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Faculdade de Economia Universidade de Coimbra Retornados: Identidades de Um Grupo ‘(In)Contormado Elaborado Por: Claudia Sofia Pinto Susana Faria Orientado Por: Doutor Joao Arriscado Nunes Seminario de Investigacéo em Sociologia da Cultura - Setembro de 1996 - Agradecimentos: A todos aqueles que, de uma ou outra forma, contribuiram para a realizagao deste trabalho. Nomeadamente, a todos os que gentilmente nos concederam 0 seu testemunho. indice Pag. indice...... Introdugao.... 1, Apresentagdo do Projecto a Desenvolver.......c.-cccsssssssseceseesseee 2, Breve Introdugio Histérica... 3. Um Estudo Sociogréfico sobre o Retomo. eda Yu uuen 3.1 As Trajectorias,. 3.2 A Integragao.. 3.3 Ajudas Institucionais.... wl 3.4 O Movimento Associativ ses : 14 3.5 As Consequeéncias Socio-Culturais do Retorno. 14 I- Abordagem Teérica 16 1. Definigio do Quadro Teérico.... 2. Os Estudos Biograficos.... LT 3. As Representagées Sociais. 20 4, Estigmae Rotulagem 1 25 II- Andlise Metodol6gica....ccssc 36 1, Formulagao de Hipoteses eee Hare Pao. 2, Procedimentos de Pesquisa..... 37 2.1 Métodos e Técnicas de Investigaga 1.37 2.2 Incursfio no TerreM..e.cc... 39 2.3 Caracterizagao dos Actores ¢ Situagao de Entrevista... sevenssees 40 3. Procedimentos de Andlise. Ad HIT - 0 Caso Angolano...... 1 46 IV - 0 Caso Mogambicano..... 68 V - Anilise Comparativa..... 89 Pag. VI - A Segunda Geragao....... 2. 94 1, Andlise Descritiva...........scsccssssssssssscsesssessssssneeseessssssmeesasessananseeesessssesevens OF 2, Reflexes Gerais... ccccccccsssssunnseecsrees - 103 VII - Consideragées Finais..........00...0000.. eee eet 105 Referéncias Bibliograficas...... 108 Anexos Metodolégicos: I - Guido para as Recolhas Biograficas - 1° Geragao TI - Transcrigdo de uma Historia de Vida - Angola IIT - Transcrigao de uma Histéria de Vida - Mogambique IV - Analise de Contetido das Biografias - Angola V - Andlise de Contetido das Biografias - Mocambique VI - Sintese das Principais Categorias Relatiovas a 1° Geragdio - Angola VII - Sintese das Principais Categorias Relativas 4 1° Geragdo - Mogambique VIII - Guido para as Entrevistas - 2" Geragaio IX - Transcrigéio de uma Entrevista - Angola X - Transcrigao de uma Entrevista - Mogambique XI - Analise de Conteiido das Entrevistas - Angola XII - Andlise de Contetido das Entrevistas - Mogambique XIII - Sintese das Principais Categorias Relativas a 2* Geragao - Angola XIV - Sintese das Principais Categorias Relativas 4 2" Geragéio - Mogambique Retormados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado Introducio 1, Apresentac4o do Projecto a Desenvolver Tendo em conta que o retorno do meio milhao de portugueses residentes nas ex-colnias constitui um dos fenémenos mais marcantes da década de 70 ¢ simultaneamente a consequéncia menos estudada do processo de descolonizacao, procuraremos estudar este importante fenémeno social, no Ambito do nosso Seminario de Investigagao em Sociologia da Cultura, Neste sentido, a investigagao que no propomos realizar, tomaré como objecto os retomados das ex-colénias ultramarinas, conceptualmente definidos como: todos os individuos que, tendo nascido em Portugal, construiram as suas vidas nas colénias portuguesas e foram obrigados a regressar apés a sua independéncia, Para além desta populago analisaremos também a segunda geragdo de retornados, ou seja: os filhos da primeira geracdo que, tendo nascido em Africa, regressaram a Portugal com os seus pais, sendo ainda criancas ou adolescenies Coneretamente, a principal problemética a estudar seré a da integragio da Populagao retormada na sociedade portuguesa. Muito embora consideremos inevitavel abordar a questio da integragiio econémica, procuraremos dar especial énfase A integrago cultural ¢ social, tendo em conta as estratégias de reinvengdo identitéria e sua recriagao intergeracional, Quanto a metodologia por nés adoptada, é de salientar desde jé que, com base na afirmacdo de Fernando Barciela Santos de que Angola constituia nao sé uma colénia de explorago, mas também de povoamento, partimos da hipétese de que estes colonos apresentaram menores dificuldades de integrago do que por exemplo os retornados mogambicanos. Por esta razio optimos por analisar separadamente 0 caso de Angola e de Mogambique, procedendo depois a uma andlise comparativa, Atendendo ao tipo de investigagio que pretendemos realizar, recorreremos fundamentalmente as histérias de vida e as entrevistas enquanto procedimentos bisicos de pesquisa e associado a estes, 4 recolha de documentos como cartas, didrios, fotografias, etc. Esta opyio metodolégica prende-se com o reconhecimento da oralidade como: a forma mais legitima de abordar este fenémeno. Esta oralidade ¢ tanto mais preciosa quanto, tendo passado jé vinte anos desde a chegada da primeira geragio de retornados, corremos 0 risco de vir a perder este grande legado para a anilise sociolégica. Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 5 Paralelamente, € tendo em conta a falta de teorizagao sobre os assunto, recorremos a alguns dados secundarios produzidos, quer pela imprensa, quer por alguma bibliografia especifica como a obra de Rui Pena Pires, ou de caracter mais geral acerca do processo de descolonizagao. E desta recolha bibliografica que, em jeito de introdugio ao nosso tema, daremos conta nos pontos que se seguem, 2. Breve Introdugao Histérica Ainda que 0 governo de Marcelo Caetano fosse uma garantia a salvaguarda do status dos colonos, os portugueses de Angola e Mogambique nfo se encontravam satisfeitos com ele. Tal devia-se fundamentalmente as contradigdes de interesses econdémicos entre Portugal e as colénias e que se centravam nas restrigdes impostas ao nivel do comércio funcionando como freio a industria das coldénias. Inicialmente, 0 25 de Abril de 74 trazia promessas de democracia ¢ liberdade que iam ao encontro dos sentimentos separatistas em relagéo a metropole. Contudo, os colonos insurgiram-se contra o rumo dos acontecimentos quando o Governo de Angola foi entregue @ maioria africana, De facto, as alternativas de uma federagao entre Portugal e as colénias, bem como a de uma transi¢o lenta e gradual para a liberdade no resistiram a pressio do MPLA, FNLA ¢ FRELIMO. Comega entio a avolumar-se entre a comunidade dos colonos um sentimento antiportugués, especialmente visivel entre os jovens, que assume a forma de aversiio para com todo um povo, 0 qual acusam de os ter abandonado a sua sorte. Para com o Governo, a antipatia remonta as suas intromissées na vida da colénia. Relativamente aos militares, sao acusados de ter pouco interesse em acabar com a guerra colonial dados os privilégios que esta Ihes proporcionava. O 25 de Abril de 74 e€ o consequente programa de descolonizagio sé vém aumentar esta aversio. Por fim, 0 colono portugués descobre um sentimento entre a gente portuguesa que Ihe € pouco favoravel e que resulta da imagem do colono como um miliondrio ou explorador de negros indefesos, nao olhando com muita simpatia o seu irmao que regressa do além-mar. De facto, embora alguns tenham feito escala em Africa de Sul ou na Rodésia, a Metrépole foi o destino da grande maioria dos colonos, com excepeao de uma pequena minoria de técnicos qualificados que ali se radicou, beneficiando de excelentes condigdes de emprego. O Brasil foi também um grande acolhedor de portugueses refugiados do ultramar o que é em grande medida explicado pelos lagos de sangue e cultura que uniam os dois paises. Relatério de Tnvestigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 6 No caso angolano, o grande éxodo seguiu-se aos incidentes entre o MPLA e 0 FNLA em Junho de 75. A comunidade portuguesa, ignorando os apelos da Comissdo Nacional de Defesa para que ali permanecessem, exigiu ao governo portugués a sua evacuacdo imediata para Portugal ou para qualquer parte do mundo onde pudessem refazer a sua vida. Dado que as companhias aéreas se revelavam insuficientes para proceder a esta operago, os refugiados portugueses foram obrigados a tentar outras vias, sendo a organizacio da "Longa Marcha" um episddio ilustrativo do desespero em que se encontravam. Foi entéo que o Governo Portugués com o auxilio da Franga, Unido Soviética, EUA, RDA, RFA, ¢ Inglaterra estabeleceu uma ponte aérea entre os dois territérios. Quanto a Mogambique, inicialmente, a FRELIMO desencorajava o éxodo dos portugueses, convidando-os a adaptarem-se as transformagées politicas e sociais que ento se registavam. Joaquim Chissano e Samora Machel apresentavam entiio © seu movimento como arracista e esclareciam que o seu combate havia sido contra 0 colonialismo portugués e no contra a raga branca. Contudo, em 1975 registou-se um agravamento do éxodo com a chegada a Lisboa dos primeiros portugueses expulsos de Mogambique pelo governo da FELIMO e a quem tinham sido confiscados os bens a partida, pritica que alias se tomou corrente até 1977. E de salientar que o fluxo mogambicano antecedeu o angolano ¢ se prolongou apés 0 fim deste. Quanto & populagdo residente, nada ou quase nada sabia acerca das operagSes de acolhimento dos portugueses regressados ¢ muito menos acerca dos motivos que os levaram a fugir de uma terra que oficialmente tinha sido conduzida & independéncia com o minimo de reflexos para a populagdo portuguesa ¢ cujos direitos haviam ficado garantidos no Acordo de Lusaka. Este atraso na consideragao do problema dos retornados de uma forma responsavel bem como 0 aspecto caético que a operagao do retorno assumiu até ao 25 de Novembro de 75 deve-se fundamentalmente a utilizagéio do retornado como “bode expiatorio" e 4 consequente deteorizacao do termo retornado. So quando se comega a ouvir falar que o niimero de retornados se aproximava ja de meio milhdo é que 0 governo portugués se comeca a preocupar com o seu levantamento estatistico, bem como com as inevitaveis consequéncias econémicas e sociais que resultariam de um stbito aumento do nimero de desempregados. O Governo apela ento a todos aqueles que pensavam retomar a Portugal que repensassem a sua decisio e se possivel voltassem as ex-colénias tentando o caminhos da paz e da harmonia, Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1956 Retornacios: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 3. Um Estudo Sociografico 3.1 As Trajectérias Com base nos dados recolhidos pelo INE através do Censo de 1981, Rui Pena Pires e os seus colaboradores chamam a atengfo para algumas caracteristicas da populagao retornada que nos parecem relevantes para 0 nosso estudo. Assim, é de salientar que: quase dois tergos dos retomados eram oriundos de Angola; mais de trés quartos dos menores de quinze anos em 1981 eram naturais das colénias, bem como cerca de metade dos individuos com idades compreendidas entre os 15 € 0s 39 anos; dos 60% nascidos em Portugal, a maioria era natural das grande Areas urbano-industriais de Lisboa e Porto e das regides deprimidas do norte e centro interiores. Desde logo, estes dados deixam transparecer a importéncia de que se reveste a segunda geragéo de retornados que € aquela onde os contrastes culturais relativamente a restante populagdo portuguesa seréo mais acentuados, transformando-se numa das principais caracteristicas das novas geragdes de portugueses. Por outro lado, vislumbra-se também a hipétese da existéncia de certos tragos culturais dominantes entre a populagio oriunda das ex-colénias, fruto de percursos migratérios dominantes (origem em Portugal e destino Angola ‘ou Mogambique). Por fim, o facto de a emigragao para as colénias nao envolver apenas as zonas periféricas do pais, mas também os grandes centros urbano- -industriais é explicado pelo facto de as coldénias atrairem individuos com qualificagdes superiores as que encontramos na emigragiio europeia. Quanto a distribuigdo regional da populagio retornada, os dados de 1981 revelavam ser bastante desigual, sendo os distritos de Braganga, Guarda, Lisboa e Seribal aqueles em que a percentagem de retornados na populagao residente era mais elevada. A totalidade dos distritos do Litoral-Norte e do Alentejo, bem como as Regides Auténomas suxgem, no polo oposto, como aqueles onde a percentagem de retomados era mais baixa. E de salientar ainda que esta percentagem é mais elevada nos centros urbanos do que nas pequenas localidades turais. O Distrito de Leiria surgia-nos, em 1981, em oitavo lugar relativamente ao nimero de retornados (19 141), lugar que se mantém considerando a percentagem de retornados na populagio residente (4,4%) 0 que alias ndo se verifica na maioria dos outros distritos. Relatério de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 3.2 A Integrago Quanto a integragao dos retornados na sociedade portuguesa, é geralmente apresentada como tendo sido relativamente facil e rapida ainda que se verifiquem inimeros casos draméticos de nao-integragao, Segundo este estudo, uma das razdes que terd facilitado a integrago desta populagao tera sido a persisténcia durante a sua estadia em Africa de inimeros vinculos para com a Metropole, nomeadamente, vinculos de cardcter familiar. Note-se que a esmagadora maioria dos retornados adultos sao naturais de Portugal, uma vez que o grande fluxo migratorio para as coldnias se verificou sobretudo nas décadas de 50 e 60, Tera sido devido a estes factores de caracter nao-econémico que os retornados se instalaram maioritariamente nas regides de Portugal onde viviam as suas familias. Esta estratégia de "retorno as origens" prende-se com a procura de apoio nos momentos que se seguiram ao retorno, apoio este de cardcter relacional, cultural e afectivo e que parece ter sido mais importante do que 0 fornecido pelas entidades governamentais. Nao € contudo de desprezar a hipétese de que a distribuigdio dos retornados pelo territério nacional seja largamente condicionada pela possibilidade de uma répida insergo no mercado de trabalho, preferencialmente em sectores e condigdes semelhantes aos da sua anterior vida profissional nas sociedades coloniais. Concretamente, as condicionantes econémico-profissionais terao tido maior importincia nos processos de integragio quando os vinculos dos retomados para com a Metrépole eram mais fracos, caso que se aplica especialmente a populacdo africana refugiada em Portugal Uma outra explicagéo avangada por Rui Pena Pires para a relativa facilidade na integragdo dos retornados na sociedade portuguesa foi a de esta se ter processado durante um periodo em que ocorriam na sociedade portuguesa imimeras transformagdes e reajustamentos tanto de cardcter econdmico (mercado de trabalho e investimento) quanto cultural, favorecendo a integragao profissional dos retornados e proporcionando um clima de relativa abertura face a novos valores e produtos culturais Relativamente 4 questo da integragao dos retornados do ultramar este autor salienta ainda que, apesar de existirem entre eles cumplicidade e solidariedades de varios tipos, elas apresentam um cardcter relativamente pontual, ndo se constituindo portanto como uma verdadeira comunidade auténoma. Tal nao significa a inexisténcia de casos em que a fragilidade das solidariedades familiares e locais foi parcialmente compensada pelo desenvolvimento de Relatério de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 9 relages mais intensas entre os retornados, criando condigées favoraveis a emergéncia de referentes de identidade colectiva. Contudo, parecem adquirir muito maior peso as relagdes de solidariedade que estes foram estabelecendo nos locais de estudo, de trabalho e residéncia com a populagiio metropolitana. A isto se devera provavelmente 0 cardcter limitado e efémero que caracterizou a maioria das organizacdes e movimentos politicos de retornados e que contrasta com a sua participago activa na vida politica do pais, ilustrada pelo papel de lideranga a que, especialmente nas regides mais periféricas, individuos retomnados ascenderam quer no plano politico quer nos planos social, econémico ou cultural. Alias, é necessdrio distinguir 0 posicionamento politico e ideolégico desta maioria de retornados, da posi¢o marcadamente conservadora que aqueles movimentos adoptaram e que se manifesta numa reacgdo radical em relagdio a descolonizagio acompanhada de acrescidas dificuldades de integragio. Esta constatagaéo vem de facto demonstrar a consumagéo de uma efectiva integragio dos retornados na sociedade portuguesa, mas a explicagio continua ainda por dar. Na verdade, ela s6 pode ser dada se atendermos as caracteristicas especificas da populagio retornada, nomeadamente, a predominancia de camadas relativamente jovens, com formagao acima da média e com experiéncias e competéncias capazes de pr em pratica estratégias que visam retomar percursos de mobilidade social ascendente, interrompidos pelo retorno. ‘A questiio da estrutura demografica da populagao retornada adquire maior importancia se atendermos a que ela contrasta fortemente com a da populagao Portuguesa na década de 70, populacao esta que se apresentava profundamente envelhecida e com uma baixa percentagem de homens e activos jovens, fruto da forte emigragdo. Quanto & populagdo retornada, apresentava um forte peso relativo de jovens em idade activa e de mulheres em idade fecunda, ao mesmo tempo que registava uma baixa percentagem de idosos. Este forte peso das camadas jovens parece dever-se fundamentalmente ao facto do grande fluxo emigratério para as ex-colénias se ter verificado nos anos 50, bem como ao caracter permanente e predominantemente familiar que este assumiu. Neste sentido, a insergo dos retommados na sociedade portuguesa veio inverter as tendéncias regressivas que nela existiam, sendo responsavel por cerca de metade do acréscimo populacional verificado entre 1970 e 1981. Da mesma forma, tera contribuido para o atenuar de algumas assimetrias regionais no plano demografico, visto que 0 retorno teve grande incidéncia em algumas regides mais periféricas do territorio nacional. Relatério de Tnvestigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Sctemibro de 1956 Retornados: Identidades de Um Grupo (n}Conformado 10 Quanto a formagio escolar, o Censo de 1981 revela que a populagdo retornada apresenta qualificagbes acima da média o que parece dever-se a0 acelerado crescimento econémico e a necessidade que o Estado portugués sentiu, com o inicio da Guerra Colonial, de expandir o aparelho administrativo nas coldnias € proceder a criag&o de novos servigos piiblicos como forma de legitimar interna internacionalmente a sua presenga nos territérios ultramarinos. Tal implicava naturalmente 0 aumento da procura de mao-de-obra qualificada, em especial de técnicos médios e superiores. Ao nivel das consequéncias apés 0 retorno desta sobrequalificagao relativa da populagdo retornada ha que registar: 0 aumento de miio-de-obra qualificada em certos sectores de actividade e em certas regides do interior; a maior facilidade de insergao dos retornados no mercado de trabalho de acordo com novas exigéncias geradas pelo 25 de abril; a j4 referida presenga de muitos retornados em lugares de destaque, tanto no plano profissional como no plano politico; e a consequente capacidade de intervengio social em todos os dominios. Note-se que entre os retornados com cursos superiores predominam os formados em tecnologia engenharia e em ciéncias agro-pecuérias, areas directamente ligadas as actividades econémicas que se encontravam nesta altura em desenvolvimento. No que diz respeito as consequéncias dos elevados indices de escolarizagiio ao nivel da propria populagdo de retornados, convém referir que, quando comparada com o resto da populagdo portuguesa, esta comega a procurar trabalho mais tarde, trabalha menos horas ¢ regista uma maior mobilidade profissional, 0 que coloca a hipotese de se verificarem entre os retornados orientagées ¢ atitudes favoraveis a um maior investimento na formago escolar. Analisando @ insergaio profissional dos retornados, verifica-se uma grande incidéncia de trabalhadores por conta de outrem, a par de uma elevada percentagem de patroes. Verifica-se ainda que os grupos profissionais em que os retomados apresentam maior peso relativo so as profissdes cientificas, técnicas ¢ artisticas, dirigentes, quadros superiores, pessoal administrativo, comerciantes ¢ vendedores, Quanto as profissées em que é mais elevada a proporgao de tetornados destacam-se os bidlogos, os agrénomos, os especialistas em ciéncias fisico-quimicas, os professores do ensino primério, secundério e superior e os empregados da banca e seguros. Por contraste, os trabalhos agricolas, artesanais e as restantes profissdes menos qualificadas sio aquelas em que a presenca de retornados menos se faz sentir. Relatério de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1956 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado u 3.3 As Ajudas Institucionais Procurando responder as presses que comegavam a surgir da parte dos intelectuais, dos préprios retomados que entretanto se comegavam a manifestar e de alguns partidos politicos que se mostravam solidarios com eles, nomeadamente o Partido Socialista, o Governo procedeu & criagio de algumas instituigdes que, juntamente com a Cruz Vermelha Portuguesa ¢ com 0 Ministério da Coordenagao Interterritoral, levariam a cabo a dificil tarefa de acolhimento reintegragao dos retornados do ultramar. Neste sentido, destacamos: . O Quadro Geral de Adidos - destinado a defender os interesses dos servidores do Estado anteriormente desenvolvendo a sua actividade em territério ultramarino. Sendo que a solugiio mais fécil e comum era a da aposentagao coincidente com o regresso a Metrépole. - O Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais (IARN) - cujas fungdes iniciais eram: fretar avides para o transporte gratuito de retornados, familiares ¢ bagagens; recepgao e acolhimento; viagens gratuitas para as localidades de residéncia; alojamento nos campos de férias da Caparica, na Quinta da Graga ou em hotéis e pensdes para os que tivessem de permanecer algum tempo em Lisboa; concessio de subsidios de viagem, residéncia, instalagdo, alimentagéo ¢ vestuario; apoio médico ¢ hospitalar; ¢ auxilio aos que pretendessem emigrar para outros paises. Estas fungdes foram mais tarde alargadas a subsidios de desemprego, casamento, nascimento, aleitagdo, doenga, maternidade, morte, funeral, termalismo, prétese, pensdes de sobrevivéncia, velhice ¢ invalidez. Passaram também a ser concedidos subsidios e empréstimos para habitagdo, mobiliério, reintegragdo profissional, acgdo social escolar, transporte ¢ desembarago de viaturas e bagagens. . A Secretaria de Estado do Retornados - integrada no Ministério dos Assuntos Sociais ¢ da qual passou a depender o ARN; . A Comissio para o Alojamento de Refugiados (CAR) - que tinha como finalidade devolver as unidades hoteleiras 4 sua fungo especifica, na expectativa de que 0 ano de 1976 se revelasse um melhor ano turistico; Relatrio de Tavestigagio cin Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformade 12 « 0 Comissariado para os Desalojados - desenvolvendo uma politica, jé nao de assisténcia mas, fundamentalmente de integragdo dos retomados na sociedade Portuguesa através de uma planificagdio a médio prazo, susceptivel de corrigir distorgdes injustas na distribuicdo dos meios disponiveis reduzir, tanto quanto possivel, a ocorréncia de subsidios puros, sem cardcter reprodutivo. Para além deste apoio institucional foram levadas a cabo outro tipo de iniciativas, das quais passamos a destacar: . A sindicalizagio dos retornados, realizagio de cursos de aperfeigoamento reconversdo profissional, direito a inscrigo no Servigo Nacional de Emprego ¢ integragao nos esquemas da reforma agriria. Os desalojados com idades entre os 18 € 0s 60 anos de idade com problemas de alojamento ¢ integragio econémica € social deveriam inscrever-se nos centros de emprego para efeitos de colocagdo ¢ eventual emigragao; . A conversio gratuita de cartas de condugao e de licengas de instrutor emitidas nas coldnias anteriormente a independéncia, em documento emitido em Portugal, bem como a isengo do imposto para registo dos automéveis em territério nacional; « O financiamento de um sistema de crédito selectivo a taxa de 3% ao ano; + No campo da educagdo, permitiu-se aos professores efectivos que concorressem para os lugares vagos em todo o pais em igualdade de circunstincias com os seus colegas prestando servigo em Portugal. Possibilitou-se ainda a continuagio dos estudos aos retomados que nao possuissem certificados escolares, ficando ainda isentos da respectiva matricula ou candidatos a bolsa; «A constituigiio de uma Comissio Coordenadora de Ajuda Catolica por parte do Conselho Permanente do Episcopado Portugués, a qual veio a receber donativos de diversos paises em dinheiro, roupas, géneros alimenticios, medicamentos, etc. Segundo dados obtidos por Rui Pena Pires, dos varios esquemas de apoio as populagdes retornadas destacam-se, pelo volume de verbas envolvido ¢ pelos efeitos visados, 0 Programa de Crédito do CIFRE e 0 Programa de Crédito Habitagdo Prépria, ambos de iniciativa governamental, bem como o Programa de Criagdo de Postos de Trabalho da Caritas Relatério de Investigagio em Sociologia éa Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (2n)Conformado 3 De facto, perante o fenémeno da descolonizagao, cabia em primeiro lugar aos orgiios de poder instituidos a dificil tarefa de proporcionar os meios necessérios & integragao social e econémica dos cerca de meio milhao de retornados das ex- colénias, a fim de minimizar atritos sociais. Naturalmente, um dos vectores fundamentais para esta integragiio passava pela criagiio de postos de trabalho, o que atendendo as condigdes politico-administrativas da altura no poderia ser conseguido através do funcionamento normal do mercado de trabalho. Neste sentido, o Governo procurou aproveitar as capacidades de trabalho e de iniciativa da populacao retornada estabelecendo as condigdes necessdrias 4 criagio de pequenas e médias empresas, 0 que contribuiria simultaneamente para © desenvolvimento do tecido produtivo empresarial. Com estes objectivos foi criada em Julho de 1976 a Comissio Interministerial de Financiamento a Retorados (CIFRE), cujos fundos rondavam os 20 milhdes de contos, o que dava um valor médio de cerca de 200 contos para a criagéo de cada posto de trabalho. De acordo com o principio da selectividade, as actividades consideradas prioritarias eram: agricultura, pecuaria, apicultura e pescicultura: actividades agro-industriais, indistrias alimentares; aproveitamento de recursos florestais; industrias metalo-mecdnicas; aproveitamento de desperdicios ¢ actividades turisticas, sendo privilegiadas as iniciativas que se constituissem sob a forma de propriedade social, designadamente cooperativas, Paralelamente ao programa CIFRE, 0 Governo decidiu implantar um conjunto de medidas tendentes a minimizar o problema da habitagdo dos desalojados tendo em conta, nao sé as dificuldades econémicas da grande maioria das familias, mas também a situacio do préprio sector da habitagdio. Depois de varias tentativas menos bem sucedidas, 0 Governo optou pelo langamento de um programa para a construgao ou aquisigao de casa propria que beneficiava os mutuarios através do tegime de crédito bonificado, da fixagéo de taxas de juros varidveis mas inferiores a 5% e com periodos de amortizag&o que iam dos 8 aos 10 anos. Este programa era destinado a familias com rendimentos per-capita inferiores a 120 contos, tendo dele beneficiado cerca de 906 empréstimos no valor total de 827 752 contos A mobilizagiio de esforgos para promover a integragao dos retornados das ex- -colonias na sociedade portuguesa envolveu também organizagées de cardcter humanitario, das quais se destaca a Caritas, que com auxilio externo Jangou também em 1976 um programa destinado a criagao de postos de trabalho. De caracteristicas marcadamente diferentes dos outros esquemas de auxilio, este programa dirigiu-se fundamentalmente a pequenos empreendimentos de ambito local, valorizando 2 componente social do projecto mais do que os aspectos Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 4 técnico-econémicos e procedeu ao acompanhamento constante do desenvolvimento das iniciativas, procurando assim assegurar a efectiva insergaio das familias desalojadas. Paralelamente, esta organizagao atribuia um subsidio suplementar de ajuda basica destinado & compra de mobilidrio essencial ou reparago de casas para habitagao. 3.4 O Movimento Associative Por seu turno, os portugueses refugiados em Portugal manifestavam-se ja desde 1975 em grupos institucionalizados, como sejam: a Comissio de Deslocados do Ultramar, a Comissdo de Refugiados de Angola, 0 Movimento Nacional de Fraternidade Ultramarina, a Associagao dos Portugueses Refugiados do Ultramar e a comissio Nacional dos Desalojados Ultramarinos. Estes grupos demunciavam as medidas que estariam a ser tomadas no sentido de desincentivar © retorno a Portugal e procurar o regresso aos territérios ultramarinos. ‘Nomeadamente, denunciavam o problema do Quadro Geral de Adidos que colocava, por periodo ‘indeterminado, os funcionérios da administragdo ultramarina com metade do vencimento, langando na divida, incerteza € inseguranga milhares de funcionarios e seus familiares. Outra reivindicagao feita dizia respeito as bagagens que tinham ficado para ser enviadas via maritima, bem como a transferéncia de fundos depositados em bancos angolanos e a impossibilidade de trocar o dinheiro angolano. Para além destes grupos, foi criado o Centro Social Independente (SCI) que, conglomerando diversas pequenas associagdes, anunciou que se iria constituir em partido politico chamando a si a defesa, nfo s6 dos retornados e refugiados como também dos emigrantes que entretanto viessem para Portugal. O SCI nao participa nas eleigdes legislativas de Abril de 1976, mas designa Pompilio da Cruz como candidato as eleigdes para a Presidéncia da Repiiblica em Junho seguinte. 3.5. As Consequéncias Socio-Culturais do Retorno Uma das principais razdes que nos leva a considerar 0 retorno como de extrema importincia € a consequente incluso na sociedade portuguesa de um grande nimero de individuos com trajectérias muito distintas das que caracterizavam a grande maioria dos portugueses e que naturalmente veio Relatorio de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retomados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado Is introduzir nela novos saberes, estilos de vida e valores. De facto, as sociedades coloniais apresentavam tragos particulares que possibilitaram: a emergéncia de percursos de mobilidade ascendente; a atenuagdo de alguns constrangimentos morais de origem tradicional, associados ao controlo social da vida quotidiana; ¢ © contacto directo com civilizagdes diferentes da europeia e da ocidental. Ao nivel das consequéncias do retorno para a sociedade portuguesa, estas particularidades contribuiram para: uma recomposigéio das hierarquias sociais; uma maior liberalizagao dos costumes; a adopgiio de novas orientagdes estéticas ¢ novos usos da linguagem; bem como para a incidéncia de novos valores ¢ comportamentos. Relativamente ao impacto do retorno no plano cultural sio de salientar as Novas atitudes face ao casamento, a familia e a religiao. No caso do casamento, verifica-se uma maior incidéncia do casamento na populago retornada, contudo este acontece geralmente mais tarde, fruto de uma formagdo escolar mais prolongada, e tem um caracter menos durdvel. No que diz respeito a familia é de salientar que as atitudes e tendéncias relativamente a sua estrutura e dimensdo sofreram inmeras influéncias contraditérias, ditadas pela guerra, crescimento econémico, percursos de mobilidade ascendente e finalmente processos de desenraizamento e adaptagao. Em todo 0 caso, constata-se que as familias de retornados tendem a ser menos numerosas do que as restantes familias portuguesas. Em relagdo religiio ha que destacar a contribuigdo do retomno para © incremento de alguns grupos religiosos minoritérios em Portugal, sendo que a grande maioria destes grupos religiosos so origindrios de Mogambique. Relatério de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornadas: Identidades de Um Grupo (InjConformado 16 I- Abordagem Teé: 1. Definic¢io do Quadro Teérico Como ja referimos, uma das razBes que nos levaram a analisar 0 fenémeno social do retomno foi o facto de se tratar de um tema geralmente "contornado" por todos aqueles que se propuseram estudar 0 processo de descolonizagao. Se tal foi determinante para o agucar da nossa curiosidade socioldgica, veio mais tarde a revelar-se uma dificuldade adicional ao nosso trabalho de investigagéo. De facto, a falta de teorizago sobre este tema levantou-nos algumas dificuldades na definigao do nosso quadro teérico. ‘A este propésito, é de salientar que o imico trabalho que encontramos especificamente sobre este tema foi um estudo sociogréfico, coordenado por Rui Pena Pires e publicado pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento. Contudo, este trabalho nao se assume como uma teoria substantiva 4 cerca dos retornados, mas antes como um ponto de partida e¢ um desafio a estudos posteriores, desafio este aceite por nds Procurémos entéo construir um quadro teérico flexivel a partir daquilo a que poderemos chamar a livre associagaio de um conjunto de teorias formais, tomando-as ‘como um repertério de categorias ¢ conceitos que nos permitissem langar um olhar sociolégico sobre o fenémeno social do retorno. Naturalmente, a construgao de um quadro teérico deste tipo seria impensavel se feito a priori, foi apenas a medida que © nosso estudo empirico foi avangando que algumas destas categorias e conceitos se foram torando relevantes para o nosso estudo, obrigando-nos a um trabalho de teorizagao constante. O nosso ponto de partida foram entio os trabalhos levados a cabo por Michael Pollak e Pierre Bordieu na area dos estudos biograficos, nos quais os processos de reinvengdo da identidade e gesttio da meméria assumem especial relevancia. Paralelamente, procurémos analisar a importancia das representagdes sociais para ‘a construgao e preservagao de referéncias identitérias sdlidas, recorrendo para isso aos trabalhos de Howard Becker. Tendo verificado que, aquando do retomno, a relagdo entre residentes retornados era a de uma forte hostilidade, recorremos por fim aos trabalhos sobre estigma e rotulagem de Erwing Goffman e Howard Becker, respectivamente. Procurémos com Relatério de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (in)Conformado W7 isto, demonstrar o papel que a categorizagao social poder ter desempenhado na criagio e preservago de uma identidade propria ¢ forte coesao deste grupo social. Chegamos entio ao que designaremos como um tridngulo teérico, onde as referéncias identitérias assumem um papel claramente central Visto ter sido 0 trabalho empirico o que alimentou a nossa imaginagio teérica, considerémos impossivel separar estas duas componentes do nosso trabalho de investigac&o, razio pela qual procurémos, sempre que o julgimos conveniente, fundamentar a nossa abordagem tedrica com excertos das biografias por nés recolhidas, 2. Os Estudos Biograficos Tendo como fonte tedrica os escritos de Michael Pollak, nomeadamente os referentes ao processo de reinvengiio de identidade e meméria em situagdes extremas, procuramos estabelecer uma relagao teérica entre os seus principais conceitos e raciocinios que de uma forma ou de outra estejam associados ao nosso trabalho de investigagao. Sendo assim, situagdes extremas como as vividas pelos retornados incluidos na nossa amostra so reveladoras da identidade como uma imagem de si, por si e pata os outros, Ou seja, os testemunhos devem ser considerados como verdadeiros instrumentos de reconstrugao da identidade e nao somente como relatos factuais, sobretudo quando relatam situagdes que marcam uma ruptura com 0 mundo habitual dos individuos em questo. A este propésito convém aqui referir 0 conceito de Gestao de Identidade, definido por Pollak como sendo "o trabalho permanente de interpretar, ordenar ou recalcar toda a experiéncia vivida de forma a tornd-la coerente com as experiéncias passadas, assim como com as concepgdes de si e do mundo que eles moldaram” (Pollak, 1986:52). E este trabalho permanente elaborado pela ordem mental que sustenta o habitus gragas ao qual a pessoa aparece como sendo dotada de coeréncia. Para além desta Gesido de Identidade o individuo que relata a sua autobiografia é igualmente monido de uma Gestdo de Memdria, Ou seja, os factos do passado que nao so referidos pelo entrevistado, sio na maioria das vezes fruto da Gesido de Meméria e nao um produto do esquecimento, Muitas das vezes 0 siléncio ¢ utilizado como um modo de gestio da identidade do individuo. RelatOrio de Tnvestigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1998 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 18 E a propésito desta mesma problematica que Bourdieu nos fala de J/usdo Biografica. Assim, também para Bourdieu os relatos autobiograficos inspiram-se na preocupagao de dar um sentido continuo e coerente sua vida de modo a que seja possivel o estabelecimento de relagées inteligiveis entre si. Para este autor, a apresentago piiblica de uma representagdo privada da propria vida, ou seja, a criago de um modelo oficial da sua apresentagiio, implica a existéncia de um conjunto de limitagdes e censuras especificas uma vez que, "o real é descontinuo, formado de elementos justapostos sem razio, dos quais cada um é tnico”. Na verdade, no decorrer do nosso trabalho de campo enquanto recolhiamos as autobiografias dos retornados, estas foram-nos apresentadas de um modo mais ou menos coerente € cronolégico. Mesmo que tivessemos voltado ao mesmo tema em sessdes diferentes, a sua reprodugo foi sempre igual. Retomando o trabalho de Michael Pollak e com ele a ideia de que os entrevistados se consideram como os guardas da verdade, os representantes de um grupo € os porta-vozes de uma causa, referiremos aqui o facto de termos encontrado este mesmo sentimento em alguns dos nossos entrevistados. Alias, este sentimento é mais forte quando a idade avangada faz temer 0 esquecimento ou a deturpago da situagdo vivida: "Eu queria sublinhar que se formos 20 fundo da questo, ¢ € possivel que munca se i ‘chegue porque isto daqui a meia diizia de anos jé ninguém se lembra de nada e aqueles como eu, com a minha idade, j4 nfo so vivos vocés jovens nuncam ficam a saber a verdadeira historia de Angola". "NOs os que 4 estavamos mo fomos os ‘responsiveis pela presente situagdo, Por conseguinte, nunca, nunca se diga isso, porque isso € mentira! Nés ndo provocdmos absolutamente nada. Fomos apenas vitimas. Isso € bom que fique bem claro, se no teu trabalho puderes por isso como final de histéria eu agradecia, Nés no fomos, nem de longe nem de perto, responséveis pela terrivel guerra d'Africa!™ Curiosamente, este ultimo entrevistado esta incluido na situagao paradoxal em que o seu testemunho tende a inserir-se numa causa que ele nunca conheceu como sua! Relatério de Investigagdo em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retomados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado rt) "Porque se se dirigissem a mim como retornada, cu dizia-lhe imediatamente: «Meu caro senhor ou minha cara senhora, esti plenamente enganada, porque cu retornada nfo sou coisissima nenhuma, O mais que posso ser é uma exilada ou uma refugiada. Agora, retornada ndo sou!" No que diz respeito ao trabalho de construgdo de uma meméria colectiva dos retorados, ou adoptando o conceito de Maurice Halbwachs de uma Comunidade Afectiva de retornados, esta é construida pela meméria, muitas vezes pouco detalhada, dos retornados. Assim, o seu «ew» de retornado confunde-se com o «nds» de retornados das ex-colnias portuguesas. E esta Comunidade Afectiva, reforgada pela existéncia de Associacées formais ou informais de retornados, que é o lugar da construgdo de uma meméria colectiva e da gestio de memérias individuais aptas a atenuar os eventuais conflitos ou ressentimentos vividos pelas vitimas. Salientaremos aqui o facto de que o aparecimento da memédria como objecto especifico de investigacao nas ciéncias sociais deveu-se igualmente ao socidlogo Maurice Halbwachs, autor do conceito de Comunidade Ajfectiva mencionado anteriormente, Em seu entender, os individuos adquirem memérias diferenciadas em funcéio dos agregados a que pertencem. Sendo assim, a meméria é social porque € adquirida em determinado contexto, desenvolve-se em interacgao e através das praticas, experiéncias e cédigos simbélicos partilhados, é estruturada pela linguagem ¢ faz parte do processo de reprodugao social. Sera igualmente importante referir que a sobrevivéncia dos retomados no momento do regresso, resulta da capacidade dé recriagiio e adaptag&o permanente a novas ligagdes sociais. A este propésito mencionaremos aqui um dos nossos entrevistados: “Quando chegimos fomos muito hostilizados. O retornado foi muito hostilizado. Tanto que muitos no conseguiram permanecer aqui e foram para o Brasil, para a Venezuela, ‘para muitos lados, ¢ ndo quiseram ficar cd." Esta afirmagdo vem confirmar o processo de répida adaptagao a uma nova realidade social que os retornados tiveram que enfrentar e que nem todos conseguiram acompanhar da melhor forma. Segundo Des Prés os sobreviventes de situagdes extremas possuem uma qualidade especifica: Ou seja, pelo facto de guardarem uma distancia e um cepticismo em relagdio ao jugo da moral corrente, eles so os percursores de uma nova moral orientada para a sobrevivéncia da espécie ‘Relatéri de Investigagdo em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identdades de Um Grupo (11)Conformado 20 muitas vezes rompem com os valores da civilizago corrente. Este é 0 caso de um nosso entrevistado para o qual a reconstrugdo da sua identidade exije a recusa de qualquer influencia portuguesa: "Eu digo-te uma coisa com toda a verdade. Eu tenho para mim como ponto de honra, no admitir nenkum habito, mas menhum hdbito que soja de Portugal continental!(..) Por conseguinte, nfo uso a linguagem que usam ci! Ndo quero usar a linguagem que usam ed!” Outro aspecto que identificdmos nas autobiografias dos nossos entrevistados e que vai de encontro ao pensamento de Michael Pollak, € 0 facto de existir uma tensfo e um desdobramento permanente da identidade dos retornados, Sao muitas as vezes que 0 termo retornado € portugués sio confundidos. A maioria dos nossos entrevistados ora se integram ora se excluem de ambos os grupos ¢ das suas caracteristicas. Se no, vejamos as palavras de mais um dos nossos entrevistados: "Mas de qualquer forma houve um espirito generalizado de rejeigdo que é natural entre 1n6s portugueses. Nés somos muito xenéfobos, somos!" E este trabalho de comparagiio ¢ de tomada em consideragao de multiplas alternativas que o individuo, através de um trabalho de identificago, faz coincidir 0 seu proprio sentido de si ¢ da sua identidade, com o que € considerado como normal Finalmente, salientaremos 0 facto de que a0 sobrepormos todos os relatos autobiogréficos, identificémos um niicleo duro caracteristico dos retomados que muitas vezes surgiu de uma forma idéntica palavra por palavra. 3. As Representagées Sociais No ponto anterior abordamos os relatos biograficos dos nossos entrevistados tendo como ponto de partida 0 conceito de gestio de memoria e de identidade, tal como ele nos aparece no trabalho de Michael Pollak. Neste sentido, assumimos 0 processo de reconstrugo da identidade como a construgao de uma imagem que o retornado faz de si por sie para os outros. Parece-nos entdo inevitével reconhecer que as representacdes sociais assumem um papel preponderante ao longo deste processo, enquanto instrumentos de orientagao da percepgao e de elaboragao de respostas. Estes instrumentos derivam de Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Ua Grupo (n)Conformado a determinada estrutura social e contribuem para a comunicagio entre os membros de um grupo ou comunidade, possuindo por isso um caracter eminentemente social (Cf. Moscovici in Vala, 1986). Neste sentido, as representagées sociais contribuem para a formagao de uma identidade social ¢ com isso para a diferenciag&o inter- grupal, organizacio significante do real, orientagdo ¢ justificago de determinados comportamentos. Embora esta abordagem constitua um importante marco no campo da Psicologia Social, parce-nos ser o tarbalho de Howard H. Becker (Becker,1986) aquele que melhor nos permite compreender e interpretar os relatos que os nossos entrevistados fazem das suas préprias vivéncias, a luz da teoria das representagGes socias. Para este autor, as representagdes sociais da realidade no sio mais do que uma imagem parcial dessa mesma realidade simplesmente porque cumprem determinadas fungdes em determinados contextos. Ora, se analisarmos 0 contexto em que os relatos por nés obtidos foram recolhidos, rapidamente chegamos a um dos problemas que afecta as ciéncias sociais em geral e a sociologia em particular, é que os entrevistados tendem a produzir um discurso que vai de encontro ao que pensam que o seu interlocutor quer saber. Por outro lado, procuram produzir um discurso plausivel, légico e coerente com o contexto em que se encontram e com o papel que 0 seu interlocutor representa. Esta questdo, aparentemente redutora do rigor cientifico de uma investigagiio, deixa de o ser se, como sugere Max Weber, assumirmos a sociologia como interpretativa e reconhecermos que toda a realidade social € construida, que a atribuigao de sentido constitui uma condigao da acgo social e que o nosso objecto nao é a realidade em si, mas as proprias representagdes que os sujeitos fazem dela em determinados contextos. Esta perspectiva torna-se ainda mais frutifera se atendemos a forma como as representagées sociais so produzidas, E precisamente a este nivel que H. Becker tem uma importante contribuigdo a fazer, na medida em que nos permite compreender os processos que levam & construgdo das Tepresentagdes sociais ¢ as convengdes que as adequam a determinadas fungoes. Retomemos 0 caso dos retornados ¢ com ele o conceito de comunidade interpretativa de que nos fala S. Fish. De facto, parece-nos evidente que os retornados constituem nao s6 uma comunidad afectiva (ver capitulo anterior), mas também uma comunidade interpretativa no sentido em que, enquanto pertenga colectiva, viabiliza a partilha de uma série de pressupostos. Na verdade, se ao sobrepormos todos os relatos autobiogréficos pudemos encontrar um nucleo duro de Tepresentagées, tal deve-se em grande medida ao facto de a representagiio que cada Relatorio de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retormados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 2 um dos entrevistados faz das suas vivéncias nao ser individual, mas sim o resultado da partilha de um conjunto de recursos interpretativos. E esta partilha que torna cada discurso individual plausivel para quem pertence a essa mesma comunidade, reforgando desta forma a propria pertenga grupal: "Bu também ndo falava dessas coisas, € 0 que o meu marido diz, s6 vale a pena falar de Fetornados com pessoas que nos compreendem , que tenham tido a mesma vivéncia © os ‘mesmos problemas. Esses compreendem! Agora falar disso com outras pessoas que no tém essas vivéncias é como estar a «malhar em ferro frio», néo vale a pena! E eu nfo falaval" Nas palayras desta nossa entrevistada é bem evidente a forma como a comunidade interpretativa reforga a coestio de grupo através de representagdes colectivas, mas vai mais longe na medida em que demonstra simultaneamente uma estratégia de fechamento, ou mesmo retraimento em relagio ao exterior. Esta questo assume particular importéncia, na medida em que poderia ter funcionado como um obstaculo & nossa investigagaio. Nao sé corremos o risco de os nossos entrevistados se recusarem a falar como também o de se recusarem falar de determinados aspectos ou pelo menos tentarem fugir a eles, produzindo um discurso mais ou menos oficial ¢ eventualmente diferente do produzido no interior do grupo. Esta questo introduz aquele que nos parece ser um dos mais importantes Processos que segundo H. Becker estiio na origem das representagdes sociais e que ¢ a selecgdo de informagio. De facto, como ja foi referido, qualquer representagao da tealidade social € necessariamente parcial, cobre determinados aspectos ao mesmo tempo que omite outros de acordo com o fim para que foram produzidas, Nas palavras de H. Becker ".,. todas as formas de representagao social da realidade sao boas para alguma coisa" (Becker, 1986:125), mas a sua utilidade ¢ sempre limitada. ‘A questo que se coloca é entio a de saber quais os objectivos que norteam os produtores das representagdes neste processo de selecgao de informagao. No nosso caso, encontramos alguns objectives que nos parecem mais ou menos transversais a todos os nossos entrevistados: o de deixar o seu testemunho, assumindo-se como guardas da verdade, representantes de um grupo ou porta-vozes de uma causa, bem como o de ir de encontro aos assuntos que pensavam que mais nos interessavam. A este propésito parece-nos significativo 0 facto do tipo de entrevista que fizemos ser pouco estruturada, visto tratar-se de historias de vida, o que alias causou alguma preocupagdo a um dos nossos entrevistados que constantemente dizia: Relatério de Investigago em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 23 “E assim! Mas ndo sei o que é que queres saber? (..) Vé Has perguntas que tens para me fever.) Se calhar estou a fugir ao que queres saber (..) Nao si se respondi ao que ta queras!* Nao obstante, parece-nos possivel encontrar objectivos mais individuais se atendermos as caracteristicas narrativas de cada relato e ao tipo de discurso Produzido em cada caso. Assim, encontramos num dos nossos entrevistados um discurso que podemos considerar de vitimizagio, o qual estrutura a maioria das Tepresentagdes que faz do retorno e que o leva a centrar o seu discurso quase exclusivamente no ponto de vista econémico: ~ *Sabe quando é que nos deram quando o problema cambial e dos bances estava ainda na Posse dos brancos? 5 contos a cada um (quando eu na altura ganhava 15) 5 contos para pagar 0 ‘ransporie, chegar a Lisboa, pagar as despesas de pensio e pagar 2 ou 3 caixoles de umas ‘oisas que a gente trouxe (uma geleira, uma cama, 2 cadeiras ¢ uma estante). Quando cheguei ‘aqui aos Barreiros tinha, ereio que 2 ou 3 contos no bolso. Nao queira saber o que foi a minha Vida durante 5 anost Fome, nfo havia dinheiro para comer, ainda fti a Lisboa trocar uma ‘mocdas em prata que'trouxe de 14, para ver se a gente ao menos no morria de fome! Nao tinhamos onde pernoitar, nfo tinha casa! Tinha aquela casa ali em construgo, que nem nunca live coragem de a acabar porque parece que estou a ver a imagem dela quando me fui embora!" Nao menos curioso é 0 discurso quase humoristico que também encontrémos n0 nosso trabalho de campo e que nos da uma Tepresentagéo do retorno como uma questo ultrapassada: “Bem, chegamos a Lisboa e foi assim uma espécie de edisea! (..) Bem, entBo onde & que é 0 Cacém, onde ¢ que nio & 0 Cacém, Nés na nossa santa ignordacia! Ele toca de explicar 6 que a {Bente nha que fazer © ento acabémos por ir de comboto porque de taxi ficava carissimo. Bem, ‘ma Rossa santa ignorancia nés julglvamos assim: Chegamos ao Cacém e encontrarmos logo ali um bairrinho (risos) com os retornados todos ct fora, talvez a gente até conhega alguns. Quand ads chegamos ao Cacém, entretanto eu recordo-me que trazia uma blusa branca que jé esiava muito ‘sults pessoas no comboio olhavam para mim com um ar assim esquisito porque eu estava de facto com um ar nauseabundo! Pronto, entiio chego a0 Cacém, olho a minha volta e so vejo Prédos, prédios... Era uma cidade auténtica diante dos meus olhos e eu pensei: «Bem procurar ‘aqui o meu cunhado é como procurar uma agulha num palheiro!» Rigorosamente!" Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1956 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 24 Outro dos processos a que H. Becker se refere como fundamental para a construgio das representagdes sociais ¢ o processo de tradugaio. De facto, os nossos entrevistados utilizaram diversas vezes termos angolanos ou mogambicanos, cujo significado tiveram que explicar por ndo cxistirem termos equivalentes em portugués. Retomando a quest&o da comunidade interpretativa, os retornados entre si utilizam uma linguagem carregada de representagdes de determinada realidade que nao tem equivalente em Portugal e portanto tém alguma dificuldade em explicar o seu significado a pessoas que nao tenham estado em Africa. Por sua vez, essas pessoas tem dificuldade em descodificar essa representagao. "A restinga era uma zona muito bonita, era uma ponta de aria. O que é uma restnga? uma entrada de de area pelo mar, que forma uma restinga, Aquilo era comprido, tinka uns 10 Kim de comprimento, onde ficavam praias bonitas. Portanto, 0 Labito formava ali uma baia ‘onde 0 mar entrava, era 0 porto ¢ depois era tudo praias muito bonitas, com caswarinas, uma espécie de pinheiros que ndo ha cd, do género do pinheiro manso, mas nio tdo farfalhudo, ‘mais levezinho!” Por ultimo, H, Becker refere proceso de organizagao através do qual os Produtores das representagSes sociais procuram imprimir uma ordem légica, continua ¢ coerente aos seus relatos, procurando estabelecer relagdes inteligiveis entre os varios factos biograficos. Vejamos como um dos nossos entrevistados comegou a primeira entrevista, sem que lhe tenha sido colocada qualquer questiio: “Em 1940 entrei para os Servigos Hidréulicos como contador. Depois, passado um ano ou coisa assim, promoveram-me a apontador geral, uma vez que se intensificaram as obras do Liz, na desobstrugdo do Rio Lir desde a for até Leiria Com a vinda de méquinas alemas passei para chefe de armazém, onde estive a trabalhar até 1945, data em que me despedi, voluntariamente, uma vez que tendo em Angola um irmio meu que era ld militar me mandou a carta de chamada, documento que era necessério nessa altura para se ir para Angola. Cheguei li em fins de Agosto de 1945." Como vimos no capitulo anterior, a apresentagdo mais ou menos cronolégica dos factos constitui uma das formas mais usadas pelos nossos entrevistados de proceder @ esta organizagao, mas talvez mais importante do que isto é a tendéncia generalizada para omitir determinados factos que de alguma forma entrem em contradigao com a imagem que tentam produzir das suas vivéncias e possam desta Relatério de Investigagdo em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformad® 25 forma por em causa a sua credibilidade ou consisténcia. Neste sentido, podemos afirmar que nas suas narrativas biogréficas os produtores de representagdes sociais efectuam uma espécie de censura dos varios acontecimentos biograficos, de modo a apresentar uma determinada imagem de si. 4, Estigma e Rotulagem "Quando nés chegamos e tivemos necessidade de arranjar 0 1° emprego aqui, era certo e sabido que A frente da resposta que nos era dada, ou ‘comentando 0 nosso pedido de emprego diziam: «é retornadol», Ou mesmo ara localizar uma pessoa. E portant nés nfo gostivamos que nos cchamassem retornados." Afirmagdes como esta, levaram-nos a pensar que a problematica dos retornados, nomeadamente a da sua integragao na sociedade portuguesa poderia ser pensada a luz dos varios trabalhos que vém sendo publicados sobre 0 estigma, dos quais destacamos o de Erving Goffman: Estigma - Notas sobre a Manipulacdo da Identidade Deteriorada. Partindo da definigao genérica de estigma como a da "situagdo de um individuo que esta inabilitado para a aceitago social plena" (Goffman, 1988:7), acreditamos poder encontrar um fio condutor para o conjunto de questdes que desde o inicio estruturou o nosso trabalho, a saber: o processo de reinvengio da identidade e meméria em situagdes extremas e a sua recriagfo intergeracional, bem como o contributo das trajectérias para a elaboragdo de dispositivos estruturadores das praticas sociais. Comecemos pelo proprio conceito de estigma, tal como ele nos aparece na obra de Goffman. De facto, é ja um lugar comum aceitar que cada sociedade procede a uma categorizagiio na qual espera poder "encaixar" todos os seus membros. E esta categorizacdo social que permite que um individuo estranho seja imediatamente incorporado em determinada categoria social, tornando-se a sua identidade social perceptivel e portanto o seu comportamento relativamente previsivel. Neste sentido, criam-se uma série de expectativas normativas associadas ao que Goftiman designa como identidade social virmal. O estigma aparece quando se verifica uma discrepancia especifica entre essa identidade social virtual e a identidade social real, isto é, entre a categoria do individuo ¢ os atributos que ele prova possuir. Relaidrio de Tnvestigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1956 Retornadas: Identidades de Um Grupo (In}Conformado 26 Segundo Goffman, esta incongruéncia com o estereétipo que criamos relativamente a uma categoria de individuos gera geralmente um descrédito muito grande, colocando 0 individuo estigmatizado numa situagao de desvantagem. Contudo, ¢ como veremos adiante, esta carga negativa nem sempre esta presente, por vezes uma caracteristica distintiva pode ser gerida de forma a tornar-se um trunfo, mais do que um handicapt, mas neste caso estaremos na presenga de uma caso de rotulagem e ja nio de estigmatizagao. Nao obstante, se nos reportarmos a época do retorno, a condig&o de retornado parece-nos constituir nfo s6 um estigma em si mesmo, mas uma condigéo que comporta uma multiplicidade de estigmas. De facto, aquando da sua chegada, 0 retomado era ndo s6 um individuo cujo habitus reflectia de alguma forma a cultura africana e se encontrava portanto desarticulado com a cultura portuguesa (situagio que se assemelha 4 do emigrante), mas era também, na maioria dos casos, um individuo que se encontrava desempregado © que passou por um processo de despromocio social. Ora, cada uma destas situagdes, pelas contradigdes que regista com a categorizagao social vigente e pelo descrédito que geram, parece constituir um estigma em si, com a agravante de se encontrarem concentradas num unico individuo - 0 retomnado. . Dada a grande abrangéncia de que se reveste 0 conceito de estigma julgtmos conveniente recorrer 4 tipologia que Goffman utiliza para distinguir os varios tipos de estigma existentes, a fim de melhor enquadrar a situagao dos retornados do ultramar. Assim, encontramos em primeiro lugar, as abominagdes do corpo, onde se inserem naturalmente toda a espécie de deformagées fisicas; em segundo lugar, encontramos os defeitos de cardcter associados as culpas de cardcter individual; e por fim os estigmas tribais de raga, nagiio’e religiio, que podem ser transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos os membros de uma familia, Na sua anélise, Goffman dé especial atengio a primeira categoria, constituida sobretudo por aqueles que denomina como os desacreditados, isto é, aqueles cuja caracteristica distintiva € imediatamente perceptivel. Quanto a nés € ao nosso objecto de estudo parece-nos estarmos na presenca da terceira categoria de estigmatizados, curiosamente a menos desenvolvida por Goffman. O desafio que se nos coloca sera portanto o de saber até que ponto a andlise que este autor faz de deficientes fisicos, se ajusta aos retornados do ultramar, cujo estigma apresenta um caracter essencialmente cultural e que por oposigao aos desacreditados se apresentam como desacreditaveis, isto é, como individuos cuja caracteristica distintiva pode no ser imediatamente perceptivel. Esta distingdio entre Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 27 desacreditados e desacreditaveis, que aliés nos parece pouco clara na obra de Goffaman, parece-nos valida se considerarmos que, pelo facto da caracteristica distintiva nao ser imediatamente perceptivel no caso dos retornados, estes individualmente considerados se enquadram na categoria de desacreditaveis, isto é, susceptiveis de ser identificados como retornados enquanto grupo, sendo que o grupo se encontra na situag4o de desacreditado. A este propésito, vejamos as palavras de uma das nossas entrevistadas: " Houve um periodo em que eu no falava com as pessoas, cu estava num grupo em que por qualquer razdo eu entrei ¢ conversava normalmente com as pessoas sem sequer citar as ‘minhas origens, de onde vim ou de onde ndo vim. E fazia-o deliberadamente porque sabia que ao dizer aquilo eu estava automaticamente a por um rétulo em mim que me desfavorecia,” Nestas palavras é bem patente o medo de se tornar desacreditada e a tensfio que a situagdo de desacreditavel pode imprimir as relagdes que os individuos estigmatizados mantém com as pessoas ditas «normais». Estas relagdes parecem ser marcadas por uma atitude de reserva e por uma estratégia de encobrimento que neste caso resulta precisamente do receio de passar da situagdo de desacreditavel A de desacreditado. "A questo que se coloca nfo é a da manipulagdo da tensio gerada durante os contactos sociais e, sim, da manipulagdo de informagio sobre o seu defeito. Exibi-lo ou oculta-lo; conta-lo ou nao conta-lo, revelé-lo ou escondé-lo; mentir ou néo mentir; e em cada caso, para quem, como, quando e onde..” (Goffman, 1988:51). Daqui decorrem uma série de respostas defensivas que, dependendo do grau de intimidade que 0 individuo estigmatizado-mantém com o individuo com quem a Telagiio se estabelece, podem ser entendidas, como 0 proprio Goffman refere, como uma expressio directa do seu defeito, podendo mesmo vir a criar um novo tipo de estigma, o de cardcter. De tal maneira que defeito ¢ resposta passam a ser considerados, em conjunto como uma justificativa da maneira como, neste caso os residentes, tratam os retornados. Um exemplo disso ¢ 0 facto de ouvirmos por vezes criticas aos retomados pelo facto de estes adoptarem uma postura de desconfianga. Esta € uma caracteristica que nao se deve a cultura africana ou a qualquer sentimento de hostilidade em relagdo aos residentes, constitui simplesmente uma resposta defensiva a sua condigdo de estigmatizado. A agressividade pode também constituir uma outra forma de responder situagao de estigma, tio valida como o retraimento ou a desconfianga, Em todas estas Relat6rio de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 28 situagdes, o que esta em causa ¢ que a interacgHo sera sempre marcada pela inseguranga e pela angastia que resulta: no caso do retornado, do medo de ser descoberto e desacreditado: no caso do residente, do receio de que as suas palavras ou acgées possam ser mal interpretadas, O problema da manipulago da tensio gerada durante os contactos sociais torna-se ent&o evidente. Sera conveniente referir que hoje em dia, este sentimento tem vindo a diminuir ou mesmo a desaparecer visto que o termo retornado deixou de ser insultuoso para passar a ser descritivo, tal como alentejano ou algarvio, Este receio de se tomar desacreditado é tanto mais constante quanto o desacreditivel € portador de alguns simbolos que, por oposigéio aos simbolos de status, Goffman designa por simbolos de estigma. No caso do retornado estes simbolos cram, aquando da sua chegada, geralmente pouco visiveis, dai termos assumido que ele era fundamentalmente um desacreditével e nfo tanto um desacreditado. Contudo, através da linguagem, da pronuncia ou mesmo da maneira de vestir (desadequada ao nosso clima), 0s mais perspicazes podiam a qualquer momento identificd-lo. Naturalmente, hoje encontramos apenas alguns vestigios destes simbolos, na maioria das vezes quando a identidade que sugerem é voluntaria (revelando uma estratégia de separagéio e ndo de assimilagdio) mas hé 20 anos atrés eram bastante mais perceptiveis. Como a pessoa estigmatizada responde a tal situag0? A andlise que temos feito até ao momento, acerca do retornado como um individuo estigmatizado, reporta-se fundamentalmente ao momento da chegada a Portugal e aos primeiros anos que se seguiram. Contudo, 0 ambito do nosso trabalho centra-se sobretudo na sua situagao actual. Importa portanto analisar a forma como ao longo destes 20 anos o retornado lidou com a sua condigao de estigmatizado e a forma como hoje ele encara essa situagao. Também aqui, o trabalho de Goffman nos pode dar algumas pistas. Uma das atitudes mais frequentes da parte dos estigmatizados parece ser a procura de outros individuos que compartilhem 0 seu estigma: "... algumas delas podem instrui-lo quanto aos artificios da relagao e fornecer-Ihe um circulo de lamentago no qual ele possa refugiar-se em busca de apoio-moral ¢ do conforto de sentir-se em sua casa, em seu ambiente,..." (Goffman, 1988:29). Tal explica 0 aparecimento de diversas associagdes de retornados, encontros de convivio e até mesmo, num dos casos por Relatbrio de Investigagdo em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1956 ‘Retornados: Identidades de Um Grupo (1n)Conformado 29 és encontrados, a criago de um jornal "fraternal, de solidariedade e de informagao utilitéria". Mas, mais do que isso, esta necessidade de refiigio entre iguais, explica 0 estabelecimento de relagbes sociais preferenciais com outros retomados, mesmo sem a existéncia de um conhecimento prévio. Se nao vejamos: "NOs evidentemente que quando regressémos arranjémos outras amizades, e aquelas que nos mereceram consideragio e respeito continuamos a manté-las. Mas ndo posso conceber, nem eu, nem ninguém que esteve em Angola, que voltemos as costas uns aos outros. Temos vizinhos aqui, uns que vieram de Mogambique ¢ outros que vieram de Angola, que nio conheciamos 1a, mas agora somos muito amigos, damo-nos muito bem! (..) S6 porque a gente sabe que vieram nas mesmnas condigSes que nés (0 que viveram antes no conta), que temos uma situagio semethante, falamos da mesma coisa e orgulhamo-nos daqueles que conseguiram libertar-se pelo menos da forme." Esta aproximagao, na medida em que fomenta a pertenga grupal, vem alids reforgar a nossa convicgdo de estarmos na presenga clara de uma situago de estigma. De facto, encontramos frequentemente no discurso dos nossos entrevistados termos como: «nds» ou «a nossa gente», o que comprova que independentemente da existéncia de diferenciagdes intemas, os retomados se assumem como uma totalidade; uma categoria especifica da sociedade portuguesa. E a esta subtileza conceptual que Goffman se refere quando afirma que: "Uma categoria pode funcionar no sentido de favorecer entre os seus membros as relagdes ¢ formagao de gTupo mas sem que 0 seu conjunto total de membros constitua um grupo." (Goffman, 1988:33) Na verdade, a coesio do grupo é necessaria para fazer frente a qualquer agressio potencial, mas nao é suficiente para encobrir a grande diversidade de representagdes que os individuos tém da sua ligagdo ao grupo. Apesar desta alianga entre estigmatizados ser bastante evidente, encontramos também nas nossas entrevistas casos de afastamento que julgamos conveniente referir: “Othe, agueles encontros de retornados, en numa I* fase nunca Ié fui! (...) Eu nfo tenho muito feitio para 0 choradinho ¢ estou convencida que aquclas reunides no principio era um bbocadinho o chorar 0 leite derramado! E eu nio estava para ai virada! Estava a apontar para 0 futuro e para construir uma vids nova, e era aquilo que eu tinha que fazer!" Relatério de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUG, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 30 Estas palavras parecem deixar bem evidente 0 quanto o convivio com os companheiros de sofrimento se pode revelar angustiante. Mas Goffman vai mais Jonge afirmando que este pode ser um dos maiores castigos para quem tem um estigma, sobretudo quando 0 individuo se considera perfeitamente integrado, acreditando assim ter ultrapassado o seu estigma. Neste caso, estaremos certamente perante um caso do que Goffinan designa por ambivaléncia de Identidade e que nio € mais do que a tendéncia que o individuo estigmatizado tem para "...estratificar os seus iguais conforme o grau de visibilidade e imposic&o do estigma. Ele pode, entio, adoptar em relagdo aqueles que so mais evidentemente estigmatizados do que ele, as atitudes que os normais tomam em relagio a ele." (Goffman, 1988:117) Aliés, um outro tipo de resposta da pessoa estigmatizada a sua situagao é precisamente tentar corrigir directa ou indirectamente aquela que considera a base objectiva do seu defeito, No caso do retornado, as dificuldades econémicas, associadas a dificuldade de arranjar emprego, surgem como a tal situago que é imediatamente percebida como a base do seu defeito, é pelo menos aquela que mais sentida pelo retorado. Dai que a primeira estratégia por ele adoptada seja a de alcangar uma condigéo econémica mais favoravel ou, se possivel, recuperar o percurso de mobilidade social ascendente interrompido pelo retomo. Com isto, 0 retormado espera conseguir pér fim ao seu estigma, ainda que de uma forma indirecta, Ele nao deixaré de ser um retornado, nem de se sentir como tal, mas pelo menos tera conseguido superar o estigma de desempregado e de despromovido socialmente. " Aguilo que eu encarei como uma ofensa gravissima (nfo me podiam chamar coisa pior), hoje, se me permite a expresso, virou-se 0 feitigo Contra o feiticeiro, porque todos aqueles que ‘ieram de Angola, de uma maneira geral, ndo esto bem na vida, mas também niio passam fore. Provaram aos que ci estavam que é preciso ter muita forga, mas que nbs com muita {orga vencemos, Sinto muito orgulho, todos nos!" Estas palavras, de outro dos nossos entrevistados, vém de facto reforgar a ideia que 0 estigma de retornado se encontra subjectivamente associado as dificuldades econémicas © que uma vez ultrapassadas, a condigao de retornado deixa de ser sentida como um estigma (visto perder o seu sentido depreciativo), podendo mesmo constituir-se como uma fonte de orgulho. Mais uma vez, Goffman explica: "onde tal concerto & possivel, o que frequentemente ocorre ndo € @ aquisigio de um status completamente normal, mas uma transformagao do ego: alguém que tinha um defeito Relatério de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1956 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 31 particular se transforma em alguém que tem provas de té-lo corrigido.” (Goffman, 1988;18) Paralelamente parece verificar-se um processo de socializagdo que Goffman designa como aprendizagem do estigma. Tal no é mais do que a apreensio e incorporagao das normas € valores da sociedade envolvente, o que passa pela aceitagéo do seu préprio estigma de tal forma que ele se torne relativamente irrelevante e portanto deixe de constituir uma fonte de inseguranga e de tenséo nas telagdes sociais que estabelece com os «outros», A mesma entrevistada que reconhecia esconder por vezes as suas origens, afirma adiante: "Hoje ndo tenko qualquer preocupagdo em dizé-lo! Quer dizer, posso estar num grupo € ‘nem sequer referir isso, mas se de repente me lembrei por qualquer razio... E digo isso sem qualquer problema, porque a partir desse momento eu no noto qualquer diferenca no ‘comportamento das pessoas em relagio @ mim, Mas no passado nfo era assim!” Mais do que demonstrar o processo de aprendizagem do estigma de que nos fala Goffman, esta passagem deixa antever uma outra questio que no caso dos retornados nos parece bem mais importante, é que também a sociedade portuguesa parece ter passado por um processo de normalizagio, pelo qual aprendeu a conviver € a aceitar 0s retornados como normais, Na perspectiva de Goffman, o que esta aqui em causa & também aquilo que ele designa com a histéria natural do préprio estigma, isto é a sua origem, difusio e progressiva perda de capacidade de estigmatizagao. E alias por isso que 20 anos depois do retorno parece fazer mais sentido falar de rotulagem do que de estigmatizagao relativamente situagio do retornado. Embora persista, a caracteristica distintiva perdeu o seu peso negativo passando por um proceso que poderemos designar por inversio do estigma e que nao é mais do que transformar o facto de ser retornado num trunfo e até em fonte de orgulho, Do Estigma ao Rétulo Na verdade, ao longo dos iltimos vinte anos, os retornados souberam fazer uma apropriagao das caracteristicas positivas do grupo e hoje sao rotulados de uma forma mais favordvel. Relatério de Investigago em Sociologia éa Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformada 32 De modo a analisarmos convenientemente o processo desta rotulagem e da alterago do seu sentido ao longo do tempo, recorreremos ao trabalho teérico produzido por Howard Becker em "Outsiders". Antes de mais, cabe aqui referir que "o acto de rotulagem é uma construcdo levada a cabo pelos organizadores morais de cada sociedade" (Becker, 1973: 179). Assim sendo, tal acto no deve ser concebido como a imica explicagao para o que é ou nao é alegadamente correcto ou para o que € ou ndo ¢ positivamente rotulado. Adaptando os conceitos de "obedient" e "rule-breaking” ou de "commission" ¢ “noncommission", podemos afirmar que os residentes portugueses so 0 grupo que se define como “obedient” e que actuam de foma "commission" pois nao sairam do seu pais e nao viveram num sistema colonial. Foi este grupo que rotulou a populagdo retornada como sendo um grupo de comportamento "noncommission" e de "rule- -breaking" ou seja, como um grupo desviante. Para Becker, "Os grupos sociais criam © desvio ao fazerem as normas cuja infracgiio constitui o proprio desvio, e ao aplicarem essas normas a determinados individuos ¢ ao rotularem-nos como marginais. Deste ponto de vista, 0 desvio nao ¢ uma qualidade do acto que uma pessoa pratica, mas antes a consequéncia da aplicagio, por parte dos outros, das normas e das sangées ao desviante". (Becker, 1973: 9) Na verdade, ao retornado foram muitas vezes associadas as ideias de racista, altaneiro, responsavel por todos os males que existiam em Portugal. Funcionavam mais ou menos como um bode-expiatério para a mé situagdo socio-econémica a que © regime fascista induziu, esquecendo-se dos seus aspectos positivos como o dinamismo, a franqueza, 0 espirito de iniciativa e 0 conhecimento que esta populagdo trouxe para Portugal. Tais caracteristicas sé posteriormente foram reconhecidas e incluidas no seu "rétulo", “Enquanto que antigamente sc atribuia todos os males aos retornados, muitos desses retornados conseguiram comegar do zero ¢ conseguiram produzir algo de bom. (...) Por isso acho que hoje as pessoas jd tém outra mancira de ver os retornados. Acho que jé somos mais respeitados", No seu trabalho, Becker refere a existéncia de um poder diferencial no momento em que os grupos sociais se definem uns aos outros. O grupo que num determinado momento se encontra na posi¢io de superior, utilizaré 0 seu poder para definir 0 modo como os outros grupos serdo considerados, compreendidos ¢ tratados. Quanto a0 grupo subordinado, apesar de também definir os outros actores sociais, a sua Relatério de Tnvestigagto em Sociologia da Cultura FEUG, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 3 rotulagem no serd aceite como a verdadeira pois os meios e 0 poder com que o fazem nfo so os momentaneamente legitimos. Assim sendo, facilmente compreenderemos que o grupo subordinado dos retornados foi exteriormente definido e rotulado pelos residentes, enquanto que a sua caracterizagao da populacao portuguesa nao foi tida em conta. Esta situagio deve-se ao facto de que na altura do retorno quem detinha 0 "monopélio da verdade" e a "wholestory" aclamada pelos individuos das posigdes de poder e de autoridade eram 0s residentes € nao os retornados. "Quando regressei acho que desejei ser mesmo africana porque nés fomos muito mal recebidos aqui. Todos os males que tinham vindo para este pais tinkam sido por causa dos retornados; Nao haviam empregos por causa dos retornados. As vezes ficava manhis inteiras ‘mum cantinho da sala de espera do hospital a ouvir as coisas mais incriveis sobre nés. (..) Quando chegamos fomos muito hostlizados, 0 retornado foi muito hostilizado, (...) Quando oigo falar em retornados, ai... di-me uma aflicfo porque lembro-me daquele tempo da chegada de Africa. E uma coisa que nos marca. Isso foi uma época que me marcou bastante, ‘mas pelo negativo. Porque me sentia posta a margem, hostilizada na minha prépria terra" Para Becker, a raiz do desvio esta na propria ordem social ¢ no processo desencadeado pelo controlo social. A partir do momento em que os individuos no se integram normativamente nessa ordem, no lhes resta outro caminho que nfo o de evoluir para comportamentos desviantes. As normas ¢ a moral que os grupos sociais utilizam funcionam como produtores de estigma ¢ de uma rotulagem negativa que, em ultima anilise, gera o desvio. Assim sendo, o controlo social funciona mais como elemento de desorganizagio social do’ que como elemento de socializagdo © de coesio social. Segundo Becker, devemos estudar todas as partes que entram no “drama do desvio" pois todas as actividades - desviantes ou nao desviantes - requerem a cooperacio aberta ou implicita de pessoas ou de grupos para que as acgdes ocorram. Assim, 0 desvio é uma acco colectiva na qual participam os individuos que cooperam na produgdo do acto em questo e os individuos que cooperam no drama da moralizagao pelo qual o "wrongdoing" é descoberto ¢ negociado. De facto, seria sociologicamente interessante analisar, para além do grupo dos retornados, 0 grupo dos residentes e a forma como eles definiam e definem o primeiro grupo. Por nao caber nos Ambito do nosso projecto, dadas as limitagdes que Ihe so inerentes, nao faremos aqui esta abordagem, mas deixamos a sugestdo para futuras investigacdes. Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1956 ‘Retornadas: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 34 Como nota, referiremos que ao tratarmos o grupo dos retornados como desviante aquando da sua chegada a Portugal se deve ao facto de eles terem sido definidos como tal e no porque nés os consideremos assim. Na verdade, os actos desviantes e as definigdes de desvio variam ao longo do tempo. Assim, um acto pode ser definido ou rotulado como ndo-desviante num dado momento e pode ser desviante num ontro momento. E a luz deste pressuposto que verificamos que a forma como os retomados foram rotulados ha vinte anos atras & diferente da forma como hoje sio rotulados. Enquanto ha vinte anos atrés os retornados eram estigmatizados, hoje séo muitas das vezes admirados ¢ louvados. "Hoje jd nem ligo © hoje praticamente isso ja nem se houve dizer. As vezes so os préptios retomades que dizem uns aos outros por brincadeira: «Adeus oh retornad6l», mas por brincadeira, porque praticamente essa palavra ja foi esquecida. Nés integramo-nos no sistema e a maioria vingow, vingou ¢ lutou mais do que os outros que estavam habituados a ‘uma vida mais calma, aquela vida que existia em Portugal”. Trajectoria individual e identidade pessoal Parecem nao restar davidas que os retornados constituem uma categoria particular de individuos, dotados portanto de uma identidade social propria. Nao obstante, se é verdade que no podemos compreender as relagdes sociais que o retornado mantém com os outros individuos sem atendermos 4 sua condi¢do de estigmatizado ou totulado, também nao o poderemos fazer sem levar em linha de conta a sua traject6ria individual, isto é, a sua propria biografia. Neste sentido, somos obrigados a reconhecer que, ao lado da sua identidade social, 0 retornado tem também uma identidade pessoal, que resulta de uma série de factos biogréficos e que The confere uma certa unicidade, a qual ndo pode ser totalmente desligada da sua identidade social, na medida em que a estrutura. A este propdsito, é preciso nao esquecermos o que atras ficou dito acerca da constituicao do grupo ¢ da possibilidade de dentro dele poderem existir diferenciagdes internas, mais ou menos significativas. Relativamente 4 biografia, e voltando aos trabalhos de Goffman, parece-nos interessante referir a distingo que este autor faz entre factos biogrdficos activos e inactivos. Esta distingao, parece-nos interessante, na medida em que chama a atengdio para o facto de nem todos os acontecimentos na vida de um individuo serem ‘RelatGrio de Tnvestigago em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 38 relevantes para a sua trajectéria individual. Muitos dos acontecimentos biograficos revelam-se como momentos mortos, jé que ndo se revestem de um significado especial para o individuo e por isso acabam por no ser sequer referidos. Os factos biograficos activos, pelo contrario, revelam-se como momentos decisivos na vida do individuo ¢ por isso se tornam centrais no seu discurso biogréfico. Acrescente-se que esta centralidade pode ser inconsciente, mas de alguma forma acaba por estruturar a propria reconstrugao que o individuo faz da sua trajectéria individual, e no nosso caso especifico, do préprio processo de descolonizagao. Esta distingao parece-nos tanto mais relevante quanto permite abordar uma outra questo que é a possibilidade de encontrarmos entre os retomados casos de descontinuidades biogréficas. Segundo Goffman, estas descontinuidades podem surgir quando um individuo abandona uma comunidade na qual residiu bastantes anos e onde naturalmente construiu uma determinada identificagao pessoal. Ora, ao integrar-se numa nova comunidade, no nosso caso na sociedade portuguesa, é natural que o retornado se modifique (até por forga do proceso de integragao social que Ihe € exigido) e portanto, que a sua biografia apresente discrepancias significativas entre estes dois momentos. Contudo, estas descontinuidades, de uma maneira geral, no representam uma ameaga para o retomnado visto que ndo poem em causa a sua vivéncia anterior, apresentam-se antes como simples lacunas. Uma amputagao, para utilizar as palavras de uma das nossas entrevistadas: "quer dizer, eu fago a minha vida normal, nem sequer me lembro, mas hi de facto uma falha de 20 anos na minha vida, que ndo esta cd! Aquelas referéncias, a escola, os colegas de escola... Eu tenho um colega que nasceu cd, conhece toda a gente que anda por ai, cumprimenta toda a gente... é esta parte que me falta! E uma amputag3o! E que nao s6 ndo esti perto, como jé nem existe!” Relatirio de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 36 Il - Abordagem Metodolégica 1. Formulacao de Hipéteses Tendo como principal problemética a questo da integragGo da populagdo retornada na sociedade portuguesa, partimos para esta investigagao de um conjunto de sete hipéteses formuladas com base na ja referida escassa bibliografia que encontramos sobre este assunto. A primeira destas hipéteses, e que poderemos considerar como a nossa hipétese central, parte da afirmagiio feita por Fernando Barciela Santos de que Angola constituia, além de uma colénia de exploracdo, uma colénia de povoamento, 0 que ndo acontecia com as outras coldnias, nomeadamente com Mogambique. «Porque se limitaram a trasladar a cultura portuguesa para Angala, os colonos angolanos viveram menos a cultura africana do que os de Mogambique. Se tal se vier a confirmar, os retornados de Angola poderito ter tido menores dificuldades de integragdo na sociedade portuguesa do que os de Mogambique. » ‘A segunda hipétese podera formular-se da seguinte forma: Trajectérias comuns entre retornados explicam uma ceria identidade cultural independente das suas posigées sociais. Relativamente a terceira hipdtese por nés formulada diz respeito a plausibilidade de se ter verificado uma retoma relativamente generalizada dos percursos de mobilidade ascendente, interrompidos com a descoloniza¢do. Quanto A quarta hipdtese, parte da distingéo feita por Ann Swedler relativamente A utilizagao dos repertérios culturais em periodos de estabilidade e instabilidade sociais. No periodo de instabilidade que foi 0 23 de Abril, alguns retornados souberam gerir 0 seu repertério de recursos culturais de modo a atingir lugares de destaque. Da mesma forma, é provdvel que se encontrem entre os retornados orientagdes e atitudes favoréveis a um forte investimento na formacdo escolar, uma vez que foram os elevados niveis de qualificagdo e escolarizagao que facilitaram a absorg4o da populagdo retornada na sociedade portuguesa. Por fim, a sexta hipétese tem por base a suposi¢fio de os vinculos familiares terem contribuido fortemente para a definigdo das zonas de acolhimento apés 0 retorno, Sendo assim: a Sociedade Providéncia parece ter sido mais eficaz dos Relatorio de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1956 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 37 que os apoios estatais no que diz respeito a integracéo dos retornados na sociedade portuguesa. Paralelamente a estas hipéteses, que se centram fundamentalmente na primeira geragio de retomados, procurémos ainda analisar a segunda geragio, conceptualmente definida por nés como: os filhos da primeira geracéo que, tendo nascido em Africa, regressaram a Portugal com os seus pais, sendo ainda criancas ou adolescentes. Relativamente a esta populagio, a hipotese que colocamos foi a seguinte: Haveré ou ndo uma recriagdo intergeracional da identidade de retornado, a qual justifique nos nossos dias alguma espécie de clivagem entre jovens residentes e jovens retornados? A ser verdade esta afirmacao, poderemos estar na presenca de um mecanismo de reforco da coeséo deste grupo social. Tidas em conjunto, primeira e segunda geragao de retornados do ultramar, afigura-se-nos ento uma ultima hipétese que poderemos considerar final para a nossa investigacao: A verificarem-se, as fortes referéncias identitarias e coesdo do grupo social dos retornados, promovem uma estratégia de auto-exclusdo que nos permite consideré-los como uma comunidade auténoma, na sociedade portuguesa. 2. Procedimentos de Pesquisa 2.1 Métodos e Técnicas de Investigagao Tendo em conta 0 nosso objecto de investigagao ¢ as hipdteses de trabalho por nés definidas, a oralidade surgiu-nos como a forma mais legitima de o abordar. Desde logo, porque se trata de uma populagdo bastante alargada e dispersa, cujo comhecimento prévio ¢ praticamente impossivel, levando-nos a pdr imediatamente de parte a hipétese da observagao directa ou da andlise quantitativa. Paralelamente, acreditamos que o método biografico constitui o método mais apropriado para analisar a adaptagdo de um grupo social a um contexto social novo, sempre que isso implique a redefinigéo da sua identidade e das suas relagdes com os outros. Em nosso entender, ¢ 0 ponto de vista subjectivo dos actores sociais envolvidos, nomeadamente o significado que atribuem as suas Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura, FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (Ia}Conformado 38 acces ¢ as relagdes que mantém com os restantes actores sociais, que deve ser privilegiado sempre que esto em causa fenémenos de aculturag&o, emigracao, relagdes interétnicas, transformagoes sociais ou econémicas. Neste sentido, as historias de vida constituiram ao longo do nosso trabalho de investigagéo 0 método de recolha de informagao privilegiado. Mais especificamente, recorremos ao cruzamento de varias historias de vida como forma de alcangar uma perspectiva mais alargada do fenémeno social do retoro. Relativamente ao método de trabalho por nés adoptado, é de salientar ainda que, tendo em conta a nossa primeira hipétese, analisémos separadamente 0 caso de Angola ¢ de Mogambique, procedendo de seguida a uma anélise comparativa. A nossa opcio metodologica assenta na concepgao da representatividade em fungao da exemplaridade dos casos seleccionados, na sua adequagdo a analise comparativa e na sua capacidade de testar hipdteses e teorias seleccionadas. Por oposicao a representatividade estatistica, a representatividade pela exemplaridade ganha relevancia e significado pela intensividade do estudo que viabiliza, em detrimento da exaustividade. Naturalmente, esta abordagem impoe algumas limitagGes ao nivel das conclusdes a retirar de um estudo como este, sobretudo no que diz respeito & sua capacidade de generalizacdo, contudo, permite detectar fenémenos e significados a que sé através de um estudo pormenorizado de um numero limitado de actores poderemos chegar. Julgamos, contudo, que esta abordagem nao invalida, numa fase posterior, 0 recurso a métodos complementares de natureza quantitativa que, por demasiado ambiciosos, nio cabem no Ambito do nosso projecto de investigagao, ainda que bem vindos numa investigagao futura. No que diz respeito ao niimero de biografias a recolher, apontimos no inicio do nosso estudo para a realizagao de cinco relatos para cada um dos casos a analisar, Angola e Mogambique, sendo definido a partida que o nosso fechamento analitico se daria pela saturagao da informagao. Neste sentido, recolhemos apenas oito biografias, visto que a partir da terceira, para cada caso, a quantidade de elementos introduzidos comegava a decrescer. Visto que as historias de vida constituem 0 tipo de entrevista ndo directiva por exceléncia e 0 que nos interessava era captar os relatos dos nossos entrevistados nos scus proprios termos, foi dada uma grande margem de liberdade aos nossos entrevistados no que diz respeito 4 organizago e ritmo dos seus discursos biograficos. Mas porque acreditamos que a liberdade de palavra pode e deve ser controlada € que a nao directividade pura nao existe, elaborémos um guido de entrevista ainda que, naturalmente, pouco estruturado. Assim, optamos por organizar as varias sess6es, com cada um dos nossos entrevistados, em fung&o de Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (n)Conformado 39 quatro grandes momentos que considerémos fundamentais nos seus percursos: a partida para Africa, a estadia, o retomo e a actualidade, Por fim, reservimos uma secgfo para um conjunto de questdes que consideramos mais ou menos transversais e que designamos como perguntas de opiniao. Dentro de cada uma destas secges, cuja linearidade ¢ meramente metodolégica visto haver interacgdes evidentes, delineémos um conjunto de topicos que consideramos relevantes para cada um destes momentos ¢ aos quais Tecorremos como uma espécie de recordatéria (ver anexo 1), Esta preocupagao adicional prende-se com as exigéncias que a comparatividade impée a partir do momento em que optamos por recolher histérias de vida miltiplas. De facto, 0 cruzamento das varias histérias de vida s6 faz sentido se cada uma delas corresponder a um desenho mais ou menos homogéneo. Resta sublinhar que por se tratar de um tipo de entrevista pouco directiva, a sua complexidade é acrescida, por outro lado exige um esforgo de atengdo suplementar, no s6 porque é necessario encorajar o nosso interlocutor a prosseguir o discurso nos seus préprios termos, mas também porque toda a informagao nao-verbal é importante e por isso deve ser anotada. Este conjunto de razGes justificaram que todas as sessbes fossem gravadas. Estas gravagdes foram ouvidas antes de cada nova sessto, de modo a permitir eventuais rectificagdes ou aprofundamentos, sendo posteriormente transcritas e acompanhadas das anotagdes que julgamos relevantes. Relativamente 4 segunda gera¢io, consideramos que, por se tratar de uma populagéo mais jovem, nao se justificava a realizado de histérias de vida. Recorremos entéo a um tipo de entrevista semi-directiva, durante a qual mantivemos a estrutura em torno dos trés momentos fundamentais (excluimos naturalmente a partida), tendo adaptado a esta populagdo os topicos a abordar (ver anexo VIII). Quanto ao niimero de entrevistas realizadas, mantivemos a amostra de quatro, embora reconhegamos que esta populacio justificasse um nimero mais alargado. Contudo, esta populagao revelou-se especialmente dificil de contactar, além do que, julgamos que a diversidade de variéveis por nés encontradas entre esta populagdio mereceria uma anilise de caracter quantitativo. 2.2 Incursao no Terreno Antes de mais, convém sublinhar que 0 nosso terreno de investigagao foi circunscrito ao Distrito de Leiria, onde consideramos reunir melhores condigdes de acesso as fontes de informagao. Tal deveu-se ao facto de considerarmos que 0 Felabro de Tveaigagdo tn Sosologio da Culture FEDC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (n)Conformade 40 conhecimento prévio de alguns retorados constituia a melhor forma de chegarmos até eles. Neste sentido, comegémos por contactar a ACRENARMO (Associacao Cultural e Recreativa de Naturais ¢ Ex-Residentes de Mogambique), sediada em Leiria, a fim de estabelecer os primeiros contactos com a populacao retornada, Da mesma forma, aproveitimos a nossa familiaridade prévia com alguns retornados para levar a cabo algumas conversas informais, 0 que nos permitiu uma primeira aproximagio ao terreno. Estas conversas informais, juntamente com as leituras por nés realizadas permitiram-nos a familiarizagao com o tema, a qual se revelou fundamental para a definigdo da nossa problematica de investigagao. Foram também estes primeiros contactos que nos permitiram 0 acesso aos nossos entrevistados, indicando-nos quem poderiamos entrevistar e nalguns casos apresentando-nos a eles, funcionando assim como intermediarios. 2.3 Caracterizagao dos Actores e Situagio de Entrevista A caracterizagao dos individuos entrevistados no ambito desta investigagao Parece-nos justificar-se na medida em que permite evidenciar atributos pessoais que poderdo vir a revelar-se significativos na andlise das percepgdes que estes actores tém do retorno. Da mesma forma, julgamos que as condigdes em que decorreram as entrevistas podem vir a revelar-se importantes para a sua andlise. Comecemos entdo pelo caso de Angola. Relativamente aos quatro entrevistados da primeira geragdo, convém referir que se trata de duas mulheres e dois homens, rondando os primeiros os 80 anos de idade e tendo emigrado para Angola nos anos 40, ambos com familia j4 constituida, embora Jorge tenha partido sozinho e Anténio com a familia. Quanto as nossas entrevistadas, Teresa tem cerca de 50 anos, foi para Angola com 6 e tinha j4 estado a estudar em Portugal, onde tinha os seus pais. Lurdes ronda os 45, nasceu jé em Angola ¢ tinha vindo a Portugal apenas em crianga. Contudo, considerémos que o scu testemunho seria tio vilido como o daqueles que foram para as coldnias em crianga. Por coincidéncia, ou talvez porque os contactos foram sucessivamente estabelecidos em fungao uns dos outros, trés dos nossos entrevistados sio professores (um deles j4 reformado) e Jorge ¢ empregado de escritério, igualmente reformado. Quanto a naturalidade, dos que nasceram em Portugal, apenas um nasceu na zona de Leiria, os outros dois nasceram na zona de Coimbra e Figueira de Castelo de Rodrigo. Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura, FEUC, Setembro de 1996 Retornadios: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 4 No que diz respeito & situago de entrevista € de salientar que todos se A entrevista de Jorge, nao deixa de ser curiosa por ser aquela em que o aspecto formal da entrevista mais se fez sentir. Assim que chegamos esperava-nos uma mesa com duas cadeiras que definiam © estatuto de entrevistador e de entrevistado ¢ uma série de apontamentos que reuniu sobre a sua vida, depois de contactado e informado sobre o tipo de entrevista a realizar, Estes apontamentos, como que formalizando e organizando as suas Tespostas, deixaram transparecer desde logo a sua preocupagio de permanecer fiel & historia € a sua assungao do Papel de guarda da verdade, bem como a importincia que atrubuiu @ entrevista em si. Da mesma forma, a mulher esteve sempre presente, mas limitava-se a Sparecer ocasionalmente e a intervir muito esporadicamente. Sugerindo uma Pausa na entrevista foi-nos sempre oferecido lanche, ocasidio que dava Iugar a Conversas mais informais, geralmente participadas pela mulher. Resta sublinhar gue a utilizagao do gravador teré certamente contribuido Para um certo Fewaimento inicial, 0 que se comprova por alguns pedidos de off-record, em #ssuntos €m que se sentia menos a vontade. A medida que as sessdes se foram sucedendo, tendo sido realizadas 4 sessdes consecutivas, esta formalidade foi diminuindo e o grau de confianga foi aumentando suoessivamente, dando lugar a um discurso mais fluido e informal. Abandondmos a mesa logo na segunda Sessio € 0 aff-record foi ainda algumas vezes pedido, mas para introduzir apartes considerados supérfluos para a entrevista Por Jorge e que resultaram desta familiaridade crescente. A titulo de exemplo e Por a considerarmos Tepresentativa, apresentamos no anexo II a transcrigdo desta biografia, regularmente, Aliés, nfo deixa de ser curioso que por alguns momentos nos fenhamos sentido como que meros observadores de uma Conversa enitre marido ‘Relatorio de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1956 Retornados: Identidades de Um Grupo (InjConformado 2 entrevistada nos foi relatando de uma forma fluida, entusidstica e por vezes quase anedética, os episédios mais marcantes da sua vida. Quanto A entrevista com Anténio foi a que nos apresentou maiores dificuldades por ser aquela em que a assimetria dos papéis de entrevistador e entrevistado mais se fez notar. De facto, a concepgao tradicional de entrevista que Alexandre manteve ao longo das varias sessdes, forgava-nos ao formato pergunta-resposta que, de alguma forma, fugia ao tipo de entrevista que pretendiamos realizar. Embora inimeras vezes tendesse a afastar-se do tema da nossa entrevista para relatar alguns episédios, o momento seguinte era sempre de uma forte expectativa quanto 4 quest&o que lhe seria colocada de seguida. A partir da segunda sesso, a mulher passou a estar presente e a intervir activamente, ajudando o nosso entrevistado a recordar situagdes e associagdes esquecidas Quanto a entrevista com Teresa, pouco hé a salientar. Durante as trés sessées, que decorreram num quarto de modo a evitar interrupgées, a nossa entrevistada falou de modo igualmente fluido e linear sobre a sua experiéncia. Foi, no entanto, a unica que confessou ser-Ihe um pouco dificil falar do retorno, revelando uma certa angiistia em recordar aquele que foi afinal o periodo mais dificil da sua vida, No que diz respeito & segunda geragio, reunimos uma professora de aerébica que veio de Angola com 6 anos, sendo também o seu pai natural de Angola, (Sonia); um economista, que tinha também 6 anos quando chegou a Portugal (Manuel); ¢ dois estudantes, que tinham aquando do retorno dos seus pais 3 e 4 anos (Vitor e Carlos). Resta salientar que Carlos ¢ Manuel sao irmios e filhos de Teresa, a fim de melhor analisarmos a influéncia familiar na eventual recriagdo intergeracional da identidade de retornado. Quanto 4 forma como decorreram estas entrevista gostariamos apenas de salientar que nos deparémos em alguns casos com uma certa inibigio e impaciéncia, o que podera ter resultado da familiaridade prévia com o entrevistador e a sua consequente suspenstio temporaria. A preocupagao de demarcar os limites entre a entrevista e a conversa instalou a expectativa de que a entrevista decorresse segundo o formato de pergunta-resposta, 0 que pensamos ter empobrecido as entrevistas em termos de fluidez e pormenor. Também aqui optamos por apresentar, como exemplo, a transcrigéio da entrevista com Carlos no anexo IX. Quanto ao caso de Mocambique, entrevistémos quatro individuos da primeira gerago, A primeira entrevistada foi Antonia com a qual ja tinhamos um conhecimento prévio. Ao contacté-la por telefone a sua predisposigo para Relatorio de Tavestigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1956 Retornados: Identidades de Um Grupo (in)Conformado 43 Colaborar nesta investiga¢ao foi notéria, Antonia tem cerca de sessenta anos e ¢ a tinica entrevistada da primeira geragao que nasceu em Africa. Relativamente 4 situagao de entrevista, convém referir que esta ocorreu em sua casa no espago onde actualmente dé aulas de inglés, Foram feitas quatro sessbes durante as quais © clima de cumplicidade foi crescendo. Neste caso, assim como em todas as entrevistas da primeira geracdo, a narragao autobiogrifica decorreu num ambiente no qual o papel de entrevistador e de entrevistado estava claramente definido. A segunda narrativa bigrafica foi concedida por Carla com a qual também j4 tinhamos conhecimento prévio. Carla foi para Mogambique juntamente com a mie ¢ a irma para juntarem-se ao pai e tinha na altura dez anos. O seu local de Partida ¢ de naturalidade € Freixeda do Torro, uma aldeia perto de Figueira de Castelo Rodrigo. Esta entrevistada tem cerca de cinquenta anos e ¢ doméstica. A entrevista ocorreu num quarto da casa e de um modo mais ou menos formal. Foram feitas tés sess6es ao longo das quais a nossa entrevistada foi-nos mostrando fotografias da sua passagem por Mogambique ¢ alguns poemas escritos por ela onde o tema principal ¢ Africa. Apesar da proximidade entre nés € a narradora, os papéis de entrevistador e de entrevistado foram sempre diferenciados. Contudo, no podemos esquecer que as entrevistas com individuos com os quais temos uma grande proximidade podem provocar o encurtar da narrativa uma vez que estes pressupdem que nds jé conhecemos os factos ¢ por isso nfo véem a necessidade de os repetir, a ndo ser que sejam directamente interrogados, De seguida entrevistamos Anténio que é um empresério com cerca de sessenta anos de idade. Nasceu em Lisboa e foi para Mogambique com dezoito anos. Quanto situagao de entrevista, ela ocorreu no seu local de trabalho e decorreu de uma forma bastante sintética mas com muita clareza. Devido a este facto, esta autobiografia foi por nés escolhida para aparecer no anexo Ill. Foram apenas marcadas duas sessdes ao fim das quais os temas principais estavam abordados. Nao podemos esquecer no entanto que, a par destas sessdes formalmente marcadas, € uma vez que o conhecimento com a maioria dos nossos entrevistados era prévio, socorremo-nos muitas das vezes de conversas informais através das quais recolhemos informagoes importantes para a nossa investigacio. A liltima historia de vida por nés recolhida foi narrada por Filomena, uma empregada de escritério com cerca de cinquenta anos de idade que nasceu no Distrito de Leiria. Foi para Mogambique com dezoito anos de idade para se juntar a0 marido que ja 14 trabalhava e s6 regressou trés anos depois da independéncia, Depois de marcarmos o dia da entrevista, foram feitas duas sessdes nas quais a disposigéo ¢ 0 acolhimento foram bastante positivos. Recebidos na sala, foram- ‘RolatGrio de Investigagdo em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (InjConformado 44 -nos oferecidos bolos ¢ bebidas e depois dos primeiros minutos j4 estavamos completamente ambientados. Convém referir que esta foi a unica entrevistada com a qual no tinhamos conhecimento prévio. Também foi a tinica entrevistada que narrou a sua biografia acompanhada pelo marido com o qual mantinha pequenos didlogos sempre que era necessario precisar nomes ou datas. No que diz respeito & segunda geracdo, recolhemos quatro entrevistas. Trés dos nossos entrevistados so irmaos, empresarios, e tinham respectivamente aquando do retorno, quinze anos (Jorge), doze anos (Paulo) e nove anos de idade (Manuel). A outra nossa entrevistada (Cristina) é uma recém licenciada em Relagdes Internacionais e tinha trés anos quando chegou a Portugal. Em virtude da menor idade e do nosso conhecimento prévio, as situagdes de entrevista decorreram de um modo menos formal do que as da primeira geracéio. Duas das entrevistas tiveram lugar no quarto, uma na sala e outra numa varanda. Todos eles, sem excepgdo, demonstraram um enorme prazer em ceder a entrevista Algumas das vezes, nao foi necessério colocar certas perguntas que faziam parte do guido uma vez que, por si préprios eles iam respondendo as questées que nos pretendiamos colocar. Neste caso optimos por apresentar, como exemplo, a transcricdo da entrevista de Paulo no anexo X. 3. Procedimentos de Andlise A anélise de contetido constituiu sem divida 0 método de tratamento da informagio por nés privilegiado, por o considerarmos o tinico capaz de captar a riqueza de formas e contetidos de um discurso tao livremente produzido como o das historias de vida ou das entrevistas abertas, no caso da segunda geragao. Neste sentido, a escolha dos actores citados por parte dos nossos informantes, a sua frequéncia ou auséncia e 0 modo como foram dispostos ao longo dos relatos, foram elementos que assumiram para nés especial importéncia, pois foi através deles que tentimos descodificar as representagdes sociais ¢ os juizos que a nossa populagdo produz a cerca do fendmeno social do retorno Relativamente a forma como procedemos a anilise de contetido, é de salientar que, mais do que uma andlise temética, procedemos a uma andlise por actores sociais ou acgdes, acreditando que o conteiido dos discursos dos nossos entrevistados podia ser concentrado sobre algumas personagens ou situagdes ¢ sobre o tipo de relages que com elas estabeleciam. Neste tipo de anéliise, a andlise das correlagdes, enquanto associagao de actores sociais e de estes a determinados temas ou acces, assumiu particular relevancia por nos permitir Relatério de Investigagfo em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidadés dé Uin Grupo (h)Conférmads 45 conhecer as interpretacées, representagdes € sensibilidades da nossa populaco, bem como as reacgdes latentes ao fendmeno social dos retorno. Elaborémos ent&o grelhas de andlise das biografias (anexos IV e V) e das entrevistas com a segunda geragdo (anexos XI ¢ XII) através das quais procuramos reconstruir os discursos dos nossos entrevistados, adoptando como categorias de andlise os actores sociais ou as acgdes relevantes para cada um deles. A comparagao das diferentes relagdes estabelecidas ou das atribuigdes de causalidade foi feita com base num quadro onde sintetizdmos as principais categorias encontradas (anexos VI e VII para a primeira geraco e XII ¢ XIV para a segunda). Comparagdo esta que diz respeito, no s6 4 comparago final entre 0 caso de Angola e Mogambique, mas a uma comparagio constante entre as varias entrevistas, que subjaz 4 nogdo de historias de vida cruzadas e entrevistas miiltiplas. Relatério de Investigagdo em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupa (In)Conformado III - O Caso Angolano Partindo da andlise de.contetdo dos quatro relatos biogréficos por nés recolhidos (anexo IV) procuramos ent&o encontrar um nucleo duro de actores sociais ou personagens relevantes para os nossos retomados, estabelecendo o tipo de relagio que estes mantém com cada um deles. Neste sentido privilegiamos na nossa andlise uma perspectiva relacional. Nao obstante, encontramos também algumas categorias causais importantes, associadas a determinadas acgdes. Analisando cada uma destas categorias Procuramos entio chegar a uma caracterizagio mais ou menos comum dos retornados de Angola, sem perder de vista os limites que um estudo como o nosso levanta ao nivel da generalizagao. O Intermediario Para a maioria dos nossos entrevistados o intermediério, entendido como o individuo que viabilizou a sua ida para Angola, assume um papel importante na sua vida, nomeadamente no momento da chegada a Angola. Convém aqui referir que todos eles foram para Angola nos anos 40, altura em que para ir para Angola era ainda necessiria a carta de chamada, um documento no qual constava que havia alguém na colénia que se responsabilizava pela sua subsisténcia nos primeiros tempos e que Ihes arranjaria trabalho, assegurando desta forma a sua integracdo imediata. E portanto natural que o intermediario desempenhe um papel decisivo para a integragdo do emigrante portugués na sociedade colonial angolana, Ele funciona como o elo de ligagdo entre a vida vivida em Portugal e a nova realidade angolana, a pessoa que o seduziu a ir para Angola ¢ frequentemente a iinica pessoa que la conhece. Parece-nos significativo que para quase todos os nossos entrevistados o intermediario tenha sido um irmao ou irma, indicando assim a importincia que teve a via familiar na decisio de ir para Angola, Neste sentido, parece-nos estarmos na presenga de uma migragao de tipo familiar, que de alguma forma ajuda a explicar a existéncia de focds de partida bem delimitados. Esta ideia é aliés avangada por uma das nossas entrevistadas: ‘RelatGrio de Investigaglo em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 47 "No fundo foram-se ajudando wns aos outros € acabou por cair Id tudo! Esse tio onde std a minha filha era um dos irmdos mais novos do meu pai. Ele foi para 1a muito joven 0s irmaos ajudaram-no, nomeadamente © meu pai que o ajudou monetariamente para ele estudar!* O que esté em causa ndo é tanto a causa da emigrago, mas sim a escolha de Angola como destino, De facto, 0 motivo da saida de Portugal é sempre prioritariamente econdmico, os nossos entrevistados foram para Angola em busca de uma vida melhor e por isso encontramos, nos levantamentos por nds consultados, as regides deprimidas do norte e centro interiores como as principais zonas de partida, nos anos 40. E essencialmente a escolha do destino que nos parece ser condicionada por esta migragio familiar e pela necessidade da carta de chamada. Se n&o vejamos as palavras de um dos nossos entrevistados "Eu ji devia ter ido para Mocambique 6 anos antes. Estava lé um Governador que linha sido professor da minha irmd ¢ ela falou-lhe, Mas quando eu estava com tudo tratado, ele saiu de 1d, Nessa altura jd nfo fui e tive que me arranjar em Coimbra! (...) Entretanto escreve-me 0 meu irmo de Angola, rapaz que eu mal conhecia e que seria 8 anos mais vetho do que eu e disse-me: «ens para Angola porque aqui toda a gente se safa «ru jf nem precisas mais do Magistério Primatiol»." A Metropole Sendo Angola uma colénia portuguesa, precupémo-nos em identificar a existéncia de lagos com a Metrdpole durante a estadia em Angola e em estabelecer o tipo de relagdio que os nossos entrevistados com ela mantinham. Procuravamos com isto descobrir até que ponto os colonos de Angola possuiam uma identidade portuguesa ou se, pelo contrario, se identificavam como angolanos ou afticanos. Concluimos entio que o afastamento era uma constante, ainda que com algumas variantes, e que este era particularmente notério nas camadas mais jovens que tinham jé nascido em Angola ou emigrado para la em criangas. Assim, relativamente aqueles que foram para Angola jé em idade adulta, nomeadamente os que haviam jé constituido familia em Portugal, o afastamento era essencialmente geogrifico. Porque ficava longe e o unico meio de transporte que havia era o maritimo, era raro virem a Portugal. Mas identificaram-se sempre como portugueses € aproveitavam sempre que tal Ihes era concedido, as chamadas "férias coloniais" ou "graciosas". Se a maioria ndo enviava poupangas Relatério de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (n)Conformado 8 para Portugal era porque nao tencionava regressar e por isso investia tudo em Angola, ou simplesmente porque havia fortes limitagdes & saida de divisas, se no vejamos: “Quis sempre ser portugués, mas repare bem: Uma coisa ¢ ter nacionalidade portuguesa, outra coisa é viver ed. Ndo queria viver cd!” Para esta geragao, Angola seria sempre uma coldnia portuguesa. Estar em Angola era, de facto, estar em Portugal, até porque em termos culturais tinham procedido a uma trasladagdo de costumes e tradigdes da Metropole para Angola. A ligagdo com a Metrépole era portanto significativa embora sui generis. E também nesta geragao que nos aparece um outro tipo de relagdo com Portugal, e que podemos designar de contribuigao. Associado ao orgulho que sentem em ser retornados, estes consideram ter constituido um factor de desenvolvimento para Portugal apés o retorno, dado o dinamismo e espirito de iniciativa que existia entre os colonos angolanos, “Também é verdade qué Portugal no perdeu com a nossa vinda para cé, quem perdeu foi Angola. As pessoas que para ca vieram, endo foram poucas, nifo envergonharam Portugal. Portugal no se envergonhou dos seus filhos que voltaram ca!” Jé para as camadas mais jovens, que haviam nascido em Angola ou sido levados para 1a em criangas, Portugal ficava bem mais longe. Frequentemente a linica ligagdo que tinham eram os familiares que sabiam residir em Portugal, mas que mal conheciam e a quem eram obrigados a escrever ocasionalmente. Na melhor das hipéteses tinham alguma curiosidade em conhecer as suas origens gostavam de cé vir passar as férias coloniais: “En falo por mim... eu no tinha a minima ligago com isto! Mas & que nfo tinha, tenlio que ser franco! Mas € que nem tinha, nem tinha vontade de ter, a8 coisas so assim. Se tivesse, tinha aproveitado para cé vir, mas munca quis! F eu julgo que isso era muito generalizado!" Talvez por isso a perspectiva de ficar em Angola depois da independéncia fosse encarada com toda a naturalidade *Sabe que nés também queriamos de alguma forma, no da forma como acabou por acontecer. mas no fundo nés também desejivamos a independéncia daquilo. Nés também viviamos uma grande separagdo, ndo sé geogrifica, mas a todos os niveis. Portanto a nossa Relatério de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Lim Grupo (In)Conformado 49 ‘deia,o ideal para nés, cra aquilo ser independente. O que é que nés tinhamos que estat agarrados a isto aqui? Isto nfo nos dizia nadal Especialmente na nossa geracio, em que mo fundo éramos nascidos i, ou se nfo éramos nascidos ld, era 0 caso do meu marido que foi com 2 anos. Quer dizer, no tinhamos qualquer raiz cd € portanto nao fazia sentido ‘continuarmos agregados a isto!" Os Governantes Como seria de esperar, os governantes constituem 0 alvo privilegiado dos nossos entrevistados, mantendo com eles uma relagdo essencialmente de responsabilizagdo e abandono. Esta responsabilizagdo no diz respeito apenas ao momento do retomo, forma como decorreu o processo de descolonizagio e ao abandono em que entio foram votados. Os Governantes ¢ poderosos so apontados como responsiveis elo ddio que os negros tinham em relago aos brancos, pelo desinteresse que manifestaram em relagdo a Angola até aos anos 60, pela forma desorganizada e descontinua como se fez 0 povoamento de Angola e pelo atraso no seu desenvolvimento econdmico devido as leis proteccionistas que regiam 0 comércio ultramarino. Mogambique Contrariando um pouco as nossas expectativas, a relagdo que os colonos angolanos mantinham com Mogambique era de uma certa dissociagio. Embora relativamente préximo de Angola e sendo também uma coldnia portuguesa, Mogambique constituia uma realidade a parte da angolana. Na base desta diferenga estava naturalmente a influéncia inglesa que, via Africa do Sul, lé se fazia sentir e que se reflectia tanto ao nivel econémico como social e cultural. De facto, Mogambique apresentava um indice de desenvolvimento maior do que Angola e isso reflectia-se no nivel de vida dos Seus colonos. Mas mais do que isso, era 0 Apartheid ¢ os costumes e tadigdes inglesas que afastavam 0 colono mogambicano do angolano, gerando até uma certa rivalidade "sera frequente, nds comtentarmos uns com os outros, até num terme assim um bosado chato: «Oh pi, aqueles pajos d da outra costa tém um bocado de penefras». Ele estavamn ali pegados & Africa do Sul, onde havia contactos com pessoas mais cvilizadas e onde o Apartheid era bem define, e Mogarbique foi desenvolvido junto a eles. Havie mais Relatério de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1956 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado desenvolvimento em tudo € eles tinham um bocado de sentimento de superioridade em elagao a nos. Se perguntar a outras pessoas ¢ elas forem sinceras, mais de 80% rTespondem-Ihe isso porque nés sabiamos e comentivamos isso.” Hoje, parece que esta disting&o tende a diluir-se pela experiéncia comum do retorno. De facto, a aproximagdo que todos os nossos entrevistados reconhecem existir entre os retornados, estende-se aos retornados de Mocambique: "So porque a gente sabe que estiveram ld e que vieram nas mesmas condigGes que nds, o que viveram antes no conta, temos uma situago semelhante, falamos da mesma coisa e orgulhamo-nos daqueles que conseguiram libertar-se pelo menos da fore!" Angola Angola ¢ sem diivida a grande referéncia de todos os nossos entrevistados por isso a categoria que mais espago ocupa nos seus discursos, ainda que o tipo de relagdo se va alterando invariavelmente, em fungao do momento da sua vida que nos esto a relatar. Assim, no momento da chegada a Angola, apenas um dos nossos entrevistados confessa ter-se arrependido. Mas mesmo este, rapidamente se rendeu aos encantos de Angola, Estes encantos, segundo os nossos entrevistados, nfo se encontrayam apenas na beleza natural do pais, a qual se diz exercer um forte feitigo sobre quem ld passa, mas também nas proprias pessoas ¢ no seu modo de vida. O fascinio que sentiam por Angola era indissociavel do modo aberto descontraido como as pessoas se relacionavam entre si. "Lé havia uma abertura to grande que as pessoas no se conheciam mas recebiam toda a gente de bragos abertos, Em qualquer sitio, no precisivamas de conhecer, se a gente passasse numa quinta e batesse & porta, entrava-se e sentava-se & mesa como se fosse da mesma familia ¢ se conhecessem bem!" Da mesma forma, todos referem a abundancia e o consequente bem-estar que se vivia em Angola, embora a geragdo mais nova tenda a relativizar a ideia de abundancia, preferindo falar de bem-estar relativo. O que é um facto e que nao sé 08 salérios eram melhores do que em Portugal e havia uma grande variedade de actividades a que as pessoas se podiam dedicar com sucesso, como tudo era mais barato, devido 4 abundancia que resultava da imensidao e riqueza natural de Angola Relatorio de Investigario em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 31 “Angola Tinha agua por todos os tados, tinha altitudes que Ihe davam todas as variedades de clima, de maneira que podia produzir de tudo! Aquilo cra rico em sisal, café, hortaligas, arroz, milho, fruta... tudo se dava lé bem!" Por tudo isto, a relagao que os colonos angolanos mantinham com Angola era de uma forte identidade que se reflectia no desejo de Ia permanecer para sempre € no investimento que faziam de todas as suas poupangas. "Nos nunca querfamos deixar Angola, de maneira nenhuma! Aquela era mesmo a terra ue ns amivamos ¢ na qual apostivamos tudo, onde nos gostivamos de viver ¢ twabalhar!™ ‘Uma vez obrigados a regressar, e passados 20 sobre o retorno, ficou a saudade. Contudo, apenas um dos nossos entrevistados regressou a Angola e nenhum outro tem vontade de o fazer. De facto, 0 medo da desilusio parece mais forte do que a saudade que sentem, preferindo reter a imagem daquilo que conheceram Nao obstante, 4 medida que os relatos avancam, os nossos entrevistados comegam a colocar a hipétese de um dia visitar Angola se a situagdo de guerra se resolver. Mas referem que tanto Angola como a prépria sociedade angolana, tal como a conheceram, ja nfo existe e portanto é impossivel reviver o pasado. A sensagdo que fica ¢ entdo a de amputacdo como bem descreve uma das nossas entrevistadas: "Em relagdo a mim 0 que eu noto ¢ que... quer dizer, eu fago 2 minha vida normal, nem sequer me lembro, mas ha de facto uma falha de 20 anos na minha vida, que néo esta cal O meu crescimento, no fundo, nlo esta cd! Aquelas referéncias, 2 escola, os colegns da escola... eu tenho um colega que nasceu cd, conhece toda a gente... e esta parte faz-me falta! E como que uma amputacdo! E que nfo s6 ndo esté cé, como jé nem existe. Quando 8 gente ¢ emigrante sabe que se vier ed estd ci! As coisas estio ci, a escola esta no mesmo sitio, as pessoas continuam por aqui. Metade da terra estard lé, mas as pessoas, que sao ‘quem faz a terra, de facto nio estio!* 0 Espirito Angolano Com tanta ou mais releviincia que Angola, 0 espirito angolano aparece, para alguns dos nossos entrevistados, como uma categoria autonoma, a qual serve na maioria das situagdes como contraponto para a realidade portuguesa, Relatario de Tnvestigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 2 De facto, ao contrario do que acontece com a categoria "Angola", o espirito angolano € uma categoria que permanece estavel ao longo de todo o discurso dos nossos entrevistados. Embora reflectindo um processo de reconstrugdo da sua identidade apés 0 retorno, na medida em que s6 faz sentido quando confrontada com 0 espirito portugués, € uma categoria que tanto ¢ usada para descrever_a vida na colénia como a prdpria integragdo na sociedade portuguesa. Neste sentido, 0 espirito angolano & caracterizado pela descontracgao, no sentido de viver a vida dia apés dia; pela abertura de espirito que proporcionava a facilidade no estabelecimento de contactos sociais diversificados; 0 convivio, como uma constante em todas as formas de actividade e tempos livres; a solidariedade; a integraco social e racial; e o dinamismo tipico de uma sociedade descrita como meritocratica ; Como alguns dos nossos entrevistados referem, geralmente o emigrante portugués em Angola nao tinha familia, pelo menos durante os primeiros anos de emigragao. Tal parece explicar nio sé a necessidade de convivio e a sua abertura, na medida em que os amigos sio tomados como uma grande familia, mas também a auséncia de uma estrutura social rigida e a consequente necessidade que cada um sentia de se afirmar por si proprio, pela sua personalidade e dinamismo. Longe da familia, a grande maioria dos colonos encontrava-se mais desprotegido, mas simultaneamente gozava de uma maior liberdade de acgao, O Clima Ainda que a hipétese anterior permanega valida, o clima assume-se talvez como a mais forte condicionante do espirito angolano. Esta é aliés uma posigio defendida por uma das nossas entrevistadas: "Depois nto posso deixar de referir 0 clima, de facto acho que o clima era espantoso e «que se calhar o clima também foi uma grande determinante da maneira de ser das pessoas. Porque eu noto que as pessoas ci, quando chegam ao Verlo... isso agora que eu sou tuma realidade aqui, também acontece o mesmo comigo. No periado de Iaverno eu estabelego menos relagées, isolo-me mais porque o clima também nio é favorivel. No Verio a gente sai mais para a rua, vamos mais aos cafés, conversamos mais unas com as utras, Portanto ha uma aproximagdo maior enire as pessoas. Se calhar, o clima ¢ a chave desta questo, écapaz de ser a chave, no?" Relatorio de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado O Trabalho Ao falarmos do dinamismo e espirito de empreendimento dos colonos angolanos, no podemos deixar de referir a identidade e orgulho que encontrimos por parte dos nossos entrevistados, especialmente nos mais idosos, em relagdo ao seu emprego "Eu 6 que fiz as retretes ¢ 0s balnedrios pare os pretos.(..) A Biblioteca! Como ¢ que cu fiz a Biblioteca? Ah foi com os porcos! Comecei a explorar os porcos, porque a comida «que ia para 0s porcos eram os restos da mesa, (..) Tinhamos ali as oficinas para todos os garo(os, folografia.. Tinhamos cdmara escura, feta por mim e pelos meus pedreiros Tinhamos um compartimento na cave que era a cass das malas, porque aquilo néo havia uma casa onde os middos pudessem por as coisas, Passava na casa das malas a canalizagdo para um pogo exterior que estava sempre cheio de agua porque as vezes faliava a agua 2 ¢ 3 dias. Cimaras ftigorificas também fiz e equipei. Fiz aquela cozinha toda em mirmore, fiz, uma chitaca, uma propriedade agricola de onde iam todos os produtos que lé se gastavam, (..) aumentet os pomares, plantei 150 tangerineiras que ainds agora quando ld fui estavam to lindas... De facto, o trabalho assume-se como uma categoria central no discurso destes entrevistados, ocupando sensivelmente 0 mesmo espago que Angola, Em nosso entender, tal deve-se fundamentalmente ao ritmo de crescimento que Angola conheceu a partir dos anos 60 ¢ portanto ao orgulho que esta geracdo sente de ter construido um pais do nada. Da mesma forma, sendo um pais em crescimento havia fortes oportunidades de enriquecimento e de ascensao social, tal encorajava as pessoas a investir todas as energias na sua actividade, ou mesmo em diversas actividades em simultneo. “No fundo as actividades estavam todas interligadas e desde que as pessoas fossem ‘minimamente atrevidas ¢ dinémicas, conscguiam singrar na vida, Dada a propria imensidfo ¢ riqueza natural de Angola, havia niio s6 muita variedade de matéria-prima, ‘mas também um vasto mercado pronto @ consumir tudo quanto se produzisse." Este espirito de iniciativa é tanto mais relevante para os nossos entrevistados quanto, na sua perspectiva, foi o que Ihes permitiu recuperar a sua situacdo econémica, ou pelo menos subsistir, apés o retorno. Contudo, é também esta dedicago ao trabalho e & construgdo de um pais, o que mais revolta esta geragéio de retornados. sentem que dedicaram toda a sua vida a uma causa em vio, niio tendo tido sequer direito as respectivas reformas. Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 34 Os Negros A relaco que os colonos angolanos mantinham e ainda hoje mantém com a populagao negra é provavelmente a mais complexa que encontramos no nosso estudo. Os sentimentos que encontramos sao extremamente diversificados, mesmo quando centramos a nossa andlise num tnico entrevistado, chegando mesmo a ser contraditérios. Em nosso entender, tal tem a ver desde logo com o facto de se tratar da categoria que sofre maiores alteragées ao logo do relato. A medida que os nossos entrevistados relatam diferentes momentos da sua vida, 0 tipo de relagdo que descrevem com o negro diverge. Em segundo lugar, trata-se de um assunto que os retormados abordam cuidadosamente, reagindo antecipadamente a qualquer acusagao de racismo que lhes possa ser dirigida. Por fim, parece-nos dificil, se nao imprudente, considerar a populagio negra como uma massa uniforme, naturalmente que os nossos entrevistados mantinham diferentes relagdes com os negros, em fungiio da proximidade ou convivéncia que mantinham com eles e também da classe social a que uns e outros pertenciam. Em todo o caso, tentamos tecer algumas consideragées relativamente a forma como os colonos angolanos se relacionavam com a populagao negra Desde logo, nao podemos deixar de distinguir a camada mais jovem de retornados da mais idosa porque o que est em causa é também a propria historia do racismo. A este propésito, um dos nossos entrevistados estabelece uma cronologia interessante: “Angola tem uma caracteristica muito engragada: ha muitas centenas de anos ou hé mmmitas dezenas de anos, foi uma terra onde as misturas ricieas se fizeram com muita naturalidade, Depois. quando veio 0 colonialismo a sério é que acabaram por acabar. E agora, nos iltimos anos, a partir da guerra, portanto a pant de 61, voltaram a regressar!" De facto, a geragdo que foi para Angola nos anos 40 deparou-se com uma sociedade racista, no sentido em que era a cor da pele que determinava o estatuto social e econémico do individuo, Contudo, havia j4 negros que gozavam de um certo prestigio que Ihes era concedido por pertencerem a familias tradicionais. Provavelmente essas familias, que alids conjugavam negros, mulatos e brancos, teriam ascendido socialmente num periodo anterior, durante 0 qual as misturas raciais eram relativamente comuns. A medida que o interesse de Portugal pelas colénias se intensificou e a populagao branca de Angola foi crescendo, intensificou-se 0 separatismo. O racismo e as desigualdades raciais tornaram-se ent&o uma realidade com a qual os. Relatério de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo @njConformado 35 nossos entrevistados que foram para Angola nos anos 40 se depararam. Embora manifestem alguma admiragao pela populagio negra, nomeadamente pela sua solidariedade © unidio, e frequentemente adoptem uma atitude em sua defesa, apontando os governantes ¢ os poderosos como os responsaveis pela sua situagdo de inferioridade, nao deixam de aceitar esta inferioridade como uma realidade imutavel. ""S6 profissionalmente é que eles no ocupavam os lugares que a gente tinha, porque no tinham nem habilitagées Titerérias, nem conhecimentos téenicos sobre absolutamente nada, Além de andar a wabalhar na cana, no café ou no gado, Tinham empregos em conformidade com os seus conhecimentos!" Mesmo a amizade que geralmente demonstram ter para com um outro negro assenta frequentemente numa relagdo de poder. Este tipo de relagao é alias reconhecida por outro dos nossos entrevistados: ".. ponho o pé em terra e vi uma rapariguita ai de 13 ou 14 anos ¢ disse-the «Otha 1é.., Ela percebeu que eu éstava a falar com ela e parou logo! Mas parou por um espirito submisso, no parou porque gostava de falar comigo, parou porque era uma auténtica ceseraval O que me fez. muita impressto! Ela parou porque foi um branco que the falou! Nao gostei nads, tive pena dela!* J4 nos anos 60, foi o préprio governo que foi obrigado a promover a integragaio social da populagao negra como resposta & situagdo de conflito que entio surgia Abolidas as leis discriminatérias iniciava-se um lento processo de nivelamento que levaria a que @ nova geragao de colonos viesse a conviver de forma mais intensa, quer na escola quer no emprego, com a populagio negra. As desigualdades persistiam, mas eram vistas pela maioria da populagdo branca como exclusivamente econémicas e culturais, com tendéncia a desaparecer. "Ouga, et tenho a minha mulher a dias, por exemplo, que eu trato com 0 maior respeito, mas ela no faz parte do meu grupo de amigos, como é evidente! Pronto, ai estd tuma diferenga a nivel social. (..) Essas diferengas que existem cd, também existiam ld entre brancos ee pretos. Agora, aqueles pretos que estudaram conosco, no funde conviviam connosco, eram noss0s colegas de trabalho e tal, em que no undo o nivel social cra igual, nio estabeleciamos diferengas no nosso convivio!” A geragdo mais idosa foi aquela para quem foi mais dificil lidar com esia nova realidade, chegando a identificar este nivelamento como a causa da rebelido da Relatorio de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retormados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 56 populagdo negra. Nesta perspectiva, este nivelamento fomentou a ambigdo da Populagdo negra que, entrando em concorréncia com a populagao branca, se apercebeu que as suas oportunidades de ascenso social seriam facilitadas sem a presenga branca em Angola. O conflito agudizou-se e as situagdes de confronto directo, envolvendo o insulto e a agressfo, caracterizaram a nova relagdo entre colonos ¢ nativos. Passados 20 anos, o sentimento que mais comummente encontramos entre os retomados € 0 de magoa, ainda que por vezes acompanhado de compreensio: “Nunca fiz diferenciagao, nem na alimentago, nem nas instalagdes, pronto cles conviviam connasco! Por isso eu digo, se tods a gente os tivesse tratado da mesma ‘maneira, de certeza que nfo havia tanto medo ¢ tantos problemas!” A Cultura Africana A camada mais jovem desta primeira geragao de retomados € aquela onde a atracgo pela cultura africana mais se faz sentir. Os cAnticos, as dangas, o ritmo, a comida e mesmo a historia de Angola constituiam uma curiosidade para aquela geragao que desde a infincia teve um contacto mais proximo com a populagdo negra “Lemibro-me que nés, putos, até gostévamos de ir Id experimentar. Os nossos pais no comiam. néo gostavam. a comida da lavadeira era comida abaixo de clo! Mas nos tinhamos curiosidade!™ Embora durante o periodo colonial se tenha tentado destruir a cultura africana, sendo pelo menos uma das acusagdes que os novos partidos angolanos apontavam aos portugueses, 0 que se verificou foi um fenémeno de aculturagio através do qual ambas as culturas se influenciaram mutuamente: "Qualquer coisa também thes servia para cantar, nio 6? Até a tristeza! Nos brancos da minha geragéo também a tinhamos. Havia uma grande assimilaglo da nossa parte riisica deles! (...) E qualquer coisa que me esti ci dentro! No fundo fomos criados no meio delat" Uma prova de que a cultura angolana continua viva dentro de todos os retornados, é que um dos encontros de retomados de Angola, promovido pelos Amigos do Huambo, tenta recriar esta cultura. Todos os anos, durante um fim- ~de-semana ha um acampamento, nas Caldas da Rainha, onde encontramos a Relatbrio de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (InjConformado 37 famosa muamba e um grupo musical africano que, com o seu merengue, anima todos os retornados que a ele ocorrem a procura dos velhos tempos. O Terrorismo, os Partidos Politicos e a Guerra A Guerra colonial foi durante muito tempo minimizada por todos os nossos entrevistados. Era algo que se passava no mato, longe das cidades e da qual tinham conhecimento apenas por causa do cumprimento do Servigo Militar. O convivio com a populagao negra fazia-se de forma regular ¢ sem confrontos significativos. “Pareceu-me que a guerra em Angola, aquilo que se estava 2 fazer em Angola, era uma coisa pouco significativa no aspecto de perigo, ew nunca pensei cm perigo! Toda a nado © ndo havia gente tinha obrigagdo de me conhecer ¢ cu era um bem inte ‘problema! Mas depois tive que me aperceber que ndo era bem assim!" Foi apenas com 0 terrorismo de 1961 que os colonos angolanos comegaram a tomar consciéncia da existéncia de conflitos. Se é verdade que estes acontecimentos marcaram um ponto de viragem, no sentido de uma maior integrago da populacao negra na vida econémica e social de Angola, também é verdade que esta politica de humanizagao em relaco ao negro foi um pouco tardia e por isso o terrorismo marca também o inicio de um periodo em que os incidentes entre brancos e negros se foram tornando cada vez mais comuns. Com a retirada da tropa portuguesa depois de 74 a situagdo veio a agravar-se © periodo que deveria ter funcionado como um periodo de preparagdo para a independéncia, tornou-se o mais conturbado e dificil para os colonos portugueses, Assim, a anarquia, a inseguranga e o isolamento constituem as principais caracteristicas apontadas pelos nossos entrevistados para este perfodo. Embora a maioria acreditasse ainda poder continuar em Angola apés a independéncia e chegasse mesmo a simpatizar com este ou aquele partido politico, depressa estes se revelaram uma ameaca a seguranga dos colonos: "Bom, depois entao ainda tivemos esperanga que os brancos li pudessem ficar. Mas ‘comecaram-se a complicar as coisas porque os partidos politicos, que eram mais partidos no €? (...) Portanto, de guerrilhs, se guerreavam uns aos outros e os brancos no mei pode-se dizer que foram os portugueses que fizeram as fronteiras de Angola! Inicialmente eam tribos que se guerreavam entre si, O sentimento tribal € muito forte e hoje vimes, Relatorio de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (InyConformade 58 ‘estes tltimos 20 anos o que ¢ que aconteceu? Fram as tribos, o Savimbi com a sua tribo, 05 outros do Norte com outra, os de Cabinda a quererem a libertagao e outros por ai fora!" A Independéncia A independéncia de Angola parece ter sido uma ideia que desde sempre teve uma boa aceitago junto de todos os nossos entrevistados, sobretudo entre a camada mais jovem que, como vimos, nao tinha qualquer ligagio com a Metrdpole. Mas mesmo um dos mais idosos afirma: "Eu sou e sempre fui apologista da independéncia, mas dada de outra maneira, Com ccondigdes, como aconteceu na Namibia, de modo que as pessoas I pudessem ficar, os que quisessem, com os seus bens. Os que quisessem vir embora vinham, e entdo aquilo continuava... Porque o facto de ser governado por um branco ou por um preto... a mim nfo ‘me importava nada!" Talvez por isso, outro dos nossos entrevistados chega mesmo a classificar a Guerra Colonial como uma guerra muito sui generis “O que acontecia era que eles tinham informago ¢ normalmente onde estava a tropa de li, no se passava nada. Havia quase um acordo de cavalheiros: «tw ndo me atacas € eu do te ataco'y," © que os colonos portugueses no esperavam ¢ que com a independéncia fossem praticamente expulsos de Angola. E aqui que a responsabilizagdo do Govern, pela forma precipitada como procedeu a descolonizagao, se tora uma constante nos varios discursos por nés encontrados, O Retorno O retorno a Portugal constitui sem diivida o momento mais traumitico da vida de todos os nossos entrevistados. Trata-se de uma acgaio que envolveu uma série de consequéncias negativas que, se para uns foram ultrapassadas, para outros continuam a determinar o seu modo de vida. Este momento é marcado, a partida, por um perfodo mais ou menos longo de indecisaio, o qual foi geralmente ultrapassado pela iniciativa das mulheres, De Relatério de Tnvestigagdo em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo dnjConformado 59 facto, em todos os casos que encontramos foram as mulheres que acabaram por nao resistir a pressao ¢ lideraram, de uma ou outra forma, o processo de retorno, “Ai a decisto até foi minha, eu disse ao meu marido que estava com muito medo, sobretudo por causa da Sénia que tinha um ano e tal, ¢ portanto eu achei que era melhor fds virmos. O meu marido nunca... até porque tinha-Ihe surgido uma oportunidade muito boa Ele tinha 23 anos, era muito jovem e tinha sido convidado para chefiar um sector. Era uma oportunidade dinica para ele, (..) Como ele no queria vir de jeito nenhum eu tomei esta opgilo: «eu vou tratar do voo, ficamos com tudo tratado e depois logo se vél». Foi um bbocado assim, eu acabei por o pressionar desta maneira!" Pela descrigio dos nossos entrevistados, parece ter-se gerado uma situagio de Panico colectivo e de desespero, ao qual as mulheres terao sido mais sensiveis. Este panico, nao se instalou apenas por causa da situagao de guerra, 4 qual alguns conseguiam resistir, mas deveu-se em muito A sensagdio descrita por todos eles de ver toda a gente a debandar. De facto, uma das descrigdes mais euriosas, porque comum a todos os relatos, é a do barulho que se ouvia, dia e noite, de martelos a fechar caixotes, Nao era s6 a familia e os amigos que estavam a vir embora, eram todos os vizinhos numa espécie de corrente, comandada pelo som dos martelos, Depois foi o improviso, maior ou menor consoante os casos. Se alguns conseguiram trazer alguma coisa, outros nao trouxeram rigorosamente nada, uns Porque a decisio de embarcar foi tomada em cima da hora, outros porque encararam 0 retorno como provisério. ‘Deiximos a casa mobilada com tudo, A nossa casa particular ficou com tudo, Nés 56 ‘wouxemos... tinhamos 2 figorificos, trouxemos um, tinhamos um jipe e uma carrinha, ‘trouxemos a carrinha e deixamos 0 jipe. Das mobilias ndo trouxemos nada, loigas, também Praticamente nada! Trouse algumas roupas, deixei 14 outras. Trouxe a méquina de costura Porque depois ld tinhamos facilidade em comprar outra. Portanto, nés viemos para passar ‘aqueles primeiros meses! Eu reformava-me ¢ depois nés voltavamos... S6 que depois as coisas complicaram-se!" Nao menos curiosa é a forma como este nosso entrevistado designa o local de embarque - Campo de Concentragao - indo ao encontro da descrigao feita por todas as pessoas com que contactimos: “Chegémos a Luanda e estivemos 3 dias em casa de um sobrinho, mas disseram-nos ue se no fossemos para li, para 0 campo de concentragio, no tinhamos ver para ‘embarcar para ca. Entio estivemos 14 quase uma semana, Durante esse tempo, ndo Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 60 tinhamos nada para comer, davam-nos gua para no lavarmos muma bicazita, deram-nos ‘um cobertor e umta tendits. iamos para a tenda durante a noite, de mand {amos para a tal bicazita. as pessoas faziam bicha para lavar a cara. jamos entdo para outra bicha para nos darem um bocadito de leite, de manhd ¢ a tarde um copo com uma sopa de feijdo. Ainda famos @ cidade para comprar coisas, mas nio havia nada para comprar. De vez em quando € que famos 2 casa desse meu sobrinho ou outras vezes ia Id ele levar-nos comida, mas hhouve pessoas que a primeira refeigdo que tiveram foi no avido!" Uma vez chegados a Portugal a sensag&o de angiistia é a que melhor desoreve © sentimento de todos os nossos entrevistados. A certeza de que as suas vidas iam mudar radicalmente, o desconhecimento de Portugal que muitos tinham, a incerteza ¢ as dificuldades econémicas que sabiam ter de enfrentar, associados a saudade de tudo © que deixaram em Angola, marcaram desde o primeiro momento a chegada a Portugal. Depois veio o desemprego, na maioria das vezes mais prolongado do que esperavam e especialmente dificil para a camada mais idosa, bem como a sensago de queda social. De facto, quase todos os nossos entrevistados referem que nao estavam preparados para viver as dificuldades e privagdes a que foram sujeitos, a vida que tinham em Angola era uma referéncia que no podiam esquecer e que contrastava com a sua nova situagao, dificultando. a integracdo na sociedade portuguesa. Sobretudo para a camada mais jovem, a luta pela recuperagdo econémica foi a estratégia desenvolvida para proceder a integragao, procurando afirmar-se na sociedade portuguesa com o mesmo dinamismo e espirito de iniciativa que caracterizava o espirito angolano. Para a geracéio mais idosa, parecia demasiado tarde para comegar uma vida nova, esquecendo tudo o que ficou para tras. Se alguns o conseguiram, outros encontraram grandes dificuldades e ainda hoje sofrem as consequéncias do retomno. A este propésito julgamos poder encontrar entre a camada mais jovem um sentimento que os defensores da Teoria dos Grupos de Referéncia, nomeadamente Robert Merton, designam de privagdo relativa, Esta geragao tem consciéncia que os seus pais tiveram que enfrentar uma situagao muito pior do que a sua, levando-os a considerar que tiveram até muita sorte. Visto terem conseguido alcangar uma situagiio econémica estavel, conseguiram esquecer mais facilmente o que deixaram em Angola. Se nao vejamos: "Por essa ranfo & que essa gente caiu cd numa situagio dificil! A maioria! Nos com a vVantagem, em relaglo a eles, de cairmos cd sem nada, mas sermos muito jovens, ainda ‘com muito espirito de aventura e ainda com muitos anos para viver ¢ para recuperar a vida, ndo ? Por isso é que alguns deles... se vocé for a ver e falar com a minha mic ou Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 61 ‘com amigos da minha mie que estdo cd, ainda hoje so muito saudosistas, percebe? Tem tum lado deles muito saudosista, em fungo do que tinham la! Ainda hoje eles estio muito ‘mais marcados e ressentidos do que nés por esse passado que, no fundo, thes foi cortado!” Leiria Quanto as razées que levaram os nossos entrevistados a vir para Leiria sio algo diversificadas, mas a maioria acaba por se assumir como um retorno as origens. Na verdade, apenas um dos entrevistados regressou a terra de onde partiu para Angola, residindo alias na casa que entio abandonou. No entanto, outra veio para Leiria porque era a terra onde tinha a sua avé e outra porque era onde estavam as raizes do seu marido. ‘Nao obstante, a centralidade de Leiria também teve um peso significativo na tomada de decis4o. Se apenas um dos entrevistados veio para Leiria casualmente, porque foi o lugar onde a mulher conseguiu colocagao como professora do ensino primario, a oportunidade de emprego constituiu para todos os outros um factor de ponderacdo. Alias, a importéncia deste factor é bem demonstrada por uma das nossas entrevistadas que s6 ao fim de 20 anos considera ter conseguido alguma identidade com a cidade: Houve alturas em que cheguei a pensar muito seriamente: «Agora que sai da minha terva, estar aqui ou acold... A terra para onde eu for viver & aquela que me der melhores condigdes de vidal». Agora jé ndo, agora jé tenho uma relago afectiva com isto, com a terra e com as pessoas. Mas durante muito tempo ndo tinha esta relagio afectiva e se me ssurgisse a oportunidade de ir trabalhar para outro sitio, com melhores condigdes, tinha partido sem qualquer problema!" As Ajudas Institucionais Todos os nossos entrevistados revelaram manter uma afastamento consideravel em relagdo a todas as instituigdes e associagdes que concediam apoio aos retornados. Tirando alguma ajuda minima, em cobertores e agasalhos que a maioria confessa ter recebido, apenas um, dos mais idosos, recebeu durante algum tempo um subsidio do LARN enquanto esteve desempregado. Quanto aos outros, afirmam nao ter conhecimento deste tipo de iniciativas, ou nao saber como chegar a elas, Além disso, todos eles consideram que a distribuicao destes apoios era desigual e insinuam que a atribuigdo era injusta, Relatério de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado a que favorecia apenas aqueles que tinham ligagées familiares ou de amizade com 0s responsaveis por estas associagdes. Sublinham ainda o caracter tardio deste tipo de ajudas, nomeadamente a do Quadro Geral de Adidos, que contrastava com o caracter urgente de que os problemas financeiros se revestiam. Em todo o caso, séo os mais idosos aqueles que se consideram abandonados injustigados por este tipo de iniciativas. Quanto aos mais jovens, foram eles proprios que optaram por se manter afastados destas instituigdes, considerando nfo set a forma mais adequada de resolver a sua situagdo, ainda que a mais imediata. " creio que o resultado também ndo foi feliz, porque ao que me é dado saber, muita dessa gente ndo foi feliz! Foram-se arrastando nos hoiéis, criaram aquele espirito de ‘mordomia e acabaram por se atrasar a construir uma vida e a arranjar emprego.” A Familia Contrariando as nossas expectativas iniciais, a maioria dos retornados também no parece ter encontrado um apoio significativo por parte da familia residente em Portugal. Mesmo duas das entrevistadas que reconhecem ter recebido por parte desta um grande apoio e encontrado uma grande solidariedade, reconhecem que a grande maioria nao teve a mesma sorte. De facto, 0 abandono por parte da familia’ parece ter sido a situagdo mais encontrada pelos retornados do ultramar, situago que ainda hoje marca a relagiio que tém com ela e que € de um grande -afastamento. A grande maioria das familias parece ter temido ter que suportar os encargos da situagao desfavoravel em que se encontravam estes seus familiares, preferindo afastar-se antes que lhes fosse pedido auxilio, Nos casos em que este pedido aconteceu, parece ter sido concedido, geralmente sob a forma de acolhimento, mas segundo os nossos entrevistados de uma forma um pouco forgada, o que os Ievou a afastar-se assim que uma pequena melhoria o permitiu. Esta situagao é tanto mais paradoxa quanto, segundo referiu um dos nossos entrevistados, Ihes era perguntado & saida do aeroporto se tinham familia em Portugal, sendo esta resposta um factor decisivo para 0 seu encaminhamento, ou nao, para estratégias de acolhimento e reintegragdo institucionais, No caso de haver familia, teria que ser esta a suportar o encargo, 0 que nio foi bem aceite pela maioria das familias. Relatério de Tnvestigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 63 Quanto 4 familia também vinda do ultramar, aqui sim encontramos uma relagao de alianga muito forte, a qual se manifesta néo s6 na entreajuda, mas também na escolha do seu seio como local privilegiado de refigio entre iguais. "Pronto, a gente antigamente juntava-se muito com a familia, mais do que agora iamos muito a Lisboa, conversévamos com o meu cunhado e de vez em quando conseguiamos uns videozinhos e uma coisas de li ¢ a gente Id se punha todos saudasistas a recordar coisas de 1a” Os Retornados Esta relagao de alianga estende-se alias a todos os retornados, desenvolvendo uma forte aproximagao ¢ identidade entre todas as pessoas que estiveram em Africa. De certa forma, a familia, 0 grupo restrito de amigos retornados ou as associagdes mais formais, constituem os dnicos lugares onde as lembrangas de Angola podem ser livremente vividas, sobretudo se atendermos ao clima de hostilidade que entdo se gerou por parte dos residentes. Mesmo aqueles que nao se conheceram la, tendem a conhecer-se e a tornar-se amigos apés 0 retomo. Tal parece dever-se ao facto de haver uma vivéncia comum e portanto de falarem das mesmas coisas e compartilharem os mesmos sentimentos e linguagem, mas também a um sentimento de solidariedade, acompanhado de um certo orgulho, bem presente nas palavras deste nosso entrevistado: “Todos aqueles que viémos de Angola, de uma maneira geral, no esto bem na vida..., ‘mas também no passam fome, Provaram aos que cé estavam que € preciso ter muita forga, mas que nés, com muita forga, vencemos! Sinte muito orgulho, todos nés!" Quanto as pessoas com quem conviveram em Angola, e passado aquele momento inicial em que no se sabia o paradeiro de praticamente ninguém, a maioria nao perdeu o contacto, Para isso contribuiram em grande medida os diversos encontros de retornados que se realizam por todo o pais e que, dada a imensidao de Angola, t8m geralmente um cardcter regional. A pouco e pouco a realizagdo destes convivios anuais foi-se divulgando e a lista de presengas foi-se completando até se conseguir uma reconstituigo quase completa de cada uma destas regides, Durante estes encontros € o espirito e a cultura angolana, por vezes recalcado, que se reanima, juntamente com o prazer de novos reencontros que sempre Relatorio de Investigaeio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1956 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 64 acontecem. De facto, os primeiros anos foram os que mais marcaram os nossos entrevistados, pois foram aqueles onde os reencontros eram quase constantes. Hoje, ja nem todas as pessoas aparecem, até porque, uma vez descobertos os paradeiros, foram-se diversificando as formas de reencontro, mas hé ainda quem nao falte nunca a este convivio anual e ha mesmo pessoas que, tendo permanecido em Angola ou residindo noutros paises, aproveitam estas ocasides para vir a Portugal e rever velhas amizades. Os Residentes Como ja foi referido, o tipo de relag#o mais comum que encontramos entre retomados ¢ residentes, aquando da sua chegada a Portugal, é 0 de uma certa hostilidade. Na verdade, todos os nossos entrevistados se queixam de uma certa incompreensdo por parte dos residentes « mesmo de terem sido estigmatizados por estes. Esta ideia de estigma, ja desenvolvida na nossa abordagem teérica, € comprovada pelo sentido depreciativo que o proprio termo retornado carregou durante alguns anos e que sé agora parece ter perdido. Segundo os nossos entrevistados, os residentes receavam que a avalanche de pessoas vindas do ultramar pusesse em perigo os seus empregos, ndo compreendendo que eles eram afinal portugueses ¢ que enquanto tal deviam ser tratados em condigdes de igualdade. De facto, 0 retornado parece ter sido eleito como bode expiatério da situagao econémica desfavoravel em que Portugal se encontrava. Nao sé vinha aumentar a densidade populacional do pais ¢ complicar a sua situago econémica e social, ‘como aparentemente ndo tinham qualquer contributo a dar-Ihe, dada a situagao desfavoravel em que se encontravam. Pelo contrario, precisavam do apoio estatal para se reintegrarem na sociedade portuguesa, o que nem sempre foi bem aceite. Por isso parece ter-se desenvolvido uma campanha de deteorizagao do termo Tetornado, através da qual a acusagao de exploragdo do negro, de enriquecimento facil e de oportunismo se tornaram as ideias mais generalizadas. A reacedo mais comum a esta hostilidade mais ou menos generalizada parece ter sido a de um certo retraimento. Segundo a maioria dos nossos entrevistados, as relagdes que mantiveram com a populagdo residente foram inicialmente marcadas por uma tenso que se traduziu algumas vezes no nio referir que tinham vindo de Africa, se tal nao lhes fosse perguntado directamente, outras vezes no siléncio relativamente a questdes relacionadas com Africa ou os retornados. Por isso, optavam na maioria das vezes por nao se envolver em Relatério de Investigagdo em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformada 65 discussdes que consideravam intteis, ignorando alguns comentarios ou eriticas mais ou menos indirectas. Foi o caso desta nossa entrevistada: “Ainda tive assim um ou outro problemazito (com uma colega) de me sentir magoada Por dentro! Sobretudo uma vez feve assim uma expressio, mesmo a atacar forte ¢ feio ¢ fesqueceu-se que eu também era, também tinha 0 estigma, mas como eu néo me servia a carapuga! No finde, por dentro talvex isso me tenha feito impressto, mas nunca me manifestei!™ Passados 20 anos esta tensio parece ter sido ultrapassada, tendo-se verificado uma aproximagao entre retomnados e residentes, a qual resulta fundamentalmente da sua integragdo econdmica. De facto, todos eles referem manter relagoes de amizade com @ populagdo residente, uma aproximagao que se foi verificando Pouco a pouco, mas que é hoje uma realidade. “Tamibém nfo sou, nem como as pessoas de cé em relaglo aos que vieram de ld wo que ‘ver de fora no prestalm, nem como muitos de nés «a gente de cé no prestal» e ponto final. Mete-se um rétulo ¢ a partir daf ndo hé nada a fazer. Eu nfo sou nada disso, acho ‘que aqui existe gente boa ¢ gente mé, como existia la, E evidente que as memtalidades so diferentes a virios niveis, mas acho que é perfeitamente possivelestabelecer-se relagdes € foi isso que fiz. Tenho amigos aqui de quem gosto muito! Pode haver as vezes Panicularidades que ndo tém muito a ver comigo, mas pronto... ninguém é perfeitol” Com isto 0 termo retomado perdeu para a maioria dos nossos entrevistados 0 Peso negativo que carregava, passando a ser encarado como um rotulo que lembra 2 sua passagem por Angola. Neste sentido, o termo retomado € até encarado com algum orgulho, desde logo por considerarem que a estadia em Angola foi uma experiéncia que os enriqueceu, mas também porque se orgulham de ter ultrapassado as dificuldades com que se depararam logo apés o retomno O Espirito Portugués Como ja foi referido, 0 espirito portugués surge geralmente como wm contraponto ao espirito angolano, sendo na maioria das vezes utilizado como tuma forma de criticar 05 residentes. Mais do que isso, serve quase sempre para explicar a rejeigdo que sentiram aquando da sua chegada a Portugal. Neste sentido, o espirito portugues é caracterizado: pela falta de abertura, pedantismo, hipocrisia, desconfianga, conservadorismo ¢ forte descriminac&o social Relaténio de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 7 66 Uma vez atenuada a situagao de hostilidade entre residentes e retornados, 0 espirito portugués, usado em tom de critica, parece ter sido 0 que ficou desta situagdo de tensdo. Na verdade, parece tratar-se de uma critica que funciona, ja no como um factor de conflito, mas como um paliativo, como quem diz: «eles nao tém a culpa, o espirito portugués é mesmo assim!y. Isto é tanto mais curioso quanto, com a progressiva integrago na sociedade portuguesa, alguns entrevistados chegam mesmo a inserir-se neste mesmo espirito: "Nés somos um pais pequeno, pensamos muito pequeno, os nossos horizontes sio muito pequenos a todos os niveis. Talvez por isso a gente receie tanto 0 que vem de fora ‘ede que forma ¢ que vem de fora, Nao nos vdo estragar o nosso cantinho!" A Integracio Relativamente 4 efectiva integragdo na sociedade portuguesa, os nossos entrevistados so undnimes em considerd-la positiva. De facto, 0 problema do Tetorno, subjectivamente considerado, ¢ visto como ultrapassado. Hoje sentem-se 1&0 portugueses como todos os outros e a maioria considera ter reconquistado o seu estatuto econdmico e social, ‘Nao obstante, parece-nos que a questo do retomo é encarada por todos os nossos entrevistados como uma questo quase exclusivamente financeira, Salvo Os casos em que a instabilidade profissional continua a ser uma realidade, os nossos entrevistados conseguiram recuperar 0 seu percurso de mobilidade social ascendente e por isso consideram-se integrados na sociedade portuguesa Contudo, se atendermos 4 integragdo cultural, que ¢ afinal de contas a que mais nos interessa, verificamos que continuam a existir algumas clivagens entre os retornados e os restantes portugueses. Neste sentido, a valorizagdo do espirito angolano em detrimento do espirito portugués, questo jé por nds abordada, revela uma estratégia de auto-exclusio simultaneamente de preservag&o da identidade de retornado. Da mesma forma, encontramos ao longo do discurso dos nossos entrevistados frequentes oposigdes entre o "nds" ¢ o "eles" que vém reforgar esta ideia, embora haja inimeras contradigdes a este respeito. De facto, e como vimos, os nossos entrevistados ora se incluem ora se excluem do espirito e modo de vida portugueses, revelando aquilo que podemos considerar uma identidade ou pertenga dupla. Parece-nos entdo mais plausivel falar de assimilagiio, em vez de integragao, na medida em que revela uma estratégia que envolve um processo de recaleamento e Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (in)Conformado or ¢ de adaptagao forgada, alids reconhecida por uma das nossas entrevistadas, e que nem sempre consegue ser mantida: "No conjunto, eu estou integrada! (..) E que eu também mudei, em determinades aspecios eu reconheso que para pior! De determinado ponto de vista, fazendo uma autocritica, eu penso que eu era melhor do que aquilo que sou. Fiz uma assimilago que, ‘em certa medida foi negativa! Assimilei uma série de coisas que en reconhego que milo precisava delas, nfo me faziam falta nenhuma, antes pelo contrério! No fundo, foi uma adaptagdo forgada!" Relatério de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (in)Conformado 68 IV - O Caso Mocambicano A fim de procedermos posteriormente a uma anélise comparativa, analisaremos agora as biografias referentes ao caso mogambicano, cuja andlise de conteiido nos aparece no anexo V. A Partida A partida de Portugal para Mogambique é uma das accdes sociais mencionadas pelos nossos entrevistados. Ela significa a partida para o desconhecido, para uma nova realidade que eles no conhecem. E o deixar a casa, a familia, a aldeia onde tém as suas relagdes € posigdes sociais ja estabelecidas e ir para uma nova realidade que eles ouvem que é melhor do que a sua, mas que nunca a viram. A angiistia ¢ um sentimento presente neste momento da vida dos nossos entrevistados. Anténio € o entrevistado que refere mais este aspecto, contudo convém referir que esta angistia, este medo de partir, esta relacionado com o facto de ter apenas dezoito anos e de partir sozinho, O ser-se crianga ou jovem tem aqui um peso importante no tipo de relag&o que estes individuos estabelecem com o momento da partida. bbarco come;ou a ir a0 largo, ouvia-se aqueles apitos caracteristicos dos grandes transatlanticos - era 0 navio Patria - e claro, foi-se afastando até eu deixar de ver as pessoas, ‘Vieme entao sozinho num barco muito grande cheio de gente, Entdo fugi para um sitio isolado que era a chaminé do navio, muito grande e muito larga. Ai encostei-me e chorei, chorei, cchorei. E 0s primeiros tempos, os primeiros oito ou dez dias de viagem nflo fazia outra coisa se 1p chorar”. A par com o medo, coexistia o gosto pela aventura e 0 desejo de se Teencontrarem com os irmaos, com o marido ou com o pai que ja lé estavam, Todos 08 nossos entrevistados, 4 excepgdo da Anténia que nasceu em Mogambique, foram para Africa ter com algum familiar. Verifica-se assim o forte peso que as migragdes do tipo familiar tiveram no processo da colonizagéo africana nas décadas de quarenta e de cinquenta. Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Idenridades de Um Grupo (in)Conformado os) A Viagem A viagem de barco para Mogambique marca o inicio de uma nova etapa, Tanto Carla, como Anténio ou Filomena referem-se a viagem como um momento inesquecivel das suas vidas. Durante cerca de um més, 08 nossos entrevistados navegaram em direccao a Mogambique. O contacto com novas terras como, a ilha da Madeira, 0 Lobito em Angola ou a Cidade do Cabo na Africa do Sul, dava-lhes a nogao que uma nova etapa comecava na sua vida. Em lugar da angustia e do medo sentidos no momento da partida, vem ao de cima a curiosidade e o fascinio por tudo aquilo que de novo e diferente conhecem. “Foi uma coisa deslumbrante para mim! Porque duma aldeia 1é do interior da provincia onde eu ndo conhecia o mar fui para um lugar completamente diferente. (...) A viagem foi maravilliosa e deslumbrante” O Feitico Africano Para os nossos entrevistados este é um dos actores sociais com o qual mantém uma forte relagao de fascinio, amor e saudade. As referéncias a Africa sfio narradas com uma emogao impressionante. Apesar dos vinte anos que passaram, as suas ligagdes com aquele continente continuam muito fortes. Na verdade, no podemos deixar de observer 0s objectos de pau preto ou de marfim que os nossos entrevistados espdem em suas casas como troféus da sua passagem por Africa. "Tudo me parecia uma fantasia © um sono, jé que a palavra Arica exercia em ‘mim uma certa magia. Pois desde pequena me habituei a ela e a sermos destinguidos na aldsia porque tinhames um pai gue vivia em Africa. (.) Africa, Aftica fica no nosso corago. Nao sei por qué!? E como alguém disse, parece que tem feito. Porque Africa ficou no coragdo, nio se consegue esquecer* Apesar da estranheza sentida no momento da chegada, ja que tudo era tao diferente do que tinham visto até ali, depressa os nossos entrevistados se deixam seduzir pela beleza da paisagem africana. Chegam mesmo a referir o facto de se terem apaixonado imediatamente por Africa. Ao longo das narrativas biograficas, as Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retomadios: Identidades de Um Grupo (ln)Conformado = 70 referéncias & beleza da paisagem africana ¢ uma constante. Vejamos apenas uma destas alusdes: “O que era mais maravilhoso no Garuzo era que parecia que estavamos no paraiso. As vezes estava sentada na minha varanda numa cadeira de lona, e a0 fundo havia um lago ‘onde via os flamingos pescar. Era maravilhoso! Do outro lado tinha uma grande cordetheira onde na serra principal corria uma nascente - Era essa a agua que nds bebiamos. Ali faziamos piqueniques ¢ apanhavamos orquideas, orquideas que nasciam maturalmente Parecia um jardim de Eden . uma coisa linda, linda, linda!” Contudo, convém aqui refirir que a adaptagdo a Africa nao foi isenta de dificuldades, Para Carla, por exemplo, que nasceu numa aldeia da Beira Alta e foi para a selva mogambicana acompanhar a construgo do caminho-de-ferro que 0 seu pai orientava, deparou-se com o isolamento e com um conjunto de dificuldades prdprias de quem habita essas zonas. “Nao tinha criangas com quem brincar, ndo tinka escola, néo tinha nada. (..) Era uma zona exiremamente dificil porque para além daquele bicharada toda, era a zona da mosca de tsé-tsé, Chamavam 0 "Inferno de Africa" dquela zona entre Beira ¢ Tete. Era uma zona muiio quente, muito quente, onde ni se via uma verdura para além das drvores. Se se -semeasse alguma coisa 0 sol queimava tudo, mesmo que fossem regadas. (..) Fomos mesmo para 0 interior onde havia lugares em que a selva era io profunda, fo profunda que ndo se via 0 sol. (..) Rara era a noite em que ndo ouvissemos os animais mais ferozes a rondar a nossa cabana; Como era 0 caso do ledo, do leopardo ¢ da hicna que muitas vezes ia & capoeira roubar galinhas" Mocambique - A Terra Prometida Na verdade, Mogambique ocupa um lugar central nos discursos de todos os nossos entrevistados. E curioso verificar que todos eles, ao construirem a sua biografia, dispensam muito mais tempo e centram principalmente as suas descrigdes naquilo que de bom viveram em Mosambique. Porém, ao entrarmos no tema do retorno, rapidamente os nossos entrevistados relatam esse percurso biografico referem-se a aspectos menos positivos das suas vidas. A imagem que nos € descrita ¢ Relatério de Investigagdo em Sociologia da Cultura "FEU, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In}Conformada n ade que, realmente Mogambique ¢ um pais tinico no mundo e desde logo destacam a sua riqueza natural, “Mozambique & um pais rico, a procugio de milho era muito grande, a produgio de algodo era muito grande, a produgio do agicar & conhecido, era muito grande! A produgdo do ché, toda a gente conhece 0 que era a producto do cha no Gurué. A nossa costa era cextensissima, era riquissima em peixe, Havia pedras preciosas, havia ouro, havia estanho, portanto era um pais em muitos aspectos rico" Para além desta riqueza natural, Mogambique € descrito como um pais onde a ascengio econémica ¢ social eram facilmente alcangadas. Ainda que nem todos tenham ido para Ié com o principal objectivo de enriquecer, mas simplesmente para ir cumprir o servigo militar como fez Anténio ou para ir ter com o marido como fez Filomena, 0 certo € que 0 nivel de vida rapidamente se modificou. As dificuldades econémicas que eram sentidas em Portugal nas décadas de trinta e quarenta depressa deixaram de preocupar esta populagdo que foi para Africa uma vez que 14 encontraram uma vida melhor do que a que tinham tido. "Mas como eu tinha tido uma vida pior e estava numa vida boa, livre e simples niio pensava na vida que tinha levado porque aquela é que era a boa, Tinka um bom carro, tinha todas as comodidades, tinhe dinheiro para tudo. (..) Passados trés anos de ld estar comprei ogo um carro; Um carro jeitoso” Para além da ascengao econdmica, também é referido a proximidade existente entre as diferentes classes sociais. Na verdade, viviam numa sociedade onde a mobilidade social ascendente era notéria. “Porque naquela terra africana havia facctas muito interessantes. E uma que se passou comigo por exemplo, ¢ que eu um dia passo pelo Hotel Embaixador,(..). estava a beber 0 whisky e depois olho para trés e estava o Dr. Andrade e Silva que era o meu médico (.) € estava li 0 Sr. Antonio Champalimaud que era 0 dono do Banco Pinto ¢ Sottomayor € que agora & novamente, e dos cimentos.(..) Eu aqui nunca terei o privilégio de entrar num bar onde esteja o Sr. Antonio Champalimaud. E la havia esse privilégio, ndo havia problemas de especie nenhuma.(..) Eu passava na rua, fa no passeio e eu fa para lée vinha para cé o Sr. Eng, Jorge Jardim que era dono de meia Beira, Ele de balalaica e eu também de balalaica, Eramos homens iguais, ele passava, eu passava, eu no 0 cumprimentava ¢ ele RelatGrio de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Seiembro de 1996 Retornados: Identtdades de Um Grupa (in)Conformado também no me cumprimentava a mim, pronto, E eu era uma simples pessoa c ele era um homem grande (...) mas isso a mim no me importava nada, ndo me importava nada’. Talvez por toda esta vida favoravel, por toda a identificagdo que sentiam com © pais € com os seus habitantes, é visivel o orgulho com que todos os entrevistados falam da sua passagem por Mogambique. “E eu costumo dizer que é um grande privilégio eu ter vivido a vida que vivi. Ter saido de Portugal e ter ido para outras terras que ndo conhecia, outra vivéncia, outros conhecimentos. Mas... isso ninguém me tira, ninguém me tira 0 ter este privilégio de estar vinte ¢ dois anos fora de Portugal com outras vidas, outras maneiras de viver diferentes, onde ful feliz.” Por oposigao @ vida em Portugal, todos os nossos informantes referem-se ao espirito aberto e descontraido que se vivia em Mogambique “La 0 povo era mais aberto, Eu estava habituada a outro meio onde eu podia estar com uma bata € de chinelos, ir 20 supermercado ou & peixaris e ninguém olhava para isso, Nao tinhamos esse preconceito.” Por outro lado, uma das principais marcas que Mogambique deixou nos que nela viveram, foi o seu ambiente multiracial onde se estabeleciam contactos com diferentes tipos de ragas e de religides. S40 muitos os exemplos referidos dessa vivéncia e dessa construgo de amizades com pessoas de ragas ou religides diferentes. Para estes individuos, toda esta vivéncia ensinou-os a respeitar as diferengas e a aceitar com mais naturalidade 0 que de novo surge na sociedade portuguesa "Tivemos que nos confrontar com outras culturas, tivemos que assimilar um bocadinho de todos mantendo a nossa posieo, Porque eu tinka amigas que eram holandesas, ‘lems, inglesas, portuguesas, indianas, goesas, sei ld... mauricianas, Pronto, no nosso dia- a-dia conviviamos com muitas pessoas diferentes © aprendemos a saber respeitar as diferentes culturas ¢ diferentes ideias" Apesar de toda esta convivéncia racial, notemos que segundo 0 que Anténio nos relata, a convivéncia estabelecia-se mais a nivel comercial do que social. O Relatério de Tnvestigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1956 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado B conhecimento das diferentes ragas e religides era inevitavel, contudo verificamos que cada grupo manteve ¢ cultivou os seus proprios habitos. Sendo assim, a influéncia de outros povos ¢ de outros habitos sobre os retornados, ocorreu principalmente de uma forma indirecta via comercial, e nao tanto de uma forma directa via amizade. “Havia sempre uma separagio, eles fechavam-se entre eles; O clube chinés era s6 frequentado por chineses, 0 portugués no entrava. O inglés era a mesma coisa, Com 0 indiano era praticamente a mesma coisa embora no impedissem a entrada do portugués, Mas era talvez devido a0 sistema politico que existia, devido talvez a0 racismo eles fechavam-se neles proprios. S6 durante o dia é que o comerciante chinés ou o comerciante indiano tinha contacto com o comerciante portugués", Um outro tipo de relagao que estes retornados estabelecem com Mogambique, € 0 sentimento de saudade. Este sentimento surge de um modo muito marcado em todas as narrativas biogréficas. E o recordar de amigos que deixaram sem se despedirem, ¢ a saudade da casa onde criaram os seus filhos a qual fecharam sem nunca mais poder ld regressar, é a saudade dos melhores anos das suas vidas, enfim é a saudade do passado que eles sabem que nunca mais se repetira “Vivi 14 vinte e dois anos da minha vida e... ndo sei... toda aquela vivéncia toda aquela gente.. Todos os dias penso muito neles, sobretudo nas épocas festivas vém-me & memoria de forma muito viva. As vezes quero até esquecer...N3O sei, talvez porque tenham sido os methores anos da minha via, no €? Lembro-me de tdo com muita forga, muita forgal Estd tudo muito forte, muito presente © muito vivo.(.. Eu adorava aquele pais, aquelas pessoas” Para todos os entrevistados, com a excepgfo de Anténio que nao pensa mais voltar a Mogambique, todos eles transmitem o profundo desejo de um dia regressar e voltar a pisar a terra mogambicana com a qual cles mantém uma forte relagdo de fascinio e amor. Contudo, nao deixam de referir que o Mogambique que possivelmente irdo encontrar sera diferente do Mogambique que eles deixaram Nao poderiamos deixar de assinalar 0 facto de que ao longo das varias entrevistas por nés acompanhadas, os nossos entrevistados assumiram de tal forma o seu papel de guardas da verdade que, o nivel de cumplicidade estabelecido entre 0 entrevistador 0 entrevistado foi crescendo progressivamente. Por algumas vezes Relatorio de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado m assistimos mesmo ao contar da estéria com lagrimas nos olhos dos nossos entrevistados. A Vida Inglesada Todos os nossos entrevistados, inclusivé os da segunda geragio, como teremos oportunidade de analisar, referem a influéncia que os paises de lingua inglesa com os quais faziam fronteira e que os ingleses com os quais dividiam 0 mesmo pais exercia sobre eles. Este aspecto ¢ muitas vezes descrito como sendo algo enobrecedor para todos os que estiveram em Mogambique. Como também teremos oportunidade de analisar de uma forma mais detalhada, uma das principais causas pelas quais os retormados mogambicanos se acham diferentes dos retornados angolanos, deve-se a esta influéncia inglesa que lhes ensinou a abordar a vida de um modo diferente, "Mas ndio era por peneiras, cra simplesmente pelo sistema de vida que nds tinhamos que, € 0 inglés. Porque a nossa fronteira juntava-se com a Africa do Sul c com a antiga Rodésia do Sul onde a gente aprendia talvez mais... .O sistema inglés tem outra maneira de ‘estar na vida; Boa, ¢ eles ndo tinham, Notava-se a diferenga que existia entre uma pessoa que estivesse em Mogambique e outra que estivesse em Angola, Era completamente diferente De facto todos eles viveram em zonas directamente influénciadas pela presenga inglesa. Tanto Antonia, Carla como Antonio, viveram na cidade da Beira que fazia parte da Companhia de Mogambique. Esta era uma empresa privada inglesa que tinha alugado ao governo portugués a administragao de uma parte da colénia por cinquenta anos. Mesmo ao nivel dos empregos, as posigdes principais eram guardadas para os que dominassem a lingua inglesa. Assim sendo, este facto dificultava a vida dos que s6 falassem o portugués. Também Filomena foi viver para uma zona fortemente influenciada pelos ingleses: o Luabo, O Luabo era a zona onde estava instalada a Senna Sugar que era uma propriedade privada inglesa de exploragio de cana de agticar onde as mais pequenas regras de funcionamento eram exclusivamente inglesas. Mesmo ao nivel do lazer e do forte clubismo existente, dos tipos de desportos € jogos por eles praticados, verifica-se a vida inglesada a que os nossos entrevistados tanto se socorrem para marcarem a sua diferenga, Relatério de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado “*Faziamos chas de canasira, tinhiamos campeonatos de Bridge. Os homens faziam campeonatos de ping-pong. de ténis, de golf, de futebol. Tinhamos uma convivéncia muito grande uns com 05 outros.Contavam-se anedotas, outros improvisavam um teatro, outros Jogavam, outros conversavam. Ficavamos assim até és duas ou trés da manh& nos fins de semana, Também faziamos muitos jantares ¢ recebiamos vinte ou vinte e cinco casais em casa, Haviam também 0s Sun Downers, os Garden Party...) Os homens usavam muito o smoking, preto ou branco, ¢ as senhoras geralmente usavam um vestide comprido; As vezes até eram coisas muito simples, mas pronto, era um vestide comprido, era um penteada diferente que se fazia, era um toque diferente”, E curioso verificar que, apesar do peso da presenga inglesa sobre 0 modo de vida dos portugueses residentes em Mogambique, ela ni deixa de ser ao mesmo tempo uma influéncia indirecta, Esta particularidade deve-se ao facto da comunidade inglesa fazer uma vida & parte das outras comunidades. "Eu aprecio muito os ingleses em muilas coisas, mas nesse aspecto eles sempre foram: orgulhosos, altaneiros, altivos, sempre senhores superiores, Os inglescs sempre fizeram uma comunidade a parte, Talvez até pela lingua eles ndo se entendiam, porque 0s ingleses nifo aprendem linguas, isso & proprio deles.(..) Os ingleses tinham o clube deles, fera_um clube praticamente s6 inglés. Eles fundaram porque © povo inglés € muito esportista, tinha 1d © seu barzinho, faziam ld as suas festas, jogavam 0 seu ténis, 0 set futebol. (...) Levaram os seus habitos europeus para Id, até na sua forma de vestir”. O Trabalho O sucesso © a ripida ascengao social que os empregos em Mogambique proporcionavam, so um dado adquirido. Anténio, por exemplo, refere 0 facto de ter comprado um automével novo passado trés anos de chegar a Mocambique e salienta que nessa altura circulavam um nimero reduzido de automéveis em Lisboa. Isto s6 foi possivel porque as remuneragdes praticadas em Mogambique eram muito mais elevadas do que as praticadas na metrépole. Antonio refere mesmo o facto do seu irmao mais velho ter chegado a ser remunerado com libras em ouro. Perante este quadro de uma vida economicamente favoravel, tudo colaborava para que os portugueses que residiam em Mogambique néo quisessem voltar para Portugal nem Relatorio de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retormados: Identidades de Un Grupo (In)Conformado 6 mandassem poupangas para cé, mas antes preferissem adoptar Mogambique como a sua verdadeira terra. “Quando 1 cheguei, em 1957, tinha o meu marido recebido de bonus de produgio quatro seiscentos escudos", A par deste sucesso profissional, os nossos entrevistado referem as dificuldades e os sacrificios passados para que pudessem ter sido profissionalmente bem sucedidos. A coragem ¢ o espirito de luta so alguns requisitos que estes individuos tiveram de demontrar ao longo dos seus percursos profissionais. "Quando ia para 0 norte vender, fa naqueles barcos costeiros mas os barcos nio atracavam porque nao havia porto para atracar. E havia alturas que havia tempestades, e nds para sairmos do barco ¢ para irmos para 0 gasolina tinkamos que nos agarrar ds cordas, sempre a agarrar com muita forga para no cairmos, Quer dizer... com grandes sacrificios, as pessoas ndo sabem o sacrificio que uma pessoa fez.... Mas sempre de boa vontade. Passei muitos perigos, muitos perigis, muitos perigas. Mesmo em 1968, jé estava estabelecido, jé havia 2 guerra em Mogambique. E eu ia para zonas de terroristas, zonas perigosas, e ia com ‘um Land Rover na mio ¢ ndo tinha medo. Sempre a pensar no que pudesse acontecer: ser interceptado, ou existir uma mina, mas nunca deixava de ir porque eu tinha de ir!" © avango tecnolégico e 0 espirito de iniciativa vividos ao nivel do trabalho sdo outro aspecto largamente referidos. E todo um ambiente de desenvolvimento ¢ progresso que existia em Mogambique e que faltava na metropéle. E interessante verificar que, basicamente os nossos entrevistados fizeram a sua integragao através do seu espirito de iniciativa e dinamismo ao nivel do trabalho. Para estes, o principal trunfo para o éxito da sua integrago foi o trabalho, O Negro Mocambicano A relagao entre os colonos portugueses e os negros é uma relacdo complexa e muitas vezes dificil de perceber 0 verdadeiro sentimento que nortea a interacgdio entre brancos ¢ negros. Se por um lado todos referem o bom convivio e as grandes Relatorio de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 7 amizades estabelecidas com a populaedo negra, por outro lado aceitam viver debaixo de um sistema racista onde a cor da pele faz a diferenga. Lembremos que existe uma grande diferenga entre o racismo em Angola e em Mogambique. Todos os nossos entrevistados viveram numa sociedade fortemente racista onde a influéncia via Africa do Sul era notéria. Ao negro eram concedidos os lugares de criados tratando os seus superiores por patrdo ou senhor. Um negro ¢ um branco nunca passavam no mesmo passeio pois o primeiro desviava-se para dar a assagem ao patrdo, Mesmo com todas estas praticas, verificamos a relutincia por parte dos nossos entrevistados em falar-se sobre a exploragdo da raga negra. “Quem diz assim é porque nunca esteve ld é porque nunca viveu em contacto com 0 negro ¢ munca percebeu 0 que era 0 relacionamento do branco com 0 negro. (...) Portanto, dizer que escravizavamos 0 negro isso ¢ absoluta mentira, Se havia algum caso de exploragdo, era pontual”, Para este grupo de retomnados, a sua posigo de superioridade nao era voluntaria, era antes o fruto de um sistema estabelecido ha varios séculos sobre 0 qual nao exerciam qualquer forma de influéncia. "Se houve muita injustga, foi devido ao sistema existente em que a raga é que fazia 4 distineZo, Portanto, mesmo nos loceis de trabalho havia descriminagdo, Se era preto tinha um ordenado, se era branco tinha outro; Isto na mesma fungi, Nisso eu estava contra; Se ele exercia bem a sua fungdo, se sabia ocupar o seu lugar, nfo tinha nada que ser descriminado pelo branco” Na verdade, todos eles concordavam com a independéncia do pais. “Para nés termos um Presidente da Repiblica preto ou branco era exactamente a mesma coisa. O que nés queriamos era viver naquele pais Os registos de amizade do branco pelo negro sio notérios. Todos relatam experiéncias de profunda amizade com a populagdo negra a qual consideravam como sendo sua familia. Até mesmo a cultura africana ¢ alvo de comentarios respeitadores @ apreciativos. Outro aspecto diferenciador entre o negro mogambicano ¢ o negro angolano é a separagdo das actividades domésticas entre mulheres ¢ homens. Relatério de Investigagdo em Sociologia da Cultura Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado B "O que € mais engragado, e que em Mocambique era diferente de Angola, & que a mulher ndo se dedicava ao servigo doméstico, E em vez de ser o homem a cultivar a terra era ‘a mulher. Isto porque parece que associavam o facto das mulheres gerarem os fillios, com a terra que também gerava os alimentos. Assim, elas cultivavam a terra sempre com as suas ciangas presas as suas costas, ¢ cles trabalhavam na casa dos seus semhores como ‘empregados domésticos" Sem pretendermos antecipar a andlise a desenvolver nos préximos capitulos, Pensamos ser importante sublinhar que, os entrevistados falam consoante os auditérios, Assim sendo, temos consciéncia que relativamente a este actor social, se estivessemos num outro tipo de papel que nao fosse o de entrevistador, certamente teriamos oportunidade de tecer um outro tipo de consideragdes as quais os nossos entrevistados estratégicamente se recusaram a falar. No nosso caso, recorremos essencialmente as conversas formais e temos consciéncia das suas limitagdes sempre que se abordam assuntos mais sensiveis e problematicos A Metrépole Curiosamente, 0 tipo de relagdo estabelecido com a metrépole, é uma relago de afastamento. As suas vidas em Mogambique eram suficientemente boas para que © desejo de um dia regressar a Portugal nao existisse. Segundo eles, a sua vida foi construida de modo a ficarem em Mogambique ¢ todos os bens que possuiam na metrépole foram levados para lé “Eu no que me diz respeito, nunca me interessei em vir & metrépole, nuncal Nem nunca vim, eu tinha muito que conhecer em Africa. (..) Portanto quando viemos nfo ‘tinhamos posto nada em Portugal, nunca tinhamos pensado vir para Portugal" A propria distincia geogréfica agravou esta relagdo de afastamento. Ainda assim, todos os nossos informantes sempre se sentiram portugueses e referem que 0 hino e a bandeira portuguesa sempre foi para eles algo de muito importante. Antonio chega mesmo a definir 0 sentimento pdtrio que todos os colonos portugueses sentiam por Portugal. Relatono de Investigagdo em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1956 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado ” “Havia outra coisa que realmente existia em todo 0 europen que ld estava que, era 0 sentimento patrio, Coisa que cé nio existe, Isto sé existe com as pessoas que esto para fora dde Portugal, (..) Quando a bandeira portuguesa sobe ao mastro nés olhamos mas, olhamos como uma coisa normalissima, Nos paises em que nés estavamos isso caia ca dentro, Vi hhomens idosos ¢ novos a cantar | Portuguesa ¢ a chorarem; Choravam com saudadc da patria, ExisGia um amor patriético muito, muito grande; Havia qualquer comunicagdo entre nds. Eu jf estou cd ha vinte anos ¢ as vezes oigo 0 hino portuguas e vejo 2 bandeira subir a0 ‘astro e aquilo nfio me diz nada, Mas as pessoas que esto fora sentem.." Todo este senrimento pdirio é rapidamente esquecido ¢ alterado no momento do retorno. No lugar da saudade e do amor, gera-se a revolta e a recriminagao contra Portugal no que diz respeito a sua responsabilidade nos melindrosos processos de descolonizacao e de integragao. "Nao foros nés que nascemos li € vivemos Ii € fizemos Id a nossa vida que fizemos guerra d'Aftica! Nao fomos nés que a motivamos, nfo foi a nossa politica que motivou a guerra, Quem motivou isso foram os grandes senhores em Portugal! A guerra partiu e foi forjada em Portugal. (...) Porque se tivessemos ido para a Africa do Sul tinhamos lé Portugueses que nos dariam 2 mao, Em Portugal no encontrémos ninguém, ninguém que nos estendesse a mio!” O Estado © Estado portugués é acusado de ter dificultado o desenvolvimento econémico ¢ cultural de Mogambique. Antonia faz referéncia a grande dificuldade que teve em continuar os seus estudos. © modo como ela e muitos dos portugueses que 1é viviam resolveram esta situago, foi irem estudar para a Rodésia, um pais vizinho onde a lingua oficial era o inglés. "Mas para arranjar formas de estudo na Beira foi muito dificil porque © governo portugués, © governo central fazia todos os possiveis para manter todo 0 povo na maior ignordncia possivel, (...) NOs queriamos estudar qualquer coisa para além da instrugdo primdria e mio havia, Porque o Estado portugués pura c simplesmente nio arranjava formas de haver escotas superiores 1a, Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (InjConformado ss 80 S6 mais tarde € que esta situagdo se veio a alterar, pois com o desenvolvimento crescente do pais surgem cada vez mais escolas com niveis superiores de ensino. Nao podemos, no entanto, deixar de fazer uma referéncia Universidade de Lourengo Marques que é muitas das vezes indicada como a Universidade onde os filhos desta geragio de retornados estudava ou iria estudar. Uma outra grande critica feita ao Estado portugués foi a sua posicao dificultadora no desenvolvimento econémico colonial. Portugal limitava-se a beneficiar das matérias-primas importadas de Mogambique ¢ ndo tomava nenhuma medida que permitisse e incrementasse 0 desenvolvimento autonomo daquele pais. A populacdo ali residente sentia-se explorada nos seus proprios bens, Revelador desta realidade ¢ 0 facto de que apesar de Mocambique ter sido um dos maiores produtores mundiais de algodao, para aquela populagao, os produtos manufacturados em algodao inglés eram consumidos em Mogambique a um prego inferior do que os produtos manufacturados portugueses. “Na questo da cultura e na questo cconémica também, Tinhamos uma grande pata em cima de nés para nfo nos deixar desenvolver. (..) A outra coisa era o sermos obrigados a ‘mandar para a metrépole toda a nossa riqueza, tudo era obrigado a vir para cd na sua grande ‘major. (...) Mas 0 que eu acho de gravoso ¢ de criminoso mesmo era sermos forgades a mandar para cé 0 nosso algodio produzido por nés ¢ depois importé-lo e ter de pagar direitos sobre o artigo mamufacturado” A Independéncia Dada a circunstincia de todos os nossos entrevistados terem vindo para Portugal depois de Mogambique se tomar independente, todos eles viveram situagdes dificeis que lhes deixaram recordagées traumaticas. Com a independéncia de Mogambique,-o comércio, a medicina e o ensino sio nacionalizados € tudo passa a ser propriedade do Estado. Inclusive, as proprias criangas filhas de pais portugueses que tivessem nascido em Mogambique e nao Tenunciassem num curto espago de tempo a sua cidadania, passariam a ser consideradas mogambicanas e no poderiam sair do pais. Deste modo, vivia-se em Mogambique um clima de inseguranga e instabilidade que impurrava os colonos portugueses para fora daquele pais. Lembremos que foi precisamente com a independéncia de Mogambique a 25 de Julho de 1975 e com todo 0 conjunto de Relatorio de Investigaclo em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Idenndades de Um Grupo (n)Conformado 81 situagdes extremas que ela proporcionou que se deu inicio ao éxodo da populagao portuguesa ali residente. “Logo de seguida comegaram a surgir boatos, comeyaram a dizer que a Frelimo ia nacionalizar as criangas, (..) A independéncia foi no dia 25 de Julho e no dia 1 de Julho era nacionalizada a medicina. Duas semanas depois foi nacionalizado o ensino, (..) Tudo deixou de poder exercer as suas fangées, tudo tinha de pertencer 20 Estado, Primeiramente os médicos comegaram a vir embora, 0 hospital comegou a andar numa balda, Tudo comecou a ‘andar num caos, num perfeito caos. (..) Depois constou também que todo aquele que fosse mogambicano niio podia sair do pais mum perfodo de cinco anos. (...) Havia um outro medo: era a instabilidade Politica. Qualquer criado que nés tivessemos em casa podia-nos acusar de qualquer coisa que ele tivesse inventado. De maneira que tudo isso foi o que me meteu o medo de ali ficar", A terra a que eles tinham chamado sua escolheu ser livre e independente, Em vez do bem-estar ¢ da felicidade ali desfrutadas, os nossos entrevistados comegam a viver dias de panico e de dificuldade. Vejamos um relato bem ilucidativo de alteragao no modo de vida destes individuos "Comesamos a ter privagdes muito grandes, Houve uma altura que jé no tinhamos pao, mas pronto, da Africa do Sul lé vinham umas tostas e umas bolachas de gua e sal. Nao tinhamos queijo, 10 tinhamos manteiga, no tinhamos nada; Comegémes a improvisar ‘muita coisa, Mas fome eu ndo posso dizer que passei porque eu nunca passei fore. (..) A ‘gente ndo podiamos falar, no podiamos dizer nada, Eles podiam-nos levar para um campo de concentragao ¢ fazerem-nos as piores coisas que se possam imaginar. Até podiamos ser presos por termos uma garrafa de whisky porque isso eram hibitos colonialistas, habitos {ascistas; Bebiamos as escondidas. Tinhamos medo de ir 4 igreja porque eles no queriam os padres porque para eles ndo havia Deus. (..) Comegémos também a ser proibidos de dare a pessoa que accitasse decepavam-Ihe a mo ¢ a pessoa que dava era presa por estar a alimentar habitos paternelistas. (..) Comegdmos a ser obrigados a fazer machambas colectivas em vez de termos as nossas parddias que tinhamos até ali. Tinhamos que ir as cinco horas da manhd cavar na machamba colectiva com os nossos empregedos. (..) Nos tinhamos medo de tudo, até de tropessar numa pedra, No sei... foi uma coisa horrivel”. Relatério de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (InjConformado O Retorno Mais do que a independéncia, o retorno é 0 momento mais dificil na vida deste grupo social. Quer para os que retornaram ao seu pais de origem, quer para os que vieram a Portugal pela primeira vez, como sucedeu com Antonia, o certo é que para todos eles a mudanga de pais foi inevitavel. No caso de Anténio e de Filomena, o seu regresso nao foi minimamente Preparado uma vez que, ambos tinham vindo a Portugal com 0 propésito de regressar a Mogambique. Antonio veio apenas para resolver um problema comercial e Filomena veio para passar férias e, nunca mais voltaram a Mogambique. Para além de deixarem la todos os seus bens materiais e de necessitarem de comegar tudo de novo, tiveram de tentar esquecer Africa, “*Por esse motivo e por outras coisas que jé se inham e que eles pensavam fazer, eles ndo pensavam vir para cé. Tanto que s6 viemos em 1978, ts anos depois da independéncia, (.) Com a pristo do gerente geral da Senna Sugar e com a tomada daquilo tudo, dizem a0 meu marido que estava ci de férias: «Esquega Africa, esquega a Senna Sugam. As pessoas ue Ia estavam, estavam todas a irem-se emora, O meu cunhado também veio logo 2 seguir € nés munca mais fomos Ii Tinkamos deixado a cama feita para voltar € nunca mais regressdios.." Assim, podemos afirmar que a Terra Prometida tormou-se num inferno onde a vida passou a ser muito dificil. A propria viagem de retorno dé-nos uma ideia dos momentos de panico ¢ incerteza vividos pelos nossos entrevistados ‘A viagem foi uma verdadeira odisseia. Os avides vinham cheios de gente ¢ era 4ifcl arranjr passagens com rapidez. Na Africa do Sul foi do revolvido, perguntavam-nos porque é que vinhamos, tiravam-nos objectos que diziam que néo podiamos trazer e até nos Pediam as facturas das coisas para comprovarmnas em como eram nossas. Foi terivelt(..) Os ‘meus filhos mais novos vomitavam., iamos chefos de embrulhos e para cimulo tivemos que sair novamente do avio porque diziam que havia bombas 1a dentro, (..) Desde a Beira até Lisboa demordimos vinte ¢ quatro horas certinhas” De modo a descrever este dificil momento da sua vida, Anténia utiliza uma metéfora para expressar de uma maneira mais marcante aquilo que para ela o retorno significou: Relatério de Investigagdo em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 83 "Deixar 0 meu pats onde eu tinha as minhas raizes! Era como arrancar uma drvore grande de raizes profundas, muito profundas, arrancé-la pela raiz e transporté-la para outro sitio. E foi isso que en fiz!" A chegada a Portugal marcou o fim de um periodo privilegiado na vida destes retomados ¢ o inicio de um outro periodo agora cheio de dificuldades, A sua chegada em massa e a necessidade de se acomodarem em Portugal, gerou por parte dos residentes uma espécie de aversio a qual nfo podiam ser alheios. A descriminagao e as acusagdes directas feitas aos nossos entrevistados marcaram este momento das suas vidas. Para além de sofrerem o estigma de retomados, esta populagao debatia-se com a sua meia-idade e com uma familia a seu encargo que dificultava a sua readaptagdo a sociedade portuguesa. "Eu regressei a Portugal com quarenta, fa fazer quarenta e um anos; O meu marido ‘inha quarenia ¢ nove ¢ ia fazer cinquenta, Para além de sermos retornados a idade também no ajudava para comegarmos tudo de novo". Se para alguns 0 retorno foi ultrapassado, outros encontraram grandes dificuldades e ainda hoje sofrem as consequéncias desse retomo inesperado e indesejado. "Mas hi pessoas que jd ndo tiveram hipétese de refazer a sua vida € entlo hoje vivem agarrados d lembranga d’Africa: As suas vidas mais ou menos boas ¢ hoje esto numa situagdo diferente, $6 daqui por uns anos, quando as pessoas desaparecerem & que talvez se ‘esqueya 0 problema do retomo, Mas mesmo assim nfo sei, porque nfo se pode apagar a historia...) Porque eu acho que por mil anos que os portugueses vivam, para além de terem 'morrido todos os retornados, nés vamos estar sempre com 0 nosso coral junto a Africa” A Familia Como ja tivemos oportunidade de mencionar, a migragiio para as colénias Portuguesas foi uma migragdo do tipo familiar. Assim que chegam a Africa, todas estas famitias ascendem socialmente e participam na construgdo daquele pais. Com 0 decorrer dos anos, véem o nimero dos seus membros aumentar e depressa se adaptam a ideia da radicagao definitiva em Mogambique. Relat6rio de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 4 "Os nossos familiares mais proximos estavam 1. Nos eramos mais de quarenta [pessoas 50 na cidade da Beira. (...) Ndo eram primos em segundo ou em terceiro grau, no! Proximos, primos direitos, tios,.." Com a independéncia de Mogambique toda esta realidade se modificou. As familias desmembraram-se e cada um tentou resolver a sua situag&o da melhor forma possivel “Caiu a descolonizagio em cima de nés e desparimos por todas as partes do mundo, Tive parentes que foram para Joanesburgo, para Durbin (...) para o Brasil, para Inglaterra (.-) e outros que vieram viver para Portugal " Quando retornaram a Portugal, se alguns tiveram a casa de um familiar para se instalar outros houve que nao tiveram qualquer espécie de ajuda. Para alguns dos nossos entrevistados a familia foi-lhes tao hostil como o resto da populagio Tesidente, ¢ 0 éxito ou o fracasso da sua integraco foi conseguido através do seu proprio esforgo € espirito de iniciativa Os Retornados Esta categoria de andlise é alvo da nossa curiosidade sociolégica uma vez que nela os nossos entrevistados clarificam a sua identidade enquanto retornados. Durante muito tempo habitudmo-nos a ouvir considerages acerca deste grupo social, mas raramente tivemos a sua propria versio dos acontecimentos. Na verdade, 0 tipo de relagiio que os nossos entrevistados estabelecem com este actor social é acima de tudo uma relagdo de orgulho. Todos eles deixam bem claro que se para muitos o ser-se retornado é um sinal de inferioridade e vergonha, para eles ¢ motivo de grande orgulho, pois o retomado representa a luta, 0 dinamismo, a inteligéncia, 0 espirito de iniciativa que os fez integrar e vencer na sociedade portuguesa, “Mas tanto a norte como no sul, como no centro, os retornados fizeram grandes coisas, grandes empresas. Ndo quero com isto dizer que todas tivessem vingado, porque no ‘meio de setecentas mil pessoas hé 0 bom ¢ ha o mal. Mas a maioria era boa e era muito lutadora¢ fez-se grandes industrias, mudou-se muito. Ha zonas de Portugal que os Relatério de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (n)Conformado a5 retornados viraram do avesso. Completamente! E muita gente com cultura e bem na vida di ‘muito valor & Iuta que 0 retornado teve em Portugal, contra ventos e contra as pessoas, contra toda a gente que no queriam que eles vingassem. (...) Mais tarde, com os anos, veio-se a confirmar que realmente nés somos bem formados" Uma vez que este grupo social sofreu uma rotulagem depreciativa aquando do seu regresso a Portugal, os nossos entrevistados nao deixaram de referir situagdes em que foram descriminados ¢ estigmatizados pela sociedade portuguesa da época Depois de terem sofrido o trauma da independéncia mogambicana, esperou-lhes 0 mais dificil: a integrago em Portugal. "Quando chegimos fomos muito hostilizados, 0 retornado foi muito hostilizado. Tanto que muitos ndo conseguiram permanecer aqui ¢ foram para o Brasil, para a Venezuela, para muitos lados ¢ nfo quiscram ficar c4.(..) Quando oigo falar em retornados, ai.., di-me uma allicdo porque lembro-me daquele tempo da chegada de Aftica. E uma coisa ‘que nos marca, Isso foi uma ¢poca que me marcou bastante, mas pelo negative. Porque me sentia posta margem, hostilizada na minha prépria terra; Rejeitada, nés fomos rejeitados. Imagine que até 05 piolhos tinham sido os retornados que trouxcram, Durantes os anos que vivi em Africa nunca vi lé piolhos, Nem nos negros!”. Assim, sem dinheiro e com poucas ajudas, o trabalho foi o tnico meio através do qual conseguiram reorganizar a sua vida. "As pessoas foram muito mal recebidas, mas conseguimos refazer a nossa vida a pulso, com uma certa raiva, O meu marido as vezes dizia: «Eu no preciso de pedir nada a nhinguém, eu tenho duas mos para trabalhar e quero trabalhar», Foi de facto muito dificil, ‘muito, muito, muito. $6 de facto com um trabalho quase de noite ¢ de dia ¢ que conseguimes" A par de trabalhadores e dinamizadores, os retornados definem-se como um grupo onde a franqueza e a abertura so seu apandgio, Talvez por isso, referem a sua maior tendéncia para fazerem amizades com pessoas que vieram de Africa. Segundo eles, existe um éman que os atrai e une. Na verdade, com o decorrer dos anos € com a integragfo concluida 0 termo retornado deixou de ter um sentido depreciativo RelatGrio de Investigagao em Sociologia da Cultura ~~ FEUC, Setemibre de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 86 "Hoje j4 nem ligo e hoje praticamente isso ja nem se houve dizer. As vezes sio os proprios retornados que dizem uns aos outros por brincadeira: «Adeus oh retornado!», mas ppor brincadeira, porque praticamente essa palavra jé foi esquecida, Nés integramo-nos no sistema ¢ a maioria vingou, vingou ¢ lutou mais do que os outros que estavam habituados a uma vida mais calma, Squela vida que existia em Portugal”. Retornado Mocambicano Versus Retornado Angolano Contrariando as nossa expectativas iniciais, é curioso verificar que todos os nossos entrevistados consideram o retornado mogambicano diferente do retomado angolano. A principal causa apontada para essa diferenga é a influéncia que os ingleses tiveram sobre os retornados mogambicanos e que ndo tiveram sobre os retornados angolanos. A sua vivéncia num pais geograficamente mais distante de Portugal onde muitas das normas sociais eram inglesas, marcou definitivamente uma destingao entre os dois grupos sociais. Enquanto os mogambicanos aprenderam a delicadeza e 0 fairplay inglés, os angolanos continuaram muito ligados aos modos de pensar e de viver tipicos dos portugueses. "Hii uma diferenga bastante acentuada, mas isso é uma coisa que jé é de longe, nido vem de agora, depois de nés virmos para cd. Jé antigamente, no periodo normal em que vvinham de férias os mogambicanos eram diferentes dos angolanos, Os angolanos diziam que (0s mogambicanos tinham penciras, Mas ndo era por penciras, era simplesmente pelo sistema e vida que nés tinhamos que, era o sistema inglés. Porque a nossa fronteira jumtava-se com a da Africa do Sul e com a antiga Rodésia do Sui onde @ gente aprendia talvez mais... sistema inglés tem outra maneira de estar na vida; Boo, ¢ eles nfo tinhara, Notava-se a Gferenga que existia entre uma pessoa que estivesse em Mogambique outra que estivesse em Angola" Os Residentes © grupo dos residentes em Portugal so apontados como um grupo que dificultou o processo de integragao. Assim que chegaram a Portugal, os retornados depararam-se com uma série de manifestagdes contra o seu regresso. Acusados de Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Seiembro de 1996 Retomnados: Identidades de Um Grupo (in)Conformado 87 serem racistas e de virem ocupar os empregos dos residentes, é criada uma relagdo de hostilidade e de afastamento entre os dois grupos sociais Para além deste aspecto, os residentes possufam uma mentalidade diferente da mentalidade adoptada pelo retornado Mogambicano. Enquanto o residente se mostrava fechado e desconfiado, o retornado era aberto e franco ao nivel dos seus relacionamentos quotidianos. Tudo isto contribuiu para que a relagdo estabelecida entre os dois grupos néo fosse isenta de dificuldades. “Quando viemos depardmos com um modo de vida completamente diferente, Eu jé era mais de Africa do que de Portugal. As préprias mentalidades eram diferentes, Aqui o povo é muito mais fechado. Li o povo era muito mais aberto. Eu estava habituada a outro meio onde eu podia estar com uma bata e de chinelos, ir ao supermercado ou peixaria e ‘ninguém olhava para isso. Néo tinhamos esse preconceito", E curioso verificar que apesar do grupo dos retornados ter sido negativamente rotulado pelos residentes, o primeiro sente em relagéio ao segundo uma sentimento de superioridade. Segundo os nossos entrevistados, a sua preparacéo e capacidade era superior & dos residentes, O seu éxito em Mocambique e mais tarde a sua répida integracao na sociedade portuguesa confirmou o seu valor. "Diziam que vinham ed tirar 0 po deles e que vinham ocupar os seus lugares. Muitos vieram ocupar os lugares, mas eram mais capazes. Completamente diferente, tanto bbancariamente como comercialmente, 4 todos os niveis. Qualquer retornado era mais eapaz ddo que as pessoas que cé estavam; Eram muito arasadas (oo) Nos lutimos mais até porque muitos no vieram com vinte anos uem com trinta, Vieram com quarenta ¢ com cinquenta € mais, ¢ vingaram ¢ andaram ¢ lutaram ¢ recomegaram vida novamente" A Integragao Nos primeiros anos apés 0 retormo o sentimento que mais persiste na populacao de retornados € o sentimento de revolta e de desespero. As tentativas de integragdo na sociedade portuguesa foram muitas vezes malogradas pelo facto de pertencerem a um grupo estigmatizado onde a média das idades nfo ajudava a sua integracao profissional Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 88 Mais do que a integragao profissional, a integragdo cultural foi em certos aspectos traumatica, Se por um lado assistiram a queda do seu estatuto socio- econémico, por outro lado desesperaram com as profundas diferengas culturais. "Foi muito mal, foi uma adapraggo peéssima, péssima, péssima, péssima, Passei as ppassas do Algarve, ¢ nio desejo a ninguém, Eu tive um periodo privilegiado de coisas boas, um periodo de vinte e um ou vintee dois anos que estive em Mocamibique de bom. e quando voltei para cd vim para o mal, passei mal a nivel profissional. Fui fazer uma coisa que nunca tinha feito, Alguém tinha que fazer aquele servigo ¢ era cu que 0 tinha que fazer, e come nunca tinha feito aquilo, custou-me bastante. E os anos passavam, passavam, passavam: Sete, oto, nove, dez anos e ndo estaya aclimatado a terra, Quer dizer, continuava a pensar que estava aqui de passagem e que ia para lé outra vez. Isto ¢ verdade! «lsto ¢ de passagem, cu hei-de ir. Estou aqui de férias! Mas eu vou-me embora daqui porque realmente isto no é terra para eu viver. Nao quero isto, ndo quero isto!» Era a revolta interior que tinha". Apesar de todas as dificuldades sentidas no processo de integragdo, temos a consciéneia que ele decorreu de uma forma francamente positiva jé que a sociedade portuguesa de entdo teve uma maliabilidade impressionante ao integrar uma enorme quantidade de pessoas num tio curto espago de tempo. Referiremos que para tal tenha contribuido o dinamismo ¢ o espirito de iniciativa téo mencionado pelos nossos entrevistados. “Nao me encostei a ninguém, nfo fui para hotel nenhum, Comecei logo a trabalhar, comecei logo a trabalhar. Cheguei cd em Setembro, tratei do que tinha a tratar, a familia chegou em Dezembro ¢ eu em Fevereiro estaya a trabalhar, Tratei da papetada para ter casa fem Feverciro estava a abrir um supermercado, Nunca precisei.. nunca me encostei a ninguém" Passados vinte anos sobre a descolonizago, podemos constatar que em regra geral 2 populagdo retornada esté completamente integrada na sociedade portuguesa Sem nunca ter esquecido Africa, todos os nossos entrevistados falam com uma tranquilidade propria de quem perdoou, mas nao esqueceu, 0 erro da descolonizagao africana. Hoje em dia, 4 excepgio de Antonia, todos reconhecem que ja assimilaram habitos portugueses ¢ que deixaram alguns habitos africanos; Mas nos seus coragdes continuam bem gravadas as palavras: Kanimambo (obrigado) Mocgambique! Relatorio de Investigayio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 89 V - Andlise Comparativa Partindo da andlise descritiva que temos vindo a apresentar relativamente a0 caso de Angola e Mocambique, procederemos de seguida 4 sua anélise comparativa. Tal procedimento constitui um dos nossos principais pélos de investigagdo, tendo em conta a nossa hipétese inicial, a saber: «Porque se limitaram a trasladar a cultura portuguesa para Angola, os colonos angolanos viveram menos a cultura africana do que os de Mocambique. Se tal se vier a confirmar, os retornados de Angola poderao ter tido menores dificuldades de imegragao na sociedade portuguesa do que os de Mocambique.» De uma maneira geral, podemos concluir que, do ponto de vista objectivo, a situagao de retorno é em ambos os casos idéntica, embora seja subjectivamente sentida como diferente pelos que retornaram de Angola ou Mogambique. Talvez por isso se tenda a falar dos retornados como um todo, sem que se tenha em conta a especificidade que resulta do facto de terem vindo de uma ou de outra coldnia. Esta distingdo, a que so chegamos depois de uma andlise mais profunda, € contudo bem sentida por parte dos proprios retornados, sobretudo pelos vindos de Mogambique, nos quais a estratégia de afastamento ¢ perceptivel ao longo das suas narrativas biograficas e se reflecte na sua integragfo na sociedade portuguesa. Desde logo, a partida e a viagem para Africa constituem duas categorias importantes na construgio dos discursos produzidos pelos retomados de Mogambique, enquanto para os de Angola apenas o intermediario assume especial relevancia. Esta diferenga, aparentemente pouco significativa, podera indiciar o cardcter aventureiro de que se revestia a ida para Mogambique. Note-se que no sé a viagem era mais longa e por isso mais marcante, como também o contraste natural e cultural vivido era maior em Mogambique. Nao obstante, néo podemos pér de parte a hipdtese de esta valorizagio se dever as diferentes condigdes e locais de partida dos nossos entrevistados. O facto de se ter partido de uma aldeia da Beira Alta, onde os invernos eram Tigorosos e mar era desconhecido, ou o facto de se ter partido jovem ¢ sozinho tem um peso importante no tipo de relagiio que os entrevistados estabelecem com estas categorias. Outre diferenga por nés constatada e que julgamos poder ter influéncia a0 nivel da integragao apds o retorno, tem a ver com o facto de os Mogambicanos tenderem a valorizar o aspecto natural e fisico de Africa, apaixonando-se acima Relatério de Investigagiio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retomnados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 90 de tudo pela terra, enquanto os angolanos se apaixonaram pelo povo, destacando © convivio ea amizade. Mais uma vez, nio podemos deixar de ter em conta que o numero de biografias por nds recolhidas nao permitem isolar a distorgao que os diferentes locais de acolhimento podem ter produzido na nossa amostra. A este respeito, é de salientar que no caso de Mogambique encontramos trés casos que mantiveram um estreito contacto com Africa Profinda, a0 passo que no caso de Angola todos 0s nossos entrevistados conheceram apenas a realidade urbana de Angola, Em todo o caso, parece haver solidariedades mais fortes no caso de Angola, tanto entre colonos como em relagao aos nativos. A forga destas solidariedades, que se reflecte aquando do retorno, sendo iniimeras as formas de entreajuda relatadas, esti ainda bem presente nos varios encontros de retornados de Angola, mais frequentados do que os de Mogambique, ¢ também no facto de os primeiros apresentarem um caracter predominantemente regional, respeitando as zonas de Tecepgéio em Angola, que contrasta com o cardter nacional dos encontros de retornados de Mogambique. Tal permite-nos detectar a preservagéio das fortes identidades regionais existentes em Angola. Esta valorizagao do aspecto social no caso angolano, pode também explicar a falta de vontade manifestada pelos nossos entrevistados em voltar a Angola. Enquanto a paisagem que enfeiticou os colonos mogambicanos continua a existir, ainda que um pouco destruida, a sociedade colonial angolana foi completamente extinta, Isto sem esquecer que a guerra em Angola foi bem mais devastadora do que a de Mogambique. Da mesma forma, os mocambicanos tendem a falar preferencialmente de Africa quando pretendem referir a realidade que conheceram, ao passo que os angolanos se limitam a falar de Angola, Parece-nos entio poder inferir que os retornados mogambicanos tém mais a percepgio de ter vivido num continente diferente do europeu, onde existia uma grande heterogeneidade cultural. J4 0 retornado angolano parece ter estado em Africa sem o estar. A este propésito, parece-nos oportuno relembrar a posi¢o defendida por Fernando Barciela Santos: "Mudar-se para Angola era quase como ficar na sua terra, A adaptagdo era imediata, Continuava a falar a sua lingua e encontrava-se com os seus conterraneos, Estes, alguns doles jd bem insialados ¢ desfrutando de prospriedade econémica, preocupavam-se em ajudar o recém chegado, em orienté-lo, arranjar-Ihe trabalho ou dar-the sociedade num negecio, (..) A sua cultura, de facto, mal se deixou infiltrar pela africana," (Barciela Santos, 1975: 42) FEUC, Setembro de 1996 Relatorio de Investigagao em Si Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado a1 De facto, 0 modo de vida angolano durante 0 colonialismo era aporiuguesado, fruto da trasladagdo de costumes € praticas sociais tipicos da cultura portuguesa, e dos quais a reproduc&o das marchas populares no Lobito constituem um bom exemplo. J4 0 modo de vida colonial mogambicano parece ser fruto de uma forte heterogeneidade de culturas que coexistiam em Mogambique e que hes permite auto defenir-se como criadores de uma cultura. Na verdade, 0 modo de vida que se vivia nesta colénia cra um misto daquilo que os portugueses levaram para Mogambique e daquilo que foram assimilando da comunidade inglesa radicada em Mogambique e nos paises vizinhos, com especial destaque para Africa do Sul Paralelamente, parece verificar-se uma influéncia, ainda que indirecta, de outras comunidades estabelecidas em Mogambique, nomeadamente a indiana, goesa, chinesa, grega, paquistanesa, alema, etc. Esta multiracialidade vivida em Mogambique faz do seu modo de vida uma construgio social unica. Um dos aspectos em que esta heterogeneidade cultural se faz sentir é ao nivel da religido. Enquanto em Angola a Religiéo Catélica conseguiu chamar a si a grande maioria da populagdo, incluindo a a populagdo negra, em Mogambique verificava-se uma enorme variedade de orengas religiosas, fruto da convivéncia com as diferentes comunidades. Assim, é de salientar as visitas a mesquitas ¢ 0 vasto conhecimento que estes nossos entrevistados demonstram possuir acerca das varias religiées que ali estavam representadas. Tal facto explica a prolifera¢do de novas crengas em Portugal apés 0 retorno, facto reconhecido mas nem sempre atribuido aos retornados de Mogambique. ‘Nao deixa de ser curioso que a multiracialidade, acima referida e tantas vezes mencionada pelos nossos entrevistados de Mogambique, nao inclua a populagao negra, j4 que separatismo era aqui ume realidade, bem visivel no ja mencionado facto de um negro ceder sempre a passagem ao seu patrdo quando se cruzavam no passeio piblico. Embora em Angola também se verificasse uma desigualdade de oportunidades estabelecida pela cor da pele, situagio criticada mas passivamente aceite pelo colonos, o convivio entre brancos e negros era aceite, desde que ambos gozassem da mesma situagiio sécio-econémica. Tal é 0 caso da relagdo que uma das nossas entrevistadas estabeleceu com uma colega negra, ainda que nica, num colégio de freiras. Esta situagao, possivel em Angola embora pouco vulgar, seria impensavel em Mogambique, uma vez que o racismo que 1é se praticava era do tipo ideolégico, por influéncia de Africa do Sul, enquanto 0 praticado em Angola era uma versio patemnalista da descriminagao que existia em Portugal relativamente as classes sociais mais baixas. (cf. Pires, 1995:43) Relatério de Investigagao em Sociologia da Cultura, FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 92 Reportando-nos & época do retorno, néo podemos deixar de sublinhar que todos os colonos mogambicanos por nés entrevistados regressaram a Portugal apos a independéncia, para isso contribuiram as grandes transformagdes que a mudanga de poder produziu a todos os niveis da vida daquele pais, nomeadamente o clima de instabilidade e de desorganizagao que ali se fez sentir. No caso de Angola, os colonos vieram no periodo que antecedeu a independéncia, altura em que a guerra civil atingiu o seu momento mais critico. Talvez por isso a guerra e 0 terrorismo constituam categorias importantes no caso de Angola n&o sejam mencionadas pelos mogambicanos. Como ja referimos, esta poderé ser uma das raz6es pelas quais os retornados angolanos demonstram maior relutineia em voltar a Angola. Associada concepgao dos colonos mogambicanos como criadores de uma cultura esta naturalmente a sua maior dificuldade de integra¢do na sociedade portuguesa. Assim, enquanto a populagdo retornada de Angola revela essencialmente dificuldades de integrag&o ao nivel profissional e econdmico, a de Mogambique acresce a estas as dificuldades de integrago cultural. Mesmo ao nivel subjectivo, verificamos que os nossos entrevistados de Angola associam o conceito de integragdo ao aspecto material, considerando-se integrados a partir do momento em que atingiram uma posigao economicamente estavel. Ja os mogambicanos, mesmo conseguindo um nivel de vida estavel, continuam a nao se considerar integrados, valorizando assim o aspecto cultural, Curiosamente os retornados angolanos consideram que as diferencas ‘mutuamente reconhecidas entre angolanos e mogambicanos tendem a esbater-se pela experiéncia comum do retorno, enquanto os mogambicanos se auto- -distanciam em relagao aos angolanos, considerando-se uma categoria A parte. Tal podera dever-se ao facto de o modo de vida mogambicano se distanciar mais do padrao portugués ¢ ter sido mais conservado apés o retorno. Neste sentido, podemos concluir que as concepgées de familia, religito, trabalho e lazer, por se afastarem mais do modelo portugués, resistiram mais fortemente a influéncia portuguesa. No caso de Angola, porque as diferengas eram menores, houve uma maior assimilagao dos valores portugueses. Note-se que a grande diferenga por nés encontrada entre 0 modo de vida portugués e angolano, embora extensiva ao caso mogambicano, diz respeito as formas de solidariedade e convivio, constituindo aquilo que designam como 0 Espirito Angolano - uma forma aberta ¢ franca de ser que contrasta com o Espirito Portugués, Na verdade, esta ¢ uma caracteristica que pode ser mantida sem por em causa a integragdo econémica, social e organizacional na sociedade portuguesa. Relatério de Investigagao em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retormnados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 3 Da mesma forma, os retomados de Angola referem sempre uma aproximacao miutua em relacdo aos residentes, depois de um periodo inicial de hostilidade, a qual reflecte uma integragdo quase total. Quanto ao grupo de retomados de Mogambique, verificamos que mantém relagdes com os residentes sem que com eles se identifique. Neste sentido, verificamos também aqui uma estratégia de auto-exclusao. Parece-nos entao evidente a existéncia de uma estratégia de fechamento por parte do grupo de retomnados vindos de Mogambique. Esta constatag&o contrasta, no entanto, com o desinteresse manifestado por estes nossos entrevistados em frequentar os encontros de retornados de Mogambique. De facto, seria de esperar que a esiratégia de fechamento se traduzisse numa forte coesio entre o grupo, reforgando 0 espirito comunitario. Contudo, verificamos que este grupo, quando comparado com o de Angola, se apresenta muito mais disperso, o que talvez se possa explicar por uma postura mais individualista, que mais uma vez reflecte a influéncia inglesa A titulo de conclusao, podemos constatar que os retornados, enquanto grupo social, nao constituem um todo homogéneo, embora sejam comummente tratados como tal. As diferengas por nds encontradas entre os retornados de Angola e de Mogambique revelam-se tanto mais importantes quanto se reflectem ao nivel das referéncias identitérias e da integragio na sociedade portuguesa. Assim, destacamos que grupo de retormados mogambicanos, através de uma estratégia de fechamento, revelam uma grande preocupagiio em preservar a sua identidade grupal, procurando distanciar-se, tanto do grupo de retornados de Angola quanto dos residentes. ‘Ao nivel da integragéo, podemos também concluir que os retornados mogambicanos se apresentam menos integrados na sociedade portuguesa do que 0s angolanos, como o demonstram algumas das diferengas por nds apresentadas, nomeadamente: 0 querer voltar a Africa, o preservar de um certo estilo de vida a recusa em identificar-se com a mentalidade e estilo de vida portugueses. Por tudo isto, parece-nos mais plausivel falar de assimilagdo para definir o proceso de aprendizagem, recalcamento e e adaptacdo que este grupo teve que enfrentar. Embora este conceito também se aplique ao caso angolano, ele é especialmente visivel no caso de Mogambique, visto que as diferengas culturais eram a partida maiores, Os retornados mogambicanos aprenderam a viver com as regras portuguesas sem que, no entanto, se identifiquem com elas. Os retomados de Angola ja as conheciam melhor. Relatério de Investigagdo em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (n)Conformado VI - A Segunda Geracao 1. Andlise Descritiva Africa Africa é uma palavra que os nossos entrevistados se habituaram a ouvir falar em suas casas. Faz parte das suas vidas, alids foi o inicio da sua vida uma vez que la nasceram e 14 viveram os seus primeiros anos, Nao obstante, é curioso verificar que este actor social surge nos discursos desta segunda geragao de formas diferentes. Para os mogambicanos continua a assumir um sentido magico, continua a exercer sobre eles 0 mesmo feitigo que exercia sobre os seus pais, Dois dos nossos entrevistados chegam mesmo a referir o incontornavel chamamento de Africa. “Nao sei se me sinto portugués porque cada vez mais a minha terra me chama; no sei porqué! Ha sensagGes, ha sentimentos que nds no conseguimos explicar, e cada ver mais cu simio 0 chamamento das minhas raizes. E as minhas raizes & a minha terra onde eu nasci, onde eu brinquei. & um chamdimento que eu no consigo explicar” Jé para os angolanos, Africa suscita-Ihes apenas uma certa curiosidade. Reflectem sobre ela de um modo mais descritivo e distante, sendo as caracteristicas fisicas do pais (clima, dimensio, etc) as principais referéncias de Africa. "Sinto um bocadinho, hi sempre uma curiosidade enorme de conhecer o sitio, sei ‘que um dia la passarei outra vez! (..) Ndo sei, € aésim, eu gosto de paises exéticas, quando escolhemos férias ¢ sempre para locais desses! Gosto desses destinos, gosto do clima tropical... enfim! E se tivesse outras condigtes de paz, provavelmente até poderia equacionar, como equacionei a determinada altura quando estava na faculdade, ir para li trabalhar! Mas ‘com os anos, como qualquer pessoa que vive ent Portugal, o destino seria voltar a Portugal” Tal como para a primeira geragdo de retormados mogambicanos, a referéncia de Mogambique como um luger privilegiado de encontro de diferentes culturas, de progresso e de uma forte influéncia do modo de vida inglés, é igualmente defendida por esta segunda geragio. Relatério de Investigagdo em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996 Retornados: Identidades de Um Grupo (In)Conformado 95 “Antes a diferenga entre o modo de vida de Ii € de ci era maior. A gente tinhamos como vizinhos as colénias inglesas; O nosso estilo de vida também era inglés, até na maneira de vest e de falar. Portanto, 0 facto de nds virmos para cd fez-nos ver a diferenga nos modos de vida. Hoje em dia essa diferenga jé nfo é tanta, Com a nossa entrada na CEE é que se notou realmente 0 que é ser-se influenciado pelo exterior. Nés ndo notémos tanto, as pessoas ‘que ca estavam € que niio conheciam é que notaram mais. Porque nés falamos nas saudades de Mogambique e no atrazo deste pais e dizemos: «Othe, 0 que més estamos a passar agora é ‘o que nds jd conhecfamos», Nao estranhamos porque ja estavamos habituados”. O Espirito Angolano e 0 Ser Mocambicano Ambos os actores sociais servem para por em destaque 0 mesmo espirito aberto, dindmico e alegre que caracteriza todos os retomados das ex-colénias portuguesas, Como jé tivemos oportunidade de referir, 0 espirito aberto e dindmico s80 0s dois atributos que ambos os grupos sociais, angolano e mogambicano, se autoatribuem. Ha um claro orgulho assumido pelas suas raizes africanas. "So pessoas completamente diferentes. Quando estou com essas pessoas ninguém Joga A defesa, é uma amizade uma sinceridade que se sente, ¢ dizemos logo: «tha, voos rio ¢ de ca, Esteve foray. Nota-se logo, nota-se logo, pelos olhos, pelo sorriso. (..} Com os ‘que vieram de Africa estamos vontade, a conversa ¢ espontinea, as gargalhadas também. Sem qualquer comprometimento”, No caso dos nossos entrevistados nascidos em Angola, verificamos que apesar de nao se identificarem com Angola enquanto pais, identificam-se com o seu espirito aberto, dinamico e determinado. Tal como a primeira geragao, este grupo mais jovem de retornados viu 0 espirito angolano dissolvido ainda que nao tenha desaparecido na sua totalidade. O mesmo acontece com a cultura africana que tem para estes individuos um cardcter essencialmente simbélico "Os meus pais eram pessoas que saiam muito de casa, iam muito a fests, a casa de amigos, iam para a praia constanlemente.. pronto, eram pessoas que faziam muito a vida fora de casa! Chegaram 2 Portugal, perderam os bens e tiveram que ter uma vida de muito sacrificio, de muito trabalho para reconstruir a vida, Isso, de alguma forma, desgastou-os ¢ a maneira de eles encararem 0 tempo livre mudou, preferem ficar em casa a descansar € a Relatério de Investigagio em Sociologia da Cultura FEUC, Setembro de 1996

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