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O Estigma do Pecado A Lepra durante a Idade Média PAULO GABRIEL HILU DA ROCHA PINTO" Introdugio A histéria do caminho percorride pela epidemia da leprae pelos leprosos durante © periodo medieval constitui um objeto privilegiado para o estudo do impacto de uma doenga! sobre determinada sociedade e dos mecanismos sociais envolvidos na sua percepgao, delimitagiio ¢ destino, As doencas nos permitern explicitar tanto as estruturas das sociedades em geral, quanto as dos saberes que elas produzem e que permitem elaborar uma resposta ao desafto trazido. Assim, € possivel afirmar que “a doenga € quase sempre um elemento de desorganizagao e de reorganizagado social; a esse respeito ela tora mais vis(veis as articulagdes essenciais do grupo, as linhas de forga e as tensGes que o traspassam”.” Tais consideragées s40 perfeitamente aplicéveis 4 lepra na Idade Média, pois, apesar de conhecida anteriormente, é nesse periodo histérico que ela vai se instalar como uma endemia na Europa. O seu cardter de doenga crénica, incurével, constantemente presente, oposto ao da peste — outro grande desafio + Bacharel ¢ licenciado cm Histéria pola UFP. médico formado pela UFRJ, mestrando em Sade Coletiva no IMS/UERI. 1. Apesar de a considerarmos valida, néo utilizaremos aqui ¢ distingdio que Rodney M. Coe faz. entre enfermidade, “proceso biolégico, cujo resultado é um estado [isico alterade do individuo", doena, “avalisgio subjetiva, pelo individua, de que algo ruim a acamete como individuo [...] sob a forma de ume redugdc de sua capacidade para realiza: as fungics sociais", uma vez que ela no atende aos cbjetivos deste texto. Ver R.M. Coe, Sociologia de la Medicina, Madri, Alianza, 1973, p. 140. 2, J, Revel e J. P. Peter, “O Corpo: O Homem Doente e sua Histéria”, i J. Le Goff e P. Nora, eds., Histéria: Novos Objetos, Riv de Janeiro, Francisca Alves, 1988, p. 144. 132 PHYSIS — Revista de Saude Coletiva Vol. 5, Niimero 1, 1995 bioldgico enfrentado pela sociedade medieval —, que atacava em surtos e conduzia rapidamente suas vitimas 4 morte, exigia medidas permanentes por parte de uma sociedade que, desde o século X, se fechara diante da alteridade individual ou social.’ As deformidades fisicas causadas pela lepra chocavam o homem medieval, para quem o corpo nada mais era do que um reflexo do espirito. Os dispositivos que a Idade Média criou para superar a desestruturaciio trazida pelo advento da lepra, entre eles 4 exclusdo dos feprosos do convivio social mediante confinamento, despertavam, ac mesmo tempo, medo e ddio, mas fiveram um enorme sucesso e sobreviveram, com intimeras modificagées, € claro, 4 propria ameaca da doenga na Europa. Esses dispositivos foram incorporados pela civilizagdo ocidental, passando a fazer parte de sua historia. A doenga ¢ sua evolucao no Ocidente A lepra é uma doenga contagiosa crnica causada pelo Mycobacterium leprae, também conhecido como Bacilo de Hansen. Suas manifestagSes clinicas repar- tem-se entre dois pélos: a lepra mbercuddide nedular e a lepra lepromarosa ou virchowiana, existindo ainda, em um estégio intermediario, a forma indetermi- nada, que mnistura os sintomas das duas antcriores e pode evoluir para qualquer uma delas. A transmissdo da lepra se dé, principalmente, por via respiratéria, mediante contato com pessoas portadoras do bacilo, dependendo o desenvol- vimento da doenga da suscetibilidade da pessoa infectada. “Os sintomas consistem em uma cnorme variedade de lesées cutdneas ¢ nos nervos periféricos, porém o sintoma inicial geralmente verificdvel é uma mancha hipopigmentada na pele com a diminuigio da sensibilidade tétil. A forma tuberculdide apresenta uma unica placa on mancha na pele e 0 espessa- mento do nerve acometido. J4 a forma lepromatosa se manifesta por meio de sintomas bastante visiveis: a pele e as narinas se tormam espessas, as orelhas apresentam nodosidades, os pelos das sobrancelhas, assim como das regides acametidas, caem, a voz toma-se ronca, hé atrofias musculares e a mao se paralisa em garra. Até este séoulo a lepra era uma doenga incurdvel. A partir de seus antigos focos no Oriente Préximo, a lepra atinge a Europa por intermédie das tropas romanas que retornam do Egito no ano 61 a.C. No entanto, como se pode depreender de registros escritos e arqueoldgicos,’ ela sé 3. G. Duby, O Ano Mil, Lisboa, Ed. 70, 1986, pp. 145-51. 4. F, Béniac, “O Medo da Lepra”, in J. Le Goff, org., Ax Doengas Tém Histéria, Lisboa, Terramar, sfd, pp. 127-8, Estigma do Pecado: A Lepra durante a Idade Média 133 se instalou como endemia significativa a partir dos séculos VI e VI, ou seja, em plena Alta Idade Média. Isto significa que, ao contrério do que ocorreu com outras doengas, os homens medievais tiveram pouca influéncia do saber ¢ das representagdes que a Antiguidade tinha a respeito da lepra— uma vez que ela era muito mais rara entaéo —, tendo de desenvolver mecanismos préprios para lidar com ela. Os poderes piiblicos da época—a Igrejae a realeza —niio tardam em mostrar preocupagio com a questio: um Concilio de 549 a.D. e um texto legislative lombardo de 635-652 a.D, ja se referiam aos leprosos. Aendemia permanece em niveis estaveis até 0 século XII quando, devido as Cruzadas, ocorrem os grandes deslocamentos populacionais para a conquista do Oriente islémico e 0 seu subseqiiente recuo em face da derrota imposta pelos drabes aos exércitos europeus. Esse contato com os focos de lepra do Oriente Médio levou a um grande aumento da sua incidéncia nos séculos XII e XTIL* Para tanto, também contribafram a crescente urbanizagao ¢ o desenvolvimento do comércio nesse periodo, uma vez que aumentaram os deslocamentos e a concentragao populacionais.° Toda a sociedade é atingida pelo recrudescimento da doenga, que faz suas vitimas até nos seus mais altos estratos (0 rei de Jerusalém, Baldufno TIL, morto em 1183, foi a sua vitima mais ilustre). No entanto, a partir do século XIV, a lepra comega a recuar na Europa e, ja no século XV, ela praticamente desaparece do Continente. As causas de tal fendmeno — bastante surpreendente se lembrarmos que nao existia nenhuma medida terapéutica e a Medicina se declarava impotente diante da doenga — so varias, porém as principais foram a segregaciio imposta aos leprosos ¢ o fim dos grandes deslocamentos populacionais vindos do Mediterriineo Orien- tal.’ Outros fatores também concorreram, como o decl{nio da densidade popu- facional causado pela Peste Negra de 1348, a qual foi especiatmente devastadora no universo fechado ¢ pouco higi&nico dos leprosdrios.* A medicina medieval e a determinagéo da doenca A Medicina na Alta Idade Média (séculos VI ao XI) sofreu um recuoem relagao Aquela existente na Antiguidade: a maioria dos textos médicos se perdeu ¢ 0 estudo de anatomia pela dissecgao foi proibido pela Igreja. Apenas parte 5. A. T. Sousa, Curso de Histéria da Medicina, Lisboa, Fundagio Calouste Gulbenkian, 1981, p. 243. F. Béniae, “0 Medo...", op. cit, p. 129. M. Foucault, Histsria da Loucura, So Paulo, Perspectiva, 1987, pp. 5-6 ALT. Sousa, Curse de... op. cit, p. 241. ame 134 PHYSIS — Revista de Satide Coletiva Vol. 5, Numero 1, 1995 dos tratados hipocrdticos era entéo conhecida e a pratica médica cra feita principalmente pelos monges, a classe letrada da época. Além disso, 0 recurso a curas magicas ou milagrosas era corrente, como nao deixara de ser até os tempos modernos.” Com a reconquista da Sicilia e de partes da Espanha mugulmana, o Ocidente medieval péde entrar em contato com a ciéncia drabe, que se baseava tanto em experi€ncias prdprias, quanto em textos gregos traduzidos para o drabe. No campo da Medicina, a cristandade ocidental passou a conhecer a totalidade das obras de médicos gregos, como Hipdcrates e Galeno, além das de autores de lingua drabe, como Avicena, Avenzoar e Maimdnides. Esse novo saber que a sociedade medieval passou a ter em mos causou em seu interior profundas modificagées intelectuais. No século XI organizou-se na cidade italiana de Salerno uma Escola de Medicina, a primeira da Europa crista, & qual se deve a introdugao da Medicina arabe no Ocidente.'° O ensino nessa Escola tinha um carater eminentemente prdtico, sendo ali desenvolvido um método diagndstico — difundido por todo 0 Ocidente medieval — elaborado a partir do exame da urina do docnte.'’ Com a criagdo das universidades européias a partir do século XII, a Escola de Salerno entra em deciinio, e 4 Universidade de Montpellier, na Franga, passa a ser o centro do ensino da Medicina, Oconhecimento médico sobre a lepra sofreu uma evolucio consideravel com a revolugao intelectual que levou A criagdio das universidades no Ocidente medieval. Este avango ocorreu, menos em funcao do conhecimento herdado da Antiguidade, que das novas formasde observacio empirica e de sistematizacio do conhecimento. Os médicos gregos descreviam a Iepra, a qual denominavam “elefantfase”, de forma muito superficial. Foi a partir do século XII, com a incorporagio das contribuigdes dos médicos arabes — que descobriram as placas de insensibilidade na pele — e com a observagao de casos concretos, que o cardter polimorfo da lepra, com seus diversos sintomas, péde ser com- preendido e coerentemente descrito pelos médicos de entiio.'” No entanto, a maior exatidéo na descrigéo da enfermidade nao se fez acompanhar de um conhecimento mais profundo de suas causas, Os médicos medievais consideravam a lepta simultaneamente uma doenca contagiosa ¢ hereditaria, ou oriunda de uma relago sexual consumada durante a menstrua- 9. ML Rouche, “Alta Idade Média Ocidental", in Histdria da Vida Privada, Lisboa, Afronamento, 1989, vol. I, pp. 441-2. 10, A. T, Sousa, Curso de... 0p cit, p. 177, 11. Idem, pp. 184-6. 12. F, Béaiac, “O Medo..., op. cit, pp. 130-1 © Estigma do Pecado: A Lepra durante a Idade Média 135 go, perfodo em que a mulher eraconsiderada impura na tradigéo judaico-crista. Ista pode ser verificado no tratado O Lirio da Medicina, escrito em 1305 por Bemard de Gordon, professor em Montpellier: “O homem é leproso ab utero ou depois do nascimento ab utero porque € engendrado durante as menstruagoes ou porque € filho de leproso, ou porque um leproso conhecen uma mulher grivida, e entao a crianga sera Jeprosa, a lepra advém destas graves deficién- cias de geragao, Depois do nascimento, talvez devido a um ar malévolo ou pestilento ou devido a ingestao de alimentos suspeitos [...] ou por se ter estado com leprosos”,"* Fora do universo médico, nos meios populares, também havia crengas que associavam a lepra a uma concepcao impura ou pecaminosa, realizada durante os perfodos de abstinéncia sexual impostos pela Igreja.'* A ampliagio do saber médico sobre a lepra nao criou medidas préprias para lidar com a mesma. Uma vez que a Medicina nao conseguiu estabelecer nenhuma aco tetapéutica, simplesmente se mantiveram os dispositivas ja existentes, como a Segregagiio dos leprosos. Além disso, no perfodo histérico em questo, o saber médico estava longe de ter hegemonia sobre a determinago das causas ou o encaminhamento de solugées para as doengas. Er uma épocaem que as doengas e as deficiéncias fisicas eram consideradas sinais exteriores do pecado, causadas pela punigdo divina, era de se esperar que a Igreja tivesse grande dominio sobre elas. Assim, compelia As autoridades eclesidsticas considerarem uma pessoa leprosa ou nao.'? Em algumas regides da Europa o suspeito de ter lepra passava por um verdadeiro processo — afinal, se ele tinha sido condenade por Deus, também deveria sé-lo pelos homens —, no qual um jliri de leprosos, supostos conhecedores da doenga, decidia se ele de fato tinha ou nfo a enfermidade.'* Somente no século XV, médicos, barbei- ros ou citurgides passaram a ser ouvidos regularmente para confirmar ou nao a doenca. No entanto, apesar dos novos conhecimentos, o exame era muito superficial, limitando-se ao rosto e as mos, 0 que permitia a classificaco equivocada, como leprosos, de portadores de diversas doengas com manifesta- gGes dermatoldgicas. Representacoes sociais da lepra Como jd vimos, a sociedade medieval atribufa 4s doencas causas metafisicas, como a punigao dos pecados. Esta concepgio se aliava aos tabus que existiam 13, Apud F. Béniac, “O Medo...”, op. cit. p.132, 14. F Béniac, “0 Medo...”, op. eit, p. 133, 15, A.7. Sousa, Curso de... op. oft, p. 241 16, F. Bénize, "0 Medo..", op. cit..p. 132. 136 PHYSIS — Revista de Satide Coletiva Vol. 5, Nuimero 1, 1995 em relagao a tudo que colocasse em agiio as nogées de “corporat” ov “camal”.'7 No caso da lepra isto se revestia de um significado especffico, uma vez que cla jé aparecia citada na tradugio grega da Biblia — o texto de referéncia da consciéncia medieval — como punigdo divina. A decadéneia fisica que a enfermidade acarretava aparécia aos olhos dos homens da Idade Média como uma manifestagiio da deformacdo da alma, da falta contra as leis divinas. Uma lenda medieval dizia que o imperador romano Constantino teria ficade leproso apds perseguir os cristiios, sendo curado ao se converter ao cristianismo, Além disso, atos hediondos eram atribuidos aos leprosos, uma vez que a sua alta também estaria corrompida. A mesma lenda sobre Constantino afirmava que eles tomavam banhos de sangue humano para curar suas chagas. Alguns remédios a base de serpentes — que punham em jogo a similaridade magica, sugerindo que os leprosos poderiam trocar de pele como esses répteis —, que a medicina grega apresentava, associavam as vitimas da doenca a um animal considerado demonfaco na tradigio judaico-crista.'® A cles também cram atribuidos desregramentos sexuais e atos conspiratérios contra o restante da sociedade, suspeitas que se estendiam & sua descendéncia, uma vez que sé considerava a lepra como hereditaria.'* A sociedade medieval cncarava os leprosos com medo, desconfianga e, sem dévida, ddio; 0 contato com eles era indesejado ¢ a lepra era vista corno a pior das desgragas possiveis. Na versio de Béroul do romance Tristéo e Isolda, escrita no final do século XII, o rei Marcos é convencido a entregar Isolda, culpada de adultério, a um grupo de leprosos, pois este seria um castigo pior que a morte na fogueira, uma vez que duraria muito mais. O chefe dos leprosos diz ao rei: “Senhor, dir-te-ei entio rapidamente o que penso. Vé, tenho aqui com companheiros. Dé-nos Isolda c que ela nos pertenga a todos! A docnga excita-nos 0 desejo. Dé-a aos tous leprosos, Nunea uma dam terd tide pior fim. Vé, nossos farrapos estéio colados as nossas chagas supurantes. Ela quc junto a ti gozava os ricos tecidos forrados de peles, as jéias, as salas revestidas de mérmore, cla que gozava os bons vinhos, as honrarias, a alegria, quando vir a corte dos sous leprosos, quando tiver de entrar nos nossos tugiitios e deitar-se conosco entio Isolda a Bela, a Loura, reconhecerd o seu pecado ¢ terd saudades desta bela fogueira de espinhos!”.”? Fica bem ciara a oposigao entre o horror da lepra e as delicias da vida na corte. A prépria Isolda vai implorar, em vao, que a queimem, e a audiéncia, mesmo 17. B. Geremek, “Le Marginal”. in J. Le Goff, org., L'Homme Médiéval, Paris, Seuil, 1989, p. 407. 18, P, Béniac, “O Medo...", op. cis. p. 135. 19. B. Geremek, “Le Marginal..”’, vp, oit.. p. 407. 20, Apud J. Le Goll, A Civilizagao de Ocidente Medievai, Lisboa, Estampa, 1984, vol. 2, p. 77. O Estigmna de Pecado: A Lepra durante a Idade Média 137 sabendo-a culpada, teve piedade dela, mostrando que a vida desonrosa do leproso era mais temida que a prépria morte. Em um contexto menos literdrio temos uma célebre passage escrita no século XTI por Joinvilte, biégrafo de Sao Lufs. O texto é construfdo de forma a sublinbar a cposigdo entre o homem comum, com seus defeitos ¢ qualidades, e a figura extraordindria do santo. Nesta passagem 0 rei-santo se dirige ao biégrafo da seguinte forma: “Agora eu te pergunto, disse ele, o que vocé preferiria: ser leproso ou ter cometido um pecado mortai?”, ao que o outro responde: “E en, que nunca lhe menti, Ihe respondi que preferizia ter cometido trinta do que ser leproso”. O relato segue com uma repreensdo feita por Sdo Lufs a Joinville, na qual ele afirma que o pecado mortal é mais terrivel que a lepra, pois 0 corpo é curado desta pela morte, enquanto que a alma s6 se curarta como perdio divino.”) Vemos neste didlogo que a leprae o pecado mortal eram consideradas 0s piores males que poderiarm atingir respectivamente o corpo e aalma. A opiniao expressa por Joinville, que prefere a danagao da alma (assunto serfssimo para o homem medieval, que no hesitava em morrer ou renunciar a tudo para a sua Salvagao) a lepra, pode ser tomada como corriqueira, pois era de seu interesse que os leitores se identificassem com ela para que se admiras- sem com a nobreza espiritual de Sic Luis. Quanto a deste tltimo, embora seja seguramente excepcional, ela nos lembra outra atitude que os homens medie- vais apresentavam diante da lepra: a piedade. A lJepra também aparecia na Biblia, nas histérias de sofredores inocentes —- J6, Lazaro ¢ os leprosos que Cristo purificou —, como sinal de redengdo e nao ce castigo. Assim, a caridade em relago aos leprosos era estimulada pela mesma consciéncia crist& que os repelia como condenados. Esta atitude ambigua marcava a relagao da sociedade medieval com aqueles por ela exchiidos, pois ela: “Parece detesti-los ¢ admiré-los, tem medo deles num misto de atragiio ¢ horror. Conser- va-os a distncia mas fixa esta distancia muito curta, para poder t8-fos ao seu aleance, Aquilo que esta sociedade designa por caridade para com eles assemelha-se a atitude do gato para com 0 rato. Assim, as leprosarias, que deviam estar ‘A disténcia de ume pedrada da cidade’ a fim de a ‘catidade fraternal’ poder ser exercida. A sociedade medievai tem nevessidade destes périas, afastados porque perigosos, mes visiveis, pois ela forja, mediante cnidades que thes dedica, a sua boa consciéncia e, ainda mais, projeta e fixa magicamente neles todos os males que de si afasta”.”* Entre a compaixio e a exclus4o, a posi¢&o social do leproso contribufa para que prevalecesse um dos dois sentimentos. Leprosos poderosos, como 0 rei Baldui- 21. Apud A, Lagarde e L. Michard, Moyer Age, Paris, Bordas, 1975, pp. 124-5. 22. J. Le Goff, A Civilicagdo..., op. cit, pp. 76-7. 138 PHYSIS — Revista de Saiide Coletiva Vol. 5, Niimero 1, 1995 no HI, nunca foram incomodados, permanecendo em seu meio social; j4 aqueles menos abastados eram condenados 4 marginalidade, na mendicancia ou nos lepro: Segregacdo e estatuto juridico A segregagdio das vitimas da lepra parece datar do inicio da endermia na Europa. Os textos nos mostram, jd no século IV, os leprosos da Galia vivendo a parte. No decorrer da Idade Média esses doentes criam agrupamentos esponténeos que, pouco a Pouco, se institucionalizam com a posse de imdveis e a concessio de uma capela.* No periodo entre os séculos XI ¢ XII, os leprosdrios se multiplicam por toda a Europa, chegando a existir cerca de 19 mil estabeleci- mentos.* Os leprosdrios contavam com a caridade dos habitantes das cidades e dos poderosos, chegando alguns a possuir fortumas consideraveis. A admissao em um leprosdrio rico e bem organizado representava um privilégio: a certeza de nao morrer de fome. Nesse contexto, algumas cidades reservavam os leprosa- rios aos seus burgueses, e outros, como 0 de Bruxelas, cobravam altas taxas de admissao.”* Aqueles que nao conseguiam ter acessoa essas instituigdes estavam condenados & vida errante da mendicAncia e da marginalidade. A organizagao interna dos leprosdrios variava muito, e em alguns deles os doentes viviam sob a diregao de um leproso, mas a maioria era controlada por congregagées religiosas. Cada doente recebia uma quantia para viver, ¢ nos estabelecimentos mais pobres as esmolas, assim como o saldrio dos que faziam servigos fora, eram repartidas entre todos, garantindo o sustento dos invalidos. A disciplina era conventual, sendo obrigatéria a castidade, medida que visava impedir a propagagiio hereditaria que, camo se acreditava na época, a lepra teria. Apesar de os leprosos nunca terem ficado totalmente restritos aos leprosd- rios, podendo freqiientar locais autorizados pelos seus superiores (ndo Ihes era permitido de forma alguma ter acesso aos moinhos ou tocar os alimentos no mercado), estes se tornaram universos cada vez mais fechados. O IIT Concilio de Latrfio estenden essa exclusao para além da morte ao permitir a construgao de cemitérios dentro dos leprosarios.* Depois da perseguigio de 132) na Franga, sobre a qual me deterei mais adiante, os leprosos passaram a ser reclusos 23. F. Béniae, “O Medo...”, op. eit, pp. 129-35. 24, M. Foucault, Histéria da... op. cits PI. 25, F. Béniae, "O Medo...”, op. eit, p. 141. 26. J. Le Goff, A Civifizagée..., op. cit., vol. 2, p. 82. OEstigma do Pecado: A Lepra durante a Idade Média 139 pos estabelecimentos.”” Esta excluso atingia até os filhos dos leprosos, que eram obrigados a viver em baisros separados & aos quais sé era permitido exercer oficios considerados como “infames” ou “impuros”* A prépria cari- dade para com og doentes tinha a fungao de impedi-los de ter de entrar nos mercados ou de vender animais. Mesmo a pretensa liberdade de circulagfio dada aos leprosos trazia em si a marca da segregacio. Eles sé poderiam sair dos leprosarios vestindo longas capas, nas quais era pregados rabos de raposas durante o carnaval, come pade ser visto no quadro Os Aleijados, de Pieter Bruegel, pintor flamengo do século XVI, no qual um grupo de leprosos é representado no horror de suas deformi- dades e de seu isolamento. Além disso, tinham de usar luvas e um grande chapéu pontudo e agitar uma matraca. Estas medidas tinham por objetivo fazer com que todos notassem a presenga do doente e se afastassem dele, como pode ser constatado em um outro quadro de Bruegel, A Luta entre 0 Carnaval e a Quaresma, onde um grupo de leprosos permanece & parte da ago que os rodeia. Assim, mesmo quando participava da vida social, o leproso o fazia reafirmando publicamente o cardter contagioso e impuro do seu ser, lembrando os motivos de sua exclusio, A lepra conferia as suas vitimas um estatuto juridico especial, que foi estabelecido no século XIE: “Depois do nome menciona-se ‘“leproso’, como. ‘padre’, ‘cavaleiro’ ou ‘donzel’”.”” Em algumas regiées, como a Normandia, isto acarretava a perda dos direitos juridicos, No século XV, surge uma ceriménia de separacdo do leproso do resto da sociedade, que consistia na dramatizacio da morte do mesmo. Apds ter sido reconhecido como tal, o leproso era levado a igreja em procissao com cantos ftinebres; uma vez 4, ele ouvia a missa sob um cadafalso; na safda da igreja ou ao chegarem ao leprosério © padre pegava um punhado de terra do cemitério ¢ punha-a na testa do doente, dizendo: “Meu amigo, é sinal que esté morto para o mundo e¢ por isso tem paciéncia e louva em tudo a Deus”. Eram lidas as proibigdes, como entrar nos moinhos etc., e entregues e abengoadas as luvas, a matraca e a caixa de esmolas.*” Essas “mortes em vida” eram localizadas ou surgiram tardiamente, quando a lepra jd estava desaparecendo, mas so bastante reveladoras da atimde que a sociedade medieval tinha para com os doentes. 27. C, Ginzburg, Histéria Noturna, Sao Paulo, Cia. das Letras, 1991, p. 45. 28. B. Geremek, “Le Marginal...”. op. cit., p. 407. 29, F. Béniac, “O Medo...”, ap. cit. p. 136. 30. idem, pp. 139-40. 140 PHYSIS ~ Revista de Sauide Coletiva Vol. 5, Néimero 1, 1995 Odioe desconfianga: a perseguicao de 1321 Os sentimentos coniraditdrios de piedade, medo, desconfianga e ddio que a sociedade medieval experimentava diante dos leprosos atingiram 0 seu paro- xismo na grande perseguigao de 1321. Neste ano, apés um periodo de fome que se estendeu de 1315 a 1318 ¢ da passagem pela regiao dos fandticos da chamada “Cruzada das Criangas”, comegaram a circular no sul da Franga boatos que acusavam os leprosos de terem envenenado os pogos, as fontes ¢ os rios para transmitir lepra aos sfos e fazé-los adoecer ou morrer. O objetivo deles seria o dominio das cidades e dos campos, ou seja, tratava-se de um complé contra a sociedade.”! Em algumas cidades os culpados teriam sido supostamente apanhados, julgados e queimados, enquanto em outros Jugares a populaciio horrorizada cerrou com iraves as casas dos leprosos e queimou-as com seus moradores dentro. Do sul da Franga, os massacres ¢ as condenagdes se espalharam por todo o reino. Depois desse furor inicial, foi decidido que os leprosos julgados inocentes ficariam reclusos nos leprosdrios, com a condicao da separagao entre homens e mulheres para evitar a sua reprodugio. Tanto o massacre quanto a recluséo eram autorizados pelo rei, que em um édito proclamado contra aqueles que permaneciam sem punigdo declarava que: “Tados os leprosos sobreviventes que haviam confessaco o crime deveriam ser queima- dos. Os que ni quisessem, confessar deveriam ser torturzdes ~~ ¢, quando tivessem confessado a verdade, seria queimados. As mulheres leprosas que tivessem confessada o crime, espontaneamente ou sob tortura, deveriam ser levadas 4 fogueira, a menos que estivessem grividas; neste caso tinham de ficar segregadas e, apés 0 parto, ser conduzidas a0 fogo. Os leprosos que, nZo obstante tudo isso, recusassem confessar a participagio no crime deveriam ser segregados nos locais de otigem; os homens tinham de scr Tigorosa- mente Separados das mulheres. A mesma sorte cabetia aos filhos que viessetn a nascet. Os menotes de qualorze anos deveriam ser segregados, sempre mantenda separados os meninos das meninas; os maiores de quetorze anos que conicssassem o crime seriam queimados".* Posteriormente, este decreto foi modificado, passando o caso para a Justica local, tendo em vista uma punigio mais répida dos culpados. As autoridades eclesiasticas também se ocuparam do caso, mobilizando os tribunais inquisito- riais contra os leprosos ¢ os chefes dos leprosdrios. Com o passat do tempo, surgiram versdes para o complé — confirmadas 31. C. Ginzburg, Misiéria Nowma.... op. cit, p. 43 32, Heim, p. 44, © Estigma do Pecado: A Lepra durante a Idade Média 141 pelas confissdes arrancadas mediante tortura —, que ligavam os leprosos a outras fontes de pesadelo da sociedade medieval: uma interna, os judeus, e outra externa, os mugulmanos da Espanha e do Oriente Médio. Em todas elas era sublinhada a “‘doenga moral” dos ieprosos: o ressentimento que eles teriam pelas pessoas sadias ¢ contra a segregacdo a eles imposta; a sua ganancia, j4 que, segundo algumas vers6es, eles teriam recebido dinheiro dos judeus c¢ dos arabes para efetuar 0 complé e, em outras, eles préprios estariam desejando o poder; e a sua maldade, que os fazia atentar contra a sociedade cristé. O resultado dessa perseguigdo foi o maior programa de reclusdo que a civilizacéio ocidental conheceu até entéo, com o confinamento total dos leprosos aos leprosarios, sendo que, em alguns casos, eles eram marcados com ferro em brasa para evitar a fuga.’ Progressivamente essas medidas foram se abrandando e a reclus4o se tornou menos completa, havendo, em 1338, uma declaragdo do Papa sobre a inocéncia dos leprosos, No entanto, a rapidez ea violéncia com que a idéia do complé se difundiu e a sua grande duragiio (7 anos no caso dos leprosos ¢ outros tantos mais para os seus supostos aliados) mostram que existia uma disposig&o social em aceité-la. O Ocidente medieval nunca se sentiu tranqitilo em relagio aos leprosos, e ndo poderia ser diferente em uma sociedade que temia e detestava tudo que pusesse em questo os seus valores. - Assim, apesar da compaixao que a caridade religiosa pregava para com o sofrimento alheio, os homens medievais ndo conseguiam conter a inquietagao que a presenga dos portadores de uma doenga “desonrosa”, deformante ¢ contagiosa causava. Os leprosos representavam uma mancha moral e fisica em uma sociedade que se queria pura. Assim, dada a crenga no perigo que representava um grupo de ressentidos sem limites morais, a sociedade medieval ampliou seus mecanismos de exclusio e desenvolveu as potencialidades de purificagio social vis-a-vis um esquema de conspiracao.** Conclusic: 0 declinio da lepra e a persisténcia da exclusio A rigorosa exclusdo a qual os leprosos foram submetidos, apesar de nao sex uma medida baseada em uma terapéutica, e sim em concepgdes sociais de impureza € contagio, apresentou, juntamente com outros fatores, efeitos prati- cos no controle da lepra na Europa medieval. No século XIV aendemia comega 33. ddern, p. 66. 34. Idem, ibidem. 142 PHYSIS — Revista de Satide Coletiva Vol. 5, Nemero 1, 1995 a declinar para néio mais se recuperar, e dois séculos depois ela jd se encontra praticamente extinta. No entanto, parte dos dispositivos sociais criados ao seu redor, como a exclusio e reclusdo de suas vitimas, teriam um longo futuro na histéria ocidental. E importante perceber que a lepra atingiu fortemente a cristandade medieval er um perfoda no qual esta constitufa como universo fechado, em oposigao a qualquer aiteridade. Os mecanismos que a lepra suscitou reforgaram essa forma de estruturagdo social, que precisava isolar e controlar os seus elementos perturbadores para se afirmar como dominante. Assim, a segregagdo e 0 confinamento que se cristalizaram em torno dos leprosos, ¢ os sentimentos ambiguos que eles suscitavam vio permanecer por muito tempo no tratamento que a sociedade ocidental dispensaré aos seus exclufdos, como os judeus, os criminosos ou os loucos. Além disso, a Medicina ocidental vai incorporar esse modelo exchudente como base da ago terapéutica nos hospitais,** onde a segregacao dos doentes passa a ser uma via obrigatéria para a cura. Esta apropriagdo serd ainda mais completa no processo de medica- lizagdo da loucura, em que a producio de um tipo social indesejavel distinto dos demais € seu confinamento em instituigées fechadas ou, se preferirmos, totais,* retoma as principais tinhas de forga dos mecanismos empregados contra os leprosos. 7 Vemaos, entao, na dinamica histérica da lepra na Idade Média, como, do encontro de um fenémeno desestabilizante, que é€ uma doenga, com uma determinada estrutura social, surgiram mecanismos de controle e organizagaio que se tornaram constituintes da medicina ¢ da prépria sociedade ocidental. RESUMO O Estigma do Pecado: A Lepra durante a Idade Média O percurso da lepra e dos leprosos durante 0 periodo medieval constitui um objeto privilegiade para o estudo do impacto de uma doenga sobre determinada sociedade e dos mecanismos sociais envolvidos na percepgao, delimitagao e destino das doengas, pois ela atingiz o Ocidente medieval em um momento em que este se definia de forma exchidente em relac4o A alteridade. Os dispositivos que a Idade Média criou para superar a desestruturagdo 35. A. Saunier, “A Vida Quotidiana nos Hospitais da Idade Média”. in J. Le Goff. org., As Doencas... op. cit., p. 219. 36. M, Foucault, Hisedria da Lowura.... op. cit, pp 68. O Estigma do Pecado: A Lepra durante « [dade Média 143 trazida pelo advento da lepra, excluindo os leprosos do convivio social ¢ encetrando-os em um universo a parte, 0 qual despertava, a0 mesmo tempo, medo, desconfianga e édio, tiveram uma enorme aceitagid social. Assim, a segregacdo e o confinamenio que se cristalizaram em toro dos leprosos, apareceramn, por muito tempo, no tratamento que a sociedade ocidental dispen- sou aos seus pdrias; além disso, a prépria medicina ocidental os incorporou como base da ago terapéutica, em que o isolamento dos doentes passou a ser uma via obrigatéria para a cura, ABSTRACT The Stigma of Sin: Leprosy in the Middle Ages The trajetory of leprosy and lepers in the Medieval period is a special subject to the study of the impact of a disease on a determined society, and of the social mechanisms implicated on the perception, delimitation, and destiny of the diseases, for it achieved the Medieval Occident in a time when it was defining itself in an excluding way in relation to a change. The mechanisms that the Middle Ages created to overcome the desestabili- zation caused by the forthcoming of leprosy, keeping the lepers away from the social contact, and locking them in a world apart, that caused fear, suspicion, and hate at the same time, were very well accepted by the society. Therefore, during a long time, the segregation, and confinment that were fixed around the lepers appeared in the treatment that occidental society gave to its social outcasts, moreover, the occidental medicine itself incorporated them as base for the therapeutic action, in which the segregation of pacients became the compulsory way to cure. RESUME Le Stigmate du Péché: La Lépre au Moyen-Age Le parcours de la Iépre et des lépreux durant la période médieval constitue un sujet privilégié pour |’étude d’ une maladie sur une société determiné et des mécanismes sociaux engagés dans Ia perception, délimitation et destin des maladies, car elle a atteint 'occident medieval a un moment oi celui-ci se précise de fagon a exclure tout changeroent. Les dispositifs que le Moyen-Age a crée pour surmonter la destructuration apporté par l’avénement de la lépre, excluant les iépreux de fa fréquentation 144 PHYSIS — Revista de Satide Coletiva Vol. 3, Numero 1, 1995 sociale et les enfermant dans un univers & part, en éveillant, en méme temps, peur, méfiance et haine, ont ew une énorme acceptation sociale. Ainsi, la ségrégation et le confinement qui se sont cristallisés autour des fepreux, se sont présentés, pendant longtemps, dans le traitement que la société occidentale a accordé a ses parias; de plus, la médicine occidentale les a incorporé comme base d'action terapentique, o& |’isclement des maladies est devenu un chemin obligatoire vers la cure,

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