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Alencar e a França
Perfis
CAPES
Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro
P659a
Pinto, Maria Cecilia Queiroz de Moraes.
Alencar e a França: perfis / Maria Cecilia Queiroz de Moraes
Pinto.-SãoPaulo : Annablume, 1999.
p. ; 14x21 cm.
ISBN 85-7419-087-5
Inclui bibliografia.
1. Alencar, José de, 1829-1877 - Crítica e interpretação. 2.
Literatura brasileira - Interpretação. 2. Literatura brasileira -
Influências francesas. I. Título
CDD-B969.3
Coordenação editorial
Mara Guasco
Preparação de originais
Joaquim Antonio Pereira Sobrinho
Capa
Luciano Guimarães
COLEÇÃO PARCOURS
Gilberto Pinheiro Passos
Glória Carneiro do Amaral
Véronique Dahalet
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Capítulo III
LUCÍOLA
O romance da cortesã brasileira, pensado no conjunto da obra
alencariana, vem logo depois do imenso sucesso d 'O Guarani e da
publicação em livro de outros dois folhetins bem acolhidos pelo
público, Cinco minutos e A Viuvinha. Contudo, uma referência
cronológica mais significativa é sua proximidade com os textos dra
máticos de As asas de um anjo, representado em 1858 e editado em
1860, e A expiação, segunda parte do anterior com data de 1865 e
1868, para escrita e publicação. É a única peça não encenada de
Alencar. Como primeiro dentre os perfis, Lucíola também inaugura
um veio marcante do romance urbano, aquele menos preocupado
com a crônica social ou os pequenos enredos à Macedo. Centrados
em dramas interiores que a vida da cidade moderna cria e alimenta,
os romances de G.M. corresponderão à fase dita "realista" de Alen
car. Na expressão hiperbólica de Araripe Júnior, o escritor
"empunhou o copo socialista no festim da moda, para acudir aos
reclamos de Dumas Filho, Augier e Feuillet, cujos ecos estrepitosos
faziam esquecer as comédias do desventurado Pena" (Araripe, 1958,
p. 170). Como estes, ele entregou-se à sedução do palco, desdobran
do a atividade literária.
Efetivamente, ocorre a essa altura, em finais da década de cin
qüenta e inícios de sessenta, um entrelaçamento da produção roma
nesca com a teatral. Lucíola sinaliza, à maneira do exemplo europeu,
a versão ficcional de um tema já desenvolvido para o teatro. Com
uma troca de sinais: veio depois, e não antes como era o caso das
histórias de Dumas e Feuillet, romances posteriormente adaptados
à cena. Além disso, há reincidência de assunto, não de intriga.
Analisando o teatro de Alencar, João Roberto Faria assinala
uma série de posições que irão se confirmar nos perfis, justificando
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LEITURA E LEITORES
As personagens alencarianas dosperfissão leitoras assíduas. Às
vezes, como em Diva, não se faz menção nem a autores, nem a títu
los. De Emília, tem-se a informação que "lia muito", não o que lia.76
Em Lucíola, as indicações multiplicam-se. Os capítulos XV e XVII
trazem as referências maiores: à Dama das camélias, por um lado, a
Paulo e Virgínia e Atala, por outro; o capítulo XVI nos conta que a
senhora Jesuína distraía-se lendo Zaíra e Os azares da fortuna-, os
textos bíblicos integram as leituras de Lúcia. Como se não bastasse,
Paulo evoca uma frase de Balzac, e Victor Hugo é indiretamente
lembrado quando se fala da representtação da ópera Hernani.
Se a ópera de Verdi, espetáculo de canto e música, vale par
ticularmente como signo cultural, na Corte que acompanha as mo
das e paixões de além-mar, um paralelo e um contraste desenham-
se sob a menção. Obra romântica por excelência, Hernani não per
76. “Essa moça tinha desde tenros anos o espírito mais cultivado do que faria
supor o seu natural acanhamento. Lia muito, e já de longe penetrava o
mundo com olhar perspicaz, embora através das ilusões douradas" (D, cap.
III, p. 474).
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deu essa característica que lhe imprimira seu primeiro criador ao ser
transposta para a forma do drama lírico. A música de Verdi guarda
o frêmito que percorre a história de um dos mais excessivos heróis
do romantismo francês, em todo caso aquele que consagrou o triun
fo do movimento.77 Por isso, no quase prólogo de seu relacio
namento com Lúcia, Paulo está, como o Hernani de Hugo e Verdi,
nessa situação de disputá-la e roubá-la a vários pretendentes. Mas o
tom é rebaixado e contrastivo. Nada de nobre o anima. E o motivo
de Hernani será abafado ao longo de Lucíola. Constitui, por assim
dizer, um acorde em surdina na melodia maior dos dilaceramentos
da protagonista, os mesmos que a levam à autopunição, fruto de
uma dupla moral assumida, introjetada.
Essa, porém, é uma leitura nossa. Nas demais, trata-se das
personagens. "Repimpada numa cadeira de balanço" a senhora Jus-
tina, de ignóbil passado, entretém-se com brilhantes novelas de sa
bor popular. A ira de Paulo, ao encontrá-la nessa atitude e nessa ati
vidade, denuncia e também ironiza sua vulgaridade. Em compen
sação, o nível de interesse de Lúcia pela literatura é bem elevado - se
a Bíblia era seu livro predileto! Através de tais preferências, percebe-
se um caráter singular, e, dentro da trama, elas explicam as discus
sões literárias. A cortesã não é, contudo, uma mulher culta, e sim
uma intuitiva, o que a situa em relação ao amante, mais conven
cional, e desculpa a afoiteza de alguns de seus julgamentos:
Lúcia conservava de tempos passados o hábito da
leitura e do estudo; raro era o dia em que não se
distraía uma hora pelo menos com o primeiro li
vro que lhe caía nas mãos. Dessas leituras rápidas
e sem método provinha a profusão de noções va
riadas e imperfeitas que ela adquirira e se revela
vam na sua conversação (L, cap. XI, p. 374).
77. Analisando, embora rapidamente, o significado da peça, John Gassner a vê
como uma causa que, triunfante, derrubou em definitivo "o santuário
clássico". Com ela, também abre-se o espaço para novas experiências.
Hugo realmente não aproveitou essa nova liberdade. Seu teatro "é mais
grandioso que substancial" (Mestres do teatro, 1980, parte VII, cap. XVIII e,
especialmente, p. 399-402).
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O SER E O PARECER
No primeiro encontro, Paulo viu a "menina". Encantadora,
graciosa, sem os desplantes das mulheres da moda. Pareceu-lhe uma
alma pura, sincera, capaz de trazer felicidade ao homem que amas
se. Apenas pelo detalhe do leque de penas escarlates, essa imagem
apresenta algo estranho. O provinciano, porque provinciano, não
teria conseguido decodificar um possível signo de vulgaridade?
Acresce que, mais adiante, ao preparar-se para ir ao baile e entregar-
se ao Couto, Lúcia veste-se de "escarlate". A cor sugere contrastes
com os tons discretos do dia-a-dia, no relacionamento com Paulo, e
retoma, na observação penetrante de Valéria De Marco, "a nudez e
os tapetes da casa de Sá" (De Marco, 1986, p. 172). A conotação
negativa atenua-se, porém, quando o mesmo leque reaparece na
descrição das roupas usadas por Lúcia no teatro lírico: "vestida com
certa galanteria, mas sem a profusão de adornos e a exuberância de
luxo que ostentam de ordinário as cortesãs" (L, cap.V, p. 331). Um
"luminoso impressionismo" (Cândido, 1959, v. I, p. 232) mescla-se à
reminiscência:
O que ainda vejo neste momento, se fecho os
olhos, são as nuvens brancas e nítidas, que se
froca vam graciosamente, afiando com o lento mo
vimento de seu leque; o mesmo leque de penas
que eu apanhara, e que de longe parecia uma
grande borboleta rubra pairando no cálice das
magnólias(L, cap.V, p. 331).
A cor "escarlate", aliás, está em vários enfeites femininos, de vá
rias personagens alencarianas; em alguns trajes; no papel de parede
da casa de Aurélia. Também comparece na indumentária masculina
e mesmo nos ornamentos de índios e índias. Cavalcanti Proença, que
chamou a atenção para o fato, atribui-lhe um valor estético:
Na preferência pelo vermelho da cor está o visual.
Ena escolha da palavra escarlate, o artista sensí
vel à música da palavra. Escarlate é vermelho,
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discussão quase contínua o que n'A dama das camélias são umas
poucas observações literárias disseminadas ao longo do texto.
Neste, se descontadas alusões do primeiro narrador, é de
Manon Lescaut que se ocupam as personagens. Reprovando a con
duta de Manon, Margarida então em Bougival pensa nas infide
lidades e na sede de prazer, por conseguinte de dinheiro, que carac
terizam o comportamento da outra. E Armando, na noite em que é
abandonado, vê casualmente o livro aberto sobre a mesa, acha ("il
me sembla") que algumas páginas foram umedecidas por lágrimas.
Margarida teria desejado lembrar-lhe que, apesar das aparências,
não era como Manon, fria e calculista? fora ela quem pensara em
adverti-lo por esse meio? Uma frase da edição de 1872 reforça essas
dúvidas acerca do livro:
Qui l'avait placé ici?(DC, n. 47, p. 363).
Ora, também Armando não gostaria de ser como Des Grieux.
Antes de aceitar uma proposta de Margarida para viverem no cam
po, às expensas do duque, passa-lhe pela cabeça uma cena análoga:
a de Manon comendo com Des Grieux a fortuna de M. de B.90
A opinião do senhor Duval, por seu turno, vai em direção seme
lhante, embora mais taxativa. Eles são ou Margarida é e Armando
será como as personagens de Prévost:
Toute Manon peutf aire un Des Grieux....
Ele pretende, no entanto, que não deve ser assim e continua:
[...] le temps et les moeurs sont changés. II serait
inutile que le monde vieillit, s'il ne se corrigeait
pas (DC, cap. XX, p. 228).
Sendo o pai a suprema razão vencedora, seria o caso de salientar
que também a Dumas não teria agradado a "tese fisiológica" dessa
provável fonte de inspiração. Seu texto veio atestar uma nova moral,
90. Cf. DC, cap. XIII, p. 154.
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A PASTORAL DE BERNARDIN
Alterando a definição que Genette dá para o termo "arqui-
texto", entenderei por ele não apenas "o conjunto das categorias
gerais ou transcendentes - tipos de discurso, modos de enunciação,
gêneros literários etc." (Genette, 1982, p. 7) - mas as obras que, na
prática da literariedade, acabam desempenhando tal função. Diria
que, antes de ser objeto metatextual e intertexto em Lucíola, Paulo e
Virgínia assumiu o papel de texto de origem como forma e tom.95
Quando se pensa nas interligações entre o Romantismo e o
Modernismo no Brasil, entre José de Alencar e Mário de Andrade,
não se pode deixar de assinalar essa arquitextualidade de Bernardin,
mesmo se for para encará-la dentro das dessemelhanças com que se
exerceu. Em Amar, verbo intransitivo, cujo subtítulo é "idílio", há
um comentário que fecha a cena do primeiro beijo e alude à imitação
do idílio de Saint-Pierre. Usando essa passagem como referencial,
Telê Ancona Lopez aponta para o papel do escritor francês, no
século XVIII, retomando na prosa o que o suíço Gessner fizera na
poesia com o idílio - "um genêro antigo para o qual apresenta
soluções novas".96 O termo virtualmente sinônimo de pastoral, vai
celebrar a vida natural à maneira de Teócrito e Virgílio, mas do outro
lado do mundo, nos trópicos. É esta, no "avant-propos" a Paulo e
Virgínia, a primeira observação de Bernardin que recupera
simultaneamente a tradição do exotismo pitoresco. A beleza da
paisagem tropical, decantada pelos viajantes, será realçada pela
beleza interior e dos costumes. Mas o moralista Bernardin procura
também atingir o pathos de seu público. Quando um esboço "dessa
95. Genette, sempre às voltas com sua terminologia, lamenta que Louis Marin
tenha empregado "arquitexto" para designar "le texte d'origine de tout
discours possible, son 'origine' et son milieu d'instauration" (cf. G enette,
loc. cit., n. 2). Sem levar muito longe a discussão, creio que fico entre os
dois, reservando para o "texto de origem'' do tipo A dama das camélias
especificamente a qualidade de intertexto. Já Bernardin, como Balzac,
representam, com suas respectivas obras, também uma forma que foi
veiculada graças a elas: o idílio, a pastoral em prosa de um, o romance dito
balzaquiano de outro.
96. Uma difícil conjugação, estudo introdutório a Mário de Andrade. In:
A ndrade , 1984, p. 12.
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A DUALIDADE TRANSFIGURADA
E TRANSFIGURADORA
A idéia da cortesã-virgem está em Dumas, assim como seu
orgulho e independência.112 Na personagem alencariana, como já
ficou dito, o senso de liberdade manifesta-se na capacidade para
viver às próprias custas. A origem do dinheiro de Lúcia e a habili
dade de que ela se socorre na gestão de seus bens são justificadas
pelo objetivo de garantir um futuro para a irmã e facilitam ainda sua
escolha de uma nova existência. Quanto ao contraste extremado, ele
é transferido de um caráter primitivo para outro civilizado; da situa
ção de inocência para a de degradação, ainda que, a rigor, em ambos
os casos, se entreveja uma espécie de bondade natural remotamente
rousseauísta. O contorno da personalidade de Lúcia, porém, não se
afirma apenas nos gestos que conduzem a ação. Reflete-se no eixo
paradigmático formado por imagens que, insistentes, vão impri
mindo ao texto nuanças que não se encontram em Dumas, parco em
descrições, tampouco em Chateaubriand, mais preocupado em dizer
o que sente diante do objeto contemplado do que em reter seme
lhanças de detalhe.Talvez se inspirem nas sugestões de Paulo e
Virgínia.
Cabe, portanto, focalizar Lucíola por esse ângulo que, geral
mente, permanece à sombra enquanto rutilam as cenas eróticas ou
se acendem discussões em tomo do desenlace.113
A imagem, como representação de uma realidade abstrata ou
material, em termos de analogia e similitude, compreende
fundamentalmente comparações, metáforas, alegorias, símbolos.114
112. "Bref, on reconnaissait dans cette filie la vierge qu'un rien avait faite
courtisane, et la courtisane dont un rien eút fait la vierge la plus
amoureuse et la plus pure. II y avait encore chez Marguerite de la fierté et
dè l'indépendance: deux sentiments qui, blessés sont capables de faire ce
que fait la pudeur" (DC, cap. IX, p. 102).
113. Contudo, Cavalcânti Proença, Antonio Cândido, Sandra Nitrini e Valéria
De Marco anotaram procedimentos descritivos.
114. Trata-se de uma conceituação bastante comum, mas que, a meu ver, aplica-
se ao caso específico de Alencar. Sendo das mais usuais, afasta-se, em
princípio, daquela tão poética de Bachelard (a imagem como produto da
imaginação pura, criadora de linguagem) ou de outra, mais intelectual,
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Paulo procura agora captar (L, cap. XX, p. 444). Como era de se
esperar, o retorno não podia ser completo. Aos tons róseos da
convenção romântica junta-se o sinete feroz de um preconceito que
inviabiliza o esquecimento do erro, postura igualmente romântica,
em outro registro. Assim, a energia extraída do amante, espectador
passivo, permite a Lúcia reencontrar a castidade, negando-lhe,
contudo, a plenitude da vida e do amor.
De "palmeira altiva" a "mimosa sensitiva" (L, cap. XVIII,
p. 426),120 o percurso de Lúcia é realçado pelas imagens vegetais que
tendem a tornar mais concretos os passos da regeneração. A mulher
aqui não é, porém, apenas a flor, como se diz usualmente das heroí
nas de Alencar. É planta entre outras plantas, é o cacto agreste, a
débil parasita, a terna enrediça, a árvore sensível... de nossas matas,
de nossos campos. Um universo de verde e de luz banha as persona
gens, universo que, sem dúvida, ainda estava presente na acanhada
Corte fluminense de meados do século XIX. Não será ele um simples
índice de paisagem, e sim, marca de um modo de vida, de uma
maneira de amar, sofrer e morrer.
Se o animal traz, sobretudo, analogias que expressam o envile-
cimento, se a vegetação associa-se à reconquista da dignidade,
existem também imagens sensuais ligadas à "planta voraz" dos
lábios, aos "espinhos de rosa" (L, cap. VIII e X, p. 356 e 367).121 E o
sexo pode ser banalizado, e mesmo vulgarizado, na "flor" que se
colhe (L, cap. XIII, p. 391).
Dois símiles merecem destaque como passagem do terrestre
para o cósmico. Ambos são aqueles tomados a Chateaubriand: o de
Atala dizendo amar Chactas assim como ama a sombra da floresta
nos ardores do sol; o de Chactas que compara a vida a um poço de
águas tranqüilas, onde dorme um crocodilo. O primeiro, como ficou
visto, não passa de tradução com alterações que remetem à atmos
fera reinante entre Lúcia e Paulo; o segundo designa, no texto fran
cês, a dor de viver e, no brasileiro, a coexistência do espírito e da
120. Ainda que sucinta, a alusão à sensitiva acena para o universo intratextual
de que se podem captar tantos indícios, ao longo dos perfis.
121. A última dessas analogias é aquela que, como já ficou registrado, preludia
o tema da escabiosa.
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O MUNDO DO ROMANCE
Cabe agora proceder a uma estruturação de três níveis, a fim de
captar, nas linhas do texto, o esforço de Paulo para organizar suas
lembranças, o rumor dos modelos franceses a proporem leituras
convergentes e divergentes, o projeto de um escritor interessado na
escritura romanesca como veículo para a construção de uma
nacionalidade. O primeiro nível está dentro da ficção e, nela, o
narrador fornece indicações para o exame das circunstâncias e das
implicações da enunciação; no segundo nível, a obra volta-se para
outros textos, recusando, transpondo, incorporando; no terceiro,
enfim, descortina-se o mundo em que nasce o romance, mundo da
intenção mais ou menos levada a cabo.
A instância narrativa mereceu de Valéria De Marco um enfoque
atento, ao qual pouco se há de acrescentar. A escolha da narração em
primeira pessoa, sob forma de confissão escrita, distingue o relato de
Paulo de seus congêneres em Prévost e Dumas. Assinala mais uma
tentativa de compreender do que desabafar, sobretudo levando-se
em conta que o narrado dista seis anos do vivido.
Na preocupação de justificar sua maneira de contar, Paulo dará
relevo à palavra. Opta por aquela que se pronuncie francamente,
guardando embora a discrição do bom gosto. A expressão da sexua
lidade há de equivaler aos "tecidos diáfanos" que cobrem a "nudez
indecente" (L, cap. I, p. 311) e evitará a hipocrisia das reticências,
marca da "moral literária", da "decência pública", da desfaçatez de
um Couto (L, cap.VII, p. 345-6). O erótico alencariano estaria, a meu
ver, longe da elegância libertina e sensual de Manon Lescaut127 e,
apesar de sua força, não chegaria ao tom desabrido dessas
"expansões carnais", para usar a expressão de Alfredo Bosi,
características da poesia realista brasileira em Carvalho Júnior e
Teófilo Dias (Bosi, 1970, p. 245-6). É bem certo que os "tigres
famintos", "a jumenta ciosa" destoam das insinuações mais
refinadas de imagens florais.128 Isso pertence, porém, ao caráter dual
127. Auerbach,1968.
128. Merece ser citada uma imagem, chocante e moderna, que escapa a esses
padrões. Lúcia fala de si mesma: "[...] uma mulher como eu não se
pertence; é uma cousa pública, um carro de praça que não pode recusar
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Capítulo IV
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