão desagradável eles se calavam; ao contrário, cantavam em coro.
Eu quis verificar se todos os escravos cantavam e por isso pedi uma bebida.
Um escravo muito bem preparado atendeu-me com um canto não menos
estridente e, a qualquer um que algo fosse solicitado, era assim que ele servia.
Parecia mais um coro de pantomimos do que o triclínio de um homem
respeitável (PETRON. Sat. 31; 03-07. Tradução: Cláudio Aquati, 2008).
A presença de escravos,
indivíduos pertencentes à nuança social desprovida de plenos direitos
e associados a características negativas, ademais, corroboram uma
visão pessimista (comum a alguns autores antigos) em relação aos
atores de teatro (EDWARDS, 1993). Voltaremos a este tema noutro
momento, procurando interpretar a relação entre esses referenciais e
a economia do texto de Petrônio. O estudo de Costas Panayotakis
(1995), com efeito, foi decisivo ao substanciar e difundir a percepção
de que o Satyricon pode ser lido à luz da sua possível representação
teatral, na convicção de que o autor tinha essa teatralidade em mente
ao compor a obra tão original e difícil de definir.
De maneira similar, Joly (2010) interpreta os episódios
narrados no banquete oferecido pelo liberto Trimalquião como um
conjunto de encenações teatrais pautadas nas relações escravistas
da sociedade romana do primeiro século. Além de reconhecer
semelhanças entre o Satyricon e o mimo, Joly (2010) destaca que a
referida Cena foi descrita:
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Sob o comando de Trimalcião, o rico liberto que oferece o banquete, os
escravos cantam e dançam enquanto servem os convivas e até a apresentação
dos pratos principais, trazidos por escravos, é pautada por uma teatralidade e
artifícios de ilusão (JOLY, 2010, p. 179).
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Graças à epigrafia, ao estudo das inscrições transmitidas de
maneira direta da Antiguidade, podemos conhecer um pouco
melhor sobre a composição social dos grupos teatrais associados ao
mimo. Marshall (2006, p. 08) destaca que uma das particularidades
deste gênero teatral era, precisamente, a participação de mulheres.
Nas inscrições, aliás, pode-se observar a presença feminina não
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Tradução nossa:
Durma. À Cláudia Hermione, primeira arquemima de seu tempo.
Seus herdeiros.
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Ainda que não seja uma obra de caráter teatral, presumimos,
o Satyricon pode nos oferecer considerações importantes, tanto no
que concerne às encenações ocorridas nos banquetes
aristocráticos (a partir sobretudo da Cena Trimalchionis), quanto
no que se refere às visões sociais sobre os atores/atrizes
envolvidos no mundo do teatro romano antigo. A seguir, alguns
excertos da obra de Petrônio foram selecionados conforme os
objetivos, já explicitados, deste capítulo.
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As encenações apresentadas no banquete de Trimalquião,
conforme já demonstrado por Sandy (1974) e Jones (1991), de certa
forma atendem à demanda do gosto popular: daí a sua
proximidade, argumentam os autores, com o mimo. Atendendo às
preferências do proponente do banquete, o espetáculo possuiria as
respectivas atrações:
Foi então que chegaram os acrobatas. Um idiota muito sem graça veio com
uma escada e foi mandando que um garoto dançasse pelos degraus e no topo,
ao ritmo das canções; depois, mandou-o atravessar círculos de fogo e erguer
uma ânfora com os dentes. Apenas Trimalquião admirava essas coisas, e dizia
que era uma profissão ingrata: de resto, dizia haver duas entre as coisas
humanas a que ele assistia com bastante prazer, equilibristas e corneteiros; o
restante, animais, números de música, era pura porcaria. Para falar a verdade
disse ele , eu tinha comprado atores cômicos, mas preferi que eles fizessem
uma atelana, e mandei o flautista do meu coral tocar músicas latinas
(PETRON.. Sat.. 53; 10-13. Tradução: Cláudio Aquati, 2008).
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oferecido pelo liberto rico: a entrada, a performance e a reação de
aplausos da plateia remete a um ambiente similar ao do teatro:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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seu tempo (SILVA, 2001, p. 102), é inegável que seus escritos, de
certa forma, conduzem-nos a referenciais da sociedade da qual
autor e obra são oriundos. Como bem observou Glaydson José da
Silva (2001), Petrônio chega até nossos dias como um pintor, um
pintor de quadros sociais, que toma de empréstimo da vida social
os motivos que compõem sua obra, reelaborando-os pela ótica de
seu segmento social (SILVA, 2001, p. 104).
Em relação às imagens que faz dos atores e do teatro romano
do século I d.C., em geral, o Satyricon não se trata, portanto, de um
retrato fidedigno sobre como ocorria uma ou outra apresentação
cênica (seja do mimo ou mesmo dos espetáculos de banquetes).
Deve-se considerar que o grotesco, o cômico e a ironia retratados
por Petrônio (sobretudo na Cena Trimalchionis) têm a finalidade de
elaborar uma feição a um personagem social específico:
Trimalquião. Tais excertos, com efeito, dizem-nos mais sobre os
gostos de um antigo escravizado, um alforriado ou liberto, que
imita os ricos, do que do mundo teatral romano apesar de muitos
estudiosos, conforme procuramos demonstrar, associarem toda
essa trama ao mimo.
Serve como ressalva o fato de a narrativa petroniana oferecer
alguns indicativos sobre o universo social dos atores romanos: por
um lado, o amplo riso de Quartilha (PETRON, Sat. 19.01, Omnia
mimico risu ex sonuerant) é caracterizado como mímico, teatral
(PANAYOTAKIS, 1994). Esse é mais um indício sobre a já aludida
presença feminina nos mimos romanos. Por outro lado, o relato de
Críside (PETRON. Sat. 126; 05-07) nos apresenta os atores de teatro
em direta relação com as camadas mais baixas da sociedade. A
subalternidade de mulheres e de outros segmentos sociais fazia
parte do teatro romano popular e a relação entre o teatro erudito e
o popular encontra no Satyricon uma rara e profícua intersecção.
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REFERÊNCIAS
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