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O ADVOGADO E A ADMINISTRACAO DA JUSTIGA SEGUNDO A CONSTITUIGAO DE 1988 Orlando Teixeira da Costa (*) O art. 133, da Constituigao de 1988, preceitua: “O advogado é indis- pensavel @ administragao da justia, sendo invioldvel por seus atos e mani- festagdes no exercicio da profisséo, nos limites da lei.” A expresso “indispensavel @ administragéo da justica” vem provocando interpretagoes inadequadas, que, no entanto, nao possuem nenhuma justificagdo. & que se tem entendido essa disposicéo, como uma forma de assegurar, de modo absoluto, 0 monopdlio do jus postulandi a nobre classe dos. advogados, quando, entretanto, nao 6 esse o espirito da lei, conforme procuraremos demonstrar. Convém, de inicio, registrar, que esses termos nao constituem nenhuma inovacéo em nosso direito pois o art. 68, da Lei n. 4.215, de 27 de abril de 1963, j4 os consignava de modo expresso, como transcreveremos a seguir: “Art. 68 — No seu ministério privado o advogado presta servico pUblico, constituindo, com os juizes e membros do Ministério Pdblico, elemento indispensével & administragdo da justica”. — Qual o significado dessa preceituagao? E que se atribuiu uma nova natureza juridica a advocacia, conforme ensinam varios autores de nomeada, dentre os quals passarel a citar alguns. Ant6nio Carlos de Aratijo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e -Candido Rangel Dinamarco, no seu livro Teoria Geral do Processo, ensinam: “Tradi- cionalmente, sustenta-se que a advocacia 6 uma atividade privada, que os advogados sao profissionais liberais, e que se prendem aos clientes pelo vinculo contratual do mandato, combinado com locagao de servigos. Moder- namente, formou-se outra corrente doutrindria para a qual, em vista da fungéo do advogado no processo, a advocacia tem cardter piublico, e as telagdes entre patrono e cliente séo reguladas por contrato de direito pUblico” (ob. cit., pag. 189). Minudenciando um pouco mais a doutrina, Moacyr Amaral Santos, no 1° volume da sua obra Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, escla- rece: “Conforme antiga teoria, a advocacia se havia como de natureza (1 © autor € Ministro Togado de Carreira do Tribunal Superior do Trabalho e Professor Titular da Universidade Faderal do Paré, colocado a disnosicao da Universidade da Brasilia 67 contratual, pois que exercida pela forca do contrato de mandato. Segundo outra, ainda é de natureza contratual, porquanto no exercicio da advocacia predomina 0 Contrato de Lecacéo de Servicos, sendo a procuracgdo apenas uma condigao legal para o cumprimento daquele contrato pelo advogado (Lopes da Costa). Para outros, na advocacia se verifica um contrato inomi- nado, pelo qual 0 advogado se obriga ao cumprimento de certas obrigagées, cabendo-lhe em retribuicéo honordrios, nao salario (Garsonnet’ et Bru). A essas teorias. de natureza privatista, em que o advogado 6 visto apenas nas suas relagdes com o cliente, se opde a que o encara, exclusivamente, ou. preferencialmente, no seu papel de servidor da justiga, e que desem- penha mesmo quando assiste e representa o cliente. Essa, a teoria mais em voga, entende que a advocacia é fungao ptblica, visto que o contrato entre o advogado e o cliente 6 de direito piblico (Calamandrei, Zanobini, Mario Guimaraes de Souza, Targino Ribeiro)” (ob. cit., pég. 316). Daj por que Nehemias Gueiros, relator da comisséo que elaborou o anteprojeto do Estatuto da OAB e seu autor principal, versando a respeito da expresso “elemento indispensdvel a administragdo da justica", explica de maneira a nao deixar duvidas, em seu livro A Advocacia e o Seu Esta- tuto: “Deixou, 0 advogado, de ser a excrescéncia desdenhada por alguns ou a simples facgao litigante encarada na sua parcialidade obrigatoria como elemento perturbador da veneranda serenidade do juizo. & ele, agora, o proprio juizo, numa das suas justaposicdes essenciais e impreteriveis, compondo e contrapondo, com 0 outro causidico que se Ihe defronta, nao apenas o contraditério processual, mas a propria jurisdigéo do Estado, que sem ele — e s6 com o magistrado — néo seria a Justica, mas o arbitrio despético e prepotente ou o dogma distribuido como mercé pater- nalista aos: validos e favoritos das simpatias @ inclinagdes pessoais do pader unipessoal judicante" (ob. cit. pag. 38). Claro,-pois, qué o art. 133 da nova Constituigdo, apenas transferiu para 0 seu texto a expresséo de uma teoria j4 consagrada pela legislacéo ordindria, ou seja, a que encara como de direito publico a natureza da advocacia, sem que isso importe em criar um injustificdvel monopélio do seu exercicio, que se instituiria contra os fins sociais da Constituicao e as exigéncias do bem comum. Tanto isso é verdade, que o Estatuto da OAB, que consagrou a teoria publicista, sempre conviveu, como vai conviver a atual Carta Magna, com 0 jus postulandi da parte, encarado como excecéo a regra geral da obriga- toriedade da presenga do advogado. Assim é que, a prdpria Lei n. 4.215, de. 1963,. estabeleceu em seu artigo 75: “E licito a parte defender seus direitos, por si mesma ou por procurador apto mediante licenga do juiz competente: | — N&o havendo ou n&o se encontrando presente, na sede do juizo, advogado ou provisionado; 11 — Recusando-se a aceitar o patro- cinio da causa, ou estando impedidos os advogados e provisionados presen- 68 tes na sede do juizo, que serdo ouvidos previamente sobre o pedido de licenga; Ili} — N&o sendo da confianga da parte os profissionais referidos no incise anterior por motivo relevante e provade. Pardgrafo unico — ;Nas hipéteses previstas neste artigo, tratando-se de matéria criminal, qualquer cidadao apto poderd ser nomeado defensor do réi Essa mesma disposigéo vem prevista na parte final do art. 36 do Cédigo de Processo Civil, de modo menos amplo, mas sempre em sentido genérico. E que a regra obrigat6ria da intervengéic do advogado como. pro- curador da parte,-no direito brasileiro, conforme Moacyr Amaral Santos, “por motivos de ordem prdtica ou de forca maior", apresenta “algumas excegdes, em que se faculta ou se permite a defesa dos direitos em juizo pela propria parte ou mesmo por procurador apto, a saber: | — Quando a parte, ou seu representante legal, “tiver habilitacao legal ou, néo a tendo, no caso de falta de advogado no lugar ou recusa ou impedimente des que houver" (Céd. Proc. Civil, art. 36, segunda parte). Nesses casos diz-se que a parte postula em causa propria. ll — Mediante licenga do juiz competente (Estatuto da Ordem’ dos Advogados, Lei n. 4.215, de 27.4.1963, artigo 75): a) n@o havendo ou n&éo se encontrando presente, na sede do juizo, advogado ou provisionado; b) recusando-se a aceitar o patrocinio da causa, ou estando impedidos, os advogados © provisionados presentes na sede do juizo, que seréo ouvidos. previamente sobre o pedido de licenca; ¢) no sendo da confianga da parte os profissionais ‘referidos na-letra anterior, por motivo relevante e provado. Aquela regra se oferecem, ainda, outras excegdes, que ocorrem com relacéo a certos e determinados atos. E 0 que se dé: a) nos pedidos de desquite amigdvel (hoje, separagéo consensual =2 Paréntesis nosso}, que devem ser assinados pelos préprios cénjuges “ou a seu rogo, se néo souberem ou néo puderem escrever (Céd. Proc. Civil, artigo 1.120}; b) no ato de conciliagaio (Céd. Proc. Civil, arts. 447 a 449, 278, § 12); c) nas intimagdes, que podem ser feitas as partes, aos seus represen. tantes jegais e aos advogados por oficial de justiga, se a lei nao dispuser de outro modo (Céd. Proc. Civil, art. 238)” fob. cit., pag. 311). As exceg6es nao ficam, porém, no terreno do Direito Processual Civil. Muito mais importantes so os casos excepcionais registrados por outras leis. A Constituigéo assegura, como direito individual, o Habeas Corpus fart. 5°, LXVII, que, nos termos do art. 654 do Cédigo de Processo Pe- nal, “poderé ser impeirado por qualquer pessna, em seu favor 6a Dispondo sobre a criagéo e funcionamento do Juizado Especial de Pe- quenas Causas, constitucionalizado pelos artigos 98, | e 24, X, da Carta Magna vigente, a Lei n. 7.244, de 7.11.84, previu no seu artigo 9.°, caput, que “as partes compareceréo sempre pessoalmente, podendo (faculdade — paréntesis nosso) ser assistidas de advogado”. No § 1° desse mesmo artigo prevé-se, ainda, que “se uma das partes comparecer assistida por advogado, ou se o réu for pessoa juridica ou firma individual, teré a outra Parte, se quiser (faculdade — paréntesis nosso), assisténcia judicidria...". Apenas, na interposigao do recurso é que se faz necesséria a presenca do advogado (art. 41, § 2.°}, sendo que, no entendimen- to de Theoténio Negro, “dispensa-se a intervengéo de advogado nos em- bargos de declaragéo para o proprio juiz (Cédigo de Processo Civil e Le- gislagéo Processual em vigor, 17.’ edic¢&o, pagina 848, nota n. 11). O pedido a ser feito no Juizado Especial de Pequenas Causas pode ser por escrito ou oralmente. O pedido oral deve ser reduzido a escrito pela Secretaria do Juizado (art. 15 e seu § 3.°), obedecendo ao modelo de pro- cedimento que ha quase 50 anos vem sendo utilizado pela Justica do Tra- balho. Por fim, a exceg&o mais importante, que vem sendo atacada, freqiiente- mente, pelos que pretendem reverter a teoria publicista a respeito da na- tureza juridica da advocacia através de uma interpretacéo monopolista. Pelo art. 839 da CLT, nos dissidios individuais, “a reclamagéo poder ser apresentada: a) Pelos empregados e empregadores, pessoalmente, ou por representantes, e pelos Sindicatos de Classe”. Essa excecéo vem sendo tradicionalmente adotada, com sucesso, por motivo de ordem pratica e atendendo as exigéncias do bem comum. € que nem sempre as agdes trabalhistas possuem valor econémico significativo, como nos casos em que o trabalhador reclama a anulacdo de meio ou um dia de suspens&o, um ou dois dias de sal4rios nao pagos, meia duzia de repousos semanais remunerados e assim por diante. Nesses casos, 0 patrocinio néo oferece nenhum atrativo ao advogado, © que importaria em negar a prestacdo jurisdicional ao hipossuficiente, se ele tivesse, necessariamente, que recorrer ao Juizo, assistido de advogado, mas nao encontrasse um que se interessasse pelo seu patrocinio. O reverso da medalha também € significativo. A economia moderna estimula a criag&o de pequenas e médias empresas. Alguns paises desen- volvidos, como a Italia, possuem a sua economia basicamente estruturada sobre elas. Num pais como o Brasil, tais empresas também possuem sig- nificativa expresso, tanto que existe legislacdo especifica estimulando-as. Ora, muitas vezes, um pequeno empresério 6 quase téo necessitado quanto 70 um trabalhador de salario minimo e n&o possui condigdes de contratar um advogado para defender os seus direitos em Juizo, sob pena de agravar, ainda mais, a sua situagdo financeira. Se vier a ser adotada a interpretacéo monopolista a respeito da natu- teza da advocacia, todas essas pequenas franquias legais concedidas em favor do preso, do litigante de pequena causa, do trabalhador ou pequeno empresério ruiréo por completo, excluindo, praticamente, da apreciagéo do Poder Judiciério, em desobediéncia ao direito individual do art. 5.°, inciso XXXV, da Carta Magna, lesées ou ameacas a direito, privando, algumas pessoas, de seus bens, do contraditério, da ampla defesa e até mesmo da liberdade, simplesmente porque elas nao quiseram ou n&o puderam cons- tituir advogado. — importante ressaltar, outrossim, que o principio da liberdade sindical ficaré seriamente vulnerado, pois nos termos do art. 8., inciso III, da Cons- tituigéo atual, “ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses cole- tivos ou individuais da categoria, inclusive em questées judiciais ou admi- nistrativas”, sendo de relembrar que, pelo principio do jus postulandi con- sagrado pelo art. 839 da CLT, a reclamagao, em dissidio individual, tam- bém poderé ser apresentada por sindicato de classe, sem assisténcia de advogado. Nunca é demais acrescentar outro dado de natureza social importante. O Brasil possui grandes e pequenas cidades. Aglomeracées -préximas uma das outras ou distanciadas por centenas de quilémetros ou acidentes geo- graficos, sendo que, nestas ultimas, pode haver a figura, freqiientemente presente, do juiz de direito ou, com menos freqiténcia, da Junta de Conci- liagéo e Julgamento, mas sem a presenga constante de advogados. Af tam- bém, a prestacdo jurisdicional, em obediéncia ao jus postulandi do operdrio, do pequeno empresdrio e do sindicato de classe, ficaria prejudicada em face do isolamento imposto pela distancia ou pelos obstdculos fisicos, j4 que normalmente inexistentes advogados nessas localidades. Além dessas razdes de bom senso, cumpre insistir, entretanto, na in- terpretac&o correta do art. 133 da Lei Fundamental. A expressdo “indispen- sével & administragéo da justiga", néo assegura aos advogados nenhum mo- nopélio e nenhum cerceio a qualquer pedido de prestagdo jurisdicional da propria parte, assegurado, por excegdes legais, A regra geral publicista de que o jus postulandi compete ao advogado. Compete, sim, mas comporta as excecées ja enumeradas. O que a Constituigéo quis afirmar ou reafirmar, repetindo a legislagao ordinaria, como procedeu em relacéo a muitos outros direitos, € que o advogado néo mais deva ser, como vem sendo, pelo menos desde 1963, uma “‘excrescéncia desdenhada”, “simples facgao litigante” ou “elemento perturbador do juizo”. Nao, ele foi elevado & dignidade de “ser- vidor da justica", 0 que nao significa que este papel Ihe foi reservado em caréter de exclusividade. 71 A administragdo da justiga deve contar, constantemente, com a cola- boragao valiosa dos advogados, mas essa colaboragéo nao pode ser inter- pretada de tal modo que, em beneficio desse privilégio, se postergue direi- to mais fundamental, qual seja, aquele reconhecido a todo o cidadéo de recorrer ao Poder Judiciario. Implicaria em ignorar as exigéncias do bem comum e os fins sociais da nova Carta Politica, querer eliminar as facilidades que sdo facultadas aos hipossuficientes (pessoas pobres, trabalhadores de baixo salério e empresé- trios de pequeno capital), nos Juizados Especiais de Pequenas Causas e na Justiga do Trabalho. Por isso, € em conclusao, 0 art. 133 da Constituigaéo de 1988, deve ser interpretado no sentido de que a expressdo — “o advogado é indis- pensavel 4 administragéo da justiga" — reserva a esses profissionais uma condigéo de servidor da justiga e néo de monopélio, para que se tenha acesso a ela. Do que decorre que o jus postulandi previsto no art. 839 da Consolidagéo das Leis do Trabalho continua em plena vigéncia, porque absolutamente compativel com o texto constitucional vigente. a 72

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