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ANTIGONA E OS SUBALTERNOS (OU SOBRE QUANDO MORRER E FALAR) Fabio R. R. Belo Intropu¢gdo Neste artigo, gostaria de apresentar a leitura que Judith Butler faz de Antigona a fim de discutir alguns pontos da interpretacao que Jac- ques Lacan faz da peca em seu Semindrio VIL Além de Butler, na par- te final do trabalho, aprofundo algumas criticas a leitura lacaniana a partir de Spivak. Para discutir a pega de Séfocles, gostaria também de examinar dois casos: algumas teorias psicanaliticas sobre a adogao por casais gays e um trecho clinico sobre a deciséo de uma mulher quanto aos seus embrides congelados. Através desses casos, pretendo mostrar como Antigona é ainda uma poderosa metafora para pensar o sujeito subalterno e/ou aspectos mortiferos do inconsciente. Por fim, reitero a tese de que, a partir da psicanlise, j4 nao é mais possivel apelar para wma lei sagrada para garantir direitos civis, 1 A LerTura be JupitH BUTLER No primeiro capitulo de seu livro, Butler j dé todas as cartas que pretende defender: Antigona pode ser lida como alegoria da longa historia feminista em desafiar 0 poder e o Estado. A autora critica as leituras de Hegel e Lacan que associam Antigona a familia, como se ela representasse 0 parentesco, como algo pré-politico. Ha algo nesses autores, segundo ela, que idealiza e separa o Pparentesco (kinship) e 0 politico-social. Essas leituras vao de encontro ao que é proposto: “[An- tigonal] aponta (...) ndo para a politica como uma questao de representa- 145 Fabio R. R. a0, mas para a possibilidade politica que emerge quando os limites da Tepresentacao ou da representabilidade sao expostos” (AC!, 2). Ou seja, a demanda de Antigona é 0 tipo de demanda que deve ser lida como aquelas demandas sociais que visam nao apenas se contrapor a uma ordem politica, mas que almejam também criar uma nova possibilida- de politica, de novas formas de representacao e de vida. Ao defender os rituais funerarios para Polinices, Antigona expée “o carater contingente do parentesco” (AC, 6): nao importa como a lei do Estado diz a ela para se relacionar com seu irmio, ela recusa e mos- tra que é possivel subverter a ordem estabelecida, mesmo sob 0 risco de pena de morte. A passagem salientada por Butler é esta: E agora, Polinices, somente por querer cuidar de teu cadaver dao-me esta recompensa! Mas na opiniao da gente de bom senso todo o meu cuidado foi justo. Sim! Se houvera sido mie de filhos, ou se 0 esposo morto apodrecesse exposto, jamais enfrentaria eu tamanhas penas tendo de opor-me a todos os concidadaos! Que leis me fazem pronunciar estas palavras? Fosse eu casada e meu esposo falecesse, bem poderia encontrar outro, e de outro esposo teria um filho se antes eu perdesse algum; mas, morta minha mae, morto meu Pai, jamais outro irmao meu viria ao mundo. Obedeci a essas leis quando te honrei mais que a ninguém. Creonte acha, porém, que errei, que fui rebelde, irmdo querido! (A?, 1004-1020) Para Butler, Antigona nao esta defendendo as leis do parentesco tout court. Ela defende, bem explicitamente, 0 irmao e nao qualquer parentesco, a qualquer custo. Butler critica duramente as teorias que tratam 0 parentesco como arranjos simbélicos que acabam por forma- C designe o livre de Butler {2000a). seguido dos versos tal como numerados na edicdo consultada. ANTIGONA © 0 SUBmuEMEMWOS OU SOBRE QUANDO MORRER f FALAR) tar uma imagem de posigdes familiares atemporais e livres das contin- géncias politicas que as configuram. A autora Ié essa passagem como a sustentacao, por parte de Antigona, de suas ligacdes amorosas com o irmao, apesar de incestuosas. Eis a alegoria: Antigona é como aqueles cidadaos impedidos tam- bém de fazer 0 luto dos objetos de amor depreciados: os que morrem. de AIDS, os assassinos, os desviantes... Sustentar esse amor, nao ape- nas no momento das libacdes funéreas, significa, em alguma instancia, apontar para a pura contingéncia dos nossos arranjos amorosos. Sem dtivida é importante, de um lado, recusar sua conclusao que nao ter um filho é um destino tragico, e, de outro lado, recusar a conclusao que o tabu do incesto deve ser desfeito a fim de fazer o amor flo- rescer em todo lugar. Nem 0 retorno da normalidade familiar, nem a celebracao da pratica incestuosa 6 0 objetivo aqui. Sua desagradavel situagao, no entanto, nos oferece uma alegoria para a crise do parentesco: quais arranjos sociais podem ser reconhecidos como amores legitimos, e quais perdas humanas podem ser explicitamente alvos de luto por serem perdas reais e cheias de consequéncias? (AC, 24) Para Butler, Antigona nao representa as leis da familia e do pa- rentesco, mas, ao contrario, coloca em crise seus regimes reinantes de representagao. Ao ler a pega dessa forma, a autora nos convida a pensar nas relagdes entre parentesco e os regimes epistémicos de inteligibili- dade cultural: ao criticd-los estamos também, possivelmente, aumen- tando as possibilidades de transformagcao cultural, abrindo espaco po- litico para novas formas de subjetivacao e de relacdes amorosas. Basicamente, é essa a tese do capitulo primeiro. A leitura de Butler me parece importante, pois coloca em relevo o desejo incestuoso de Antigona por seu irmao como elemento que nos possibilita pensar em novas configuragdes familiares. Do lado da psicandlise, sabemos que foi também a defesa da existéncia das fantasias e desejos incestuosos 0 que nos levou a pensar em conceitos fundamentais como inconsciente, pulsao e recalcamento. Freud, é evidente, nado defendia a liberacdo do incesto, mas atacava fortemente a ideia de que o incesto era antinatural, no sentido que era evitado biologicamente e nao por razées culturais. 147 cando ma 's amplamente as leituras de Hegel e Lacan. Em ambos os autores. o parentesco é dissociado da esfera do social e ainda assim constitu: o campo estrutural de inteligibilidade de onde o social emer- ge. E exatamente essa dissociagao estruturalista que Butler visa atacar, A nogao de “simbdlico” parece ter uma funcdo transcendentali- zante que faz apagar a contingéncia nao apenas dos arranjos que ela visa explicar. mas também de sua propria estrutura. Em contraposicao a essa lei que se quer estrutural — geralmente, grafada com maitiscula ~ temos a reivindicacéo de Antigona. Para Butler, nao se trata da lei sa- grada ou dos deuses, mas aquela cuja origem nao pode ser encontrada, cuja autoridade nao pode ser comunicada através da linguagem escri- ta. As leis de Antigona nao sao completamente reconheciveis, mas o Estado as conhece 0 suficiente para se opor a elas violentamente. “Em- bora essas leis sejam nao-escritas, ela, no entanto, fala em nome delas, e elas emergem somente sob a forma de catacrese, que serve como uma condigao a priori e limite da codificagao escrita” (AC, 39). Butler segue no segundo capitulo dissecando a articulacao entre Lévi-Strauss e Lacan. Para a autora, tal parceria produz uma separacao entre 0 sujeito e 0 simbélico: 0 circuito simbdlico é sempre externo ao sujeito, apesar de determiné-lo. A autora argumenta que Antigona nao vai contra 0 simbdlico, como pretende Lacan, mas se apropria de seus termos e deseja subverté-lo. A tese do segundo capitulo reforca a do primeiro: teorias da lingua- gem e do parentesco se articulam, naturalizando arranjos amorosos que sao, na verdade, contingenciais. Uma passagem de Lacan pode ilustrar a critica da autora. Ele diz: “Trata-se aqui da evocagao do que é, com efeito, da ordem da lei, mas que nao esté desenvolvido em nenhuma cadeia significante, em nada.” (Lacan, 1988, pp. 336-337). E mais adiante: Antigona nao evoca nenhum outro direito sendo este, que surge na linguagem do caréter indelével de que é - indelével a partir do momento em que o significante que surge a detém como uma coisa fixa através de todo o fluxo de transformagées possiveis. Lacan, 1988, p. 337) ANTICONa F 05 sumaarERnos Ov SOBRE QUANDO MORRER £ FALAR) Lacan defende que Antigona representa “por sua posigao esse li- mite radical’: o ser Para além de todos os seus contetidos histéricos, “essa pureza, essa separacao do ser de todas as caracteristicas do dra- ma histérico que ele atravessou. é justamente esse o limite, 0 ex nihilo Ao separar o drama histérico que ela vive através da verdade metafisica que ela exemplifica para nds, La- can deixa de perguntar como certos tipos de vida, Precisamente em virtude do drama histérico que éo deles, sao telegados aos limites do indelével (AC, 50). A critica da autora no segundo capitulo, entao, é essa: nao ha um carater indelével do que & nao ha metafisica dos costumes; nao ha uma mas de vida relegadas ao imutdvel. No terceiro e tiltimo capitulo de seu livro, Butler tenta pensar no que seria a teoria Psicanalitica se tomassemos Antigona e nao Edipo como referéncia metaférica Para pensar na tragédia do desejo huma- no. A primeira consequéncia seria pensar se reiterar a importancia da proibigao do incesto legitima, normaliza e naturaliza a reproducdo bio- logicaea heterossexualizacio da familia (cf. AC, 66). Mais uma vez, é importante deixar claro que autora nao esta de- fendendo a liberagao do incesto. Ela esta criticando a forma através da qual 0 incesto pode ser abordado pela Psicandlise. A psicandlise tem 0 mérito de trazer o incesto como desejo legitimo — do ponto de vista do inconsciente, isto é ele é tao pulsional quanto qualquer outro, Isso Fabio R. R. Belo novas formas de vida, para se criticar os valores morais que se querem as, indeléveis ou verdadeiros demais. Butler nos convida a pensar de quem sao as vozes que “entram na linguagem da lei para deturpar seus trabalhos inequivocos” (AC, #7, Ela cita as novas configurag6es familiares e se pergunta se nao te- mos pressa demais em concluir a presenca de uma posicdo simbdlica demarcada peios termos Pai ou Mae. Por mais diferentes que sejam os artanpos, sempre nos apressaremos Para situar esses termos heteronor- mativos: seja para acusar sua falta, seja para demarcar seus possiveis avatares. Aqui entra também a critica muito pertinente da autora as lei- turas psicanaliticas que se colocam contrarias 4 uniao gay ou que predi- zem a psicose para as criangas adotadas por duas mulheres (cf. AC, 70). Esses varios modos através dos quais o mandato edi- pico falha em produzir a familia normativa, todos esses modos correm 0 risco de entrar como metont- mia do horror sexual moralizado que é talvez fun- damentalmente mais associado ao incesto. (AC, 71) Lido tal como 0 resumi, 0 livro de Butler, a meu ver, nos auxilia a recuperar algo do horror trazido pela psicandlise, quando esta nos aler- ta quanto ao carater demoniaco e altamente disruptivo da sexualidade humana. Deleuze e Guatarri (1976) j4 mostraram como Edipo pode se tornar instrumento normalizador e perder toda a carga de escandalo que trazia quando anunciado por Freud. Aos poucos, amar-odiar papai € maméae torna-se nao perigoso, mas obrigagao, modelo a ser encon- trado a todo custo. De repente, nos damos conta que © complexo de Edipo pode muito bem estar a servico do recalcamento da sexualidade perversa e polimorfa que se recusa — e sempre 0 fara — a se enquadrar num esquema social qualquer. Ao contrario de Ismene, essa sexualida- de inconsciente nao “obedece, constrangida, aos governantes” (A, 75). A sexualidade mortifera descrita por Freud é aquela que visa, funda- mentalmente, desconstruir a governanca do eu, do socialmente estabe- lecido, dos lugares dos supostos saberes e poderes. Nao por ela (essa se- xualidade disruptiva) ser um outro saber ou um tipo de subjetividade mais complexa; nada disso: assim como a morte, ela “nos imp6e suas proprias leis” (A, 593). E a lei dessa sexualidade 6 antes de tudo, se con- trapor as leis que querem ordenar demais 0 pulsional que a constitui. 150 2, O HOMOEROTISMO Gostaria de usar um exemplo bem relevante de como a leitura la- caniana de Antigona gera efeitos clinaons e politicos importantes. Nesse sentido, examinar alguns textos sobre o homoerotismo dentro da lite- ratura lacaniana pode se mostrar bastante revelador. Antes de passar diretamente ao exemplo, ¢ importante retomar algumas questdes de historia e epistemologia da psicandlise. Do ponto de vista epistemolégico, é sempre relevante questionar quais sdo as condig6es de possibilidade de determinado discurso, quais sao suas motivagSes, com quais praticas esta comprometido. Quando aponto para o discurso lacaniano, de forma alguma tomo a obra de La- can como um todo, Desejo apontar apenas para alguns efeitos de leitura dessa obra. Como ela tem sido apropriada e usada efetivamente. Quais sao os usos pragmaticos dos conceitos, quais tipos de leituras ensejam. Obviamente, sempre haverd uma pluralidade de leituras a partir de uma obra tao complexa, rica e extensa como a de Lacan. O trabalho de uma epistemologia psicanalitica é entender por que, em determinado momento, tal teoria se comprometeu e serviu a propdsitos homofébicos e heteronormativos, como nos exemplos que irei mostrar. Isso nao quer dizer que a teoria como um todo seja heteronormativa ou homofébica. Isso quer apenas dizer que ha um uso, importante, por parte de muitos autores, legitimados, alias, pelas instituigdes mais variadas, que se va- lem da teoria lacaniana para fazer essa dobra ideolégica denunciada por Butler, como vimos na se¢o anterior. Essa epistemologia psicana- litica deve ser tomada, ela mesma, pela prépria psicandlise, no sentido que Laplanche sugere quando Ié a obra de Freud: ler os detalhes, exami- nar as contradigGes, os recalcamentos, 0 que é tenso na obra. O mesmo, obviamente, valeré para a obra de Lacan: ainda esta para ser feito um trabalho de leitura onde a critica 4 teoria do autor francés possa, sem enfrentar as durissimas resisténcias que esse exercicio enseja’, fazer jus a sua obra. Feita essa ressalva metodoldgica‘, passemos ao exemplo. 3 Tao logo uma critica é enunciada, imediatamente opée-se: Lacan mudou essa posigio. O exercicio critico para aqui: nada é feito exatamente para examinar essa mudanca, sob quais termos se deram etc. 4 Importantissimo repertar o leiter @ obra de Costa (1995), na qual ele mostra muito cla- ramente que a homofobia esta presente em varias “linhas tedricas” da psicandlise ¢ se 151 A meu ver, existe, nos homossexuais, os lagos afeti- vos de longa durag&o que justificam perfeitamente, segundo modalidades a estudar, seu reconhecimento juridico, se os sujeitos assim desejarem. Saber se isso deve se chamar casamento ou nao é uma outra ques- tao. Os lagos nao sdo exatamente do mesmo modelo que os lacos afetivos heterossexuais. Em particular, quando eles unem dois homens, nao se encontra a exigéncia de fidelidade erética, sexual, introduzida pelo casal heterossexual por um certo mimero de fa- tores - do lado feminino num certo registro, e num outro registro pelas exigéncias do parceiro masculino. (Miller’, conforme citado por Butler, 2000b, p. 180n12). A passagem acima é de um grande representante da teoria laca- niana, Jacques-Alain Miller. Nela, podemos ver muitos elementos que vao na contramao do que poderfamos chamar a revolugao copernicana psicanalitica no que tange as relacdes amorosas. Dizer que a fidelidade no se coloca da mesma forma entre homossexuais e heterossexuais até poderia ser razoavel, mas dizer que tal exigéncia nao se encontra entre homossexuais é mais que absurdo. Nesse mesmo texto, ainda encon- tramos a velha aproximacao entre homossexualidade e perversao (cf. Maya, 2011). Em outro texto’, Miller faz uma excelente leitura critica da historia da interpretacdo sobre o fendmeno gay na anilise. Ele lembra como Lacan seguiu 0 movimento algo homofdbico préprio do inicio da psicanilise e atrelou a escolha do objeto homossexual “como uma falsa saida, uma ma saida do Edipo”, ja que a metéfora paterna era a lei. Miller ainda lembra a curiosa passagem do seminario As formacées do inconsciente, na qual Lacan diz que a homossexualidade é curavel’, confunde com a prépria histéria (tedrica ¢ institucional). O que, nao custa insistir, nao é a posicao universal de todos os psicanalistas... 5 Resposta de Miller ao ensaio de Eric Laurent “Normes nouvelles de ‘Yhomosexualité”, in “Linconscient homosexual, La Cause Freudienne: révue de psychanalyse, p. 37 § LaCause Freudienne, n.58, pp. 82-90. Agradeco muitissimo a amiga Cristiane Barreto por ter me permitido chegar a esse texto. 7 “Les homosexuels, on les soigne. Les homosexuels, on ne les guérit pas. Et ce quil y ade plus formidable, cest qu/on ne les guérit pas, malgré qu’ils soient absolument guérissa- bles.” (Os homossexuais, nds cuidamos deles. Os homossexuais, nds nao os curamos, E isso é 0 que ha de mais formidavel, é que no os curamos apesar de serem absolutamente curaveis.) Cf, % w.valas, fr/ rdf FORMATIONS pdi p. 344, 152 Outro exemplo, ainda mais grave, é a obra O Divino Mercado, de Dany-Robert Dufour. No capitulo 2 desse livro, em diversas passagens, a partir de uma visada lacaniana. 0 autor coloca-se claramente contra a adogaio de criancas por casais homossexuais. A argumentacao do autor é a pior possivel: ele compara a adocao de criangas feitas por casais gays a compra de criancas (Dufour, 2008, p. 66); diz que ha uma recusa da diferenca sexual (p. 67); compara essa “liberalidade” de gays terem filhos 4 promiscuidade e ao incesto incontrolado, pois se “a diferenga sexual se esfuma, a referéncia a diferenca entre as geragGes faz cada vez menos sentido para os individuos pés-modernos” (p. 71); essa “falta de limites” é sinal que gays que desejam bebés nao consentem “naquilo que Freud identificou sob o nome de castragao” (p. 72); termina, final- mente, com a classica ameaga de catastrofe social; vale citar na integra: Quanto ao pedido de filhos por um casal homos- sexual, exceto a generalizagao de um. mercado de criancas muito pequenas, ele sé poderia se escorar na “ciéncia”, chamada a tudo prover: desde a fabri- cacao das células até 0 titero artificial. A louca de- manda que consiste para um homem em fornecer ovécitos e para uma mulher espermatozoides con- segue, doravante, escorar-se na técnica. O que deixa imaginar 0 desenvolvimento, tornado possivel pelo afundamento simbélico, de devastadoras loucuras racionais que imaginam o fim da divisao sexual, 0 fim da diferenca entre geragées, o fim da morte, a recriagdo da vida. (Dufour, 2008, p. 75) Mais apocaliptico impossivel. Se o que garante 0 acesso ao simbo- lico é 0 Edipo bem constituido, vale dizer, bem heterossexual, entao, sua recusa nos levara a ruina da cultura: tudo sera permitido, pois re- cusar a diferenga sexual implica recusar toda e qualquer diferenga. Mais uma vez, gostaria de apontar para a pluralidade de inter- pretagdes que podemos fazer sobre 0 desejo de ter um bebé, seja en- tre hetero ou homossexuais. Sem querer entrar no mérito da questao, gostaria de concluir essa parte fazendo trabalhar a hipotese de Costa (1992) que me parece preciosa: 153 Fabio R. R. Belo (.) ha provavelmente mais risco de perversdo na montagem social que opée heterossexuais a ho- mossexuais do que nas chamadas relagdes homos- sexuais. Sobretudo naquelas formas extremas de preconceito, onde o heterosexual posiciona-se como sabendo qual a legalidade da natureza e fazendo do homossexual instrumento de seu suposto acesso ao saber paterno. Nessa posicao subjetiva, a obediéncia 4 lei da cultura ou a lei natural nao é equivalente a obediéncia a lei da castracdo; é equivalente ao gozo imagindrio de quem se acha possuidor da verdadei- 1a lei do desejo, e que nao hesita, se julgar necessdrio, em destruir fisicamente todo aquele que ousa desa- fiar o bem fundado desse saber. (Costa, 1992, p- 93) Voltando a Antigona: lé-la como manifesto politico feminista nos parece proximo aos objetivos dessa psicandlise comprometida com a democracia e com o reconhecimento de novos arranjos pulsionais con- sigo mesmo e com os outros. A meu ver, a revolucio copernicana im- plica descentramento de nossas certezas. Nao para cairmos num “tudo pode”, mas para abrimos mais espaco para o reconhecimento das con- tingéncias histdricas que permeiam e fabricam nossos desejos, 3. A DIFICIL ESCOLHA DE C Passo agora a um breve trecho de um caso clinico que também mostra como todos nds podemos ocupar um pouco a posicao de Anti- gona; como ha casos que desafiam o limite do corpo, das supostas leis bioldégicas e divinas; e como tal desafio esta nitidamente comprometido com jogos de poder muitas vezes insuspeitos, C. era casada quando congelou seus embrides. Alguns anos depois, ja divorciada, tem pensado nos possiveis destinos que pode dar a essa historia. Teria os bebés? Doaria os embrides para outras mulheres ou os entregaria a ciéncia? Todas essas questdes, como nao poderia deixar de ser, vém imersas em duvidas e questionamentos morais. Quais as conse- quéncias de se ter um bebé de alguém com quem ja terminamos uma re- lagéo amorosa? O pai entraria de que forma nessa histéria? E 0 novo par- ceiro amoroso. come reagiria a essa noticia — de que C. engravidaria de 2 ANTIGONA E OS SUBALTERNOS (OU SOBRE QUANDO MORRER E FALAR) seu ex-marido? E se ela doasse os embrides? O ex-marido, que também tem direito sobre as células, se recusa a essa doagio, pois prefere doa-las a ciéncia, 0 que significa sua destruicao, algo a que C. se opée. Ou C. abandonaria esses dilemas e, ja na casa dos 40, correria um pouco mais de risco com seus 6vulos atuais, a ter um bebé com 0 atual parceiro? No irei discutir 0 caso clinico aqui, apenas quero refletir sobre esse dilema que, provavelmente, seré bastante comum em pouco tem- po em nossos consultorios. O que a psicandlise tem a dizer sobre esse formato de reproducao? Como a leitura de Antigona, tal como propos- ta por Judith Butler, pode nos auxiliar? Penso, de saida, que o dilema de C. é antes de tudo, bem-vindo. Pela primeira vez na historia, as mulheres tém condigao real de ter be- bés com consideravel distanciamento da dominacéo masculina. No caso de C,, ela ainda tem que contar com a anuéncia do ex-marido, mas pensemos nas mulheres que poderao receber seus embrides: para elas, nenhum tipo de permissao masculina é necessaria. Acredito que o que interessa para a Psicandlise, nesse caso, é fazer com que a paciente avalie os determinantes de sua escolha. E fazer frente ao pensamento adestrado — 0 pensamento de Ismene — que, mes- mo em forma de questionamento, conclui: “e o Pai?”, “qual histéria sera contada ao filho?”, “que mae é essa que assume esse lugar auténomo?”. Ora, se essas questées forem relevantes sé serao diante do desejo cons- tituido na historia particular dessa paciente. As melhores questdes que a psicanalise pode formular em torno de casos como esses sao aquelas que visam também desconstruir nosso apego ao formato “Familia” tra- dicional, como se ele fosse uma espécie de garantia transcendental de felicidade ou, no minimo, contra o adoecimento. “Pois homem nao serei ~ ela sera o homem! ~ se esta vitdria lhe couber sem puni¢ao.” (A, 553) — eis o que nos diz Creonte. Ele represen- taa certeza da diferenga sexual. Ele a quer manter bem garantida pelos signos que a ela atribuimos. Bem polarizada, bem demarcada. Nada de matizes aqui! Nada de mulheres dando ordens! Nada de mulheres que- rendo ter filhos sozinhas! A elas apenas a obediéncia! E 0 que vem nos dizer a psicanalise? Que a diferenga sexual sé se estabelece na historia singular de cada sujeito e que ela nao é garantida pela biologia. Que a biologia pode ser subvertida infinitamente para que esse ou aquele sujeito em particular (re)construa-se também de forma infinita. 155 Fabio R. R. Belo 4, PODE O SUBALTERNO FALAR? Ler Antigona a partir de Butler leva-nos a pensar na heroina grega como uma oprimida ou, ainda pior, uma subalterna, no sentido que Spivak (1982/2012) deu ao termo. Trata-se do sujeito cuja voz nao pode ser ouvida. O sepultamento em vida talvez metaforize isso: é a morte social daqueles impossibilitados de revisar a histéria, de conta-la de outro modo ou a seu proprio. Spivak nos alerta: ninguém pode falar pelo subalterno sem correr 0 risco de constituir 0 outro apenas como objeto de conhecimento e nao como sujeitos legitimados. Talvez nos apressemos demais a falar por An- tigona: seja como uma heroina tragica, que nao cede de seu desejo; seja como uma vitima do poder patriarcal do mundo grego. Nao ha ditvida, porém, quanto ao cardter subalterno de Antigona, sua impossibilidade de se fazer ouvir, de ter sua voz e demanda legitimada. O que vale para © contexto da produgao colonial estudado por Spivak, parece-me vali- do para o mundo grego presente na tragédia: “o sujeito subalterno nao tem histéria e nao pode falar, 0 sujeito subalterno feminino esta ainda mais profundamente na obscuridade” (Spivak, 1982/2012, p. 85). Isménia segue seu destino, Antigona tenta questiond-lo e é silenciada, mesmo quando é ouvida, pois Creonte o tempo todo insiste em dizer que ouvi-la seria dar a ela 0 estatuto de um homem ea ele o lugar de uma mulher. Nao deixa de ser curioso 0 fato de Spivak interpretar de forma brilhante o suicidio de uma indiana de 16 ou 17 anos, Bhuvaneswari Bhaduri, que se enforcou em 1926. A interpretagéo mais rapida seria a de que Bhuvaneswari estava gravida. Isso foi desmentido, pois ela estava menstruada. O que teria levado a moga ao suicidio? Quase uma década depois, descobre-se que ela era membro de um grupo que luta- va pela independéncia da india. Incapaz de realizar uma tarefa a qual foi destinada — assassinar um politico ~ ela se matou. Spivak 1é essa morte a luz da analise que fizera do sati, ritual em que as vitivas que se autoimolam na pira funerdria de seus maridos. A autora lembra como os ingleses, ao tomarem conhecimento de tal pra- tica, a interpretaram como cruel e imoral (“homens brancos salvando mulheres de pele escura de homens de pele escura”, Spivak, 1982/2012, p. 122). Por outro lado, na prépria comunidade indiana ouvia-se clara- 156 ANTIGONA E OS SUBALTERNOS (OU SOBRE QUANDO MORRER £ FALAR) mente que esse era um ato voluntario (“as mulheres realmente queriam morrer” [Spivak, 1982/2012, p. 122]). Obviamente, havia aquelas mu- Iheres que de fato desejavam se matar e também havia aquelas que se recusavam ao ritual. Spivak prefere apontar para essa pluralidade que torna impossivel dizer em nome do sati. Ela mesma nao tem voz, nao pode ser representada na cultura. Pois bem, 0 suicidio de Bhuvaneswari é lido como uma “reescrita subalterna, ad hoc, do texto social do suicidio sati, tanto quanto ¢ 0 rela- to hegeménico da resplandecente, lutadora e familiar Durga” (Spivak, 1982/2012, p. 163). Durga era a sati da mitologia hindu, a esposa que morre de dor e que é desmembrada por seu divino marido Shiva. Ou seja: 0 suicidio de Bhuvaneswari, mesmo que seja um ato de coragem, mesmo que seja um ato de protesto, mesmo que seja um ato de livre desejo, esta profundamente inscrito no jogo de poder que o determina. Ali onde Bhuvaneswari tentou dizer com seu préprio corpo, ela mes- ma estava sendo dita, com todas as letras, pelo poder que a constituiu como impossibilitada de dizer. O corpo de Polinices nao seria objeto de identificagéo de Antigo- na? Nao seria ela também como o cadaver indefeso impossibilitado de defender-se, diante de uma ordem politica que retira a voz do sujeito como se morto estivesse, como se apenas corpo obediente fosse? A hipétese de que Antigona é como Bhuvaneswari vai de encontro interpretacdo de Lacan que vé Antigona enforcada como “outra coisa além do ato de suicidio” (Lacan, 1988, p. 344). Vorsatz explica: “(...) a heroina tragica nao escolhe a morte no sentido de que ela quer morrer; ela simplesmente nao teme a morte que vira em consequéncia de seu ato.” (Vorsatz, 2013, p. 180). Tal interpretagéo parece despolitizar 0 desejo. Torna-o excessiva- mente individual. Ou melhor, toma sua singularidade excindida, es- cotomizada, do contexto que lhe tornou possivel e que lhe constituiu. Talvez seja ainda mais tragico: ao dizer que Antigona nao cede de seu desejo (Lacan, 1988, p. 385), repete-se a interpretagao ideoldgica que atrela o suicidio, 0 livre-arbitrio e a libertagao da condenagao: A profunda ironia em localizar 0 livre-arbitrio da mulher na autoimolacao é revelada mais uma vez em um verso que acompanha a passagem anterior: 157 Fabio R. R. Belo “Enquanto a mulher [como esposa: stri] nao se quei- mar no fogo por ocasiao da morte de seu marido, ela nunca se libertard [mucyate] de seu corpo femi- nino [strisarir — isto é, no ciclo dos nascimentos]” Mesmo enquanto opera a mais sutil liberacdo do agenciamento individual, 0 suicidio sancionado pe- culiar 4 mulher toma sua forga ideoldégica ao identi- ficar 0 agenciamento individual com 0 supraindivi- dual: mate-se na pira funerdria de seu marido agora e vocé podera matar seu corpo feminino em todo o ciclo de nascimento. (Spivak, 1982/2012, p. 143-144) A profunda ironia de ver no suicidio exemplar um ato de liber- dade ou um ato de manifestacao da verdade do ser ou do desejo “em estado puro” é um procedimento que pode ser contestado. Ao ler An- tigona como revelando “a verdade do desejo inconsciente que resiste a qualquer logica consequencialista” (Haute®, 2007, p. 290), Lacan parece perder de vista 0 sentido politico do suicidio, isto 6 Ultimo recurso diante de um outro que jamais a escuta, jamais a leva em consideracao. Podemos dizer, com Lacan, que a agao levada a cabo pelo herdi tragico é ética, uma vez que nao é causada por nenhuma forga alheia a decisao do pré- prio herdi, nao é movida por nenhuma demanda de felicidade, nao dirige a quem quer que seja nenhum apelo de reconhecimento. (Vorsatz, 2013, p. 137) Penso, ao contrario, que, de um ponto de vista psicanalitico, um ato suicida ou de claro enfrentamento a ordem estabelecida sempre se dirige aalguém e é sempre um apelo de reconhecimento. Apelo cujo sentido ab- surdo é justamente mostrar a impossibilidade de ser atendido. O suicidio da subalterna é a transformagéo em ato daquilo que sempre foi condicao de existéncia. A viva-morta se torna morta-viva. E essa sua ultima chance de ser ouvida: como morta. E é 0 que Creonte consegue ouvir, afinal. Quando nao indicado na referéncia bibliografica, é minha a tradugao de todos os textos citados nesse artigo. 158 ANTIGONA E 0S SUBALTERNOS (OU SOBRE QUANDO MORRER E FALAR) 5. UMA ETICA TRAGICA DEMAIS Lacan toma Antigona como um tipo de modelo do desejo do sujei- to que encontra das Ding, isto 6, como alguém que nos mostra o desejo puro, no limite do sentido. Ela nos mostraria, ainda segundo essa lei- tura, 0 sujeito confrontado com o nada abismal da existéncia humana. Sua tragédia serve para “confrontar-nos com um destino sem-sentido que ocorre sob o fundo de um Ding indizivel” (Haute, 2007, p. 297). Isso leva Lacan a descrever assim o fim da analise: (...) a funcdo do desejo deve permanecer numa rela- co com a morte. Coloco a questao - 0 término da andlise, o verdadeiro, quero dizer aquele que pre- para a tornar analista, ndo deve ela em seu termo confrontar aquele que a ela se submeteu a realidade da condicéo humana? E propriamente isso o que Freud, falando de angustia, designou como o fun- do onde se produz seu sinal, ou seja, o Hilflosigkeit, a desolagao, onde o homem, nessa relagaéo consigo mesmo que é sua prépria morte ~ mas no sentido que lhes ensinei a desdobrar esse ano — nao deve esperar a ajuda de ninguém. (Lacan, 1998, p. 364) Tomar o desamparo como “realidade da condigéo humana” e di- zer que, ao lidar com isso, ao final de uma andlise, o homem “nao deve esperar a ajuda de ninguém’, merece detalhada interpretagao. Para além do usual estilo hiperbolico de Lacan, acredito que essa passagem deixa clara a escolha de apenas um dos efeitos da divisao psiquica que caracteriza o ser humano. Vamos por partes. Em primeiro lugar, é preciso desfazer um certo deslizamento muito rapido da condigéo de desamparo do bebé e 0 que se tornara, bem mais tarde, o desamparo do eu. O primeiro diz respeito a con- digao fisica do bebé. Nao ha ainda nenhuma subjetividade, nenhum eu para se sentir desamparado nesses momentos iniciais da vida. Ob- viamente, a posteriori, 0 sujeito pode sim se sentir desamparado ali onde ele ainda nao existia. O desamparo é uma tradugao do eu para os restos de excitagaéo por certo inominaveis as quais 0 corpo — e nao o eu - estava submetido. O desamparo nao é, de forma alguma, con- 159 Fabio R. R. Belo dic&o humana. E apenas mais uma tradugao possivel de se lidar com o trauma, com 0 encontro com 0 outro. Além disso, é sempre importante lembrar que, para haver desam- paro, é preciso haver um eu constituido e, para tal, é preciso haver algo como uma divisio, que Freud chamou de recalcamento originario, que separa o eu desses restos sem traducao. Esses restos formam 0 nucleo do inconsciente. Chamemo-lo de das Ding ou pulsao de morte ou Isso. Ha varios modos de nomear essa parte do sujeito cujo contato traz de volta esse momento constitutivo: nao existiamos ali onde estavamos; 0 eu nao estava 14, nas primeiras interagdes com 0 outro. Entrar em contato com © “desejo puro”, essas excitagdes iniciais, esse maximo de passividade, pode sim produzir sensagées de desamparo, de horror, de profunda an- gustia e outras “agonias impensdveis”, para nomea-las como Winnicott. Para sair desse estado de passividade o sujeito certamente precisou da ajuda do outro. Ajuda aqui aportada de varias formas: como modelo identificat6rio, como holding, como fonte de afeto, como outro que libidi- niza 0 corpo, implanta a pulsao. Ha também muitos modos de se des- crever esse aspecto constitutivo da alteridade sobre nds. E através desses elementos constitutivos do eu, aportados pelo outro, que constituimos nosso eu. Portanto, nao cabe dizer que ir ao encontro da “condigao hu- mana” é ir ao encontro do desamparo. Ha que se trazer de volta esse outro lado, inevitavelmente presente, da situagao originaria. O outro esta presente. Mais que presente: ele é constitutivo. Ea partir do seu acolhi- mento que o eu pode advir. De forma alguma o eu poderia surgir se nao houvesse, antes e repetidas vezes, o olhar, o acolhimento, 0 holding do outro. A partir dai, e sé a partir dai, ¢ que pode surgir o desamparo do eu, isto 6, uma defesa pouco articulada, mas muito precisa nisso que talvez seja sua fungao precipua: chamar 0 outro, demandar sua atengao. O principal efeito dessa leitura, para retomar o que ja disse acima, éa tonalidade perigosamente metafisica que toma tal concepgao de su- jeito. O desamparo como condigaéo humana ja tem forte coloragao so- lipsista; aliado a crenca de nao esperar ajuda de ninguém, esse tom fica ainda mais forte. Retomando o trecho que ja citei: “essa pureza, essa separacao do ser de todas as caracteristicas do drama histérico que ele atravessou” (Lacan, 1988, p. 338). Critchley (2008) propée uma interessante critica a leitura que La- can faz de Antigona. O autor acredita que Lacan esta muito proximo 160 ANTIGONA E OS SUBALTERNOS (OU SOBRE QUANDO MORRER E FALAR) a Heidegger e segue um tipo de modelo tragico, e nao deixa espaco para o cémico. Obviamente, Lacan tem uma extensa obra e certamente tem outros textos que apontam para outras direcdes, tanto no que diz respeito a relagao do sujeito com o desejo, quanto no que diz respeito ao final de analise. No contexto do Semindrio VII, no entanto, segundo Critchley, ha uma fixago no modelo heroico-tragico. Perceber-se divi- dido, sempre insuficientemente senhor de si, pode ser fonte de humor e nao necessariamente tragico: .) a cisdo (the split) no coragdo do sujeito ético nao é uma forma de auto-flagelacao masoquista, mas a experiéncia de uma humorosa auto-relacto sempre divi- dida. Desse modo, posso suportar a radicalidade da demanda ética porque eu posso rir de mim mesmo. Encontro-me ridiculo, o que quer dizer que nao en- contro meu eu (self), o que quer que isso signifique, mas, ao invés disso, vejo a mim mesmo de fora e sorrio. (...) Humor 6, entao, a experiéncia de uma fal- ta essencial de auto-coincidéncia. Em outras pala- vras, humor é um poderoso exemplo do que se pode chamar excentricidade do ser humano com relagao a si mesmo. Talvez a caracteristica mais fundamen- tal do que significa ser humano é 0 fato de que nao coincidimos com nés mesmos, 0 corpo material que eu sou nado é o mesmo que a minha experiéncia de pensar que eu tenho. (Critchley, 2008, p. 86) A grande questao aqui é que, evidentemente, Antigona e 0 subal- terno de forma geral nao podem acessar esse modelo nao tragico, pois nao ha contexto que lhes permitam fazer isso. E preciso contar com a ajuda do outro para poder rir de si mesmo sem condenar-se 4 morte. Nao deixa de ser curioso que em seu texto sobre o humor, Freud (1927) tenha escolhido justamente um sujeito caminhando para a forca para nos dizer que sua semana comegava muito bem... Nesse caso, é preciso perceber a absoluta impoténcia politica do humor. Sua poténcia, nesse exemplo, esté em arrefecer a tragédia de um ponto de vista interno, da vida psiquica do quase-enforcado. O exemplo radical, no entanto, pode ser explorado: e se 0 contexto for mais suave? E claro que o humor ga- nhara mais eficdcia politica. E através dele que podemos nos afastar de 161 Fabio R. R. Belo ndés mesmos, nos vermos de fora. E isso é condigdo para mudarmos e para mudar situagdes que nos produzem sofrimento. Outro autor que também ira criticar a leitura lacaniana de Antigona é Haute (2007). Sua critica se aproxima daquela feita por Critchley na medida em que também questiona 0 tom excessivamente tragico dessa leitura, Haute sugere que leiamos a peca de Séfocles como um tipo de analise de Creonte. E ele a tnica figura a mudar ao longo da pega. E ele que sai de uma posicao inflexivel para uma mais ponderada, profunda- mente marcada pela tragédia, por certo, mas, de certa forma, recupera- da, reorganizada. A analise “é mais que uma mera repeticao de uma de- terminago recéndita do destino” (Haute, 2007, p. 308), “[a] questao que devemos par (...) é obviamente como esta posigao pode ser reconciliada (ese isso é possivel, como é possivel) com o pensamento de que a andlise é direcionada por uma confrontacéo com o “fundo abismal” de nossa existéncia, quer dizer, com das Ding” (Haute, 2007, p. 30723). 6. CONCLUSAO: A PSICANALISE COMO BASTIAO DA DEMOCRACIA Para concluir, lembro como foi traduzido o titulo do artigo de Freud (1917): “Eine Schwirigkeit der Psychoanalyse”. Ao invés de “Uma dificuldade da Psicanalise”, como diz 0 original, a edigao brasileira lé: “Uma dificuldade no caminho da Psicandlise”. Ou seja, a dificuldade que é apontada por Freud como inerente a propria psicandlise, na edi- ¢ao brasileira, é posta no caminho dela, isto 6, fora dela. E sobre o que versa esse texto? Sobre os trés golpes narcisicos que sofreu a humani- dade: com Copérnico, Darwin e Freud. E nesse texto que Freud diz que “o eu nao é senhor em sua propria casa” (GW®, XII, 11). A dificuldade da psicandlise é também manter-se firmemente fiel as revolugSes propostas por Copérnico e Darwin. Ambas tiraram de nés nossas certezas narcisicas, nosso lugar “central” no universo ou entre os animais. A depender das contingéncias, asteroides ou amebas podem nos liquidar. Ou nés a eles. Nada é garantido, nada pode ser colocado do lado “indelével do ser”, para além das contingéncias his- 9 Indico por GW a Gesammelte Werke, de Freud, seguida dc 12 e mlimero da pagina. 162 ANTIGONA E 05 SUBALTERNOS (OU SOBRE QUANDO MORRER E FALAR) toricas: é isso que a nog3o de sexualidade inconsciente formulada por Freud deve sempre relembrar. E é exatamente essa a nossa dificuldade: em manter essa tese e fazé-la aceita para a além da “affektive Schwieri- gkeit (dificuldade afetiva)” (GW, XIL 3) que ela produz. Quais so os efeitos dessa revolucao copernicana ou darwinista de Freud sobre a relacao entre a psicandlise e 0 direito? O primeiro deles écertamente reafirmar que nao ha nada que garanta um direito civil ja conquistado. Nenhuma natureza, nenhum valor sagrado, nenhum mo- delo moral. A garantia esté na luta cotidiana, nas amarrag6es libidinais e simbdlicas que fazemos uns com os outros para garantira permanén- cia desses direitos. Podemos voltar a apedrejar nossas mulheres “aditl- teras” amanha. Nada nos impede de fazé-lo a nao ser nosso esforgo permanente de reconhecer a mulher como cidada de direitos etc. O segundo efeito — também fonte de “dificuldade afetiva” ~ é a inevi- tabilidade de assumir uma posic4o politica enquanto sujeito constituido. Por mais que queiramos neutralidade e objetividade, é impossivel ocupar uma posicao de “vacuo moral” ou politicamente neutra. Sempre quando escutamos alguém ou quando tomamos uma decisao, estamos fazendo em resposta as condicdes que nos constituiram. Isso torna, no limite, im- possivel a nog&o de responsabilidade no sentido de uma assungao indivi- dual e individualizante das razées de uma agao moral. Trata-se, antes, sempre de uma resposta, isto é, uma posicao certamente individual, mas profunda e inevitavelmente marcada pelo outro (f. Laplanche, 1999). O terceiro efeito: que ha uma relacao de interdependéncia especular entre o social ¢ o psiquico. Para usar o exemplo do nosso texto: s6 pode haver o subalterno se houver um aparato psiquico preparado para o sado- masoquismo de conduzir e manter 0 outro nessa condigao. E muitos su- balternos (Isménia, como modelo) toleram e gozam dessa condigao tam- bém gragas a certas configuragées psiquicas especificas: 0 masoquismo, a culpa etc. E muitos algozes (Creonte, como paradigma) gozam também do poder de silenciar 0 outro. Ha, portanto, relagSes dialéticas importan- tes entre os jogos sociais de poder e as engrenagens pulsionais que fazem funcionar, por exemplo, 0 sadismo e a onipoténcia, do ponto de vista psi- quico, ea exclusao e a subalternidade, do ponto de vista social. Ora, esses trés efeitos, em conjunto, devem ser sempre considera- dos quando se pensa na relagao entre a psicanalise e o direito. Sao eles 163 Fibio R. R. Belo que determinam a posicdo da psicandlise no campo moral burgués. Qual é essa posicdo? A de bastiao da democracia. Por qué? Porque é ela quem defendera que nossos arranjos psiquicos internos e sociais sem- pre podem ser remodelados, reconstruidos, pois foram constituidos a partir de contingéncias libidinais especificas. Isso leva a psicandlise a defender a democracia como um modelo de governo dos outros e de si mesmo: abrir espaco para outras vozes, no sentido de nao apenas auto- rizar, mas garantir e fomentar o discurso do “subalterno”, daquilo que em nds e no social é dificil de ser ouvido, pois intoleravel, mortifero. E a psicandlise que nos lembrara que o subalterno ocupa essa posigao por razées libidinais especificas: que a mulher deve se calar para nao colocar em risco uma masculinidade onipotente; que os homossexuais nao podem adotar bebés porque mostrarao o fundo de contingéncia histérica e desejo que ha em todo processo de filiagao. Desde Bataille (cf. Didi-Huberman, 1995) aprendemos que falar do inconsciente como o faz a psicanalise é garantir uma importante reserva antiautoritaria no tecido moral burgués. E essa reserva, esse bastiao, que ira sempre dizer: nado saberemos 0 suficiente de nds — nem internamen- te, nem socialmente. O inconsciente pode até ser metaforizado algumas vezes pelo subalterno, mas ele exi: seu reconhecimento. E essa, até hoje, a fungao do cadaver de Polinices, duplicado no corpo de Antigona. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS Butler, J. (2000a). Antigone’s claim: kinship between life and death. New York: Columbia University. Butler, J. (2000b). Competing universalities. In Butler, J; Laclau, E.; Zizek, S. Contingency, hegemony, universality. London: Verso, pp. 136-181. Costa, F. (1995). A face e 0 verso: estudos sobre o homoerotismo II. Sao Paulo: Escuta. Costa, F. (1992). A inocéncia e 0 vicio: estudos sobre o homoerotismo. Rio de Janeio: Relume-Dumara. Critchley, S. (2008). 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