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JOÃO ROBERTO FARIA

UM SÓLIDO PANORAMA DO

q
uem conhece a produção crítica de com Anchieta, até 1908, data da morte de
Decio de Almeida Prado, princi- Artur Azevedo. Seu novo livro é mais um
palmente a que se seguiu à publi- resultado, portanto, dos trabalhos de pes-
cação do livro João Caetano, em quisa que desenvolveu ao longo dos últimos
1972, sabe que uma boa parte dos trinta anos, desde que abandonou a crítica
seus trabalhos foi dedicada à investigação teatral militante – praticada no jornal O Es-
do nosso passado teatral. Com especial tado de S. Paulo entre 1946 e 1968 – para se
predileção pelo século XIX, ele escreveu dedicar ao ensino do teatro brasileiro na
ensaios notáveis sobre os principais autores Universidade de São Paulo.
e obras dramáticas que marcaram o roman- No “Prefácio” que abre o livro, Decio de
tismo, o realismo e os tempos em que o te- Almeida Prado esclarece que não quis es-
atro cômico e musicado foi hegemônico nos crever um resumo ou um manual didático.
palcos brasileiros. Esses e outros ensaios, Sua abordagem tem um cunho ensaístico,
sobre autores e obras ainda mais remotos no uma vez que se guiou “por idéias, artísticas
tempo, como Anchieta, por exemplo, estão ou políticas, privilegiando em conseqüên-
reunidos nos livros O Drama Romântico cia certos autores e certas obras”. Tal opção
Brasileiro, Teatro de Anchieta a Alencar e significa que não estamos diante de uma obra
Seres, Coisas, Lugares. De certa forma, se excessivamente preocupada com informa-
dispostos na ordem cronológica da matéria ções, datas, números de peças escritas ou
abordada, tais ensaios, dirigidos a um públi- encenadas e outros detalhes que poderiam
co universitário, contêm a história do teatro atravancar o texto, tornando-o talvez mais
brasileiro, desde suas origens, no século XVI, preciso ou completo, do ponto de vista
até o início do século XX, com densas aná- historiográfico, mas menos rico quanto às
lises e interpretações. reflexões, análises e interpretações da nossa
Na recente História Concisa do Teatro dramaturgia e da nossa vida teatral. O pró-
Brasileiro, publicada pela Edusp, Decio de prio autor nos explica os seus propósitos e
Almeida Prado faz uma síntese das refle- comenta os resultados que alcançou:
xões presentes nos livros anteriores, rees-
crevendo-as para lhes dar a unidade neces- “Se retornei à história do teatro nacional,
sária ao objetivo, agora explícito, de contar em versão sucinta, foi para destacar-lhe as
a história do nosso teatro, a partir de 1570, grandes linhas, o arcabouço, ainda que com

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TEATRO
BRASILEIRO
JOÃO ROBERTO
FARIA é professor de
Literatura Brasileira da
FFLCH-USP e autor de O
o sacrifício de particularidades de ordem sos antepassados não são relevantes, por Teatro Realista no Brasil:
1855-1865 (Perspectiva/
artística. Em conseqüência disso, sem que outro podem iluminar a prática de um de- Edusp) e O Teatro na
Estante (Ateliê Editorial).
eu o planejasse, avultou a parte social, o terminado gênero teatral, o gosto e as ten-
diálogo que os nossos dramaturgos e dências de uma época ou de um movimen- História Concisa do Teatro
Brasileiro, de Decio de
comediógrafos travaram com os aconteci- to artístico. Almeida Prado, São Paulo,
mentos históricos do Brasil, sobretudo no A História Concisa do Teatro Brasilei- Edusp, 1999.

século XIX. Mas não me aborrece que tal ro, conforme observado acima, ocupa-se
haja sucedido. Acredito, com efeito, que a dos autores e obras surgidos entre 1570 e
obra de arte, quando não atinge o seu mais 1908. Logo, o primeiro capítulo não pode-
elevado objetivo, certamente o estético, per- ria deixar de abordar a figura do padre je-
manece de qualquer forma como documen- suíta José de Anchieta, que nos primeiros
to de época”. tempos da colonização portuguesa escre-
veu vários autos com o objetivo de cate-
Não se pense, em vista dessas palavras, quizar os índios. Decio de Almeida Prado
que o estudo analítico das peças teatrais é rigoroso em relação aos parcos resulta-
ficou em segundo plano. Ao contrário, dos artísticos dessa dramaturgia empenha-
como grande ensaísta que é, Decio de da em obter resultados práticos e encenada
Almeida Prado concilia as considerações precariamente. Aliás, com base nos depo-
críticas relativas à organização formal dos imentos dos viajantes que estiveram no
textos dramáticos com os comentários mais Brasil nos séculos XVII e XVIII, o histori-
amplos acerca do contexto histórico em que ador demonstra como foram pobres o tea-
foram escritos e lidos ou encenados. E se tro e a nossa vida teatral no período colo-
por um lado, do ponto de vista estético, nial. A dramaturgia não prosperou e a bai-
algumas peças teatrais deixadas pelos nos- xa qualidade dos espetáculos, geralmen-

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te feitos por artistas amadores em ocasiões uma contribuição marcante, tanto do ponto
festivas, foi o que ficou na memória de quem de vista estético quanto do ponto de vista
escreveu sobre o assunto. histórico, para a formação e consolidação
Apenas a partir do início do século XIX, do nosso teatro. Assim, o primeiro nome
com a chegada de D. João VI e da Corte que se impõe é o de Gonçalves de Maga-
portuguesa, o teatro se desenvolve no Bra- lhães, autor da tragédia Antonio José ou o
sil, em meio às agitações políticas que cul- Poeta e a Inquisição, encenada por João
minaram na Independência e na posterior Caetano em março de 1838, e que inaugura
abdicação de D. Pedro I. Decio de Almeida a vertente “séria” da dramaturgia brasileira
Prado destaca a contribuição das atrizes dos tempos românticos. A vertente cômica
portuguesas Mariana Torres e Ludovina nasce com Martins Pena, que tem sua pri-
Soares da Costa, que para cá vieram com meira comediazinha, O Juiz de Paz da Roça,
suas companhias dramáticas, para a encenada também em 1838. A esses dados
melhoria do repertório e dos espetáculos. históricos, já conhecidos de todos, Decio
Mas o feito principal dos artistas portugue- de Almeida Prado acrescenta comentários
ses que aqui representaram foi estimular a críticos que esclarecem as fontes onde be-
vocação do maior ator brasileiro de todo o beram os nossos dois primeiros autores
século XIX, João Caetano. Em poucas li- dramáticos, as características formais de
nhas, sua extraordinária carreira é apresen- suas peças e a importância maior de Martins
tada ao leitor, que assim é introduzido ao Pena no panorama geral do teatro brasilei-
romantismo, uma vez que foi ele quem ro do século XIX.
encenou pela primeira vez no Brasil, em Das produções dramáticas de cunho
1836, os dramas de Alexandre Dumas e romântico que vieram em seguida, mere-
Victor Hugo. ceram destaque os dramas de Gonçalves
Começa verdadeiramente na década de Dias, a peça Macário, de Álvares de Aze-
30 do século XIX a existência concreta do vedo, e quatro dramas históricos: Calabar,
teatro brasileiro, como Decio de Almeida de Agrário de Menezes; O Jesuíta, de José
Prado o compreende, isto é, como um sis- de Alencar; Sangue Limpo, de Paulo Eiró;
tema integrado por autores dramáticos, e Gonzaga ou a Revolução de Minas, de
peças, atores e público. Antes desse mo- Castro Alves. Apenas de passagem são
mento não estavam prontas no país as con- mencionados os melodramas de Luís An-
dições materiais necessárias para o desen- tonio Burgain e Martins Pena ou as poucas
volvimento das atividades teatrais. Quan- tentativas indianistas no teatro. Para cada
do João Caetano criou a primeira compa- um dos autores e das peças mencionadas
nhia dramática brasileira, em 1833, já ha- acima, Decio de Almeida Prado reserva uma
via um público formado pelo hábito de apreciação certeira, um julgamento basea-
assistir aos espetáculos dados pelas com- do em critérios estéticos que pode orientar
panhias portuguesas. Não demorou muito o leitor a perceber, por exemplo, a grande-
para que surgissem os primeiros autores za de um drama como Leonor de Mendon-
dramáticos, obviamente estimulados pela ça, de Gonçalves Dias – “o mais belo dra-
possibilidade de terem as suas peças repre- ma romântico brasileiro” – ou a
sentadas por João Caetano. inventividade e a ousadia presentes em
Uma pesquisa minuciosa desse passa- Macário, a “utopia dramática” de Álvares
do poderia trazer à tona uma série de no- de Azevedo.
mes hoje esquecidos, de escritores meno- A passagem do romantismo ao realis-
res e de dramaturgos bissextos, como os mo – na verdade as duas tendências estéti-
chamaria Manuel Bandeira. Mas para o cas convivem durante muito tempo nos
autor da História Concisa do Teatro Brasi- nossos palcos – ocorre por volta de 1855
leiro, o enfoque ensaístico exige que ape- com a criação, no Rio de Janeiro, do Teatro
nas os mais representativos sejam estuda- Ginásio Dramático, que encena peças fran-
dos, ou seja, aqueles que realmente deram cesas realistas e revela a novidade que logo

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será seguida por toda uma geração de jo- são ressaltadas as suas qualidades.
vens escritores brasileiros. A dramaturgia O teatro brasileiro transformou-se por
toma outro rumo, não mais preocupada com inteiro a partir de 1865. A preocupação li-
a questão da liberdade individual ou com terária que era constante entre os escritores
as grandes questões da nacionalidade – tema dramáticos do romantismo e do realismo
presente nos dramas históricos românticos praticamente desapareceu no período que
que colocaram em cena as lutas pela inde- se seguiu, por força dos novos gêneros te-
pendência do país – e sim com o cotidiano atrais, que se tornaram hegemônicos em
da família burguesa, que começava a des- nossos palcos. O capítulo que Decio de
pontar na vida social sob D. Pedro II. Nas Almeida Prado dedica aos “três gêneros do
palavras do autor: “O tema da liberdade, teatro musicado” – a opereta, a mágica e a
primeiro para as nações, depois para os revista de ano – é primoroso. Rico em in-
indivíduos, cede lugar à idéia burguesa de formações e análises, dá conta de caracte-
ordem, de disciplina social. Se o núcleo do rizar cada um desses gêneros no que têm de
drama romântico era freqüentemente a essencial, de historiar sua introdução no
nação, passa a ser, no realismo, a família, Brasil e rápida absorção por parte dos es-
vista como célula mater da sociedade”. critores dramáticos nacionais, de demons-
Vários escritores brasileiros abraçaram trar a enorme receptividade do público, que
a idéia de que o teatro devia ter uma nobre teve como contrapartida a decepção dos
missão social, debatendo questões de inte- intelectuais, e, por fim, de tirar do esqueci-
resse da burguesia, criticando e moralizan- mento os principais artistas cômicos da
do os costumes, oferecendo lições segunda metade do século XIX, como Fran-
edificantes aos espectadores, apresentan- cisco Corrêa Vasques – autor de Orfeu na
do, enfim, a vida em família como um ideal Roça, engraçadíssima paródia de Orfeu nos
a ser atingido e defendido contra todo tipo Infernos, de Offenbach –, Brandão O
de ameaça. Segundo Decio de Almeida Popularíssimo, Xisto Bahia, Machado Ca-
Prado, entre os autores que escreveram reca, Cinira Polônio e Pepa Ruiz. Nesse
dramas ou comédias realistas, destacaram- contexto, avulta o nome de Artur Azevedo,
se Pinheiro Guimarães, que conseguiu enor- como o comediógrafo que mais traduziu,
me sucesso com a História de uma Moça adaptou e escreveu operetas, além de ter
Rica, e Quintino Bocaiúva, que debateu os sido o mais bem-sucedido autor brasileiro
temas polêmicos da prostituição e do enri- de revistas de ano. De sua vastíssima pro-
quecimento ilícito em suas peças. Mas é dução, são estudadas, para exemplificar o
por meio da análise da obra dramática de funcionamento desses dois gêneros do te-
José de Alencar que o realismo teatral é atro musicado, A Filha de Maria Angu,
caracterizado na História Concisa do Tea- paródia da opereta La Fille de Mme Angot,
tro Brasileiro. Mais conhecido como ro- de Charles Lecocq, e a revista de ano O
mancista romântico, o autor de O Guarani Tribofe, encenada em 1892. Também não
não adotou o modelo dramático de Alexan- ficou de fora das análises o papel desempe-
dre Dumas ou Victor Hugo, deixando-se nhado pelos maquinistas e cenógrafos que
seduzir pela comédia realista de Alexandre se notabilizaram no período, a exemplo de
Dumas Filho. É nesse dramaturgo que Carrancini e Coliva, por conta dos grandes
Alencar colheu uma série de sugestões for- desafios impostos pelos três gêneros do
mais e temáticas, sem todavia desviar os teatro cômico e musicado, em especial a
olhos da realidade nacional, como compro- mágica (que os franceses denominavam
vam o drama Mãe e a comédia O Demônio féerie), inteiramente dependente de truques
Familiar, que trazem o problema da escra- cênicos que encantavam os espectadores.
vidão para o palco. O julgamento da O teatro como entretenimento foi abso-
dramaturgia do escritor é por vezes severo, lutamente hegemônico nos palcos brasilei-
mas no tom adequado. Se os defeitos de ros em fins do século XIX. Decio de
fatura das peças são apontados, igualmente Almeida Prado observa que o drama ro-

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mântico e o realista não tiveram continui- camente todas as características da
dade e que da produção dramática anterior dramaturgia então em voga. Elas “retiram
apenas a comédia despretensiosa de Martins a sua substância e a sua forma a um só
Pena foi retomada, servindo de ponto de tempo da comédia de costumes, da opereta,
partida para comediógrafos como Joaquim da revista, e até, com relação a certos efei-
Manuel de Macedo, França Júnior e Artur tos cenográficos, da mágica”.
Azevedo. Quer dizer, ao lado das formas O novo livro de Decio de Almeida Pra-
do teatro musicado, a comédia de costumes do termina com uma série de informações
construída com recursos farsescos também sobre a vida teatral brasileira na virada do
fez sucesso. O autor da História Concisa século, marcada também pelo prestígio da
do Teatro Brasileiro não atribui muito va- ópera e pela vinda de artistas europeus, que
lor à obra de Macedo, que é extensa e varia- aqui encenavam Shakespeare, a tragédia
da, mas enxerga qualidades em comédias clássica ou as novidades representadas por
como A Torre em Concurso e O Macaco do um Ibsen ou um Sudermann. Completa-se
Vizinho. De França Júnior ele destaca as assim o panorama iniciado com os comen-
comédias Como se Fazia um Deputado, tários sobre a obra do padre José de
Caiu o Ministério e As Doutoras, consi- Anchieta, compreendendo as origens, a
derando que as duas primeiras têm ótimo formação e o desenvolvimento do teatro
rendimento crítico e satírico, enquanto a brasileiro, até 1908. E se até este ponto
terceira decepciona por seu conserva- ressaltei principalmente as qualidades do
dorismo. Os elogios sem restrições esta- livro, enquanto ensaio historiográfico, já é
vam reservados a Artur Azevedo, nosso tempo de lembrar que elas decorrem das
principal homem de teatro da época, de qualidades do autor, aliás muito bem defi-
quem são analisadas duas burletas consi- nidas por João Moura Jr.: solidez do co-
deradas obras-primas: A Capital Federal nhecimento, decantação do estilo, ponde-
e O Mambembe. As burletas são um tipo ração no julgamento e equilíbrio perfeito
de peça em que estão condensadas prati- entre detalhe e visão de conjunto.

346 REVISTA USP, São Paulo, n.44, p. 342-346, dezembro/fevereiro 1999-2000

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