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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES


DEPARTAMENTO DE ARTES CÊNICAS

ENTRE JABUTIS, PÁSSAROS E DEUSES:


Uma experiência de Teatro Fórum com crianças residentes da favela São Remo
Ana Beatriz de Andrade Cangussu Lima

Projeto de Pesquisa apresentado à disciplina de


Trabalho de Conclusão de Curso I - Prof. Dra.
Maria Lúcia de Souza Barros Pupo -
Universidade de São Paulo

SÃO PAULO
2023
SUMÁRIO

RESUMO………………………………………………………………………………………3

INTRODUÇÃO……………………………………...…………………………………….…..4

OBJETIVOS…………………………………………………………………………………...6

JUSTIFICATIVA……………………………………………………………………………….
7

METODOLOGIA E DOCUMENTAÇÃO…………………………………………….
……………………………..7

CRONOGRAMA………...…………………………………………………………………….9

BIBLIOGRAFIA...……………………………………………………………………..…….10

ANEXOS……...…………………………………………………………………………...…12

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RESUMO

O projeto propõe-se a estudar e apresentar uma experiência de Teatro Fórum, a qual será fruto
de um programa artístico-pedagógico desenvolvido pela presente autora em conjunto com
crianças de faixas etárias variadas (6 a 12 anos) participantes do grupo Batatinha Frita
Coletivo Teatral do Riacho oriundo da favela São Remo, Zona Oeste da capital paulistana.
Nesse sentido, com base nos estudos de Boal (2015), Santos (2019), Pupo (2005) e Netto
(2018), planeja-se conduzir os encontros semanais previstos no programa artístico-pedagógico
e analisar o percurso do grupo, tendo como critérios estruturas do fazer teatral. Alguns pontos
possíveis de reflexão são: a apropriação do material narrativo escolhido e reconhecimento da
temática abordada; a formação e integração do coletivo; e o desenvolvimento físico, vocal e
imaginativo. Além disso, será feita uma breve avaliação acerca do impacto da experiência de
Teatro Fórum na comunidade citada. Assim, o projeto caminha para contribuir com os estudos
da pedagogia teatral com crianças ao buscar uma intersecção entre a função artística e a
função social do teatro.

Palavras-chave: Pedagogia teatral; Infância; Processo criativo; Teatro do Oprimido.

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INTRODUÇÃO

A presente pesquisa será desenvolvida na cidade de São Paulo, mais especificamente


na Zona Oeste dentro da favela da São Remo, no Centro Cultural Riacho Doce. Espaço, esse,
não formalizado, onde acontecem majoritariamente aulas de capoeira. Entretanto, desde maio
de 2022, devido a minha pesquisa de iniciação científica nomeada “As reflexões sobre ‘teatro
popular’ em Augusto Boal: o processo de escrita do livro Técnicas Latinoamericanas de
Teatro Popular”, há também o oferecimento de aulas de teatro. O meu encontro com o Centro
Cultural Riacho Doce ocorreu através de uma pesquisa espontânea de espaços culturais
situados perto da minha residência e, posteriormente, de uma rápida conversa acerca das
práticas teatrais com o respectivo mestre de capoeira do local. A partir de então, no período
noturno todas as terças-feiras são reservadas para as aulas de teatro. O trabalho é conduzido,
prioritariamente, com as metodologias do Teatro do Oprimido e do Teatro das Oprimidas. O
público predominante são crianças pardas e pretas de faixas etárias diversas, entre 6 a 12 anos,
praticantes de capoeira, residentes do Riacho Doce, parte baixa da favela da São Remo, que
formam o grupo Batatinha Frita Coletivo Teatral do Riacho. Tendo isto em vista, é possível
perceber que a proposta da presente pesquisa, regência e análise de uma experiência de Teatro
Fórum com crianças, emerge de um trabalho pedagógico já em curso e que promove, ainda,
perspectivas de continuidade.

O desejo em fazer uma experiência de Teatro Fórum surge da possibilidade de criar


diálogos entre as crianças e a comunidade em que residem, já que essa prática tem em seu
cerne a encenação de um conflito proveniente de uma situação de opressão e as possíveis
intervenções propostas pelos “espect-atores” - público ativo que se desloca dos assentos da
plateia em direção à ocupação do palco. Essa técnica criada e sistematizada dentro da
metodologia do Teatro do Oprimido pelo teatrólogo Augusto Boal na década de 1970 objetiva
romper a barreira entre atores e espectadores, bem como estimular a ampla participação
teatral e política dos integrantes. A partir dos estudos de Boal e das experiências práticas
vividas com esse teatrólogo, os/as multiplicadores/as de seu método aprofundam importantes
pesquisas no campo da pedagogia teatral. Uma delas é a atriz, diretora e curinga Bárbara
Santos que à luz das questões candentes na contemporaneidade faz uma releitura do Teatro do
Oprimido, nomeado Teatro das Oprimidas. Portanto, o trabalho tentará fazer um rápido voo
sobre as diferenças e semelhanças observadas nos dois autores no que diz respeito às práticas
de Teatro Fórum.
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Posto isso, a pesquisa busca, a partir do impacto estético e político da experiência,
posicionar as crianças como sujeito do discurso e mobilizar a comunicação entre elas e sua
rede de responsáveis dentro da comunidade. Também, a pesquisa almeja valorizar suas
infâncias, que são muitas vezes negligenciadas e apagadas pela condição de pobreza e de
desumanização. Fato que coloca para esses indivíduos os afazeres domésticos e/ou cuidados
com outras crianças como prioridade em relação ao brincar. Por essas e outras razões, como
pelo fato do grupo possuir diferentes faixas etárias (6 a 12 anos), tendo crianças que ainda não
são familiarizadas com as aulas de teatro e a linguagem teatral, as metáforas serão objeto
basilar da criação.

Seguindo essa lógica, vê-se a necessidade do lúdico e da narrativa para que o trabalho
possa se desenvolver estética e tematicamente com as crianças. Os estudos de Maria Lúcia
Pupo (1991, 2005) no que tange à pedagogia teatral, às reflexões sobre o lúdico e a construção
de sentidos e ao uso de textos narrativos enquanto propulsores de jogo e vice-versa serão
referências fundamentais para o seguimento da pesquisa. Até o momento, foram feitos jogos,
tais como: “Imagem da Hora”; “Quantos 'as"'; “Máquina de Ritmos”; “Imagem da palavra”; e
outros no sentido de adentrar os assuntos relevantes à vida dessas crianças. Para inspirar as
criações do grupo, escolhi um conto africano, comumente nomeado “O Jabuti de Asas”,
presente no livro “O mundo se despedaça” do autor nigeriano Chinua Achebe. A partir dessa
narrativa lúdica que conta a história de um desentendimento entre pássaros e um jabuti, em
ocasião de uma festa no céu proposta pelos deuses, que acaba por causar a formação
aparentemente quebradiça do casco do segundo animal, pretende-se criar a dramaturgia do
Teatro Fórum. Até a apresentação da experiência para a comunidade teremos
aproximadamente um percurso formado por doze encontros.

Por fim, assim como Carolina Angélica Netto, doutoranda em Educação, Contextos
Contemporâneos e Demandas Populares e integrante do grupo Magdalenas Anastácia do
Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro, considera sua pesquisa uma Pesquisa-Ação
Ativista, também considero esta, já que ela não busca uma ideia de neutralidade e é “uma
pesquisa ação com caráter de intervenção”. Como parte do estudo são incluídas as minhas
experiências sociais e políticas juntamente com as dos participantes envolvidos no campo da
investigação para elaborarmos sobre “Como criar coletivamente uma experiência de
Teatro Fórum com crianças residentes da favela São Remo?”
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OBJETIVOS

O projeto tem por objetivo criar e apresentar uma experiência de Teatro Fórum com
crianças do grupo Batatinha Frita Coletivo Teatral do Riacho residentes na favela São
Remo, Zona Oeste de São Paulo. Desse modo, os objetivos específicos para a concretização
da pesquisa são:

1. Estimular o interesse pela linguagem teatral e democratizar o acesso à arte, por meio
do planejamento e execução de aulas de teatro semanais no Centro Cultural Riacho
Doce;

2. Corroborar para as reflexões acerca das práticas de teatro infantil, a partir da


elaboração deste presente estudo de caso;

3. Despertar o pensamento crítico e indiretamente a formação de público, por meio do


debate entre as crianças participantes e a plateia, uma vez que a experiência de Teatro
Fórum se encontrará com a comunidade, consequentemente, com suas diversas
crenças e convicções;

4. Potencializar o estudo do Teatro do Oprimido e do Teatro das Oprimidas e sua


utilização, sobretudo, com crianças de diferentes idades, por meio da análise e
classificação dos jogos dessa metodologia e da criação de programas artístico-
pedagógicos combinados com outras metodologias teatrais.

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JUSTIFICATIVA

A pesquisa, dentre outros aspectos, mostra-se relevante ao estimular a formação


artística de crianças, novas produções populares de teatro e a aproximação entre a linguagem
teatral e a população residente na favela São Remo, na Zona Oeste da capital de São Paulo.
Nesse projeto, almeja-se e trabalha-se para que as crianças sejam protagonistas do próprio
fazer teatral e possam, desde a base, refletir sobre as opressões que lhes acometem.

Além disso, a pesquisa desenvolverá um processo criativo guiado majoritariamente


por uma metodologia brasileira de teatro, o Teatro do Oprimido e o Teatro das Oprimidas.
Sua força se liga ainda a essa inscrição geográfica (latinoamericana) e conceitual (popular)
que se conecta diretamente com a identidade dos brasileiros. Novas reflexões são traçadas
quando essas sistematizações são colocadas em função de uma prática teatral infantil.
Ademais, a pesquisa oferece chão para retomar a pauta do teatro político brasileiro, utilizando
a técnica do Teatro Fórum enquanto um propulsor de debate, conflito de ideias e de
argumentações, a fim de construir um ensaio para as lutas reais contra as políticas de opressão
contemporâneas. Segundo Boal, “A única coisa que não se pode modificar no Teatro do
Oprimido são seus dois princípios fundamentais: o espectador deve protagonizar a ação
dramática e deve preparar-se para protagonizar a própria vida! Isso é o essencial.” (BOAL,
2015, p.317)

METODOLOGIA E DOCUMENTAÇÃO

A Pesquisa-Ação Ativista se estrutura em duas frentes combinadas: uma prática, outra


teórica. Na frente teórica será feito um mapeamento e análise das bibliografias referentes à
metodologia do Teatro do Oprimido (T.O.) e suas multiplicações, contando, prioritariamente,
com os livros e estudos de Augusto Boal (2015), Bárbara Santos (2019), Carolina Netto
(2018) e Maria Lúcia Pupo (2005). Nesse sentido, será possível observar os debates acerca
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das práticas de Teatro Fórum e suas construções nos devidos contextos apresentados pelos
autores e elaborar classificações e comentários acerca da metodologia trabalhada.

O trabalho de Netto “Por uma educação antirracista: teatro do oprimido, letramento


étnico-racial e a transformação social de meninas negras (2018)” também oferece uma
perspectiva sobre outro mapeamento teórico importante: a pedagogia infantil. Seu projeto
apresentado ao Programa de Pós Graduação em Relações Étnico Raciais do CEFET/RJ de
Pesquisa-ação Ativista, desenvolveu em uma escola da rede municipal de Duque de
Caxias/RJ, um laboratório de investigação cênica utilizando os jogos e técnicas teatrais do
T.O., com meninas do 5º ano de escolaridade do ensino fundamental, para a criação coletiva
de uma peça de Teatro Fórum. Além disso, a pedagogia teatral será mapeada por meio do
vasto trabalho de Maria Lúcia Pupo, a qual conduz processos de aprendizagem teatrais com
adultos a partir de textos literários e reflete sobre a condição do teatro infantil na cidade de
São Paulo.

No que se refere à frente prática, a metodologia se valerá do planejamento e regência


semanal de aulas de teatro para as crianças, criando um diário de bordo sobre os encontros e,
em seguida, uma proposta de dramaturgia para o Fórum a partir dos jogos e brincadeiras
feitos com as crianças. E, a possível “resposta” à pergunta “Como criar coletivamente uma
experiência de Teatro Fórum com crianças residentes da favela São Remo?” se dará pela
análise do início do processo até o seu fim, tendo em vista três critérios principais:

i) Apropriação do material narrativo escolhido e reconhecimento da temática


abordada:
O material narrativo escolhido foi o conto “O Jabuti de Asas”. Será analisado o engajamento
das crianças com a encenação da história, de modo a entender se foi/como foi possível se
apropriar teórica e teatralmente de alguns elementos da narrativa como o tempo, o espaço, os
personagens, o conflito e as ações. Além disso, será analisada a capacidade de abstração da
história apresentada e criação de novas narrativas a partir deste primeiro material em direção
ao Fórum. Simultaneamente, em relação à temática, será observado, a partir de jogos, quais as
transformações de opiniões e ideias acerca do assunto trabalhado - que, até o presente
momento, tem sido “bater e apanhar”.

ii) Formação e integração do coletivo:


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Por meio de jogos, sobretudo de aquecimentos e jogos de interação de grupo, da maneira
como cada criança se refere a outra e até mesmo do número de participantes ao longo das
aulas, será observado o fortalecimento/enfraquecimento do coletivo Batatinha Frita Coletivo
Teatral do Riacho. Algumas questões também podem ser levantadas aqui, por exemplo:
Como essas crianças que residem em um mesmo local convivem entre si? Quais são as
premissas para se formar um grupo de teatro integrado por crianças? Quais fatores alteram o
comportamento do grupo?

iii) Desenvolvimento físico, vocal e imaginativo:


A partir da produção estética final em coerência com o processo criativo e das conversas
informais com as crianças será examinado se elas, ao terem contato com a linguagem teatral,
por meio de jogos, cenas e da experiência de Fórum, expandiram o seu repertório corporal,
sonoro e simbólico.

CRONOGRAMA

Fases/Meses Mai. Jun. Jul. Ago. Set. Out.


2023 2023 2023 2023 2023 2023

Avaliação e Reelaboração da prática artístico-


pedagógica já em curso

Mapeamento e Análise das bibliografias

Construção e acompanhamento do Programa de Aulas

Aulas semanais de teatro para crianças com duração de


1h/aula no Centro Cultural Riacho Doce

Realização da experiência de Teatro Fórum

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Elaboração da monografia

BIBLIOGRAFIA

ACHEBE, Chinua. O mundo se despedaça. São Paulo, Companhia das Letras, 2009.

BOAL, Augusto. Técnicas Latino-Americanas de Teatro Popular, uma revolução


copernicana ao contrário. São Paulo: Editora Hucitec, 1979.

___. 200 Exercícios e Jogos para o Ator e o Não-Ator com Vontade de Dizer Algo Através do
Teatro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 4ª edição, 1982.

___. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

___. Jogos para Atores e Não Atores. Posfácio: Sergio de Carvalho. Tradução: Barbara
Wagner Mastrobuono e Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

CAMELO, Diego de Castro. Mediação teatral e infância: pistas para uma aproximação a
partir do faz de conta. Monografia (Graduação). Escola de Comunicações e Artes,
Universidade de São Paulo, 2020.

GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por
emancipação. Petrópolis: RJ, Vozes, 2017.

10
LEAL, Dodi (org). Teatra da Oprimida [livro eletrônico]: últimas fronteiras cênicas da pré-
transição de gênero. Porto Seguro: UFSB, 2019.

NASCIMENTO, Rachel . Letramento racial crítico e teatro das oprimidas: Peça “Nega ou
Negra?” do Coletivo Madalena Anastácia. 2018. (Apresentação de Trabalho: X COPENE - X
Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as).

___. Cor das Oprimidas: Coletivo Madalena Anastácia como movimento feminista negro
educador. Dissertação (Mestrado). Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow
da Fonseca (CEFET/RJ), 2019.

NETTO, Carolina Angélica Ferreira. Por uma educação antirracista: teatro do oprimido,
letramento étnico-racial e a transformação social de meninas negras. Dissertação
(Mestrado). Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ),
2018.

PUPO, Maria Lúcia de Souza Barros. No reino da desigualdade: Teatro Infantil em São
Paulo nos anos setenta. São Paulo: Perspectiva, 1991.

___. O lúdico e a construção do sentido. São Paulo: Sala Preta, 2001, v.1, p. 181-187.
https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v1i0p181-187

___. Entre o Mediterrâneo e o Atlântico, uma aventura teatral. São Paulo: Perspectiva, 2005.

SANTOS, Bárbara. Teatro do Oprimido Raízes e Asas: uma teoria da práxis. 1ª ed. Rio de
Janeiro: Ibis Libris, 2016.

___. Percursos Estéticos: imagem, som, ritmo, palavra – abordagens originais sobre o
Teatro do Oprimido. 1ª ed. São Paulo: Padê editorial, 2018.

___. Teatro das Oprimidas. Rio de Janeiro: Casa Philos, 2019.

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ANEXOS

1. Conto “O Jabuti de Asas” retirado do livro “O mundo se despedaça” de Chinua


Achebe

— Uma vez — começou ela — todos os pássaros foram convidados para uma festa no céu.
Estavam felicíssimos, preparando-se para o grande dia. Pintavam o corpo com tintura
vermelha de madeira e nele faziam belos desenhos. O Cágado, que assistia a todos esses
preparativos, logo descobriu o significado daquilo tudo. Nada do que acontecia no mundo dos
animais lhe escapava, pois era muito astuto. Tão logo ouviu dizer que ia haver uma grande
festa no céu, sua goela começou a coçar só de pensar no assunto. Naqueles dias estava
havendo uma grande escassez de alimentos e fazia duas luas que o Cágado não comia uma
boa refeição. Seu corpo chocalhava todo como um pedaço de pau seco dentro de um casco
vazio. Então começou a planejar uma maneira de
ir ao céu.

— Mas como, se ele não tinha asas? — interrompeu Ezinma.


— Seja paciente — respondeu a mãe. — A história explica isso.

O Cágado não tinha asas, é verdade, mas mesmo assim foi falar com os pássaros e pediu-lhes
licença para ir com eles à festa. “Nós conhecemos você bem demais”, responderam os
pássaros, depois de ouvi-lo falar. “Você é um sujeito ingrato e cheio de astúcias. Se

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permitirmos que venha conosco, logo, logo fará uma das suas!” O Cágado contestou: “Vocês
pensam que me conhecem. Eu estou completamente mudado. Aprendi que aqueles que
arranjam encrenca para os outros estão mais é arranjando encrencas para si próprios”. O
Cágado tinha muita lábia e em pouco tempo todos os pássaros concordaram que ele tinha
realmente mudado. Então, cada um lhe deu uma de suas penas e com elas o Cágado fabricou
duas asas. Por fim, veio o grande dia e o Cágado foi o primeiro a chegar ao ponto de encontro.
Quando todos os pássaros já estavam reunidos, partiram em bando. O Cágado estava muito
contente e falante no meio das aves e, passado pouco tempo, elas o escolheram para fazer o
discurso durante a festa, porque o consideravam um grande orador. “Há algo muito
importante que não podemos esquecer”, disse ele enquanto voavam para o céu. “Quando as
pessoas são convidadas para uma grande festa como esta, elas costumam adotar nomes novos,
em honra da ocasião. Nossos hospedeiros, lá no céu, naturalmente esperam que sigamos essa
tradição tão antiga.” Nenhum dos pássaros jamais ouvira falar nisso, mas eles sabiam que o
Cágado, embora tivesse outros defeitos, era um sujeito viajado, que conhecia os usos e
costumes de diversos povos. Então, cada um deles resolveu adotar um nome novo. Quando
todos já tinham escolhido um novo nome, o Cágado anunciou o seu. Passaria a se chamar
Todos Vocês. E Ekwefi continuou. — Por fim, o bando chegou ao céu e seus hospedeiros
ficaram muito satisfeitos de vê-los. O Cágado, nas suas plumagens multicores, levantou-se e
agradeceu o convite. Tão eloquente foi seu discurso, que todos os pássaros se sentiram felizes
por tê-lo levado à festa. E abanavam a cabeça, com ar de aprovação, a tudo o que ele dizia. Os
hospedeiros pensaram que o Cágado fosse o rei dos pássaros, principalmente porque parecia
um tanto quanto diferente de seus companheiros. Depois de terem sido trazidas e comidas as
nozes de cola, o povo do céu colocou diante dos convidados os mais deliciosos manjares que
o Cágado jamais vira ou sonhara. A sopa foi trazida quente do fogo, no mesmo caldeirão onde
fora cozinhada. Estava cheia de carne e peixe. O Cágado farejava ruidosamente. Havia pirão
de inhame e também sopa de inhame com peixe fresco, cozida no azeite de dendê. Havia
ainda potes de vinho de palma. Quando tudo foi colocado diante dos convidados, um dos
habitantes do céu adiantou-se e provou um pouco de cada prato. Depois, pediu aos
convidados que começassem a comer. Mas o Cágado, pondo-se de pé num salto, perguntou:

“Para quem foi preparado este banquete?”.

E o hospedeiro respondeu: “Para todos vocês”. Voltando-se para os outros pássaros, o Cágado
disse: “Não esqueçam que meu nome é Todos Vocês. O costume aqui é servirem o orador do
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grupo em primeiro lugar e mais tarde, os restantes. Assim que eu terminar de comer, eles
servirão vocês”. E assim falando, começou a comer, enquanto os pássaros resmungavam entre
si raivosamente. O povo do céu pensou que era uso deles deixarem para o rei toda a comida. E
o Cágado comeu a melhor parte dos pratos e depois bebeu dois potes de vinho de palma, até
ficar tão cheio de comida e de bebida que o corpo mal lhe cabia no casco. Depois, os pássaros
juntaram-se ao redor das tigelas para comer as sobras e bicar os ossos que o Cágado havia
jogado no chão. Alguns estavam tão furiosos que não conseguiam comer. Preferiram voar de
volta à casa, com o estômago vazio. Porém, antes de partir, cada pássaro arrancou do Cágado
a pena que havia lhe emprestado. E ele lá ficou, dentro de seu casco duro, cheio de comida e
de vinho, mas sem asas para o voo de regresso. Pediu aos pássaros que levassem uma
mensagem para a mulher dele, porém todos se recusaram. Finalmente o Papagaio, que ficara
mais furioso que os demais, pareceu mudar de ideia de repente e concordou em leva a tal
mensagem. “Diga à minha mulher”, disse-lhe o Cágado, “que ponha do lado de fora todas as
coisas macias que houver na casa, e cubra todo o compound com elas, para que eu possa pular
do céu sem grande perigo.” O Papagaio prometeu transmitir a mensagem e foi-se embora, a
voar. Mas, quando chegou à casa do Cágado, disse à mulher que pusesse do lado de fora todas
as coisas mais duras que tivesse, em vez das macias. E então a mulher começou a tirar para
fora enxadas, facões, lanças, espingardas e até mesmo um canhão que o marido possuía. O
Cágado olhou lá de cima do céu e viu a mulher tirando coisas da casa, mas a distância era
grande demais para que discernisse os objetos. Quando tudo parecia estar pronto, ele se
deixou cair. Foi caindo, caindo, caindo, que pensou que nunca mais ia parar de cair. E então,
com o barulho de um tiro de canhão, espatifou-se no meio do compound.
— Ele morreu? — indagou Ezinma.
— Não — respondeu Ekwefi. — Mas seu casco ficou todo quebrado.

Porém, como havia nas redondezas um grande curandeiro, a mulher do Cágado mandou
chamá-lo. O curandeiro juntou todos os pedacinhos do casco do Cágado e os colou de novo.
Por isso é que o casco do Cágado é daquele jeito.

ACHEBE, CHINUA. O mundo se despedaça (p.78-80). São Paulo, Companhia das


Letras, 2009.

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