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Maria Cecilia Queiroz de Moraes Pinto

Alencar e a França
Perfis

CAPES
Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro

P659a
Pinto, Maria Cecilia Queiroz de Moraes.
Alencar e a França: perfis / Maria Cecilia Queiroz de Moraes
Pinto.-SãoPaulo : Annablume, 1999.
p. ; 14x21 cm.
ISBN 85-7419-087-5
Inclui bibliografia.
1. Alencar, José de, 1829-1877 - Crítica e interpretação. 2.
Literatura brasileira - Interpretação. 2. Literatura brasileira -
Influências francesas. I. Título
CDD-B969.3

ALENCAR E A FRANÇA: PERFIS


Maria Cecilia Queiroz de Moraes Pinto

Coordenação editorial
Mara Guasco
Preparação de originais
Joaquim Antonio Pereira Sobrinho
Capa
Luciano Guimarães

COLEÇÃO PARCOURS
Gilberto Pinheiro Passos
Glória Carneiro do Amaral
Véronique Dahalet

1“ edição: novembro de 1999


© Maria Cecilia Queiroz de Moraes Pinto

ANNABLUME editora . comunicação


Rua Padre Carvalho, 275 . Pinheiros
05427-100 . São Paulo . SP . Brasil
Tel. e Fax. (011) 212.6764
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A Mariah
Tais
Gael
Pedro
bem-vindos bem-amados
Alencar e a França: Perfis

estrangeiros, até inculcar-lhes uma singularidade de dicção e


composição em que se reconheça o Outro que somos. Como diz
Alencar o que disseram outros, alguns dos outros nos quais sentiu
um desafio?
E, simultaneamente, a atividade crítica também se questiona:
como retomar o já tantas vezes retomado? Mas se o escritor român­
tico parte em busca do original, o crítico se contenta em acrescentar,
eventualmente contestar, e, ao fazê-lo, lançar mais luzes.

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Capítulo III

LUCÍOLA
O romance da cortesã brasileira, pensado no conjunto da obra
alencariana, vem logo depois do imenso sucesso d 'O Guarani e da
publicação em livro de outros dois folhetins bem acolhidos pelo
público, Cinco minutos e A Viuvinha. Contudo, uma referência
cronológica mais significativa é sua proximidade com os textos dra­
máticos de As asas de um anjo, representado em 1858 e editado em
1860, e A expiação, segunda parte do anterior com data de 1865 e
1868, para escrita e publicação. É a única peça não encenada de
Alencar. Como primeiro dentre os perfis, Lucíola também inaugura
um veio marcante do romance urbano, aquele menos preocupado
com a crônica social ou os pequenos enredos à Macedo. Centrados
em dramas interiores que a vida da cidade moderna cria e alimenta,
os romances de G.M. corresponderão à fase dita "realista" de Alen­
car. Na expressão hiperbólica de Araripe Júnior, o escritor
"empunhou o copo socialista no festim da moda, para acudir aos
reclamos de Dumas Filho, Augier e Feuillet, cujos ecos estrepitosos
faziam esquecer as comédias do desventurado Pena" (Araripe, 1958,
p. 170). Como estes, ele entregou-se à sedução do palco, desdobran­
do a atividade literária.
Efetivamente, ocorre a essa altura, em finais da década de cin­
qüenta e inícios de sessenta, um entrelaçamento da produção roma­
nesca com a teatral. Lucíola sinaliza, à maneira do exemplo europeu,
a versão ficcional de um tema já desenvolvido para o teatro. Com
uma troca de sinais: veio depois, e não antes como era o caso das
histórias de Dumas e Feuillet, romances posteriormente adaptados
à cena. Além disso, há reincidência de assunto, não de intriga.
Analisando o teatro de Alencar, João Roberto Faria assinala
uma série de posições que irão se confirmar nos perfis, justificando

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Alencar e a França: Perfis

não o tom exacerbado, mas a substância do comentário de Araripe.


Ou seja, Alencar censura energicamente, em suas peças, "a agiota­
gem, a prostituição, o casamento por dinheiro e o desamor às coisas
brasileiras" (F , 1987, p. 116). Se falar em socialismo é exagero,
aria

aventar a hipótese de realismo pode não o ser.


Com As asas de um anjo, sob influxo de A dama das camélias e
As mulheres de mármore, esta de Lambert Thiboust e Théodore
Barrière, Alencar abandonara o âmbito restrito da família, da socie­
dade, por um domínio mais amplo e complexo: o da prostituição.
Seus entreveros com a censura não o fizeram desistir. Muito pelo
contrário, voltaria à matéria n'A expiação, drama que, para ele,
completava o anterior, na medida em que o erro deveria ser seguido
pelo castigo. Ambas as peças, como se sabe, tiveram vida curta. Em
Lucíola, porém, Alencar amarraria as duas pontas... com brilho e
para muitas gerações.

LEITURA E LEITORES
As personagens alencarianas dosperfissão leitoras assíduas. Às
vezes, como em Diva, não se faz menção nem a autores, nem a títu­
los. De Emília, tem-se a informação que "lia muito", não o que lia.76
Em Lucíola, as indicações multiplicam-se. Os capítulos XV e XVII
trazem as referências maiores: à Dama das camélias, por um lado, a
Paulo e Virgínia e Atala, por outro; o capítulo XVI nos conta que a
senhora Jesuína distraía-se lendo Zaíra e Os azares da fortuna-, os
textos bíblicos integram as leituras de Lúcia. Como se não bastasse,
Paulo evoca uma frase de Balzac, e Victor Hugo é indiretamente
lembrado quando se fala da representtação da ópera Hernani.
Se a ópera de Verdi, espetáculo de canto e música, vale par­
ticularmente como signo cultural, na Corte que acompanha as mo­
das e paixões de além-mar, um paralelo e um contraste desenham-
se sob a menção. Obra romântica por excelência, Hernani não per­
76. “Essa moça tinha desde tenros anos o espírito mais cultivado do que faria
supor o seu natural acanhamento. Lia muito, e já de longe penetrava o
mundo com olhar perspicaz, embora através das ilusões douradas" (D, cap.
III, p. 474).

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Lucíola

deu essa característica que lhe imprimira seu primeiro criador ao ser
transposta para a forma do drama lírico. A música de Verdi guarda
o frêmito que percorre a história de um dos mais excessivos heróis
do romantismo francês, em todo caso aquele que consagrou o triun­
fo do movimento.77 Por isso, no quase prólogo de seu relacio­
namento com Lúcia, Paulo está, como o Hernani de Hugo e Verdi,
nessa situação de disputá-la e roubá-la a vários pretendentes. Mas o
tom é rebaixado e contrastivo. Nada de nobre o anima. E o motivo
de Hernani será abafado ao longo de Lucíola. Constitui, por assim
dizer, um acorde em surdina na melodia maior dos dilaceramentos
da protagonista, os mesmos que a levam à autopunição, fruto de
uma dupla moral assumida, introjetada.
Essa, porém, é uma leitura nossa. Nas demais, trata-se das
personagens. "Repimpada numa cadeira de balanço" a senhora Jus-
tina, de ignóbil passado, entretém-se com brilhantes novelas de sa­
bor popular. A ira de Paulo, ao encontrá-la nessa atitude e nessa ati­
vidade, denuncia e também ironiza sua vulgaridade. Em compen­
sação, o nível de interesse de Lúcia pela literatura é bem elevado - se
a Bíblia era seu livro predileto! Através de tais preferências, percebe-
se um caráter singular, e, dentro da trama, elas explicam as discus­
sões literárias. A cortesã não é, contudo, uma mulher culta, e sim
uma intuitiva, o que a situa em relação ao amante, mais conven­
cional, e desculpa a afoiteza de alguns de seus julgamentos:
Lúcia conservava de tempos passados o hábito da
leitura e do estudo; raro era o dia em que não se
distraía uma hora pelo menos com o primeiro li­
vro que lhe caía nas mãos. Dessas leituras rápidas
e sem método provinha a profusão de noções va­
riadas e imperfeitas que ela adquirira e se revela­
vam na sua conversação (L, cap. XI, p. 374).
77. Analisando, embora rapidamente, o significado da peça, John Gassner a vê
como uma causa que, triunfante, derrubou em definitivo "o santuário
clássico". Com ela, também abre-se o espaço para novas experiências.
Hugo realmente não aproveitou essa nova liberdade. Seu teatro "é mais
grandioso que substancial" (Mestres do teatro, 1980, parte VII, cap. XVIII e,
especialmente, p. 399-402).

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Alencar e a Franca: Perfis

Na posição de interlocutor de G.M., Paulo deve minimizar esse


aspecto, mas não pode silenciá-lo. Ele é essencial à intriga, a fim de
tornar verossímil o estabelecimento de uma rede intertextual onde
se confrontam e escolhem modelos. A história de Lúcia acabará
convertendo-se na opção por um enredo que ela imagina poder
viver. O romance se constrói com romances, nele está em jogo não
apenas uma idéia, mas ainda e sobretudo uma técnica que se revela
nas direções propostas para a solução do conflito.
As referências até aqui examinadas, mesmo não sendo meros
ornamentos ou índices de realidade, são componentes intertextuais
bastante tênues cuja dupla leitura não chega a perturbar a superfície
narrativa. Não me parece ser o que acontece na citação abaixo:
Fazer nascer um desejo, nutri-lo, desenvolvê-lo,
engrandecê-lo, irritá-lo, afinal satisfazê-lo, diz
Balzac, "é um poema completo". Ela compunha
esses poemas divinos com um beijo, um olhar, um
sorriso, um gesto. Que de harmonias sublimes não
arrancava da lira do amor com aquelas notas de
sua clave voluptuosa!E a sua beleza admirável,
como a sua graça infinita, davam sempre àqueles
hinos do prazer uns retoques originais (L, cap.XI,
p. 374).
De um erotismo discreto, a passagem correspondente ao pri­
meiro período traduz ao pé da letra o aforismo XLIV, da Meditação
V, em Fisiologia do casamento (Physiologie du mariage). Leitor
assíduo de Brillat-Savarin e seu Fisiologia do gosto (Physiologie du
goût), citado já em Ao correr da pena,78 Alencar dificilmente teria
78. "Sain pain et sans vin, 1'amour n'est rien" (Cf. folhetim de 27/5/1855,
p. 790).
"Bem razão tinhas tu, meu Brillat-Savarin, quando dizias que a cozinha é a
primeira e única ciência do mundo, e que os homens só se distinguem dos
animais porque estes comem, e nós saboreamosf (do mesmo folhetim,
p. 791).
"[...] tive de acrescentar uma máxima aos aforismos tão conhecidos da
Physiologie du goüt 'O melhor meio de se experimentar o amor que se tem
a uma mulher é vê-la comer' " (loc. cit.).

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Lucíola

deixado de ler mais essa fisiologia, sobretudo porque teve grande


divulgação. Na própria série dos folhetins, em 22 de outubro de
1854, ele propõe dois tipos, o estudante de latim e o velho do século,
como "curiosos e dignos de uma fisiologia no gênero de Balzac".
Em Lucíola, inverte-se por duas vezes o original francês. Na Fi­
siologia, a observação inicial destina-se a ensinar aos jovens celiba­
tários e aos predestinados (a serem traídos) como evitar as paixões
ilegítimas de suas (futuras) mulheres. Mais ainda: no aforismo XXXI,
do mesmo capítulo, Balzac afirma que a mulher é uma lira cujos se­
gredos só se revelam a quem souber fazê-la soar. Ora, esse tom
pesado será convertido em discreta sensualidade. E Lúcia quem
compõe poemas (bem mais adiante, Paulo lembrará a seu respeito
uma estatueta de Pradier, Safo), quem tange o instrumento do amor.
Contrariamente à tônica dos aforismos, que deixam de lado a alma,79
Alencar valoriza na cortesã a delicadeza do sentimento. Ela e Paulo
vivem, então, a fase idílica de seu relacionamento. Entretanto, se a
passagem registra discreta lascívia, o reconhecimento da citação
acentua a ambigüidade romântica do não dizer, dizendo.
A que atribuir o disfarce? Paulo está certamente recordando
instantes de prazer, mas não só. A feliz convivência das "horas
tecidas a fio de ouro e púrpura" (L, cap. XII, p. 374) difere profun­
damente daqueles momentos vincados quase sempre por imagens
canibais como o episódio da ceia. Segundo Antonio Cândido, "orgia
espetacular, com tapetes de pelúcia escarlate, quadros vivos obsce­
nos, flores e meia luz, ultrapassando pelo realismo qualquer outra
cena em nossa literatura séria" (Cândido, 1959, v. II, p. 229).
Além de descrever Lúcia, a citação projeta - e por todo o livro -
a sombra de equívoca lubricidade, equívoca ternura.
O ponto nodal das relações intertextuais configura-se, porém,
nos capítulos XV e XVII, que conjugam os modelos maiores, sua

O Vate bragantino (Ensaios literários, v. IV, p. 991) e Os sonhos d'ouro


(p. 800) repetem a mesma citação: Dis-moi ce que tu manges, je te dirai ce
que tu es.
79. E justamente o início do aforismo XXXI: "En amour, toute âme mise à
part...".
Lembre-se que Barbéris aprecia de modo peculiar a Fisiologia, atribuindo-
lhe função nodal na Comédia (Cf. Balzac et le malsu siècle, 1970, p. 1.084).

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ALENCAR E A FRANCA: PERFIS

crítica e sua funcionalidade como indicadores de leitura projetiva


das personagens e sinalizadores para a nossa, receptiva. A Paulo e
Lúcia discutindo preferências como leitores mais ou menos iden­
tificados com certas situações, juntamo-nos nós, convidados que
somos (induzidos?) a ler de determinada maneira, reconhecendo no
romance o romance das diferenças e das similitudes perdidas, alme­
jadas, desprezadas, o romance feito de romances.

O EIXO SINTAGMÁTICO

Dos três (ou quatro) perfis, é Lucíola que apresenta maior


semelhança com um modelo literário de prestígio, quanto ao enredo.
A sombra de Margarida Gautier desenha-se nas entrelinhas, sur­
gindo sem rebuços na discussão entre Paulo e Lúcia.80 A pergunta
que este faz a si mesmo - e a G.M. e ao leitor ao ver a moça com o
livro de Dumas, apenas corrobora uma similitude que, desde o iní­
cio, se anunciara: "Lúcia teria como Margarida a aspiração vaga
para o amor?" (L,cap. XV, p. 401).
A ênfase do desmentido, ao final da conversa, pode ser interpre­
tada em duplo registro. Ao "jurar" que não é Margarida, Lúcia
afasta a suposição de estar amando (é a hipótese de Paulo) e, ao mes­
mo tempo, procede, em relação ao livro de Dumas, como a heroína
deste último na sua leitura de Prévost:
elle me disait toujours que lorsqu'une femme
aime, elle ne peut pas faire ce que faisait Manon
(DC, cap. XVII, p. 203).81
Na verdade, o sentido mais forte não é nenhum desses dois. Por
trás da negativa de Lúcia, esconde-se uma afirmação, esta, porém,
do autor. Desde o prólogo de 1858 à edição de As asas de um anjo,
80. Está bem: deixemos em paz A Dama das camélias. Nem tu és Margarida,
nem eu sou Armando.
- Oh! juro-lhe que não!" (L, cap. XV, p. 403).
81. A indicação das páginas remete à edição Folio 1975.

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Lucíola

Alencar classificara a heroína de Dumas como "um tanto loureira".82


E seria justamente pela maneira de ser que ele distinguiria sua per­
sonagem e justificaria o tom peremptório de que ela se serve para
contestar aproximações.
Na polêmica com Joaquim Nabuco, o escritor também há de
afirmar que A dama das camélias "não foi mais que a ressurreição
de Manon Lescauf. Explica-se melhor quando expõe o que chama
de "tese fisiológica" de Dumas: reconhecer que "a mulher podia re­
generar-se pelo amor e para o amor" a ponto de esquecer o passado.
Ora, sua proposta admite a redenção do espírito, não a da carne que
guardará "a lembrança inexorável de seu erro" (PAN, p. 150).
É esse o mesmo escritor que, para efeitos de estruturação dra­
mática (o que não faz no romance), há de separar o pecado (crime)
da penitência, ou seja, As asas de um anjo de A Expiação. E, ao colo­
car o problema em termos de "fisiologia" assinala um uso específico
da palavra, então em voga graças sobretudo a Balzac. "Fisiologia",
"romance fisiológico" são expressões que ele reveste de uma cono­
tação próxima àquela de psicologia, psicológico, em nossos dias.
Desse modo, Alencar situa a diferença no nível da natureza humana,
da natureza de Lúcia cotejada à de Margarida Gautier. Os perfis
serão todos "estudos fisiológicos".83
82. "Assistindo à A Dama das Camélias ou As Mulheres de Mármore, cada um
se figura que Margarida Gautier e Marco são apenas duas moças um tanto
loureiras, e acha espírito em tudo quanto elas fazem ou dizem" (Ensaios
literários, v. IV, p. 925).
83. Em Précis de littérature française du XIXE siècle, 1990, sob direção de
Madeleine Ambrière, há um texto bastante elucidativo a respeito. Remon­
tam as fisiologias aos Caractères de La Bruyère e entram na moda com
Brillat-Savarin (1825) e, especialmente, Balzac (1829). Passam a designar o
estudo de uma realidade humana - um grupo social, um tipo, um caráter.
Algumas são francamente cômicas, outras assumem feição política.
Constituem um gênero literário, e é nelas que pensa Alencar em Ao correr
da pena (folhetins já citados).
Em seu artigo introdutório à edição Aguilar, v. I, Cavalcanti Proença,
aludindo "ao chamado romance fisiológico", explica o substantivo
"fisiologia" a partir do sentido que se depreende da Fisiologia do
casamento (p. 78). Mas não vê nisso tudo, com referência a Alencar, "poços
psicológicos, subterrâneos de paixões e de instintos, abismos e dúvidas filo­
sóficas tragando sentimentos. Apesar de fisiologista, não eram esses os seus
temas" (p. 80). Outros críticos concordariam com ele apenas em parte.

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Alencar e a Franca: Perfis

Em si, pois, o enredo de Lucíola não configura os eventos em


perspectiva diversa à do texto francês. Em ambos, a estrutura
salienta quase a mesma seqüência: encontro(s), primeiros contactos,
convivência, ruptura, morte, relato/confissão. Além dos
pormenores, nomes de ruas, bairros, festas, destinados a ambientar
a história no contexto brasileiro ou de certos deslocamentos - o
episódio de Armando com Olímpia transposto para a primeira
metade de Lucíola e reduzido para o espaço-tempo de um baile, de
uma noite -, as divergências factuais decorrem das singularidades
inerentes à conduta de Lúcia. Nem elas, contudo, afastam um
desfecho comum. Se, no processo de comunicação, existe uma
pergunta a que o texto respondeu, essa pergunta não foi "o quê",
mas "como", "por que meios".
Observando os fatores que conduziram à ruptura em um e ou­
tro caso, constata-se que eles se devem em Dumas às pressões fami­
liares e à questão do dinheiro. Em nome do pai, dos bens, da pro­
priedade, impede-se uma duradoura relação afetiva. Não é permi­
tido dilapidar o patrimônio, nem oficializar sentimentos que poriam
em risco a solidez da monogamia fundada na virgindade feminina
e, posteriormente, na fidelidade matrimonial da mulher. A ordem
"natural" da sociedade, imposta pela moral burguesa, deve ser man­
tida. Caso contrário, desprezados os padrões, entra-se na anarquia,
no risco de ampla subversão. A "ordem" está acima de questio­
namentos e reparte com o dogma - "il faut tôt ou tard obéir à son
père" (DC, cap. XXI, p. 234) - o ser verdade em si, indispensável à
permanência e predomínio de uma classe.
A solução de Lucíola passa por outros motivos. O principal
reside na própria maneira da personagem encarar a si mesma.
Fazendo a Paulo o relato de sua queda (não há equivalência no outro
romance), Lúcia fala da dualidade de seu comportamento. Sente que
a virtude não a abandonou, e a prostituição, "cousa sórdida e
abjeta", dela requeria uma série de gestos aos quais ficava alheia
uma parte de si mesma. Não totalmente, dirá Dante Moreira Leite,
pois a divisão da personalidade só ocorre quando o lado bom não
tem consciência do lado condenável. Para ele, a separação entre os
desejos físicos e os anseios espirituais, expressa nos dois nomes -
Lúcia e Maria da Glória -, remete às idéias românticas acerca da

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Lucíola

pureza, sensualidade e amor.84 De todo modo, para o andamento da


intriga, as atitudes contraditórias de Lúcia, que ora constrangem, ora
irritam o amante, causam inúmeras brigas. Pouco a pouco, depois de
aplainadas as tensões iniciais da convivência, interferem no rela­
cionamento e atenuam os ardores da paixão.
Altera-se o ritmo sensível n'A dama das camélias, cujo cres­
cendo rompe-se com a intervenção do pai. Em Lucíola, o afrou­
xamento dos laços mostra a Paulo a necessidade de acabar com o
antigo estilo de vida. A fase nova implica a aceitação desse declínio
que termina com a morte. A coerção social, as vozes externas e
maledicentes refletem-se nas dissensões, mas estas têm origem em
uma oscilação de humor e de ação. A "psicologia" de Lúcia não se
confunde com a de Margarida.
Ora, se é certo que as heroínas de Alencar se isolam para viver a
grande batalha do amor, sem a incômoda presença de pais, mães e
família, sem injunções que venham de fora -, nem por isso deixam
de introjetar os valores associados à ordem socioeconômica.85 Lúcia
exemplifica como a dupla moral sexual, que serve para condenar a
mulher e desculpar o homem, é assumida sob a capa da virtude. O
fato de reconhecer que errou, que erra, por entregar-se ao prazer,
por ser mercadoria e "pasto dos homens", na crua expressão com
que se define (L, cap. VII, p. 343), não importa nem de longe uma
censura a Paulo. Ele não é como os demais "compradores", embora
também ela não se iguale a suas companheiras de ofício. No entanto,
84. Se, antes do século XIX, casamento e amor são coisas distintas, a partir do
momento em que os românticos consagram o sentimento, começam a ver
com outros olhos a questão da prostituição. Sem conseguir resolver
satisfatoriamente o dilema, perguntam-se como o amor, que é santo, pode
degradar (Leite, 1967, p. 152 e 1979, p. 56). Por onde se vê que Alencar
esboça uma resposta diversa das habituais.
85. O isolamento, como recurso narrativo, concentra a atenção em um único
ponto. Algo parecido ao artifício clássico de eliminar o acidental e começar
uma tragédia pela crise a fim de que a ação emane das personagens como
necessária e lógica. Não se chega tão longe com os perfis, embora, como
anota Maria Valéria Junho Pena, a subordinação de tudo o mais à ação
amorosa seja perceptível em todos os romances urbanos (As moças de José
de Alencar. Ciência hoje). Lembre-se que Paulo também afirma: "O mundo
soprando seu hálito frio na intimidade de nossa existência não tinha podido
separar Lúcia de mim" (L, cap. XV, p. 403).

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Alencar e a França: Perfis

adere aos preceitos e preconceitos da ordem vigente. Ideologica­


mente, o "porquê" da morte não é muito diverso aqui e lá. Em certo
sentido, Dumas pratica um moralismo mais ostensivo. Armando
Duval, e não só Margarida Gautier, acaba sendo vítima passiva de
uma armadilha. Se o mesmo gesto vem impregnado, na moça, de
exaltação - ela acredita ser pelo bem de uma mulher que é o que de­
veriam ser todas, virgens, puras, etéreas, e que só o são porque
existem Margaridas -, no amante enganado pelo pai, é inglório,
mero signo de acomodação.86 A moral burguesa triunfante recusaria
qualquer outro epílogo.
Entretanto, creio que o valor da "tese fisiológica" de Alencar
decorre de uma exploração estética e do desenvolvimento de
potencialidades psicológicas do assunto. A pecadora que se debate
entre o bem e o mal e descobre o irremediável comprometimento do
corpo, faz também a experiência da integração com o outro. É ainda
Dante Moreira Leite que analisa com segurança as etapas desse
encontro.87 Quando Paulo vislumbra em Lúcia traços da moça que
ela poderia ter sido, quando a respeita e a trata de maneira
diferenciada, permite a emergência paulatina dessa imagem ideal
cuja realidade é atravessada pela morte. Contemplar-se nos olhos do
outro e com os olhos do outro, devolve a Lúcia sua dignidade, ao
mesmo tempo em que, em movimento recíproco, ensina Paulo a
compreender a mulher que ama, apesar e dentro dos limites
impostos pelo prejuízo social.
O problema merece agora ser visto do ângulo do ser e do
parecer.

86. A destruição do herói romântico é objeto de um artigo que permite situar


muito bem o caminho percorrido do par Chactas-Atala (1801) ao casal
Margarida-Armando (1848). Mais de uma vez, dentro do intertexto
alencariano, lê-se, em cadeia aberta, o intertexto que remete a
Chateaubriand. Leitura direta e leitura de outras leituras de Alencar, ele
comparece inevitável na confluência e dispersão de elementos românticos
(cf. K
aempfer, 1992, Faut-il tuer la Dame aux camélias? Poétique 92).
87. A meu ver, particularmente em Psicologia e literatura, no capítulo em que
trata de Lucíola e Senhora, p. 148-60.

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Lucíola

O SER E O PARECER
No primeiro encontro, Paulo viu a "menina". Encantadora,
graciosa, sem os desplantes das mulheres da moda. Pareceu-lhe uma
alma pura, sincera, capaz de trazer felicidade ao homem que amas­
se. Apenas pelo detalhe do leque de penas escarlates, essa imagem
apresenta algo estranho. O provinciano, porque provinciano, não
teria conseguido decodificar um possível signo de vulgaridade?
Acresce que, mais adiante, ao preparar-se para ir ao baile e entregar-
se ao Couto, Lúcia veste-se de "escarlate". A cor sugere contrastes
com os tons discretos do dia-a-dia, no relacionamento com Paulo, e
retoma, na observação penetrante de Valéria De Marco, "a nudez e
os tapetes da casa de Sá" (De Marco, 1986, p. 172). A conotação
negativa atenua-se, porém, quando o mesmo leque reaparece na
descrição das roupas usadas por Lúcia no teatro lírico: "vestida com
certa galanteria, mas sem a profusão de adornos e a exuberância de
luxo que ostentam de ordinário as cortesãs" (L, cap.V, p. 331). Um
"luminoso impressionismo" (Cândido, 1959, v. I, p. 232) mescla-se à
reminiscência:
O que ainda vejo neste momento, se fecho os
olhos, são as nuvens brancas e nítidas, que se
froca vam graciosamente, afiando com o lento mo­
vimento de seu leque; o mesmo leque de penas
que eu apanhara, e que de longe parecia uma
grande borboleta rubra pairando no cálice das
magnólias(L, cap.V, p. 331).
A cor "escarlate", aliás, está em vários enfeites femininos, de vá­
rias personagens alencarianas; em alguns trajes; no papel de parede
da casa de Aurélia. Também comparece na indumentária masculina
e mesmo nos ornamentos de índios e índias. Cavalcanti Proença, que
chamou a atenção para o fato, atribui-lhe um valor estético:
Na preferência pelo vermelho da cor está o visual.
Ena escolha da palavra escarlate, o artista sensí­
vel à música da palavra. Escarlate é vermelho,

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Alencar e a Franca: Perfis

mas a claridade dos aa explica: vermelho vibrante,


alegre, luminoso, jovem como convém às donze­
las em flor, às horas festivas (Proença, in: Alen­
car, 1959, v. I, p. 98).

O "escarlate" fica assim na esfera estilística da cor e da


sonoridade, indício de alegria e juventude. Não, porém, sem uma
ponta de sensualidade, que, exacerbada, atinge os extremos da
depravação. Em Lúcia, pode ser lido duplamente.
A aparência casta, de moça de família, ressurge várias vezes.
Mesmo depois de Sá o ter desiludido na festa da Glória, oportu­
nidade em que ocorre o segundo encontro, Paulo hesita entre o que
vê e o que lhe dizem, entre a fisionomia e a palavra, entre a senhora
com "ares de meiga distinção" e a mulher bonita cuja "frase volúbil"
indicava a "cortesã franca e impudente" (L, cap. II, p. 315). A primei­
ra visita que lhe faz, ressente-se da dúvida. Estaria ele enganado ao
julgá-la com rigor? o amigo teria dito a verdade? Na segunda, pensa
que o enigma se resolveu: Lúcia é uma cortesã - disso tem prova! -
mesmo parecendo, em algumas circunstâncias, outra pessoa. E
procura afastar da lembrança a "singularidade" desse comporta­
mento.
Do capítulo IV ao VII, o ser estranho da prostituta sufoca a
aparência "boa" que emerge na cena posterior à orgia da ceia. No
jardim da casa de Sá, a entrega amorosa e total, sucedendo à lasciva
imitação de quadros eróticos, reaviva as oposições. Elas não desapa­
recem por completo no melhor período da convivência e nos epi­
sódios seqüentes de Lúcia esperando Paulo, à saída de um sarau
familiar e Lúcia indo ao baile com o Couto. É, porém, nessa fase
(capítulos VIII a XIV), que começa a definir-se uma preponderância
do lado positivo. No fundo, Paulo precisa ser instigado pelos diz-
que-diz-que dos amigos e ex-amantes para titubear no seu jul­
gamento e retrair-se no seu amor.
Esses rumores não destroem diretamente a harmonia; fornecem
os argumentos para Paulo evitar, em sua desconfiança, um com­
prometimento maior. São falas que negam a realidade da vida entre
os dois, mostrando como a sociedade sempre alerta trabalha seus
mecanismos de defesa. Formam um concerto, delineiam uma poli­

104
Lucíola

fonia que Paulo reproduz, contesta, como personagem, não como


aquele que conta uma história. Nisso, Alencar assume posição
diversa de Dumas. Esses comentários sobre Lúcia não têm a força de
uma lei. Estão mais distantes, não representam outros interesses
além do simples desejo de substituir um amigo privilegiado em um
trono vacante ou, exprimindo a voz corrente, supostamente mais
lúcida, aconselhar. N'A dama das camélias, o pai e Prudence
Duvernoy defendem suas posições: a respeitabilidade, a parceria
nos lucros da prostituição. Até o primeiro narrador, que não se
imiscui nos acontecimentos narrados, a não ser no fim, sustenta uma
posição: a moralidade um pouco lacrimosa de quem pratica
concomitantemente a capta tio benevolentiae do leitor.
As perspectivas divergentes, representadas por Sá, Cunha,
Rochinha, Couto, não influenciam o ânimo de Lúcia. Seu futuro, ela
o vai compondo, de acordo com suas escolhas e instintiva percepção
de sua realidade íntima. Paulo, intencionalmente ou não, deu-lhe
forças. Assim, poder-se-ia dizer que as bisbilhotices, pequenas
maldades e injustiças dos companheiros de boêmia permitem, por
contraste, ativar potencialidades e aprofundar o processo de mútua
integração dos amantes.
Da transição para diante, ou seja, da referência aos romances-
modelos até o final (a partir do capítulo XV ao XXI), o que era
aparência transforma-se no ser. Paulo acaba por entender a dua­
lidade de Lúcia, mas talvez isso só ocorra plenamente no tempo da
escrita, quando a enunciação dá corpo a um enunciado que, pouco a
pouco, revela, não a discordância entre o ser e o parecer, mas a
coexistência de dois modos de ser ou de uma personalidade em
conflito. A manifestação mais evidente da permanência desses
opostos é, no capítulo XXI, o gesto de Lúcia lançando-se a Paulo,
faminta do carinho e da sexualidade que ela mesma proscrevera.
Tal complexidade distancia Alencar e Dumas. Margarida, por
generosa que seja, sozinha não seria capaz de se sacrificar pelo ser
amado ou por um projeto de vida superior, de auto-aperfeiçoamen-
to, ainda que ditado pela moral social. Com Armando e os planos de
vida burguesa em comum, esquece o passado. O pai vem a Bougival
lembrar-lhe que o mundo não esqueceu. Em Lucíola, o desvenda-
mento de um enigma, que propõe o ser negativo e o parecer positivo

105
Alencar e a Franca: Perfis

chegando ao eu dilacerado, afasta uma saída de patético moralismo,


conquanto não evite o moralismo em si.88 A dicotomia dos senti­
mentos de Lúcia, através de descrições extremamente realistas ou de
imagens duplas, mostrará que essa opção alencariana se reproduz
também na determinação das "leituras projetivas":89 o próprio
Dumas , Bernardin de Saint-Pierre e Chateaubriand.

UM ROMANCE ENTRE VÁRIOS POSSÍVEIS


Os capítulos XV e XVII são fundamentais para a compreensão
de Lucíola. Situam-se no que chamei de transição entre a Lúcia-cor-
tesã e a Maria da Glória-moça de hábitos recatados, transição que,
na verdade, marca o limite da hegemonia de uma e de outra. Os dois
campos formam um movimento correspondente à tensão lentamen­
te anulada. A história da cortesã sinaliza o aproveitamento inicial do
modelo francês veiculado n'A dama das caméliaspara depois impor
os modelos de Paulo e Virgínia e A tala. Entre os dois capítulos, há o
intervalo do XVI, quando Lúcia, prolongando uma indisposição,
traz para sua companhia a senhora Justina. A dificuldade para ela
de continuar o convívio sexual produz, ou melhor, acentua um dis­
tanciamento e arrefece o que era, aos olhos de Paulo, a rotina
amorosa, o "doce hábito". Por isso, ela toma a iniciativa de procurá-
lo, tal como Margarida o fizera duas vezes com Armando, uma para
88. As soluções aventadas por Alencar são realmente duas: a da morte, que
acaba triunfando, e uma anterior, recusada por Paulo. E, como se recorda,
oferecer-lhe Ana em casamento. Se, entre os amantes, qualquer união legal
está proibida, por que não se conservarem um ao lado do outro por esse
arranjo? Tais acertos bizarros têm algo a ver com a concepção do casamento
por conveniência e, mesmo se paradoxais para um movimento literário que
faz a apologia do amor, aparecem em vários autores românticos ou ligados
ao Romantismo. No mínimo, dois deles estão na biblioteca de Alencar:
Feuillet em seu Monsieur de Camors e Balzac com O lírio do vale. Pelas
datas, Camors deve ser excluído. Mas Balzac? Que se enfatize, contudo, a
sensata recusa de Paulo e o fato de Alencar, geralmente, manejar com muita
discrição e bom gosto as sugestões européias.
89. A expressão remete ao artigo de Sandra Nitrini, Lucíola e romances
franceses. Leituras e projeções. Revista brasileira de literatura comparada
2,1994.

106
Lucíola

significar-lhe o perdão de uma carta injuriosa, outra para pedir uma


trégua na guerra que ele e Olímpia travam contra ela. Todos os casos
subentendem um pedido de reconciliação. Em Lucíola, motiva a
segunda discussão acerca de romances; n'A dama das camélias a
primeira trégua é marcada pelo presente de Armando a Margarida,
o livro Manon Lescautcom a dedicatória:
Manon à Marguerite,
Humilité(DC, cap. III, p. 36).
Entretanto, no romance brasileiro, quando os amantes reatam,
não se trata de mais um episódio da trama ou de um ressurgimento
lúgubre prenunciando o fim (segunda reconciliação de Margarida e
Armando). É indício de transformação, à maneira de um retorno às
origens. A "boa" prostituta recupera, como pode, seu passado de
pureza e ostenta a "bondade" que a profissão obrigava a ocultar.
Estão nos três intertextos as direções dessa transformação
preparada pelo amor que Lúcia sente em Paulo e do qual quer ser
merecedora. N'A dama das camélias acha-se o molde inspirador do
tema e da primeira parte do enredo: nos demais, as sugestões que
favorecem a decidida ruptura com a idéia dumasiana de total
redenção. Que tal ruptura faça de Lucíola um outro texto, não há
dúvida. O importante, porém, não é uma discutível tese inovadora,
e sim a perspectiva aberta ao arranjo e tratamento de um modo de
ser. A aproximação dos amantes parte da mesma atração de um
homem por uma mulher, profissional do amor, na qual ele
vislumbrou um substrato virginal. Em um caso, o possível equívoco
é trabalhado de modo a valorizar a personalidade própria da
cortesã; no outro, uma personalidade frágil vai sendo corrigida pelo
homem que a ama e orienta. Existe, desse modo, em Lúcia, uma dis­
posição para ser senhora de si mesma. Livre de injunções econô­
micas, ela sempre pôde tratar os parceiros de igual para igual, nos
limites das regras de seu meio, ou tomar decisões quanto aos rumos
de suas ligações. Por isso, ao apaixonar-se, tangerá a lira do amor, e,
posteriormente, a da renúncia ao sexo. A escolha inicial de Paulo não
o leva a tomar decisões. Pode-se dizer que ele atende ao chamado da
mulher forte, como o são, em sua maioria, as criações femininas

107
Alencar e a Franca: Perfis

alencarianas. Contudo, nenhum sinal subsiste da fatalidade


romântica que ronda o romance de Dumas:
moi, je crois tout simplement que j'étais destiné à
devenir amoureux de Marguerite, et que je le
pressentais(DC, cap. VII, p. 75).
Em nível mais fundo, a consciência chega, em Lúcia, a ponto de
captar a presença simultânea e interior de tendências contrárias. O
eu mais antigo e bom e o eu assumido como papel e profissão
poderiam indicar uma simples discrepância entre ser e parecer, que,
aliás, inverte-se na perspectiva ingênua de Paulo, não fosse a
irrupção de um no outro. É o que dimensiona a maneira de Lúcia.
Amparada em Paulo, sua motivação, terá condições de fazer
preponderar o eu do passado. E sua maior conquista não reside em
abandonar uma situação que lhe repugnava, mas em recuperar o
melhor de si, mesmo se a morte foi o preço a pagar. O sacrifício dos
fracos, no enfoque conservador de Alencar, tem uma contrapartida
na firmeza com que traçam suas vidas. Iracema não tão longe assim
da protagonista de Lucíola, também cede ao poder, poder do amor e
da História. Em ambos os casos, sobra às heroínas o consolo de terem
agido de acordo com suas convicções.
O modo como Alencar formula o itinerário até esses desenlaces
mesclados de lirismo ou de dramaticidade vai-lhes conferir valor
específico. Na lenda indígena, a personagem ignorava as restrições
religiosas e enfrentava, sem hesitação, o abandono da família e da
terra natal; no romance urbano supõe a luta sem tréguas contra o
próprio desejo, contra o desejo do outro. A verticalidade de Lúcia
seguramente não teve por espelho a reação de Margarida.
Em outro plano, também divergem os dois escritores. Ao rasgar
A dama das camélias, no capítulo XV, Lúcia recusa o tipo de ro­
mance que Lucíola poderia ser e, grosso modo, tinha sido até essa
altura. Os argumentos que precedem o gesto e o tornam compreen­
sível definem, de um lado, a própria "tese fisiológica" de Alencar e,
de outro, a que ele atribui a Dumas. Mulher e homem respectiva­
mente sustentam essas posições, abrindo no ritmo narrativo uma
pausa metatextual, crítica, retomada no capítulo XVII e reunindo em

108
Lucíola

discussão quase contínua o que n'A dama das camélias são umas
poucas observações literárias disseminadas ao longo do texto.
Neste, se descontadas alusões do primeiro narrador, é de
Manon Lescaut que se ocupam as personagens. Reprovando a con­
duta de Manon, Margarida então em Bougival pensa nas infide­
lidades e na sede de prazer, por conseguinte de dinheiro, que carac­
terizam o comportamento da outra. E Armando, na noite em que é
abandonado, vê casualmente o livro aberto sobre a mesa, acha ("il
me sembla") que algumas páginas foram umedecidas por lágrimas.
Margarida teria desejado lembrar-lhe que, apesar das aparências,
não era como Manon, fria e calculista? fora ela quem pensara em
adverti-lo por esse meio? Uma frase da edição de 1872 reforça essas
dúvidas acerca do livro:
Qui l'avait placé ici?(DC, n. 47, p. 363).
Ora, também Armando não gostaria de ser como Des Grieux.
Antes de aceitar uma proposta de Margarida para viverem no cam­
po, às expensas do duque, passa-lhe pela cabeça uma cena análoga:
a de Manon comendo com Des Grieux a fortuna de M. de B.90
A opinião do senhor Duval, por seu turno, vai em direção seme­
lhante, embora mais taxativa. Eles são ou Margarida é e Armando
será como as personagens de Prévost:
Toute Manon peutf aire un Des Grieux....
Ele pretende, no entanto, que não deve ser assim e continua:
[...] le temps et les moeurs sont changés. II serait
inutile que le monde vieillit, s'il ne se corrigeait
pas (DC, cap. XX, p. 228).
Sendo o pai a suprema razão vencedora, seria o caso de salientar
que também a Dumas não teria agradado a "tese fisiológica" dessa
provável fonte de inspiração. Seu texto veio atestar uma nova moral,
90. Cf. DC, cap. XIII, p. 154.

109
Alencar e a França: Perfis

a da burguesia nos tempos de Luís Felipe.91 Mesmo porque o pri­


meiro narrador, aquele que ouviu Armando e transmitiu o relato
desse fato particular e exepcional - a prostituta capaz de amar
seriamente - insiste em dizer "Je ne suis pas l'apôtre du vice" (DC,
cap. XXVII, p. 310).92 E justifica, na perspectiva literária, a razão de
escrever o romance, razão que pode ser vista como pedido de
desculpa para os censores, mas tende a eliminar qualquer leitura
menos conformista:
L 'histoire de Marguerite est une exception, je le
répète, mais si c'eût été une généralité, ce n'eût
pas été la peine de l'écrire (DC, cap. XXVII,
p. 310).93
Em Lucíola, Paulo assume frouxamente a defesa desse "primor
da escola realista", da redenção total pelo amor. Antes de sua
argumentação, leve-se em conta a explicação que dá para o gosto da
leitura como ditado pela possibilidade de identificação. O que Lúcia
dará a entender em relação aos dois outros romances, não aqui. Para
ela, as lembranças gravadas no corpo impedem de ser verdadeiro o
amor da prostituta. Com ironia, afirma que para esta só deve existir
o prazer. Quanto ao amor
91. Se Manon morre em conseqüência da cólera punitiva do Céu e dos inimigos,
Des Grieux, que jamais a deixou e obstinou-se sobretudo contra a
autoridade da geração mais velha, acaba decidido a "réparer, par une vie
sage et réglée le scandale de ma conduite" (ML, p. 242). Por esse lado, ele
inaugura, no romance francês, a série dos amantes melancólicos que não
esquecem, mas aceitam. O mau exemplo não reside nele, e sim em Manon
com sua força corrosiva. Enquanto ela viveu, ele ousou desafiar tudo e
todos. Será o caso de Armando Duval? A respeito, ver ainda o artigo de
Kaempfer, Faut-il tuer la Dame aux camélias. Poétique 92,1992.
92. É curioso comparar o que dizem as personagens, nos dois romances, sobre
o amor da cortesã que, dependendo do ponto de vista, afigura-se uma
bênção, um capricho, uma desgraça.
93. Sem dúvida, Paulo faz uma observação que aparentemente prolonga a do
romance francês: "Se não fosse a originalidade de uma vida que em quatro
meses passara aos meus olhos por tão profunda revolução, não teria nada
que lhe contar, e não valeria a pena revolver o rescaldo de minhas
reminiscências" (L, cap. XX, p. 444). Mas a exceção aqui é mais um processo
do que o caso.

110
Lucíola

[...] para uma mulher como eu seria a mais terrível


punição que Deus poderia inflingir-lhe! Mas o
verdadeiro amor d'alma; e não a paixão sensual
de Margarida, que nem sequer teve o mérito da
fidelidade(L, cap. XV, p. 402).
A dama dos cactos - Lúcia enfeita-se com eles em vária:
oportunidades94 - destrói o livro da vida de Margarida, a dama de outras flores, que, símbolo da prosti
pelo Cunha e são igualmente desprezadas:
Era um elegante vaso de cristal cor de leite,
representando uma tuberosa; a flor que lhe servia
de bocal ostentava uma camélia soberba [...] O
vaso e a flor acabavam de despedaçar-se nas
pedras da calçada (L, cap. XVI, p. 412 e 413).
Esses gestos liberam. Lúcia pode agora buscar similitudes em
outras obras, descobrir-se em outros textos. A seu lado, o leito
apreende - mais depressa do que Paulo - a reclusão da cortesã. E se
já tiver conhecimento do prólogo d 'As asas de um anjo saberá que
ela se prepara para viver
[...] o suplício de Tântalo de um amor partilhado e
não satisfeito, de um amor cheio de remorsos e
recordações pungentes, a acusação eterna, cons­
tante da consciência (As asas de um anjo, v. IV,
p. 926).
Bernardin e Chateaubriand hão de guiá-la. Este, até certo ponte
mais do que aquele. Com efeito, a leitura de um fica interrompido
pelas lágrimas de Lúcia, mal começara.

94. Remeto novamente às pertinentes anotações de Sandra Nitrini em Lucíola


romances franceses. Revista brasileira de literatura comparada 2.

11
Alencar e a Franca: Perfis

A PASTORAL DE BERNARDIN
Alterando a definição que Genette dá para o termo "arqui-
texto", entenderei por ele não apenas "o conjunto das categorias
gerais ou transcendentes - tipos de discurso, modos de enunciação,
gêneros literários etc." (Genette, 1982, p. 7) - mas as obras que, na
prática da literariedade, acabam desempenhando tal função. Diria
que, antes de ser objeto metatextual e intertexto em Lucíola, Paulo e
Virgínia assumiu o papel de texto de origem como forma e tom.95
Quando se pensa nas interligações entre o Romantismo e o
Modernismo no Brasil, entre José de Alencar e Mário de Andrade,
não se pode deixar de assinalar essa arquitextualidade de Bernardin,
mesmo se for para encará-la dentro das dessemelhanças com que se
exerceu. Em Amar, verbo intransitivo, cujo subtítulo é "idílio", há
um comentário que fecha a cena do primeiro beijo e alude à imitação
do idílio de Saint-Pierre. Usando essa passagem como referencial,
Telê Ancona Lopez aponta para o papel do escritor francês, no
século XVIII, retomando na prosa o que o suíço Gessner fizera na
poesia com o idílio - "um genêro antigo para o qual apresenta
soluções novas".96 O termo virtualmente sinônimo de pastoral, vai
celebrar a vida natural à maneira de Teócrito e Virgílio, mas do outro
lado do mundo, nos trópicos. É esta, no "avant-propos" a Paulo e
Virgínia, a primeira observação de Bernardin que recupera
simultaneamente a tradição do exotismo pitoresco. A beleza da
paisagem tropical, decantada pelos viajantes, será realçada pela
beleza interior e dos costumes. Mas o moralista Bernardin procura
também atingir o pathos de seu público. Quando um esboço "dessa
95. Genette, sempre às voltas com sua terminologia, lamenta que Louis Marin
tenha empregado "arquitexto" para designar "le texte d'origine de tout
discours possible, son 'origine' et son milieu d'instauration" (cf. G enette,
loc. cit., n. 2). Sem levar muito longe a discussão, creio que fico entre os
dois, reservando para o "texto de origem'' do tipo A dama das camélias
especificamente a qualidade de intertexto. Já Bernardin, como Balzac,
representam, com suas respectivas obras, também uma forma que foi
veiculada graças a elas: o idílio, a pastoral em prosa de um, o romance dito
balzaquiano de outro.
96. Uma difícil conjugação, estudo introdutório a Mário de Andrade. In:
A ndrade , 1984, p. 12.

112
Lucíola

espécie de pastoral" foi apresentado a vários leitores, o autor


experimentou a satisfação de vê-los todos chorarem. Vida
campestre, virtude, fidelidade ao mundo descrito, sentimentalidade
fácil, mais a visão inocente, juvenil de paraíso recuperado "à sombra
dos coqueiros, das bananeiras, dos limoeiros em flor"97 - eis os
componentes da nova "poesia pastoral" que tanto repercutiu no
final de um século entediado e princípios de outro desiludido.
O deslocamento geográfico a que obedecia a narrativa impli­
cava a convicção de que apenas em um espaço intacto, por conse­
guinte não-europeu, era possível ser livre; significava ainda a aber­
tura para uma afetividade mais espontânea; o conjunto levando a
uma linguagem revigorada, a um francês enriquecido com as ex­
pressões coloniais. Alencar e Mário, em seus respectivos projetos
para uma literatura brasileira, teriam as mesmas razões para se
aproximarem de Bernardin. Fariam dele leituras por vezes quase
opostas, Alencar sempre menos crítico e apreendendo, por tendên­
cia sua e de época, alguns aspectos epidérmicos. Para ambos, con­
tudo, o idílio de Paulo e Virgínia desdobrou lições de ser e de fazer:
o não-estrangeiro, a expressão nacional.
O Bernardin de Alencar não é, porém, uma presença fácil de ser
demarcada. Costuma-se aludir a ele como um tom, no que se repisa,
com variações, a crítica de Araripe Júnior, Por isso, a referência que
surge em Lucíola fornece uma pista preciosa, sobretudo se cotejada
com menções anteriores de Cartas sobre A Confederação dos Ta-
moios, que se acham nas missivas IV e VII. A princípio, enfatiza-se a
poesia das coisas simples:
Pois bem, meu amigo, recorde-se de Paulo e Vir­
gínia, e daquelas bananeiras que cresciam perto
da choupana, abrindo seus leques verdes às auras
da tarde, e veja como Bernardin de Saint-Pierre
soube dar poesia a uma coisa que nós considera­
mos como tão vulgar (CCT, p. 886).
97. O "Avant-propos" de Paul et Virginie é particularmente rico acerca das
intenções de Bernardin. Quanto ao significado de sua obra para a literatura
exótica da França, cf. C hinard , L 'Amérique et le rêve exotique dans la
littérature françaiseau XVIIe. etauXVIIIesiècle, 1970, p. 428.
Alencar e a Franca: PERFIS

Na sétima carta, há maior número de citações. Alencar lamenta


a falta de inspiração do texto de Magalhães:
Não sei; leio o poema, abro alguns livros, e vejo
com tristeza que a Itália de Virgílio, a Caledônia
de Ossian, a Flórida de Chateaubriand, a Grécia
de Byron, a Ilha de França de Bernardin de Saint-
Pierre, são mil vezes mais poéticas do que o Brasil
do Sr. Magalhães; ali a natureza vive, palpita,
sorri, expande-se; aqui parece entorpecida e sem
animação (CCT, p. 903).
- mais adiante, alude à linguagem e coloca a questão do símile:
A mesma observação se pode fazer a respeito da
linguagem que o autor atribui aos índios, e que
não tem aquele estilo poético e figurado, próprio
das raças incultas; à exceção de uma ou outra
comparação, às vezes forçada, não há nada que se
possa comparar às expressões símplices e gracio­
sas de Paulo e Virgínia (CCT, p. 906).
- finalmente, na nota 9, que se refere ao texto acima, exemplifica:
Para melhor fazer sentir a pobreza de linguagem
que o Sr. Magalhães põe na boca dos selvagens de
seu poema, traduziremos aqui um trecho de
Chateaubriand a respeito do romance de Bernar­
din de Saint-Pierre.
Segue-se a conhecida passagem de Bernardin, e não de
Chateaubriand a respeito de Bernardin, sobre a contagem do tempo
através de imagens:
Paulo e Virgínia não tinham nem relógios, nem
almanaques, nem livros de cronologia, de história
ou de filosofia. Os períodos de sua vida re-

114
Lucíola

gulavam-se pelos da natureza.


Conheciam as horas do dia pela sombra (CCT,
p. 921).98
Por essas indicações, constata-se o relevo dado por Alencar à
poesia do quotidiano natural, à necessidade de encontrar a modula­
ção poética para o registro da natureza brasileira, à linguagem ima-
geada dos povos incultos, expressa pela comparação e a cronografia,
isto é, as figuras que marcam o tempo a partir de ocorrências na­
turais. Trata-se de uma atitude crítica em uma fase que antecede de
alguns meses a publicação no Diário do Rio de Janeiro, dos folhetins
d' O Guarani. Em Bernardin de Saint-Pierre está a seduzi-lo a retórica
usada para a descrição das regiões tropicais e a fala dos homens que
aí vivem. Em que medida essa dicção aparece no romance indianista
(ou histórico) de 1857? Parcimoniosamente. O Guarani trabalha
pouco as comparações e a marcação natural do tempo.
Será interessante, por isso mesmo, discutir o equívoco em que
incide Alencar. Ao considerar Chateaubriand como autor de um co­
mentário, na verdade o próprio texto de Bernardin de Saint-Pierre,
ele revela um conhecimento precário da obra citada. Uma hipótese
ousada consistiria em afirmar que Alencar não teria ainda lido
Bernardin. Ou o fizera às pressas e aproveitara o capítulo do Gênic
do cristianismo no qual Chateaubriand analisa Paulo e Virgínia
como uma dessas obras que envelhecem rapidamente, no bom
sentido, porque se pode aludir a elas "sem receio de comprometer c
julgamento" (Chateaubriand, s/d., 2e partie, livre III, chap. VI, p
248). O consenso já as integrou à cultura.
Entretanto, Alencar refere-se às bananeiras perto da choupana
o que Chateaubriand omite. Ora, em Bernardin a passagem em que
delas se fala situa-se bem no princípio, logo após o relato do nas­
cimento de Virgínia. O escravo Domingos as plantara em torno das
cabanas da senhora de La Tour e de Margarida:

98. Localizada em Chateaubriand e Bernardin, essa passagem aparece no Géni


du christianisme, 2e partie, livre III, chap.VII, p. 249 (na edição consultada
v. I) e em Paul et Virginie, p. 77-8 da coleção Cent Chefs-d'oeuvre.
Alencar e a Franca: Perfis

II plantait [...] le long de la rivière, et autour des


cases, des banartiers, qui donnent toute l'année de
longs régimes de fruits a vec un bel ombrage (PV,
p. 30-1).
Enfim, já na carta que faz tal citação, sinaliza-se um processo
bem alencariano de transposição. E por ele talvez perpassem infle­
xões tomadas ao Chateaubriand que fala de ventos a soprarem, a
desfazerem castelos de folhagem."
Qualquer que tenha sido o grau de conhecimento em relação ao
idílio da Ilha de França (atual Maurício), o fato é que, por volta de
1860, Alencar não explorara as virtualidades dos procedimentos elo­
giados. Deslindar o nó de uma citação, aparentemente incorreta, le­
vará a compreender melhor (ou a refutar parcialmente) uma obser­
vação de Araripe Júnior acerca do estilo no escritor cearense. Teriam
concorrido para "a formação do estro de José de Alencar", e isso "se
torna bem patente pelas cartas aludidas" (sobre A Confederação dos
Tamoios), "os poetas, os escritores de veia oriental, nomeadamente
Victor Hugo e os confidentes do coração, Chateaubriand, Lamartine
e Bernardin de Saint-Pierre". O último ter-lhe-ia incutido "as gotas
mais dulçorosas da vida e do amor". Araripe, que valorizou em
Alencar, e desde O Guarani, o grácil, a miniatura, um certo rococó de
colorido realista, pôde assim propor os fundamentos de Iracema.
Deixou para Scott, Dumas, George Sand a influência sobre a constru­
ção, a forma externa da obra de arte (Araripe, 1958, p. 147-8).100
Ora, a ser pertinente a suposição por mim aventada, a presença
plena de Bernardin seria posterior, ou melhor, só alcançaria o ponto
99. A imagem em Alencar é, de modo geral, menor, tendendo à diafaneidade;
as de Bernardin muito simples, as de Chateaubriand suntuosas, com
desdobramentos inesperados. Não pretendo estabelecer uma escala de
valores, elas devem ser vistas nos respectivos contextos. Quanto a minha
referência, estou pensando na descrição extremamente plástica e musical
que começa por "C'étaient dans ses riantes hôtelleries" e termina com
"jamais les merveilles de 1'ancien monde n'ont approché de ce monument
du désert" (A, p. 56).
100. Para o crítico, o epílogo d'O Guarani seria um idílio capaz de rivalizar com
Paulo e Virgínia (A , 1958, p. 166-7); quanto a Iracema, "é uma
raripe
pastoral como a de Dáfnis e Cloé, como a de Paulo e Virgínia, como a de
Atala" (Idem, ibidem, p. 250).

116
Lucíola

alto de sua transfiguração mais tarde e certamente com Iracema.


Mas Lucíola já denota uma tentativa de desenvolver as sugestões
hauridas na pastoral francesa: o reencontro do mundo perdido e
paradisíaco da infância, o uso de técnicas descritivas baseadas no
símile e em expressões simples - que, como se viu, conotam questões
de linguagem e valorização do Novo Mundo. Se Alencar pouco as
utilizou n' O Guarani, onde se concentram na fala de Peri, serviu-se
amplamente delas em Lucíola. Prenunciando Iracema, o perfil da
cortesã está solidamente ancorado nas figuras de similitude e, como
a índia, sua evocação evoca o mundo em que ela vive. Por isso, nem
sempre as comparações são singelas: o assunto, o caráter da perso­
nagem vedam o lirismo sem angústias ou conflitos. Dir-se-ia, contu­
do, localizar-se, nessa obra, na sua prática de analogias, o esboço da
escritura de Iracema, que nisso deve pouco a Chateaubriand, distan­
te da simplicidade característica dos diálogos de Paulo e Virgínia:
Quand, du haut de la montagne, je t'aperçois au
fond de ce vallon, tu me parais, au milieu de nos
vergers, comme un bouton de rose (PV, p. 79).
O mon frère! les rayons de soleil, au haut de ces
rochers, me donnentmoins dejoie que ta présence
(PV, p. 80).
- ou das palavras do próprio narrador:
Qui est-ce qui demeure là-haut dans ces petites
cases? [...] Ce sont de bonnes gens. Ainsi des
violettes, sous des buissons épineux, exhalent au
loin leurs douxparfums, quoiqu 'on ne les voitpas
(PV, p. 56).
Deixando de lado, por enquanto, o estudo que se desdobra
tendo como apoio um tipo de texto descritivo, ou seja, as compa­
rações mais diretas e transparentes, atente-se para o primeiro
significado da pastoral. Ela vai infletir sobre a linha narrativa como
enredo possível, aquele que seria o da vida de Maria da Glória, se

117
Alencar e a Franca: Perfis

Couto, a senhora Justina e outros não a tivessem convertido em


Lúcia. A situação idílica proposta por Paulo e Virgínia tem, contudo,
alguns avessos que passam longe dos olhos de suas personagens e,
mais exatamente, de Alencar.
Com efeito, o texto francês não se restringe aos contornos de um
quadro onde o natural serve de antídoto a uma sociedade enferma
de civilização. Embora discípulo de Rousseau, e por isso recusando
o progresso que ignora as aspirações do ser humano, Bernardin
também acolhe uma série de incoerências: a vida da pequena
comunidade privilegiada se organiza com o braço escravo;101 a na­
tureza hospitaleira dos trópicos responde pela tragédia do naufrágio
onde morre Virgínia; a liberdade frente às convenções esbarra na
restrição ao sexo e curva-se ao argumento do dinheiro. Certamente
Virgínia é a vítima dessa traição a um ideal de naturalidade, traição
que sacrifica Paulo, destrói toda a família, deixa ao abandono a terra
outrora fértil. Tudo se perde: o retorno à simplicidade redentora
afigura-se irrealizável aos que já foram contaminados pelo veneno
da existência moderna. Explica-se a sedução exercida por Bernardin
sobre Chateaubriand. Muito antes de René, que condensa em seu
tédio niilista o impacto corruptor da civilização, levando à morte
todos os que, direta ou indiretamente dele se aproximam, as
personagens de Paulo e Virgínia vivenciam a devastação: a natureza
amena se transforma e a tormenta sepulta as ilusões de um poder de
regeneração e criação; do mundo desolador, nada se ergue. Ruínas,
melancolia ensombrecem o idílio.
O fato de a leitura do romance ficar nas primeiras páginas, na
infância dos amantes, antes da eclosão de um mal desconhecido, o
da passagem à idade adulta, é, observa Sandra Nitrini, um acerto
literário de Alencar: introduz o tema da dessexualização que a
conduta de Lúcia já prefigurava e Paulo não percebia.102 Evita o que
seria desnecessário: a falência do projeto natural, preservando no
modelo sua latente oposição extrema à Dama das camélias (do não-
sexo ao sexo). Mas o enredo que Maria da Glória poderia ter conhe­
cido limita-se a umas poucas situações dentro da realidade em que
101. Até que ponto, entretanto, essa particularidade melindraria uma
sociedade escravocrata como a nossa?
102. Cf. Nitrini, 1994, p. 142-3.

118
Lucíola

se abriga a cortesã regenerada. O virginal, então, reaparece.


Primeiro, no passeio a São Domingos, à casa em que Lúcia nasceu, o
que vem coroar uma época de "amizade fraternal e pura" quando
em suas saídas com Paulo ou na vida caseira, nela
[...] se revelaram francamente [...] as aspirações in­
gênuas para uma juventude perdida, os sonhos
vivos do passado, que desde muito tempo espon-
tavam por vezes através do luxo e a agitação de
uma vida elegante(L, cap. XVIII, p. 426).
Significativamente, o momento bucólico é associado ao
segundo encontro com Paulo:
Recorda-se da Glória? De lá olhei esta praia. O
senhor estava perto de mim. Mal pensava que três
meses depois aqui viríamos juntos (L, cap. XVIII,
p. 428).
A interrupção na linearidade do discurso, o efeito dessa espa-
cialização é o de amarrar as impressões de Paulo, naquele dia da fes­
ta popular, à realidade presente, escamoteando, por assim dizer, o
entreato das "ardentes expansões de sexualidade" (L, cap. XVIII,
p. 426).
Mas o obscurecimento da vida pregressa permanece no campo
das intenções. Lúcia conserva desse tempo um decalque que não se
apaga nem moral, nem fisicamente, o que a leva a transferir para a
irmã a efetivação do programa entrevisto em Paulo e Virgínia, como
segunda possibilidade de reviver a idade da inocência, do não-
saber. Oferecê-la em casamento a Paulo equivale a uma verdadeira
interposição de pessoa:
Ana se parece comigo; amarias nela minha ima­
gem purificada, beijarias nela meus lábios vir­
gens; e minha alma en tre a sua boca e a tua gozaria
dos beijos de ambos. Que suprema delícia... (L,
cap. XXI, p. 453).

119
Alencar e a Franca: Perfis

A recusa a esse "matrimônio ao mesmo tempo místico e vicá-


rio", na expressão de Wilson Martins (1977, p. 177), reconduz à me­
dida do Paulo moderado, terra-a-terra (o que faz suas contas antes
de unir-se a Lúcia), atento às próprias exigências.
A confrontação entre os dois temperamentos, também explícita
nas preferências literárias e, em parte, resultante da função pri­
mordial que Paulo atribui a Lúcia, emoldura a atitude dos amantes
na leitura de Bernardin. Denota ainda a habilidade com que Alencar
manipula a técnica do contraponto.
Durante a visita de reconciliação, Lúcia em casa de Paulo depa­
ra com as disposições do amante, francamente hostis aos planos de
modificar o grau e a natureza da intimidade entre ambos. O que um
quer, a outra contemporiza. Quando ele lê para ela o romance, pro­
vavelmente escolhido por causa do nome Paulo, a reação emociona­
da de quem está a ponto de cair em pranto, nele provoca outros pen­
samentos. Identifica-a não à protagonista inocente de Bernardin,
mas à estatueta Safo, feita por Pradier. Conquanto graciosa, a
escultura não permite pôr de lado as conotações implicadas na sim­
ples alusão à poetisa de Lesbos. Por extensão, desencadeia-se ainda
uma vez o processo de reconhecimento das repetições temáticas. Às
visões pastoris suscitadas por Lúcia e repisadas, como se acaba de
indicar, na parte final do romance, antepõem-se as da ceia com as
várias alusões às orgias da Antiguidade e à literatura que as celebra.
Da raiva às lágrimas, de Dumas a Bernardin, Lúcia oscila entre
o que sua vida é e o que deixou de ser. Suas leituras procuram e re­
cusam parâmetros de conduta, insinuando a intenção do autor:
mostrar a cortesã nem condenada, nem anjo, mas sem perdão. Por
outro lado, a opinião de Paulo denuncia uma postura de compla­
cência, mais descrente, indicativa mesmo de certo embotamento da
sensibilidade:
O livro que ela trouxe era esse gracioso conto de
Bernardin de Saint-Pierre, que todos lemos uma
vez aos quize anos, quando ainda não o sabemos
compreender, e outra aos trinta, quando não o
podemos sentir (L, cap. XVII, p. 419).

120
LUCÍOLA

A insinuação de convivência fraterna e inocente, que se revela


impossível, relegando a solução de Paulo e Virgínia ao domínio do
sonho, prepara aquela da opção por uma espiritualidade árdua, cujo
remate por mais infausto que seja, é, enfim, a libertação. Chega-se ao
terceiro intertexto: Atala. De novo entremeiam-se os fios. Bernardin
marcou profundamente Chateaubriand. O velho, testemunha dos
amores de Paulo e Virgínia, precede Chactas, precede Aubry. Aque­
le porque os dois narradores têm a mesma idade avançada; este,
porque ambos desenvolvem a mesma tópica da consolação, que vê a
morte como prevenção de males futuros. É o que ouvem Atala ago­
nizante e Paulo viúvo de seu único amor. E, na série de jovens
mortas românticas e pré-românticas, a francesa Virgínia, nascida em
terras da África, e a mestiça Atala, sangue europeu aliado ao indí­
gena, alimentam mais de um parentesco.
Enfim, o aproveitamento intertextual de Bernardin aponta para
outras marcas, embora mais tênues.103 Seria dele a sugestão da
escabiosa, de tão longo destino nos perfis? Virgínia manda da Euro­
pa algumas sementes e dá instruções para o plantio, descrevendo
também a flor:
La scabieuse, ajoutait-elle, donne une jolie fleur
d'un bleu mourant, et à fond noir piqueté de
blanc. On la croirait en deuil. On l'appelle, pour
cette raison, fleur de veuve (PV, p. 119).
Curiosamente, como já foi indicado, há de se atribuir a essa flor,
em Escabiosa/Sensitiva, maciez e secura, aspereza. Em Lucíola, a
idéia está presente na referência ao buço de Lúcia que, na pele aceti-
nada, é como o espinho nas rosas, e a seus dentes que dilaceram, mas
deixam bálsamo na ferida. Essa "primeira escabiosa" suscita em
Ernesto Sá "uma recordação importuna" (L, cap. X, p. 367). Não a de
uma cortesã, uma camélia, mas a da mulher casada, perfil que se
esboça nas poucas páginas do romance incompleto. Ao atraírem
103. Em Bernardin, encontram-se também passagens que mostram Paulo
oferecendo a Virgínia dádivas naturais, flores, frutos, ninhos de pássaros.
Lembram os presentes de Ceei a Peri. Contudo, é preciso assinalar que em
Ferdinand Denis (Os Maxacalis), há cenas semelhantes.
Alencar e a França: Perfis

para depois repelirem, erguem-se as mulheres-escabiosas como


flores dúbias; em outro plano, virgens e bacantes.
As linhas vão convergir, enfim, para a A tala de Chateaubriand,
acentuando, ao mesmo tempo, a intersecção entre o romance
indianista de Alencar e seus perfis.

SOB O SIGNO DA CONTRARIEDADE


Chateaubriand foi certamente uma leitura atenta do escritor. A
crítica assinala, quase com unanimidade, sua presença no romance
indianista, discordando, porém, quanto ao maior ou menor grau de
influência. A gama dos juízos estende-se da sugestão ou motivação
até, o que era de se esperar, à imitação servil.104 No entanto, com
poucas exceções, entre as quais Sandra Nitrini, não se analisaram
vestígios seus no romance urbano, embora a citação em Lucíola
constituísse uma pista bastante promissora.
Quase ausente de Ao correr da pena, talvez pela leveza de tom
exigido pela crônica jornalística, Chateaubriand surge nas Cartas
sobre A Confederação dos Tamoios. Desde o para texto introdutório
(edição em livro no mesmo ano dos folhetins), Alencar coloca-se sob
sua proteção e de Lamartine. Além de traduzir alguns trechos do
Gênio do cristianismo (leia-se de Paulo e Virgínia), de Viagem à
América e d 'Os Natchez, o escritor faz rápida menção à epopéia
d'Os Mártires e ao Itinerário.105 Quanto a Atala, ele extrapola, em
seus comentários, a perspectiva estrita da vida selvagem:
Milton criou a sua Eva, Byron, a sua Haidéia,
Ossian a sua Malvina, Chateaubriand a sua Atala,
e Coopera sua Cora [...] todos os poetas e todos os
artistas que inspiraram o seu gênio nesse assunto
divino da mulher se esforçaram por criar alguma
coisa (carta III, v. IV, p. 878).
104. Quando estudei as relações entre exotismo e indianismo, também cheguei
à conclusão que Chateaubriand representava, para Alencar, um estímulo
(cf. Pinto, 1995).
105. Itinéraire de Paris à Jérusalem, irr. Chateaubriand, 1969, t. II.

122
Lucíola

Entre as inúmeras deficiências apontadas em Magalhães,


estaria a de não ter trazido, para o poema nacional, uma figura
feminina como essas "imagens graciosas que a literatura con­
serva...". Ora, em Iracema, Alencar iria elaborar o tipo de sua
própria exigência. Sua personagem viveria, na floresta, uma
aventura semelhante à de Atala, conquanto se distinguisse por
características físicas e psicológicas a ponto de se ter convertido
justamente em expressão de brasilidade, em símbolo literário
nacional. Com Lucíola, outro aspecto de Atala foi explorado: o de
uma castidade em luta com o amor. Ou seja, enquanto Iracema,
personagem lírica por excelência, será a virgem que não hesita em
entregar-se ao conquistador branco, diferente, pois, da mestiça
dramaticamente presa a um voto materno, Lúcia enfrentará o
dilema de, amando, não poder ou sentir que não pode amar.
Novamente aqui, a personagem aproxima-se de um enredo que
deseja viver; novamente aqui, intertexto e metatexto, a referência a
um livro abre o diálogo das similitudes e diferenças e não exclui
críticas mais ou menos explícitas.
Começando por estas, é Paulo quem escolhe o volume a ler (ao
contrário, pois, da seleção de Paulo e Virgínia) e classifica como
encantador o trecho "em que a filha de Lopes declara ao jovem
selvagem que nunca será sua amante, embora o ame como à sombra
da floresta nos ardores do sol" (L, cap. XVII, p. 420).
Por várias razões, Alencar, através de seu narrador Paulo, trai o
texto francês que, de fato, sofre uma primeira mudança ao passar do
discurso direto ao indireto e uma segunda ao ser resumido em fun­
ção do que interessava à seqüência narrativa de Lucíola. E o que se
observa por uma consulta ao original:
Que de fois elle m 'a dit: 'O mon jeune amant! je
t'aime comme l'ombre des bois au milieu du jour!
Tu es beau [...]. Si je me penche [...]. L'autre jour
[...]. Oui, j'ai vu [...]. Eh! bien, pauvre Chactas, je
ne seraijamais ton épouse!(A, p. 57).
Se, em francês, os dois termos "amant(e)" e "épouse" são
usados um pelo outro, a opção por "amante" em Alencar vem carre­

123
Alencar e a França: Perfis

gada de conotações ideológicas e projetivas. Como Sandra Nitrini já


referiu, Paulo faz uma substituição de palavras que remete à proble­
mática do relacionamento entre ele e Lúcia. Nenhum dos dois, por
outro lado, encarava a possibilidade de um casamento. E isso fica
mais que evidenciado no momento da morte, quando Lúcia ousa
explicar como se sentia perante o homem amado:
Fui tua esposa no céu! E contudo essa palavra
divina do amor, minha boca não a devia profanar,
enquanto viva. Ela será meu último suspiro (L,
cap. XXI, p. 457).
Purificando, mas imaterializando, só a morte traz, portanto, a
definitiva conciliação.
Há mais: ao inverter a ordem das idéias que, originalmente,
coloca a confissão de amor antes do impedimento, o texto brasileiro
dá ênfase à dificuldade. Releve-se também a adaptação à paisagem
tropical e, sobretudo, à tensa situação vivida no momento por Paulo
e Lúcia, quando o narrador traduz "au milieu du jour" por "aos
ardores do sol".
Desse modo, as palavras substituídas e interpretadas, bem
como a mudança na ordem sintática, já representam uma transferên­
cia para a intriga amorosa de Lucíola. Ocorre a identificação de Lú­
cia com Atala, na medida em que aquela vê na abstinência sexual
uma solução para ela e Paulo e porque não lhe será possível, efetiva­
mente, reconstituir a virgindade perdida. Se essa leitura também foi
suspensa, não o sabemos.106 Paulo, entretanto, conhecia a continua­
ção, o que se percebe no comentário sobre os motivos de Atala. Com­
parados aos que Lúcia pode aventar, parecem-lhe mais relevantes.
Lúcia vai responder-lhe em duas etapas. Na primeira diz
enigmaticamente:
- Alguns espinhos que cercam a rosa valem o
veneno de certas flores? Um voto é coisa santa;
106. Sabemos, porém, que Lúcia não concluiu A dama das camélias:
Realmente este livro não presta. Nem quero acabá-lo. Cometeu-se aí
um sacrilégio literário" (L, cap. XV,‘p. 403).

124
Lucíola

mas a dor da mãe que mata seu filho é horrível (L,


cap. XVII, p. 420).
A imagem da primeira frase é altamente erótica. Nela se retoma
a rosa como sexo, mas, ao contrário de qualquer simbologia galante,
as flores também são venenosas. Assim, a virgindade-espinho que
protegia Atala defende menos que o veneno. Que veneno? Aquele
letal escondido na carne marcada pela infâmia.
Na réplica seguinte, completa-se o pensamento:
- Queria dizer que se eu fosse Atala, poderia
perder a minha alma para dar-lhe a virgindade
que não tenho; mas o que eu não posso é separar-
me desse corpo.
Lúcia caminha com a morte dentro de si, a putrefação causada
pelo pecado. Ceder ao amor, o amor que mata a alma, ainda é possí­
vel; o impossível é redimir-se.
A conversa, que não prossegue, será esclarecida mais no final
do romance. A hipótese de ficar grávida, na época em que assim
conversavam, após a separação assinalada no início do capítulo XVII
- "Havia mais de quinze dias que já não ia à casa de Lúcia" (L, cap.
XVII, p. 414) -, deixava Lúcia horrorizada. O amor de salvação, o
amor que a salvaria do amor, não permitia nenhum afeto carnal.
Nem o de um filho, gerado do sangue de ambos. A maternidade
(como o ser esposa de Paulo) é o impossível porque traria vida à
carne morta. O filho, portanto, há de perecer quando concebido,
levando a mãe e coroando, por assim dizer, sua penitência.
E, como Chactas, vivendo os últimos instantes de Atala, Paulo
assistirá à agonia de Lúcia. Sentado, com "a testa apoiada no recosto
do leito" (L, cap. XXI, p. 456). O índio de joelhos "a cabeça ao pé do
leito de Atala" (A, p. 86).107 Ambas morrem confortadas pela reli­
gião, em "êxtase", esta tomando a comunhão, aquela pedindo ao
amado que a receba.108
107. "[...] la tête au pied du lit d'Atalá".
108. O castigo das "culpadas" varia, por exemplo, n'A dama das camélias, onde
Margarida morre só, ou em Manon Lescaut, que mostra os amantes
sozinhos no deserto e a pobre Manon agonizando.

125
Alencar e a Franca: Perfis

Se a comparação indica uma diferença inicial, ou seja, a


diversidade dos motivos, o modo de enfrentar o problema pela pro­
vação sexual une as duas protagonistas. Quanto à solução, ambas,
direta ou indiretamente, consomem o "veneno" que acabará por
levá-las ao túmulo. E os co-responsáveis pelo ato assistirão
impotentes ao desfecho da ação cuja "moral" é religiosa e, por que
não, irônica em Atala, social em Lucíola. Lá, a ignorância, aqui o
preconceito.
Entretanto, não se exaure aí a relação intertextual. À dramati-
cidade da intriga responde a da personagem central. Chateaubriand
escrevia no prefácio de seu livro:
C'est une chose qu'on n'a pas assez développée,
que les contrariétés du coeur humain: elles
méritaient d'autant plus de l'être qu'elles tiennent
à l'antique tradition d'une dégradation originelle
et que conséquemment elles ouvrent des vues
profondes sur tout ce qu'il y a de grand et de
mystérieux dans l'homme et son histoire (A,
p. 20).
Sem esquecer o projeto inicial de Atala, que ilustraria, como de
fato o fez na edição de 1802, uma tese do Gênio do cristianismo - a
das harmonias do cristianismo com as cenas da natureza e as paixões
do coração.109 Acrescente-se que as "contrariedades", aqui tomadas
no sentido de "oposição entre coisas contrárias" lembram os
procedimentos da tragédia. Comentando Os Natchez, Chinard já
evocava não o gênero trágico em si, o "arquitexto" de Genette, mas
sua espécie ou modalidade histórica, a tragédia francesa: "pois nós
sempre gostamos de descrever essas crises psicológicas, esses
tormentos da alma que trazem à tona as virtudes e os vícios ocultos"
(Chinard, 1918, p. 231-2). Mais adiante, assinalaria que o conflito
torturante se manifesta em várias personagens de Chateaubriand:
Céluta, Mila, Outougamiz, Velléda, Atala,.. Ele há de convir à pai­
109. Atala foi lançada, a título de balão de ensaio, um ano antes do Gértie du
christianisme, onde apareceria, na edição original de tomo III, p. 184-301.

126
Lucíola

xão romântica pelos contrastes. Seria longo e fora de propósito


discutir aqui as variantes dessa temática do oposto e como a encon­
tramos ao longo da literatura ocidental desde a Idade Média, pelo
menos. Se ela tem ou não origem na religião cristã, como postulam
Victor Hugo em Crom welle, entre outros, o próprio Chateaubriand
no Gênio do cristianismo,™ o fato é que os românticos a exploraram
muito nesse sentido.
Ora, quando se passa a Alencar, exclui-se quase sempre o
religioso, ou seja, laiciza-se a colocação dos contrários, explorada em
outras perspectivas. Passado-presente, campo-cidade são vistos à
luz de uma outra dinâmica, mais atual certamente, a de um mundo
dominado pelo interesse que a tudo desvirtua. É o dinheiro o agente
corruptor por excelência, e, por ele, são depravados os caráteres
mais nobres. Entretanto, eu diria que as "contrariedades" estudadas
por Chateaubriand, se não foram o dado essencial para fazer de
A tala uma das significativas figuras do incipiente romantismo da
narrativa francesa, podem ter mostrado a Alencar um caminho que
ele trilharia não só em Lucíola como nos demais perfis de mulher. A
"aberração do viver comum", segundo o próprio Alencar, constitui
traço decisivo para "entender Lúcia, Emília e Aurélia" (PAN, p. 150).
Essa aberração reside na incompreensível e paradoxal atitude das
três, que, por motivos diversos - desejo de recuperar a inocência
perdida, pudor exagerado, orgulho desmedido - enfrentam a tensão
do sexo reprimido.
Retomando os demais textos narrativos urbanos, encontra-se o
mesmo jogo de oposições, como se ele sempre tivesse estado
presente em Alencar. Os impulsos contraditórios de Carlota (Cinco
minutos), ousada e arisca; de Carolina (A Viuvinha), fiel e infiel ao
primeiro amor, prenunciam os de suas irmãs mais jovens, que o
tempo foi criando na pena de Alencar. Com ser marca romântica,
nem por isso as diferenças radicais deixam de ter em Chateaubriand
um referencial.111
110. "Le christianisme qui a révélé notre double nature et montré les
contradictions de notre être..."(2e. partie, livreIII, chap. 1, p. 232).
111. Marlyse Meyer estudou a rede de "pares contrastados" nos relatos de
cunho indianista, em paralelo com o modelo francês exótico de Atalae Les
Natchez (Meyer, 1973, p. 293-313).

127
Alencar e a Franca: Perfis

A citação de Atala, no nível do intertexto explícito e metatexto


presentes em Lucíola, oferece, portanto, elementos para entender a
elaboração da personagem. O que atrai Lúcia é a analogia com seu
projeto de castidade, em graus variáveis o mesmo de Diva e
Senhora, e, por extensão, a "contrariedade" de um comportamento
que responde à "contrariedade" em que a vida lançou as perso­
nagens. No romance urbano, a fusão lírica ou a integração épica que
não interiorizam as contradições convertem-se em movimento dra­
mático, em crise, cujo desfecho está na perspectiva de vencer o
obstáculo ou ser por ele derrotada. A morte de Lúcia, se permite
afirmar que realiza o desejo de transcendência, por outro lado,
representa a transcendência fatal, única aceitável na lógica da
personagem, dentro da sociedade a que ela e seu criador pertencem
e cujas normas absorveram.
Assim, à dualidade mestiça, fundamento das superstições de
Atala, corresponde a dualidade moral de Lúcia que se divide entre
corpo e alma, entre impulsos sexualmente contraditórios e
coexistentes.
A imagem do tanque, cujas águas não devem ser turvadas,
revela também quanto se entrelaça a leitura de Chateaubriand ao
texto alencariano. Modificada embora, ela remete ao final do relato
de Chactas filosofando melancolicamente acerca da felicidade
impossível. Cotejem-se as passagens:
Le coeurleplus serein en apparenceressemble au
puits naturel de la savane Alachua: la surface en
parait calme et pure, mais quand vous regardez
au fond du bassin, vous apercevez un large
crocodile, que le puits nourrit dans ses eaux (A,
P-91).
Não sei como me veio semelhante idéia! Vendo
esta água tão clara toldar-se de repente, pareceu-
me que via minha alma, e acreditei que ela sofria,
como eu quando os sentidos perturbam a doce
serenidade de minha vida. [...]
- Naquele dia... não soube explicar-lhe...Eisto!

128
LucIola

Veja! A lama desse tanque é meu corpo: enquanto


a deixam no fundo e em repouso, a água está pura
e límpida! (L, cap. XVIII, p. 429).
As duas comparações, do coração-poço natural e de Lúcia
(corpo e alma)-tanque, fundam-se em contrastes. Da aparência com
a essência no primeiro caso: os dois verbos "regardez" e "apercevez"
indicam o ato consciente de ver algo que não se oferece claramente
ao olhar. Esse algo - o crocodilo - é a ferida oculta sob a serenidade
da superfície. Em Alencar, a lama do corpo, extensão metonímica da
idéia do animal na outra imagem, é recoberta pela água límpida da
qual não se separa totalmente e que representa a alma. A superfície
líquida é serena, a lama é o que suja e perturba. Ao contraste apa-
rência-essência que se oferecem a duas modalidades do "ver",
Alencar responde com a dualidade moral a que se resume a
personalidade cindida de Lúcia. A verdade da vida está no crocodilo
cuja presença se dissimula, o resto é engano e ilusão. Em Lúcia,
coexistem dilacerantes a matéria e o espírito, a primeira prestes a
desorganizar o segundo, quando desperta por um gesto ou um
objeto que a atingem. A água não é, está transparente. Poderá assim
permanecer, quer assim permanecer. A comparação em Alencar
envolve o choque de duas vontades; em Chateaubriand, ocorre uma
descoberta, um desvelamento.
Mas a semelhança na estruturação de comparados e corn-
parantes (o crocodilo está no fundo da água calma e pura que o
alimenta; a lama repousa sob a água limpa que naturalmente a
embebe) permite identificar os procedimentos e apreender as trans­
formações. Alencar desloca para o plano do particular o que era, em
Atala, uma consideração de ordem geral, ainda que fundada na
vivência e sabedoria da personagem.
Que a referência é o texto de Chateaubriand não deixam dúvi­
das as expressões hesitantes que abrem o segundo parágrafo: "Na­
quele dia... não soube explicar-lhe..." Esse dia é o da cena descrita no
início do mesmo capítulo XVIII, em que ocorre o diálogo. Após a
visita a Paulo, quando ambos leram e comentaram os romances de
Bernardin de Saint-Pierre e de Chateaubriand, Lúcia, que prometera
entregar-se ao amante, embriaga-se e Paulo renuncia a seu desejo.

129
Alencar e a Franca: Perfis

Na justificação que vem a seguir, a moça tenta em vão


compreender suas sensações. Sabe apenas que:
Se eu tivesse ainda minha mãe expirante diante de
meus olhos, amaldiçoando-me no seu último solu­
ço; se por algum crime infame me açoutassem nua
pelas ruas, cuspindo-me às faces no meio das
vaias do povo, creio que não sentiria o que sinto
nesses momentos. Por que razão? (L, cap. XVIII,
p. 425).
As duas situações de humilhação e sofrimento oferecem ainda
aqui a visualização de um movimento interior, no qual prepondera
o sentimento do asco pelas injunções do sexo. A última comparação
é a da pecadora exposta à execração no horror imemorial do ser mar­
ginalizado, vilependiado; a primeira retoma o pesadelo de Atala
ameaçada de maldição pela mãe agonizante, caso rompesse o voto
de castidade:
Ma mère me menaça de sa malédiction, si jamais
je rompais mes voeux (A, p. 75).
Se Paulo foi, dentre as personagens, quem leu na íntegra a
história da filha de Lopes, nem por isso, por trás de Lúcia, deixa
Alencar de evocar seqüências e fragmentos que levam a esse
entrecruzar de textos, sinalizador de quase citações sem aspas, de
uma fixação ultrapassando os limites do exótico até ressaltar
padrões romanescos. Eu diria que, no nível das camadas profundas,
a voz de Chateaubriand tem uma ressonância forte, que não cessa
mesmo quando sintagmaticamente avulta a narrativa de Dumas
Filho. A cortesã curva-se ao paradigma encarnado, proposto pela
virgem cristã e selvagem, aspira à identificação possível e
compatível com seu projeto de regeneração. Lúcia sente-se Atala e,
através dela, o leitor percebe que, uma vez mais, Alencar é aqui o
grande leitor de Chateaubriand.

130
Lucíola

A DUALIDADE TRANSFIGURADA
E TRANSFIGURADORA
A idéia da cortesã-virgem está em Dumas, assim como seu
orgulho e independência.112 Na personagem alencariana, como já
ficou dito, o senso de liberdade manifesta-se na capacidade para
viver às próprias custas. A origem do dinheiro de Lúcia e a habili­
dade de que ela se socorre na gestão de seus bens são justificadas
pelo objetivo de garantir um futuro para a irmã e facilitam ainda sua
escolha de uma nova existência. Quanto ao contraste extremado, ele
é transferido de um caráter primitivo para outro civilizado; da situa­
ção de inocência para a de degradação, ainda que, a rigor, em ambos
os casos, se entreveja uma espécie de bondade natural remotamente
rousseauísta. O contorno da personalidade de Lúcia, porém, não se
afirma apenas nos gestos que conduzem a ação. Reflete-se no eixo
paradigmático formado por imagens que, insistentes, vão impri­
mindo ao texto nuanças que não se encontram em Dumas, parco em
descrições, tampouco em Chateaubriand, mais preocupado em dizer
o que sente diante do objeto contemplado do que em reter seme­
lhanças de detalhe.Talvez se inspirem nas sugestões de Paulo e
Virgínia.
Cabe, portanto, focalizar Lucíola por esse ângulo que, geral­
mente, permanece à sombra enquanto rutilam as cenas eróticas ou
se acendem discussões em tomo do desenlace.113
A imagem, como representação de uma realidade abstrata ou
material, em termos de analogia e similitude, compreende
fundamentalmente comparações, metáforas, alegorias, símbolos.114

112. "Bref, on reconnaissait dans cette filie la vierge qu'un rien avait faite
courtisane, et la courtisane dont un rien eút fait la vierge la plus
amoureuse et la plus pure. II y avait encore chez Marguerite de la fierté et
dè l'indépendance: deux sentiments qui, blessés sont capables de faire ce
que fait la pudeur" (DC, cap. IX, p. 102).
113. Contudo, Cavalcânti Proença, Antonio Cândido, Sandra Nitrini e Valéria
De Marco anotaram procedimentos descritivos.
114. Trata-se de uma conceituação bastante comum, mas que, a meu ver, aplica-
se ao caso específico de Alencar. Sendo das mais usuais, afasta-se, em
princípio, daquela tão poética de Bachelard (a imagem como produto da
imaginação pura, criadora de linguagem) ou de outra, mais intelectual,

131
Alencar e a Franca: Perfis

Em Lucíola, essa realidade representada concentra-se, embora não


exclusivamente, nos contrastes de temperamento e de compor­
tamento. Entrelaçadas, as imagens respondem por uma urdidura
que busca aclarar, estabelecer liames, individuar. Eis o motivo por
que importa menos apanhar-lhes a articulação retórica do que, na
tela do romance, colher a disposição de seus fios.
Assim, tomarei inicialmente as imagens que relacionam Lúcia
com o mundo animal e vegetal. Plantas e flores tendem a revestir-se
de um valor positivo, enquanto feras e répteis conotam elementos
negativos, assumindo a flora e a fauna o contraste quase maniqueís-
ta que, na mulher decaída, separou o espírito da matéria.
A lembrança de Paulo, à hora de deitar, entre "sono e vigília",
enfeixa os extremos. Instalara-se uma contradição entre a visão da
"encantadora menina" e a da "linda moça", uma na rua das
Mangueiras, outra na festa da Glória (L, cap. II). Paulo as reúne em
sua memória e, como narrador, dirigindo-se à sua narratária e
editora, formula a seguinte comparação:
Nunca lhe sucedeu; passeando em nossos cam­
pos•, admirar alguma das brilhantes parasitas que
pendem dos ramos das árvores, abrindo ao sol a
rubra corola? E quando ao colher a linda flor, em
vez da suave fragrância que esperava, sentiu o
cheiro repulsivo de torpe inseto que nela dormiu,
não a atirou com desprezo para longe de si? (L,
cap. II, p. 317).
A imagem é forte: o "torpe inseto" cujo odor impregna a para­
sita ressurge na obstinada figura masculina que, assediando a mu­
lher, a converte em objeto do sexo.115 A essa situação correspondem
dos surrealistas (a imagem como criação pura do espírito, aproximação, e
não processo comparativo, de duas realidades tanto quanto possível
afastadas), e que, sem dúvida, devem muito às propostas de Rimbaud.
115. Camufla-se, aliás, um sentido mais amplo. Paulo fala primeiro do que
encontra e, conseqüentemente, do que esperava encontrar. Depois, alude
ao inseto; enfim, atira a flor, pois é ela que repugna. No romance, como na
vida social, à cortesã caberá o ônus da prostituição. Esta, pelo menos, é a
atitude de Sá, do Cunha, do Couto, do Rochinha.
Lucíola

inúmeras comparações e metáforas: os desejos são "tigres famintos


da presa em que uma vez se tinham cevado" (L, cap. V, p. 330). Pau­
lo vai mais longe e, com ele, Alencar "vai tão longe quanto é
possível" (Cândido, 1959, v. II, p . 231). Para além do prazer que se
dá a um amante, existe a degradação de cevar pela vista a
concupiscência de muitos, como "a brutalidade da jumenta ciosa
que se precipita pelo campo, mordendo os cavalos para despertar-
lhes o tardio apetite" (L, VIII, p. 352).
E a prostituta, na sociedade que não a dispensa, porém a repele,
é o "verme" que rói "o corpo dos pássaros" (L, cap. X, p. 366). E de
sua carne maldita, brota o filho-verme (L, cap. XXI, p. 451).
O embate entre Paulo e Lúcia, porque envolto pelo amor, não se
constitui em mero jogo de emoções violentas. Tem vislumbres de
primaveril beleza quando se descreve a voluptuosa sala da casa de
Sá, onde móveis suspensos à parede pairavam sobre "a orla ave­
ludada que cercava a mesa", e essa orla "parecia abrir os braços ao
homem ébrio de vinho ou de amor, convidando-o a espojar-se na
macia alcatifa, como um jovem poldro nas cálidas areias da várzea
natal" (L, cap. VI, p. 340).
Por vezes, entretanto, essa intensidade passional chega à con­
templação perversa e sádica do vício estimulado: "fazê-los (a Lúcia
e Couto) arrastar na mesma canga a crápula ignóbil, ferroando-os
com o aguilhão do meu sarcasmo" (L, cap. XIII, p. 390).
Enfim, o homem é um animal, o mais estúpido quando civili­
zado, egoísta, carniceiro, de fomes caninas, fraco diante da tentação
como um cão lançando-se sobre o osso que lhe atravessará a gar­
ganta.116
Não é de se espantar, então, que imagens alimentares e canibais
freqüentem o texto. Abra-se aqui um hiato criado pela ligação
caçador/caça, carniceiro/presa e representado por variantes com­
parativas que escapam ao reino animal. Assim, a mulher que ceva -
e o termo se repete muitas vezes - é também comida, iguaria, taça e
cálice de prazer. A mais feroz dessas imagens é a do pasto, o corpo
prostituído pasto dos homens hoje, dos vermes amanhã. Chega-se
assim às imagens canibais. Paulo gostaria de matar Lúcia:
116. Cf. L, cap. XIII, p. 392; cap. V, p. 330; cap. X, p. 367.

133
Alencar e a França: Perfis

É verdade, tinha frenesi de matar essa mulher:po­


rém matá-la devorando-lhe as carnessufocando-a
nos meus braços, gozando-a uma última vez, dei­
xando-a já cadáver e mutilada para que depois de
mim ninguém mais a possuísse (L, cap. XIII,
p. 392).
A necrofilia, ainda que figuradamente, reproduz-se em outra
passagem. O corpo gelado e insensível de Lúcia, que não mais
suporta o contacto sexual, lembra a Paulo os cadáveres com que os
coveiros de cemitério, "abutres da lascívia", saciam seus instintos (L,
cap. XVIII, p. 423).
Se o homem come, devora, mata, ou tem ímpetos de fazê-lo é
porque, por outro lado, persiste em seu imaginário a figura da mu­
lher castradora que inibe e mutila sua sexualidade. Como prostituta,
e prostituta que não se dobra aos caprichos dos amantes, conservan­
do sua liberdade, Lúcia cria para si esse espectro. A serpente, símbolo
de asco e pecado, é extremamente recorrente quando serve para iden­
tificar Lúcia ou o que lhe pertence. Suas tranças negras são "serpes vi­
vas" (L, cap. VIII, p. 350); o leque vermelho do primeiro encontro será
uma "áspide" para a moça que deve sair com o Couto (L, cap. XIII,
p. 391). E Paulo pensa que, ao despedaçar o livro de Dumas, Lúcia pa­
recia antes "estrangular uma víbora" (L, cap. XV, p. 403).
Entretanto, fonte de destruição, a própria Lúcia, e não apenas
aquilo que se afigura como uma extensão de seu corpo, surge como
"serpente que enlaçava a presa nas suas mil voltas, triturando-lhe o
corpo" (L, cap. IX, p. 356). De caça, ela se converte, então, na fera
rapace. Mais delicadamente, Paulo atribui-lhe meneios de cobra,
sempre temendo o "dente de uma víbora" na boca da mulher amada
(L, cap. V, p. 328).117 Sá, ao apontar os perigos a que Paulo se expõe,
vê no capricho amoroso das prostitutas, entre as quais inclui Lúcia,
o ímpeto devorador, não de uma fome a satisfazer, e sim de uma
degradação a compartilhar. O prazer oferecido mescla-se, então, à
dor que suscita, a dor ao bálsamo que revivifica, e, nesse jogo, sobra
o nojo com que o amante é beijado.
117. Ver ainda L, cap. XIV, p. 398.

134
Lucíola

Tais imagens refletem o medo da mulher e, ao mesmo tempo, o


desprezo que ela inspira:
5e for necessário aviltar o homem, ela o fará, à
semelhança desses torpes glutões que cospem no
prato para que os outros não se animem a tocá-lo
(L, cap. X, p. 366).
É uma devoração do corpo e do espírito, uma redução ignóbil
do homem a quem ela diz amar. O discurso de Sá mostra-se contun­
dente. De qualquer forma, ele espelha o sentimento que os homens
nutrem pela vítima /algoz de que desejam ser comparsas, desde que
ela não os contamine.
Mas Lúcia traz em si o germe não esmagado de sua pureza. O
lado parasita de sua personalidade assoma na "gazela" que foge ao
perigo, no caso os convivas maledicentes da ceia em casa de Sá , na
"ave de arribação" que não perdeu a marca de distinção trazida de
"remotas regiões" ou no seu canto alegre de cigarra desperta.118
Essa presença de uma dignidade recuperada e de uma inocên­
cia antiga fica mais evidente nas imagens florais. O capítulo XI abre-
se por uma comparação que não oculta o enraizamento na realidade
brasileira, prolongando a imagem da parasita de "nossos campos":
Encontram-se nas florestas do Brasil árvores
preciosas que, feridas, vertem em lágrimas o
bálsamo que encerram.
Assim era, quando uma palavra involuntária da
minha parte ofendia-lhe a suscetibilidade e ba­
nhava-lhe o rosto de pranto, que Lúcia me reve­
lava toda a riqueza de sua alma (L, p. 372).
O corpo também evoca a paisagem natal. Quando preso nas
roupas mais austeras, da fase de purificação, desperta em Paulo o
paralelo com "as flores do trópico": beleza criada para a luz do sol,
para a visão e os sentidos, não deveria ocultar-se.
118. As expressões citadas estão em L, cap. VIII, p. 355; cap. XX, p. 444 e
cap. XX, p. 445.

135
Alencar e a Franca: Perfis

A referência à paisagem brasileira vai expandir-se em um quase


símbolo diferenciador, o do cacto selvagem. Com efeito, pelo "cacto"
e pela "camélia" passa a oposição com o romance europeu. Lúcia, ao
tentar recuperar, por amor e graças ao amor, o passado perdido, é
vista "como o cacto selvagem", "que se abria na sombra e no
silêncio" (L, cap. XVII, p. 422). Lúcia-cacto difere de Margarida-
camélia não só porque faz de seu emblema um signo privado (não o
usará em público, mas com ele enfeitará seus cabelos na simpli­
cidade da vida doméstica), como também porque com ele marca seu
lado primitivo, primeiro, selvagem. Enquanto a camélia brilha na ci­
vilização, o cacto que desabrocha encontra-se no recato dos espaços
tranqüilos, nessa intimidade do lar brasileiro a que Lúcia almeja
retornar. Refugiando-se posteriormente no campo, recusando o se­
xo, a ex-cortesã visa a uma dupla pureza - a do próprio meio físico e
a dos costumes -, característica de sua recuperação e do romance
que acentua a diferença, romance da brasilidade referendada pelo
cacto.
Contudo, é na relação com Paulo, responsável pelo despertar da
consciência adormecida no vício, capaz de fortalecer o ânimo dessa
prostituta que jamais o foi totalmente, que se delineia o drama da
mulher no ato de reerguer-se. A situação escrava/senhor manifesta-
se com freqüência, seja na perspectiva de Paulo contemplando
Lúcia, seja no reconhecimento da própria moça que, em conversa, o
chama de seu "dono e senhor" e se diz sua "escrava humilde" (L,
cap. XI e XIV, p. 371 e 396).119
Uma imagem que, mais tarde, Alencar desdobrará em Iracema
para assinalar a dependência da índia ao branco, mas dependência
amorosa e profunda, faz aqui sua estréia: a da planta trepadeira a
enlaçar o tronco das árvores. Nela se resumem a intimidade dos dois
amantes e a solidariedade que os aproxima. Paulo usa a concreção
do símile para explicar a natureza sutil da situação em que ambos se
119. N'A dama das camélias, Margarida diz a Armando: "Ne suis-je pas votre
esclave, votre chien?" (cap. XXIV, p. 275) e inversamente Armando a
Margarida: "...je suis ton esclave, ton chien". Em Lucíola, Paulo assim se
expressa, quando a amante beija-lhe a mão: "Seria a imagem viva da
humilde fidelidade do cão, afaganfo a mão que o acaba de castigar?"
(cap. XII, p. 380).

136
Lucíola

encontram e cuja compreensão, de certo modo, escapa-lhe. É como


narrador que consegue entendê-la:
Há de ter visto em nossas matas algumas árvores
estreitamente abraçadas pelas delgadas enrediças
que lhes cingem o tronco [...] Um dia vem a
borrasca que abala com rudeza o arvoredo: não
conseguem os ímpetos da ventania quebrar os
elos que prendem as duas plantas amigas; porém
a enrediça deslizando inclinou para a terra. Volta
a bonança: a seiva expande-se com as águas que
passaram; o pâmpano tocando o chão começa de
lastrar; a haste da árvore desassombrada se lança.
No ano seguin te [...] verá o tronco nu e isolado, e o
verde dossel bordado de flores que o cobria se
estenderá ao longe humilde e rasteiro.
É a imagem fiel do que nos acontecera (L, cap. XV,
p. 403).
É o tempo em que se deteriora a primeira fase da relação para
não mais se recompor. Lúcia muda, reconquista a felicidade interior,
mas perde o brilho. Mesmo o que reconquista é parcial: a mancha do
opróbio veda-lhe a reinserção integral na sociedade. Com um signi­
ficado que vai além das palavras de Paulo, o "verde dossel bordado
de flores" fenecerá, frágil diante do mundo.
A comparação com a rosa desfalecente "ao beijo ardente do sol"
- o sol é a vida dessa "planta tropical" e, simultaneamente, sua per­
da - reforça novamente o prenúncio de uma transformação irre­
mediável: o declínio do corpo esplêndido, a vitória do espírito puri­
ficado, enfim a morte, quando se evaporam "das pétalas flácidas o
pálido matiz e o aroma sutil" (L, cap. XVII, p. 417).
A fase final da vida de Lúcia, que constitui, aos olhos de Alen­
car, a sua originalidade, sua diferença, e que justifica a narrativa,
encerra o desabrochar de uma "floração tardia". A alma incubada, a
vegetação de um corpo vivendo na e pela matéria, a sensibilidade
afetiva despertando, a flor e, finalmente, o espírito triunfante que
reata com "a adolescência truncada" - eis a vida cuja profundidade

137
Alencar e a Franca: Perfis

Paulo procura agora captar (L, cap. XX, p. 444). Como era de se
esperar, o retorno não podia ser completo. Aos tons róseos da
convenção romântica junta-se o sinete feroz de um preconceito que
inviabiliza o esquecimento do erro, postura igualmente romântica,
em outro registro. Assim, a energia extraída do amante, espectador
passivo, permite a Lúcia reencontrar a castidade, negando-lhe,
contudo, a plenitude da vida e do amor.
De "palmeira altiva" a "mimosa sensitiva" (L, cap. XVIII,
p. 426),120 o percurso de Lúcia é realçado pelas imagens vegetais que
tendem a tornar mais concretos os passos da regeneração. A mulher
aqui não é, porém, apenas a flor, como se diz usualmente das heroí­
nas de Alencar. É planta entre outras plantas, é o cacto agreste, a
débil parasita, a terna enrediça, a árvore sensível... de nossas matas,
de nossos campos. Um universo de verde e de luz banha as persona­
gens, universo que, sem dúvida, ainda estava presente na acanhada
Corte fluminense de meados do século XIX. Não será ele um simples
índice de paisagem, e sim, marca de um modo de vida, de uma
maneira de amar, sofrer e morrer.
Se o animal traz, sobretudo, analogias que expressam o envile-
cimento, se a vegetação associa-se à reconquista da dignidade,
existem também imagens sensuais ligadas à "planta voraz" dos
lábios, aos "espinhos de rosa" (L, cap. VIII e X, p. 356 e 367).121 E o
sexo pode ser banalizado, e mesmo vulgarizado, na "flor" que se
colhe (L, cap. XIII, p. 391).
Dois símiles merecem destaque como passagem do terrestre
para o cósmico. Ambos são aqueles tomados a Chateaubriand: o de
Atala dizendo amar Chactas assim como ama a sombra da floresta
nos ardores do sol; o de Chactas que compara a vida a um poço de
águas tranqüilas, onde dorme um crocodilo. O primeiro, como ficou
visto, não passa de tradução com alterações que remetem à atmos­
fera reinante entre Lúcia e Paulo; o segundo designa, no texto fran­
cês, a dor de viver e, no brasileiro, a coexistência do espírito e da

120. Ainda que sucinta, a alusão à sensitiva acena para o universo intratextual
de que se podem captar tantos indícios, ao longo dos perfis.
121. A última dessas analogias é aquela que, como já ficou registrado, preludia
o tema da escabiosa.

138
Lucíola

matéria. Neste, sobretudo, revela-se a perícia com que Alencar sabe


vergar um empréstimo ao contexto de inserção.
Ocorre ainda, na descrição da cortesã, o apelo às imagens do
fogo, conotando como tal o amor, a sensualidade; as cinzas lembra­
rão a extinta chama amorosa, e o inverno ou frio, a impotência, o
sexo que esmorece, nos amantes.
Dos tempos de boêmia, ressalte-se o brilho de figuras ligadas ao
céu. Sarcástica, a imagem do teatro onde as mulheres são
classsificadas como estrelas, planetas, cometas etc.122 prolonga-se
até certo ponto na estrela de Lúcia:
- Ali está a minha estrela! [...] disse mostrando
Lúcifer...
E, pouco depois:
Lúcifer deixou no céu a luz que perdeu para
sempre (L, cap. X, p. 363).
A analogia com os corpos celestes - Lúcia, alma isolada "como
os grandes astros destinados a esclarecer uma esfera", ou astro
brilhante que ressurge após o eclipse, ou astro com um satélite-
amante em apêndice (L, cap. XXI, p. 458)123 - convoca naturalmente
também a do anjo e a do demônio. Fala-se em seu "júbilo satânico",
da possibilidade de ela ser um "demônio de malícia" (L, cap. XIV e
XX, p. 392 e 444). No campo semântico da bondade e da beleza,
tangenciando as demais referências, surge a "fada hospitaleira" (L,
cap. XVII, p. 416).124
A comparação com um inseto junta-se à já citada da cigarra, mas
tem algumas peculiaridades. Na estrutura enunciativa, ela parte de

122. Cf. L, cap.V, p. 331.


123. Cf. ainda L,cap. XIII e XVII, p. 384 e 415.
124. O anjo também serve de comparante no capítulo XIV, p. 397; cap. XIX,
p. 439; cap. XX, p. 444; cap. XXI, p. 457. A proximidade física e moral entre
as duas irmãs faz com que Ana se beneficie da mesma analogia (cap. XX,
p. 440 e cap. XXI, p. 458). Observe-se, aliás, que as ocorrências acumulam-
se na segunda parte do romance.

139
Alencar e a Franca: Perfis

G.M.: é a do lampiro, pirilampo, vagalume, que brilha na trevae per­


to dos charcos; a situação introdutória e indutiva da imagem, na
instância prefaciai, dando coordenadas para uma leitura que ainda
não foi feita, garante-lhe maior relevo, mesmo porque vem desdo­
brada na da musa cristã a andar nas urzes do caminho.125 Seme­
lhante à de Lúcifer, à da parasita é uma analogia em que coexistem
opostos.
Além de outras marcas, algumas premonitórias como a alusão
ao sorriso que cai à semelhança da "dobra de uma mortalha" (L, cap.
XIII, p. 384), outras tais que a redundante «marmórea rijeza» de um
seio (L, cap. XVI, p. 409), registre-se a linguagem das cores. Tons
claros para expressar a pureza, escuros para o recato, vivos para
marcar o luxo depravado. Como já se observou, sobretudo em rela­
ção ao escarlate, é preciso, eventualmente, nuançar tais generali­
zações. Por outro lado, percebe-se, no código alencariano, uma
tendência ao lugar-comum.
Em suma, Lucíola inscreve-se sob o signo da dualidade com as
imagens do lampiro, da parasita, do tanque, de Lúcifer e com aque­
las que, alternada ou sucessivamente, apontam para a inocência
perdida no corpo, preservada na alma, e para a degradação moral
da carne, esplêndida em sua sensualidade. Plantas e animais, e
mesmo as cores, assinalam diferenças comportamentais. Contudo,
embora não recorrente, discreta, diluída no conjunto, é o "cacto sel­
vagem",126 repito, que singulariza a cortesã brasileira por oposição à
francesa, emblematiza o primitivo diante do civilizado, a Lucíola de
Alencar perante a versão dumasiana, de onde foi recortada para im­
plantar-se em outro contexto com outras referências, com outros mo­
delos, outro léxico, nova retórica. As imagens, pois, dão uma dimen­
são particular à dualidade do ser, transfigurando-a, mas simultanea­
mente a dualidade, em movimento recíproco, transfigura os fatos da
paisagem, do mundo onde é gerada. Daí, uma fusão, daí a integra­
ção da personagem na sua terra, daí o romance em sua face nacional.
125. Cf. L, p. 309.
126. Caberia, à maneira de Cavalcanti Proença, destacar o visual e. o auditivo
na palavra cacto. Seu referente é a flor de um caule anguloso, de cor viva;
sua forma sonora[k a k t o] dura, rebelde à harmonia, livre das convenções
eufônicas. Não se vislumbraria, nessa oscilação, uma dualidade?

140
Lucíola

O MUNDO DO ROMANCE
Cabe agora proceder a uma estruturação de três níveis, a fim de
captar, nas linhas do texto, o esforço de Paulo para organizar suas
lembranças, o rumor dos modelos franceses a proporem leituras
convergentes e divergentes, o projeto de um escritor interessado na
escritura romanesca como veículo para a construção de uma
nacionalidade. O primeiro nível está dentro da ficção e, nela, o
narrador fornece indicações para o exame das circunstâncias e das
implicações da enunciação; no segundo nível, a obra volta-se para
outros textos, recusando, transpondo, incorporando; no terceiro,
enfim, descortina-se o mundo em que nasce o romance, mundo da
intenção mais ou menos levada a cabo.
A instância narrativa mereceu de Valéria De Marco um enfoque
atento, ao qual pouco se há de acrescentar. A escolha da narração em
primeira pessoa, sob forma de confissão escrita, distingue o relato de
Paulo de seus congêneres em Prévost e Dumas. Assinala mais uma
tentativa de compreender do que desabafar, sobretudo levando-se
em conta que o narrado dista seis anos do vivido.
Na preocupação de justificar sua maneira de contar, Paulo dará
relevo à palavra. Opta por aquela que se pronuncie francamente,
guardando embora a discrição do bom gosto. A expressão da sexua­
lidade há de equivaler aos "tecidos diáfanos" que cobrem a "nudez
indecente" (L, cap. I, p. 311) e evitará a hipocrisia das reticências,
marca da "moral literária", da "decência pública", da desfaçatez de
um Couto (L, cap.VII, p. 345-6). O erótico alencariano estaria, a meu
ver, longe da elegância libertina e sensual de Manon Lescaut127 e,
apesar de sua força, não chegaria ao tom desabrido dessas
"expansões carnais", para usar a expressão de Alfredo Bosi,
características da poesia realista brasileira em Carvalho Júnior e
Teófilo Dias (Bosi, 1970, p. 245-6). É bem certo que os "tigres
famintos", "a jumenta ciosa" destoam das insinuações mais
refinadas de imagens florais.128 Isso pertence, porém, ao caráter dual
127. Auerbach,1968.
128. Merece ser citada uma imagem, chocante e moderna, que escapa a esses
padrões. Lúcia fala de si mesma: "[...] uma mulher como eu não se
pertence; é uma cousa pública, um carro de praça que não pode recusar

141
Alencar e a França: Perfis

da célula-mater de Lucíola que, só no fim da narrativa, satisfaz


àquele desejo romântico de unidade.129 Em termos de linguagem,
significa não ser possível "pintar sem que a luz projete claros e
escuros" (L, cap. I, p. 312).
Pela palavra escrita, a recordação se desata e torna-se inte­
ligível, pelo menos para a narratária G.M.:
[...] a senhora lê, e eu vivia, no livro da vida não se
volta, quando se quer, a página já lida, para me­
lhor entendê-la, nem pode-se fazer a pausa neces­
sária à reflexão. Os acontecimentos nos tomam e
nos arrebatam às vezes tão rapidamente que nem
deixam volver um olhar ao caminho percorrido.
(L, cap. V, p. 329).
Escrever tem ainda a virtude de reconstituir em profundi­
dade;130 o que se conta no livro de papel encerra uma funcionalidade
inexistente no outro, feito de nossa passagem pelo tempo. A
modéstia um pouco falsa que move Paulo, a qualificar seu ma­
nuscrito como "um perfil apenas esboçado" (L, cap. I, p. 312), ou a
sugerir que os cabelos de Lúcia, juntados à carta para G.M., dentro
da mais rotineira convenção romântica, hão de revelar o que ele não
soube dizer, apõe-se o empenho constante em sintetizar, explicar
pela imagem, ou série de imagens.
A ênfase na palavra é a ponte para atingir o nível intertextual,
objeto maior desta análise, na qual se vai das citações que pontuam
a obra, sem penetrar-lhe o cerne, até aquelas decisivas para as
transformações narrativas, definindo uma perspectiva apoiada de
quem chega" (L, cap. XII, p. 382). Em outro registro, invertendo relações,
João Cabral alude aos meios de transporte: o câncer é vim ônibus, o enfarte,
um táxi (Meios de transporte. In: Museu de tudo).
129. A cortesã regenerada pelo amor, Marion Delorme, Esther Gobsek etc.,
toma-se um verdadeiro mito. E a sílfide de Chateaubriand, reunindo vá­
rias mulheres em uma só, ou a Aurélia de Nerval (Maria, mãe, pluralidade
unificada de formas femininas) representam o prolongamento de uma
imagem que começa na conjugação do prazer físico com o amor espiritual
(Cf. B , 1992, p. 26-9).
ony

130. Cf. a conclusão do cap. XXI.

142
Lucíola

perto pela descrição curta de tipo analógico. A idéia do romance


como elaboração consciente acentua-se nessa exposição das
variantes modeladoras. A combinatória privilegiada remete, por sua
vez, ao mundo onde convém situar o romance. Desse mundo
emerge, já o sabemos, o projeto de literatura nacional, completando-
se aos poucos, mas esboçado nos primeiros textos críticos de Alencar
e, indiscutivelmente, n' O Guarani.
Quanto a Lucíola, toma-se muito nítida a fusão como meio de
praticar o aproveitamento de temas universais dentro das
circunstâncias de uma cultura em expansão e de uma literatura
nova. É um difícil equilíbrio, em se tratando do romance urbano.
Alencar, ao procurá-lo, nem sempre alcança o melhor resultado
estético. A inflexão descendente da parte final, quando a persona­
gem abandona a vida dissoluta, visivelmente fragiliza a intriga,
tirando-lhe a força dos contrastes. Entretanto, graças a ela, introduz-
se uma dimensão plural - e aí o comentário das obras francesas
avulta - porque, se manifesta escolha na gênese mesma do texto
alencariano, não afasta a sombra das opções preteridas, dos roman­
ces que poderiam ter sido escritos.
Na verdade, Lucíola atende a uma pergunta implícita: o que
pode ser a história de uma cortesã brasileira no Rio de meados do
século XIX? Colocado o referencial - A dama das camélias - cum­
pria imediatamente afastar-se dele e Alencar o fez pelo vigor extre­
mo com que concebeu o conflito da protagonista, agudizado até o
gesto de renúncia ao prazer. Por um lado, as imagens constroem a
personagem à maneira de um refletor, por outro, o intertexto, apre­
sentado como objeto metatextual, fornece as chaves da interpretação
e das opções.
A presença de Bernardin e Chateaubriand representam, no
diálogo com o estrangeiro, o outro lado da alternativa. Um traz o en­
redo que Lúcia não pode mais viver, a não ser episódica ou
vicariamente; o outro indica a história que ela pode adaptar à sua
situação. E, por mais paradoxal que pareça, na segunda parte, a
Lúcia-vítima dos homens revive o drama da índia Atala, vítima da
civilização. Por esse viés, arma-se a rede inter e intratextual cujo
limite é Iracema. A articulação toma-se mais cerrada à medida que
se desvenda uma matriz descritiva, as analogias compondo a

143
Alencar e a Franca: Perfis

duplicação da trama e sua intersecção com outras tramas. Se


algumas imagens nem sempre caracterizam especificamente flora e
fauna tropicais, e entre elas destacam-se, aliás, as de magnífica
violência e crueza, outras tomadas à paisagem - as que vão
individuar a personalidade dividida de Lúcia - o fazem de modo
inequívoco. Não seria descabido ver, em Lucíola, o indício antecipa­
do dessa simbiose com a terra que dará à personagem de Iracema
seu caráter mítico. Insisto, por isso mesmo, em que símiles, metá­
foras, remetem antes às fórmulas despojadas, ainda que não muito
freqüentes, de Bernardin, bem afastadas da ênfase retórica de
Chateaubriand.
O caminho da interpretação, que constata a função do intertex­
to, seguiu do que se propõe como reconstituição de uma experiência,
a de Paulo narrador-personagem, até um projeto que se prende ao
momento histórico e recompõe um ideário romântico já próximo do
término, quanto a Dumas. Por significativo que seja, o projeto em si
não determina o valor. No caso presente, o desejo de diferença gerou
simultânea e paradoxalmente um descompasso entre as duas partes
do romance, bem como soluções felizes, na linguagem própria e
instauradora, nas vigorosas imagens realistas, no esboço de uma
emancipação feminina, na composição e interação das personagens.

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Capítulo IV

DIVA

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