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MIOLO_ANDRE_MAGELA.

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Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda.
© André Magela; Marcelo Rocco
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer
meio sem a autorização da editora.
As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus organizadores
e autores e não expressam necessariamente a posição da editora.

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rj


U51a
Universidade Federal de São João del-Rei. Seminário Nacional de Educação
Teatral: trocas e propostas (1. : 2017 : São João del-Rei, MG) [Anais] / 1º Seminário
Nacional de Educação Teatral: trocas e propostas; organização André Magela ,
Marcelo Rocco. - 2ª. ed. ; ebook - Belo Horizonte [MG]: Fino Traço, 2018.
136 p. : il. ;
Inclui bibliografia
ISBN: 978.85.8054.376-6

1. Teatro na educação - Congressos. I. Magela, André. II. Rocco,


Marcelo.
18-52373 CDD: 371.399 CDU: 37.091.33:792

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária CRB-7/6439

Financiadores do livro:

Financiadores do Seminário:

Fino Traço Editora ltda.


Rua Nepomuceno 150 | Casa 3 | Prado | CEP 30411-156
Belo Horizonte. MG. Brasil | Telefone: (31) 3212-9444
finotracoeditora.com.br

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Sumário

APRESENTAÇÃO 7
André Magela; Marcelo Rocco

1 BENJAMIN LEITOR DE BRECHT: O TEATRO COMO UMA SALA DE


EXPOSIÇÃO. ASSOMBRO E RESISTÊNCIA 13
Cláudio Guilarduci

2 TEATRO IMAGEM E DEPENDÊNCIA QUÍMICA 23


Gabriel Carneiro; Taís Sousa

3 DESEMPACOTANDO A BIBLIOTECA DE SÃO JOÃO DEL-REI: JOGOS,


BRINCADEIRAS E TEATRO. O TEATRO NA ONG ATUAÇÃO 37
Rayla Dias; Carolina G. Silva Mandela Santos

4 A VISITA-ESPETÁCULO AO TEATRO MUNICIPALE A IMPORTÂNCIA


DA EXPERIÊNCIA LÚDICA NA FORMAÇÃO DO ESPECTADOR TEATRAL
ESCOLAR 45
Ana Cristina Martins Dias

5 COMPETITIVIDADE, DESABAFO, IMAGINAÇÃO: A PALAVRA E SUAS


REVERBERAÇÕES JUNTO AOS ALUNOS DA ESCOLA ESTADUAL
AMÉLIA PASSOS 53
Kauê Rocha

6 A ANÁLISE INSTITUCIONAL E A PESQUISA CARTOGRÁFICO-


SOMÁTICO-PERFORMATIVA INSERIDA NA AÇÃO ARTIVISTA DO NAST
NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DO PALMITAL 61
Adilson Siqueira; Natália Souza; Geraldo Saldanha; Diego Souza

7 EDUCAÇÃO TEATRAL: UMA EPISTEMOLOGIA PARA MUITAS


PRÁTICAS 69
André Luiz Lopes Magela

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8 BRECHT E BENJAMIN: O ARTISTA ENTRE CULTURAS. 77
Diego José Domingos

9 A MEDIAÇÃO TEATRAL EM TORNO DE UMA LEITURA DRAMÁTICA:


APONTAMENTOS DE UMA PESQUISA EM CONSTRUÇÃO 85
Emerson Fernandes Pereira

10 IMPLICAÇÕES DOS ESTUDOS DA PERFORMANCE NA


EDUCAÇÃO 91
Estela V. Villegas

11 A CASA DE ATRAM: PERSPECTIVAS DE UMA MEDIAÇÃO


TEATRAL 99
Bruno Moraes Regenthal

12 (RE)CONSTRUÇÕES NO OLHAR: O FAZER TEATRAL NO ENSINO


REGULAR 107
Marcelo Rocco; Didi Villela

13 MEDÉIA E AS CONSTRUÇÕES DE GÊNERO: O PAPEL SOCIAL DA


MULHER VISTO POR UMA PERSPECTIVA INTERSECCIONAL 113
Laura Resende

14 O CORPO QUE DANÇA COM SUAS MEMÓRIAS: AS RELAÇÕES


ENTRE O FAZER BENJAMINIANO E A ARTE MULTISSENSORIAL DO
PARANGOLÉ NA CONSTRUÇÃO / INVESTIGAÇÃO DAS SENSIBILIDADES
DO ARTISTA DOCENTE EM CENA 119
Erika Santos; Cláudio Guilarduci

15 O TEATRO COMO UM CAMINHO PARA A FORMAÇÃO DO ALUNO


CRÍTICO E AUTÔNOMO: UM ESTUDO DE CASO NA ESCOLA ESTADUAL
“EVANDRO ÁVILA” 127
Vânia Helena Nepomuceno Ávila

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APRESENTAÇÃO

André Magela
Marcelo Rocco

Este livro reúne trabalhos escritos originados de comunicações


acadêmicas do I Seminário Nacional de Educação Teatral – Trocas e Propostas,
realizado na Universidade Federal de São João del Rei – MG, em 2017, de
21 a 27 de outubro. O seminário, em sua primeira edição, teve como grande
objetivo estabelecer trocas de informações, perspectivas e reflexões entre
pesquisadores relevantes da área da pedagogia do teatro no Brasil, mais
diretamente à docência em espaços de ensino formal (ensino básico) e não
formal. Essas trocas foram todas públicas, num evento que contou com
financiamento direto da UFSJ, da FAPEMIG / FAUF e da CAPES e indireto
do CNPq, a quem somos sinceramente gratos.
Em sete dias de evento, houve atividades gratuitas do início da manhã
até o fim da noite: workshops e oficinas, aulas abertas, espetáculos, palestras,
mesas de debates e conferências, mostra de pesquisas e comunicações
acadêmicas. Estas últimas originaram os pequenos textos que descrevem
as investigações dos autores que apresentaram comunicações durante o
evento. A programação com todas as atividades está exposta ao final desta
apresentação, mas vale destacar um elemento importante deste evento, que
foi a intenção de reunir pesquisadores importantes para o Brasil, numa
amostragem de grande qualidade investigativa para que as reflexões tecidas
no seminário fossem efetivamente constituir propostas e reflexões pertinentes
para a área da educação teatral. Estes pesquisadores de vulto nacional foram

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chamados de várias regiões do país e apresentaram conferências, além de
participar de outras atividades do Seminário.
O caráter do evento, fomento ao intercâmbio público consistente de
conhecimentos e experiências para enriquecimento do campo de pesquisa
abordado no Brasil, visava incrementar a possibilidade de construção de
propostas concretas elaboradas para o desenvolvimento da pedagogia do teatro
e suas políticas. O campo da pedagogia do teatro em escolas no Brasil ainda é
incipiente, e sua implementação demanda tanto medidas concretas do poder
público e dos profissionais envolvidos, como um incremento e consolidação
dos conceitos, dados, informações e epistemologias que norteiam estas
medidas e as práticas de todos os envolvidos. Este evento desejou promover
um amadurecimento individual e coletivo das reflexões já existentes sobre
seus temas como promover uma divulgação e desenvolvimento do estado
da arte da pesquisa na área no Brasil.
No Seminário, a exposição de experiências, perspectivas e propostas foram
planejadas no sentido de que a diversidade e o encontro de conhecimentos
pudessem surgir num terreno fértil para sua profusão e desenvolvimento.
Apenas com uma consistente epistemologia e sólido aparato institucional
a educação teatral pode fazer frente às questões políticas e sociais que se
relacionam ao campo da docência de teatro no Brasil. Considerando a situação
de reformas na educação, que atingem diretamente o ensino de artes no país,
é necessário haver, em nossas ações como educadores, um direcionamento
no sentido de contribuirmos para a elaboração de propostas exequíveis e
concretas para o encaminhamento de medidas que façam frente aos problemas
atualmente percebidos na área. As urgências do atual momento político
pelo qual o país passa demandam ações e tomadas de posição concretas
e ao mesmo tempo conectadas a princípios, conceitos e ao estado da arte
epistemológico da pesquisa acadêmica.
Pelo contato direto entre os pesquisadores importantes do Brasil e a
comunidade acadêmica da UFSJ, das instituições parceiras e cidadãos da
região, o encontro objetivou a construção de reflexões que contribuam para
a solução de lacunas epistemológicas no campo de pesquisa da educação
teatral e um desenvolvimento de aprofundamentos e sofisticações na produção

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de conhecimento afim. A incompreensão, ainda muito generalizada, sobre
os motivos e os conteúdos que tornam necessárias as aulas de teatro no
ensino básico brasileiro prejudica este ensino em todas as etapas de sua
construção: no entendimento de sua importância, na criação de condições
para que haja espaço e professores especializados, na disponibilização de
recursos de todos os tipos para que as aulas transcorram bem, e outras
precariedades que os professores encontram em seu trabalho. Em suma, esta
precariedade afeta os alunos das escolas e consequentemente o país, em sua
função de formar cidadãos potentes para a construção de uma sociedade
melhor. Além disso, ela contribui fortemente para a falta de argumentos
junto aos campos institucionais da educação (secretarias de educação, por
exemplo) para que haja esforços efetivos para uma boa implementação de
aulas de teatro. Sem nitidez sobre esses aspectos, fica mais difícil convencer
as instâncias decisórias sobre cuidados necessários para implementar este
ensino e construir melhor, de maneira consistente, sistemática e perene,
modos de operar esta implementação.

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PROGRAMAÇÃO DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE EDUCAÇÃO
TEATRAL TROCAS E PROPOSTAS

PRÉ-EVENTO TODAS AS ATIVIDADES SÃO GRATUITAS


PRÉ-EVENTO TODAS AS ATIVIDADES SÃO
SÁBADO DOMINGO SEGUNDA TERÇA QUARTA
21/10/2017 22/102017 23/10/2017 24/10/2017 25/10/2017
10h às 13h 10h às 13h 9h às 12h 9h às 12h 10h às 13h
WORKSHOP: O ator e o AULA ABERTA: Cia. WORKSHOP: O trabalho de Sessão de trabalho aberta com o WORKSHOP com:
estado de prontidão Maldita Procedimentos ator no equilíbrio dos NAPI: Conduzida por Juliana Henriques Layane, M
Luiz Campos de atuação épico- instintos Monteiro Thaís Paiva
Sala 102 - RE III dramática Douglas Lauria Sala 104 - RE III Mediação de Claudi
Sala 104 - RE III Sala 104 - RE III Sala 102 - RE
Sessão de trabalho aberta com o
GDE: Conduzida por André
Magela, Virginia Kastrup e Malu
Pupo
Sala 103 - RE III
14h às 18h 13h30 às 15h30 14h às 18h 14h às 17h 14h às 18h
WORKSHOP: A prática WORKSHOP: A prática COMUNICAÇÕES: COMUNICAÇÕES: COMUNICAÇÕES: E
do corpo Figura: do corpo Espectador, Recepção e A Diversidade na Educação Teatral e Institu
experimentação e Figura: experimentação Pedagogia Teatral Mediação Teatral Mediação de Claudio Mediação de Marce
reinvenção de si e reinvenção de si de Juliana Monteiro Guilarduci Sala 206 - RE
Flávia Naves Flávia Naves Sala 206 - RE III Sala 206 - RE III
Sala 102 - RE III Sala 102 - RE III

20h 20H 17h às 18h 17h às 18h 17h às 18h


ESPETÁCULO ESPETÁCULO WORKSHOP com: Virginia WORKSHOP com: Monica WORKSHOP com:
Maxilar Viril Maxilar Viril Kastrup Ribeiro Ribeiro
Cia. Maldita Cia. Maldita Sala 102 - RE III Mediação de Mediação de Marcelo Rocco Mediação de Marce
Sala Preta Sala Preta André Magela Sala 102 - RE III Sala 102 - RE
19h 19h 19h
CONFERÊNCIA DE CONFERÊNCIA CONFERÊNC
ABERTURA Virgínia Kastrup UFRJ e Mônica Marina Henriques U
Maria Lúcia Pupo USP Ribeiro UFMG Juliano Pereira (Arte
Mediação de André Magela Aprendizagem, corpo, cognição parte) participação d
e Marcelo Rocco Mediação de André Magela Marques e Thaís
Pedagogia do tea
Auditório CTAN intervenção
Mediação de Cla
Guilarduci
21h00 21h00 21h00
Coffee Break Coffee Break Coffee Brea
21h30 21h30 21h30
ESPETÁCULO ESPETÁCULO ESPETÁCULO
Motriz Jardim das Cerejeiras Olhos D´águ
Sala Preta Sala Preta Sala Preta

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TODAS AS ATIVIDADES SÃO GRATUITAS
TODAS AS ATIVIDADES SÃO GRATUITAS
TERÇA QUARTA QUINTA SEXTA
24/10/2017 25/10/2017 26/10/2017 27/10/2017
9h às 12h 10h às 13h 9h às 12h 9h às 12h
essão de trabalho aberta com o WORKSHOP com: Marina WORKSHOP com: WORKSHOP com: Arão
NAPI: Conduzida por Juliana Henriques Layane, Marques e Carmela Soares, Paranaguá
Monteiro Thaís Paiva Layane Marques e Thaís Mediação de Nadiana
Sala 104 - RE III Mediação de Claudio Alberto Paiva Carvalho
Sala 102 - RE III Mediação de Paulo Sala 104 - RE III
essão de trabalho aberta com o Maffei
GDE: Conduzida por André Sala 102 - RE III
Magela, Virginia Kastrup e Malu
Pupo
Sala 103 - RE III
14h às 17h 14h às 18h 14h às 18h 14h30
COMUNICAÇÕES: COMUNICAÇÕES: Educação COMUNICAÇÕES: Corpo FÓRUM DE
A Diversidade na Educação Teatral e Instituição e Educação Teatral ENCERRAMENTO: Discutindo
Teatral Mediação de Claudio Mediação de Marcelo Rocco Mediação de Claudia as questões e propostas
Guilarduci Sala 206 - RE III Braga levantadas no evento para
Sala 206 - RE III Sala 206 - RE III confecção de documento de
intervenção
Mediação de Arão
Paranaguá, Carmela Soares,
Marcelo Rocco, André
Magela e Claudio Guilarduci
17h às 18h 17h às 18h
WORKSHOP com: Monica WORKSHOP com: Monica
Ribeiro Ribeiro
Mediação de Marcelo Rocco Mediação de Marcelo Rocco
Sala 102 - RE III Sala 102 - RE III
19h 19h 20h 19h30
CONFERÊNCIA CONFERÊNCIA CONFERÊNCIA CONFERÊNCIA
Virgínia Kastrup UFRJ e Mônica Marina Henriques UNIRIO e Vera Bertoni UFRGS e José Tonezzi UFPB e Carmela
Ribeiro UFMG Juliano Pereira (Arte por toda Arão Paranaguá UFMA Soares UNIRIO
Aprendizagem, corpo, cognição parte) participação de Layane “Licenciaturas de teatro Mediação de
Mediação de André Magela Marques e Thaís Paiva no Brasil” André Magela
Pedagogia do teatro e Mediação de Marcelo
intervenção Rocco
Mediação de Claudio
Guilarduci
21h00 21h00 21h00 21h00
Coffee Break Coffee Break Coffee Break Coffee Break
21h30 21h30 22h30 22h30
ESPETÁCULO ESPETÁCULO ESPETÁCULO ESPETÁCULO
Jardim das Cerejeiras Olhos D´água Soft Porn Soft Porn
Sala Preta Sala Preta Bosque Dom Bosco Bosque Dom Bosco

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12

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BENJAMIN LEITOR DE BRECHT:


O TEATRO COMO UMA SALA DE EXPOSIÇÃO.
ASSOMBRO E RESISTÊNCIA

Cláudio Guilarduci

Walter Benjamin escreveu entre os anos de 1930 a 1939 um total de onze


textos sobre o teatro épico e sobre Bertolt Brecht, apesar da amizade entre os
dois retroceder a 1924 quando a atriz Asja Lacis empenhou esforços para que
eles se encontrassem. Brecht talvez tenha sido o artista de maior afinidade
eletiva na consolidação da obra benjaminiana, inclusive em textos e teorias
que não abordavam especificamente o teatro épico, mesmo com as reiteradas
negativas que Gershom Scholem e Theodor Adorno indicavam para essa
amizade e para o trabalho intelectual de Benjamin. A presente comunicação
é o resultado inicial do projeto Educação das sensibilidades: os pro-ductos
estéticos pedagógicos nas Escolas de Educação Básica (Fase II). O objetivo
dessa fase é consolidar a ideia de Literatura/Arte como intervenção, defendida
por Benjamin e Brecht, mas que não foi desenvolvida por eles. Dessa forma,
a comunicação objetiva analisar o texto Que é o teatro épico?: um estudo
sobre Brecht (2012), escrito em 1931, dialogando com as análises realizadas
por Gerd Bornheim no livro Brecht: a estética do teatro (1992). O ponto de
partida para o diálogo é a problematização de duas ideias apresentadas por
Benjamin em sua definição de teatro épico: a relação estabelecida entre (i)
teatro épico e esporte e (ii) palavra e gesto. O caminho metodológico foi

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elaborado a partir da construção de coordenadas que em seus extremos
ficam posicionados os conceitos antitéticos Palco/Drama e Espectador/
Ator para encontrar no eixo central a imagem dialética aqui denominada
de Gestus: elemento primordial para a definição benjaminiana do teatro
épico praticado por Brecht. Para elaboração das polaridades antitéticas e a
consequente visualização da imagem dialética foi utilizado como referencial
teórico o livro Dialética do olhar: Walter Benjamin e o Projeto das Passagens
(2002), de Susan Buck-Morss. Nas obras publicadas de Walter Benjamin
existe somente um exemplo da ideia do sistema de coordenadas e que pode
ser encontrado nas notas do ensaio sobre Baudelaire (2006). Mesmo assim,
não é possível entender toda a estrutura do seu futuro texto, mas apenas
uma das ideias trabalhadas: o ócio como um dos campos da atividade Física.
No entanto, é possível afirmar que o uso dessas “tendências sistemáticas”
foi recorrente nos trabalhos de Benjamin, como por exemplo, na carta a
Adorno, de 10 de junho de 1935, quando relata o caminho metodológico
para o seu Exposé (1935). Portanto, ao elaborar um sistema de coordenadas,
semelhante à prática benjaminiana, busca-se um caminho metodológico de
valor heurístico para investigar os elementos presentes no texto de Benjamin
sobre o teatro épico.

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BENJAMIN LEITOR DE BRECHT: O TEATRO COMO UMA
SALA DE EXPOSIÇÃO. ASSOMBRO E RESISTÊNCIA
Palco
E
S
P
A
Assembleia Ç Esporte
O

TEMPO
Ator Espectador
GESTUS

Museu Jogo

Drama

Figura 1 – Sistema de coordenadas para análise dos textos benjaminianos

Ao analisar o texto “Que é o teatro épico?: um estudo sobre Brecht” (2012),


escrito em 1931, e dialogando com as análises realizadas por Gerd Bornheim
no livro “Brecht: a estética do teatro” (1992), chegou-se à problematização
de duas ideias apresentadas por Benjamin em sua definição de teatro épico:
a relação estabelecida entre (i) teatro épico e esporte e (ii) palavra e gesto.
A partir desse diálogo elaborou-se um sistema de coordenadas que em
seus extremos ficam posicionados os conceitos antitéticos Palco/Drama
e Espectador/Ator para encontrar no eixo central a imagem dialética aqui
denominada de Gestus.
O texto “Que é o teatro épico?...” pode ser dividido em duas partes:
a parte I apresenta a ideia de épico, e a parte II discute o teatro épico e as
novas formas técnicas do cinema e do rádio. O texto benjaminiano começa
com uma discussão sobre o espaço teatral, descartando inicialmente suas

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relações com o texto. A partir daí desenvolve uma crítica sobre a utilização
do Palco nos espetáculos realizados na Europa no fim dos anos de 1920:
“O palco ainda ocupa uma posição elevada, mas não é mais uma elevação
a partir de profundidades insondáveis; ele transformou-se em tribuna”
(BENJAMIN, 2012, p. 83).
Aqui, o termo tribuna deve ser entendido como aquele lugar elevado
existente nos templos religiosos em que os pregadores professam as leis
sagradas. Da plateia, exige-se apenas compreensão, daquilo que se pode
compreender, e aclamação, no sentido litúrgico-jurídico que o “amém”
externa.
Agamben (2011) explicita a importância do amém, considerado como
sendo a aclamação por excelência para a liturgia cristã: “essa função anafórica
do amen é essencial; deve sempre se referir a uma palavra anterior, que via
de regra, não deve ser pronunciada pela mesma pessoa que diz amen. [...]
‘Aquele que responde amen com toda a sua força abre para si as portas do
paraíso’”. (AGAMBEN, 2011, p. 252)
Para formar os polos antitéticos, Walter Benjamin (2012, p. 84) indica
que o novo teatro realizado por Brecht ocupa o palco teatral como uma
assembleia, alterando “as relações funcionais entre palco e público, texto e
representação, diretor e atores”. O palco deixa de ser um espaço mágico e
se transforma em uma sala de exposição.
Para seu palco, o público não é mais uma massa de cobaias hipnotizadas,
e sim uma assembleia de pessoas interessadas, cujas exigências ele
precisa satisfazer. Para seu texto, a representação não significa mais
uma interpretação virtuosística, e sim um controle rigoroso. Para sua
representação, o texto não é mais fundamento, e sim uma tabela, na
qual se registram, sob a forma de reformulações, os ganhos obtidos.
Para seus atores, o diretor não transmite mais instruções visando a
obtenção de efeitos, e sim teses em função das quais eles têm que tomar
uma posição. Para seu diretor, o ator não é mais um artista mímico, que
incorpora um papel, e sim funcionário, que precisa inventariá-lo. (idem)

Como o teatro épico é semelhante a uma assembleia, a plateia, a partir


de interesses comuns, discute sobre temas que importam historicamente às

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classes vencidas. “Desse modo, teríamos muito em breve um teatro cheio
de especialistas, da mesma forma que um estádio esportivo está cheio de
especialistas” (BENJAMIN, 2012, p. 87). O crítico afirma que o “gesto é seu
material, e a aplicação adequada desse material é sua tarefa” (BENJAMIN,
op. cit., p. 85) elencando duas vantagens para o uso do gesto.
Em primeiro lugar, ele é relativamente pouco falseável, e o é tanto menos
quanto mais inconspícuo e habitual for esse gesto. Em segundo lugar,
em contraste com as ações e iniciativas dos indivíduos, o gesto tem
um começo determinável e um fim determinável. Esse caráter fechado,
circunscrevendo numa moldura rigorosa cada um dos elementos de
uma atitude que, não obstante, como um todo, está inscrita num fluxo
vivo, constitui um dos fenômenos dialéticos mais fundamentais do gesto.
Resulta daí uma conclusão importante: quanto mais frequentemente
interrompemos o protagonista de uma ação, mais gestos obtemos. Em
consequência, para o teatro épico a interrupção da ação está no primeiro
plano. (BENJAMIN, ibidem)

Os Campos formados pelos termos Jogo e Esporte querem dialeticamente


apreender as relações existentes entre as regras das competições organizadas
no e pelo esporte, que podem ter uma estrutura autoritária, semelhantemente
às relações existentes entre as classes dos vencedores e dos vencidos,
refletindo a ideologia burguesa. Mas o esporte também pode ser visto como
um mecanismo de mobilidade social, pois ele traz a oportunidade para o
entendimento dos diferentes papéis sociais que refletem a dinâmica capitalista
da sociedade.
O que se pretende nos Campos é expor alguns elementos do jogo que
o esporte abarca, como, por exemplo, o divertimento, a voluntariedade, a
ritualização. O que Benjamin quer é que os especialistas do estádio esportivo
sejam capazes de entender que o esporte não tem um fim em si mesmo e
que as regras de sua consolidação podem ser discutidas e, por fim, que o
esporte pode se adaptar à realidade social e cultural mais ampla. O esporte é
uma criação cultural que pode priorizar o coletivo. Assim, teríamos o teatro
épico como um produto cultural capaz de mobilizar a massa trabalhadora
para discutir sua situação dentro do sistema capitalista.

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É importante ressaltar que Benjamin terminou de escrever o seu artigo
“A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” na Dinamarca, na casa
de Brecht, e esse ensaio também faz referência ao esporte. Brecht tinha um
interesse especial pelo esporte e percebia que ele poderia ser utilizado como
propaganda e expressão do movimento operário comunista, [e] de
documentação – também ficcional – de suas experiências. Mas a Brecht,
o esporte, a atuação dos atletas, a relação entre eles e com o público
interessavam como categorias, sobretudo na configuração do gestus
básico, autêntico da/na representação cênica/cinematográfica. (VAZ,
2000, p. 70)

Benjamin, no fim do seu texto sobre o épico, traz uma longa citação
de Brecht para indicar as diferenças entre o “teatro habitual, destinado à
diversão, e o teatro épico”. Da citação apresentamos um recorte para ressaltar
duas palavras: resistência e assombro.
O mesmo não ocorre quando o homem é visto como algo de mecânico,
completamente aplicável, incapaz de resistência [widerstand], o que hoje
acontece devido a certas condições sociais. O assombro [staunen], que
devemos incluir aqui a teoria aristotélica dos efeitos da tragédia, deve
ser visto como uma capacidade que pode ser aprendida. (BENJAMIN,
2012, p. 95)1

Para o assombro, o próprio autor indica o seu sentido afirmando que


“quando o fluxo da vida real é represado, o instante em que seu curso é
interrompido, é sentido como refluxo: o assombro é esse refluxo” (idem);
e na dialética em estado de repouso ele é o seu objeto mais autêntico. O
assombro ocasionado pelo gesto aproxima-se do entendimento de história
benjaminiana.
Já o termo Resistência não foi, nesse texto, problematizado pelo crítico.
Acreditamos que o termo foi utilizado no sentido de apontar para um
desdobramento, um “outra vez”, devido ao prefixo Re estar acrescido ao
substantivo que é derivado do verbo sistere, parar, ficar de pé, estar presente.

1. No livro “Ensaios sobre Brecht” (2017), lançado pela editora Boitempo, Cláudia
Abeling traduz o termo alemão staunen como espanto.

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A esse verbo também podemos associar outros termos, como, por exemplo,
existir e existência.
Podemos indicar que
se há o prefixo re na palavra resistir, ele não aponta para a necessidade de
se acrescentar em seguida a precisão daquilo contra o que a resistência
se volta. O prefixo se volta para a própria existência, ou para a própria
stantia. Se há uma duplicação, uma dobra, trata-se da dobra da existência,
do estar pleno; pleno de seus desdobramentos e de suas séries; pleno
de suas consequências, ou das sequências que serão, com nossa própria
estadia neste mundo, compossíveis. (ROQUE, 2002, p. 26)

Assim, o termo Resistência utilizado por Brecht serve como elemento


para indicar a existência de um prazer no seu teatro épico quando o homem
– ator ou plateia – percebe a possibilidade de modificar tanto a si mesmo
quanto ao ambiente que o rodeia.
Tomando essa referência do termo Resistir é possível aproximá-lo tanto
da ideia de processo criativo quanto a de Gestus. Quando utilizamos o termo
resistir para referir-nos à obra de arte, estamos indicando que uma potência
de vida que estava aprisionada foi liberada. O termo Potência foi largamente
utilizado na filosofia ocidental: para Aristóteles a oposição Potência e Ato
marca a sua metafísica. Mas para o processo criativo é impossível limitarmos
o seu entendimento nessa oposição, pois o artista não pode ser aquela pessoa
que possui uma potência de criar e que num dado momento, não se sabe
como e nem por que, é capaz de materializar e implementar grandes atos.
Existe, na realidade, em todo ato de criação, uma oposição à expressão
(AGAMBEM, 2016, p. 39).
Este poder que suspende y detiene la potencia en su movimiento hacia
el acto, es la impotencia, la potencia-de-no. La potencia es, entonces,
un ser ambiguo que no sólo puede una cosa como su contrario, sino
que contiene en sí misma una íntima e irreductible resistencia.

Si esto es verdad, entonces debemos considerar el acto de creación


como un campo de fuerzas en tensión entre potencia e impotencia,
entre poder y poder-no actuar y resistir. El hombre puede tener control

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sobre su potencia y tener acceso a ella sólo a través de su impotencia;
pero – precisamente por eso – no posee, en realidad, control sobre
la potencia; y ser poeta significa ser presa de su propia impotencia.
(AGAMBEM, 2016, p. 39-40)

Assim sendo, ainda conforme Agamben (idem), também podemos


aproximar a ideia de rastro, do inexpressivo, em Benjamin, que busca nos
cacos o entendimento da história, com a resistência como sendo aquilo que
atua de forma crítica e que é capaz de conter o impulso cego e imediato da
potência ao ato. A arte não pode ser apenas a passagem cega ao ato, como
se ele esgotasse toda a potência. Portanto, é a resistência da potência-de-não
que permite que a potência vire ato.
Quanto ao Gestus, não perdendo de vista que Benjamin o coloca em
uma moldura, e, por isso, quer pensá-lo como imagem inscrita num fluxo
vivo, se aproxima da ideia de Alegoria utilizada por ele no Barroco Alemão
e nos estudos sobre Baudelaire. A alegoria, assim como o Gestus, permite a
construção de uma epistemologia constelatória que se nega a olhar os produtos
estéticos a partir de uma essência metafísica e “recusa a sedução da identidade”
para entendimento de uma totalidade simbólica. A constelação é construída
pelos destroços da explosão do produto estético e é na contraditoriedade
de seus fragmentos que a materialidade do produto será liberada. É esta
explosão que o Gestus possibilita e que Benjamin incorpora às suas Teses
sobre a História.

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. El fuego y el relato. Sexto Piso: Madri, 2016.
AGAMBEN, G. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e
do governo: homo sacer, II, 2. São Paulo: Boitempo, 2011.
BENJAMIN, Walter. A modernidade. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história cultural. São Paulo: Brasiliense, 2012.
BENJAMIN, W. Tentativas sobre Brecht. Madri: Taurus Ediciones, 1975.
BORNHEIM, G. Brecht: a estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992.

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BUCK-MORSS, S. Dialética do olhar: Walter Benjamin e o projeto das
Passagens. Belo Horizonte: UFMG; Chapecó/SC: Editora Universitária
Argos, 2002.
VAZ, A. F. “Da modernidade em Walter Benjamin: crítica, esporte e escri-
tura histórica”. Educar. Curitiba: Editora da UFPR, n.16, p. 61-79, 2000.

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TEATRO IMAGEM E DEPENDÊNCIA QUÍMICA

Gabriel Carneiro
Taís Sousa

Nas aulas de Teatro na Associação de Parentes e Amigos dos Dependentes


Químicos - APADEQ - São João Del Rei, pensadas durante a disciplina
“Estágio em Espaços Não Formais de Educação - Jogo e Teatro Oprimido”,
o teatro imagem foi pensado neste trabalho por oferecer espaço de criação e
transformação de si em relação com o outro. Nessa perspectiva, entende-se
o teatro imagem como prática, ou fazer teatral, de onde surgem os temas
que a estética do oprimido de Boal (2007) aponta. Com o objetivo de ver
a si e aos outros, o teatro imagem pode ser trabalhado de diversas formas,
principalmente adaptado à realidade em que se encontra, sendo importante
atentar para que haja a visualização do que está sendo feito e, assim, o
participante possa não só experimentar o fazer como também o observar
e ser observado. O Teatro imagem envolve para Boal (2009) o estímulo às
formas de percepção não verbal sem detrimento da palavra, entretanto,
seu uso é dispensado para que sejam reforçadas outras formas perceptivas.
Envolver o corpo, fisionomias, objetos, distâncias e cores, ampliando a visão
sinalética. Nesse sentido, significantes e significados não são dissociáveis
como o sorriso e a alegria ou a tristeza e o pranto. O sentido da visão pode
ser aperfeiçoado e ampliado de forma a dar significação às coisas que as
pessoas veem no mundo. Entretanto, a proposta deste trabalho é ir além,
de forma a ampliar olhares e reflexões sobre o que se vê. Os olhares podem

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refletir sobre as relações de poder que as imagens e o mundo nos apresentam
no dia a dia. Percebemos assim, que o Teatro Imagem pode, com o montar
da imagem da opressão através das expressões dos componentes do grupo
baseando-se em linguagens não verbais, construir estátuas, figuras, objetos,
situações que abordam e façam refletir a respeito de sensações, problemas,
sentimentos, resolução de questões.
O presente trabalho apresenta as ações realizadas na Associação de
Parentes e Amigos dos Dependentes Químicos - APADEQ - São João Del
Rei. Segundo informações do website da instituição¹, fundada em 1998, é
uma instituição sem fins lucrativos, sem conotação política ou religiosa e de
caráter assistencial, educativo e científico. A APADEQ promove cuidados
adequados aos dependentes químicos, com a finalidade de construir caminhos
para a recuperação, o bem-estar e a reinserção social dos dependentes e de
seus familiares. A instituição desenvolve linha de tratamento composta por:
médicos, psicólogos, conselheiros em dependência química, arte terapeutas,
auxiliares de enfermagem, monitores e profissionais de administração. Com
a nossa inserção no espaço nós buscamos desenvolver na instituição um
recorte da proposta estética pensada por Augusto Boal chamada “Estética
do Oprimido”:
A Estética do Oprimido, ao propor uma nova forma de se fazer e de se
entender a Arte, não pretende anular as anteriores que ainda possam
ter valor; não pretende a multiplicação de cópias nem a reprodução da
obra, e muito menos a vulgarização do produto artístico. Não queremos
oferecer ao povo o acesso à cultura – como se costuma dizer, como se
o povo não tivesse sua própria cultura ou não fosse capaz de construí-
la. Em diálogo com todas as culturas, queremos estimular a cultura
própria dos segmentos oprimidos de cada povo. (BOAL, 2009, p.46)

Boal propõe uma estética que encontra sua legitimação no indivíduo


e nas injustiças sociais e segundo suas propostas, a arte não será levada às
pessoas, e sim nascerá daqueles que se propõe a criar. Defende que a arte seja
uma construção do meio social em que se insere e que os povos oprimidos
possam construir a cultura que desejarem. Pensamos que a concepção da
estética do oprimido é desta forma interessante para o espaço da APADEQ

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São João Del Rei por permitir que os internos criem arte e se transformem
na relação com o próximo. Os temas das aulas surgiram das experiências das
pessoas, das suas histórias de vida, das suas cargas afetivas, suas frustrações
e desejos. A arte por eles criada pertence a eles, nasce naquele instante e
com o engajamento daquelas pessoas. Boal (2009) defende ainda que sua
proposta estética não é remédio para os males da cidadania, mas a partir
dela se torna possível repensar o ritmo do que considera uma apressada
desumanização dos oprimidos.
O Diretor, autor e teórico, Augusto Pinto Boal nasceu na cidade do
Rio de Janeiro e é atualmente uma referência do teatro brasileiro. O teatro
do oprimido, pensado e estruturado pelo autor, possui como princípio
fundamental ajudar o espectador a se transformar em protagonista da ação
dramática, para que possa, posteriormente, extrapolar para sua vida real as
ações’ que ele repetiu na prática teatral, pois acredita que se o oprimido em
pessoa realiza uma ação, essa ação realizada na ficção teatral, possibilitará
a autoavaliação e autoativar-se para realizá-la em sua vida real. De acordo
com Boal (1996), o teatro é uma terapia na qual se entra corpo e alma, de
soma e psique. Não apenas ideias, mas também emoções, sensações que
caracterizam esse processo de conhecer, essa terapia específica, artística.
Para Boal, “o teatro é uma forma de comunicação entre os homens; as
formas teatrais não se desenvolvem de maneira autônoma, antes respondem
sempre às necessidades sociais bem determinadas e a momentos precisos.”
(BOAL, 1982, p.13). As ações teatrais propostas na APADEQ foram colocadas
como possibilidade de alcançar demandas e necessidades de comunicação,
expressão pessoal, integração no grupo, criação de relações humanas, entre
outros aspectos que buscam contribuir para o tratamento dos pacientes.
Boal (1982) defende que o teatro não pertence a uma classe ou grupo
específico, o teatro pode ser feito em qualquer lugar e por qualquer pessoa e
suas técnicas devem ser acessíveis a qualquer pessoa para que possa utilizar
o teatro como meio válido de comunicação. Considera que todos devem
ter o direito de representar e ter acesso a alfabetização teatral, pois é uma
forma de comunicação muito poderosa e útil nas transformações sociais.
Sobre o efeito modificador da arte, o autor afirma que a arte modifica os

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modificadores e transforma os transformadores. A ação da arte é indireta
e se exerce sobre a consciência dos que vão atuar na vida real. Neste ponto,
se torna relevante ressaltar que o ponto de ação desta proposta se encontra
no âmbito terapêutico, em que os pacientes estão não só em processo de
recuperação, mas em retomada das próprias capacidades físicas, intelectuais,
sociais, psicológicas e sociais. Desta forma, consideramos que o trabalho
realizado na APADEQ tem seu espaço de ação sobre o grupo enquanto
coletivo que se recupera e se apoia, mas também sobre o indivíduo e em
seu tratamento que lhe propõe desafios de percepção de si e na perspectiva
do tratamento, controle dos impulsos negativos do vício.
A transformação pessoal como linha-mestra para pensar esta intervenção
e levando em conta o contexto delicado de tratamento de dependência
química em que se encontram os participantes das oficinas, pensamos como
guia para nosso trabalho a descoberta das próprias capacidades e das relações
do indivíduo com o grupo e em como essas propostas colaboram para a
efetividade do tratamento sem renunciar o lugar artístico e teatral. A partir das
próprias práticas, os oprimidos descobrem a Arte descobrindo a sua própria
arte e nela, descobrir a si mesmos “descobrir o mundo, descobrindo o seu
mundo; nele, se descobrindo” (BOAL, 2009, p. 170). A partir do que Boal
defende em sua proposta estética, podemos considerar que o processo de se
descobrir no mundo significa também não se permitir ser cópia ou aceitar
as condições sem refletir sobre as contradições sociais existentes. Optamos
por desenvolver nesta proposta conduzida em contexto terapêutico, um
recorte dentre os alicerces que a Estética do Oprimido oferece. A Estética
do Oprimido se organiza em três alicerces de comunicação:
Palavra, imagem e som, que hoje são canais de opressão, devem ser
usados pelos oprimidos como formas de rebeldia e ação, não passiva
contemplação absorta. Não basta consumir cultura: é necessário
produzi-la. Não basta gozar arte: necessário é ser artista! Não basta
produzir ideias: necessário é transformá-las em atos sociais, concretos e
continuados. Em algum momento escrevi que ser humano é ser teatro.
Devo ampliar o conceito: ser humano é ser artista! Arte e Estética são
instrumentos de libertação (BOAL, 2009, p.19)

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No esquema a seguir, podemos visualizar a pluralidade de técnicas e
metodologias que compõe a proposta da Estética de Augusto Boal. Com
essa proposta Estética será buscado o desenvolvimento com os que praticam,
de suas capacidades de perceber o mundo por meio de todas as artes e não
somente por meio do Teatro. No processo são centrais os lugares da palavra
(escrita de poemas e narrativas), o som (invenção de instrumentos e sons)
e imagem (pintura, escultura e fotografia) (BOAL, 2015). O nosso trabalho
não desenvolveu todas as possibilidades da nova Estética e sim trabalhou
um recorte que se aproxima do Teatro Imagem e do Arco Íris do Desejo.

Figura 1: Estética do Oprimido

Fonte: BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira S.A, 1991.

A partir do diagrama acima, podemos perceber que o teatro imagem


se localiza em um ponto que auxilia na sustentação da proposta estética de
Boal. O teatro imagem pode, portanto contribuir para o trabalho com as
outras técnicas que envolvem o método e pode mais diretamente envolver
ações que se aproximam do Teatro Jornal ou do Arco-Íris do Desejo. Caso
a presente proposta de estágio fosse desenvolvida por mais tempo, podemos
considerar que nos aproximaríamos da segunda opção por envolver técnicas
introspectivas e do cuidado de si como espaço de transformação do mundo.

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Ao apresentar suas técnicas do Arco-Íris do desejo, Boal defende em seu livro
“O Arco-Iris do Desejo” que o teatro é a primeira invenção humana e que
a essência desta arte é “o ser humano que se auto-observa” (BOAL. 1996).
O Teatro imagem envolve para Boal o estímulo às formas de percepção
não verbal sem detrimento da palavra (2009). Dispensamos o uso da palavra
(reverenciada no entanto) de forma que sejam reforçadas outras formas
perceptivas. Envolver o corpo, fisionomias, objetos, distâncias e cores
ampliando a visão sinalética. Significantes e significados não são dissociáveis
como o sorriso e a alegria ou a tristeza e o pranto. A partir da proposta de Boal
com o teatro imagem, o sentido da visão pode ser aperfeiçoado e ampliado de
forma a dar significação às coisas que as pessoas veem no mundo. Entretanto
a proposta é ir mais além, de forma a ampliar olhares e reflexões sobre o que
se vê. Desta forma os olhares podem refletir sobre as relações de poder das
imagens que o mundo nos apresenta no dia a dia. Com o Teatro Imagem,
Boal defende, portanto, que possamos ver além das imagens apresentadas,
outras imagens contraditórias entre si ou irreconciliáveis que não permitem
a percepção de outras informações diferentes que não aquelas defendidas
pelas propagandas.
Com o objetivo de ver a si e aos outros, o teatro imagem pode ser
trabalho de diversas formas, principalmente adaptado à realidade que se
encontra, sendo importante atentar para que haja a visualização do que está
sendo feito para que assim o participante possa não só experimentar o fazer,
como também o observar e ser observado. Através da imagem é possível
entender o mundo e trabalhar nossa percepção, nosso ponto de vista, sobre
determinado assunto, pois se projeta toda bagagem do indivíduo através das
próprias experiências, desejos e frustações que fazem com que consideremos
as imagens como polissêmicas, possibilitando assim diversas leituras e
interpretações. Ainda de acordo com SANCTUM (2011), “A utilização da
linguagem imagética nas práticas do Teatro do Oprimido tem o objetivo de
facilitar a abstração e criação de metáforas da realidade, para uma reflexão
dessa mesma realidade e sua transformação” (SANCTUM, 2011, p. 88)
acreditando que se dominarmos a linguagem das imagens teremos outras
possibilidades de entendermos o mundo ao nosso redor e repensarmos o
proveito dele.

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O INÍCIO ENTRE O LUGAR TERAPÊUTICO E O LUGAR
TEATRAL
O trabalho na APADEQ - São João Del Rei, possuiu especificidades
e desafios. O desafio principal do trabalho desenvolvido na instituição foi
conduzir um recorte a partir da Estética do Oprimido em um ambiente de
tratamento e recuperação de dependência química. A intenção principal
do trabalho foi, portanto: Como chegarmos a um espaço como este sem nos
tornarmos somente outro braço do tratamento oferecido pela instituição e sem
descaracterizar completamente as propostas de ações a serem desenvolvidas e
que envolvem a Estética do Oprimido concebida por Boal e visam a ampliação
de olhares e reflexão crítica sobre si e o mundo?
Frequentamos a APADEQ todas as sextas feiras e participamos e
assistimos os trabalhos de arte-educação entre o período 21 de Abril de
2017 e 16 de Junho de 2017. Além das sextas, iniciamos um trabalho semanal
com recorte no Teatro Imagem de Augusto Boal a partir do dia 06 de Maio
até o dia 03 de Junho. Todas as semanas, novos internos saem e entram na
instituição. Nosso trabalho foi realizado, portanto, de forma intensiva em
cinco sábados entre 14 horas e 16 horas. No quinto sábado, a duração foi
estendida em uma hora. As atividades do estágio nos sábados não eram
obrigatórias para todos os internos e sim de caráter voluntário. Antes de
comentarmos as atividades desenvolvidas no que chamamos de “trabalho
intensivo” chegávamos à instituição alguns minutos antes e convidávamos
os internos a virem conosco para uma área aberta onde há uma cobertura
de madeira, piso de concreto e uma bela paisagem de uma das entradas
da cidade de São João Del Rei. Por questões de segurança e instabilidade
emocional dos internos, nosso trabalho nas sextas e sábados foi sempre
acompanhado por um funcionário da instituição.

O PROCESSO ENQUANTO CAMINHO DE TRABALHO


O primeiro encontro realizado no dia seis de Maio teve um número
reduzido de participantes na primeira hora/aula do dia. Entretanto o número
de participantes aumentou na segunda hora/aula possivelmente em razão

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do interesse dos internos no trabalho iniciado aos sábados. Percebemos
neste dia um bom engajamento dos internos nas atividades propostas e o
surgimento de uma atmosfera de jogo descontraída. No início do primeiro
horário nos apresentamos e descrevemos nossa proposta. Com o exercício
“telefone sem fio corporal” percebemos o quanto esse tipo de trabalho é
capaz de engajar os participantes apesar de parecer muito simples para
quem já é iniciado na forma de conhecimento teatral. O segundo exercício
trabalhado foi o “Mosquito africano” e devido à exigência motora, em termos
de resposta, percebemos certa dificuldade. O terceiro exercício “Ponto,
Abraço e Aperto de mão” funcionou com algumas duplas e com outras não.
Esse exercício revelou dificuldades de aproximação e contato físico com o
outro, mesmo esse contato tendo sido com regras e de forma respeitosa. Após
breve pausa, a segunda hora/aula foi composta pelo exercício “Batatinha
123” que apresentou boa dinâmica e aspectos competitivos já característicos
deste exercício. O último exercício do dia foi Homenagem a Magrid. No
processo os participantes atribuíram novas funções para um pequeno objeto.
O momento foi interessante para que os participantes pensassem sobre suas
ações diárias saindo do comum. A segunda hora/aula precisou ser modificada
de forma que o trabalho naquele dia pudesse ser mais interativo e lúdico.
No segundo sábado de trabalhos a primeira hora/aula iniciou com certa
dificuldade devido às tensões causadas pelas visitas recebidas [ou não] na
manhã anterior. Com algum esforço, nós conseguimos o engajamento dos
participantes nas atividades. Iniciamos o trabalho com um breve aquecimento
e alongamento e os incentivamos a fazerem tais procedimentos em suas
rotinas diárias. O primeiro jogo se chamava “XI RÁ ZU”. Em roda realizamos
e explicamos o exercício com certa dificuldade, pois a atividade demanda
resposta motora ágil e atenção no grupo. Percebemos com essa atividade que
os jogos que demandam muita agilidade corporal não têm bom alcance. Nesse
sentido repensamos nossas atividades. O segundo exercício foi “Ninja” esse
jogo se passou melhor que o anterior, pois apesar de exigir certa agilidade,
havia um tempo maior para que as respostas acontecessem. Um aspecto
interessante foi a proximidade corporal do grupo entre eles e conosco. Houve
respeito, trabalho conjunto e menos resistência que na semana anterior.

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Um aspecto interessante foi que uma interna que na semana anterior só
havia observado as atividades, decidiu participar ativamente desse encontro
e continuou engajada conosco até o fim do estágio. Acreditamos que a
conquistamos! Após a breve pausa, iniciamos a “corrida das cadeiras de
Boal” dois grupos sentados em duas fileiras, competiam para alcançar um
objetivo primeiro. Esse exercício era de agitação e percebemos alto grau
de engajamento. O exercício seguinte foi totalmente diferente. A “corrida
em câmera lenta” teria como vencedor quem chegasse por último. Essa
atividade teve aspectos reveladores de controle de ansiedade e engajamento
dos participantes. Com um deles percebemos por meio dos comentários como
o exercício afetou na questão da ansiedade. O último exercício do dia foi “Luta
de Boxe à distância”. Neste exercício, percebemos o surgimento de estereótipos
e dificuldade de manter a concentração na proposta sem nos desviar para
meras brincadeiras. Devido a pedidos, repetimos o jogo “Batatinha 123”.
Decidimos incluir no segundo tempo exercícios mais divertidos e interativos
de forma a mantê-los frequentando nossas atividades.
Possivelmente o terceiro sábado tenha sido o melhor dia de trabalho.
Os internos esboçaram pela primeira vez algumas reações e comentários
com as percepções e sensações. Alguns indicaram que o trabalho que vinha
sendo realizado há três semanas tem transformado suas formas de perceber
o mundo e se relacionar com as pessoas. Os comentários abordavam as
mudanças que o processo teatral foi causando nas individualidades e também
na relação e convivência entre os participantes. Um comentário chamou
atenção “Isso que vocês estão fazendo aqui, vai mudar meu jeito de ver lá
fora. Outras coisas que eu for fazer eu vou pensar antes”. Nesse momento
percebemos um indício de que estávamos conseguindo algumas percepções
e modificações no sentido de cuidado de si, de se ouvir, de respeitar o outro
e disponibilidade em colaborar. Neste sábado, iniciamos o trabalho mais
intenso com o teatro-imagem no sentido de compor imagens e permitir
que eles se observassem e olhassem também os outros enquanto grupo. Os
exercícios funcionaram muito bem. Realizamos os exercícios “caminhada
congelada”, “Caminhada deformada”, “Marionete” e “Teatro Imagem”.
Entretanto percebemos mais claramente a necessidade de uma abordagem

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mais lúdica do que mais focada em debates e discussões, ou seja, em um
sentido radical “eu contra eles” que Boal defende em alguns de seus textos.
Nossa proposta objetivava estava relacionada a permitir que os internos se
relacionem, se respeitem e possam pensar como tem sido o cuidado de si
e do outro. Talvez por característica dessa abordagem o discurso político
mais “intenso” surgiu após remontarmos em exercício de teatro imagem a
tela “Mona Lisa” de Da Vinci e a tela ”Independência ou Morte” de Pedro
Américo. Comentários como “não fomos colonizados, fomos invadidos”
indicam que o discurso político foi atingido por outros caminhos e não por
uma via mais “dura” da tomada de consciência dos mecanismos de opressão.
Não negamos a conscientização pela via racional, mas para esse trabalho
na APADEQ a nossa proposta de abordagem tem apresentado algumas
descobertas e aprendizados interessantes.
No quarto encontro, começamos a preparar o encerramento do
trabalho no sábado seguinte. Dois novos internos chegaram à instituição e já
começaram a frequentar nossas atividades. Foi interessante que eles chegassem
nesse momento, pois justamente neste dia os trabalhos envolviam ainda mais
o cuidado de si e com o corpo do outro, a confiança, o olhar e a colaboração
no grupo. Após aquecimento e alongamento realizamos primeiramente o
exercício “Círculo e X” que demandava disponibilidade corporal e atenção.
Na sequência o exercício “Caminhada” envolvia o caminhar do grupo pelo
espaço e de acordo com os desmaios chamados por nós estagiários o grupo ia
socorrer alguém que gritava e caía. Percebemos boa dinâmica, engajamento
e disponibilidade. A funcionária da APADEQ responsável por acompanhar
nossas atividades não resistiu e entrou nas atividades juntamente com os
internos. O “exercício do espelho” foi o terceiro. Houve bom engajamento
e as duplas funcionaram bem. Em seguida foi o “Hipnotismo Colombiano”
que necessitou de concentração extra e constante reiteração das regras. Após
breve pausa iniciamos a segunda aula. Esse segundo tempo de trabalho
necessitava de uma escuta das regras mais atenta e do cuidado efetivo com
o outro de forma a evitar acidentes. Os exercícios “Ímãs Afetivos 1 e 2” e a
”Guiagem Cega” foram realizados com sucesso, mas com repetições seguidas
das regras. Esses exercícios envolviam um novo conhecer daquele espaço em

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que havíamos há quatro semanas realizando nossos trabalhos. Entretanto
esse novo conhecer se dava por meio dos sentidos com exceção da visão. O
intermediário para esse conhecimento era um dos estagiários ou algum colega
deles. Após reafirmarmos a necessidade de cuidado e escuta, conseguimos
o engajamento necessário. Os participantes eram todos maiores de 18 anos,
mas percebemos que esse tipo de educação artística/estética foi novidade.
Foi preciso evitar o excesso de empolgação e focar nas regras dos exercícios.
Um comentário importante do dia foi de um participante que conseguiu
fazer os exercícios que precisavam do olho fechado e que em aulas anteriores
na sexta-feira não havia conseguido. Uma dificuldade pessoal foi superada.
Chegamos ao quinto e último sábado de trabalhos intensivos. O grupo
de participantes continuou variando. Como na APADEQ os internos vão
entrando e saindo de acordo com seus processos de recuperação, tivemos
outro dia com novatos e veteranos em nossos trabalhos. Um aspecto que
marcou nossas atividades é o grande envolvimento que demonstram quando
as atividades são “divertidas”. Quando são enfatizados mais aspectos reflexivos,
percebemos uma queda no interesse. A dificuldade de sair de um lugar de
diversão talvez seja um aspecto característico deste espaço e que nos levou
diversas vezes a repensar as abordagens. Talvez nosso trabalho seja uma
espécie de iniciação à linguagem estética, mas claro, a partir das pessoas,
do que eles já possuem. Neste dia propomos a retomada do Teatro Imagem
com temas sugeridos pelos participantes. O Hipnotismo colombiano também
foi retomado com temas apontados por eles. Exemplos de temas sugeridos:
balança, stress, papa, irritação, morte, político etc. Esta etapa foi mais curta e
durou cerca de trinta minutos. Havia um número reduzido de participantes
e o engajamento também foi menor. Após a breve pausa, propomos uma
elaboração de um “produto estético” visando a materialização e registro do
processo. Aos internos, coube escolher: os materiais com os quais trabalhar,
produções próprias deles dentro da APADEQ, um lugar ou vários para
compor um circuito de instalações, Land-art etc. Eles compuseram algumas
instalações que de alguma forma possuíam rastros de seus corpos e das suas
transformações no nosso trabalho e na APADEQ. Esse tipo de trabalho é
também proposta de Boal, pois para ele não só o teatro deve ser despertado nas

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pessoas, mas também outras formas de arte. Medos, temores, aprendizagens e
desafios foram apresentados por eles, para nós pelas propostas das instalações
realizadas. Após as apresentações individuais das instalações, passamos a uma
breve conversa sobre Augusto Boal e sua Estética do Oprimido. Mostramos
vídeos de outras pessoas fazendo alguns dos exercícios que eles realizaram e
comentamos sobre a proposta de Boal de que todos os seres humanos tem o
teatro em si e que, o que estivemos fazendo nas últimas semanas era muito
mais do que brincadeiras e sim a iniciação na educação estética, na forma
de conhecimento que é o teatro.

PERCEPÇÕES E APRENDIZAGENS A PARTIR DO


TRABALHO
O processo na APADEQ – São João Del Rei foi uma oportunidade de
conhecer de forma prática as técnicas que compõe a Estética do Oprimido
de Augusto Boal. A especificidade do espaço nos exigiu reelaboração quase
constante das propostas e abordagens. As atividades comentadas nos levam
a questionamentos sobre nossas práticas docentes que em espaços informais
de educação pretendemos desenvolver. Optamos por uma via de trabalho
com a estética de Boal que não envolvia o debate e a discussão acalorada dos
temas sociais, mas por meio da técnica do Teatro-Imagem e dos jogos e a
partir deles pudemos despertar alguns temas que poderíamos trabalhar nas
atividades. Em especial o cuidado de si e do outro foi um ponto importante
que pode de alguma forma contribuir para o tratamento dos internos sem
ser pelo viés da “lição de moral”, mas sim por descobertas que eles foram
conquistando no fazer.
Algumas ações que desenvolvemos foram interessantes pelo efeito nos
participantes. A negação, o medo em fazer, a hesitação, o olhar desconfiado,
o riso, etc. são desafios com os quais nos deparamos em cada dia de trabalho
e que precisaram de alguma forma ser ultrapassados. Resistência e ausência
de confiança foram elementos muito presentes que precisaram de constante
superação. Percebemos certa hesitação no início de algumas aulas. Nada
que não fosse superado com alguma persistência e os exemplos dos outros
se engajando e fazendo. Outros exercícios geraram um lugar de grande

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relaxamento e satisfação. Os internos se alternam na instituição com muita
frequência. Em média eles permanecem dois meses em tratamento intensivo.
Portanto a troca regular dos participantes é algo que marcou a experiência na
APADEQ. Outro desafio foi o rótulo de que estamos “propondo brincadeiras”.
Talvez a educação estética, a forma de conhecimento que é o teatro e que
Augusto Boal defende em sua Estética do Oprimido, seja necessária desde
a infância. Talvez de alguma forma, essa forma de conhecimento contribua
para uma sociedade “menos doente”, com tendência aos vícios e detentora
de outros mecanismos para lidar com seus dilemas.

REFERÊNCIAS
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algo através do Teatro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S.A, 1982.
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DESEMPACOTANDO A BIBLIOTECA DE SÃO


JOÃO DEL-REI: JOGOS, BRINCADEIRAS E
TEATRO

O TEATRO NA ONG ATUAÇÃO

Rayla Dias, bolsista CNPq


Carolina G. Silva Mandela Santos, bolsista PIBEX UFSJ

O presente artigo apresenta os resultados do projeto de extensão


“Desempacotando a Biblioteca de São João del-Rei: Jogos, Brincadeiras
e Teatro”, coordenado pelo professor Cláudio Guilarduci, focando-se na
inserção das crianças assistidas pela ONG “Atuação” na cena cultural de São
João del-Rei, através do Inverno Cultural. Com o objetivo de sensibilizar
o seu corpo através de ações lúdicas e teatrais, elaboramos oficinas de
jogos e brincadeiras para que pudessem experienciar o teatro através dos
sentidos. Entendendo e incentivando uma construção coletiva das oficinas
o processo se desenvolveu a partir da imaginação e do corpo das crianças.
Transportando o jogo para sua realidade, elas se apropriaram das indicações
e construíram novas atividades a partir das suas sensações e percepções.
Entendendo a criança enquanto ser social, as propostas buscaram permitir
que elas trouxessem o seu ponto de vista em relação a si mesmas e ao mundo,
expressando seus olhares nas atividades. Tais propostas de trabalho se
tornaram possíveis a partir do envolvimento mútuo que estabeleceu uma

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relação de confiança entre as alunas-bolsistas e as crianças possibilitando
que a imaginação se transformasse em ações físicas. Assumindo um novo
olhar para a criança e a infância, o projeto caminha no sentido do encontro,
da troca e da construção conjunta.

CAMINHOS PARA EFETIVAÇÃO DO PROJETO


O trabalho começa com a elaboração de propostas de oficinas voltadas
para a inserção das crianças da comunidade do Tijuco na ludicidade do teatro
e em suas formas possíveis enquanto divertimento para sensibilização de
seus corpos. Começamos entendendo o livro como forma prática de inserir
o lúdico nas atividades e nas interações entre elas. E não só como texto
ou leitura, mas propondo às crianças a ideia de que o livro é um material
que se dispõe a apresentar a identidade que elas veem. Ele se transforma a
partir das suas experiências. Não como uma forma de adaptar a realidade
vivida pela criança às histórias inseridas no livro, mas inserir o livro, como
brinquedo ou como história, no existir da criança, pois a criança adapta a
história do livro às suas circunstâncias e referências.
Como o projeto seria realizado durante um curto período de tempo
e também objetivava apresentar um pro-ducto estético durante o Inverno
Cultural da UFSJ a equipe do projeto tomou a decisão de abandonar a
criação de atividades a partir dos livros infantis, tendo em vista as reações
das crianças em relação aos livros.1

Caminhos metodológicos
Para a alteração do projeto, dois aspectos foram importantes: (i)
manutenção da metodologia do projeto e (ii) centralidade do público
atendido. Dessa forma, as alterações não poderiam comprometer os dois
principais conceitos que davam sustentação ao projeto original: Estética e
Educação das Sensibilidades.

1. O projeto foi inicialmente elaborado para atuar no bairro Senhor dos Montes, conforme
solicitação do líder do bairro. Após aprovação pela Pró-Reitoria de Extensão a equipe do
projeto entrou em contato com o líder e, depois de inúmeras conversas, a equipe foi informada
que o local disponível para realização da oficina estava ocupado com outras atividades. A
partir desse momento iniciou-se os contatos com a ONG “Atuação”.

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Giorgio Agamben, no ensaio O Homem sem conteúdo (2012), a partir
da análise sobre a arte na modernidade, retoma os gregos para refletir sobre
a poiésis e conclui que a modernidade incluiu dois importantes elementos
que proporcionam uma distância do entendimento grego: (i) “a separação
entre arte e técnica” e (ii) “a redução de toda a atividade do homem à práxis”
(CASTRO, 2012, p. 21).
À diferença de como modernamente fazemos, os gregos incluíam
dentro da técnica tanto a atividade artística quanto a artesanal. O
desenvolvimento da técnica moderna, [...] fragmentou o modo pelo
qual as coisas produzidas pelo homem entram em presença: de um lado
encontramos as coisas que possuem um estatuto estético, as obras de
arte, e, do outro, os produtos propriamente ditos, aos que chamamos
“técnicos” em seu sentido moderno. (CASTRO, op. cit., p.21-22)

Assim, ao nomear o trabalho artístico realizado durante a oficina


como pro-ducto o que se pretende é brincar – no sentido benjaminiano de
Erfahrung, aquela experiência que ocorre na recepção aurática, ou seja, no
sentido de uma experiência social – com os termos que formam a palavra
produto para indicar que a cisão vivenciada ainda hoje entre os produtos
artísticos e os produtos técnicos somente retroalimenta a velha dicotomia
entre sentimento e razão, corpo e mente.
É importante ressaltar que esse modo de pensar/fazer educação tem um
interesse central pelo indivíduo, pelas suas ações e reações, por mais íntimas
que sejam e também pelas contradições ou encobertamentos, pois exige
trazer para o primeiro plano de sua análise/prática os modos de recepção e
de absorção individuais para depois “reinseri-los em conjuntos significativos
mais vastos, grupos, clãs, facções, classes, conjuntos, que eles iluminam a
seu modo, restituindo-lhes uma complexidade quase sempre escamoteada
ou negada” (GRUZINSKI, 2007, p.8).
Ao colocar o indivíduo no centro desse processo é necessário considerar
que a educação deve ter como um dos seus pilares o conflito, pois, em
inúmeros casos, ela é

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um processo em que se realiza o projeto que o educador tem sobre o
educado, também é o lugar em que o educando resiste a esse projeto,
afirmando sua alteridade, afirmando-se como alguém que não se
acomoda aos projetos que possamos ter sobre ele, como alguém que
não aceita a medida do nosso saber e de nosso poder, como alguém
que coloca em questão o modo como nós definimos o que ele é, o que
quer e do que necessita, como alguém que não se deixa reduzir a nossos
objetivos e que não se submete a nossas técnicas (LARROSA, 2015, p.15)

É justamente a partir da presença do indivíduo no centro do fazer


educacional que a Educação da Sensibilidade busca retomar o conceito
originário de Estética para inserir a experiência (Erfahrung), com suas
sensibilidades e representações, dentro do universo escolar. Assim, as
sensibilidades e tudo o que elas acarretam no corpo devem ser pensadas
como algo que é capaz de “tornar presente uma ausência e produzir, pela força
do pensamento, uma experiência sensível do acontecido” (PESAVENTO,
2007, p.14-15).
Aisthetikhos é a antiga palavra grega que designava o que é “percebido
pela sensação”. Aisthesis é a experiência sensorial da percepção. O campo
original da estética não é a arte, mas a realidade – a natureza material
e corpórea. Como escreve Terry Eagleton, “a estética nasce como um
discurso do corpo”. Ela é a forma de cognição obtida por meio do
paladar, do tato, da audição, da visão e do olfato – de todo o sensório
do corpo. Os terminais de todos esses sentidos – nariz, olhos, ouvidos,
boca e algumas áreas mais sensíveis da pele – localizam-se na superfície
do corpo, na fronteira mediadora entre o interno e o externo. (BUCK-
MORSS, 2012, p.157-158)2

Para Terry Eagleton (1993), a Estética sofreu no seu percurso histórico


uma ação política a partir das filosofias pós-cartesianas que silenciaram
a sua formulação primeira. Consequentemente a esta ação, é possível
afirmar que a vida sensível, com seus afetos e sensibilidades, também é

2. Buck-Morrs faz referência ao livro A ideologia da estética (1993), de Terry Eagleton, mais
especificamente sobre a passagem em que o autor discute o conceito de estética pensado
por Baumgarten.

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penalizada, ficando sempre subjugada à razão. Dessa forma, a Educação da
Sensibilidade busca romper esse continuun da história ao propor um novo
caminho para o sujeito, onde seus afetos e suas energias vivas, conquistadas
nas experiências cotidianas, possam também fazer parte da sua formação.
Os conceitos universais, as definições lógicas, permitem olhar o mundo,
separar as coisas e dar sentido a tudo o que nos rodeia, possibilitando um
determinado conhecimento do mundo. No entanto, é na con-fusão – no
sentido de mistura, de fusão – do real que a fixidez da identidade conceitual
não permite dar conta do mundo, é necessário acessar a cognição sensível,
pois ela permite conhecer o mundo sem ter que, necessariamente, nomeá-lo.
Se os conceitos são procissões de identidades que marcham em vão
na direção do mundo que nunca tocam, eles não são mais claros nem
menos obscuros do que a cognição sensível de um afeto. Clareza é um
dogma platônico extraído do mito da caverna, que simboliza a “luz” da
verdade alcançada após o abandono das ilusões, das sombras (daí provém
o par oposto da luz: a obscuridade!) que julgávamos ser a realidade.
De fato, os conceitos são claros porque são esqueletos de experiências
mortas. A ‘clareza’ conceitual é o produto da abstração (do sequestro)
do movimento sensível das coisas. Os conceitos são ‘claros’ por que
formam diagramas anêmicos retirados da experiência das coisas, que
de tão complexas em si mesmas que nos parecem obscuras e confusas.
(CAMARGO, 2011, p.13)

As sensibilidades é (sic) uma forma de conhecimento que está além


do conhecimento científico, mas guarda certa correspondência com este,
pois também necessita organizar, interpretar e traduzir o mundo. Nessa
passagem – entre o sentir e o dar conta do sentido – que as sensações se
transformam em sentimentos, em estados da alma. A percepção, portanto,
é a relação estabelecida entre as marcas corporais deixadas pelas sensações
com outras experiências e lembranças. A percepção é a capacidade cognitiva
de organizar as sensações dando a estas o que denominamos de sentimento.
Para Pesavento (2007, p.13-14), “a sensibilidade revela a presença do eu como
agente e matriz das sensações e sentimentos”. Ela é um processo experienciado
individualmente, mas pode também ser compartilhado, pois toda experiência
será sempre social e histórica.

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Por fim, é importante frisar que ao colocar o indivíduo com suas
sensações e percepções na centralidade das atividades a equipe do presente
projeto enfatiza o reconhecimento das crianças como atores sociais que
são capazes de falar por si e sobre si. As falas e representações de mundo
elaboradas pelas crianças sempre nortearam a elaboração e realização das
atividades extensionistas e, com isso, o presente projeto foi um importante
espaço de diálogo com a pesquisa.

Fig. Começa o Jogo (Foto de Kauê Rocha)

O corpo no caminho das atividades


Para permitir que as crianças alcançassem lugares mais profundos das
suas relações como grupo e enquanto indivíduos dentro das oficinas e para
que fosse possível conduzi-las a uma experiência mais orgânica com seu corpo
e sua imaginação foi necessário revisitar conceitos já estabelecidos. Trazendo
para o centro do encontro a realidade cultural das crianças, permitindo
que elas ensinassem, opinassem e alimentassem as atividades com as suas
paixões, com as suas relações, com as suas verdades e experiências sociais e
pessoais, o que levou os jogos, perceptivelmente, a um lugar de reprodução
dos mecanismos sociais nos quais as crianças daquela comunidade estão
inseridas. Para elas, nos primeiros encontros, o jogo era uma ferramenta
de representação do seu lugar no mundo, onde elas tentavam se estabelecer

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como “vencedoras”. Tal objetivo, depois de algum tempo, foi transformado,
e elas passaram a entender o jogo como uma conexão da sua imaginação
com seu corpo e sua forma de expressão, revelando a sua “verdade” mais
para si mesmas do que para os “espectadores”.
A partir da relação de proximidade que foi estabelecida, as crianças se
sentiam mais à vontade para criticar e sugerir propostas para a realização
das oficinas. As crianças se mostravam artistas enquanto produtoras da
sua “verdade”. Descobrindo e refletindo suas experiências e sensibilidades
em seus próprios corpos, trazendo suas intenções e percepções de mundo
para um debate sem palavras. Sem a pretensão de convencer, seus corpos
dialogavam com suas mentes criando conexões sutis e individuais.
Os limites dessas conexões eram expandidos a cada encontro, como
se as crianças quisessem mostrar mais para si mesmas. Experimentando
outras formas de apresentar o mundo delas, descobri-lo, muitas vezes não
mais amplamente, e, sim, mais detalhadamente, mais individualmente.
As crianças saíam do corpo cotidiano atingindo níveis de empolgação
por conseguirem mostrar para si mesmas outras formas de apresentar uma
ideia em relação à sua realidade, como se a forma do senso comum, óbvia,
já não fosse o bastante. Como se uma venda caísse aos poucos de seus olhos
e elas pudessem ver e mostrar que o mundo delas é maior e mais colorido.
As crianças puderam transpor limites preestabelecidos em relação aos
seus corpos e puderam redescobrir possibilidades restringidas pela cultura
da razão. Experimentaram sensações no sentido de uma liberdade expressiva
genuína, não programada, em que seus corpos se tornaram o elo entre a
cognição e a sensibilidade. O presente projeto resulta em perceber os jogos
e brincadeiras como porta de entrada para uma nova perspectiva do grupo
no que diz respeito às suas possibilidades de criação e expressão.

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REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. O homem sem conteúdo. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
BUCK-MORSS, S. Estética e anestética: uma reconsideração de A obra
de arte de Walter Benjamin. In: BENJAMIN, W. et al. Benjamin e a
obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto,
p.155-204, 2012.
CAMARGO, M. Princípios da aisthesis. In: BOCC–Biblioteca on-line de
Ciência da Comunicação, 2011, p.1-14. ISSN: 1646-3137. Disponível em:
<www.bocc.ubi.pt>. Acesso em: 20 mar. 2015.
CASTRO, E. Introdução a Giorgio Agamben: uma arqueologia da potência.
Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
EAGLETON, T. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1993.
GRUZINSKI, S. Por uma história das sensibilidades. In: PESAVENTO,
S.; LANGUE, F. Sensibilidades na História: memórias singulares e
identidades sociais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, p.7-8, 2007.
GUILARDUCI, C., TALARICO, O. Pro-ducto estético pedagógico: uma (des)
construção das percepções sensoriais. In: ASSUNÇÃO, L.; TOLENTINO,
E.; BRAGANÇA, G.; FIGUEIREDO, I. As letras da política, Rio de
Janeiro: Mauad X, p.113-127, 2015.
LARROSA, J. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo
Horizonte: Autêntica, 2015.
PESAVENTO, S. Sensibilidades: escrita e leitura da alma. In: PESAVENTO,
S; LANGUE, F. (org.). Sensibilidades na história: memórias singulares
e identidades sociais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, p. 9-21, 2007.

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A VISITA-ESPETÁCULO AO TEATRO
MUNICIPAL E A IMPORTÂNCIA DA
EXPERIÊNCIA LÚDICA NA FORMAÇÃO DO
ESPECTADOR TEATRAL ESCOLAR

Ana Cristina Martins Dias

O trabalho se debruça sobre a percepção das múltiplas experiências dos


espectadores oriundos das escolas em sua relação com o teatro. Partindo
de reflexões realizadas durante e após os cinco anos em que a atividade
extensionista Visita-Espetáculo ao Teatro Municipal esteve voltada
especialmente para este público (crianças, adolescentes e professores),
confrontadas com análises realizadas por outros autores envolvidos quer
com a recepção ao fenômeno teatral, quer com a formação do espectador, e
tendo como base estudos que valorizam o divertimento, a experiência como
forma de conhecimento, a ludicidade e a comicidade, enfatizo a necessidade
da revalorização e ressignificação do teatro para os educandos, revertendo a
ideia de obrigação, impressa em expressões tais como “atividade pedagógica”
e “atividade cultural”, para fazer viver o teatro como prazer em todos os
sentidos: social, educacional e artístico, dentre outros.
O projeto de extensão da UFSJ Visitas Guiadas ao Teatro Municipal
(2003-2004), coordenado pelo professor Alberto Ferreira (Tibaji), com o
objetivo de apresentar o então recém-reformado Teatro Municipal de São
João del-Rei como um patrimônio cultural a ser apropriado pelo cidadão são-

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joanense, foi reelaborado por mim em 2007, fora da universidade, recebendo
o nome de Visita-Espetáculo ao Teatro Municipal, e direcionado especialmente
aos turistas que na cidade aportavam. Com a finalidade de mostrar o valor
do belo teatro e divulgar a desconhecida história da tradição teatral são-
joanense aos visitantes, a Visita-Espetáculo pretendia tornar-se uma atração
que agregasse cultura e diversão aos roteiros turísticos das cidades históricas.
Para isso contava com uma equipe de atores, estudiosos do teatro e guias
turísticos. Em 2009, com meu ingresso na UFSJ, o projeto retornou à extensão,
e, aos poucos, deixou de funcionar como atração turística e tornou-se um
projeto de formação de espectadores voltado especialmente à comunidade
escolar. Essa mudança de público, por si só, acarretou automaticamente
a aplicação do selo “atividade educativa” ao projeto, ainda que o slogan
“cultura e diversão” fosse mantido e a equipe (grupo Os Anfitriões) tivesse
como principal objetivo proporcionar ao visitante um passeio agradável
e uma experiência teatral lúdica, mesmo que cercada de informações por
todos os lados.
Sabemos que a ida ao teatro não é atualmente o programa mais popular
do mundo para os jovens, e nem mesmo para as crianças brasileiras: em
pesquisa realizada com os visitantes das escolas (alunos entre 6 e 18 anos, em
sua maioria), apenas 100 (8,9%) dentre 1128 escolheram o teatro como lazer
de sua preferência de uma lista com quatro opções: teatro, cinema, show de
música e esportes.3 É verdade que muitos escolheram mais de uma opção,
sendo que 327 incluíram o teatro dentre elas, mas, mesmo contando com
essas pessoas que “gostam de tudo” (124) ou que apreciam teatro e mais uma
ou duas opções (203), as que citaram teatro ainda estão em menor número.4
Menciono aqui essa pesquisa porque observo o desprestígio crônico do
teatro como opção de lazer,5 o que leva produtores e artistas a um estado de

3. Pesquisa feita entre os anos de 2011 e 2014 com os alunos e alunas que participaram da
Visita-Espetáculo ao Teatro Municipal e apresentada na minha Tese de Doutorado defendida
em junho de 2017. Propositadamente só incluí na pesquisa atividades para as quais seria
necessário sair de casa.
4. Número de pessoas que mencionaram cinema: 606; show: 485; Esporte: 437; teatro: 427.
Número de pessoas que mencionaram apenas cinema: 204; apenas esportes: 184; apenas
show: 152; apenas teatro: 100.
5. Ao utilizar a palavra “lazer”, ao invés de usar “atividade cultural” ou alguma outra ex-
pressão considerada mais elevada para dar conta do teatro como arte, quero simplesmente

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angustiosa preocupação por não saberem se conseguirão plateia para suas
empreitadas, levando-os muitas vezes a procurar as escolas como forma de
garantir esse público. Por outro lado, é possível observar também que, se
a parceria com a escola possibilita uma plateia cheia, essa mesma parceria
pode aprofundar ainda mais o preconceituoso desinteresse pelo teatro,
principalmente por parte de adolescentes que muitas vezes entendem a ida
ao teatro como mais uma obrigação escolar, sobre a qual possivelmente
serão cobrados em exercícios e/ou discussões posteriores. Desse modo,
as expectativas dos jovens muitas vezes se concentram no passeio em si,
na diversão no ônibus, na rua, nos gracejos e nas paqueras. Sobre isso,
William Molina (2011, p. 58-9) comenta que, nos depoimentos de algumas das
jovens por ele entrevistadas em sua pesquisa de recepção sobre o espetáculo
Adolescer, se percebe claramente que o contexto do passeio, incluindo alegres
interações das meninas com adolescentes de uma outra escola, pode ter
influído na recepção do espetáculo, contribuindo para que o interesse pela
peça aumentasse ou se reduzisse em função desse fator.
Em seu trabalho sobre crianças espectadoras (2005, p. 38), Taís Ferreira
menciona os depoimentos de algumas crianças que contaram com grande
contentamento que “o melhor de ir ao teatro é ‘matar aula’”; alerta, por
outro lado, para uma atitude comum entre professores e coordenadores, que
escolhem peças priorizando objetivos didático-pedagógicos, favorecendo
espetáculos que se enquadrem nesses padrões. Nesse sentido, Mafra Gagliardi
(1998, p. 68, grifos meus) adverte:
Jamais deveríamos exigir do teatro que ele se faça didático, portador
de noções ou de ensinamentos moralizantes. Ou, pior ainda, que ele
se torne o objeto de exercícios escolares propostos como verificação
da eficiência de sua recepção. Bem ao contrário, quando se realiza
uma escolarização desse tipo, a experiência teatral se esvazia de toda
significação e de todo prazer. Já o fato de que, hoje, o público infantil
seja em grande parte um público obrigado (quer dizer, integrado na

incluir o teatro no rol de atividades que poderiam ser realizadas no tempo livre do sujeito
trabalhador ou do estudante, sem diminuir o valor do mesmo dentro da cultura e da arte
produzidas pela humanidade.

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organização escolar que decide os tempos e as modalidades de lazer)
acarreta, na minha opinião, uma série de elementos negativos sobre
os quais devemos refletir.

O crítico teatral Jorge Dubatti, responsável pela Escola de Espectadores


de Buenos Aires, concorda:
Estamos armando um módulo para trabalhar com as escolas, mas sou
muito crítico da forma que se está trabalhando neste momento, porque
não creio que se deva transformar o espetáculo e o acontecimento
em um espaço pedagógico. Tem que ser puro espaço de gozo. Levar as
crianças para se divertir, desfrutar, como uma excursão. (2014, p.259-
60, grifos meus).

A ideia de que o teatro é utilizado para ensinar ou para proporcionar


um tipo de prazer elevado, costuma gerar certa aversão num público que
sai de casa em busca de lazer, ansiando algo que o liberte por momentos
das obrigações cotidianamente a ele impostas. Essas pessoas optam, então,
por outro tipo de entretenimento, ou, quando decidem ir ao teatro, esperam
para ver uma comédia ou algum artista que já conheçam e que admiram.
Mas o teatro, como Peter Brook já constatava em 1968, “não só fracassa em
elevar ou instruir, mas raramente distrai” (BROOK,1970, p. 2).
A Visita-Espetáculo propunha aos participantes uma experiência de
visitação que os levava a ter uma percepção diferente de um local familiar à
maioria: a própria fachada do edifício, conhecida por todos, era reconfigurada
quando o guia, apontando para cada figura que a compõe, desvendava
detalhes arquitetônicos, nomes de artistas ilustres homenageados, estátuas
representando deuses ou máscaras indicando tragédia, comédia e drama.
Além do maravilhamento que essa transfiguração do familiar produzia,
havia também o passeio por locais geralmente ocultos dos espectadores,
tais como a cabine de luz, os camarins e o próprio palco. Somados a esses
deslocamentos e desvendamentos, havia ainda as histórias oficiais e anedotas
sobre a origem e modificações do Teatro e sobre a atividade teatral amadora
tradicional da cidade. O ápice da visita acontecia, porém, quando o teatro

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irrompia no teatro por meio dos cinco personagens caipiras6 da consagrada
peça A Capital Federal (1987), de Artur Azevedo, que subvertiam a situação
tediosamente familiar em que o professor explica e os alunos prestam atenção:
ao aparecerem no teatro procurando o Seu Gouveia, noivo da mocinha, e
se misturarem aos espectadores, participavam ativamente das explicações
sobre os elementos do palco, demonstrando curiosidade e confundindo
o que era dito, brigando entre si, movimentando-se e agindo de modo
inesperado (correrias, perguntas fora de hora) e até mesmo paquerando
os visitantes (caso da personagem Benvinda). Desse modo, dinamizavam
a exposição das informações por meio de ações e questionamentos que
atraíam a atenção dos visitantes, levando-os ao riso e à participação no
jogo teatral instaurado. A excitação às vezes era tanta que dificultava o guia
a prosseguir com as explicações: os participantes, agitados, conversavam
com os personagens, comentavam as piadas e os modos dos atores, enfim,
distraíam-se, esquecendo-se por momentos de que estavam ali obrigados
e que, se fossem seguir as regras escolares, deveriam ficar quietos e prestar
atenção.
Após esse momento mais interativo, os visitantes eram levados a
sentar-se e assistiam à conclusão do espetáculo separados dos atores, até o
momento em que Benvinda, que fugira do Teatro para encontrar-se com um
pretendente, aparecia de repente pelos fundos e carregava um espectador
– que transmutava-se no personagem Figueiredo, seu admirador - para o
palco, sob intensa gargalhada dos demais espectadores, geralmente colegas
de classe do jovem levado à cena.
Analisando a experiência, me parece claro que o conhecimento adquirido
nesse passeio por parte dos visitantes é inseparável da experiência por eles
vivida: uma experiência de ludicidade e desvendamento que os fez ver, ouvir,
perceber e participar de algo que, talvez por aparecer como distante e familiar
simultaneamente, lhes despertou o interesse. A aprendizagem que daí pode
advir não é a soma das informações verificáveis, mas a descoberta de que
sempre há algo para ser desvelado, para ser sentido, para ser vivenciado, para

6. Eusébio, o pai; Fortunata, a mãe; Quinota, a mocinha em busca de seu noivo; Benvinda,
a mulata, “cria da família”, e Juquinha, o menino levado.

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além do que se pensa e se vê cotidianamente. Acredito que esta atividade,
que propunha uma vivência para além de qualquer conteúdo informativo,
era capaz de impulsionar a curiosidade e o desejo do educando em realizar/
sofrer sua própria experiência.
Para Larrosa (2014, p.28), o sujeito da experiência está “aberto à sua
própria transformação” e aprende “no e pelo padecer, no e por aquilo que [lhe]
acontece” (idem, p. 32). A busca pelo conhecimento por meio da experiência,
no entanto, se difere da busca científica pela verdade:
No saber da experiência não se trata da verdade do que são as coisas,
mas do sentido ou do sem-sentido que nos acontece. E esse saber da
experiência tem algumas características essenciais que o opõem, ponto
por ponto, ao que entendemos como conhecimento. (Idem, ibidem)

Afinal, a “experiência tem algo da opacidade, da obscuridade e da


confusão da vida, algo da desordem e da indecisão da vida” (LARROSA, 2014,
p. 40), não podendo ser universalmente aceita, mesmo porque trata-se de
um saber “particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal”. (LARROSA,
op.cit., p.32).
Analisando as respostas dos participantes registradas em 1408
questionários que aplicamos após a visita, percebemos que o mais importante
para a maioria dos jovens e crianças havia sido a experiência de ludicidade
trazida pela interação com os personagens e pela apresentação das cenas,
embora a maior parte deles frisasse ter “aprendido muito” sobre o teatro. A
atividade lúdica, para Cipriano Lukesi (s./ d., p. 27), “propicia a ‘plenitude da
experiência’”, podendo ou não ser divertida, pois “o que mais caracteriza a
ludicidade é a experiência de plenitude que ela possibilita a quem a vivencia
em seus atos”. Desse modo, o autor enfatiza o engajamento total do sujeito
que joga, que brinca. Mas a experiência daquele que se envolve ao ver outros
jogando também pode ser plena: “o que consiste na essência do espectador,
é que ao se esquecer de si ele se entrega ao espetáculo. Mas o esquecer-se de
si não é aqui um estado de privação, pois procede do abandono à coisa, que
constitui a parte de atividade própria ao espectador.” (GADAMER, 1976, p.
52, grifos meus, tradução minha).

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Acredito, portanto, que a “Visita-Espetáculo ao Teatro Municipal” pôde
proporcionar aos participantes momentos lúdicos e de comicidade, em que a
aprendizagem se deu em movimento, em jogo, distraidamente e, ao mesmo
tempo, concentradamente, como ocorre quando jogamos um “bom jogo”:
ao nos distrairmos, nos envolvemos, aprendendo a jogar jogando, passando
por uma experiência em que nos abrimos para o novo e respondemos com
lances que criamos no momento presente. Estamos inteiros, plenos e, por
isso, podemos passar pela experiência.

REFERÊNCIAS:
AZEVEDO, A. A Capital Federal. In: O teatro de Artur Azevedo. Rio de
Janeiro : INACEN, v. 4 (1987).
BROOK, P. O Teatro e seu Espaço. Petrópolis : Vozes, 1970.
FERREIRA, T. Teatro infantil, crianças espectadoras, escola: Um estudo acerca
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COMPETITIVIDADE, DESABAFO,
IMAGINAÇÃO: A PALAVRA E SUAS
REVERBERAÇÕES JUNTO AOS ALUNOS DA
ESCOLA ESTADUAL AMÉLIA PASSOS

Kauê Rocha

O presente artigo analisa uma experiência de estágio, conduzida pelo


licenciando Kauê Rocha, na Escola Estadual Amélia Passos, localizada na
cidade de Santa Cruz de Minas, entre os meses de junho e julho de 2017.
Nesta, desenvolveu-se o projeto “A potência da palavra”, cujo mote central era
investigar a palavra e suas potencialidades, trabalhando com os estudantes
a escrita e suas diversas formas. Durante o desenrolar do projeto, foi-se
percebendo que as propostas levadas para a sala de aula suscitavam diversas
reações dos alunos, como o forte espírito de competitividade, a fala implícita
de incômodos exposta durante exercícios e a potencialidade da imaginação
de cada um deles. Embasando-se nas reflexões de Walter Benjamin (1984),
procurou-se compreender essas reações, dialogando e praticando com os
estudantes.
Entre os meses de junho e julho de 2017, foi desenvolvido, com os alunos
do 6º A e 6ºB da Escola Estadual Amélia Passos, o projeto “A potência da
palavra”, dentro da disciplina de Estágio em Espaço Formal: Memória e
Narrativa. O principal objetivo do projeto em questão era usar da palavra
para trabalhar diversas potencialidades dos alunos, adolescentes na faixa
dos 13 e 14 anos. É notável que eles vivem uma fase da vida na qual têm

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muito a falar e começam a realizar descobertas novas e marcantes, o
que lhes dá bagagem para dizer muito sobre diversos assuntos. A intenção
do projeto era usar essa gama de vivências para explorar a palavra,
extraindo dela tudo que fosse possível. Como fala Ana Maria Amaral a
respeito da palavra,
Pensar é falar. E a passagem entre o pensamento e a palavra é mínima,
pois, para se concretizar o pensamento se utiliza da palavra. Podemos
até dizer que a palavra é o corpo do pensamento. E a palavra, por sua
vez, cria, quase que instantaneamente, imagens. Incorpóreas a princípio,
mas que tendem a se corporificar rapidamente em formas visíveis.
(AMARAL, 2007)

Buscou-se, durante o projeto, encontrar essa corporificação da imagem


junto aos estudantes. Explorando suas realidades e conversando sobre
suas vivências, desejou-se trazer junto deles a concretude do pensamento
sobre o qual Ana Maria Amaral disserta.
No atual sistema de ensino público, nota-se a quantidade de matérias
obrigatórias na grade curricular do estudante. Passando cerca de cinco horas
diárias na escola e recebendo hora após hora um número significativo de
conteúdo teórico, é evidente que o que não falta para os alunos é escrita,
já que ela é uma forma usada para o estudo (e/ou, consequentemente,
memorização) dos assuntos tratados nas disciplinas. Mas como escapar
um pouco desse método e usar a escrita de outra forma e para outros fins?
Uma das vertentes do projeto era explorar a escrita de uma maneira mais
livre, sendo ela trazida pelos próprios estudantes por meio de suas
memórias e através de jogos; memórias essas da escola e de seus cotidianos
e os jogos “clássicos” e provavelmente já jogados pelos alunos anteriormente.
Durante o processo foram propostos vários exercícios e atividades
que envolviam a dupla PALAVRA e ESCRITA, uma acompanhando a
outra. Percebeu-se a resistência dos estudantes em grande parte das aulas
em escrever, já que o ato pede esforço físico, por mínimo que esse esforço
seja. Para atenuar essa resistência, foram trazidos jogos clássicos cuja palavra
escrita era o foco principal. Assim, mesclava-se o prazer da brincadeira,
o que incentivava os estudantes a participarem, com os elementos

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estimulados pelo jogo, o que fornecia percepções sobre o desenvolvimento
do projeto. Daí extraem-se inúmeras características - trabalharemos aqui
com a competividade, o desabafo e a imaginação.

O JOGO CLÁSSICO REVISITADO EM OUTRO AMBIENTE:


COMPETITIVIDADE NA SALA DE AULA
Nas primeiras aulas, a intenção era a de conhecer melhor os alunos
com os quais se trabalharia nas próximas semanas e perceber a vontade e
a entrega de cada um nas aulas. Para essa aproximação se dar de maneira
mais tranquila, optou-se por jogar brincadeiras clássicas que tratassem da
palavra, como Adedanha e Forca. Foi interessante mudar a plataforma
de realização desse jogos, que geralmente são jogados em momentos
informais dos alunos em locais fora da escola. Desta vez, o jogo transferiu-se
para a sala de aula, como um exercício avaliativo. Viu-se claramente
a mudança de postura deles, que se dedicaram ao jogo de um modo sério
e dando o máximo de si para pontuar. Quando a nota do bimestre entra
em questão, a entrega acaba sendo maior, o que, indiretamente,
estimula entre eles a competividade. Entretanto, em muitos momentos,
essa competitividade atingiu limites tensos, o que revela o quão forte para
eles é o fato de vencer ou atingir mais pontos.
Em determinado ponto do processo, durante outro jogo que resultaria
num vencedor, foi prometido um prêmio para aquele que ganhasse.
Novamente assistiu-se a outra mudança de postura: quando saímos da
nota escolar para o prêmio, a participação ativa torna-se maior. O fato de
ter algo em mãos que comprove a vitória deles no jogo e os diferencie
do restante da turma aguça ainda mais o interesse em participar da
atividade proposta. Por ser uma escola pública, onde o nível de pobreza dos
estudantes é alto, ganhar um prêmio é visto por eles com grande importância.

PALAVRAS QUE SOAM COMO DESABAFOS

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Como aponta Walter Benjamin, “O notável na vida dos estudantes
é, de fato, a aversão de submeter-se a um princípio, de imbuir-se de uma
ideia” (1984, p. 32). Quando é trazida para a sala de aula uma atividade a
ser desenvolvida, é clara a resistência e demora, na maioria das vezes, em
iniciá-la, devido ao lento processo de disposição dos estudantes para
realizá-la. Mesmo detalhando como será sua execução e explicando
cada parte de seu desenvolvimento, há desinteresse. Como nos apontou
Benjamin, há uma aversão dos alunos em entrar na proposta trazida pelo
professor. Isso acontece talvez como forma de provocação, o que pede uma
grande paciência e maleabilidade do professor. É necessário testar diversas
formas de como atenuar essa dureza do aluno, procurando caminhos para
levá-lo a participar da aula.
Uma das atividades que mais exigiram essa maleabilidade foi uma
na qual os alunos deveriam escrever em folhas espalhadas pelo espaço
palavras que lembrassem memórias de suas vidas e depois organizá-las
numa história, que necessariamente não precisaria fazer sentido. Julgada
como “chata” e “difícil”, a atividade foi negada pelos alunos, que não
queriam fazê-la. Apenas quando a professora de Artes da escola decidiu
também fazer a atividade é que se despertou neles um ponto de interesse
na execução da mesma. Ao ver que a professora se igualou a eles e se dispôs
a fazer como aluna, houve um repentino aceite em começar a escrever as
palavras. É provável que, vendo a figura da professora, convencionalmente
acima deles na hierarquia, fazendo o que eles deveriam fazer, um senso de
dever tenha surgido. Afinal, se a professora faz, por que eu, aluno, não faria?
E ao se desenrolar essa atividade, as folhas foram sendo preenchidas
por palavras variadas. Grande parte delas eram simples, ilustrando coisas
concretas, como CASA e PIPA. Contudo, outras revelavam certa profundidade,
como SOLIDÃO, SAUDADE e VIOLÊNCIA. Por ter sido proposto que fossem
colocadas palavras que envolvessem as memórias vividas por cada um, é
nítido que os alunos que escreveram esses termos passaram em suas
vidas pelo que deixaram nas folhas. Fazendo uma analogia com um
diário, costume muito usado antigamente e hoje bem menos comum,
podemos pensar nessa atividade como um lugar onde, inconscientemente

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ou não, os alunos puderam desabafar. Desabafo que apareceu por meio de
palavras mais abstratas, mas que acabaram por revelar um pouco deles, que
em sala de aula costumam tanto se esconder.

CORPOS QUE DIZEM, UM FOTOLIVRO QUE SURGE


A intenção do projeto era descobrir no andamento das aulas um
interesse em comum que pudesse caminhar para um produto estético
final. Para registro do processo, a professora de Artes fotograva certos
momentos das atividades, o que reverberava de diferentes maneiras em
cada um. Enquanto uns se escondiam ao ver o celular pronto para a captura
de uma foto, outros já adotavam um corpo diferente, como se quisessem
mostrar que estavam fazendo bem a atividade. Essa dualidade da presença
diante da fotografia trouxe a ideia de criar um fotolivro para encerrar o
projeto, mesclando palavra, corpo e foto.
Numa época onde as redes sociais lançam fotografias a cada segundo,
é evidente que o contato dos alunos com fotos é frequente. Porém, essas
fotos são sempre planejadas por eles, evidenciando quase em sua totalidade
seus rostos e não tendo uma intenção diferente a não ser se valorizar, em
um momento de suas vidas no qual o paradigma da beleza é algo tão forte.
No caso do fotolivro proposto em sala, desejou- se sair do corpo comum
e capturar através da fotografia um corpo fora do cotidiano, que ilustrasse
uma palavra escolhida por eles.
Como era previsto, muitos se recusaram a participar, frente à
vergonha de ser fotografado. Essa decisão foi respeitada, sendo preferível
que esses alunos apenas incentivassem com ideias de palavras os
outros que se propuseram a ser fotografados. Nesse ponto derradeiro
do projeto, a imaginação e a vivência dos estudantes apareceram de
forma clara. Passado o afã após ver uma câmera semiprofissional, levada
para fotografar e amplamente admirada pela classe, os alunos começaram a
pensar em suas palavras. Surgiram então dezenas de propostas, deixando
nítida a imaginação presente em cada ideia.

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Imagem 1: A palavra SAUDADE representada pela mão empurrando a parede.( Foto
de Carolina das Graças Silva Mandela Santos)

Temos propriedade para falar sobre o que já sentimos e vivemos.


As palavras representadas pelos corpos dos alunos denunciavam o que já
foi experimentado por eles. Para ilustrar a palavra DESAFIO, um aluno
subiu num muro e ficou com as pernas suspensas. Representando a
SAUDADE, uma mão empurrava uma parede de concreto. Um boné virado
para o lado designou CHEFE e CASA apareceu em pés posicionados numa
bicicleta. Tão pouco estimulada na adolescência, vimos que as palavras,
quando desprendidas de seu significado imediato e exploradas pela
imaginação dos alunos, podem se tornar outras coisas.

AS REVERBERAÇÕES DA PALAVRA
Por fim, ficou claro como a palavra precisa ser cada vez mais explorada de
forma espontânea pelo estudante na escola. Elas revelam suas experiências
e suas vontades, suas memórias e seus medos, e sem dúvida influenciam
seu desenvolvimento. Seja num jogo competitivo ou num exercício de
escrita, as palavras compõem um quadro diverso das individualidades e

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particularidades do coletivo de uma sala de aula. Coletivo este que, com
certeza, vive um momento que tem muito a falar.

REFERÊNCIAS
AMARAL, A. M. Teatro de Animação: da teoria à prática. São Paulo:
Ateliê Editorial, 2007.
BENJAMIN, W. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São
Paulo: Summus, 1984.

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A ANÁLISE INSTITUCIONAL E A PESQUISA
CARTOGRÁFICO-SOMÁTICO-PERFORMATIVA
INSERIDA NA AÇÃO ARTIVISTA DO NAST NA
COMUNIDADE QUILOMBOLA DO PALMITAL

Adilson Siqueira
Natália Souza, Bolsista do NAST – PIBEX UFSJ
Geraldo Saldanha, Bolsista do NAST – PIBEX UFSJ
Diego Souza, Bolsista do NAST – PIBEX UFSJ

O presente relato busca compartilhar as experiências vividas pelos


bolsistas do Núcleo de Arte e Sustentabilidade (NAST) do curso de Teatro
da Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ) em uma comunidade
de remanescentes quilombolas, o Quilombo do Palmital, em Nazareno,
MG, apresentando as ações artivistas que foram realizadas com base na
análise institucional, na cartografia e na pesquisa somática-performativa
pelos arte-vivenciadores comunitários ecopoéticos do núcleo e apresenta
as perspectivas em relação ao prosseguimento dos trabalhos que articulam
artes, urbanidades e sustentabilidade.
No ano de 2016 começou a ser desenvolvido um trabalho sensível, longo
e profundo no Palmital alinhando estudos inter e transdisciplinares a um
trabalho artístico. Para tanto, o grupo iniciou discussões e estudos acerca de
alguns temas importantes, como análise institucional (BAREMBLIT, 2002),
a pesquisa somática (FERNANDES, 2014), a performance (SCHECHNER,
2006), a cartografia (KASTRUP, 2010) e o  artivismo (VIEIRA, 2007), entre

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outros, os quais, juntamente com a observação participante (ANGLOSINO,
2009), configuram a metodologia de ação do Arte-vivenciador Comunitário
Ecopoético (RIBEIRO & SIQUEIRA, 2013) que é como se denomina no
Núcleo,  os procedimentos teórico-práticos e aqueles que realizam vivências
num determinado Núcleo Local/Comunidade.
O Núcleo de Pesquisa em Arte e Sustentabilidade (NAST) é um projeto
de extensão do Grupo Transdisciplinar de Pesquisa em Artes, Urbanidades
e Sustentabilidade (GTRANS) da Universidade Federal de São João del-Rei
(UFSJ) coordenado pelo Prof. Dr. Adilson Siqueira, que visa principalmente
possibilitar vivências artísticas como meios de ampliar o conhecimento das
artes e o debate sobre sustentabilidade num determinado Núcleo Local/
Comunidade.
No ano de 2016, o grupo decidiu focar as atividades na comunidade
quilombola do Palmital, localizada na cidade de Nazareno. Para que os
arte-vivenciadores do Nast juntamente com os moradores da comunidade
pudessem construir uma atividade satisfatória, havia a necessidade de realizar
um mapeamento do local, conhecer os moradores e o perfil das pessoas que
tinham o interesse de participar do projeto. Durante o processo o grupo
direcionou a atenção para o que estava oculto ou o que não era notado.
O mote para o desenvolvimento do projeto eram os questionamentos e
demandas da própria comunidade.
Para tanto, nos utilizamos da observação participante, que conforme
Anglosino é um “modo de estudar que coloca o pesquisador no meio da
comunidade que ele está pesquisando” (p. 2009, p.17) e lhe permite acercar-
se da mesma numa ação que se dá a longo prazo. Neste último contexto
lançamos mão também da abordagem cartográfica, um método de pesquisa-
intervenção que pressupõe uma orientação do trabalho do pesquisador
que não se faz de modo prescritivo, por regras já prontas, nem com
objetivos previamente estabelecidos, mas por pistas que orientam o percurso
da pesquisa sempre considerando os efeitos do processo do pesquisar sobre
o objeto da pesquisa, o pesquisador e seus resultados (PASSOS; BARROS,
2015, p.17)

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A primeira etapa do trabalho consistiu em observar o dia a dia da
comunidade, conhecer os membros que a compõe e o espaço físico do
quilombo, além de uma tentativa inicial de aproximação. Este foi, talvez,
o processo mais difícil, pois a comunidade mostrava um grande receio em
compartilhar suas vivências com pessoas até então desconhecidas. As visitas
quinzenais à comunidade possibilitaram o estabelecimento de um diálogo
mais fluido e constante entre os moradores e os arte-vivenciadores.
Neste ponto, desde a perspectiva metodológica, foi crucial a utilização
da análise institucional, pois como se sabe,
A A.I. (sic) segue seu percurso de consolidação como campo de produção
de conhecimento e de intervenção sobre a realidade, desdobrando
perguntas críticas que se armam a partir de conceitos seminais: “análise
da demanda” e “análise da encomenda” (quem pede intervenção e o
que é pedido?), “análise da oferta” (o que o analista oferta e quais os
efeitos da sua intervenção?), “analisador” (que acontecimentos põem
em análise a realidade institucional?) e, principalmente, “análise da
implicação” (como estamos todos envolvidos na realidade institucional?).
(ROSSINI; PASSOS, 2014)

A análise institucional realizada na comunidade foi importante para que


pudéssemos perceber a forma que os moradores vivem e como lidam com
os assuntos referentes à organização do quilombo, viabilizando caminhos
possíveis de execução das ações artivistas que, a posteriori, direcionariam
os projetos individuais dos arte-vivenciadores.
Após essa etapa, o grupo procurou desenvolver uma aproximação ainda
mais íntima com os jovens e crianças, público alvo da ação dos projetos
individuais dos extensionistas. Desde os primeiros contatos, os jovens
foram os que mais se distanciaram e mostraram maior resistência à chegada
dos extensionistas: os interesses não pareciam comuns a princípio. Após
identificar essa distância, o grupo iniciou uma pesquisa para conhecer as reais
preferências daqueles jovens, e daí surgiu um interessante trabalho proposto
pelos próprios jovens do quilombo: realizar um encontro de motoqueiros. A
maioria dos jovens que vivem no quilombo do Palmital tem como principal
meio de transporte a moto e sugeriram que os ajudássemos na criação,

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organização e execução deste evento. Esta vontade dos moradores passou
a nortear nosso trabalho com eles, e envolver toda a comunidade nisso
tornou-se o principal objetivo do NAST na comunidade.
Já em relação à população infantil, o envolvimento foi mais rápido.
Desde os primeiros contatos foi possível perceber certa curiosidade das
crianças em relação a nossa presença e pretensões. Mesmo que no começo
sentiam-se um pouco desconfortáveis e tímidos com a nossa presença, foram
elas as primeiras a mostrar o interesse pelo trabalho do grupo, seu apoio e
confiança. Nessa etapa, os projetos individuais de oficinas7 dos componentes
do NAST foram desenvolvidos em relação a toda experiência e conhecimento
já vivido sobre as relações ali percebidas e estabelecidas.
Nessa etapa ainda, aconteceu um evento importante na relação afetiva
entre o grupo e o quilombo. Em setembro de 2016 houve, a partir da
demanda comunitária, uma visita da comunidade ao campus Tancredo
Neves da Universidade Federal de São João del Rei, onde os quilombolas
puderam conhecer melhor o que a universidade oferecia, sua estrutura e,
principalmente, a intenção do trabalho dos projetos de extensão que, junto
ao NAST, realizaram visitas regulares ao quilombo. Esse acontecimento
foi responsável por estreitar ainda mais o laço entre a comunidade e a
universidade. Nesta visita puderam passear pela cidade de São João del
Rei, conhecer alguns prédios da universidade, almoçar no restaurante
universitário, assistir apresentações artísticas e discutir sobre o possível
evento a ser realizado no quilombo. Em particular, decidiu-se a partir de
uma palestra sobre vídeo, ministrado por Cardes Amâncio do CEFET, MG,
instituição que se aliou em parceria com o NAST para desenvolver ações
audiovisuais na comunidade, a realização de uma oficina e a elaboração de
um vídeo sobre comunidade8 pelos próprios adolescentes. Resultou também
no interesse da comunidade em aprender jongo e maracatu, inclusive tendo

7. ET: bolsistas e voluntários tinham desenvolvido quatro oficinas, a saber Oficina Performance
e crochê: criação de diferentes tipos de artefatos para uso como ornamentos, figurino, na cena;
Oficina Jogo, teatro, performance, artivismo e sustentabilidade, Oficina Sustentabilidade:
uma relação entre som, corpo, memória e performance e, por fim Oficina: Práticas coti-
dianas na criação de cenas e performances comunitárias ecopoéticas.
8. Cf. o vídeo “VAMOS JOGAR BETE, DJOU?” disponível online em: https://www.youtube.
com/watch?v=w0MfMEUFu_4

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sido convidado o grupo de Maracatu “Raízes da Terra” convidado por eles
para as ações promovidas no dia da Consciência Negra.
Foi principalmente a partir daí que o vínculo entre o grupo e os
moradores teve um fortalecimento, pois pela primeira vez eles puderam
vivenciar algo preparado por nós especialmente para eles, entendendo que
realmente temos a intenção de desenvolver um trabalho sério e produtivo.
Após esse ponto, iniciamos a terceira etapa do trabalho, a execução das
oficinas dos membros do NAST e a preparação do encontro de motoqueiros.
As oficinas oferecidas pelo grupo, principalmente para as crianças,
começaram de maneira leve, descontraída, e tiverem o jogo como elemento
gerador estimulando por meio de brincadeiras a imaginação e oferecendo a
elas a possibilidade do envolvimento artístico. Neste momento a proximidade
entre o grupo de extensionistas e as crianças aumentou consideravelmente,
pois durante os jogos propostos, as crianças foram se soltando e, aos poucos
deixaram a timidez de lado e preocuparam-se apenas em se divertir. Desse
modo, foi possível notar o interesse das crianças e o laço afetivo criado com
o grupo no decorrer do ano.
Por conta dos recentes acontecimentos políticos no país, aconteceram
apenas dois encontros com essas oficinas, pois os estudantes da Universidade
Federal de São João del Rei, assim como em várias outras universidades
do país, deflagraram greve estudantil e logo na sequência os professores
também aprovaram a greve. Desse modo, os três segmentos da Universidade,
os técnicos - que foram os primeiros -, discentes e docentes, tiveram suas
atividades paralisadas, interrompendo também nosso trabalho.
Sobre o encontro de motoqueiros foi possível perceber a disposição
daquele coletivo em realizar esse evento. Apesar de encontrar certa
resistência e acomodação por parte dos moradores, os grupos se mobilizaram
constantemente refutando a ideia de independência daquele quilombo que
norteia suas ações.
A partir desse longo processo já realizado, aqui descrito, o grupo
pretende prosseguir com o trabalho no quilombo focando principalmente
no artivismo, que é muito maior do que um mero trabalho artístico. Segundo
Vieira (2007, p.14): “A arte activista (sic) está profundamente intrincada no

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movimento de resistência cultural que pode assumir configurações para
muito além do que inicialmente se poderia considerar de âmbito artístico”.
Estabeleceu-se então, um novo método de atuação, que consiste na produção
de eventos e oficinas de acordo com a demanda comunitária, assim como
o curso de arte-vivenciador comunitário que será oferecido pelo grupo
na cidade de Nazareno, com apoio da Prefeitura Municipal. Com isso
pretendemos formar arte-vivenciadores da própria comunidade para que
estes possam continuar a desenvolver e gerenciar projetos artivistas de forma
autônoma dentro da comunidade.
Em paralelo a estas atividades, o Laboratório de Ecopoéticas
(ECOLAB) através de seus subprojetos, do qual o Núcleo de Pesquisa Arte
e Sustentabilidade faz parte, em parceria com a Prefeitura Municipal de
Santa Cruz de Minas e Programa Interdepartamental de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Artes, Urbanidades e Sustentabilidades (PIPAUS),
iniciou o projeto de revitalização e ocupação artístico-cultural da praça
localizada no Porto da Passagem. O projeto visa a manutenção da cultura
local, que foi instituída através da ocupação do espaço pelos moradores, em
sua maioria idosos, além de atrair a população geral para esse ambiente de
possibilidades e convivência, através da organização de eventos e presença
efetiva das atividades realizadas pelos projetos supracitados. Dessa forma
os subprojetos do ECOLAB estarão atuando de forma integrada para a
execução desta nova ação.

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REFERÊNCIAS
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teoria e prática, 5ª ed., Belo Horizonte, MG: Instituto Felix Guattari
(Biblioteca Instituto Félix Guattari; 2), 2002.
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p.76-95 | Jul./Dez. 2014
KASTRUP, V. (org.) Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção
e produção de subjetividade, Porto Alegre, Sulina, 2010. In: VIEIRA, T.​
Artivismo: estratégias artísticas contemporâneas de resistência cultural.​
Porto Alegre, 2007.
PASSOS, E.KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. da. Pistas do método da Cartografia:
Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre:
Sulina, 2009.
RIBEIRO, C. de F. e SIQUEIRA, A. A realização da performance comunitária
ecopoética a partir da comunidade do Araçá. Relatório de Iniciação
Científica. Programa Institucional de Iniciação Científica – PIIC, Edital
N. 002/2012/PROPE-UFSJ, 2013.
ROSSI, A.; PASSOS, E. Análise Institucional: revisão conceitual e nuances
da pesquisa-intervenção no Brasil (IN). ​Revista EPOS​, vol. 5, n. 1. Rio
de Janeiro, 2014.
SCHECHNER, R. “What´s performance?”. In: Performance studies: an
introduction, second edition. New York & London: Routledge, p. 28-
51. 2006.
SIQUEIRA, A. Ecopoéticas, cênicas, performáticas e transdisciplinares.
Relatório de estágio pós-doutoral. Rio de Janeiro: UNIRIO, PPGAC, 2016.
VIEIRA, T. Artivismo: estratégias artísticas contemporâneas de resistência
cultural. Porto Alegre, 2007.

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EDUCAÇÃO TEATRAL: UMA EPISTEMOLOGIA
PARA MUITAS PRÁTICAS9

André Luiz Lopes Magela (Pesquisa financiada pelo Cnpq)

Na conferência que proferiu no Seminário Trocas e Propostas, Arão


Paranaguá de Santana afirmou que os tempos atuais demandam que
novamente expliquemos à sociedade, e convençamos instâncias decisórias,
sobre a necessidade de aulas de teatro em escolas. Não apenas concordo com
esta afirmação de Arão, que tenta enfrentar problemas de hoje que estão,
se não claros, ao menos explícitos para todos, como esta tarefa é que tem
orientado minhas ações de docência e pesquisa nos últimos dez anos. Neste
âmbito, venho tentando construir e selecionar certas perspectivas que possam
lidar melhor com este problema, num campo de batalha epistemológico que
envolve algumas áreas de saber.
Minhas referências práticas e teóricas em minha vida no teatro anterior
à minha situação de professor universitário eram a atuação (tudo aquilo que
diz respeito ao ator em cena) e a filosofia. A maior influência em minhas
visões sobre atuação são os escritos de Jerzy Grotowski, tendo a figura de
Tatiana Motta Lima um papel chave neste campo, através de escritos, aulas
e uma relação profissional-pessoal que já dura um tempo expressivo. E
paralelamente, o que é também uma visão de mundo mais geral, relações

9. Este trabalho atualiza e acrescenta alguns elementos a uma parte do capítulo, de minha
autoria, “Docência de Teatro em Escolas: Argumentos para uma Consistência”, publicado
no livro “Educação (em tempo) Integral: diálogos entre a universidade e a Educação Básica”,
publicado também pela Editora Fino Traço.

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entre propostas conceituais presentes nos escritos de Gilles Deleuze e Félix
Guattari e as atividades do ator. Ao mesmo tempo, já me envolvia com
interesses direcionados à produção de subjetividade e biopolítica.
Com estes elementos, e outros relativos à estética, atividades artísticas,
educação, estudos da cognição e política, consolidou-se para mim a concepção
de que a docência de teatro em escolas não teria quase nada a ver, em termos
imediatos, com o teatro feito para a fruição de uma plateia. Sim, as aulas
aproveitam elementos deste ofício (e, de fato, são sua base técnica), mas
estas aulas seriam o fomento de uma produção de subjetividade de cunho
teatral. Esta subjetividade no que tange ao “teatral” seria conectada a um
pensamento teatral, a uma inteligência presente na percepção daquilo que
é teatral no acontecimento. Das muitas inteligências ativadas na percepção
no cotidiano, cabe a nós, professores de teatro que pela lei entraremos na
vida de todos os brasileiros, dirigir nosso trabalho ao pensamento teatral
ativo na vida do aluno.
Uma perspectiva que associe as aulas de teatro em escolas com a
teatralidade da vida não foi ainda satisfatoriamente abordada. E podemos
ter a impressão de que não se dá a devida importância à necessidade de
estabelecer claramente esta perspectiva de conexão entre o teatro e uma
trama da vida - a teatralidade imbricada com a vida.
Quando a vida do aluno ou a importância das aulas de teatro entram em
análise, o que normalmente se aborda e avalia são transformações pessoais
que poderiam ocorrer com qualquer outra aula que dinamize melhor seus
vínculos sociais, não havendo uma percepção e análise dos aspectos teatrais
propriamente ditos em seu cotidiano. Considero que isto não contribui
para a constituição de subsídios para que professores tenham uma prática
de docência com parâmetros mais abrangentes que a constituição de cenas
para exibição.
Mas, de todo modo, temos pistas e caminhos. Não parece ser dispensável
nem tão complicado justificar consistentemente para a sociedade e construir
o porquê de contratar professores de teatro para escolas e investir o tempo
das crianças nesta atividade.

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A partir dos anos 1970, basicamente com os escritos de Michel Foucault,
Gilles Deleuze e Félix Guattari, houve o aparecimento e posterior incremento
e disseminação de uma série de textos, atividades acadêmicas e iniciativas na
área da filosofia que podem ser agregados em um campo chamado “filosofias
da diferença”. Este campo se conecta com a clínica, a política e as artes, em
desdobramentos que compõem os chamados “estudos da subjetividade”.
Percebo pontos de conexão entre uma proposta acadêmica de ensino de
teatro em escolas que diga respeito a elementos fundamentais da vida do
aluno (preconizando que o ensino de artes não deve ser justificado pela sua
utilização como veiculador de conteúdos ou como mera atividade criativa, mas
como a exploração pedagógica de uma dimensão estética teatral essencial à
vida) e o que Félix Guattari chama de “paradigma estético”, uma forte junção
entre vida e arte que reverbera intensamente nos estudos da subjetividade.
Esta abordagem compreende a educação teatral de um modo mais
abrangente, conexo a uma experiência teatral da realidade, e sua caracterização
como processo de subjetivação. Nesta perspectiva, os processos abordados nas
aulas de teatro se dirigem para a vida dos alunos, não quanto a suas temáticas,
mas a operações pedagógicas que atuam em seus modos de agir, de sentir,
de pensar enfim. O pensamento teatral estimulado nas aulas remeteria aos
pensamentos e modos de ser que já estão operando em dimensões teatrais
na sociedade, em “aspectos implicados nas formas de nos relacionarmos e
conhecermos a realidade” (QUILICI; 2015: 61).
O “conteúdo” das aulas é, então, a teatralidade presente na vida de todos
- percepções sobre elementos teatrais, dramáticos e estéticos já operando no
cotidiano, na trama social. Sua reelaboração pela educação teatral fomentaria
assim uma plenitude existencial junto aos participantes, conectada a formas
de vida integradas e capazes de compor novos mundos.
Há situações comuns onde a atenção, o cuidado e inventividade com
nossas ações se intensifica, até por conta de necessidades de sobrevivência.
Qualquer pessoa que, por exemplo, já tenha pedido uma soma grande de
dinheiro emprestado a alguém sabe o que pode ser isto. Mas dentre os
recursos adicionais que podem ser criados para tentar mostrar de maneira
mais concreta em que se constitui esta percepção teatral, existe um exemplo

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privilegiado, que talvez se refira ao lugar onde este tipo de percepção mais
estaria operando. Este exemplo é a sedução.
Quando estamos tentando seduzir alguém ou estamos num processo
mútuo de sedução, o que se torna mais importante é a percepção, junto com
a outra pessoa ou tentando incluí-la (no caso de uma sedução virtualmente
unilateral onde a outra pessoa até não saiba que se está tentando seduzi-
la), de um modo muito especifico do transcorrer do tempo, do ritmo, de
uma modulação dos corpos, do comportamento, das informações, onde
cada detalhe importa fundamentalmente, de maneira literalmente vital.
Podemos dizer que a sedução importa num regime “de vida ou morte”, se a
considerarmos como elemento fundamental para as nossas vidas10.
Tudo o que fazemos, tudo o que percebemos do que fazemos, tudo
o que percebemos da outra pessoa, tudo trafega neste fluxo específico de
acontecimentos, nesta dimensão. Somos feitos por ele - porque nossas ações
são moduladas profundamente por ele - e também o produzimos. E quanto
mais sutil e interessante é essa percepção e este manejo (ativo e passivo), tão
melhor é a sedução, pois ela está lidando com o que ocorre, em afecções, e
não com preparações prévias excessivamente “artificiais”.
Dizer que a sedução é totalmente teatral neste caso aqui não é dizer
que fazemos um personagem quando seduzimos alguém, mas sim que
estamos visceralmente atentos, conduzindo e produzidos por um transcorrer
teatral da realidade. Porque a condição filosófica de não-representação é
fundamental se pensamos na educação teatral como algo intensivo na vida.
O teatro não seria assim aquela ficção que se dá em locais circunscritos e
cujas justificativas educacionais seriam apenas relativas a um enriquecimento
cultural ou mesmo ao desenvolvimento simbólico, mas sim uma prática
efetiva de ações consequentes, cujo âmbito estético é operacional, interno
à ação, e não referente a ela.
Na sedução, nossas ações são extremamente concretas, extremamente
prosaicas até, elas podem estar totalmente atreladas a tarefas ou a obrigações
muito concretas do real ou do cotidiano, mas ao mesmo tempo elas se dão

10. Inclusive para a reprodução.

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num estrato sensível em conexões que residem apenas num âmbito estético.
O topos deste processo é complexo, múltiplo, cambiante.
O crítico e professor de arte e curador Luiz Camillo Osório certa vez
fez uma comparação11, tão simples quanto pertinente, do que talvez a arte
possa ser para uma pessoa. Ele comparou a arte a um prato de comida, a
uma refeição, ou, se quisermos ser mais elegantes, a uma refeição que foi
realizada por alguém para que comamos. O que Camillo fez notar é que
a apreciação deste prato pode se dar num universo delimitado por dois
extremos hipotéticos.
Num primeiro extremo estaria a situação de fome imperativa, onde
olhamos para o prato e a fome biológica condiciona totalmente a nossa
apreciação por ele. O desejo será extremamente intenso, e comeremos este
prato com avidez, pensando que aquela comida é vital para nós e talvez a
melhor coisa do mundo. A apreciação é totalmente dominada e ofuscada
pela fome, pela situação excessivamente concreta da falta de comida a ser
necessária e urgentemente saciada.
No outro extremo estaria a situação de total falta de fome, onde não
sentimos nenhuma vontade de comer aquele prato porque já estamos saciados,
não precisamos dele. Nessa situação, sorver essa comida se torna algo quase
sem sentido e a apreciação se torna talvez fútil ou mesmo desgostosa.
Entre esses dois extremos e numa infinita gama de intensidades,
qualidades e posições, estariam todas as situações em que temos alguma
fome - nossa relação com a comida é ancorada em algo concreto - mas ao
mesmo tempo podemos apreciar este prato de modo menos condicionado
ou circunstanciado12, numa certa exterioridade à fome biológica, mesmo
que em contato com suas forças. Nesta faixa de apreciação, podemos talvez
optar por não a comer, mas a comemos por uma certa necessidade e também
pela apreciação, pelo prazer da apreciação gustativa gastronômica que seja,
apreciação que é pensamento, que reside ancorado na necessidade, mas
constituindo uma dimensão estética que lhe supera virtualmente.

11. Esta referência advém de anotações minhas de aulas que tive com Camillo.
12. Modo similar, talvez, ao caráter de singularidade de algumas formas de produção de sub-
jetividade. Elas reconhecem a realidade das forças já em ação, mas constituem outras forças.

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Como afirmou Eudoro de Sousa, “recusar aquilo que nos é dado
gratuitamente” (SOUSA; 1988). O que para ele define o “humano”.
Jacques Rancière, ao discorrer sobre o “regime estético”, refere-se a algo
talvez similar a esta suspensão - a uma cisão da percepção e a uma recusa.
Estas, num aspecto mais diretamente político, se aproximam do que ocorre
por exemplo quando “seres destinados a permanecer no espaço invisível do
trabalho que não deixa tempo para fazer outra coisa tomam o tempo que não
têm para afirmar-se coparticipantes de um mundo comum, para mostrar o
que não se via, ou fazer ouvir como palavra a discutir o comum aquilo que era
ouvido apenas como ruído dos corpos” (RANCIÈRE; 2012: 60). Usar o tempo
que não se tem é criar um espaço de virtualidade, suspender, estabelecer
uma cisão naquilo que está dado, definido, configurado. Esta criação de
uma dimensão estética “extra” pode ser exemplificada pelo relato sobre um
operário que, no século XIX, colocava tacos no chão de uma mansão e se
dispõe a olhar pela janela para fora do local:
Esse olhar que se separa dos braços e fende o espaço da atividade
submissa destes para nela inserir o espaço de uma inatividade livre define
bem um dissenso, o choque de dois regimes de sensorialidade. Esse
choque marca uma subversão da economia “policial”13 das competências.
Apoderar-se da perspectiva é já definir sua presença num espaço
que não é o do “trabalho que não espera”. É romper a divisão entre
os que estão submetidos à necessidade do trabalho dos braços e os que
dispõem da liberdade do olhar. É, por fim, apropriar-se desse olhar
perspectivo tradicionalmente associado ao poder daqueles para os
quais convergem as linhas dos jardins à francesa e as do edifíco social.

(...)

Pois para os dominados a questão nunca foi tomar consciência dos


mecanismos de dominação, mas criar um corpo votado a outra
coisa, que não a dominação. Como nos indica o mesmo marceneiro,

13. “Policial”, no contexto conceitual tecido por Rancière neste texto, Paradoxos da arte
política, diz respeito à manutenção da política vigente. Política sendo vista como as formas
de partilha de um certo real pelos implicados nele.

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não se trata de adquirir conhecimento da situação, mas das “paixões”
que sejam inapropriadas a essa situação. (RANCIÈRE; 2012: 61-62)

Enfatizando que as aulas de teatro advogadas aqui devam agir no regime


estético, como exposto por Rancière, estas formas de pensar teatrais são
ampliadas neste sentido, no de gerar estes corpos que escapem do instituído
pela própria invenção de si, como corpos outros, autônomos. Em relação
com as formas existentes, também inventando outras forças e formas.
Neste sentido, retornando à comparação de Camilo, ela nos faz pensar
que a percepção estética estaria neste lugar móvel, mesclado e transitório. Ela
nem está num local hipotético de total abstração, de total apreciação fora de
quaisquer âncoras ou referenciais da realidade, nem pode estar totalmente
subsumida a uma condição delimitante.
A sedução estaria também neste lugar. Ela nem está totalmente atrelada
e reduzida ao meu desejo preexistente de me vincular sexualmente com outra
pessoa, nem está totalmente num âmbito fútil, apenas do entretenimento.
Ela estaria associada ao mais urgente de nossas existências e ao mesmo
tempo ao mais inefável. Nesse âmbito, a nossa atenção estaria imersa nessas
modulações do tempo e do ritmo dos corpos, do espaço, dos fluxos dos
acontecimentos. Isto é o que eminentemente o teatro e a educação teatral
mobilizam, e a percepção ativa teatralmente seria análoga a um processo
de sedução, que é tão mais interessante quanto mais teatral.

REFERÊNCIAS
QUILICI, C. S. Educação estética (verbete). In: KOUDELA, I. Dormien
& ALMEIDA JUNIOR, J. S. de A. Léxico de pedagogia do teatro. São
Paulo: Perspectiva, 2015.
RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
SOUSA. E. de. Mitologia I – Mistério e Surgimento do Mundo. Brasília:
UNB, 1988.

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BRECHT E BENJAMIN: O ARTISTA ENTRE
CULTURAS

Diego José Domingos

Sempre que estudamos a cultura ocidental nos deparamos com o embate


de determinadas lacunas a serem preenchidas pela própria sociedade. Nesse
caso, o que Terry Eagleton chama de culturas particulares, emerge em um
movimento de força proporcional à perda de terreno da alta cultura. É nesse
embate entre as culturas que é possível evidenciar a interação humana com
o meio destinado ao indivíduo e, assim se imprime na narrativa a marca do
narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso, como afirma Benjamin
em O narrador (1987). Em A ideia de cultura, Terry Eagleton (2005), no
capítulo Guerras Culturais, destaca sua preocupação com venda conceitual
da cultura para o capitalismo, a desestabilização das identidades culturais, o
caráter universalista da alta cultura, e coloca em voga a soberania da cultura
frente ao Estado. Dessa forma, essa reflexão investiga a cultura ocidental, seus
meios de legitimação, mas tendo o teatro como seu documento base. Para
ilustrar essa reflexão temos Bertold Brecht, que para Benjamin, tornou-se
uma das figuras mais importantes do século XX. A argumentação parte da
necessidade de repensarmos o lugar do produto estético, da cultura e do
artista e, se baseia no trabalho intelectual de Benjamin e Brecht como resposta
ilustrativa às questões de Terry Eagleton. De certa forma, o que também
podemos destacar nessa reflexão, é a tarefa crítica se desdobrando ainda no
campo do afeto, já que a amizade entre Benjamin e Brecht, se tornou um

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instrumento decisivo na leitura do mundo artístico para Brecht e na leitura
crítica para Benjamin, como é possível perceber nas cartas trocadas entre
eles. O trabalho reflete ainda a preocupante relação entre Cultura e Estado, e
ressalta a tentativa de se apresentar como uma defesa da diversidade cultural

BRECHT E BENJAMIN: O ARTISTA ENTRE CULTURAS


Esse trabalho reflete as palavras de Terry Eagleton, mais especificamente,
o capítulo três, intitulado Guerras Culturais, com a figura de Bertold Brecht
(1893-1956) a fim de ensaiar o trânsito de Bertolt Brecht no cenário cultural. O
dramaturgo e diretor alemão, não contente com as formas cênicas tradicionais,
destacou-se no teatro por desenvolver técnicas de interpretação e acreditar
em uma atuação que caminhasse por um viés pedagógico, mais codificada
e que pudesse ser vista como uma tradução dos mecanismos constituintes
das relações humanas. Apesar de não ter produzido especificamente um
método, tornou-se diretor e, desenvolveu uma nova estrutura - intelectual e
prática - para o teatro. Desconstruindo a estrutura clássica Brecht instaurava
e explorava outras dimensões para a ideia de realidade. De seus estudos, o
recorte usado para essa reflexão, se direciona à forma como esse intelectual
empreendeu sua jornada profissional estabelecendo uma nova forma de
conceber e realizar o trabalho artístico do século XX.
Luciano Gatti aponta que no texto O que é Teatro épico?, escrito por
Walter Benjamin em 1931, como Bertold Brecht se estabelece como uma das
figuras mais importantes para o território cultural ocidental. Foi fato e hoje é
história suas contribuições à estética, à uma pedagogia teatral revolucionária
no campo cênico e sua solidariedade intelectual aos mais pobres. Havia,
portanto, ao menos naquele momento, um engajamento cultural como
resposta aos estímulos caóticos do mundo que se via polarizado e em meio
a uma guerra cruel que exterminava nações e tinha como pano de fundo
um discurso conservador baseado em aspectos econômicos e étnicos. Na
verdade, a solidariedade intelectual entre esses dois pensadores –Benjamin
e Brecht - do século XX, indica a necessidade de se repensar o lugar dos
desdobramentos culturais e os discursos que esses podem engendrar na
sociedade. No âmbito estético, cabe ainda uma reflexão sobre a repercussão

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e apropriação do material artístico por parte da sociedade, indicando-nos
uma consciência artística em relação aos discursos que possam ser suscitados
e, de maneira maléfica, impetrados no pensamento coletivo. Na citação
abaixo, Benjamin descreve o que, para Brecht, parece ser um problema em
relação à parábola kafkiana:
Numa floresta, há troncos de diversos tipos. Os mais grossos servem à
produção de vigas para a produção de navios. Os menos sólidos, mas
ainda consideráveis, servem para tampas de caixas e paredes de caixão.
Os bem finos são utilizados como açoites. Já os deformados não servem
para nada – eles escapam ao sofrimento da utilidade. Devemos olhar o
que Kafka escreveu como olhamos essa floresta. Encontraremos uma
quantidade de coisas bem úteis. As imagens são boas. O resto não
passa de mania de segredos. É um disparate. Devemos deixar isso de
lado. Com a profundidade não se vai longe. Ela é uma dimensão que se
basta a si mesma. A mera profundidade – daí não sai nada. (Benjamin.
1934, p. 225)

A insatisfação de Brecht, deriva na verdade de uma das constituintes


de base da cultura elevada. Segundo Terry Eagleton, a alta cultura é uma
das menos significativas armas ideológicas, afinal de contas, a base dessa
perspectiva é revestida por uma verdade aparentemente absoluta. Dessa
maneira o que se verifica na prática é a total ausência de ideologia. Ainda
a falar sobre cultura, Eagleton, destaca – e começa aqui a divergência
entre Brecht e a alta cultura - que a cultura é o espírito da humanidade
individualizando-se em obras específicas. Esse tipo de discurso dá ênfase
a ligação entre o particular e o universal. Nesse caso o discurso dispensa a
mediação da história sem que sua leitura necessite do que é historicamente
específico. A problemática, nesse caso, se instala na oposição traçada por
Brecht no que diz respeito a sua atuação artística, como destaca Benjamin em
sua análise publicada em 1934 de Um Homem é um Homem, apresentando
as transformações decisivas introduzidas por Brecht na máquina teatral
obtendo como resultado um meio de expandir e conectá-lo a uma instância
maior no que diz respeito às transformações sociais. Dessa forma, Brecht
propunha aos seus espectadores uma nova concepção de Homem, em que

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esse não poderia ser entendido como uma essência fixa e imutável, mas
pelo contrário, deveria entender-se como soberano da história, capaz de
compreender seu lugar no tempo e que a realidade, tal como se apresenta
ou é apresentada, não passa de um produto estético da historicidade que
incide sobre nós.
A constatação negativa de Brecht, em relação a parábola Kafkiana,
retoma, portanto, a preocupação de Benjamin acerca dos mecanismos de
compreensão da narrativa. A intenção, ao menos para Brecht, era liquidar
a possibilidade de afastar o fruidor do viés pedagógico da obra de arte, que
como aponta Benjamin, é um esforço crônico, por parte de Brecht, de legitimar
arte como instância de saber. Vale salientar que Brecht cobrava tanto da
literatura quanto do teatro um desempenho maior na função de evidenciar
as forças que atuavam na formação dos processos históricos vividos pelo
homem. Ainda nas palavras de Benjamin, tratava-se na verdade de mobilizar
a autoridade do marxismo para si com base na teoria poética da didática.
O teatro de Brecht é particularmente interessante quando submetido
a uma análise cultural porque reúne em si uma série de características que
o distanciam da alta cultura, sendo o cerne da questão a discussão do papel
social do artista frente a um conjunto de regras que tangenciam o processo
de criação deixando suas marcas sobre o produto estético produzido. Por
esse ponto de vista, o produto estético se torna claramente uma exposição
do esfacelamento da ideia de destino, ao menos aquela ideia de destino
imutável na acepção divina, isso porque Brecht, deixa claro sua inclinação
intelectual para o lado da filosofia em que traz para cena a noção nada
abstrata de que o destino é uma atividade dos homens, e que ela –a cena-
torna-se um produto de exposição do entrelaçamento das relações sociais
entre esses. Brecht desafia a alta cultura quando estabelece uma função
para o seu trabalho, em outras palavras, é como se Brecht agora flutuasse
simultaneamente entre a Cultura e a cultura.
No campo dramatúrgico, o incômodo do diretor alemão advinha do
que ele denominava de enganação. A discussão que sua dramaturgia traz,
marca um embate de formas, retomando antigas questões teóricas do campo
da poesia, sendo reorganizadas sobre as acepções lírica, dramática e épica.

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Essa tentativa dá enfoque na questão narrativa da dramaturgia brechtiana.
Sua proposta, seguindo tais reformulações, direciona o espetáculo para o
âmbito da narração teatral, que pode ser entendida como uma medida para
a fuga da geração de emoções como elemento constituinte da cena. De certo
modo, Brecht propõe um teatro mais sóbrio, em que as peças encenadas não
se baseassem em histórias individuais de um personagem como os enredos
habituais da época. Benjamin, ainda sobre o teatro épico de Brecht, destaca
a consciência de Brecht no que diz respeito à abrangência das técnicas
mais avançadas –cinema e rádio- embora essa premissa assumisse não uma
posição contrária a técnica, mas justamente o oposto, servindo como auxílio
dramatúrgico e, como resultado cênico, incorporava a técnica à ação como
um instrumento crítico-pedagógico.
Para a alta cultura do Ocidente a ideia de atrelar lutas sociais ou questões
de gênero fica a cargo das culturas particulares. A ideia de disseminação
ideológica, é característica dos excluídos, é parte importante no equilíbrio
das forças que emanam de um coletivo menor e desprovido de “proteção
cultural” no panorama global da cultura. Essa batalha já é antiga e segundo
Terry Eagleton, imaginar uma corrente física sustentando metafisicamente
qualquer um desses dois lados, não passa de uma tentativa de racionalizar
esse fenômeno. Entretanto, as consequências dessa batalha -sem pais ou
responsáveis legais- atingem de forma diferente os dois lados. Um se mantém
de pé pelo apoio da superestrutura, o outro se mantém pela memória que
se faz resistente ao tempo.
Nesse sentido, Benjamin fica a cargo de legitimar a obra do amigo. A
parceria entre esses dois intelectuais resulta no redirecionamento do cenário
artístico cultural do século XX. Além do campo artístico, Brecht e Benjamin,
cada qual à sua maneira, ansiaram por uma sociedade mais justa, em que cada
indivíduo possa ter as mesmas condições de se apresentar criticamente diante
das várias narrativas do mundo. Como um dos resultados dessa parceria
podemos destacar a tentativa de fazer do teatro épico um instrumento capaz
de oferecer à sua plateia uma autocrítica do processo histórico-social do qual
fazem parte ou estão inseridos. Sobre esse aspecto devemos salientar que a
busca por um teatro épico está ligada a um teatro de resistência e elucidação

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dos fatos através da perspectiva histórica. Inserir-se historicamente significa
ter consciência diante dos fatos e não apenas ter consciência do fato.
A alta cultura reflete uma visão globalizada, e esse reflexo narra não
apenas os interesses próprios da Cultura, mas de outros grupos que exercem
suas vontades através da persuasão moral, ainda que atualmente a alta cultura
esteja esfacelada por se desligar de suas raízes religiosas. Todavia, o discurso
jurídico e político atuam, ainda hoje, sobre resquícios consideráveis da
estrutura religiosa. De qualquer forma, é esse movimento que possibilita a
emersão das culturas particulares para preencher determinadas lacunas -já
que a Cultura se desligou de suas raízes religiosas- permitindo que o Ocidente
se transformasse em um espaço mais heterogêneo e, por consequência, mais
defensor da diversidade cultural, ainda que contrariando seus pressupostos
e objetivos iniciais. É nesse contexto que o ocidente perde território para
as culturas particulares, como o islã, em que a cultura religiosa é a base de
todo o seu raciocínio.
O espaço heterogêneo formado pela cultura ocidental reacende o
debate de determinadas lacunas a serem preenchidas pela própria sociedade.
Nesse caso, as culturas particulares emergem em um movimento de força
proporcional à perda de terreno da alta cultura. É dessa forma que o Ocidente
dissemina e recebe a ideia de atrelar lutas sociais ou questões de gênero,
por exemplo, às culturas particulares. A ideia de disseminação ideológica
é característica dos excluídos, é parte importante no equilíbrio das forças
que emanam de um coletivo menor e desprovido de “proteção cultural” no
panorama global da cultura. Esses processos evidenciam a interação humana
com o meio destinado ao indivíduo, assim se imprime na narrativa a marca
do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso, afirma Benjamin em
O narrador (1987).
Ao descrever, defender e estruturar o Teatro épico de Brecht, Benjamin
cumpre com seu papel de legitimador: curador cultural de uma exposição que
tinha tudo para fracassar. Afinal de contas, Brecht era apenas mais um que
se rebelava contra a forma. Até então, Brecht aos olhos da cultura ocidental
era tido apenas como mais um acidente cultural. De fato, a intelectualidade
-alta cultura- que rondava Brecht, teve um papel decisivo na criação dessa

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tradição teatral que já perdura desde o século XX. As considerações feitas
por Benjamin ao Teatro épico serviam como uma espécie de registro. Em
algumas correntes jurídicas, registro pode ser entendido como aquilo que
dá publicidade ao ato celebrado. Ali então começava o processo de fixação
de Brecht na alta cultura ocidental, embora a arte produzida por ele tivesse
elementos e características que identificava a obra como uma cultura a
parte da cultura até ali dominante. O território cultural ocidental é cheio
de incoerências e por essa razão, entre outras, se faz difícil uma análise que
seja conclusiva ou determinante sobre o fluxo de trocas entre as culturas.
A influência dos mercados internacionais, da globalização, da cultura e a
hegemonia de determinados grupos sociais, religiosos e políticos afetam,
em muitos casos, diretamente todo o material produzido.

REFERÊNCIAS
ARFUCH, L. O Espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea.
Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas. São Paulo:
Brasiliense, 3ª ed., 1987.
EAGLETON, T. Guerras culturais. São Paulo: UNESP, 2005.
GATTI, L. Benjamin e Brecht: a pedagogia do gesto. In: Cadernos de Filosofia
Alemã: crítica e modernidade. n. 12, jul./dez, 2008, p. 51-78. USP.

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A MEDIAÇÃO TEATRAL EM TORNO DE UMA
LEITURA DRAMÁTICA: APONTAMENTOS DE
UMA PESQUISA EM CONSTRUÇÃO

Emerson Fernandes Pereira, Bolsista CAPES

A presente pesquisa, em andamento, objetiva investigar o processo de


mediação teatral em torno da leitura dramática “A ascensorista”, apresentada
pelo grupo de teatro e música DUO DAIA, formado pelo ator Davi Dolpi e a
atriz Iara Fernandez, que têm no repertório leituras dramáticas de cenas ou
peças teatrais. Os segmentos de espectadores participantes constituem-se em
três: professores e alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), da Rede
Pública Municipal de Ensino da cidade de Ouro Preto (MG); licenciandos
em Pedagogia pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP); integrantes
do Clube da Maior Idade Renascer. O objetivo da pesquisa é investigar as
possibilidades e limitações da leitura dramática como objeto de fruição
estética. A leitura dramática está a meio caminho entre a leitura individual
da peça teatral e a assistência da encenação teatral. O pressuposto de base é
que a relação do espectador com a leitura dramática pode ser potencializada
por meio da mediação teatral, havendo chance de esse trabalho resultar em
uma ampliação da percepção e da compreensão da cena por seus fruidores,
tendo como base a bagagem cultural prévia do espectador. O processo de
mediação teatral desenvolvido no trajeto desta pesquisa-ação procura olhar
para os espectadores como sujeitos protagonistas que constroem seus próprios
percursos de descoberta de sentidos para a cena. Busca-se compreender

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como contribuir para essa relação ativa do encontro do espectador com a
linguagem teatral, fazendo-se necessário discorrer sobre ações mediadoras
que abram caminhos para que aquele que está no “lugar de onde se vê” venha
a ser o autor da sua própria experiência estética.

A MEDIAÇÃO TEATRAL EM TORNO DE UMA LEITURA


DRAMÁTICA: APONTAMENTOS DE UMA PESQUISA EM
CONSTRUÇÃO
A mediação teatral é um campo de investigação recente que, nas últimas
décadas, é perpassada por questões desafiantes: como podemos formar
espectadores na contemporaneidade? É preciso formar espectadores? As
discussões passam por tentativas de abrirmos caminhos, colaborando para
uma relação significativa e potente do saber e do sentir existente em cada
espectador, trazendo-os para vivenciar o fazer e o fruir teatral.
Conceituar o que se compreende por mediação teatral é um dos desafios
para quem se propõe a colaborar para uma relação mais significativa entre
o espectador e a cena ou o espetáculo teatral.
Assim, apresento uma citação do sociólogo francês Roger Deldime, na
qual ele discorre sobre a sociologia da mediação teatral evidenciando que
existe um terceiro espaço entre a criação e a recepção.
A sociologia da mediação teatral cuida da investigação do terceiro espaço,
aquele que se situa entre a criação e a recepção, atuando nessa “distância”
que existe entre os avanços de toda a criação digna de levar este nome
e os espectadores, que, para perceberem e apreciarem esta criação,
empreendem uma atitude que é proveniente mais de uma aquisição
cultural do que um dom natural, espontâneo ou inato. (DELDIME,
2002, p. 229)

Ao falar de um “terceiro espaço”, aquele que se situa entre a criação e


recepção, o autor localiza o lugar da mediação teatral na “distância” entre
esses dois polos. Outra questão evidenciada é que ele deixa claro que o
desenvolvimento da apreciação é fruto de uma aquisição cultural. Indo
ao encontro do que diz Deldime, parto do pressuposto de que formar

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espectadores consiste em proporcionar experiências com a linguagem teatral
e instigar as relações que o espectador pode estabelecer ao protagonizar suas
experiências estéticas com a leitura dramática. Esse “terceiro espaço” é onde
se localiza o processo de mediação teatral desta pesquisa, em torno de uma
leitura dramática com os três segmentos de espectadores.
A pesquisa apresenta como metodologia a inspiração na pesquisa-ação,
na acepção dada a essa modalidade investigativa por Michel Thiollent (2011).
Tendo como característica a transformação social de uma realidade, pensa-
se na conjugação de um estudo bibliográfico, com uma efetiva aplicação do
conhecimento teórico estudado para transformação de situações sociais,
como a quase ausência do espectador ouro-pretano nas produções artísticas
realizadas pelo Departamento de Artes Cênicas (DEART) e o quanto se faz
“pouco” para que o espectador assista a essas produções.
Assim, propor a mediação teatral em torno de uma leitura dramática,
sendo esta leitura dramática produção do Departamento, é levantar questões
para se pensar na dinamização das produções, criando formas de acessos
para que cada vez mais os espectadores possam usufruir das produções
teatrais da UFOP. Por isso, espera-se que o processo de mediação teatral em
torno de uma leitura dramática possa fomentar esse debate e contribuir para
pensarmos juntos nos espectadores como sujeitos protagonistas ocupando
seus lugares na programação das produções artísticas do Departamento de
Artes Cênicas e na cena cultural da cidade como um todo.

PROCESSO DE MEDIAÇÃO TEATRAL


O processo de mediação teatral em torno da leitura dramática
“A ascensorista” realizado com os espectadores se deu em três etapas,
denominadas aqui em seu conjunto como ações mediadoras: mediação
anterior (composta de ações mediadoras anteriores à fruição); fruição e
mediação posterior (composta de ações mediadoras posteriores à fruição).
O desejo de trabalhar com a formação de espectadores por meio do
processo de mediação teatral corrobora o autor Flávio Desgranges ao convidar
o espectador para assumir um papel na elaboração de sentidos para a cena.
“O leitor da cena é convidado a assumir-se efetiva e explicitamente como

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produtor de sentidos, a engendrar elaborações particulares acerca da proposta
artística” (DESGRANGES, 2012, p. 25).
As ações mediadoras tinham como finalidade, por meio dos
procedimentos de mediação teatral através dos procedimentos artísticos
e pedagógicos (DESGRANGES, 2008), proporcionar aos espectadores a
experiência com a linguagem teatral, distendendo o olhar para descobrirem
a importância de serem espectadores sensíveis, críticos e criativos no ato
da fruição.
Cabe ressaltar que a mediação teatral não é vista aqui como o mesmo que
explicar o espetáculo teatral para os segmentos de espectadores e, tampouco,
didatizar o espectador. O que está em jogo são as conquistas pelos sujeitos
quando estes têm a oportunidade de construir relações com a sua própria
vida a partir do diálogo que estabelece com a obra. Por isso reforço as palavras
de Desgranges, que defende uma pedagogia do espectador
Uma pedagogia do espectador se justifica, assim, pela necessária
presença de um outro que exija diálogo, pela fundamental participação
criativa deste jogador no evento teatral, participação que se efetiva na
sua resposta às proposições cênicas, em sua capacidade de elaborar
os signos trazidos à cena e formular um juízo próprio dos sentidos.
(DESGRANGES, 2003, p. 27)

O autor acentua o quão importante é a presença do espectador


no evento teatral, tendo a função de jogador criativo e dialógico nas suas
capacidades de elaborações na medida em que vai desvendando os signos
nas diferentes propostas cênicas no processo de leitura durante a fruição. É
nessa relação que os procedimentos também se sustentam na afirmação de
Anne Ubersfeld, que propõe um espectador ativo, com atribuições dentro
do evento teatral na sua experiência estética, na leitura de inúmeros signos:
[...] é o espectador, muito mais que o encenador, quem fabrica o
espetáculo, pois ele tem de recompor a totalidade da representação em
seus dois eixos, o vertical e o horizontal ao mesmo tempo, sendo obrigado
não só a acompanhar uma história, uma fábula (eixo horizontal), mas
também a recompor a cada momento a figura total de todos os signos
que cooperam na representação. (UBERSFELD, 2005, p. 20-21)

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A autora, ao propor um espectador fabricador do evento teatral, leva-nos
a pensar no espectador que atribui seus próprios significados tanto à fábula
(eixo horizontal), quanto às relações entre determinados signos coexistentes
em cena (eixo vertical). Algo dessa autonomia do espectador foi verificado,
por exemplo, em uma fala de uma espectadora licencianda em Pedagogia
da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP):
Eu acho que o mais interessante é [...] você vai ouvindo e você vai
criando na sua cabeça, né? Com tudo, você monta o cenário todo na
sua cabeça, isso é legal, a expressão deles na hora que estão fazendo
a leitura, sabe, [...] ele mudando a voz, entonação, [...] interessante
essa criação na mente da gente, mesmo igual você vai vendo os vários
cenários que você consegue montar na cabeça.1

Relatos como esse em torno da leitura dramática parecem ter contribuído


para formação do espectador por meio da experiência, possibilitando
construções imaginárias da visualização a partir dos escassos elementos
componentes de uma leitura dramática, porém, esse limite não interfere
na sua criação como espectadora, chamando atenção para voz, fala, rosto,
esboço dos gestos e as proposições de cenários que vai tecendo na sua leitura.
O processo de mediação em torno da Leitura Dramática mostrou-
se revelador em muitos aspectos, diferenciando-se e aproximando-se das
características de uma apresentação teatral. Assim, a leitura dramática que está
a meio caminho entre a leitura individual de um texto dramático e a fruição
de uma encenação pode ser potencializada por meio da mediação teatral,
resultando em uma ampliação da percepção e da compreensão da cena por
seus fruidores, tendo como base a bagagem cultural prévia do espectador.

1. Fala obtida via registro em áudio da roda de conversa após a fruição da leitura dramática
de “A ascensorista” em 24/07/2017.

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REFERÊNCIAS
DESGRANGES, F. A pedagogia do espectador. São Paulo: Hucitec, 2003.
DESGRANGES, F.. A Inversão da olhadela: alterações no ato do espectador
teatral. São Paulo: Hucitec, 2012.
DESGRANGES, F.. Mediação Teatral: anotações sobre o Projeto Formação de
Público. Urdimento / Revista de Estudos em Artes Cênicas. Programa de
Pós-Graduação em Teatro. v.1, n.10 (dez 2008) – Florianópolis: UDESC/
CEART Anual, p.75-83.
DELDIME, R. Formar o espectador infantojuvenil para ver e fazer teatro.
In: Revista Sala Preta (USP). São Paulo, vol. 2, p. 229-232.
UBERSFELD, A. Para ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005.
THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 2011.

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IMPLICAÇÕES DOS ESTUDOS DA
PERFORMANCE NA EDUCAÇÃO

Estela V. Villegas, Bolsista UFOP

Neste recorte são pontuadas reflexões sobre possíveis implicações dos


Estudos da Performance para a Educação. O diretor, teórico e professor da
Universidade de Nova Iorque, Richard Schechner desenvolveu na década de
1970 uma teoria da performance relacionada à convergência entre os estudos
teatrais e das ciências sociais que se deu na década de 1950 (CARLSON,
2011). Para Schechner, as formas artísticas fazem parte de um fenômeno
mais abrangente que ele chamou de “performance”, um amplo espectro que
inclui desde rituais, jogos, esportes, artes e todo tipo de entretenimento às
performances na vida cotidiana. As implicações dos estudos da performance
para a educação ainda representam um campo exploratório, emergente e
em formação. Os professores Gilberto Icle (UFRS) e Marcelo A. Pereira
da UFSC (2010) afirmam que no Brasil os estudos da performance são
raros na educação, enquanto pesquisas norte-americanas têm demonstrado
profícuas implicações. O lugar de encontros e interações da performance,
para Schechner, pode servir de modelo para uma Educação Ativa. Pensando
na educação em artes, especialmente da escola pública, estes estudos podem
representar significativos avanços uma vez que estão direcionados por um
paradigma abrangente e inclusivo, interdisciplinar e multicultural, que vai
além da noção pós-industrial da arte como profissão, dom e talento; da
arte especializada e elitizada; e da arte pela arte como única possibilidade.

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IMPLICAÇÕES DOS ESTUDOS DA PERFORMANCE NA
EDUCAÇÃO

O que é Performance?
Performance é algo complexo e difícil de pontuar. Pode ser entendida
como arte da performance, que é a perspectiva das formas e movimentos
artísticos que desde as vanguardas do século XX vêm rompendo fronteiras e
limites entre as artes; entre a obra de arte e espectadores/fruidores; e, de uma
maneira geral, entre arte e vida. Nas décadas de 1960 e 1970, movimentos
artísticos norte-americanos e europeus aprofundaram estas rupturas
consolidando a performance como um fenômeno artístico plural, híbrido,
fragmentado, caracterizado pela quebra/ruptura, ação em tempo real; o
corpo e suas relações com o mundo como centro de investigação.
Performance também pode ser entendida como um campo de estudos
das ciências sociais, linguística, antropologia e teatro, que de diferentes formas
passaram a refletir sobre os comportamentos sociais como performance. O
diretor e teórico norte-americano Richard Schechner2 (1934- ), na década de
1970, abriu uma via de maior reciprocidade entre estes estudos e as pesquisas
artísticas, consolidando um novo campo que chamou de Performance Studies
(Estudos da Performance). Marvin Carlson em seu artigo, O Entrelaçamento
dos Estudos Modernos da Performance e as Correntes Atuais em Antropologia
(2011), aponta que os estudos da performance de Schechner estão relacionados
“à convergência de interesses de pesquisas teatrais e das ciências sociais, os
quais tomam lugar em meados do século XX”. (CARLSON, 2011, p.165).
De acordo com Carlson, o primeiro encontro significativo de teóricos
interessados na sociologia do teatro foi realizado em 1955 (Royaumont,
França). Um de seus resultados foi o artigo pioneiro do sociólogo George
Gurvitch, Sociologia do Teatro (1956). Em 1962, Jean Duvignaud publica
seu livro que levou o mesmo nome do artigo. Gurvitch estende a noção de

2. Editor do Theatre Drama Review; Fundador e professor do Departamento de Performance


Studies da UNY; Teórico do teatro – Teoria da Performance/ Estudos da Performance;
Diretor do The Performance Group (1967 – 1972), dentre outros.

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performance ao cotidiano e não somente às celebrações, mas mesmo numa
‘recepção simples ou uma reunião de amigos’ (GURVITCH, 1956, p. 197).”
(CARLSON, 2011, p.166).
Nos Estados Unidos, Carlson considera como pioneiros destes estudos
o sociólogo Erving Goffman (1922-1982) e o antropólogo britânico Victor
Turner (1920-1983). Em 1956, Goffman lança o livro - A Representação do
Eu na vida cotidiana, estudo que consolida a performance social como
um tipo de dramatização (CARLSON, 2011). “O palco apresenta coisas
que são simulações. Presume-se que a vida apresenta coisas reais e, às
vezes, bem ensaiadas” (GOFFMAN, 2002, p.9). Goffman reflete sobre os
papéis sociais, familiares e de trabalho, para os quais construímos o que ele
chama de “fachadas sociais” (2002). No ano seguinte (1957), o antropólogo
britânico Victor Turner (1920-1983), em “Schism and Continuity” (“Cisma e
Continuidade”), traz uma visão processual do desenvolvimento social, cujo
processo se assemelha ao que ele chamou de drama social (CARLSON, 2011).
Carlson aponta que nesse momento os estudos da performance andavam
como que numa via de mão única. Ele considera que quem abriu caminho
para uma maior reciprocidade entre estes estudos e o âmbito artístico foi
Richard Schechner. Em seu artigo pioneiro “Abordagens à Teoria/Crítica”
(1966), Schechner define pela primeira vez performance como: “uma
categoria abrangente que inclui brincadeiras, jogos, esportes, o desempenho
na vida cotidiana e ritual como parte de um fluido de atividade teatral.”
(SCHECHNER ORG. LIGIÉRO, 2012, p.13).
Em Performance Studies: An Introduction (2002), Schechner diz que os
estudos da performance estão interessados na investigação do comportamento
humano, partindo da premissa de que grande parte dos comportamentos
podem ser entendidos como performance. Schechner classificou a categoria
abrangente da performance em quatro categorias da existência: Ser; Agir,
Atuar (Performing); estudar a Atuação. Para ‘ser’ basta nascer, todo ser ‘age’
no mundo e pode também ‘atuar’. A quarta categoria sugere um maior
aprofundamento do entendimento da ‘atuação’, desenvolvida pelas artes e
pela pesquisa acadêmica.

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Assim, para Schechner, performance não “é” alguma coisa nem está “em”
alguma coisa, mas sim “entre” as coisas, existindo apenas enquanto ações,
interações e relações. Uma visão eminentemente Inclusiva, multicultural,
interdisciplinar, dinâmica e flexível. Um novo tipo de abordagem ao
comportamento capaz de servir às diversas instâncias da construção do
saber, em especial, à educação. Os estudos da performance incluem toda a
gama de manifestações simbólicas expressivas das sociedades como parte
intrínseca da condição humana. As suas implicações para a educação ainda
representam um campo exploratório, emergente e em formação.

POR UMA EDUCAÇÃO ATIVA


No artigo, O que pode a Performance na Educação? Entrevista com Richard
Schechner (2010), os pesquisadores Gilberto Icle (Universidade Federal do
Rio Grande do Sul) e Marcelo de Andrade Pereira (Universidade Federal
de Santa Maria) começam perguntando:
Educação & Realidade: professor Schechner, no Brasil, a noção de
performance, de modo geral, e os Estudos da Performance, de modo
particular, são raros no âmbito da Educação. Nos Estados Unidos, vários
autores têm realizado essa relação que nos parece produtiva em termos
de pesquisa, pois trata-se de uma abordagem bastante ampla e que
poderia produzir uma contribuição ímpar ao universo de investigações
produzidas pelo campo da Educação. Como o senhor vê essa relação,
Performance e Educação, a partir do ponto de vista dos Estudos da
Performance? (ICLE; PEREIRA, 2010, p.24)

Schechner responde retomando a histórica relação do teatro com


a educação, lembrando que “as pessoas sempre aprenderam algo com o
teatro” (2010, p. 24). “O teatro deu às pessoas uma chance de experimentar
indiretamente aquilo que de vez em quando acontece, de modo infeliz,
na vida real, cotidiana. (...) o que Aristóteles chamou de “catarse”, (2010,
p. 24). Schechner também destaca o “privilégio de apenas assistir e, não
obstante, aprender realmente com uma variedade de ações” (2010, p. 25).
Nesse sentido, para Schechner, o teatro possibilita o que chamou de “espécie de

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meditação ativa. Eis o paradoxo teatral: o que acontece em cena está realmente
acontecendo ainda que não esteja de fato acontecendo.” (SHECHNER; In:
ICLE; PEREIRA, 2010, p. 25).
No viés da performance e educação, Schechner destaca a Pedagogia do
Oprimido de Paulo Freire e o Teatro do Oprimido de Augusto Boal, que para
ele, trazem a “necessidade que as pessoas ensinem a si mesmas” (2010, p.
24). Fazendo uma síntese Schechner diz que enquanto Aristóteles e Horácio
falavam sobre a vida emocional, Freire e Boal trabalhavam em vista de uma
transformação social. Ele também destaca as peças didáticas de Brecht ao
relatar que: “Parte do meu trabalho, como também do trabalho de alguns
colegas dos Estudos da Performance, segue (em maior ou menor grau) os
passos de Brecht, tomando a abordagem performativa do mundo,” (2010,
p. 26). Ele resume essas influências (Freire, Boal e Brecht) sob a noção que
sugere como Educação Ativa:
Essa noção de reunião, de encontro, de interação da performance poderia
ser tomada como um modelo para a Educação. Educação não deve
significar simplesmente sentar-se e ler um livro ou mesmo escutar
um professor, escrever no caderno o que dita o professor. A educação
precisa ser ativa, envolver num todo mentecorpoemoção – tomá-los
como uma unidade”. (SCHECHNER; In: ICLE; PEREIRA, 2010, p.26)

Desta forma, o tipo de abordagem da performance na educação


é sugerida por Schechner como um novo modelo para a educação que
chama de educação ativa, uma ação integral capaz de abarcar a totalidade
mentecorpoemoção. Para Schechner, “ensinar não constitui uma performance
artística, mas certamente é uma performance. No ensinar, o professor precisa
definir certas relações com os estudantes”. (SHECHNER; In: ICLE; PEREIRA,
2010, p. 30).
Em Teaching Performance Studies (2002), editado por Nathan Stucky e
Cynthia Wimmer, os organizadores trazem diversos artigos de pesquisadores
com diferentes propostas para a relação entre os estudos da performance
e a educação. Dentre os temas se encontra a proposição de uma pedagogia
performativa (ELYSE L. PINEAU; JUDITH HAMERA), onde a performance
serve como tipo de abordagem ao próprio processo de ensino-aprendizagem.

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No prefácio da obra, Schechner traz sua experiência como professor dos
estudos da performance. Ele ressalta a utilização de materiais atuais que
despertem o interesse dos alunos; a necessidade de estar aberto e flexível, não
fazendo rígidos planejamentos de aula. “Eu jogo comigo mesmo e meus alunos
com a intenção de nos engajarmos em tópicos mais frescos” (SCHECHNER,
2002, p.ix). Completando que “ensinar os estudos da performance é uma
‘repetição-do-nunca-o-mesmo’ (...)”3 (SCHECHNER, 2002, p.ix)
Para Schechner, os estudos da performance incomodam o academicismo
não somente por borrar as fronteiras entre “arte” e “vida”, bem como por
aquelas existentes entre a “formação acadêmica” e o “fazer artístico”. Ele
aponta dois fundamentos para o ensino dos estudos da performance: 1) Nada
é fixo: é relacional, dinâmico e processual; 2) Não há limites: é interdisciplinar,
estuda o comportamento seja ele considerado artístico, cotidiano, ritual, jogo,
dentre outros. Desta forma, performance não pode ser entendida enquanto
‘disciplina’, mas sim um tipo de abordagem performativa para a educação
e para a arte na educação.
Em Performance Theories In Education: Power, Pedadogy, And the Politics
of Identity, “Teorias da Performance na Educação: Poder, Pedagogia, e as
Políticas da Identidade”, (2012), editado por Bryant K. Alexander, Gary L.
Anderson, Bernardo P. Gallegos, os organizadores também trazem várias
pesquisas, desta vez, circunscritas ao perímetro da educação escolar. Os
estudos refletem sobre o processo de ensino-aprendizagem, onde as Interações
pedagógicas podem ser entendidas como performance. Também o corpo
em sala de aula é entendido como centro de investigação pedagógica e a
noção de escola performática surge como crítica e resistência aos valores
imperialistas.
Os organizadores refletem sobre a “Performance” como um termo
contestador/ problematizador da “Educação” (2012). O corpo na sala de aula,
suas influências e práticas culturais, necessitam de um pensamento novo e
renovador: “influenciado e motivado por políticas de raça, gênero, poder e
sala de aula em formas de folclore, ritual, espetáculo, resistência e protesto.”
(ALEXANDER; ANDERSON; GALLEGOS ORG., 2012, p.1)

3. Todas as referências em inglês foram traduzidas pela autora.

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Pensando na educação em artes, especialmente da escola pública,
estes estudos podem representar significativos avanços uma vez que estão
direcionados por um paradigma abrangente e inclusivo, que vai além da noção
pós-industrial da arte como profissão, dom e talento; da arte especializada e
elitizada; e da arte pela arte como única possibilidade. Tal como a pedagogia
do oprimido, o teatro do oprimido e as peças didáticas, a abordagem de
uma pedagogia performativa para o ensino das artes pode tornar a arte
mais acessível, na medida em que identifica a arte nos contextos sociais
e nas práticas culturais dos sujeitos envolvidos no processo de ensino-
aprendizagem. Traz novos olhares. Valoriza e dá suporte a um ensino de
artes interdisciplinar, social, política e culturalmente engajado, que além de
borrar as fronteiras entre arte e vida, também rompe com aquelas existentes
entre a escola e o universo artístico – por uma escola performática.

REFERÊNCIAS
ALEXANDER, B. K.; ANDERSON G. L.; GALLEGOS B. P. O. Performance
Theories In Education: Power, Pedadogy, And the Politics of Identity
(2012). Routledge, New York, USA.
CARLSON, M. O Entrelaçamento dos Estudos Modernos da Performance
e as Correntes Atuais em Antropologia (2011). Artigo Revista Brasileira
de Estudos da Presença. Acesso em: 20 ago. 2017. Disponível em:
www.seer.ufrgs.br/presenca/article/download/21512/13697
GOFFMAN, E. A Representação do Eu na Vida Cotidiana (2002). 10ª edição,
Ed. Vozes, primeira edição 1956, tradução de Maria Célia Santos Cardoso,
Petrópolis, Rio de Janeiro.
ICLE, G.; PEREIRA, M. de A. O que pode a Performance na Educação?
Entrevista com Richard Schechner (2010). Artigo Revista Educação
e Realidade. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre. Acesso em: 23 set. 2017. Disponível em: www.redalyc.org/
pdf/3172/317227077003.pdf
SCHECHNER, R. Performance Studies: An Introduction (2002). Routledge,
New York, USA.

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SCHECHNER, R. Performance e Antropologia de Richard Schechner (2012).
Org. Zeca Ligiéro, Rio de Janeiro, Mauad X.
STUCKY, N.; WIMMER, C. O. Teaching Performance Studies (2002). Board
of Trustees, Southern Illinois University, USA.

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A CASA DE ATRAM: PERSPECTIVAS DE UMA
MEDIAÇÃO TEATRAL

Bruno Moraes Regenthal, bolsista FAPEMIG BATII.

Esta comunicação trata do conjunto de mediações teatrais realizadas


junto a professores e alunos de escolas de Ouro Preto - MG, tendo como
objeto de fruição a cena A CASA DE ATRAM, resultado de uma disciplina
do curso de Artes Cênicas - Licenciatura. Essas ações fizeram parte da
pesquisa MEDIAÇÃO TEATRAL E ESCOLA PÚBLICA: PERSPECTIVAS
METODOLÓGICAS, com financiamento da FAPEMIG. O intuito dessa
investigação sobre a mediação teatral foi investigar possíveis maneiras
de estimular o público escolar a frequentar o teatro, lançando mão de
atividades anteriores e posteriores ao encontro do espectador com a cena
teatral. Procura-se, aqui, refletir sobre as mediações teatrais, analisando
de que maneira foi trabalhada a relação dos espectadores com o contexto
teatral da cena em questão. Outro ponto que se evidencia são as diversas
formas que as mediações teatrais assumiram, bem como de que forma foram
recebidas pelos participantes da pesquisa. Jogos, brincadeiras e discussões
reuniram pesquisadores e participantes, trazendo grandes benefícios à
formação estética e artística, além de fomentar a própria arte e cultura do
município contemplado e, ainda, acrescentam experiências profissionais para
os artistas-mediadores no âmbito educacional. A oportunidade de trabalhar
esta cena teatral por meio de mediações teatrais com professores e alunos de
diferentes contextos instiga debates pertinentes a respeito do funcionamento
das mediações teatrais e da forma como as mesmas podem ser realizadas junto
ao público de professores e alunos do Ensino Fundamental I. Descrevendo
as características específicas de cada escola e a variação de procedimentos

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utilizados, discutem-se alguns dos resultados da pesquisa, bem como as
relações entre o que é apresentado cenicamente a este público antes, durante
e depois da cena A CASA DE ATRAM. Outro aspecto pertinente que se
pretende debater é a diversificação dos edifícios teatrais e não teatrais em
que se apresentou a cena, levantando pontos positivos e negativos de cada
local em que houve apresentações, os quais variaram desde a clássica Casa
da Ópera até o galpão de uma Escola de Samba do bairro em que uma das
escolas participantes da pesquisa se encontra.
Comecemos com a sinopse do pequeno espetáculo A Casa de Atram,
onde, em uma singela cena visual e musical,
Atram é uma boa cozinheira, mas os dois filhos, Ellebasi e Nalsyah,
não parecem gostar muito da comida que ela faz. Eis que surge o gato
Malaspina, muito esperto, sempre a sonhar, e se torna amigo de Atram,
provando com muito gosto o bolo que ela preparou. E agora? O que
será que vai acontecer? (REGENTHAL, 2016)

Listaremos aqui também, para rápida visualização, as escolas que


participaram tanto das apresentações como das mediações, facilitando a
observação quanto às particularidades de participação de cada escola nas
atividades, por ondem cronológica: Escola A (Estadual) – 2º e 3º ano; Escola
B (Estadual) – 1º a 4º ano; Escola C (Municipal) - 1º a 4º ano; Escola D
(Estadual) - 1º a 5º ano.
As primeiras duas escolas, A e B, assistiram juntas ao espetáculo na
Casa da Ópera (Ouro Preto), onde, anteriormente à fruição da cena teatral,
tiveram uma pequena mediação. Nesta, depois de uma conversa a respeito do
edifício teatral, apresentamos os espectadores a alguns temas do espetáculo
através de sua música de introdução, a qual tem assimilação fácil por sua
melodia e letra, facilitando com que os alunos cantem juntos e interajam
com a canção, que possui os seguintes versos: “O que é que tem na casa? /
Quem mora na casa? / O que que a casa é? / É... é... é... (repete)”.
Após a internalização desta música foi perguntado aos alunos “o
que é que tem na casa?”, e, após coletadas algumas respostas, em seguida
questionou-se “quem mora na casa?” e, em seguida, “o que que a casa é?”.
Esta dinâmica, claramente, foi pensada pela própria estrutura da canção, a

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qual primeiramente coloca em evidência a parte material e/ou geral incluída
em uma casa (“o que que tem na casa?”), o que pode incluir tanto objetos,
ou mesmo a resposta “pessoas”. Em seguida a questão é a respeito da parte
animada, viva, de uma casa (“quem mora na casa?”). Depois, a parte que
pode ser tanto material como imaterial, dependendo da subjetividade de
quem responde (“o que que a casa é?”), sendo que muitos alunos respondem
“lar” ou “moradia”, outros “tijolo”, “telhado”.
Esta interlocução, ao meu ver, contribui para o adentramento do
espectador ao tema teatral, florescendo a curiosidade para o que está
por vir, a partir da resposta subjetiva dos próprios alunos em relação aos
questionamentos feitos através de uma forma lúdico-musical, pois “assim
sendo, cabe ao espectador ligar o que sabe ao que ainda não sabe, ou, em
outras palavras, formular traduções daquilo que a representação assistida
[ou que está por vir] suscitou nele” (PUPO, 2017).
Delinearemos os aspectos positivos e negativos desta primeira experiência
de mediação anterior ao espetáculo.
O primeiro aspecto, extremamente positivo, é a visita à Casa da Ópera,
a qual apesar de ser um patrimônio histórico nacional, é relativamente
pouco conhecido pelos habitantes da cidade. Apesar de não termos tido a
possibilidade de conhecer a parte técnica do teatro (camarins, mesa de som,
iluminação, etc.), a ida ao teatro é fundamental para a fomentação do fruir
teatral, como destaca Ingrid Koudela, quando afirma que:
Os espaços culturais na cidade são ilhas de liberdade diante da ocupação
da fantasia pela mídia e a sociedade de consumo. Ir à exposições e
espetáculos de teatro e música é ensinar à criança e ao jovem que,
além das áreas verdes, há espaços na cidade que merecem ser visitados.
(KOUDELA, 2010)

A dinâmica escolhida para ser desenvolvida, apesar de se configurar


como única atividade programada, configura um segundo aspecto positivo,
pois deu alicerces ao espectador para se aproximar de um universo muitas
vezes desconhecido, que é uma cena teatral. Como aspectos negativos
podemos considerar a mediação para um amplo público de uma só vez, o
que acabou por aumentar a dispersão durante a atividade e tornou menos

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íntima e mais explicativa a mediação, principalmente em sua introdução
e finalização.
A pouca vontade ou comodismo de uma parcela dos professores também
constituiu um aspecto negativo não só nesta jornada da apresentação da cena
A Casa de Atram na Casa da Ópera, como em grande parte das atividades
em que nos propusemos a trabalhar.
Por vezes, além do desinteresse em acompanhar a atividade de maneira
assídua, alguns outros, ainda, tentavam por demasiado chamar atenção do
aluno para a atividade, ou fazer o mesmo se calar. Apesar da boa intenção,
que creio, seja a de auxiliar o mediador a fazer seu trabalho, muitas vezes
acabam retalhando-o ou fazendo mais barulho que o próprio aluno. O
professor deve ser o maior elo que o mediador tem para fazer seu trabalho
em sala de aula, então é importante que se ergam estratégias para que o
professor participe, em maior ou menor grau, da atividade. Mas de que
forma? Segundo Flávio Desgranges:
[...] um professor que não se interessa por teatro não consegue despertar
tal interesse. Contudo, definitivamente, professores não se tornam
apaixonados por teatro por meio de convencimento (...) Como afirmava
Walter Benjamin, “convencer é infrutífero”. É preciso educar, formar
os formadores, propiciar experiência para se criar gosto por essa
experiência, propor processos apaixonantes para formar apaixonados.
(DESGRANGES, 2003)

Vale lembrar que a pesquisa seguiu a metodologia da Pesquisa Ação,


onde a pesquisa bibliográfica e a prática do objeto de pesquisa, no caso a
Mediação Teatral, junto às reuniões do grupo de mediadores participante
se integravam para se constituir de maneira evolutiva em termos de
conhecimento e prática, “orientada em função da resolução de problemas
ou de objetivos de transformação” (THIOLLENT, 2011). Nesta primeira
mediação atendemos uma demanda que as próprias escolas haviam solicitado,
ainda sem um plano estabelecido ou com objetivos claros ou metodologias
precisas, no primeiro mês de nossa pesquisa.
Para a segunda incursão em mediações, atenderíamos à Escola C e
a Escola D. Ambas teriam as mediações anteriores à cena, assim como as

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apresentações e as mediações posteriores à cena, cada etapa em um dia.
Fizemos as atividades subdivididas em três dias, sendo um dia por semana. Ou
seja, um dia para cada etapa, sendo que no período matutino trabalhávamos
com a Escola C e no período vespertino trabalhávamos com a Escola D.
O desenvolvimento das atividades de mediação aconteceria in loco nas
próprias escolas e as apresentações foram marcadas para lugares próximos a
elas. Como não havia nas proximidades nenhum edifício teatral, por serem
escolas um pouco distanciadas do centro, marcamos a apresentação em
espaços alternativos, para que os alunos pudessem ir a pé, acompanhados
de seus professores.
Comecemos descrevendo a mediação prévia. Elencamos diversas
atividades, dinâmicas e jogos que poderíamos fazer junto aos alunos, que
acabaram chegando a um número que não conseguiríamos trabalhar no
tempo em que tínhamos para cada turma, que era cerca de 15 minutos. Esta
diversidade de atividades foi um fator positivo, para podermos ser maleáveis
de acordo com o que cada sala de aula estava disposta ou não a fazer. A
mediação engessada, com roteiro rígido, tende a ignorar as singularidades de
cada turma e de seu universo, não direcionando “a inquietação do espectador
em ato de leitura, que o lança em processo investigativo – tal como o artista
em processo de criação” (DESGRANGES, 2017).
Quanto às atividades com as quais trabalhamos, geralmente havia a
música de introdução da casa e as perguntas sobre os versos, do mesmo
modo que aconteceu na Casa da Ópera com as outras duas escolas. Desta
dinâmica com a música, destrinchava-se em diversas outras atividades,
como: um desenho livre individual de como seria essa casa, que depois na
mediação posterior seria retrabalhada; um desenho coletivo de como seria
a casa dos personagens ou a casa da turma toda; perguntar o que os alunos
achavam que aconteceria nesta cena teatral; etc.
Notamos, aqui, a diferença de interesse de turmas de anos distintos
para uma mesma atividade, como foi o caso, por exemplo, da resistência do
4º e 5º ano da Escola D com a atividade do desenho, a qual foi plenamente
aceita pelos anos anteriores. Tivemos, então, certa dificuldade de elaborar

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atividades lúdicas relacionadas ao espetáculo para as mediações anteriores
ao espetáculo, para alunos a partir do 4º ano.
As apresentações na semana subsequente aconteceram na Escola de
Samba Padre Faria, para os alunos da Escola C, no período matutino e no
Espaço Para Gostar de Teatro, para os alunos da Escola D. Essas aconteceram
por parcerias com a comunidade local, no caso da apresentação na Escola
de Samba Padre Faria, e com grupos teatrais profissionais da cidade, no caso
do Espaço Para Gostar de Teatro, que até a escrita deste artigo funcionava
como um galpão e sala de ensaios destes grupos.
Na mediação posterior à cena poderiam haver também todas as
atividades de mediação anterior. A sequência de atividades de cada mediação
variou de acordo com as características de cada turma, além de variar pelo
caráter de experimentação pelo qual passamos. Mas, em geral, iniciou-se com
discussões sobre características da cena: quais personagens existiam? Por
que vocês acham que aquele é o gato? Por que são dois irmãos? Houveram
discussões sobre características do espaço físico do local visitado, como: o
que vocês viram quando chegaram lá? O que tinha naquele espaço?
Então, viria a parte que considero mais proveitosa das mediações que
são reproduções de trechos da cena, onde alguns alunos faziam pequenos
enxertos da cena e outros tentaram adivinhar qual parte era essa, revezando
os alunos (combinando ou não entre o mediador e os jogadores da vez,
rapidamente, quem irá interpretar cada personagem, etc.).
Também houve recriações e adaptações de cenas, ou seja, as diferentes
situações da cena, personagens e/ou lugares da peça permanecem na
improvisação, mas propositalmente acontecem alterações, desviando da
tentativa de apenas se espelhar ao que foi assistido. Conforme a turma se
soltava, as combinações se tornavam mais fluidas e a mediação se torna mais
interessante. De acordo com Maria Lúcia Pupo, esta recriação é primordial,
pois
Suscitar no espectador a disponibilidade sensível que lhe permita manter-
se à escuta daquilo que a obra provoca nele é o que almejamos. Mas
isto não é tudo. Abrir perspectivas para que ele se lance ao desafio de
“compor o próprio poema” a partir do poema que tem diante de si,

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criando cenas que conversem com outras cenas é a ambiciosa aventura
que vale a pena ter em vista. (PUPO, 2017)

Em um projeto de mediação teatral é comum a sensação de incerteza


quanto a algum resultado significativo mediante ao interlocutor. Porém, neste
caso, notou-se o envolvimento das turmas nas atividades maior do que o
comum, prazerosamente estendendo a experiência teatral para outros níveis.

REFERÊNCIAS
DESGRANGES, F. Pedagogia do espectador. São Paulo: Hucitec, 2003.
DESGRANGES, F. A interferência dos processos de criação nos modos
de recepção artística: percursos de um pretérito imperfeito. In:
DESGRANGES, F.; SIMÕES, G. (org.). O ato do espectador: perspectivas
artísticas e pedagógicas. São Paulo: Hucitec, 2017.
DOLPI, D. Mediação Teatral e escola pública: perspectivas metodológicas.
Projeto de pesquisa apresentado ao edital FAPEMIG 17/2013. Programa
Primeiros Projetos, 2013.
KOUDELA, I. D. A ida ao teatro. In: TOZZI, D.; COSTA, M. M. Teatro e
dança: repertórios para a educação. Volume 2 – As linguagens do teatro
e da dança e a sala de aula. Secretaria da Educação, Fundação para o
Desenvolvimento da Educação. São Paulo: FDE, 2010.
PUPO, M. L. Diálogos sobre a cena, diálogos com a cena. In: DESGRANGES,
F.; SIMÕES, G. (org.). O ato do espectador: perspectivas artísticas e
pedagógicas. São Paulo: Hucitec, 2017.
REGENTHAL, B. M. - Projeto de proposta de Mediação Teatral – A Casa de
Atram. Arquivo próprio, 2016.
THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 2011.

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(RE)CONSTRUÇÕES NO OLHAR: O FAZER
TEATRAL NO ENSINO REGULAR

Marcelo Rocco4
Didi Villela5

Ensinar não é adaptar o sujeito às condições já encontradas, mas delas


se utilizar a seu favor; nem é mostrar resultados de situações passadas,
já dominadas; ensinar é agir nas necessidades imediatas do aprendiz,
inventando estratégias para a luta em produzir o conhecimento que lhe
permitirá adquirir o que lhe falta. Por essa via de análise, pode-se dizer
que aprender, longe de ser informar-se, acumular ou formar alguém, é
revelar necessidades e carências já existentes. (ANDRÉ, 2009)

Partindo da premissa desta citação-epígrafe, pode-se afirmar que o


fenômeno de experiência artística é um processo de trocas de conhecimento
entre o aluno e o professor, entre o aluno e outro aluno, e entre o aluno e a
obra teatral. O dialogismo pode orientar a visão do aluno sobre o mundo e
sobre si mesmo. O senso estético pode ser ampliado a partir do contato do
aluno com as obras teatrais e com a produção das mesmas. O conhecimento do
teatro torna-se possível através do estímulo da apreciação e do fazer artístico.
Por isso, se faz presente a necessidade de vivenciar processos artísticos

4. Professor Adjunto no curso de Teatro – Licenciatura (UFSJ)


5. Mestre em Letras. Professor de Artes.

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para a construção do desenvolvimento pessoal e para o crescimento da
percepção estética. Tais processos objetivam a consciência social, a expressão,
o raciocínio e a capacidade crítica do aluno, tendo a democracia como
princípio norteador das práticas. O fazer artístico deve surgir, então, por
meio de diálogos e da necessidade de expressão do aluno.
No processo de recepção e de apreciação, o papel do docente, além de
ser um agente cultural, é ter a habilidade de ampliar o interesse do aluno
pela arte, estimulando-o a experimentá-la. O processo de contextualização
como eixo norteador no ensino de teatro coloca o aluno frente às questões
contemporâneas, podendo desenvolver conceitos fundamentais para a
construção de um diálogo no contexto social em que o mesmo vive. Por
isso, o teatro pode ser pensado como um instrumento estético-político-social,
pois reflete a cultura de um povo e possibilita ao aluno subverter tabus e
paradigmas. Segundo Carminda Mendes André:
Dizendo de outro modo: o corpo deixou de receber caracterizações
externas para se presentar; ou seja, o corpo tornou-se um espaço de
invenções de alteridades e, consequentemente, a subjetividade passou a
significar uma conquista temporal, poesia tecida do espaço, apropriada
como coisa do mundo. (ANDRÉ, 2007, p.79).

Assim, o ensino de teatro pode ser visto como um articulador de


ideias. Ou seja, pode-se pensar no teatro como projeto pedagógico que
explore o hibridismo cultural, a alteridade, a criatividade, o senso estético,
a coordenação motora e outros sentidos do aluno. Tudo isso manifestado
em experimentações dentro de sala de aula. Carminda Mendes André:
O ensino de teatro deixa de transmitir conhecimentos para garantir
a experiência da transcriação dos valores. Pelo confronto com a
diversidade, o espaço-tempo da aula, tal como o “espaço em ação” do
espetáculo-ritual, terá a chance de se configurar em espaço multiplicador
(ANDRÉ, 2007, p.122).

O ensino teatral torna-se então, um local privilegiado de união entre a


experimentação e a apreciação estética, pois trabalha com o discurso dialógico
do agir e pensar sobre o feito, possibilitando maiores conhecimentos e

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maior análise sobre o fazer em sala. Dessa maneira, a sensibilidade estética
é ampliada, pois o caminho da experiência através de várias obras revela
perspectivas diferenciadas sobre o teatro, orientando a melhor comunicação
com a educação integrada. Logo, o professor de teatro possui a responsabilidade
de estimular a sensibilidade artística, propondo ao aluno a comunicação com
várias obras e a contextualização das mesmas:
Nosso mundo precisa de líderes éticos e afetivos, sintonizados com
uma globalização cooperativa e não exclusiva e uma nova civilização
pode começar a partir de educadores mais flexíveis, de corpos e mentes
soltos, que também possam sentir e se emocionar, aptos a uma prática
educacional menos autoritária e repressora, mas profundamente abertos
à manifestação plena de sua espiritualidade (CELANO, 1999, p. 30).

Logo, o professor de teatro pode nortear o aluno sobre a possibilidade de


produção de novos conhecimentos, mostrando que a troca de experiências
dada pelas aulas de teatro possibilita a maior construção da autonomia,
estimulando a produção em grupo. Dessa forma, o aluno é colocado no
centro da roda educacional, tornando-se participante dos processos de
criação, caminhando em contraposição à educação estagnada, formando
assim, complexas construções mentais. Consequentemente, o ensino de
teatro caminha além de proporcionar entretenimento, mas como um grande
estimulador dos experimentos, promovendo o sentimento de pertencimento,
ativando assim, narrativas e vivências.
Muitas vezes, o ensino de teatro nas escolas é pensado somente a partir
de um ponto de vista: a montagem de espetáculos tradicionais. Geralmente,
muitas instituições escolares acreditam que a única forma de se ensinar
teatro é pelo método tradicional de representação dramática. Nesse sentido,
questionar uma estrutura metodológica teatral já consolidada e experimentar
novas formas de se fazer teatro torna-se uma tarefa complexa para o professor,
problematizando o saber. Nas palavras de Lehmann:
A maioria do público espera do teatro a ilustração de textos clássicos,
talvez aceitem uma encenação moderna, desde que dotada de fábula
compreensível, de um contexto que faça sentido, de uma autenticidade

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cultural e sentimentos teatrais tocantes. Por isso ao se confrontarem
com o teatro pós-dramático, encontram pouca compreensão até mesmo
pela falta de instrumentalização conceitual para formular sua percepção.
(LEHMANN, 2007, p. 22).

Com isto, é possível mostrar outras possibilidades de se trabalhar o ensino


de teatro nas escolas, desprendendo-se da ideia de uma interpretação literal
de um texto. Cabe ao educador teatral estar conectado com as transformações
do mundo atual, cada vez mais complexo e diversificado. A arte deve ser
pensada como um compromisso, como um espaço estimulante que promova
a troca de reflexão. Ao realizar um diálogo entre a noção pós-dramática do
teatro e a educação, faz-se necessário refletir também sobre os discursos
que intercambiam a realidade social do aluno.
Neste sentido, André (2007) diz que a pedagogia teatral contemporânea
pode contribuir para a valorização da multiplicidade cultural no aluno. A
autora enfatiza que, grosso modo, as tendências do teatro contemporâneo
tendem a expor o hibridismo do teatro dramático, teatro épico e performance.
E essa multiplicidade não deve ser negada nas práticas escolares relacionadas
ao ensino de teatro, pois elas valorizam a diversidade estética e ampliam o
debate dos esquemas processo X produto (ANDRÉ, 2007). Por essa razão,
a aplicação do pensamento teatral contemporâneo na escola pode alcançar
um lugar privilegiado, possibilitando um olhar novo sobre o fazer artístico.
Ou seja, a valorização de práticas escolares que não se centram apenas
no produto encerrado em si, mas em maneiras plurais de “como” ensinar
teatro através de diferentes técnicas, conteúdos e estratégias. Essas ações
se justificam na ampliação de possibilidades de atuação do aluno como
ator, criador, performer, etc., de sua cena, de acordo com o contexto e as
circunstâncias das propostas apresentadas e desenvolvidas em sala de aula.
A ideia de problematizar os modelos estéticos de ensino padronizados,
que se mostram cada vez mais insuficientes para enfrentar os processos de
mudança no âmbito cultural, sobretudo no que diz respeito à recepção,
mostra a relevância das artes na aprendizagem do ensino regular.
Parte da cena teatral contemporânea está utilizando a hibridez das
linguagens das artes cênicas. Essa hibridez põe em evidência a presença dos

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atuantes que não aparecem mais como portadores de uma intenção externa
estabelecida por um texto, mas como portadores de seus próprios impulsos
latentes, de seus corpos energéticos, a partir de suas ações. Através dessas
ações, os atuantes envolvidos no processo da encenação podem se deparar
com o cruzamento de diversas situações, vivências, circunstâncias.
Nesse cruzamento, os atuantes podem vir a desenvolver suas habilidades
e ampliá-las. Se traçarmos um pequeno panorama acerca das transformações
ocorridas no ensino de teatro, percebemos que, nos dias de hoje, o teatro
passa a ser pensado sob um ponto de vista mais específico, deixando de ser
uma atividade de lazer e de mera recreação, mas como uma área consistente
do conhecimento.
Ao fazermos um diálogo entre o teatro e a educação, é necessário
refletirmos sobre os discursos e as práticas adotados atualmente no ensino
de teatro: práticas que devem corresponder às necessidades culturais de
diferentes comunidades escolares. É necessário pensar na função do teatro,
não mais como uma disciplina nos moldes do ensino tradicional, mas
como um conhecimento específico dentro das artes, ultrapassando à noção
calcada em resultados fechados em si. De um ponto de vista mais analítico,
essa ação não se centra na maneira de “como” ensinar teatro através de
técnicas, conteúdos e estratégias. Ao contrário, essas ações se justificam na
desconstrução dessas técnicas, conteúdos, ampliando as possibilidades de
atuação do sujeito aluno, de acordo com o contexto e as circunstâncias das
propostas cênicas apresentadas e desenvolvidas em sala de aula.
Assim, trabalhar com o lugar não representacional no espaço escolar
pode se configurar em ações que nasçam da necessidade dos atuantes que
desejam dizer algo, em um grande jogo entre cena e realidade, promovendo
sua reflexão, gerando novos comportamentos. Nas palavras de Carminda
Mendes André: “ao deixar de representar, o atuante na escola é um inventor
de espaço e inventor de jogos performáticos” (ANDRÉ, 2007, p.150).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na ótica apresentada, a perspectiva de se propor noções pós-dramáticas
na escola pode auxiliar na desconstrução de algumas ideias pré-concebidas
acerca do fazer teatral dado como mera decoração textual, ou como a
verticalização de um personagem pré-fabricado por uma dramaturgia fechada.
Dessa forma, pode-se pensar na construção de temas de interesses em sala,
explorando espaços não convencionais, ações não hierárquicas. Sendo assim,
as propostas possibilitam explorar um jogo entre várias linguagens das artes
cênicas, em que a presença dos atuantes vale mais que a representação destes.

REFERÊNCIAS
ANDRÉ, C. M. O Teatro Pós-Dramático nas Escolas. São Paulo: Faculdade
de Educação/USP, 2007. (Tese de Doutorado).
ANDRÉ, C. M. O que a arte pode tocar no processo educativo? São Paulo:
Blogspot Pedagogia & Vida, 2009. Disponível em: http://pedagogiavida.
blogspot.com/2009/10/o-que-arte-pode-tocar-no-processo.html. Acesso
em: 17 jun. 2018.
CELANO, S. Corpo e mente na educação: uma saída de emergência. Editora:
Vozes, Petrópolis, 1999.
LEHMANN, H.-T. O teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.

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MEDÉIA E AS CONSTRUÇÕES DE GÊNERO: O
PAPEL SOCIAL DA MULHER VISTO POR UMA
PERSPECTIVA INTERSECCIONAL

Laura Resende, bolsista PIBIC CAPES

Este trabalho tem o intuito de propor reflexões acerca da tragédia grega


Medéia de Eurípedes, para estudantes de educação básica. Nesta obra a fi-
gura da mulher na personagem de Medéia aparece como símbolo de grande
poder, e suas ações mesmo que numa esfera fantástica reverberam de forma
impactante. Embora a personagem central da obra represente a força de
uma mulher, diversos estereótipos de gênero como a espetacularização do
suposto descontrole emocional feminino são reproduzidos. O objetivo das
reflexões é provocar um olhar crítico sobre as construções de gênero que
possibilite identificar estereótipos e opressões reproduzidas, sem condenar a
obra de 431 a.C, com base em valores contemporâneos. Nas últimas décadas
houve um aumento significativo de pesquisas sobre gênero que questionam
diversas questões, como por exemplo, construções binárias e normativas de
gênero que reforçam a estrutura hierarquia do masculino sobre o feminino
e ignora a existência de outros gêneros além do binarismo. Tais pesquisas
ganham forma com o trabalho da filósofa contemporânea Judith Butler
(1990). A partir da teoria interseccional feminista, padrões dominantes
serão analisados e problematizados de forma que possamos identificá-los
em Medéia. É possível que através de conversas dialógicas sobre a temática e

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experimentações teatrais, xs6 estudantes percebam aos poucos as influências
externas tidas como convenções sociais, e que estão diretamente ligadas à
construção de suas identidades.
Atualmente, é cada vez mais comum vivenciarmos debates feministas,
pode-se dizer que o feminismo está em ascensão, sendo cada vez mais
difundido e mais representativo para mulheres de diferentes realidades
socioeconômicas, e que sejam cis7 ou trans8. Este fato pode ser relacionado à
expansão do pensamento feminista e pelo surgimento de múltiplas vertentes
no feminismo contemporâneo. Vivemos numa sociedade patriarcal, onde o
machismo é legitimado por discursos que afirmam a superioridade masculina
cisgênera. Desde o nosso nascimento, somos induzidos a reproduzir
padrões heteronormativos que reforçam o padrão binário de gênero, e
consequentemente reforça a estrutura hierárquica na qual se solidificam.
O movimento feminista contemporâneo surge na década de 1960, junto
à contracultura hippie e com pautas bem específicas na época, como por
exemplo, a revolução sexual e o surgimento da pílula anticoncepcional que
possibilitou que as mulheres tivessem mais controle sobre seus próprios
corpos. Com o decorrer dos anos, as pautas foram se modificando devido
a objetivos conquistados e, também, para atender às novas demandas.
Para falarmos do que é ser mulher, é preciso olhar de forma crítica para as
convenções sociais impostas a esse gênero ao decorrer da história e levar
em conta os processos socioculturais em que estas foram construídas. Tais
convenções vigoram há séculos influenciando de forma direta e indireta na
nossa formação identitária. Crescemos acreditando numa estrutura binária
em que um gênero se difere do outro pela reprodução de signos específicos
e pelo desempenho de papéis sociais preestabelecidos, que na maioria das
vezes não levam em conta as subjetividades de cada indivíduo.

6. “Nesse caso a letra ‘X’ vem como pronome neutro e que representa todos os gêneros,
substituindo os pronomes ‘a’ e ‘o’ que limitam a escrita para os gêneros binários, feminino
e masculino.”
7. “Abreviação de cisgênerx, refere-se às pessoas que se identificam com o gênero que lhes
foi atribuído quando nasceram.”
8. “Abreviação de transgênerx, ao contrário das pessoas cis, refere-se às pessoas que se
identificam com outros gêneros que não o que lhes foi atribuído quando nasceram.”

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Para continuar teorizando sobre feminismo, e mais especificamente
sobre o feminismo interseccional, que é a vertente adotada como base
metodológica para as reflexões provocadas neste trabalho, é importante
colocar a origem dessa vertente e as questões que impulsionaram os debates
sobre interseccionalidade. A teoria questiona a interação entre os diferentes
tipos de opressão, e surge com a militância das feministas negras dos Estados
Unidos da América que desde a década de 1960 vinham pautando leis de
antidiscriminação, na busca por entender questões raciais que tivessem
também um recorte de gênero. Apesar desta luta não ser recente, a teoria
sociológica do feminismo interseccional é apresentada pela primeira vez
pela professora de direito e ativista Kimberlé Crenshaw, em 1989. Em uma
entrevista dada para o site New Statesman, Crenshaw fala sobre a teorização
do termo e o caminho percorrido pelas feministas negras norte-americanas
na luta pela antidiscriminação:
Muitos dos antecedentes para formar esse conceito são tão antigos
quanto Anna Julia Cooper e Maria Stewart no século 19 dos Estados
Unidos, e continuam seu caminho por meio de Angela Davis e Deborah
King”, ela diz. “Em cada geração, em cada esfera intelectual e até mesmo
em cada momento político, existiram mulheres afro-americanas que se
articularam a partir da necessidade de pensar e falar sobre raça através
de uma lente que observe a questão de gênero, ou pensar e falar sobre
feminismo através de uma lente que observe a questão de raça. Portanto,
esse conceito é uma continuidade disso. (ADEWUNMI, 2014)

A não representatividade das mulheres negras no feminismo, que na


época era majoritariamente branco e com pautas que não levavam em conta
questões raciais e a dupla opressão que as mulheres negras sofrem, resultou
na luta interseccional que aborda os diferentes tipos de opressão tratados
de maneira conjunta. Com o tempo, o termo foi se abrangendo para além
de questões raciais, agregando também outros eixos de opressão como os
referentes à orientação sexual, causas transgêneras, classes sociais, entre
outros.
Judith Butler nos ilustra algumas relações interseccionais no capítulo:
Teorizando o binário, o unitário e além do seu livro Problemas de Gênero:

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Feminismo e subversão da identidade (2016). A autora explora as ações
feministas totalizantes, que dentro do feminismo contemporâneo busca
promover debates essencialistas que conduzem à ideia de universalidade da
identidade feminina. É colocada a importância da autocrítica em torno deste
ideal totalizante que pode não ser representativo para todas as mulheres,
e é dessa autocrítica feminista que aparecem as intersecções: “a insistência
sobre a coerência e unidade da categoria das mulheres rejeitou efetivamente
a multiplicidade das intersecções culturais, sociais e políticas em que é
construído o espectro concreto das ‘mulheres.” (BUTLER, 2016, p. 39). Ainda
sobre as possibilidades de se fazer um feminismo interseccional, Butler
acrescenta:
Alguns esforços foram realizados para formular políticas de coalizão
que não pressuponham qual será o conteúdo da noção de ’mulheres’.
Eles propõem, em vez disso, um conjunto de encontro dialógicos
mediante o qual as mulheres diferentemente posicionadas articulem
identidades separadas na estrutura de uma coalizão emergente. E claro,
não devemos subestimar o valor de uma política de coalizão, de uma
montagem emergente e imprevisível de posições, não pode ser antecipada
(BUTLER, 2016, p. 39).

Partindo dessas novas propostas dialógicas, podemos ter como base


a ideia de uma estrutura horizontal que leva em conta a fragmentação
da identidade feminina e do que é ser mulher num processo que tende a
reconhecer as interseccionalidades entre mulheres pertencentes a diferentes
realidades e que, consequentemente, sofrem diferentes tipos de opressão,
tendo os debates dialógicos como parte de um processo de democratização
do movimento.
Considerando que gênero e orientação sexual são temas inclusos nos
parâmetros curriculares instituídos pelo Ministério da Educação (MEC), e que
estes são destinados para estudantes de ensino fundamental, as provocações
feitas em sala de aula têm propósito de engatilhar possíveis debates que
abordem situações polêmicas que aparecem no cotidiano dxs estudantes,
com o intuito de problematizar construções sociais naturalizadas acerca dos
discursos narrados. A intenção é causar um estreitamento entre estudantes e o

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tema, na tentativa de fazer com que estes se reconheçam nos acontecimentos
e que possam perceber possíveis consequências de seus discursos levadas
para um âmbito social, como por exemplo, questões sobre desigualdade de
gêneros e LGBTfobia.
Augusto Boal (1960) nos traz o Teatro do Oprimido e em Jogos para
atores e não atores, desdobramentos a respeito do potencial político do teatro,
e sua potência no processo de autonomização dos sujeitos, colocando em
prática a democratização do teatro através de metodologias que envolvem
pessoas de diversas áreas e profissões que não são necessariamente atores.
Por abordar a autonomia dos sujeitos, sua obra pode ser vista como aliada
à obra de Paulo Freire, no livro A pedagogia da autonomia, podemos encontrar
diversas possibilidades didáticas acerca da prática educativa e a capacidade
de troca proporcionada no ambiente de formação: “Não há docência sem
discência, as duas se aplicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os
conotam, não se reduzem à condição de objeto um do outro. Quem ensina
aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender.” (FREIRE, 2011, p. 25).
De modo sumário, a proposta central é gerar discussões que enfatizem
problemáticas sobre gênero através da perspectiva interseccional de feminismo,
quando se reconhece os diferentes tipos de opressão e as especificidades da luta
de cada indivíduo que está sujeito a sofrê-las. A intenção é fazer com que xs
estudantes reflitam criticamente acerca do lugar de privilégio que ocupam e se
reconheçam como oprimidos e/ou opressores em situações cotidianas, e com
isso sejam capazes de melhor entender a estrutura de padrões reproduzidos
na realidade em que se encontram. A partir do conhecimento partilhado nas
discussões, inserir a prática por meio de jogos que os possibilite explorarem
seus corpos e os signos que eles carregam.
Com o desenvolvimento deste trabalho experimental e buscando sempre
acompanhar o desenvolvimento dxs estudantes em relação ao conteúdo, o
trabalho quando aplicado na prática poderia ser concluído com a proposta
final de criação participativa de um pequeno espetáculo performativo, que
tenha como base as referências de Medéia, sejam elas textuais, audiovisuais
ou imagéticas, e que seja construído na medida em que os debates e jogos
realizados sirvam de gatilho para a criação de partituras corporais. O foco

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desta criação serão as narrativas autobiográficas e simbólicas trazidas
pelxs estudantes, desde relatos de experiência, vivências e observações,
que interajam com Medéia e mostre a leitura e afetação destes com a obra.

REFERÊNCIAS
ADEWUNMI, B. Kimberlé Crenshaw on intersectionality: I wanted to come
up with an everyday metaphor that anyone could use. 2014. 14 f. Tese
(Doutorado) - Curso de Direito, Revista New Statesman, Usa, 2014.
Disponível em: <http://blogueirasfeministas.com/2014/07/kimberle-
crenshaw-sobre-intersecionalidade-eu-queria-criar-uma-metafora-
cotidiana-que-qualquer-pessoa-pudesse-usar/>. Acesso em: 25 jul. 2017.
BOAL, A. Jogos para atores e não atores. São Paulo: Sesc, 2015.
BRASÍLIA. Brasil. Secretaria de Educação Fundamental.  Parâmetros
Curriculares Nacionais: Terceiro e quarto ciclo do ensino fundamental.
Brasília: Mec/sef, 1998. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/
arquivos/pdf/ttransversais.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2017.
BUTLER, J. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. 11.
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
EURÍPEDES. Medéia. São Paulo: 34, 2010. Tradução de: Trajano Vieira.
FÉRÁL, J. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Sala
Preta, [s.l.], v. 8, p.197-210, 28 nov. 2008. Universidade de Sao Paulo
Sistema Integrado de Bibliotecas - SIBiUSP. http://dx.doi.org/10.11606/
issn.2238-3867.v8i0p197-210.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.
43. Ed. São Paulo: Paz e Terra Ltda, 2011.
LOURO, G. L.  Gênero, sexualidade e educação:  Uma perspectiva pós-
estruturalista. 16 ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

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14
O CORPO QUE DANÇA COM SUAS
MEMÓRIAS: AS RELAÇÕES ENTRE O FAZER
BENJAMINIANO E A ARTE MULTISSENSORIAL
DO PARANGOLÉ NA CONSTRUÇÃO /
INVESTIGAÇÃO DAS SENSIBILIDADES DO
ARTISTA DOCENTE EM CENA

Erika Santos, bolsista CAPES


Cláudio Guilarduci

Ao discutir e pensar as metodologias do ensino do teatro consequentemente


abrangemos a construção de um corpo que em sua totalidade pode cingir
as experiências do outro e interligar as histórias e memórias nos processos
criativos/estéticos e de ensino-aprendizagem. É preciso salientar que o
ensino-aprendizagem no viés das sensibilidades necessita ser uma via de
mão dupla, pois segundo Jeanne Marie Gagnebin (1997, p.181) a infância é
a invenção do possível. A investigação do gesto e do corpo em movimento
por meio dos jogos e brincadeiras possibilita ao corpo um fluxo intenso
com o aqui-agora e abre as portas para o rememorar. Rememorar fomenta
pensamentos sobre tudo o que está em cena, seja na vida ou no teatro,
no corpo do ator ou no corpo do docente. Se instaurada essa conexão,
as peculiaridades de um instante transcendem, “pois nenhuma sabedoria
pedagógica pode prever como as crianças, através de milhares de variações
surpreendentes, concentram em uma totalidade teatral os gestos e habilidades
treinados” (BENJAMIN, 1984, p. 87). Desse modo, o jogo do corpo em cena

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faz reverberar as sensibilidades do adulto que percebe resquícios da sua
própria infância em seu cotidiano atual. As leituras dos textos benjaminianos
possuem a delicadeza de elaborar uma certa experiência com nossa própria
infância. Portanto, as elucubrações do rememorar e suas potencialidades
para a investigação de um corpo em movimento com as memórias são a
força motriz para relacionar o fazer benjaminiano à arte multissensorial
do Parangolé. Segundo Waly Salomão (2003, p. 129) “o Parangolé quando
gira no espaço real encarnado por um corpo pulsante dispara e presentifica
camadas e camadas de sinais” e “o corpo esplende como fonte renovável e
sustentável de prazer; conceito maleável de extrema adaptabilidade aos lugares
mais diferentes entre si” (op. cit., p.26). O processo de ensino-aprendizagem
se consolida como um caminho de criação artística por meio da pesquisa
prático-teórica, objetivando apresentar, a partir das discussões e práticas
realizadas, o entendimento que Walter Benjamin tem sobre o universo
infantil. Assim, alguns percursos possibilitam acreditar em uma investigação
do espaço-movimento que, como Oiticica, busca as experiências dos lugares
a princípio intocáveis para que ocorra a embriaguez e, consequentemente,
a arte. Nestas imbricações entre os processos artísticos vivenciados, cria-
se um campo de exploração das memórias e corpos esculpidos por estas
lembranças que podem configurar uma história narrada.
Para Benjamin (1984, p. 24), “cada uma de nossas experiências possui
um conteúdo que ela recebe de nosso próprio espírito”, por isso o indivíduo
não se desliga de sua trajetória e seu caminho é construído por ele e pelos
outros, assim como sua memória. Ao trabalhar com jogos e brincadeiras
priorizo as relações entre as memórias e as ações advindas das mesmas.
Como diz Giorgio Agambem (2005, p. 82), “esta invasão da vida pelo jogo
tem como imediata consequência uma mudança e uma aceleração no tempo”
e consegue quebrar o ritmo do calendário que seguimos, possibilitando ao
jogador caminhar por entre os resíduos que lhe são fornecidos pelo jogo.
Esse processo é a História.
A valorização dos gestos cotidianos e sua expressividade nos jogos e
brincadeiras tornou-se ponto fulcral para a realização no processo criativo
do monólogo “Haveres da infância; Um poeta colecionador” de forma a

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explorar os movimentos corporais sucedidos da memória. Benjamin (1984)
afirma que a experiência está impossibilitada ao homem contemporâneo,
que não vive nas tradições e é sucumbido pelos tempos modernos. Portanto,
ao voltar seu olhar para o universo infantil, o autor alemão acredita que é
possível apreender o modo como seus pais viveram e, consequentemente,
aguçar sua sensibilidade, pois é possível nos jogos/brincadeiras dialogar
através do seu corpo com o seu contexto. Por isso, as ações elaboradas para
a dramaturgia de “Haveres da infância; Um poeta colecionador” visaram
despertar a sensibilidade da atriz para o universo infantil costurando fortes
laços com o rememorar e com a prática que o Parangolé permite.9
Assim, as ações do monólogo objetivaram refletir e praticar determinados
conceitos benjaminianos para que o corpo da atriz pudesse compreender
através do gesto no brincar o seu próprio universo infantil. Para isso, buscou-
se o entendimento do próprio mundo do adulto e das possíveis modificações
que o olhar do “homem grande” pode obter. Por meio de brincadeiras e de
jogos é plausível enxergar no invisível dos objetos o que não se estampa na
realidade atual e contemporânea. O trabalho proposto procurou usufruir
da imaginação para desenhar no espaço uma dramaturgia surgida com
o dançar, brincar e jogar, compondo movimentos corporais advindos da
memória para que ao corpo do ator pudesse explorar e ampliar sua percepção
corporal. Por isso, foi possível pensar que os jogos não são mundos isolados,
são mundos próprios que estão inseridos no mundo social. Desta forma,
jogos e brincadeiras formam os pilares deste processo de trocas para que
todos os evolvidos possam estar atentos às percepções sensoriais do corpo
e do próprio universo infantil.
Para a compreensão dos movimentos no jogo e materialização destas
experiências como viés de processos na construção teatral, o primeiro passo
após as improvisações vivenciadas e direcionadas para a cena foi intensificar
a brincadeira com os objetos cênicos. O desejo de elaborar uma experiência
do corpo em movimento com as memórias, percebendo que “as sensibilidades
correspondem também às manifestações do pensamento ou do espírito,

9. No presente momento não iremos apresentar uma discussão teórica sobre os trabalhos de
Hélio Oiticica. O que nos importa é o corpo que dança no momento exato da prática artística.

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pela qual aquela relação originária é organizada, interpretada e traduzida”
(PESAVENTO, 2007, p.10), perpassa todo o trajeto desta experimentação
cênica. Havia muitos chaveiros, chaves diversas, algumas sementes, pequenas
pedras, botões, clipes, alguns lápis e um rolo de filme fotográfico, e nesse
momento, observou-se que alguns deles não se encaixavam na coleção e
que não eram necessários estar em cena. Após o descarte de alguns objetos
restaram apenas botões – peças fundamentais para a criação de um haikai –,
chaves – que abrem as portas das casas onde a atriz residiu –, clipes – peças
solitárias encontradas no chão das ruas da cidade –, e lápis – de museus e
lugares que foram visitados pela atriz em tempos anteriores ao processo de
montagem desse monólogo. A relação entre estes pequenos objetos/corpos e
o corpo cênico se tornou mais intensa, pois o que é visível aos olhos atravessa
o essencial e se revela parte dos dois universos. Um universo é o do sujeito
adulto, que guarda como recordação pequenos objetos que lhe contam
histórias vividas, o outro é o do corpo cênico que se movimenta com estes
objetos. Neste segundo universo, a atriz é perpassada pelas memórias da
infância de Benjamin e ao encontrar o Poeta, o faz dançar com as memórias
dela. Por isso, os objetos de coleção da atriz em cena se tornam os objetos
de coleção do Poeta.
Desenhar essa dança é parte intrínseca para compreender e investigar
o corpo em movimento com as memórias, pois de acordo com Patrícia
Leonardelli (2011, p. 4) “esses corpos que dançam também podem organizar
seus discursos”, e “a dramaturgia surge como produto de vivências de
criação que já nascem assumidamente “em fronteira”, e cujas singularidades
expressivas se filiam às dinâmicas específicas de cada processo”. E talvez seja
isso mesmo que Hélio Oiticica buscava praticar com sua arte.
Nas primeiras apresentações as ações eram duras no sentido de que
só manuseava o objeto por ter que seguir uma sequência predefinida, mas
no decorrer e principalmente após as vivências e a retirada dos objetos
que se firmavam como excessivos, os movimentos passaram a apresentar
uma forma melhor acabada. Existe um zelo ao abrir a gaveta que contém
as coleções e ao tocar cada objeto é como se todas as emoções que cada um
traz viessem à tona. Ao brincar com as meias, é possível despertar a criança

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de outrora, que possui características bem peculiares, semelhantes ao saltitar
e à curiosidade das invenções e das construções imaginárias. Por tudo isso,
é possível ver desenhos de movimentos no ar que deixam as pernas sempre
um pouco abertas, braços descolados do tronco e olhar vibrante. É nítido
o abaixar do torso um pouco para frente, o sentimento é de reverência ao
rei, como uma saudação importante àquelas memórias contidas em cada
um dos objetos colocados em cena.
É importante ressaltar que o jogo para elaboração do monólogo ocorreu
inicialmente através das leituras dos fragmentos/peças do “Infância em
Berlim”, presentes no livro Rua de Mão Única (1995): O Corcundinha (p.141),
A escrivaninha (p.118-120), O jogo de letras (p.104-105), Um anjo de natal
(p.120-122), Esconderijos (p.91) e Armários (p.122-125) como textos para a
cena, imergimos no universo infantil. Esta imersão se deu através da própria
leitura desses fragmentos, pois há uma identificação das brincadeiras de
criança que se revelou durante o processo. Pode-se citar como exemplo o
fragmento que Benjamin diz que o Corcundinha10 quebrou a sua tigela e o
relato da diretora que junto com seus irmãos, via pratos se mexerem na mesa
durante as refeições. A criança vê figuras de outros mundos, dá vida a esses
seres que vivem em sua imaginação e fazem parte do seu dia a dia. Quanto
ao jardim que o autor descreve, onde “havia um pavilhão abandonado e
carcomido” (BENJAMIN, 1995, p.101), a atriz de imediato vê o paiol da casa
de seus avós como o lugar preferido para imergir no universo lúdico que
outrora criava com tanta maestria. As particularidades infantis, mesmo de
épocas tão diferentes, abrem um leque de possíveis repertórios de gestos

10. O Corcundinha nos textos de Benjamin descreve a inabilidade infantil e na dramaturgia


desse monólogo é uma quebra de ritmo e de composição de um corpo que durante todo o
processo transita entre a criança, o Poeta e a atriz. A parte debaixo do corpo cênico quando
este se encontra com o Corcundinha em cena se conecta com o chão através das danças
coco e balé. Quando está parado utiliza o plié, e quando caminha utiliza o ritmo coco. A
parte superior do corpo fica totalmente curvada e inclinada para frente e para baixo. Os
braços do Corcundinha são como asas quebradas de um avião, mantém intensão nos vetores
para expandirem no espaço. A voz é a única que se diferenciou em todo o processo desde a
experimentação da criação dessa figura, ela encontra alternâncias entre o grave e o médio
grave. Há momentos que é perceptível a projeção por meio da caixa torácica e a brincadeira
de entrada e saída do ar se torna parte intrínseca para conhecer as possibilidades desta voz.

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desse corpo que experimentou esses espaços no passado e que no presente
pode experimentá-lo outra vez.
As características do corpo cênico que busca se identificar com a criança
nesse processo possui as pernas um pouco flexionadas, passos curtos,
pequenos saltos e um leve sorriso no rosto ao caminhar. Os braços são
mais leves e deixa os vetores menos rígidos. O olhar é curioso. É preciso
frisar que estes são os primeiros passos registrados para a composição da
criança que se encontra nesse processo.
Pensando que a não-fala do universo infantil é que perdura nas ações do
sujeito adulto, um dos caminhos possíveis foi observar as crianças quando
estas estão brincando para a apropriação destes gestos e, por conseguinte,
alcançar um meio de manipular este movimento gerado na experiência. Ao
brincar de pique-esconde e sem combinar com as pessoas que ali estavam
o corpo do brincante precisava se integrar ao objeto no qual se escondia,
para experimentar o como “atrás de uma porta, a criança é a própria porta”
(BENJAMIN, 1995, p. 91). Perceber as sensações que apareciam durante essas
brincadeiras era uma tentativa de aproximação do corpo do adulto fazendo
“coisas de sua criança” e possibilitando um olhar para o seu próprio passado.
Pois, para Benjamin “a lembrança da infância não é idealização, mas sim,
realização do possível esquecido ou recalcado. A experiência da infância é a
experiência daquilo que poderia ter sido diferente, isto é, da releitura crítica
do presente da vida adulta” (GAGNEBIN, 1997, p.181).
Com raízes nos jogos e nas brincadeiras, os processos desenvolvidos
com alicerce nos escritos de Walter Benjamin e sua relação com a forma
que o autor dispõe das palavras nos textos “Rua de mão única” e “Infância
Berlinense”, colocando o leitor frente às imagens como se fosse uma tela de
cinema, cria uma estética cênica específica para a narração das memórias:
narração que materializa no “Poeta” o intercruzamento das memórias da atriz
com as memórias de Benjamin. Envolvido desta forma tão intimista, o leitor
acaba se encaixando na própria imagem, transportando-se para as cidades
nas quais o autor viveu no início do século XX, e o espectador acompanha
lugares por onde a atriz percorreu durante a sua infância ao mesmo tempo
que ela, a atriz, percorre os lugares que Benjamin percorreu em sua infância. É

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possível almejar com que os envolvidos durante as apresentações de “Haveres
da infância; Um poeta colecionador” se sintam como os leitores dos livros
supracitados, em um sonho quando a rememoração alcança o indivíduo
em meio ao percurso. Um sonho possível para compreender como se dá
este processo em que o criador se entrega para compartilhar com os outros
os momentos de rememoração, que envolvem todo ser humano e que se
percebe no jogo.

REFERÊNCIAS
AGAMBEM, G. Infância e História: destruição da experiência e origem da
história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
BENJAMIN, W. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo:
Summus, 1984.
BENJAMIN, W. Rua de Mão única. São Paulo: Brasiliense, 1995.
GAGNEBIN, J. M. Sete aulas: Sobre linguagem, memória e história. Rio de
Janeiro: Imago, 1997.
LEONARDELLI, P. Corpo da consciência e possíveis dramaturgias da
memória que dança. Revista Cena, n. 9, 2011. ISSN 2236-3254.
PESAVENTO, S. J. Sensibilidades: escrita e leitura da alma. In: PESAVENTO,
S. J., LANGUE, F. (org.). Sensibilidades na história: memórias singulares.
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.
SALOMÃO, W. Hélio Oiticica: Qual é o Parangolé? e outros escritos. Rio
de Janeiro: Rocco, 2003.

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O TEATRO COMO UM CAMINHO PARA
A FORMAÇÃO DO ALUNO CRÍTICO E
AUTÔNOMO: UM ESTUDO DE CASO NA
ESCOLA ESTADUAL “EVANDRO ÁVILA”

Vânia Helena Nepomuceno Ávila


Professora Supervisora do PIBID CAPES

Este artigo é um desdobramento do Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao curso de Teatro da Universidade Federal de São João Del-Rei
(UFSJ), em dezembro de 2014, sob orientação do Professor Marcelo Rocco.
A presente autora partiu de sua experiência docente, nos últimos dez anos,
em escolas públicas de São João del-Rei (MG) para investigar caminhos que
contribuam com a formação de alunos críticos e autônomos, integrando
corpo e mente, através da expressão teatral e da temática social presente no
cotidiano dos mesmos. Para tanto, foram utilizadas as teorias apresentadas
por Lucia Helena Pena Pereira (2010) e Paulo Freire (2011), relacionando-as
com os jogos, exercícios e técnicas desenvolvidos por Augusto Boal (2008).
O público-alvo escolhido para esse trabalho foram alunos entre 12 e 15 anos
da Escola Estadual “Evandro Ávila”. Foi realizada uma oficina teatral e a
montagem de uma cena final e, a partir disso, uma reflexão sobre o trabalho
desenvolvido. Através dessa experiência pôde-se constatar que aliar as teorias
apresentadas às técnicas propostas por Boal, pode ser um caminho viável
para o ensino de teatro, como também para a formação crítica, autônoma
e integral do aluno da educação básica.

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A partir da experiência docente da presente autora na rede pública de
ensino de São João del-Rei (MG), nos últimos dez anos, foi possível refletir
sobre alguns aspectos da Educação Básica. Percebeu-se, assim, que nem
sempre a escola consegue abranger as diferentes instâncias do indivíduo,
integrando corpo, mente, sentidos e emoções, contribuindo com a formação
de indivíduos críticos, autônomos, expressivos e atuantes socialmente. Dessa
forma, a proposta desse trabalho foi investigar caminhos que colaborassem
com tal formação, através de um trabalho baseado na expressão teatral e na
temática social presente no cotidiano destes educandos.
Como embasamento teórico buscou-se a autora Lucia Helena Pena
Pereira para refletir sobre a prática educacional, pensando na importância
do corpo no processo de ensino-aprendizagem, relacionando com os
pensamentos de Paulo Freire. Sobretudo, buscando em Augusto Boal formas
de desenvolver esse trabalho através do ensino de teatro.

REFLEXÕES ACERCA DA EXPERIÊNCIA DOCENTE


Apesar de todo o avanço técnico-científico atual, a escola ainda é vista,
em grande parte, como elemento de adequação do sujeito na sociedade.
Há uma preocupação em manter a ordem e a autoridade do professor.
Entretanto, quando não se consegue um equilíbrio entre a disciplina e a
autonomia do aluno, acabamos interferindo na expressividade do mesmo.
Segundo Pereira (2010),
[…] à criança tem sido imposta uma imobilidade que contraria suas
necessidades fundamentais e atividades pouco ou nada significativas
para sua experiência pessoal que, muitas vezes, seguem rotinas rígidas
e repetitivas que não possibilitam o desenvolvimento de sua autonomia
e expressividade (p. 212).

A expressão, muitas vezes, é moderada desde a infância, gerando


consequências que podem ser percebidas nos adolescentes que, geralmente,
encolhem-se, escondem-se e se mostram resistentes às aulas que requerem
maior exposição, mantendo-se imóveis ou encostados, demonstrando uma
atitude cansada e desestimulante, o que é comum, por exemplo, nas aulas de

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teatro. Pereira (2010) acrescenta que, “devido aos bloqueios que vão sendo
criados, a atividade espontânea que, em si mesma, é produtiva e prazerosa, não
pode se expressar, predominando a passividade, a imitação.” (p. 209). Dessa
forma, as aulas de teatro que poderiam ser um momento de aprendizagem
descontraído e estimulante transformam-se numa situação intimidadora,
na qual os alunos se limitam ao menor esforço ou, simplesmente, se negam
a participar das atividades propostas.
Faz-se importante que a disciplina, bem como a organização na sala
de aula, não se sobreponha à individualidade do aluno. Por isso, é preciso
conhecer e valorizar a realidade do educando como fator importante para a
sua formação, pois um aprendizado totalmente distante da sua realidade tende
a não fazer sentido para o mesmo. Freire (2011) acredita que o aprendizado
ultrapassa as aulas formais em sala de aula: ele segue por todas as áreas da
escola e também fora dela. A experiência educativa vai além do conteúdo
curricular que o professor deve passar ao seu aluno, pois o contato com o
outro e com o espaço a sua volta está cheio de significados. Freire (2011)
acrescenta que:
É uma pena que o caráter socializante da escola, o que há de informal
na experiência que se viva nela, de formação ou deformação, seja
negligenciado. Fala-se quase exclusivamente do ensino dos conteúdos,
ensino lamentavelmente quase sempre entendido como transferência
do saber. Creio que uma das razões que explicam este descaso em torno
do que ocorre no espaço-tempo da escola, que não seja a atividade
ensinante, vem sendo uma compreensão estreita do que é educação e
do que é aprender. (FREIRE, 2011, p. 44)

A linguagem falada e escrita não são as nossas únicas formas de


comunicação e aprendizagem, nos comunicamos com todo o corpo.
Entretanto, observa-se que, em muitas escolas, o aprendizado intelectual
é privilegiado em detrimento dos desenvolvimentos corporal, sensorial e
emocional do aluno, o que gera limitações na formação do indivíduo. Segundo
Pereira (2010), “Quando o intelecto se torna o único ponto de referência e
valorização, estabelece-se uma ruptura profunda na personalidade e ocorre
a perda da espontaneidade.” (p. 204). A autora ainda acrescenta que,

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Não são instâncias separadas que aprendem, e, sim, o organismo como
um todo. Os planos da afetividade, da motricidade e da inteligência
estão permanentemente implicados na aprendizagem. As tendências
naturais para o movimento e para sua expressão são desde os primeiros
anos prejudicadas pela prioridade dada à formação intelectual em
detrimento do desenvolvimento corporal. (PEREIRA, 2010, p. 204)

É necessário que os estímulos dados pelo professor vão além do conteúdo


curricular, perpassando pelo afeto, atenção, respeito, segurança e liberdade.
A cooperação e a afetividade são essenciais para o sucesso da aprendizagem,
já que estamos lidando com indivíduos dotados de sentimentos. Pereira
afirma que “é fundamental que o professor se relacione afetivamente com a
criança, estimulando-lhe a liberdade de expressão, ajudando-a a sentir-se
segura e acolhida” (2010, p. 210). Essa não é uma necessidade só da criança,
mas também do adolescente.
A figura do professor é uma referência para o aluno e o modo como
se estabelece a relação entre ambos pode colaborar para que a criança e o
adolescente tornem-se adultos com menos tensões e bloqueios, capazes de
enfrentar com maior facilidade as situações que a vida lhes impõe. Por isso, a
relação entre o professor e o aluno deve ser de colaboração, em que estejam
lado a lado e não haja qualquer posição hierarquizada.
A partir do que foi apresentado, é possível perceber a importância de uma
formação crítica do aluno, despertando sua capacidade de se expressar não
só com a fala, mas com o corpo todo. Para isso é necessário que se desenvolva
um processo de ensino-aprendizagem baseado na harmonia entre corpo e
mente, proporcionando aos educandos uma formação integral, respeitando
a realidade, a história, o conhecimento adquirido, a visão de mundo, as
experiências e os questionamentos dos mesmos. São essas questões que
serviram de base para a preparação do plano de ensino da oficina aplicada
na referida escola.

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ESTUDO DE CASO: UMA EXPERIÊNCIA NA ESCOLA
ESTADUAL “EVANDRO ÁVILA”
O público-alvo escolhido para este trabalho foram alunos entre 12 e 15
anos da Escola Estadual “Evandro Ávila”, situada em um distrito de São João
del-Rei (MG) chamado Rio das Mortes. Na busca por um uso diferenciado
do espaço escolar, foi escolhida uma sala com poucas carteiras e com um
espaço amplo para que se pudesse usá-la de diferentes maneiras.
Buscou-se desenvolver aulas prazerosas, com clima agradável, ambiente
aconchegante, estabelecendo um esquema de troca de saberes e não de
imposição do conhecimento pela professora, fazendo com que os alunos
tomassem gosto pelo teatro e se sentissem livres e seguros para se expressar.
Boal (2008) apresenta seu ponto de vista da seguinte forma:
Creio que o teatro deva trazer felicidade, deve ajudar-nos a conhecermos
melhor a nós mesmos e ao nosso tempo. O nosso desejo é o de melhor
conhecer o mundo que habitamos, para que possamos transformá-lo
da melhor maneira. O teatro é uma forma de conhecimento e deve
ser também um meio de transformar a sociedade. Pode nos ajudar a
construir o futuro, em vez de mansamente esperarmos por ele. (p. xi)

As aulas sempre se iniciavam fazendo um círculo, sentados no chão,


tomando sempre o cuidado de fazer com que os alunos entendessem o
porquê de tudo que estava sendo realizado. A princípio, eles não sabiam
bem o que queriam ou como expressavam suas expectativas, mas com o
desenrolar das aulas, foi possível conhecer melhor cada um e isto serviu
para buscar elementos tanto para a preparação das aulas quanto para a
montagem da cena final.
Como metodologia para as aulas, a professora alternou entre jogos
de aquecimento e de concentração para o primeiro momento, seguidos
de jogos que fossem dinâmicos e descontraídos e que colaborassem para
que os alunos conhecessem melhor a si e ao espaço a sua volta e, assim,
expressassem suas opiniões, fazendo-os refletirem sobre a realidade dos
mesmos. Os jogos partiram da experiência acadêmica e docente da presente
autora, sendo a maioria baseada em Boal (2008), com destaque para os

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“exercícios sensoriais” e as técnicas do “Teatro-Imagem” que serviram de
base para a construção da cena final.11
Os “exercícios sensoriais” propostos por Boal (2008) foram escolhidos,
buscando relacioná-los a “Bioexpressão”, nome dado por Pereira (2010)
para a proposta pedagógica que desenvolveu com o objetivo de trabalhar as
várias dimensões do ser humano de forma integrada, através do movimento
expressivo e a percepção sensorial no espaço escolar. Segundo Pereira (2010):
A Bioexpressão, com base na teoria de Wilhelm Reich e nos estudos
da ludicidade, propõe atividades que levem em consideração
o desenvolvimento das dimensões cognitiva, afetiva e motora,
possibilitando a expressividade, a integração grupal, a criatividade e a
autonomia, juntamente com a reflexão sobre o porquê utilizá-las. (p. 203)

Os exercícios sensoriais incluem também “exercícios musculares”,


“exercícios de memória” e “exercícios de imaginação” e foram utilizados na
primeira fase da oficina como forma de conhecimento e “desmecanização”
do corpo, dos sentidos e das ações dos alunos. Segundo Boal (2008):
O ator, como todo ser humano, tem suas sensações, suas ações e reações
mecanizadas, e por isso é necessário começar pela sua desmecanização,
pelo seu amaciamento, para torná-lo capaz de assumir as mecanizações
da personagem que vai interpretar. As mecanizações da personagem
são diferentes das mecanizações do ator. É necessário que o ator volte
a sentir certas emoções e sensações das quais já se desabituou, que
amplifique a sua capacidade de sentir e se expressar. (p. 61-62)

Todos esses jogos serviram para que os discentes conhecessem melhor


seu corpo e o espaço à sua volta, aguçando sua percepção e imaginação, e
também para sentirem mais a vontades para criar, e então iniciar o processo
de elaboração de cenas a partir dos elementos que os mesmos trouxeram.
Com base nas técnicas desenvolvidas por Boal (2008) acerca do “Teatro-
Imagem”, foram aplicados alguns exercícios que colaborassem para que os
alunos expressassem suas opiniões. A princípio, foi pedido que trouxessem

11. Alguns jogos foram acrescentados ou modificados com base na proposta de Boal, bus-
cando atender as necessidades e se adaptar à realidade dos alunos.

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fotos do que mais os incomodam, poucos trouxeram, mas todos apresentaram
suas insatisfações pessoais. A partir da discussão, a professora elaborou temas
que foram sorteados para os dois grupos divididos previamente. Os alunos
do primeiro grupo deviam criar uma “imagem de transição” com os corpos
dos alunos do segundo grupo, ou seja, uma cena na qual os personagens se
colocam imóveis, na posição que se refere a uma ação de acordo com o tema
sorteado. Em seguida, o primeiro grupo devia refazer a imagem resolvendo
o problema. Posteriormente, o segundo grupo analisava as mudanças feitas
e, se não concordasse, modificava novamente. Por último, o segundo grupo
deveria colocar movimento e falas, iniciando a construção de uma cena.
Ambos os grupos passaram por essa experiência algumas vezes, a partir
de diferentes temas.
Foi possível perceber que os discentes tinham maior facilidade de mostrar
suas inquietações através de imagens, pois muitas vezes, não conseguiam
argumentar sobre os temas propostos, mesmo se tratando do cotidiano
dos mesmos. Segundo Boal (2008), “a assim chamada imagem de transição
tinha por objetivo ajudar os participantes a pensar com imagens, a debater
um problema sem o uso da palavra, usando apenas seus próprios corpos
(posições corporais, expressões fisionômicas, distâncias e proximidades
etc.) e objetos”. (p. 5)
A construção da cena final partiu de um trabalho coletivo, no qual todos
poderiam opinar e experimentar, conforme a proposta de Boal (2008), “jamais
me permiti impor, sequer propor, alguma ação. Tratando-se de um teatro
que se quer libertador, é indispensável permitir que os próprios interessados
proponham seus temas.” (p. 5). Dessa forma, observando as cenas criadas
pelos alunos e as temáticas que eles apontaram, foram criadas algumas
indagações que os levassem a refletir. Após conversas e reapresentações
de algumas cenas, foram escolhidas três pelos próprios alunos. Já que as
cenas se tratavam de fatos que incomodavam os mesmos, foram intituladas:
Incômodos.
A primeira cena tratava de uma situação de humilhação numa loja
devido a aparência do cliente. Essa cena foi apontada por alguns alunos que
relataram experiências em que foram mal atendidos em estabelecimentos

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comerciais por trajarem roupas simples ou por serem jovens. Desta forma, foi
criada junto aos discentes uma situação em que um dos clientes aparecia bem
vestido e era mais bem atendido que outro que se vestia conforme a maioria
dos jovens do convívio dos alunos. Na cena, esse último era simplesmente
ignorado pela atendente e este, frustrado, desistia da compra.
A segunda cena foi sobre uma situação de preconceito para vaga de
emprego. Essa cena surgiu devido à temática ter sido muito trabalhada na
escola durante o ano corrente. Tratava-se de dois candidatos a uma vaga de
emprego, sendo que um deles era homossexual e, mesmo tendo um currículo
melhor, não foi aceito porque não apresentava o “perfil” procurado pela
empresa, indignado reclama, mas sai em seguida.
A terceira cena retrata a escola real e a escola ideal. Para criação dessa
cena foram desenvolvidas conversas sobre situações vividas no ambiente
escolar, a partir das seguintes questões: “O que gostam na escola?” e “O que
não gostam na escola?”. A cena foi criada pouco a pouco e, a cada vez que era
encenada, acrescentava-se um novo elemento. A partir disto, a cena dividiu-
se em duas partes: a primeira mostrava a escola real com seus problemas e
com os incômodos dos alunos e, a segunda, mostrava a escola ideal, como
os mesmos consideravam que seria um ambiente prazeroso e produtivo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do estudo realizado neste artigo e as reflexões feitas sobre o
processo de construção e apresentação da cena final, foi possível conhecer
melhor a realidade dos alunos, bem como suas inquietações. Os exercícios,
jogos e conversas realizados foram importantes para que os discentes se
sentissem à vontade para se expressar.
Este contato diferenciado entre professora e alunos durante as aulas de
teatro permitiu uma maior aproximação entre ambos. A atenção ao que o
aluno fala, sente, necessita, colabora para que o mesmo passe a perceber a
figura do professor como colaborador. Dessa forma, constatou-se o quanto
estabelecer uma relação de respeito e afeto com os alunos pode ser positivo.
Através dessa experiência, foi possível perceber que há muito ainda o
que desenvolver nessa pesquisa. Entretanto, é notável que o teatro de Boal

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seja um caminho viável para o desenvolvimento de indivíduos críticos e
autônomos, que aponta seus incômodos, luta por seus direitos, reconhecendo
seu lugar na sociedade, principalmente, se aliado às práticas educacionais
apontadas por Freire e Pereira. Além disso, esse trabalho pode servir como
indicação de caminhos para o ensino de teatro que também colabore para
o desenvolvimento integral do aluno.

REFERÊNCIAS
BOAL, A. Jogos para atores e não-atores. 12ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2008.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa.
São Paulo: Paz e Terra, 2011.
PEREIRA, L. H. P. O corpo também vai à escola? As atividades bioexpressivas
e a educação da criança. In: DAMIANO, G. A.; PEREIRA, L. H. P.,
OLIVEIRA, W. C. (org.) Corporeidade e educação: tecendo sentidos...
– São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010

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formato: Ebook | 136p.
tipologias: Minion Pro, Myriad Pro

coordenação. editorial: Betânia G. Figueiredo


diagramação: Edson A. Araújo Oliveira
assistente de produção: Gabriela Favarini
revisão de textos: Cláudia Rajão

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