Você está na página 1de 12
(0 ESTADO DO ESPETACULO! [Gostaria de dar algumas explicagGes antes de iniciar esta palestra.” © que voeés vao ouvir baseia-se no capitulo final de um livro que es- revi juntamente com trés colegas do coletivo da Bay Area: Iain Boal, Joseph Matthews e Michael Watts. Cada linha desse trabalho foi dis- cutida ¢ reescrita em conjunto, O livro intitula-se Afflicted Powers: Capital and Spectacle in a New Age of War. E claro que uma parte dos argumentos que vou apresentar aqui derivam das idéias contidas nos demais capitulos desse livro, mas expé-lo integralmente tomaria tempo demais. Adianto apenas que os fandamentos da anélise que pretendo desenvolver sobre a “politica do espetaculo” sio discutidos em um capitulo anterior do mesmo livro, intitulado “The State, The Spectacle and September 11” (O Estado, 0 espetéculo ¢ 0 11 de se- tembro), publicado em versio preliminar na edigio de maiofjunho de 1 Este ensaio foi adaptado de “Modernity and Tertor”,originalmente publicado emt Afflicted Powers: Capital and Spectacle in a New Age of War, em co-au Tain Boal, Joseph Matthews e Michael Watts, Londres: Verso, 200, pp. 171-96. 2 O autor referese& palestra “A modernidade ¢ seus inimigos”, proferida no Cen tro Universtirio Maria AntOnia, em Sio Paulo, a convite do Ceuma e do Depar- tamento de Artes Plisticas da EcA-ust, em 1° de feverciro de 2005. [8.0.] 2004 da New Left Review. No capitulo que precede a conclusio de Alflicted Powers, examino com alguma profundidade o fendmeno do 'sld revolucionario no intuito de relacioné-lo mais estreitamente ig complexidades atwais da sociedade islamica. Voeés notario que de vex. em quando me refiro a uma entidade Pensante que denomino de “a esquerda”. Estou perfeitamente cons: ciente dos problemas implicitos nessa referéncia e os discuto na In. troducio de Afflicted Powers - para nio dizer no proprio titulo, Mas, Para o bem ou para o mal, a esquerda continua a ser minha interlocu. tora. Comecemos entio. Minas primeiras palaveas vm de Nietrsche, em Alka do bem e do mal.) O iinstinto que os leva a se afastarem da realidade moderna nio esté re- fatado ~ que nos intecessam suas vidas retrégradas e tortuosas! O essen cial neles nao é que desejem ir “para tras", mas que desejem ir embora! {Um pouco mais de forea, impulso, animo, senso arti alésm ~e nao para tris! ico: e desejariam ir Nao comeco este artigo com Nietzsche porque concorde com ele, mas Porque a citacdo remete diretamente & crise atual ~ 20 eterno transe da modernidade, ¢ aos que a ela se opdem -, ainda que, em éltima instancia, a jocosidade “nietaschiana” & guisa de resposta seja intl A situagio € muito pior do que Nietzsche jamais imaginou. Sua con. cepsao da felicidade do Ultimo Homem, que continua a assombrar todas as descri¢des razodveis da modernidade ~ isto é, um futuro em que “todos querem 0 mesmo, todos sio iguais: quem sente de outra ‘maneira vai voluntariamente para o hospicio” - me parece passar 20 largo de todo o horror do momento atual. A felicidade do Ultimo Ho- mem esté em construgio e a unanimidade rasteira que essa felicidade Promete ainda é a iltima (e iminente) distopia. Mas quem teria so- nhado, ¢ ha to pouco tempo, somente cinco anos atrds, que o Estado do Prozac em breve se revelaria © Império do Choque e do Terror? Quem poderia prever que o deslumbrado contentamento do mundo- imagem do século xx1 acabaria sendo progressivamente ofuscado pot uma universal ¢ impiedosa “Vontade de Retorno”? E uma “Vontade” que foi capaz de tirar proveito justamente da tecnologia do Ultimo Homem ~ 0 aparato do espeticulo ~ que se destinava a destruit, Esta anélise 96 pretende ser nietzschiana no sentido de que seu objetivo é compreender 0 horror do presente como mais uma crise na interminavel sucesso de crises da prépria modernidade; no sentido de que nao se frustra nem se apavora com o retorno do antigo, do retr6grado ¢ do atavico para interromper o festim consumista; ¢ de que considera que 0 recrudescimento do passado atesta a verdadeira face da modernidade que temos ~ o presente falsificado e sonho ainda mais fraudulento do futuro -, e por isso empurra sem cessar, em sua periddica “humanidade”, para o que esta sendo mobilizado mais, ‘uma vez, O terceiro grande tratado de Nietzsche em seu A genealogia da moral, que junta os fios de sua andlise da religiao, tem o titulo de “Qual o significado dos ideais ascéticos?”. Creio que a esquerda, nas circunstincias atuais, desafiada pelo fendmeno da Al Qaeda, somente poderd contribuir para uma politica do futuro se fizer a si mesma a pergunta de Nietzsche; ¢ de uma forma que incida de modo pertur- bador em sua propria hist6ria. “Qual o significado do ideal da van- guarda?” ~ eis a questo. (Ou, de outra maneira, “O que significa set militante?”. Ou, ainda, “Por que o Ieninismo ndo morre nunca?”.) Por que os seres humanos, expostos a crueldade e & decepgio do pre- sente, parecem ser atraidos inelutavelmente para uma ou outra versio do “ideal do guerreiro” (ou 0 do guerreiro combinado com 0 do au- toflagelador): dureza de espirito, implacabilidade, comprometimento irrestrito, isolamento contra a insignificancia da vida cotidianas enfim, uma dedicagéo & Morte ~ a fazer, forgar, a histéria, e a reescrever 0 futuro de acordo com a escritura de algum funesto Messias? Os perigos sio evidentes. A tiltima coisa que eu faria nos argu- mentos que se seguem é reduzir a resisténcia do mundo mugulmano 4 modernidade a um modelo simples de Unidade e Jihad. Em suas for- ‘mas atuais, o islamismo, que ainda passa por mutagdes € metastases nas cidades miserdveis do mundo do Banco Mundial, esta longe de ser um movimento solitério de vanguarda. O livro do qual se originou este censaio traz imediatamente antes deste um capitulo intitulado “Revolu- tionary Islam” [Isla revoluciondrio}, que tenta analisar toda a comple- xidade e ambigitidade da politica islimica nos iiltimos vinte anos, Por ora, direi apenas ~ como deliberada contraposigao ao hoje costumeiro © vulgar apelo & complexidade ¢ compreensao, que facilmente se con- verte em desculpa para no dizer nada ~ que o fendmeno da Al Qaeda 310 © grande fato com q © Propésito ~ nao 4 mas @ angio his t6rica — Moisés para 1 Tesposta a pergunta “ognesenn jue mai ‘© que significa ee ~ 2 Percepsao geral é que na Al Qaeda cose a PressAo perfeita e ra das forgas em que se sustentg ‘ical — eo discernimento Retomemos entio o fio da meada, voltando a conjuntura dos alti mos quatro anos. Hoje em dia, qualquer tentativa de andlise politica tem de comecas,creio eu, por uma caracterizagio das novas condigoes criadas em setembro de 2001: isto é, sua profunda e desconcertante duplicidade. Fomos de sibito jogados numa época de terrivel ata- vismo, um mergulho em antigas lutas ideolégicas € geopoliticas que nos fazem recordar ora a “corrida para a Africa”, ora as “guerras de religido”. Mas esse brutal retorno do passado vem acompanhado ~ € ai reside o verdadeiro desafio 4 compreensao — por uma mobilizagao politica igualmente monstruosa (e a queda na cilada) do aparato de uma moderna, para no dizer hipermoderna, produgio de aparén- cias. Interesses ¢ repertério de imagens colidem. Um imperialismo sem mascaras une-se ao controle da “informagao”. Erros ou excessos na administragio do mundo da imagem produzem conseqiiéncias politi- cas imediatas, como logo descobriu Aznar’ na esteira dos ataques da ‘Al Qaeda em Madri, E a derrota total na guerra das aparéncias é algo. que nenhuma poténcia hegeménica da atualidade pode tolerar. Se a esquerda pretende sobreviver como uma entidade politica, sua grande tarefa (terica) serd entdo a de refletir sobre a relagao desse atavismo com a neomodernidade [new-fangledness], enquanto aspectos inter- relacionados do sistema mundial nascente. Que forma deverd assumir 0 pensamento politico nessas circuns- tincias? Sonho com uma forma de andlise disposta ¢ capaz de alternar, pagina por pagina, pardgrafo por pardgrafo, entre a dura e desagra- davel objetividade dos dados materiais ~ a frieza dos dados sobre lu- cr0s, as pilhas de estatsticas sobre Obitos e pobreza ~ e uma indagagio mais ampla acerca das formas vigentes de controle social. Essa dupla perspectiva, repito, ¢ fel & realidade do momento. coneluir apressadamente que “materialidade” nesse caso é sinénimo isso nao se deve de capitalismo ¢ que “espetéculo” corresponde a um mundo-imagem descarnado, ou a um dominio de representagdes (impalpaveis) interna- lizadas. O espetaculo é um exercicio de poder social. Violenta os atores ‘humanos tanto quanto a disciplina da linha de produgao, O espetaculo provém do cano de uma arma de fogo. Na equiparagao entre “atavismo 5 José Maria Aznar Primeiro-ministeo espanhol de 1996 2 2004. [Nt] neomodernidade, também é preciso tengo para nfo atribuir pron- tamente um ou outro fator da situagao atual a uma ou outra dessas categorias. Neomodernidade nao € andloga a espetéculo. Atavismo nio € andlogo a guerra ou 4 Al Qaeda. O objeto da andlise politica atual ~ se tivesse de resumi-lo numa frase inevitavelmente deselegante ~ so as contradigbes do neoliberalismo militar nas condigdes do espetdculo, Diferenciar o velho do novo nessa confusio infernal nio vai ser facil E preciso dessacralizar 0 conceito de “espetaculo”. f preciso aplicé- lo localmente ¢ de modo conjuntural, fazé-lo sujar as maos com os detalhes especificos da politica ¢ aped-lo de sua posigo de explicagao profética definitiva de todas as coisas. f preciso pensar na idéia de ‘que 0 espetculo tem uma hist6ria em curso e nao é automaticamente ‘capaz de assimilar cada evento desestabilizador. Um mundo-imagem pode entrar em crise, como me parece ter acontecido em setembro de 2001. E dizer isso ndo envolve nenhum veredicto definitivo sobre a profundidade da crise ou sobre o perigo a longo prazo que representa para a administracio simbélica do aparato do espeticulo. A crise pode ou nio ser passageira. Mas é uma crise. © mundo das apa- réncias sofreu em certa medida uma reconfiguragao. Mas 0 fato de reconhecermos que 0 aparato imagistico ¢ capaz de recuperar aquele ‘momento inaugural ~ de até admitirmos que a “crise” é um repetido tropo do espetaculo em si, sempre mostrando na tela lampejos da ameaga e do fascinio de alguma forma de “modernidade” ~ nao nega a necessidade de descrever as foreas que hoje, de maneira especifica ¢ impossivel de ser repetida, 0 pdem em questio. Que ocorren, entio, no dia 11 de setembro de 2004, do ponto de vista politico e estratégico? E como politica ¢ estrategicamente os Estados Unidos da América responderam ao fato? Ha riscos, sem dtivida, em formular a questéo dessa maneira. Por que seguir a deixa do proprio espeticulo e escolher esta atrocidade entre tantas outras ~ inevitavel- ‘mente algada a0 novo poder da ideologia pelo estiipido recurso de di- gitalizar sua data — como marco de uma guinada na historia mundial? Até que ponto a verdadeira dinamica (e patologia) do poder ameri- cano 6 exorcizada ao se fixé-la numa tinica imagem-evento isolada, assim como a vit6ria americana na Guerra Fria foi representada em retrospecto pelo mantra, magico ¢ avesso a toda anilise, da “Queda do Muro de Berlim”? Ha momentos em que me parece facil solidari- zar-me com aqueles colegas que, em parte como reacdo A verborragia enjoativa e pseudo-apocaliptica desencadeada pelos acontecimentos de setembro de 2001 (que, alias, nao demonstra sinais de estancar), chegaram a menosprezar as explosdes como tantos outros aconteci- mentos insignificantes, attentats, gestos simbélicos desesperados de quem nfo tinha capacidade concreta para causar dano algum. “Gestos simbilicos desesperados.” Concordo com todas as palavras desse diagnéstico. (Como fazem, ao que parece, 05 que os perpetraram. Neles, 0 milenarismo se uni a0 niilismo para formar um composto de ccardter nitidamente hipermoderno. Quando eles se vangloriam em seus ‘comunicados de estarem “a favor da Morte” — contrapondo-se, por im- plicagdo, ao desprezivel apego a uma vida que nao é digna desse nome -, nunca sabemos se estamos ouvindo o grito de Tyndale na fogueira* ou as palavras de Stavréguin, nas iltimas paginas de Os deménios, de Dostoiévski. Nos iltimos tempos, o século xx vem se parecendo cada vex mais com um amélgama dos séculos xvi e xrx.) E a pergunta que continua em pauta é Qual a eficécia ~a forca politica especifica ~ dessa forma de agio simbélica, desesperada ou nao, na economia simbs- lica denominada de “espetéculo”? © Estado americano foi derrotado espetacularmente no dia 11 de setembro. E para esse Estado, a palavra “espetacularmente” nio quer dizer “superficialmente” nem indica um cepifendmeno. No dia rx de setembro, o Estado americano foi ferido em cheio no coragdo, ¢ ainda o vemos, quase quatro anos depois, gol- peando as cegas a cara de uma imagem que nao consegue exorcizar, € tentando desesperadamente fazer com que a derrota se converta em termos aos quais possa responder. 4 William Tyndale (1494-1536), seformista etradutor inglés, Teaduziu a Biblia do hebraico e do grego para o inglés, contrariando a determinagio da Igeeja Cali _goe proibia severamente qualquer pessoa eign de ler a Biblia. Morreu estrangu- lado ¢ depois tee o corpo queimado na foguira, Sua sltimas palavras foram: “Senhor abra os olhos do rei da Inglateera™.[x-r.] 34 O terror de setembro foi inovador, explicagdes, Fundamentou-se na cen ae que tentou aniquilar) de que ur eee no estado atual da politica, é por sis, eas i “ uma Pega especifica e eficaz da gestio do ae oa 0s pilotos-mértires sabiam que derrubar as torres mes cee nenhum efeito Pratico, ou quase nenhum, para bar- eases anes do capital. Mas os circuitos do capital esto cere '89 prazo, a0s circuitos da sociabilidade — padrées JO, niveis de confianga, ‘graus de identificagao com as Nao fez exigéncias, nao deu '64 (que aprendera com a cul- S a Seria isso suficiente? Realmente suficiente ‘abilizar o Estado e a sociedade, e d ae ee dade, ¢ desencadear uma sucessio de bazo- imap nas de conseqiéncias poitcas a longo prave, eae es 'previsiveis, para a ordem capitalista mundial? vane ara deses- lo ~ isto & derro- consumo ~ i ler sobre a imaginagai timo que destruiloliteralmente diante das camenast °° le imagens — e um momento, na ca- © eterno ~e usé-la acumular a visi Con a a visao pura ¢ simples da derrota. Con- vas dos terroristas, passados os primeiros dias, Bemeas rornou-se exatamente a imagem que rid. amplificay,reiterar, firmando as expect a queda das torres devia ser mostrada nos Estados Unidos. O tabu apenas tomou a pos- imagem mais palpavel eficiente. Tudo 0 que se passava na cultura, € ainda se passa, tem relagdo com esse evento-imagem do pasado; nada na cultura pode aludir diretamente ao evento. O siléncio da cha- mada “cultura popular” diante do 1x de setembro € ensurdecedor. (E mais ou menos como se a misica comercial nos Estados Unidos de meados do século xx nao tivesse nada a dizer sobre a guerra, as rela- 10, 0u mesmo sobre © nove mundo das mer- 0es raciais ou a Depi cadorias e dos eletrodomésticos. Na realidade, a cultura popular falou muito disso tudo talvez porque o adjetivo “popular” ainda revelasse algo real de seu ptiblico e de suas matérias-primas. Mas isso foi ha muito tempo, claro: a obediéncia total da indistria cultural de hoje 0s protocolos da guerra contra 0 terror ~ a assimilagao e reprodugao imediata das proibigdes e parandias do Estado ~ é uma demonstracio conereta, como se preciséssemos disso, da extingio dos iltimos vesti- siios de insubordinacdo nos esttiios da Time Warner.) Eu diria que a logica dos pilotos era em parte fantasia, em parte lucidez levada ao grau da demonstracao. Pode-se alegar que os novos terroristas sucumbiram a tentagio do espetaculo em ver de inventar uma forma de driblé-lo ou contesté-lo. Foram os defensores da idéia (brilhante, por sinal, o que apenas revela a crueldade fundamental da idéia) de que o controle da imagem é atualmente a chave do poder so- cial, e que o poder-imagem, como todas as demais formas de proprie- dade e dominag3o sob o capitalismo, subordinou-se a um inelutavel processo de concentragao, de modo que hoje esse controle se manifesta ‘em determinados lugares, monumentos, pseudocorpos, icones, logoti- pos, ndo-eventos fabricados, que so identificéveis (e vulneraveis), Isto & signos que em seu proprio vazio e inutilidade (a arquitetura das torres gémeas é um bom exemplo disso) governam o mundo imagind- rio signos cuja nulidade concentrada e materializada representa uma nova oportunidade para o terrorismo de amedontar, humilhar e virar o mundo de cabega para bai Um comercial da campanha de Bush em mango de 2004 quebrow a regra da invi- sibilidade e foi reviado do ax (com deseulpas servis) em questio de horas ste 6 — Citada em Geoff Simons, Qual o resultado politico desses acontecimentos? De um lado, se sabe, o ressurgimento do imperialismo, 5 lavras “modernidade” e “democracia” da “civilizagio”. De outro, como tendo como slogans as pa- "em lugar da antiga promessa aoe eavonizagio de um poder soberano no * S; que nao mais hesita em declarar que a guerra sem fim & sua raison d’étre, ¢ promove uma forma pcs ee a ~ uma segunda forma autoritéria de governo ~ em que segredo é essencial e a burocracia nao tem de prestar contas, nem sequer formal- mente, ao Estado de dircito. A primeira forma desse poder soberano ~ endo estou negando a necessidade permanente de os Estados Unid controlarem a esfera do nao-secreto eo centro das coi : ~ esta cada vez mais afinada ci . feixe de téenicas e prioridades do chamado “espetaculo”, e, desea forma, é cada vez menos capaz de tolerar i I deer eee a possibilidade da derrota condigio em que 0 governo vive até cer onto desde o 11 desetombno. Fa resposta que vem dando cies: tancias, no Oriente Médio pelo menos, o esta arrastando cada vex mais para perto de uma situagio em que a derrota espetacular pode Vira complicar-se (em certo sentido, pode ser precipitada) por re fracasso estratégico. Ainda nao esta claro — para usar as palavras mais isentas que me vém 4 mente ~ de que maneira as brutalidades da acu- mulacao primitiva podem ser apropriadamente atendidas na era da Al Jazeera e do torturador que usa uma camera digital Toshiba PDR. Jactarse perante o Parlamento, como Churchill em 920, dizendo que “nao entendo essa sensibilidade com 0 emprego do gis. . Sou in- teiramente favoravel a0 uso do gas verenoso contra a disseminacio d terror por parte de tribos nio-civilizadas”, é uma coisa.* Parlamentares ‘espeitaveis 0 compreenderdo, mesmo que discordem. (O imperialisimo liberal no morre jamais.) A situagao é bem diferente, platitudes da liberalizagao sio alardeadas, mesmo para uma platéiad bajuladores do Partido Teabalhista, enquanto todas as oites» een sio mostra os gritos de um homem nu arrastado por umma coleira, ime parece, se as Iraq: From Summer to Saddam. Nova York, 1994, P. xiv. Em 1920, Churchill era secretitio de Estado do Gabinete da Guerra ¢ «stava defendendo a aurorizagio dada a0 comando da Forga Aérea Britinica no Oriente Médio para empregar armas quimicas “contra os rebeldesérabes", F 0 que acontece em resposta? Certamente nada que surpreenda ‘0 mundo: a mais recente mutagio do ideal da vanguarda ~ que vai buscar seu pessoal e suas idéias basicas de organizagio diretamente nos fracassados leninismos de alguns anos antes. Uma guerrilha glo- balizada, de amores com a nova midia, inebriada na clandestinidade, ¢ que acredita num mundo de “bases” com fervor igual e contririo 0s dos seus adversiiios. Permitam-me voltar agora 4 minha adaptagao da pergunta de Nietzs- che. E multiplica-la por dois. A questdo implicita na nova conjuntura (“o que significa o ideal da vanguarda?”) nao pode ser respondida adequadamente sem que se proponha uma segunda pergunta: “Como se deve entender a forma atual da modernidade (e, por conseguinte, a forma atual da resisténcia 4 modernidade)?”. Analiso a segunda pergunta antes da primeira. Comego com des- inimas ¢ triviais, sem fazer o menor esforgo crigdes propositadamente para disfarcar sua parcialidade, concentrando-me nos aspectos da con- digo moderna que me parecem ser fundamentais para a rejeicéo que despertaram no [sli revolucionério. Eu gostaria de caminhar em diregio uma oposigéo a modernidade que nao tivesse nada em comum com a da Al Qaeda ~ ou ao menos insinuar tal oposigio, ou pelo menos esta~ belecer suas coordenadas basicas -, mesmo reconhecendo 0 que existe na modernidade que provoca a rea30 da Al Qaeda. Uma critica do moderno nio-ortodoxa, nio-nostilgica, nao-rejeitadora, nio-apocalip- tica, que deve ser hoje a tarefa da politica da esquerda. Caso contrario, ‘terreno da oposi¢ao a0 estado atual das coisas sera permanentemente cocupado por uma forma ou outra de fundamentalismo. Quando exatamente surgiram na histéria da humanidade as pri- meiras sociedades n@o-orientadas para 0 passado — isto é, para a pre- servagao da continuidade, a veneragio aos ancestrais, a transmissio da Palavra ou do Sinal - € uma questo que dificilmente obtém con- cordancia entre os estudiosos. E mesmo 0 que causou essa mudanga. Aligs, que tenha havido a mudanga continua a ser o terrivel problema ‘que nos aflige. Certas sociedades deixaram 0 passado para tras, ou fentaram, e comecaram a perseguir 0 futuro que projetaram — um futuro de produtos, prazeres, liberdades, controles sobre a natureza, imensidade de informagSes. Esse processo foi acompanhado por um assustador esvaziamento c higienizagao da imaginagao. Pois sem a Pa- lavra, sem as complexidades imagindrias e reais da estrurura de pa- Tentesco, sem o passado a impregnar os detalhes da vida cotidiana (nia maioria das vezes de modo assustador|, o significado tornou-se mer- cadoria escassa ~ se entendemos por “significado” a forma de valor e de entendimento consensuais ¢ institucionalizados, ordens implicitas has coisas, narrativas ¢ imagens nas quais uma cultura cristaliza sua concepsio da luta contra o reino da necessidade e da dor e da morte. A expressiio que Max Weber tomon emprestada de Schiller, “o desen- ‘cantamento do mundo” ~ pessimista mas, a meu ver, exultante, com sua promessa de um mundo sem falsas crencas ~, ainda é a melhor sintese desse aspecto da modernidade, Pessimista e exultante. © problema de uma politica de esquerda reside justamente af: na sua peculiar dificuldade de sustentar na mesma descrigao essas duas valéncias. As teses da esquerda sobre a moderni- dade acabam invariavelmente tendendo para um dos pélos: ou jere~ miadas sobre a mercadoria e sua produgao, ou palidas louvagées a luma utopia técnica que mal disfarga a ansiedade para desatrelar-se (outra vex) das superadas “relagdes de producio”. O pior de tudo é quando a esquerda se debruca sobre o tema do “consumismo” ou da “sociedade de consumo”. Até Jeremias parece otimista em comparacio. Eu também no sou um entusiasta dos canais de venda por televisio nem do Mall of America,” mas a questao é compreender as qualidades € as deficiéneias de uma forma de vida ~ por que é tio avassaladora € por que as pessoas esto dispostas a dar a vida para impedir esse poder, para nao chafurdar em seu pathos. Vou fazer uma tentativa. E possivel aceitar, em primeiro lugar, que 0 consumismo ~ a mola propulsora da produgio da mercadoria (nao a tinica, € verdade, mas a que efetivamente modifica o ritmo € a estrutura da vida econémica), que a impele a prover o mercado de bens descartéveis, “personalizados”, “da moda” - é a forma atual do capitalismo em escala mundial, que se apresenta como a tinica via 7 Mall of America, ou Megamall, € um dos maiores shopping centers dos Estados Unidos, localizado em Minnesota, [¥-.] para o futuro? E que 0 consumismo, como visio de uma vida dese- jdvel, nfo tem concorrentes na atualidade, ou melhor, nenhum rival que no prometa um retrocesso, 0 abandono a um s6 tempo dos ape- sites ¢ do futuro? Trata-se de uma visio — vamos aceité-la, ainda que relutantemente. Ou seja, € uma visio que oferece aos seus adeptos uma aparente saida ao desencantamento do mundo, porque de novo promete preencher 0 mundo-da-vida de significados, de respostas ma- gicas a desejos profundos, de modelos do ter, do ser do compreender (experimentar) o Tempo em si. A falsa profundidade do consumismo € que aturde seus opositores e os joga nos bracos da vanguarda. Para les, o capitalismo, na forma da *sociedade de consumo”, jé se tornow cabal e verdadeiramente um estilo de vida por oposigiio a um con- junto (ofuscante) de meios e relagdes de produgao. Dizer entio que 6 consumismo é uma religido (como é praxe entre seus adversérios) é ‘uma afirmagio séria, embora nao muito exata, © consumismo (na fa- ‘mosa intuigo de Marx) est mais para uma nova forma de totemismo = usando-se essa tiltima palavea sem nenhum tom de menosprezo. Pro- mete um mundo em que objetos apropridveis e descartaveis cumprem a tarefa de desejar e compreender em nosso lugas, confor mando nos- 08 desejos, modelando nossas fantasias, dando significado as coisas. (© apelo dessa concepgao nao tem mistério algum. Ela joga com ‘uma predisposigao humana profunda (talvez essencial), de dotar de tum poder magico a manipulagao de objetos, e oferece uma solusio para o déficit fundamental de significado do mundo real. F, no pre- sente momento, essa visio das coisas nao tem concorrentes, se 0 que estamos buscando sio modelos alternativos do que fazer com o poten- cial produtivo do capitalismo ~ 0 que fazer de acordo com as capaci- dades humanas, isto é, a servigo de uma versio do humano que sirva {is nossas capacidades coletivas. Chegamos a um estranho momento ‘em que € necessadrio declarar nos termos mais elementares o que esta errado ~ 0 que radicalmente insuficiente ~ nas promessas da socie- dade de consumo, ‘Sem lamentagdes, é claro. Objetos pessoais, inclusive de produ- do em massa, vio continuar a ser, naturalmente, um dos prineipais meios de operacionalizacio de significados ¢ desejos em qualquer so- ciedade humana concebivel. Mas eles nao podem realizar nem reali- zam a magia a que sio convocados atualmente. As mercadorias s6 podem encarnar significados humanos, modificé-los e desenvolvé-log se forem constantemente submetidas a reorientagdes ~ mudanga de. fungio, mudanga de valoragio, restabelecimento de sua condiczo de ‘mera instrumentalidade ~ em um mundo de significados que é muito mais vasto que aquele que qualquer objeto pode evocar. Os objeto, no podem ser a forma predominante de imaginar designios ou ex: pressar necessidades humanas. Menos ainda quando esses objetos sao padronizados e acrescidos de assinacuras “personalizadas”, como as cerejas num bolo, E nio podem realizar essa fungao se a magica de- pende cada vez mais, como acontece na sociedade de consumo, de sta {imaginétia) separagao do human ~ de sua presenga coletiva num mundo em que parecem quase eriar significados por conta pr6pria, ‘em resposta ndo aos que os utilizam, mas a outros objetos da mesma espécie, como se a agio da mercadoria se desse num mundo onirico cada ver mais sobrecarzegado de aparéncias. Claro que os verdadeiros produtores desse mundo de aparéncias reconhecem na pritica todas as insuficiéncias que mencionei. Afinal, cles sio realistas. Sabem muito bem que as mercadorias somente se apropriam de qualidades humanas, poderes humanos reais, a partir do mundo que simulam aperfeigoar e superar. Por isso, o espeticulo 0 que acabo de descrever € uma de suas fungées centrais, a de tornar as mercadorias desejaveis — é o eterno parasita dos valores semimor- tos de uma sociabilidade em processo de desaparecimento, Ele injeta «em seus objetos doses homeopaticas de “comunidade”, “respeito pela tradigao”, decéncia, lealdadc, ternura, ingenuidade, excentricidade, atengdo carinhosa - em suma, amor. A operacao é fatal e mascara os valores que canibaliza, Para que a “atengao carinhosa”, o “amor” € © “estar com os outros” sejam agregados como valores a variantes Iinimas do mobiliério doméstico on dos processadores eletrOnicos de informagao, & necessério esvaziar esses valores de toda e qualquet difculdade, da mais diminuta recaletrincia. O que ha de mais deps ‘mente no consuumismo nao é que nao cumpra suas promessas de fl cidade ~ ¢ isso que possibilta contesté-o -, mas que sua aco remova as entranhas de tudo que poderia servir para construir a felicidade humana (e para 0 reconhecimento da infelicidade). £ verdades no fim, acabei no conseguindo reprimir minha aver- so. Mas nunca pretendi fazé-lo: aidéia era avangar passo a passo para ‘um nivel em que coubesse a verdadeira hostitidade em lugar do repi- dlio desdenhoso. © que me traz de volta a Al Qaeda. O Isla revolucio- nario — para voltar & trivialidade com que comecei ~ é um movimento que nasce da rejeigao a muitas facetas particulares da condigio mo- derna, Fle se bate contra os legados d» colonialismo ¢ contra 0 atual retorno do colonial reprimido; desenvolve-se a partir do angustiante fracasso do Estado-nagao nasserista laico. E criow um discurso sobre 0 horror do mundo urbano neoliberal ~ nessa linguagem reside a grande forga do seu édio arcaico, Eu diria que o aspecto mais importante da constituigao da Al Qaeda é sua mistura de atavismo com neomoder- nidade. Seus melhores recrutas provém exatamente do mundo no qual vigoram as mercadorias ¢ os gadgets que acabei de descrever. Entre os varios aprendizados sobre a modernidade pelos quais passou, o Isli revolucionério foi obrigado a suportar toda a orga do consumismo, suporti-lo de um modo, ¢ com uma intensidade, somente realizével pelos que vivem em sociedades nas quais 0 consumismo ainda ¢ em parte realidade, em parte sonho de um futuro. Jamais seremos capa~ es de compreender 0 ddio ¢ 0 desprezo pela “Vida” moderna que os comunicados dos revolucionérios islamicos continuam a extravasar enquanto nao dermos novamente a devida importincia a0 que eles suportaram, a tudo o que sofreram. Isso vale, sobretudo, para o modelo de temporalidade que a “so- ciedade de consumo” oferece aos seus siditos (porque no cerne da rejeigio da Al Qaeda ao Ocidente encontra-se, acima de tudo, uma concepgao distinta de passado, presente ¢ futuro). ‘A modernidade, principalmente em sua manifestagio como socie- dade de consumo, é cada vez menos capaz de oferecer aos seus mem- bros maneiras de viver no presente ¢ de aceitar 0 fluxo contingente do tempo. A razio disso € que a modernidade aposta tudo na celebracéo perpetuagio do aqui ¢ agora. Nos iiltimos tempos, construiu um extraordindrio aparato para permitir as pessoas imaginat, arquiva, digitalizar, objetivar e se apossar do momento. Parece que 0 aqui € agora nao € toleravel (ou, no minimo, nao inteiramente real) a no ser que seja narrado ou mostrado, imediata ou continuamente, para (05 outros ~ ou para nés mesmos. O telefone celular, o digital replay, a troca instantinea de mensagens por computador, a conexiio em tempo real, 0 video loop. Longe de mim dizer ~ logo ew que sou um apaixonado pela imagem ~ que dar forma visual a uma experitncia significa nao vivé-la, Depende, é claro, de que e para que serve a cons- trugio da imagem. Existe, no entanto, uma espécie de visualizacao, que todo mundo percebe por intuigao (objeto de duras criticas na lin. guagem comum), que consiste em sua esséncia de um mecanismo de defesa ~ um modo de deliberadamente isolar 0 momento, distanciar-se do nio-vivido, do nao-significativo. Voltarei a esse assunto. ‘A cultura do consumo tem muitas facetas. Por exemplo, todos esses digpositivos que servem 8 objetificagio do instante sio hoje acompanha- dos pelo reino sempre ampliado da aparéncia da mercadoria ~ na publi- cidade, no design, na performance integral da vida da mercadoria, em comerciais e no mundo da informagao-entretenimento ~, tudo isso mais «mais voltado para o passado. Antigamente, as mereadorias faziam pro- :messas relacionadas sobretudo com o futuro. Hoje, toda uma classe (pre-

Você também pode gostar