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0 discurso de Antonio Conselheiro sobre a Republica José Luiz Fiorin Os monarquistas foram apontados como instigadores do movimento de Canudos, que pretenderia, sob 0 co- mando do conde D’Eu, a restauracdo monérquica. Essa alegacdo serviu de pretexto para que, depois de encarniga- da resisténcia, se arrasasse o arraial dos conselheiristas. O préprio Eucli- des da Cunha, em artigo intitulado “A nossa Vendéia”, ao tracar um paralelo entre os canudenses e os rebeldes da in- surreicdo contra-revolucionaria, que eclodiu na Vendéia em 1793, que se as- sociaram ao movimento dos aristocra- tas, formando 0 “‘exército catélico e real” sob a insignia do “Sagrado Cora- do”, aceita essa idéia. E bem verdade que ‘depois ele alterou sua posicao. Lembremo-nos de que Os sertées ter- minam com a seguinte frase: “E que nao existe um Maudsley para as loucu- ras e os crimes das nacionalidades. . ”” Nao nos interessa, porém, analisar com minicia as posicdes de Euclides da Cunha. A questao que propomos discutir é a seguinte: o Conselheiro era monarquista? Para responder a essa questo, par- tiremos do exame do manuscrito en- contrado por Joao Pondé entre os per- tences do Conselheiro. O manuscrito é auténtico e do proprio punho do Con- ‘selheiro, pois a caligrafia do texto ea assinatura s4o iguais as de duas cartas de autoria do beato, guardadas no Ins- tituto Histérico e Geografico da Bahia (Nogueira, 1974:23). O manuscrito con- tém prédicas e discursos do beato de Canudos. Est4 dividido em quatro par- tes: a primeira apresenta vinte e nove meditacées sobre os mistérios da Vir- gem Maria; a segunda compoe-se de dez prédicas e cada uma versa sobre um dos mandamentos da Lei de Deus; a terceira contém alguns comentarios sobre assuntos piedosos e textos em la- tim extraidos da Escritura, acompa- nhados da respectiva traducdo; a quar- ta 6 composta de prédicas de circuns- tancia e discursos. O tltimo discurso da quarta parte intitula-se “Sobre a Republica’. Lendo-0, conclui-se que o Conselhei- ro era monarquista. Diz ele: Agora tenho de falar-vos de um as- sunto que tem sido o assombro e 0 abalo dos fiéis, de um assunto que s6 a incredulidade do homem ocasiona- ria semelhante acontecimento: a Re- publica, que é incontestavelmente um grande mal pa- ra 0 Brasil que era tao bela sua estrela (560).1 Duas sao as raz6es 1 Os nameros entre parén- teses depois das citagdes de textos do Conselheiro re- metem a pagina do manus- crito, publicado no livro de Ataliba Nogueira, citado que levam o Conse- na bibliografia. Iheiro a opor-se ao novo regime: a) a Reptblica é ilegitima; b) a Republica pretende acabar com a religido. Analisemos 0 primeiro motivo. O beato diz que: todo poder legitimo é emanacao da © "Trabalho apresentado no painel “A Repabli- ca no Brasil: discurso e sentidos”, em 09/11/89, durante o evento “Um século de educacao rept blicana’ promovido pela Faculdade de Bduca- cao — UNICAMP. “ Professor da USP. 82 Pro-Posigdes N° 3 — dezembro de 1990 Onipoténcia eterna de Deus e esta sujeito a uma regra divina, tantona ordem temporal como na espiritual, de sorte que, obedecendo ao pontifi- ce, ao principe, ao pai, a quem é real- mente ministro de Deus para o bem, a Deus s6 obedecemos (566). Todo poder, na viso conselheirista, emana de Deus e em seu nome é exer- cido. A quem Deus atribuiu o poder de governar? Ao Romano Pontifice, que é 0 chefe supremo da ordem espiritual, e ao monarea, que é o cabeca da ordem temporal. O beato aceita integralmen- tea doutrina do direito divino dos reis: Quem nao sabe que o digno principe osenhor dom Pedro 3° tem poder le- gitimamente constituido por Deus para governar o Brasil? Quem nao sabe que 0 seu digno avé o senhor dom Pedro 2°, de saudosa meméria, nao obstante ter sido vitima de uma traicdo a ponto de ser langado fora de seu governo, recebendo tao pesado golpe, que prevalece o seu direito e, conseqiientemente, s6 sua real fami- lia tem poder para governar o Bra- sil? (568-569). Ora, se o beato aceita a doutrina do direito divino dos reis, deve por conse- qiiéncia considerar a Reptblica ilegi- tima. Diz ele: E evidente que a Republica perma- nece sobre um principio falso e dele nao se pode tirar conseqiiéncia legi- tima: sustentar o contrario seria ab- surdo, espantoso e singularissimo; porque, ainda que ela trouxesse 0 bem para o pais, por si émé, porque vai de encontro a vontade de Deus, com manifesta ofensa de sua divina lei. Como podem conciliar-sea lei di- vina eas humanas, tirando o direito de quem tem para dar a quem nao tem? (567-58). O princfpio falso sobre o qual se apéia a Republica é o de que todo po- der emana do povo e em seu nome é exercido. Mostrou-se acima que, para o Conselheiro, todo poder vem de Deus e 6 desempenhado em seu nome. Como, para ele, o monarca é legitimamente estabelecido por Deus para governar 0 Brasil, o presidente nao passa de um usurpador e a Republica é ilegitima: O presidente da Republica, porém, movido pela incredulidade que tem atraido sobre ele toda sorte de ilusoes, entende que pode governar o Brasil como se fora um monarca legitima- mente constitiido por Deus (564). Mas esse sublime sentimento nao do- mina 0 coracdo do presidente da Re- pablica, que a seu talante quer go- vernar Brasil, praticando tao cla- morosa injustica, ferindo assim o direito mais claro, mais palpavel da familia real, legitimamente consti- tuida para governar o Brasil (617-618). Cabe lembrar que, na visdo conse- Iheirista, nenhuma razdo poderia exis- tir para desobedecer a lei divina. Na- da se sobrepunha a ordem instaurada por Deus. Os fins nao poderiam justi- ficar os atos. Por isso, afirma que, mes- mo que traga o bem para o pais, a Re- pablica é ma. Observe-se que sua opo- sicdo A Reptblica é fundada na doutrina catolica. Além disso, mostra que nao pode a ordem temporal sobre- por-se a espiritual. Aquela deve ade- quar-se a esta. Nesse ponto, como alias em outros, pde-se de acordo com o ul- tramontanismo de Pio IX, que, na 42? proposi¢do do Syllabus errorum, con- denara a tese de que ‘‘em conflito entre os dois poderes (espiritual e temporal) deve prevalecer o poder civil”. H4 um outro ponto a considerar. O Conselheiro sustenta que o herdeiro le- gitimo de D. Pedro IT é seu neto D. Pe- dro III. Como 0 manuscrito é datado de 1897 e D. Pedro II morrera em 1891, 0 imperador seria 0 seu sucessor. A Constituicdo de 1824 estabelecia que a forma de governo era mondrquico- hereditaria, constitucional e represen- tativa; que a dinastia imperante era a de D. Pedro I; que a sucesso deveria obedecer a ordem regular de primoge- nitura, prevalecendo sempre a linha 83 O discurso de Ant6nio Conselheiro anterior as posteriores; na mesma li- nha, o grau mais préximo ao mais moto; no mesmo grau, 0 Sexo mascul no ao feminino; no mesmo sexo, a pes- soa mais velha a mais moga. D. Pedro II teve quatro filhos: D. Afonso, que morreu em 1847 aos dois anos; D. Isa- bel, princesa imperial e regente do Brasil; D. Leopoldina, que faleceu em 1871; D. Pedro, que morreu em 1850 também aos dois anos. Assim, os su- cessores de D. Pedro seriam, antes que qualquer um deles tivesse filhos, D. Afonso, D. Pedro, D. Isabel e D. Leopol- dina. Como os do sexo masculino mor- reram aos dois anos de idade, a Prince- sa Isabel, seria, segundo a Constitui- cao do Império, a sucessora. Ora, em 1897 ela estava viva, pois s6 viria a fa- lecer em 1921. Assim, o neto D. Pedro nao poderia sero herdeiro legitimo. A Princesa Isabel teve trés filhos: D. Pe- dro de Alcantara, principe do Gréo- Para, D. Luis Felipe e D. Anténio Gas- tao. O neto mais velho do Imperador era, porém, D. Pedro Augusto, filho de D. Leopoldina. J4 anteriormente se co- gitara, nas classes dominantes brasi- Ieiras, de fazer com que D. Pedro Au- gusto passasse a frente da tia na linha de sucessao. A Princesa era considera- da fatil e clerical, décil aos ditames de Roma; o Conde era tido como arrogan- te e, ademais, era dono de corticos no Rio pelos quais cobraria aluguéis altis- simos das pessoas pobres. Temia-se que, com a morte do Imperador, ele viesse a ser o governante de fato. Quem €D. Pedro III, a que se refere o Conse- Theiro, D. Pedro de Alcantara ou D. Pe- dro Augusto? Como D. Pedro Augusto de Saxe-Coburgo e Braganca sofria de disttirbios mentais que se acentuaram depois da morte de D. Pedro II, a pon- to de ser internado em outubro de 1892, depois de uma tentativa de suicidio, num sanatério da Austria, onde per- maneceria por muitos anos, certamen- te o Conselheiro se referia a D. Pedro de Alcantara de Orléans e Braganga, filho da princesa Isabel. De qualquer modo, a legitimidade preconizada pe- lo Conselheiro violava a Constituigéo do Império. ‘O segundo motivo que impele o bea- to a opor-se a Republica é que, segun-. do ele, ela é fruto da incredulidade e, por isso, deseja acabar com a Igreja: Hoje porém foge toda a seguranca, porque um novo governo acaba de ter o seu invento e do seu emprego se lanca mao como o meio mais eficaz e pronto para o exterminio da religiao (661). Dois crimes concretos séo imputa- dos ao novo regime: a proibicéo da Companhia de Jesus e a instituicao do casamento civil. Quanto ao pri- meiro, diz o beato: “‘chegando a in- credulidade a ponto de proibir a Companhia de Jesus” (561). Essa afirmacio é interessante porque o governo republicano tentou proscre- ver a Companhia de Jesus, mas nao o conseguiu. O beato estende-se na discussao do problema do casamento civil. Afir- ma que ele é “‘incontestavelmente nulo” e, portanto, ‘‘ocasiona 0 peca- do do escandalo” (610). A unio civil, para o Conselheiro, no passa de con- cubinato. Apela aos pais para que de- fendam as filhas desse pecado (609). Conclama-os a sustentar a moralida- de de suas famflias (612). Reitera a doutrina tradicional da Igreja sobre o matriménio e afirma que sé a Igre- ja tem autoridade para celebrar ca- samentos (604-606). Observe-se, em primeiro lugar, que o beato diz que os pais devem defender as filhas (e ndo os filhos) dos efeitos nocivos do pecado de concubinato. Comparando essa afirmagdo com a prédica sobre o 9° mandamento ‘“‘Nao desejar a mulher do préximo”, verifica-se que o beato considera a mulher um ser fragil, sujeito a tentacdo e propenso ao pecado e que, portanto, tem de ser defendido (409). Note-se, em segundo lugar, que a posicdo do Conselheiro em relacdo ao casamento civiléada Igreja de seu tempo. Pio IX, em carta 84 enviada ao Rei Vittorio Emmanuelle, do Piemonte, em 1852, condenaa insti- tuicdo do casamento civil naquele rei- no, observando que tal pritica ndo pas- sa de concubinato e que o vinculo ma- trimonial é indissoluvel (Chantrel, 1861, p. 109-111). Para o Conselheiro, a Republica é produto da usurpacdo. Despojaram o imperador do governo. Manifesta cren- ¢a absoluta na restauracdo da Monar- quia, porque, segundo ele, Deus casti- ga o pecado e premia 0 justo. E erro de aquele que diz que a fami- lia real ndo ha de governar mais o Brasil: se este mundo fosse absoluto, devia-se crer na vossa opiniao; mas nao hé nada de absoluto neste mur do, porque tudo esta sujeito a santt: sima Providéncia de Deus, que diss pao plano dos homens e confunde do modo que quer, sem mover-se do seu trono. A Republica ha de cair por ter- ra para confuséo daquele que conce- beu tao horrorosa idéia. Convengam- se, republicanos, que ndo hao de triunfar, porque sua causa é filha da incredulidade, que a cada movimen- to, a cada passo esta sujeita a sofrer o castigo de tao horroroso procedi- mento (615). O enunciado em que o Conselheiro afirma que ocorreré a restauracdo es- +4 sobremodalizado pela modalidade epistémica da certeza. Ele enuncia es- se fato politico como se enunciasse um ponto de dogma ou de moral. Alias, to- do 0 texto se apresenta como verdade eterna e indiscutivel. A restauracdo se dar4 por interferéncia de Deus, que desfaré a usurpacao e castigara os que atentaram contra o direito do sobera- no. Na visao histérica do Conselheiro, Deus determina o que os homens de- vem fazer, julga suas acées, premian- do-os ou castigando-os, e age, alteran- do os fatos segundo sua vontade. A Re- publica é 0 erro, o pecado (565-566). Por isso, todo homem deveria opor-sea ela. Estar do lado da Monarquia é estar de acordo com a verdadeira doutrina. No Pro-Posigdes N° 3 — dezembro de 1990 entanto, o Conselheiro néo prega a lu- ta armada contra o regime republica- no, 0 que alias seria desnecessario, uma vez que Deus vai derrubd-lo. O beato pede apenas que o catélico nao compactue com ele: Homens que olham por um prisma, quando deviam impugnar generosa- mente a Republica, dando assim bri- lhante prova de religiao (562); Por mais ignorante que seja 0 ho- mem, conhece que é impotente o po- der humano para acabar com a obra de Deus. Considerem, portanto, es- tas verdades que devem convencer Aquele que concebeu a idéia da Re- publica, que é impotente o poder hu- mano para acabar com a religido (563-564); Creio, nutro a esperanca que mais ce- do ou mais tarde hé de triunfar o seu direito (da familia real), porque Deus far4 devida Justica, e nessa ocasido viré a paz para aqueles que generosamente tém impugnado a re- publica (618). A Reptblica, segundo 0 beato, tem origem no édio que os senhores de es- cravos nutriam pela familia real, por- que a Princesa Isabel acabara coma es- cravidao (619). O Conselheiro diz quea escravidao é 0 estado ‘‘mais degradan- te a que podia ver reduzido o ente hu- mano” (619). No entanto, se o Conse- Iheiro era contra a escravidao e viana libertacdo dos escravos um ato louvé- vel da Printesa Isabel, precisaria ex- plicar por que os escravos nao foram li- bertados antes. A explicacdo é nova- mente religiosa: por sua alteza a senhora Dona Isabel libertou a escraviddo, que nd4o fez mais do que cumprir a ordem docé por que era chegado 0 tempo marca- do por Deus para libertar esse povo de semelhante estado (619); Chegou enfim o dia em que Deus ti- nha de pér termo a tanta crueldade, 85 O discurso de Ant6nio Conselheiro movido de compaixéo a favor de seu povo e ordena para que se liberte de tdo penosa escravidao (623); Mas os homens ndo penetram a ins- piracdio divina que moveu 0 coracéo da digna e virtuosa princesa para dar semelhante passo; nao obstante ela dispor do seu poder, todavia era de supor que meditaria, antes de o porem execucao, acerca da persegui- cao que havia de sofrer (620-621). Por esses textos, observa-se que 0 Conselheiro nao era contra a escravi- dao em si, mas porque Deus resolvera terminar com ela. Se chegara o tempo, marcado pela divindade, de libertar os negros da escravidao, quer dizer que houve um tempo em que tal pratica foi permitida por Deus, sendo, portanto, legitima. E preciso notar ainda que o Conselheiro apéia a abolicdo, porque quem a realizou, por inspiracao de Deus, foi a Princesa Regente, que dis- punha de poder, emanado do céu, para isso. Para o beato, qualquer alteracao na ordem econ6mico-social sé pode ser realizada por aqueles que foram cons- tituidos por Deus para mandar. A pro- va de que a abolicdo era vontade de Deus éa disposicao da princesa em as- sinar a Lei Aurea, mesmo sabendo que poderia perder o trono (621-622). O Conselheiro afirma que o trabalho escravo é que gera a riqueza dos senho- res e critica a estes por responderem “com ingratiddo e insensibilidade ao trabalho que desse povo recebiam” (622). Critica duramente os castigos e as péssimas condigdes de vida dos es- cravos (623) e ndo a escravidao. Quais sao os recursos argumentati- vos de que se vale o Conselheiro para persuadir seu auditério? Sao basica- mente dois. O primeiro é a invocacéo da autoridade da palavra de Deus. O que estiver de acordo com a Biblia es- ta certo. E bem verdade que nem sem- pre hé adequacdo entre o que se afirma e 0 texto biblico citado. Nao importa, o que é preciso é mostrar que quem fa- lando fala em seu nome, mas repete o que foi enunciado por Deus: 86 Convencam:se, republicanos, que nado hao de triunfar porque a sua causa é filha da incredulidade, que a cada movimento, a cada passo esta sujei- ta a sofrer 0 castigo de t4o horroro- so procedimento. Para prova destas verdades vejam 0 que sucedeu aos habitantesde Jerusalém, que fecha- ram os olhos e nem conheceram 0 que Ihes havia de suceder, movidos pela incredulidade, nao obstante se- rem advertidos por Nosso Senhor Je- sus Cristo que, olhando para aquela cidade, chorou a destruigao dela ea desgraca de seu povo, dizendo — Ah! se ao menos neste dia que agora te foi dado conhecesses 0 que te pode tra- zer a paz, mas por ora tudo isso esté encoberto aos teus olhos (Le., cap. 19, v. 42) (616-617). O outro recurso argumentativo é a naturalizagéo do social, mediante a comparacéo de um fato da historia hu- mana com um fendmeno da natureza: Quem néo sabe que o digno principe o senhor do Pedro 3° tem poder legi- timamente constituido por Deus pa- ra governar o Brasil? Quem ndo sa- be que o seu digno avé o senhor dom Pedro 2%, de saudosa memoria, nao obstante ter sido vitima de uma trai- cdo a ponto de ser lancado fora do seu governo, recebendo tao pesado golpe, que prevalece o seu direito e, conseqiientemente, sé sua real fami- lia tem poder para governar o Bra- sil? Negar estas verdades seria 0 mesmo que dizer que a aurora ndo veio descobrir um novo dia (568-569). O discurso do Conselheiro sobre a Republica, mesmo versando sobre t ma politico, ndo é um discurso politi- co, mas um discurso religioso. Esses dois tipos de discurso nao se distin- guem pelo objeto ou pelo tema, mas pe- la estrutura. O discurso religioso “se daa partir da esfera do sagrado, supde a adesdo da fé a uma revelacdio sobre- natural, fala sobretudo do que deve ser”. O outro ‘‘se dé a partir da esfera do real, dentro da racionalidade cien- Pro-Posigdes N° 3 — cezembro de 1990 tifica e visa a transformacao da reali- dade” [Betto (Frei), 1978:99). “O discur- so politico é analitico e propde uma ago conereta, enquanto 0 religioso é genérico, limitando-se a enunciar con- ceitos” (idem, 1978:105). Isso ndo quer dizer, no entanto, que o discurso religio- so nao implique um discurso politico. ‘A oposicdo 4 Reptblica se dé a partir da esfera do sagrado. A Monarquia é apresentada como expressdo da vonta- de de Deus e o homem deve aderir a es- sa verdade pela fé. O Conselheiro nao propée qualquer acdio concreta contra o regime republicano. Limita-se a enun- ciar principios e a manifestar a crenga de que a Monarquia sera restaurada, porque o homem nada pode contra a vontade de Deus. E 0 Onipotente quem vai mudar esse estado de coisas gerado, segundo © beato, pela incredulidade dos homens. Uma vez que o discurso sobre a Repi- blica é religioso, ndo hi, nele, preocupa- cdo maior com a légica das proposicoes. Nele, formulam-se conceitos que deve ser integralmente aceitos. Nada ha a ser questionado, debatido, mas so- mente o que deve ser acolhido. Pelo que foi exposto, pode-se concluir que o monarquismo do Conselheiro nao deriva de uma escolha pessoal sobre a melhor forma de governo para seu pais, mas de sua propria ortodoxia religiosa. E a aceitacdo do quadro doutrindrio cat6lico-tridentino que Ihe impée um pensamento politico determinado. Diz Duglas Teixeira Monteiro que 0 beato de Canudos é um homem piedoso, e os valores religiosos permeiam toda a sua existéncia, desde suas atividades coti- dianas até seu pensamento politico (1977:59). Essa afirmacdo poderia receber a se- guinte objecdo: a hierarquia da Igreja Catélica do Brasil exprimira, na Pasto- ral de 1890, a teoria da neutralidade da Igreja diante dos regimes politicos, 0 que lhe possibilitava aceitar a Republi- ca sem problemas e até rejubilar-se com a extingdo do Padroado. Diz Ralph Della Cava: Embora o novo regime tivesse conse- guido ferrenha fidelidade dos mem- bros da alta hierarquia eclesiastica, os curas sertanejos continuavam a temer que a politica de tolerancia re- ligiosa da recém-proclamada Rept- blica coroaria a Maconaria, o Protes- tantismo e o Positivismo com inqua- lificdvel triunfo sobre a £6. O Con- selheiro ndo poderia deixar de ser in- fluenciado por tais curas, e existe evidéncia de que estes encorajaram ativamente o beato a pregar em prol de sua causa. Mas as pressées politi- cas da Republica sobre a hierarquia da Igreja na Bahia aumentaram de- pois de 1895 e foram, por seu turno, comunicadas aos padres do interior. Sob tais press6es, sacerdotes ante- riormente amigos abandonaram o Conselheiro e, como vira-casacas, acusaram-no de traigéo ao regime a que seus bispos aderiram (1975:125-6). Como 0 Conselheiro nao podia enten- der os jogos de poder praticados pela hierarquia para manter os privilégios da Igreja, defendia valores abandona- dos pelos dirigentes eclesidsticos, mas coerentes com a cosmovisao catélica. O Conselheiro, possivelmente, ndo co- nhecia a real situacdo da Igreja, duran- te o Império, com o instituto do Pa- droado. Seu discurso, porém, revela-se plenamente de acordo com a orienta- cdo doutrinaria emanada da Sé¢ Roma- na (Ver as proposicées 63, 73, 74, 53, 65 e71 do Syllabus errorum e p. 6 da En- ciclica Quanta cura). Como Dom Qui- xote, o Conselheiro pagou muito caro oerro de acreditar que ha instituicdes eternas, imutdveis, compativeis com todas as formas econémicas da socie- dade. O discurso sobre a Republica mostra que o drama do Conselheiro foi acreditar que os ensinamentos da Igre- jaeram verdades eternas e insistirem pregé-los num mundo cada vez mais hostil a eles, num momento em que os proprios bispos os tinham abandonado. 87 O discurso de Anténio Conselheiro Referéncias bibliograficas BETTO (Frei). Da pratica da pastoral popular. Encontros com a Civilizacdo Brasileira. v. 2: 95-112, agosto, 1978. DELLA CAVA, R: Messianismo brasileiro e instituigdes nacionais: uma reavaliacado de Canudos e Juazeiro. Revista de Ciéncias Sociais. VI (1 e 2): 121-139, 1975. MONTEIRO, D. T. “‘Juazeiro, Canudos e Contestado”. In: FAUSTO, Boris (org.) — His- toria geral da civilizacdo brasileira. Rio de Janeiro, Difel, 1977. v. 2, t. III. NOGUE! nal, 1974. ‘A, A. Anténio Conselheiro e Canudos: revisdo historica. Paulo, Nacio- PIO IX. Enciclica Quanta cura. Petrépolis, Vozes, 1951. abus errorum. Petropoli , Vozes, 1951. aS CHANTHEL, J. Annales ecclésiastiques de 1846 a 1860. Paris, Gaume Fréres et J. Du- prey, 1861. Re Este trabalho tenta dis- SUINNO ciitiz a questao: Antonio Conselheiro era monarquista? Para res- ponder a essa questdo analisou-se 0 ma- nuscrito de autoria de Anténio Conselhei- ro contendo prédicas e discursos. O manus- crito est dividido emi quatro partes ¢ 0 iltimo discurso da quarta parte intitula- se “Sobre a Reptblica”. De acordo com es- te discurso, Antonio Conselheiro ¢ um mo- narquista. Ele é contra o novo regime por duas razoes: primeiro, a Republica é ilegi- tima; e segundo, a Republica pretende abo- lira religido. Para Anténio Conselheiro, to- do poder emana de Deus e em seu nome ¢ exercido. De acordo com a vontade divina, © papa tem o supremo poder espiritual e omonarca é o cabeca da ordem temporal. Conselheiro aceita plenamente a doutrina do direito divino dos reis. Como 0 monar- ca é legitimamente estabelecido por Deus para governar o Brasil, o presidente da no- va Republica é um usurpador e a Republi- ca éilegitima, A segunda razéo para ele ser contra a Republica é de que ela é 0 resul- tado da incredulidade e, portanto, deseja abolir a Igreja. Dois crimes coneretos sao imputados ao novo regime: a proibicéo da Companhia de Jesus ¢ a instituicéo do ca- samento civil. Antonio Conselheiro acre- dita na restauracao da Monarquia através da intervencéo divina, uma vez que a Re- publica é um erro e um pecado. Palavras-chaves: Anténio Conselheiro ea Republica; Anténio Conselheiro e a Mo- narquia; Antonio Conselheiro e critica ao regime republicano; Antonio Conselheiro monarquista; Monarquia e Antonio Con- selheiro. 88 Ab: t This paper tries to dis- SULACL cuss the question: was Anténio Conselheiro a monarchist? To respond to this question the author ana- lyzed the manuscript written by Anténio ‘onselheiro containing sermons and dis- courses. The manuscript is divided into four parts and the last discourse of the fourth part is called “About the Republic”. ‘According to this discourse, Anténio Con- selheiro is a monarchist. He is against the new regime for two reasons: first, the Republic is ilegitimate; and second, the Republic intends to abolish religion. To Anténio Conselheiro, all power emanates from God and is exercised in his name. Ac- cording to God's will, the pope has the gupreme spiritual power and the monarch is the head of the temporal order. Conse- Theiro fully accepts the doctrine of the di- pine right of Ieings. Since the monarch is legitimately established by God to govern Brazil, the president of the new Republic is an usurper and the Republic is tlegiti- mate. The second reason for him to be against the Republic is that it is the result Of incredulity and therefore desires to abolish the Church. Two concrete crimes are imputed to the new regime: the prohi dition of the Jesuit Company and the ins- titution of the civil marriage. Anténio Conselheiro believes in the restauration of the Monarchy through God's intervention, since the Republic is an error and a sin Key-words: Anténio Conselheiro and the Republic; Antonio Conselheiro and the Monarchy; Monarchy and Anténio Consel- heiro; Antonio Conselheiro and critique of republican regime; Anténio Conselheiro monarchist.

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