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JOSE GUILHERME MERQUIOR LIVRARIA JOSE OLYMPIO EDITORA apresenta de A ASTUCIA DA MIMESE (ensaios sdbre lirica) RIO DE JANETRO—1972 Bander VST8 a o NATUREZA DA LIRICA derada como tal © significant a came das palavras & ‘A que se aplica, que € a obra prdpriamente do livro II da Reptiblica (Rep {mitagio perfeta sdmente 24) fal como & norma no teatro tivo, quando o autor fala pela béca de seus perso plo de Platio sfo as primeiras linhas da Hada: por contar como Chry diretamente as express deuses contra os Aqueus, Quando a ns estilo autorial, ou seja, a0 discurso indie’ a oma ao chamado Platio-Sdcrates, obser- tim, a0 detinir © mens em ago”, na repre- (1448 a1). A exallagéo do drama como ¢ esibticamente suprema um ana s de sun époea, que explicam mi da anélise da Poética, Os gregos, para quem 0 poema er 1 da declamagde, portanto do elemento j4 c&nico, viam na no século TV, apenas um estigio anterior & evolugo da de que depois se tornara simples forma ancilar (Atkins): passado a omamiento do dra movida por do ideal. . is, e a poesia, e6pia da conduta inferior, j@ despida de qualquer censura mo- weerra as duas nogdes de mimese, @ ia-se pela tese de que a origem da poesia 6 a 1” (Post, 1448 b 4), que opera na arte como poucos pardgrafos adiante, ao esbogar uma in da poesia, Aristételes jA se limita outra ver a0 resentacho das agbes huma passat © quadro das letras hele estrita © a Tata: “faculdade de de mimese & poesia litica. Aos othos dos XVI que redescobriram a Poética, © modélo morguior 4 jovd gi to Petrarea, € a imitacao em exceléncia nfo era tanto Sofocles, nem Homero, 0 da poe lade estética, fandada na I6gica da lidade”. Esta nfio passa, om suma, da ica de uma platéia sobre a qual o efeito da jf nflo stio emogSes carregadas de penetragio nos manos, mas apenas 0 deleite sem profundidade causado pela sen- stgho do m: télivo mais ou menos até o perfodo , sobretudo, ou. uma Tica de Chicago—segundo a qual 0 fendmenc com ufia definigio gen iquanto no estudo de a Iiricas se empregaria. adap 2 dilatacdo imposta por Varchi hhumanas. Para éle, a esséucia ‘aspecto dinimico: beneficio desta eoncepgio ica tenba sido a preservagio do’ cariter imitativo-da poesia, quando j4 no faltava quem a entendesse de mancira puramente moralizante intestate o asp ta Yor Whe, om so defo do poema em “ifiples Statement. A volta da mimese nio se deu s6 no campo da-¢itiea, mas abrangew também a teorizagio caética, em geral © 03 iraballlos de clussiticagio das artes, em particular: se © wagneriano Konrad Lange, na infancia déste sé- culo, ainda qualifcava a poesia de “iidica’, isto é, oposta as artes ago de Dessoir j4 a defini ia da carne das palavras em pocsia—impor- jor do que na narrativa ou no drama —e apoiados ia do lirico como um tipo determinado de imitago do agit humano, podemos compor o que setia a primeira parte de uma definigfo do poema (litico): Poema é uma espéeie de mensagem verbal fortemente regida, to da linguagem, pela projegiio do pri 4a do plano da selogo das palavras para o plano nna frase, Esla mensagem consiste na imitagio de estados de Animo (stasis). Qual a relagdo existente enire esta. im © a realidade factual? Sabemos Assim, a autonomia do 4 que a teagédia, em- bora dé nomes proprios a seus personagens, lita com 0 homem mais que com homens singulares. 'A imitagio nfo 6 fotogréfics. Ela figura 0 concrelo, mas exibe fo universal. Seré que na literatura, como na lingua, opera uma rimese das formas gerais? B sabido que a Tingtistica de nossos ins comega a integrar 0 conceito de mimese, Verdade é que todo fo esféroo de demonstrar a indole) supostamente onomatopéica da Tinguagem revelou-se vio; ¢ Sausstire insistiu enfiticamente n0 ca~ io do signo linglistico face A reelidade do refer se nfo se pode conéeber/ entre a lingua ¢ as coisas, vima correspondéncia mimétiga ‘de térmo a térmo, i380 no ig formal, a linguagem nfo espelhe, jf nko 0 ‘mundo externo, Algumas relugses gin de hamados universtis lingisticos nao tivos (p. do signifi :", sejam ou no Mediante a representacio niio se lares 6 quo se tronsmitir significagdes de resson‘incin. universal. Por uma espécie do asticia da mimese, a representago do singular logra significagéo naginagio, para que nfo se turve de figurar agdes © nimos que sio vividos, mas irrenis, 1 conscigncia sustente 0 poema pela deci ‘egras respeitadas. Ain 60 comelato de uma fragilidade essa contemplagfio ative—basta. que, sta dos versos, ou divida minha ntenefo entre a seqiléncia das palavras © 8 indagaeio sObre uma realidade que suponha existe por trés elas, © imagine set a sua causa—para que todo © encanto se arrufte, 0 imaginétio se disperse, e © poema, per icagio verdadeira, se reduza ® mais banal, om smonsagens A fidelidade a0 concreto e, de certo modo, a préprin mimese 1 articulago da estrutura verbal do poeina. Um poenia Podemos dizer que a mimese poética que se refletem e se correspondem, antes sentagiio de algo externo, Aristételes mostrou que s6 a arm: interna da intriga, 66 a composigio dos personagens 2 pat dados do drama, ¢ nfo de fora, poderiam consti apreeiagio estética. B preciso estender a nogio de irrelevincia do extrinseco (conforme, aliés, a Poética sogere, em 1461 a 9) ie, A evidéncia da mimese interna nunca € maior do que na litica, 0s estados de Gnimo, tema da imitagao, freqlentemente so mais um horizonte de seferéncia, do que prdpriamente AIG mesmo nos poemas 1 alusividade titi idde de compatagies tio poeiry) de emogio com pensamento, opera sem emocional do poema da ecto simultfinea de uma rara € claro que @ inventividade do posta estaré no como ae diz, nio no que éle diz. Pope poderd copiar & vontade seus gregos & latinos; © que 6 essoncial & que Ale nos serve os temas clissicos mum verso inglés peculiarissimo, Em Este é o rio, a montanha é esta de Cliudio Manuel da Costa, of sitimos versos, Que da mesina saudade 0 infame rutdo Vem as mortas espécies desperrando, ‘uma alusio a Horéeclo; mas a diversidade do siguificante heutraliza tOda relovincia déste fato para a avaliagfio do resultado poético. A citagto clissica deve ser levada em conta no plano dos componentes do son lamente, poréim, ela nfo atribui nem setira coisa elguma & inalidade estética, Segundo Jakobson, a fungo poética (a “‘projeydo” explictada, éginas atrds, em nossa definico do lirico) se combina preferen. ialmente, conforme os grandes géneros bésicos da literatura, com ‘és outras fungdes lingisticas: referencial, no caso do épico; a e ‘marcada pelo interésse pelo interlocutor, no caso do dra fim a emotiva ou expressiva, focalirada na atitude (real fa) do emissor a respeito do contetido da measagem linglis- —t0 caso do Ico. No género épico, domina a terceira pessoa (ou austucia de pessoa, como prefere Benveniste); no dramético, a segunda pessoa; no lirico, a primeira, Quarente anos antes da divulgagéo de seu Linguistics and Poe- fics, num estudo sbbre & poesia futurista russa datado de 1921, Jakobsen colocara a poesia mais préxima do mode emotive do que do modo cognitive do discurso, pela maior importincia assumida, 20 primeiro, pela textura fOnica, Todavia, j neste antigo ensaio, «8 emogtio poética eta distinguida dos sentimentos empiticos. Tanto © discurso cognitivo quanto o emotivo represeutami formas de comue snicagio imediata; as palavras se consomem na sua ulilidade. No Aiscarso postive, wo cont palavras valem fondamentalmente ‘por si @ nifo pelo seu significado, Em Que é Poesia?, de 1933, a ‘mestna tese vem repetida: em poesia, a pulavra é percebida coma palavrs © no como siguo de um objeto denotado ou como ex- 10 jue8 guitherme marguior ressiio de uma emocdo. Portanto, os direitos da mimese interna © soberania da Iogica post assegurados contra todo redu smo. O lingiista reforga e ieee © princfpio-chave da . Mas, ¢ isso 6 igualmente a aficmacdo de neahum es Da mesma maneira que a ogo de mimese nfo isola a obra de arte do mundo, mas faz Jer © mundo nas malhas da obra, 0 reconhecimento liagllistico da bem observou Victor do formalistno eslavo. A prova 6 que, do de Que é Poesia? Jakobson passou, em 1935, a seu estodo mais “mimético”, o texto sdbre o cariter de passividade da cena litica de Pasternak. ensaio s6bre Pasternak trazia também uma definigio do litico: ica 6 a primeira pessoa do singular, no tempo presente. Esta caracteristica—a localizagto da lirica na escala da tempo- ‘alidade—desde Jean-Paul € iavoeada como elemento de detectni- nagio do géaero Itico. Subjetividade e presente sf0 dois aspectos ingulo da polaridade epistemolégica € da estrutura da temporalidade, a lirica, mimese dos estados de finimo, afeigoa-se as duas vertentes do processo de intetiotizagao tornos do wniverso da porsia, que no a linguagem submetida 20 ‘em térmos de paradigm: Esta encarnagto ati hcarna a mesma tam especiicagses, nos dominios lingistica e psicalégico, do pro- ‘esso mimstico peculiar xo género licico, cempregado, existe drama, do outro, sgrau (maior ow do ponto de vista da imitagio (agao em stasis ow apo atualizada) de uma parte, ea narrativa ou o drama, de outra, exi Uiferenga de natureza—do ponto de vista da sua finalidade ( nto 10. $6 tivo de situagbes de permanente interésse humano), © pocma, a narrativa ¢ © drama se identificam, consti- {windo o ndceo do que designamos por literatura juagem, pela projegio do léncia do plano da selecio das palavras para o sua seqiincia na frase, Esta mensagem consiste na J, © tem por finalidade a traus os. no. puramente sto especial acérea de aspectos da ex intcrésso permanente para a humanidade. imese, central na nossa definigfo, ainda me caracteriza o espitito da cultura moderna, Numa época 86 perdeu seu como se dispie a abandonar as éltimas nostalgias de um pont 10 do ser, as ofertas tio obstinadas quanto anacrénicas de “cen- sobressalentes, enfim todos os detradeiros obstéculos a uma fio aberta, nao-substancialista, do universo—o papel de um con- ccito que jé traz a abertura inscrita em si s6 pode erescer. A mimese um espelho; nao seflete nada a priori; p duzit tudo, Constitucionalmente al nogio de expresslio, quer na ia. exaltadament thecimento, nas obras de arte, das vilas etapas ds cia do desenvolvimento da humanidade” (Lukécs) nem menos do que a simples traducto, em Revoluglo de 1848, . ‘Em geral, as teori mundo, Sébre tais desvios, a superioridade da concepefio de mnimese 6 evidente, $6 the é necessério manter-se em alerta analitico, para no deixar que a mancira fregilentemente equivoca em que se expéem seus componentes danifique a sua riqueza de compreensto, A litica tem por objeto a imitago de estados de animo, atcavés do um discurso organizado de maneira espe Af esto os trés elementos da Estes elementos podem ser mi is (1) se 0 poeta se enganar sdbre 0 objeto, o poema, ico, poderd resultar desproporcionalmente “épi + se, como unidade, nfo se tratar de um poema encia esttion serd negativa; (2) se 0 engauo for 4 insoficitncia de josamente articulado; (3) se o &x0 atingit a natureza do fim, em vex de verdades poéticas, teremos do didatismo, ou enti a supresstio da fSxea cog literdrio. Bstes cxtos podem afetar a ctiaglo (erros do poeta) ot | a teitura (erros do leitor e do critica). As tcorias “platdnicas”, ou ) a tese de Richards em que éle recusa valor co, 0A poesia, so casos diferentes desta mesina distorgo, Os elementos do processo lirico podem ser confundidos nao em sua esséneia, mas (68 outros; (4) se se confundir 0 medium com 0 ob air no puro verbalismo, mimese, da fi do’ que se deveria chamar “mim: lassifica como “angelismo’ ingénua”, o pecado que Allen nalmente, 0 processo de mf 10 (6) de confusto da lirica com seu objeto; pela extenso da identificagho déste com os estados de énimo a um império gene- salizado do enotivo, encarade também como fim e vefculo da poesia, © poema se diluiré em versalhada sentimental, isenta de energia intelectual, desprovida de qualquer insight sobre a experigncia, ¢ (paradoxo apenas aparente) do préprio poder de cmocionar. 4 [Lessing dizia da lirica de Klopstock que era “to cheia de sentiment, que, ao lela, com freqiléncia nao se sente nada”. Esta titima confusio eriada pelo baixo romantismo, © dotada de uma pers t#ncia daninha, é a seu modo uma sinédogue, uma pars pro toma-se um elemento do processo lirica pela sua totalidade. A if, 0 grético désses seis erros contra o bom funcfonamento da PROCESSO MIM#TICO NA LIRICA sinédogue do Sensimentaio (6) La Pensée Sauvage, Lévi spécie de didlogo com varias formas de contingencia: les da execucfo, com os imponde ‘consumo, ot com os elementos de sex modélo, 2 variagio a obra impée a cristalizago de uma estrutura. Boles tr modos de composigio entro estrutura e contingéncis| so comuns a t6da arte; mas 0 didlogo com as variagBes do modélo tem um péso decisivo na arte das chamadas culturas histricss. “Modélo” € a palavra usada por Lévi-Strauss, porque sua parte de um comeatério s6bre pintura, Podemos estender 2 nogdo 2 iteratura, © em verdade o nosso eatinho pelo conceito de mimese no deixa de faclitar a transposigso. rias tém finalidades préticas. Para comecar, so vefculos de comunicagdo. Porém, a diferenca de outras mensagens, a forma € nelas to importante quanto o seu significado, ‘mo, nfo raro, se oblitera. Na qualidade 2 astieta da mimoes 18 icado que um seu contempo- rineo. Da patina désse velho sentido, resta-me a forma da eatgio. Contudo, se eu nfo puder associ rica, a forma ficaré to magea quan em que se reproduza nsagem ‘al qual se lia em seu tempo ¢ a vida contemporanea, a mudanga dos costunies é suficiente para tomar sem ioterésse profumdo grande parte do a canefo numa ‘monumento (no 0 “espirito” todo de uma época, “ido da obra de arte, buseado pela finido por Peirce como “o que a obra deixa transparecer, sem ostentar", Para a sua tecuperacd0, foi nevessirio quo se passasse ’n como uma sucessio de diferentes configuragdes | como idade Susea, para sempre ext do uma a leitura nos versos da erésse biésico pela forma—da necessi- ia dizer mais. Por isso, a tontativa de interpretar 0 re estéve conddenada 20 fracasso exitico, & im- ‘0. A mimese cultural exige o eaneelamento pela esteutura da obra de arte, a qual ga aos sistemas da cultura que a abertura ao sio prevonccitos derivados do quase monopélio man 6 js idoolo; literatura © socieds ppassado em t@rno d 2 idéia de que a romance de 1830, O realismo nas act am quase sempre por base 8 oa iago do realismo contsibui 1 impressfio de que as caracterist ico eram as do genero na XIX, obrigada a pole stica da era vitoriana, sul igo estética, mas deizou na ica das grandes obras Ifricas. A teoria da arte pela arte de Baudelaire, com se € muitissimo mais polémica do que ani &, do ponto de vista da representacio da cultura e is de favorito das teses igo da teoria dos ou, alguns igo pela sui ensivel ter em mente qh Wo mais domi que &le se nutre, oferecido por seus textos, 10s depois da ita? © realismo € um estilo deter- relagiio ao processa hist6rico stricto sensu; éste muda de plano, sem ‘por isso desaparceer (veja-se, p. ex., 0 papel do caso Dreyfus em intes). Em Kafka, onde a observagio ret ‘mantacamente miuucioso de acont , @ a de aspectos permanent para a andlise jiteréria, conv estilo e de ea © exame atento da estrutura do poema, Jonge de lo, cevelard em que exato nivel se articula a representagdo da existéncia, NSo é dificil compreender que a lirica elabore geralmente uma cena emi t8rmos de dados cult rais ¢ de arquétipos humanos, e no ma linha de referéucia hist6rico- empirica, Nao € dificil, mas para isso 6 necesséria analisar © poema pelo lado de dentro—como um Lukics era capaz de fazer com a ‘arrativa nos anos de sua Teoria do Romance, antes que a absorgio ieante 0 induzisso em paradigma (ou paradogma) de téda lar desprézo pela fOrga alusiva ¢ evacadora ica da era contemporanea. A verdade 6 que a poesia, sobretudo nos dois titimos sécalos, nada fica a dever, em poder de abertura ao mundo, aos grandes mestres que, em outro gnero ¢ om outro estilo, elevaram a fico do realismo A mais alta hierar~ quia literéria, Paris, egdsto do 1967. 18 jose gu

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