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InTRODUGAO Desde 0 ano de 1978, quando compusemes a trilha sonora 90 espetdculo “Som e Luz” instalado na antiga redugéo de ‘S80 Miguel, preocupa-nos o fato de ndo existir, em ligua Portuguesa, um trabalho sobre a prética musical nas Missoes sesutticas que retina, num $6 livro, 08 dados mais essenciais 4 respeito do assunto. No II Encontro de Estudos Missioneiras realizado em SS. Lulz Gonzaga, em outubro de 1287, fomos convidado pelo Instituto Histérico e Geogrdtico Departamento Histérico. © Cultural daquela cidade, a proferir uma palestra sobre a ‘misica nas Miss6es. A partir dessa palestra, incentivado pelo ‘eminente historiador e amigo Prot. Dante de Laytano, surgi este pequeno livro. Ndo pretendemos esgotar absolutamente © assunto, que é imenso, uma vez que existom muitos docu- ‘mentos inéditos a serem estudados, bem como obras cuja edigdo j6 esté, hé muitos anos esgotada. Queremos, sim, divl- dir esse trabalho com todas as pessoas ave, vivendo naque! 6p0ca, presenciaram, registraram e relataram os tatos aqui ‘mencionades, em livros ou em cartas, servindo assim de sub- {dio para a montage dessa obra. Como ndo 6 um livro \dodicado a masicos, inclulmos algumas explicagées, bem co- ‘mo desenhos, dos principais instrumentos musicais aqututili= Zados © reproduzidos pelos guaranis com grande perteig&o, ‘Segundo testemunhos da época. Se com esse trabalho const ‘uirmos enriquecer um pouco mais 0 conhecimento sobre 8 prética musical dos Povos Missioneites e, principalmente, Sespertar o interesse das pessoas que 0 lerem, de forma a trazer a campo mais pesquisadores, consideramos atingido © n0ss0 objetivo, 8 Nos séculos XV e XVI, 0 fato mais destacado na histéria dda misica europ6ia fol a emancipagéo da misica instrumen- tal, que até ontéo, apenas imitava as vozes que formavam (0 coro, Como nessa época as composigées eram executadas por instrumentos de uma mesma familia (flautes, violas da ‘gamba, trombones), havia a necessidade de construi-tos em vérios tamanhos, conforme a voz correspondente. Tinhamos, entéo as flautas doce soprano, contralto, tenor @ baixo; as violas soprano, contralto, tenor e baixo; 08 trombones con- tralto, tenor @ balxo @ os cornetti soprano, contralto, tenor «@ baixo, assim como outros Instrumentos, mas sempre obedé ‘cendo &s vozes do coro, Segundo esse principio cada instru- ‘mento, limitado a reproduzir apenas a sua voz especitica, rao tinha mais que uma oltava e mela de extensto excetuan- do-se, 6 claro, os instrumentos de cordas. Gradualmente, os instrumentos tomaram posse de todas, ‘as formas de composigso vocal, nao mais se restringindo Aexecugdo de dangas, No século XVII, as colegées de misica impressa tinam como sub-ttulo “para serem cantadas ou tocadas". Finalmente, os compositores criaram formas de composigdo exclusivamente instrumentals, completamente diferentes das composigbes vocals. ‘Se no séeulo XVI os instrumentes melédicos seguiram ‘6 caminho politénica, no século XVII, com o surgimento da misica de cémara e das primeiras orquestras, a indepen: déncia se fimou. Nesse século, a maioria dos instrumentos recebeu a sua forma cléssica. ‘Com 0 advento do “stile moderno", surgido na Italia no inicio do século XVI, bordando |é as primeiras contornos, do Barroco, os sentimentes do ser humana passaram a ser expresses musicalmente com grande emogéo. Tanto.as estru- turas da misica vocal como as da instrumental foram total- mente remodeladas. A nova mdsica requeria uma extenséo ‘vocal e instrumental mais ampla, para melhor poder expres sar as palx6es e as mudangas repentinas, da alegria para 4 tristeza, da melancolia & exaltagao. 16 Os instrumentos sotreram um rigoroso processo de sele- {¢ho, pois somente aqueles que tinham condigdes estruturals e flexibitidade suficiente para permitir todos os matizes dindmicos, desde o piantssimo até o fortlssimo, puderam manter-se, pois esperava-se doles que “cantassem” como 08 seres humanos. Inicialmente eram as violas da gamba, as flautas doce, as bombardas @ chirimias, as dulcianas, as trompetes, os trombones, 0s cornet e os primelras violins. Mais tarde vieram as violas, 0s violoncelas, 08 oboés e flautas transversas. Os instrumentos polifénicos como 0 4aladde, 0 cravo, a harpa e 0 érgao no perderam seu lugar. ‘Ao contrétio, foram aperteicoades, sendo ampliados e adqui- indo novas formas, Citamos aqui apenas os mais usados. Os outros, ou cafram em desuso ou continuaram a ser utilize os a nivel popuiar ou folclérice. ‘Sentiu-se também a necessidade de um instrumento gra- ve (viola baixo, dulciana, fagote ou violencelo) que desse tum fundamento permanente, continuo, a melodias tocadas Pela flauta, pelo violino ou mesmo cantadas. Para preencher esse espago harménico entre a melodia solista e essa base grave, Introduziu-se um dos lnstrumentos pollfénicos men- ‘clonades acima que, baseado nessa linha melédica do balxo, executava continuamente acordes malores ou menores, mo- dulando de um tom a outro, conforme indicagées cifradas por nimeros pelo autor. A essa nova manelra de escrever ‘misica chamou-se "baixo continuo”, pols acompannava a| {8 do inicio ao fim, ao contrério da escola polifénica antiga ue dispensava esse acompanhamento. Citamos como exem- plo a "Sonata Prima’ de Dario Castello, para flauta soprano ‘© "Basso continuo” escrita em 1623. A partir desse esclaracimento, temos un embasamento maior para entender a misica nas Missbes pois, como vere- ‘mos, existem dois momentos aistintos: 0 primeiro, que vai desde 08 contatos iniciais at6 0 final do século XVII, onde redomina a polifonia Espanhola do eéculo XVI; © segundo, 8 partir da chegada do Pe, Antonio Sepp, em 1691, que intro: 7 duz 0 “stile moderno” o desenvolve, instalando definitiva- mente nas Misses 0 Barroco musical, culminando com a ‘vinda do renomado organista e compositor italiano Ir. Dome- nico Zipoli em 1747. Porto Alegre, novembro de 1987. dorge Hirt Preiss 18 ANTECEDENTES E 0 SEC. XVII Néo se sabe exatamente o tipo de musica praticado pelos ‘Quaranis antes da chegada dos Missionarios. Aquela époce, @ raga quarani compunha-se de milhoes de indlvidues, distr buldos em mithares de tribos, aspalhadas sobre a metade do continente sul-americano, num espaco superior a Europa inteira. Sob o ponto de vista etnolégico 6 filolégico, torna-se otdvel 0 fato de que entre essas tribos ou povoades, apesar {de possulrem os mesmos tracos fisiondmicos caracteristicos dda raga mongélica e falarem o mesmo idioma, as relacdes feram quase nulas, ndo havendo qusiquor tipo de amizade aparente, a ndo ser simples contatos de vizinhanga, pactticos ou bélicos. Provavelmente cada tribe tinha seus proprios can- tos para os rituals mais diversos, sous instrumentos musicais © suas dangas, como ainda hoje acontece com as tribos sobre= viventes do interior do Brasil © suas frontelras Oeste, No- roeste © Norte. Para essas tribos (Kamayuré, Yakund, Aruak, Maués, Tukano, Yanomani, Poari, Wanana, Piratapuyo © ou tas), @ misica instrumental e os canticos representam um ‘elo com as forcas magicas da Natuteza, sendo por isso, © Suporte da sociedade tribal. Através dos ons eles alcangam 08 lugares mitolégicos onde esta a fonte da sabedoria @ 0 segredo de viver em harmonia com anatureza. & interessante © processo através do qual o nossos Indios percebem o som: 0 movimento das coisas nasce o som; ele viaja no vento .@ penetra no ouvide até o lugar onde se faz perceber, Para.os instruments musicals s4o usados os mals diver= ‘sos materlais: cabagas, madeira, bambu, os808 ¢ carapacas. e certos animais, comoo tatue a tartaruga, Dal confecclonam ‘chocalhos, tambores @ os mals diversos tipos de flautas, des- 19 can at, ean aru Oe ie sai men espana dc Be See ee caca ana i nd etn le ee oe ae ae oe Se eee ee EAE Sora vee ri Tt A Sac pan ma an pecs a Fc ai net a aan see in ort er ae 20 otagéo, origindrio do séc. XV, usava notes brancas para 0s valores maiores (Maxima, Longa, Breve, Minima e Semini- ma). 0 tipo de misica quo ainda use essa notagéo basela-se ‘Nos modos gregorlanos auténticos @ plagals, desconhecendo 9s modos maiores e menores usados a partir do advento do ‘stile moderna”. Morreu ele na reducéo de N.S. de Loreto, ‘om 1623. Consta que, por varios anos, conservaram e transi tiram seu tepertério © composigdes pessoais. Desde 0 tempo do Pe, Vaisseau fol criada, em cada redugéo, uma escola, de canto coral, misica e danga, onde se aprendia a tocar todos 08 tipos de instrumentos “‘cujo uso & permitico nas igrolas". Tiveram os Indios pouco trabalho para aprender 4 tocé-los como verdadeiros mestres. Aprenderam a cantar elas notas mais dificeis. Diarlamente os misioas estudavam © canto @ 0s instrumentos por algumas horas. O Pe. Antonio ‘Sepp menciona, sem citar o nome, que depois desses velo lum padre espanhol que “entendia um poucomais", adlantando mais a mdsica com a composigéo de vésperas, ofertérios ® ladainhas, mas “tudo feito & manelra antiga”, isto é, segun- 60 a escola polifénica Espanhola do séc. XVI, na qual se destacaram compositores como Cristobal de Morales (1500-1559), Tomaz L. de Victoria (1548-1611) @ 0 portugués, Diogo Dias de Melgaz (1638-1700). ‘Quando em 1628 dols padres franceses, Hénard de Toul © Noa! Berthold, chegaram as Misses, os nedtitos executa- am em sua honra “ballados com uma misica a duas vozes, ‘20 bom gosto da Franca’ Em 1637 0 Pa. Riparlo escreve ao Provincial de Milo: "“Multos ja sabem muito bem compor misica, Podem rivalizar ‘com famosos compositores da Europa”. Usa-se uma grande Varledade de instrumentos, sendo o mestra— capela um gua- rani, @ néo um jesulta. Foi instituida na redugo de Jape) lum tipo de escola nacional de mésica, para a qual erar sel clonados os mais talentosos alunos de cada redugdo. Cita- ‘como instrumentos 0 6rgé0, 26 violas da gamba em seus di ‘verses tamanhos, os violinos, bombardas, chirimias, dull ‘has, flautas, harpas, guitarras @ vihuolas (antepassado do at SOnaAROA ——CHIRIMIA 3 T1908 De ovods annocos 24 25 DULCIANA RENASCENTISTA 26 FAGOTE BARROCO Violéo), alatides, trompetes, trompas @ tambores. Todos 08 Instrumentos, de fabrieagdo muito cuidada, safam das oficl- nas guaranis. Jé nos primeiros tempos, 0 menor dos povos tinha quatro organistas habilitados e misicos que se destaca- vam por sua exceléncia como alaudistas, flautistas, cravis- tas, trompetistas etc. Muitos europeus que ouviram a misica dos guaranis garantiram nao ser ela inferior & das catedrais 6a Espanna. Em 1639 0 Pe. Montoya escrevia: “s8o notaveimente aficcionados & musica... oficiam as missas com um aparato musical a dois e trés coros; esmeram-se em tocar Instru- ‘mentos como cornetas (néo confundir com trompete, ¢ um instrumento de outra familia, Ver, no apéndice, os instru- ‘mentos musicals), dulcianas, (0s espanhéis © chamam “ba- i6n”), harpas, citolas (ndo € citara, e sim um tipo de bandolin achatado}, vinuolas, violas de arco © outros instrumentos que ajudam muito a trazer os gentios e o desejo de levar-nos as suas terras. Pogas escolhidas da misica francesa, italiana e espa- hola eram executadas de um modo to culdado @ artistico ‘ue, "se no tivessem a vista os misicos, acreditar-se-ia ue as melhores orquestras da Europa estavam de passagem pelas Indias", no dizer de testemunhas da época. 'N&o cremos haver exagero nesses comentarios, pols om poucos momentos na hist6ria da musica européia se foi tao ‘exigente em matéria de qualidade, nivel de exacugao~ reper- tério, como no sée. XVII. Lembramos ainda as mudancas que estavam acontecendo por toda a Europa, como 0s con- {rontos entre a antiga escola polif6nica ¢ 0 “stile moderno”, ‘que se firmava na Itélia @ se espalhava por outros paises: (05 problemas @ decorréncias da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648); as inovacdes musicals, principalmente na mdsi- a instrumental por Claudio Monteverdi; 0 intereémbio entre ‘mésicos alemaes e italianos (Schatz-Gabrieli-Monteverdl) ‘colocando, apesar dos problemas socio-pollticos, esses dois, pases na vanguarda musical, enquanto a Espanha e Portugal a ormaneceriam, até 0 século seguinte, cultivando as formas musicals da Alta Renescenga, Todos os dias 0 6rg80, a harpa e outros instrumentos ‘acompanhavam os céinticos guaranis que se entoavam durante ‘a missa. Os salmas “‘Laudate Dominum" ¢ “Benedicite” eram ‘cantados, respoctivamente, no inicio e no tinal da missa. © 6rg80 tocava no comece e no Ofertério. Acompanhava © coro, quando a compasi¢io @ permitia. O som des trom #@ tambores ressoavam no Evangelho @ no Sanctus. No tempo {da Quaresma, até a Péscoa, aponas 0 canto gregoriano era pPermitido, em latim ou guarani. No restante do tempo litargi £0 cantava-se, de preferéncia, missas com misica, varian- 4do-as a cada domingo. Todos 06 sdbados havia missa cantada fem honra de Santa Virgem, Tupanci. Algumas igrejas possuiam dois érgdos, costume herdado, talvez, da Espanha, multo comum nos sécs. XVI ¢ XVII. Naquele pals, em geral, 0s 6rgios nao ficavam atrés, no coro, © sim & direita @ esquerda da nave central, frente um 20 outro e préximos ao altar-mor. Chamavam-se, por causa de ‘sua localizagto litrgica “érg8o da Epistola” e "érg8o do Evangelho 28 © PE. ANTONIO SEPP, DOMENICO ZIPOLI E 0 SECULO XVII Esse padre de porsonalidade fascinante, de uma cultura eral invulgar para a sua época, de uma sensibilidade artist ca tamanha que deu novo impuiso @ novos rumos & masica has Miss6es, fol instruldo nessa arte desde crianga. Nasceu fem 1655. Por tor uma bela vo2, fol escolhido para tomar Parte do coro de cantores da Corte Imperial de Viena, onde alcangou verdadeira celebridade. Era Viena, nessa époce, lum centro musical de primeira grandeza onde se cultivava, principalmente, a misica Italiana, Sous imperadores, desde Fernando 111 (1637-1657) at6 Carlos VI (1711-1740) pratica- Yam a misica néo apenas por gosto pessoal mas a nivel pro- fissional como concertistas, compositores @ maestros de or- {questra. Quando Sepp chega a Viena, as 6peras e oratérios, italianos taziam all mais sucesso que om Venez. Cavalli © Cesti, os mestres mais destacados da épera veneziana, colheram em Viena seus maiores trluntos. Marco Antoni Cesti fo}, de 1666 a 1669 vico-diretor da orquestra Imper Nesse ambiente onde se respirava masica, Sepp aprendeu ‘muito, estudando canto e a técnica dos Instrumentos mais, diverses: viola, tiorba, alaide, flauta, trompete, bombarda, tg, harpa, espineta, saltério @ outros. Talver pensasse ‘om se tornar um profissional como cantor, instrumentista, ou, talvez, diretor de orquestra. Mas seu destino mudou ao entrar para a Companhia de Jesus om 1674, aos 19 ans, 38 dos danos materials, tisicos e morals dos Trinta Anos, as pessoas buscavam consolo fa religiéo © na misica, certamente néo na pera italiana, ‘mas nos Oratrios, Paixdes, Lamentagdes de Jeremias @ Mo: 2 tetos de um Colonna, Cima, Schitz ou mesmo Montever Obras de grande sentimento e forca expressive, fizeram com {que Sepp se mantivesse fiel & misica sacra quando entrou para a Companhia, Carregado de um sentimentalismo poético allado a uma grande sensibilidade, conseguiu responder a todas as exigéncias e nao perdeu, durante os quinze longos anos de sua formagao intelectual, moral e religiosa, o calor Go sentimento que o caracterizava Em 1687 Sepp foi ordent Go sacerdote pelo bispo de Augsburgo. Naquela cidade, em 1688, esteve como professor de retérica e “praefectus mus cae", 0 que significou uma época de intensos estudos da misica religiosa e protana, O diretor de masica da catedral ‘eta um compositor conhecido, Johann Melchior Gletle, de ‘igen sulga, famoso por suas cantatas, cangées e mésica sacra em geral. Com ele Sepp estudou 0 "stile moderna”, ‘0 que vai Ihe proporclonar @ grande vantagem técnica que (0 tornard o grande mestre da misica nas Missdes. No inicio de 1689 prestou seus oxames finals na cidade de Oettingen, endo em maio do mesmo ano destinado para as Missdes, ‘na Provinela do Paragual (lembramos aqui que Aquela época @ relerida Provincia englobava 0 Paragual, sul da Bolivia {Los Chiqultos), parte da Argentina, grande parte do Rio ‘Grande do Sul e parte do Urugual). Apés receber essanoticia, teve alnda que esperar quase dois anos até partir do porto de Cadiz, Espanha, no dia 17 de janeiro de 1691 rumo @ Buenas Aires. Enquanto esperou por essa data, durant mais, de quinze meses, aprondeu o castelhano, aprofundou seus ‘onhiecimentes de ciénclas © dedicou-se a sua ocupagao fa- vorita, isto 6, & misica. ‘Durante a travessia, menciona varias ceriménias a bordo dda nau “Almiranta”, onde tentou fazer um pouco de misica, \Vejamos suas palavras: “No dia 25 de marco, festejamos, 8 festa da Anunciagéo da Bondita Mae de Deus com quatro santas missas, troar do canhdes e bandelras desfraldedas (Sepp viajou com mais 49 missiondrios numa pequena frota do trés caravelas); e unte-se ainda um pouco de minha péssi- ma masica com flautas, tiorbas, trompetes, tambores e pita- 34 10s", Quando de sua chegada a Buenos Aires, a 6 de abril de 1691 (uma Sexta-Feira da Paixdo), conta da multidéo de incontéveis americanos com os seus instrumentos musi- cais". Mais adiante, diz: “Acompanhados da multido dos nativos, tem como do Reverendfssimo Pe, Provincial Grego- Fig de Orosco o de todos 0s padres do Colégio, saimos do porto em diregéo rota & nossa igreja. Ai rendemos as devidas ‘gracas 20 Deus Todo-Poderoso @ a sua Dolorosa Mae € assis timos ao "Te Deum Laudaus”, que os Indios néo cantaram mal, enquanto repicavam os sinos de toda a cidade". ‘Achamos oportune mencionar aqui uma compra de ins- trumentos musicais felta pelo Procurador da Companhia {ue velo no mesmo navio, constando esta de um érgéo para Buenos Aires, comprado nos Paises Baixos, e varios outros Instrumentos @ pedico do proprio Pe. Sepp, entre eles uma espineta, um clavicérdio © varias bombardas @ chirimias, ‘além dos instrumentos que ele préprio trouxera consigo, como vveremos a sogult. Durante a sua permandncla em Buenos Aires, que fol © restate do més de abril, o Pe. Sepp e seus confrades unham a par seus novos companhsiros sobre as Gltimas notl= clas da Europa. Novamente, um interlédio musical: "Como Soubessem que eu tinha alguma prética na misica, tive que thes tocar alguma coisa. Toquel sobre a tiorba grande, que trouxera de Augsburgo, bem como sobre a tiorba pequans, ‘que trouxera de Génova’’.. “Quando terminei de tocar as ‘duas tiorbas, 0 saltério apraciado tocou 0 coragao dos padres, ‘que nunca haviam ouvido coisa semelhante. principio fiz com que se assentassem de tal mado que s6 me ouvissem tocar, sem no ontanto me ver. Mas logo no mais puderam cconter-se, vinham para o meu lado para seguir a misica ‘com ouvides e olhos. Depois toquel com 0 Pe. Antonio BOhm ‘em dois tipos de flautas (provavelmente duas flautas doce, soprano contralto, por serem as mals usadas na época) que comprara em Génova. Também tive que tocar um pouco de viola @ trompete, tendo eu compraco eta ita am Ca- 35 No dla 1: de malo do mesmo ano, partem os padres em diragéo as redug6es para as quais tinham sido designados. (Oe, Sepp val para Japej0, consagrada aos Trés Santos Rels, onde permanecerd por quase trés anos. Interessante 0 fato nartado por ele que, ao ingressar no territ6rio daquele povo, ro dia 1° de junho, principiaram os indios a tocar mésica. Cada barco tInha um tambor, um pitaro e uma trompete, pois como ainda nao eram vistos pelos habitantes da redugéo, ram reconhecidas ao longe pelo som da misica. S6 ao am ‘Mhecer do outro dia 6 que lograram atravessar para a outra margem © desembarcar. Seguiram em diregdo & igreja, que deve ter surpreendido 0 nosso padre pelo seu tamanho. Se- undo um relato de 1768 a de Japejd ora uma das maiores, pols “abrigava em seu interior todos os 7.947 habitantes de reduc". Lé 6 cantado o salmo “'Laudato Dominum omnes gentes", executado polo coro @ acompanhado pelo érgéo 6 Outros instruments. Durante sua estada om Japejd vamos encontrar varias situagbes de interesse para nosso estudo, como em uma de suas cartas escritas daquela reducio para a Europa, onde pede que thes mandem partituras, néo 6 em seu nome, mas ‘n0 de todos os pobres masicas indigenas, os quals, se se reunir aos de todas as redugées (26 na época), somam uns 3,000 homers". Compée varias obras para vozes @ instru rmentos, em latim @ guarani, como duas " Vesperas de Contes sore et Beatissima Virging” @ cuas Ladainnas. Pede ainda, que the mandem composigdes do Sr. Schmelzer (Johann H. Schmelzer, 1623-1680), do Sr. Biber (Heinrich F.J. Biber 1644-1704), do Sr. Gletle (Johann M. Gletle, 1626-1682) ¢ 0S. Kerll ohana K. Kerll, 1627-1702). Mais adiante, narra ‘© sequinte: "De todos 08 pontos cardiais o de mals de cem rmilhas, os missionérios me mandam os seus misicos para ‘quo og instrua nessa arte, que Ihes 6 completamente nova e difere da velha masica espanhola, que eles ainda tém, como © dia da noite, Até agora nada se sabia aqui de nossas divisdes ‘de compaseos e espécies de andamontos. Até hoje, os espa ‘nhéls, como vi em Sevitha e Cadiz, ndo tem notas dobradas, 36 ‘quanto menos triplices. Sues notas s8o todas brancas, as Inteiras, 25 melas @ as notas corais, misica velhfssima, anti- qualhas que os copistas da Provincia alemé possuem aos Calxées € que aproveltam para encadernar escritos novos, Portanto, tenho que comecar com estes meus cantores com © comego.da escala tonal, ut (sic), re, ml, £4, sol, la, si © que, por amor de Deus tago de muito bom grado”. E conti- rua: “Neste ano j4 consegui fazer mestres nos respectivos instrumentos: sels trompetistas de diversas redupbes, trés bons tiorbistas, quatro organistas. Level este ano trinta bom= bbaréas e chirimias, dez cornettl © dez tagotes a ponto de jd saberem tocar e cantar todas as minhas composigdes. Além disso, |4 tenho mais de cinguenta sopranas, que tem vozes boas”... “Todos os missiondrios esto muito satisfeitos & ‘agradecem ao sumo Deus por thes haver enviado, apés tantos ‘anos, um homem que agora também Imprime & misica um ‘novo Impulso. Em reconhecimento, este me manda uma barrl- uinha de mel, 0 outro agdcar e frutas amorleanas..."" Temos ois érgéos, um dos quals trazido da Europa, ao paso que © outro foi feito pelos Indios, @ t80 semelhantes, que a princt- pio eu mesmo me enganei o level o érgéo indigena por conta do europeu. As trompetes so bem iguals as de contecgao de Norember ‘Na sua ordem do dia vemos 0 Pe. Sepp a visitar primeira (08 doentes, depois as oficinas @ entdo os misicos: "ora ougo Cantar os soprancs, que tenho oito; outras vezes 08 contral- tos, que tenho seis. Os tenores sao incontavels; tenho seis, balxos. Depois tocam os quatro trompetistas, os olto bombar~ distas @ 05 quatro trompistas, dando sua lipo. Dou lig ‘20s quatro harpistas, aos quatro orgenistas e a um tiorbista’ Devemos tembrar aqul o fato significative de que 0 Pe, ‘Sepp ndo s6 ensinava a tocar os Instrumentos como também 8 construl-los. De suma importancia 6 0 capitulo onde des- Creve a fabricacao de um érgao. Segundo os comentarios {de Werner Hofmann (ver bibliografia), 0 primeiro construtor de 6rg80s do Novo Mundo parece tar sido um tal Ruanes que, em 1564 construlu um érgéo para a catedral de Quito, a7 Equador, a pedido de Don Lorenzo de Cepeda, irméo de Santa Tereza. ‘N8o se sabe que material empregou. Conhece-se 4 histérla de outro, constru'do no Inicio do séo. XVII para ‘uma igroja em Nova Granada polo jesulta italiano Giuseppe Dadey, na Colémbia. Este, néo tendo estanho suticlente para 08 tubos, fazia-os de bambu. Temos referéncias sobre outros instrumentos como em Cuzco, Peru, na igreja da paréquia de Andahuaylilias, em 1620, de construtor desconhecido; na prépria catedrat de Cuzco, em 1630, construldo na Espanha por um construtor holandés; na catedral do México, em 1688, por Jose Nasarre; fem San Miguel de Allende, México, em 1715; na igreja de La Merced, em Quito, 1740; igreja de Santa Flosa am Quere- taro, México, 1759. No Brasil, entre outros, temos 6rg80s hist6ricos na catedral de Mariana, 1701, construldo na Ale- ‘manha pelo célebre Arp Schnitger, um dos malores constru- tores de érgtios do Barroco, o na Matriz de Tiradentes, 1750. A seguir, por conter informacbes curiasas e preciosas, transcrevemos na Integra, par ndo ser longo, o rolato do pré- rio Pe. Sepp em sua experiéncia como construtor de 6rgios: “Demorei-me, como acima referl, quase trés anos na edugdo dos Trés Santos Rels para civilizar os Indios Jape- juanos. Entre outros trabalhos, ndo fol o menor instruir em todo 0 género de misica os Indios de varias redupées que 08 padres missionérios de todas as partes enviavam. A estes ‘onsinei a tocar érgéo @ citola feita de casca de tartaruga, outros trompete e flauta, Aqueloutros guitarra e 0 suave saltério davidico tocado agiimente com dols pauzinnes; numa Palavra, no s6 devia instruf- los em todo o género de misica, ‘mas também era forgoso confeccionar cada vez todos os instrumentos, dos quais principalmente o 6rgao era indispen- ‘vel para cantar na igreja os louvores de Deus”. "E assim, vendo que a miséria dos érgaos usados até {entdo entre os Indios no provinha tanto da falta de recursos como de seu estado miserdvel, deu-me o R. Pe. Provincl Pe, Lauro Nufes, ordem de fazer um érg80 como os da Eur a, ou de mandar fazé-Io, reservando-me a superintendéncla 38 Ey da obra. Ndo 0 podendo levar a ofeito na reducéo dos Trés Santos Fels por falta de material, ordenou-me que f0ss0 para a rodugéo que em espanhol chamamos Nuestra Sefiora de Fee. Ordenou-me, cutrossim, que na viagem me detivesse poor alguns meses na cidade de Itapua, onde 0 Pe. Francisco ‘Azebedo jd tinha & méo o material para a construgéo do ‘rgao". “Contiando pois, mais na virtude da obediéncia que na prépria arte, ponho méos & obra. Come, porém, @ quantidade de estanho © chumbo arranjada pelo dito Pe. Azebedo 86 bastasse para fazer os tubos menores, cuidei que os malores, 0 chamado sub-baixo, se fizessem de tébuas de cedro des bastadas e, com todo 0 cuidado, aplainadas e polidas. Estas preencheram téo bem a sua finalldade, que se juraria ser metal fundido ou estanho inglés e a diferenga entre um © ‘outro nem 0 ouvido mals bem afinado haveria de distinguir. Uma colsa, entre outras, causou admiragao no 86 aos Indios, ‘como também a todos quantos para lé iam, acs padres missio- ‘érlos @ ao préprio Pe. Provincial, Pe. Lauro Nufes, entéo resentes: a saber, que me virem tocar néo s6 com as més, mas também com os pés, coisa nunca vista nem ouvida por les (pois na Espanha os érgdos no tém o assim chamado pedal, nem os registros de core ou corneta). Por isso, como disse, todos ficaram estupefates com 0 cedro sonoro, coisa at6 entdo Inaudita, o qual cantaria, ou melhor, faria ressoar doravante no templo de Deus nao a sua propria imortalidade, mas a de seu Criador” ‘Apbs @ construsio do érgio, vemos oe. Sepp na redugéo de Nuestra Sefiora de Fee, em 1695, tratando os Indios de uma epidemia de varfola. No mesmo ano, auxilla os de Santo Indcio pelos mesmos motives. Vendo-se enfraquecido segue, por ordem superior, para a redugao de Sao Carlos @ depois para Sio Francisco Xavier, permanecendo ali até recuperar suas forcas. No ano de 1697 6 enviado a Sdo Miguel, a maior de todas as redug6es da banda oriental do Urugual, com a miso de dividir esse povoado, pois a igreja ndo ora mais suficionto 44 para a populagéo. Naquela 6poca ainda nao existia a igraja, ‘ujes ruinas veros nos dias de hoje, Esta foi construfda cerca de 40 anos depois. Inicia-se aqui um pedaco da histéria do Rio Grande do Sul, pois até entéo as reducées maiores eram Japejé e Nues- tra Sefiora de Fee. Além do quo, otra {antes om Japeji pelo Pe. Sepp continuaré em solo riograr donse, nas redugbes de S. Jodo Batista, S. Miguel e S. Luiz Gonzaga. Vinte um caciques com 750 familias participam dessa ‘empresa, A 14 de setombro de 1697 ¢ erigida a cruz como edra fundamental da nova redueao, consagrada a S. Jozo Batista, e 6 cantado 0 "Te Deum Laudamus”, acompanhado por trompetes e tambores pelos mésicos que, para tal fim, levara consigo. Nas terras da nova redugao 0 Pe. Sepp descobre minério de ferro, que extral das pedras “itacuré © Ihe permite a fabricagéo de uma infinidade de_utensilios ¢ ferramentas, Inclusive sinos. Vejamos alguns fatos narrados por ele sobre a misica e alguns artistas guaranis daquola regio: onsegui elevar minha oolénia a.um estado, a uma for- ma @ condigées realmente étimas”. Os Indios constrbem {6rg0s, como referi acima. Providenciel a que fabricassem cifolas, clavicérdios, saltérios, fagotes, flautas, tlorbes cornetas om diversas redugées. Este més mandel aprontar Vérias verrumas e brocas de ferro que server para perturar flautas @ fagotes. Os meus Indios fabricaram quatro flautas, ara'o acompanhemtno do canto, duas para 0 contralto @

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