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Cesário Verde

José Joaquim Cesário Verde (Lisboa, 25 de Fevereiro de 1855 — Lumiar, 19 de


Julho de 1886) foi um poeta português, sendo considerado um dos precursores da
poesia que seria feita em Portugal no século XX.

Filho do lavrador e comerciante José Anastácio Verde e de Maria da Piedade dos


Santos, Cesário matriculou-se no Curso Superior de Letras em 1873, mas apenas o
frequentou alguns meses. Ali conheceu Silva Pinto, que ficou seu amigo para o resto
da vida. Dividia-se entre a produção de poesias (publicadas em jornais) e as
atividades de comerciante herdadas do pai.

Em 1877 começou a ter sintomas de tuberculose, doença que já lhe tirara o irmão e
a irmã. Estas mortes inspiraram contudo um de seus principais poemas, Nós (1884).

Tenta curar-se da tuberculose, mas sem sucesso, vem a falecer no dia 19 de Julho
de 1886. No ano seguinte Silva Pinto organiza O Livro de Cesário Verde, compilação
da sua poesia publicada em 1901.

No seu estilo delicado, Cesário empregou técnicas impressionistas, com extrema


sensibilidade ao retratar a Cidade e o Campo, que são os seus cenários prediletos.
Evitou o lirismo tradicional, expressando-se de uma forma mais natural.

Poetização do real

A dicotomia cidade/campo

A supremacia exercida pela cidade sobre o campo leva o poeta a tratar estes dois
espaços em termos dicotómicos. O contacto com o campo na sua infância determina
a visão que dele nos dá e a sua preferência. Ao contrário de outros poetas
anteriores, o campo não tem um aspeto idílico, paradisíaco, bucólico, suscetível de
devaneio poético, mas sim um espaço real, concreto, autêntico, que lhe confere
liberdade. O campo é um espaço de vitalidade, alegria, beleza, vida saudável… Na
cidade, o ambiente físico, cheio de contrastes, apresenta ruas
macadamizadas/esburacadas, casas apalaçadas (habitadas pelos burgueses e pelos
ociosos)/quintalórios velhos, edifícios cinzentos e sujos… O ambiente humano é
caracterizado pelos calceteiros, cuja coluna nunca se endireita, pelos padeiros
cobertos de farinha, pelas vendedeiras enfezadas, pelas engomadeiras tísicas,
pelas burguesinhas… É neste sentido que podemos reconhecer a capacidade de
Cesário Verde em trazer para a poesia o real quotidiano do homem citadino.

Ao ler-se o poema "De Tarde", pertencente a "Em Petiz", é visível o tom irónico em
relação aos citadinos, mas onde o tom eufórico também sobressai, ao percorrer os
lugares campestres ao lado da sua "companheira". A preferência do poeta pelo
campo está expressa nos poemas "De Verão" e "Nós" (o mais longo), onde
desaparecem a aspereza e a doença ligadas à vida citadina e surge o elogio ao
ambiente campesino. A arte de Cesário Verde é, pois, reveladora de uma
preocupação social e intervém criticamente. O campo oferece ao poeta uma lição
de vida multifacetada (por exemplo, os camponeses são retratados no seu trabalho
diário) que ele transmite com objetividade e realismo. Trata-se, pois, de uma visão
concreta do campo e não da abstração da Natureza.

A força inspiradora de Cesário é a terra-mãe, sendo nela que Cesário encontra os


seus temas. É por isto que, habitualmente, se associa o poeta ao mito de Anteu.

A mulher em Cesário Verde

Deambulando pelos dois espaços, depara com dois tipos de mulher, que estão
articulados com os locais. A cidade maldita surge associada à mulher fatal, frívola,
calculista, madura, destrutiva, dominadora, sem sentimentos. Em contraste com
esta mulher predadora, surge um tipo feminino, por exemplo em "A Débil", que é o
oposto complementar das esplêndidas aristocráticas, presentes em poemas como
"Deslumbramentos" e "Vaidosa". Essa mulher é frágil, terna, ingénua e
despretensiosa.

Outra perspetiva nos é mostrada da mulher (desfavorecida) no campo. A


vendedora em "Num Bairro Moderno", ou a engomadeira em "Contrariedades"
mostram as características da mulher do povo no campo. Sempre feias, pobres e
por vezes doentes, ou em esforço físico, as mulheres trabalhadoras são objeto da
admiração de Cesário.

"Depois de referir o cenário geral da ação em "Num Bairro Moderno", os olhos do


sujeito poético retêm, como uma objetiva, um elemento novo - a vendedeira. A sua
caracterização é de uma duplicidade contrastante: ela é pobre, anémica, feia,
veste mal e tem de trabalhar para sobreviver, mas aparece envolvida numa força
quase épica, de "peito erguido" e "pulsos nas ilhargas", encarnando, pela sua
castidade, a força genuína do povo trabalhador, que Cesário tão bem defende."

A poética de Cesário e as escolas literárias

Podemos afirmar a sua aproximação a várias estéticas, embora seja visível a


proximidade com Baudelaire, por retratar realidades cotidianas, o que o aproxima
dos poetas portugueses do século XX e o fez incompreendido em seu tempo.

Embora Cesário Verde não pudesse ser enquadrado em nenhuma das escolas
poéticas dos países de língua portuguesa da época podemos dizer que ele não
poderia não estar relacionado às estéticas do seu tempo de alguma forma. Se se
tiver em conta o interesse pela captação do real, por exemplo, ao considerarmos o
tipo de cena a serem retratadas pelas quais o poeta optou, seus quadros e figuras
citadinos, concretos, plásticos e coloridos, é fácil detetar aqui a afinidade ao
Realismo. A ligação aos ideais do Naturalismo verifica-se na medida em que o meio
surge determinante dos comportamentos. Se considerarmos o fato do poeta
figurar plasticamente uma cena, poderia aproximá-lo, inclusive, do Parnasianismo.
Porém, sua obra ainda tem um certo sentimentalismo que remete ao Romantismo e
as imagens retratadas, muitas vezes de personagens doentes ou pobres, jamais
poderiam ser retratadas por um parnasiano.

Aproxima-se dos impressionistas que captam a realidade mas que a retratam já


filtrada pelas perceções, o que, definitivamente, o inscreve no quadro dos poetas
fundadores da modernidade. Ecos de sua obra podem ser vistos nos poemas de
Fernando Pessoa, parecendo Cesário Verde o predecessor do heterônimo Álvaro de
Campos de Opiário e sendo citado várias vezes por Alberto Caeiro.

Importância da representação do quotidiano na poesia de Cesário Verde

A observação das situações do quotidiano é o ponto de partida preferencial para os


poemas de Cesário Verde. É o mundo real, rotineiro, que é retratado e analisado,
servindo de suporte às ideias e sentimentos do poeta.

Os sujeitos poéticos criados por Cesário Verde são atentos ao que se passa. Aquilo
que para outro transeunte seria uma banalidade é, na perspetiva do poeta, parte de
um quadro do real. Veja-se que antes de se focar numa situação particular, que
prenda a atenção, o poeta dá-nos uma visão geral do ambiente: "Dez horas da
manhã, os transparentes/Matizam uma casa apalaçada(…)E fere a vista, com
brancuras quentes, a larga rua macadamizada" (em "Num bairro moderno"). Mas,
apesar de existirem situações particulares, estas poderiam ser integradas no
movimento quotidiano de uma rua de uma cidade onde "(…) rota, pequenina
azafamada,/Notei de costas uma rapariga" (em "Num bairro moderno"), mas que
para o sujeito poético tomam uma nova dimensão. Um processo análogo pode
verificar-se em "Cristalizações", onde as primeiras estrofes constituem uma visão
panorâmica, para se focar mais à frente nos "calceteiros" ou na "actrizita". É
essencialmente destacado o quotidiano urbano, onde o sujeito poético deambula,
sendo o poema "O sentimento de um ocidental" aquele em que é mais clara a
descrição do dia-a-dia como ponto de partida para a revolta contra a vivência
desumana da cidade. Aliás, Cesário Verde está longe de se deixar na passividade da
observação casual, e repara naquilo, que tendo-se tornado parte de cada dia, é um
factor de animalização e doença. Outras vezes, partindo da realidade, transfigura-
a, num impulso salutar, em que tudo parece tomar formas orgânicas e vivas em
oposição ao emparedamento das ruas da cidade: "Se eu transformasse os simples
vegetais, num ser humano que se mova e exista/Cheio de belas proporções
carnais?!".
Linguagem e estilo

Eis algumas das características estilísticas e linguísticas: vocabulário objetivo;


imagens extremamente visuais de modo a dar uma dimensão realista do mundo (daí
poeta-pintor-calceteiro-condutor de metro); pormenor descritivo; mistura o físico
e o moral; combina sensações; usa sinestesias, metáforas, comparações, hipálage;
emprega dois ou mais adjetivos a qualificar o mesmo substantivo; quadras, em
versos decassilábicos ou alexandrinos; utilização do "enjambement".

Características realistas:

 Supremacia do mundo externo, da materialidade dos objetos; impõe o real


concreto à sua poesia.

 Predomínio do cenário urbano (o favorito dos escritores realistas e


naturalistas).
 Situa espácio-temporalmente as cenas apresentadas (ex: «Num Bairro
Moderno» - «dez horas da manhã»).
 Atenção ao pormenor, ao detalhe.
 A seleção temática: a dureza do trabalho («Cristalizações» e «Num Bairro
Moderno»); a doença e a injustiça social («Contrariedades»); a imoralidade
das «impuras», a desonestidade do «ratoneiro» e a «miséria do velho
professor» em «O Sentimento dum Ocidental».
 A presença do real histórico: a referência a Camões e o contexto
sociopolítico em «O Sentimento dum Ocidental».
 A linguagem burguesa, popular, coloquial, rica em termos concretos.
 Pelo facto da sua poesia ser estimulada pelo real, que inspira o poeta, que se
deixa absorver pelas formas materiais e concretas.

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Características modernistas:

 «A poesia de Cesário Verde reflete a crise do naturalismo e o desencanto


pela estética realista. O poeta empenha-se no real, é certo, porém a
instância da visão subjetiva é marcante ao ponto de fazer vacilar a conceção
de Cesário Verde como poeta realista.» (Elisa Lopes). Mesmos nos textos
mais frequentemente citados como realistas, encontramos já um olhar
subjetivo (porque seletivo), valorativo, que se manifesta num impressionismo
pictórico, pois mais do que a representação do real importa a impressão do
real, que suplanta o real objetivo. A realidade é mediatizada pelo olhar do
poeta, que recria, a partir do concreto, uma super realidade através da
imaginação transfiguradora, metamorfoseando o real num processo de
reinvenção ou recontextualização precursora da estética surrealista.

 Abre à poesia as portas da vida e assim traz o inestético, o vulgar, o feio, a


realidade trivial e quotidiana. A. C. Monteiro chama-lhe «o pendor
subversivo».
 Forte componente sinestésica (cruzamento de várias sensações na
apreensão do real), de pendor impressionista, que valoriza a sensação em
detrimento do objeto real.
 Um certo interseccionismo entre planos diferentes, visualismo e memória,
real e imaginário, etc, (concretizado muitas vezes em hipálages sugestivas).

Características estilísticas:

 A estrutura narrativa dos seus poemas, em que encontramos ações


protagonizadas por agentes/atores (ex: «Deslumbramentos»,
«Cristalizações» e «Num Bairro Moderno»).
 A estrutura deambulatória que configura uma poesia itinerante: a
exploração do espaço é feita através de sucessivas deambulações, numa
perspetiva de câmara de filmar, em que se vão fixando vários planos (ex:
«Cristalizações», em que se configuram vários planos, e «O Sentimento dum
Ocidental», em que há um fechamento cada vez maior dos cenários
apreendidos pelo olhar). É uma espécie de olhar itinerante e fragmentário,
que reflete o passeio obsessivo pela cidade (e também no campo em alguns
poemas); uma poesia transeunte, errante. Exemplos mais significativos são
os poemas «Num Bairro Moderno», «O Sentimento dum Ocidental», que
definem a relação do poeta com a cidade.
 O olhar seletivo: a descrição/evocação do espaço é filtrada por um juízo de
valor transfigurador, profundamente sinestésico (ex: «Num Bairro
Moderno»).
 O poeta é como um espelho em que vem repercutir-se a diversidade do
mundo citadino.
 O contraste luz/sombra: jogo lúdico de luz em que as imagens poéticas se
configuram em cintilações, descobrindo, presentificação e recriando a
realidade (ex: «O Sentimento dum Ocidental»). Tanto pode ser a luz do dia
como a luz artificial, como a luz metafórica que emana da visão da mulher. A
incidência da luz é uma forma de valorizar os objetos, entendendo-se a luz
como princípio de vida.
 Automatismo psíquico: associações desconexas de ideias, visível nas frases
curtas, na sequência de orações coordenadas assindéticas, que sugerem uma
acumulação, uma concatenação aleatória de ideias (ex: «Contrariedades»,
«O Sentimento dum Ocidental).
 Adjetivação particularmente abundante e expressiva, com dupla e tripla
adjetivação, ao serviço de um impressionismo pictórico.
 Os substantivos presentificadores da realidade convocada, frequentemente
em enumeração, que sugere uma acumulação, um compósito de elementos,
característicos da construção pictórica.

Características temática

Oposição cidade/campo, sendo a cidade um espaço de morte e o campo


um espaço de vida – valorização do natural em detrimento do artificial.
O campo é visto como um espaço de liberdade, do não isolamento; e a
cidade como um espaço castrador, opressor, símbolo da morte, da
humilhação, da doença. A esta oposição associam-se as oposições
belo/feio, claro/escuro, força/fragilidade.
Oposição passado/presente, em que o passado é visto como um tempo de
harmonia com a natureza, ao contrário de um presente contaminado
pelos malefícios da cidade (ex: «Nós»).
A questão da inviabilidade do Amor na cidade.
A humilhação (sentimental, estética, social).
A preocupação com as injustiças sociais
O sentimento anti burguês.
O perpétuo fluir do tempo, que só trará esperança para as gerações
futuras.
Presença obsessiva da figura feminina, vista:

→ negativamente, porque contaminada pela civilização urbana

- mulher opressora – mulher nórdica, fria, símbolo da eclosão do


desenvolvimento da cidade como fenómeno urbano, sinédoque da classe
social opressora e, por isso, geradora de um erotismo da humilhação (ex:
«Frígida», «Deslumbramentos» e «Esplêndida»), em que se reconhece a
influência de Baudelaire;

→ positivamente, porque relacionada com o campo, com os seus valores salutares

- - mulher anjo – visão angelical, reflexo de uma entidade divina,


símbolo de pureza campestre, com traços de uma beleza angelical,
frequentemente com os cabelos loiros, dotada de uma certa fragilidade
(«Em Petiz», «Nós», «De Tarde» e «Setentrional») – também tem um
efeito regenerador;

- mulher regeneradora – mulher frágil, pura, natural, simples,


representa os valores do campo na cidade, que regenera o sujeito
poético e lhe estimula a imaginação (ex: as figuras femininas de a «A
Débil» e «Num Bairro Moderno»);

- mulher oprimida – tísica, resignada, vítima da opressão social urbana,


humilhada, com a qual o sujeito poético se sente identificado ou por
quem nutre compaixão (ex: «Contrariedades»);

- mulher como sinédoque social – (ex: as «burguesinhas» e as varinas


de «O Sentimento dum Ocidental»

como objeto do estímulo erótico

- mulher objeto – vista enquanto estímulo dos sentidos carnais,


sensuais, como impulso erótico (ex: atriz de «Cristalizações»).

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