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Cena politica e interesse de classe na sociedade capitalista Comentario em comemora¢ao ao sesquicentendrio da publicagao de O Dezoito Brumdrio de Luis Bonaparte ARMANDO BOITO JR.” trabalho teérico de Marx ope- ra, na anélise econémica, social e poli- tica, com a distingao entre, de um lado, uma realidade aparente ou superficial e, de outro lado, uma realidade essen- cial ou profunda. E sabido que essa dis- ting nao é exclusiva do marxismo. Ela é, em suas diversas modalidades, milenar na historia da filosofia e na his- t6ria da ciéncia. Contudo, apenas as concepgées que apresentam a realida- de superficial como um véu que desem- penha uma funcdo particular, qual seja, a funcao de ocultar a realidade profun- da, apenas essas encontram-se num ter- reno préximo ao do marxismo. fl g 5 z a s COMENTARIOS E muito conhecido e comentado 0 modo como tal distingao opera no inicio do volume 1 de O capital, mais exata- mente na passagem da segunda segdo (“A transformag%o do dinheiro em capital”) para a terceira seciio (“A produgao da mais-valia absoluta”). Analisando as re- lagdes entre 0 operario ¢ o capitalista como relagdes entre vendedor e com- prador de mercadoria, Marx comega pela realidade superficial e enganosa do mercado, realidade econémica regula- da pelo direito burgués. Nesse plano, os proprietérios de mercadorias, inclusive o trabalhador que vende a sua forga de tra- balho, aparecem, todos, como homens li- * Professor do Departamento Ciéncia Politica da Unicamp. CRITICA MARXISTA # 127 vres, iguais e trocando equivalentes. A seguir, Marx introduz a realidade do pro- cesso de produgao capitalistae, nesse mo- mento, a exploragao de classe desfaz a liberdade, a igualdade e a troca de equi- valentes. Observa-se, entao, que o traba- Ihador, longe de usufruir da liberdade de ire vir, est4 prisioneiro no interior da uni- dade produtiva, seu tempo ¢ seus passos so controlados, ele, longe de ser tratado como um igual, é 0 subalterno que deve obediéncia ao capitalista ea seu preposto, € a utilizagfo de sua forga de trabalho, em vez de agregar apenas um valor cor- respondente ao que Ihe foi pago a titulo de salério, gera um valor excedente que € apropriado pelo capitalista. O trabalha- dor assalariado 6, de fato, juridicamente livre, 0 que o distingue do escravo e do servo. A proclamagao de liberdade é, como diria Althusser, uma alusdo a rea- lidade, Mas essa mesma proclamacao é, também e principalmente, uma ilusdo, na medida em que oculta a relacio de ex- ploragao e de dominagao de classe. Tra- ta-se, entio, de uma iluséo ideolégica, porque desorganiza a classe operdriae in teressa classe capitalista. E a andlise cientifica que pode desvelar a realidade profunda encoberta pela realidade apa- ente, O observador que se ativer, como 0 economista vulgar, & esfera da circu- lagdo produzira idéias superficiais ¢ mistificadoras. Essa distingo geral, que esta pre- sente no conjunto da obra de maturida- de de Marx, opera de um modo impor- tante, ¢ talvez nao suficientemente des- tacado e desenvolvido, na sua andlise da cena politica nas sociedades capitalistas. Na verdade, até a década de 1970, os dirigentes c intelectuais da escola comu- nista e, em menor medida, da escola socialdemocrata, tinham 0 cuidado de distinguir, na cena politica das socieda- des capitalistas, o mundo das aparéncias, no qual cada contendor proclama seus nobres prinefpios e seus pretensos valo- res universais, do mundo profano dos in- teresses econdmicos e politicos, no qual valores e interesses se trocam uns pelos outros —nao porque ninguém tenha prin- cipios, mas porque todos os principios esto vinculados a interesses. Entretan- to, a0 longo das tiltimas décadas, com a crise ¢ 0 declinio dos antigos movimen- tos socialista ¢ comunista, a concepgao burguesa, vulgar, da cena politica nas so- ciedades capitalistas, disseminou-se am- plamente, sendo contrabandeada, inclu- sive, para 0 campo dos intelectuais socialistas. Hoje, no mais das vezes, con- sidera-se desnecessério ou improceden- te o esforco intelectual para detectar os interesses de classe que se ocultam por trds das correntes e dos partidos politi- cos que disputam o poder. Numa con- juntura como essa, vale a pena, entio, retomar a questdo. A conhecida obra de Marx O De- zbito Brumdrio de Luis Bonaparte, obra cuja publicag%o est4 completando 150 anos, d4 um tratamento pioneiro e exemplar aessa matéria!. Essa obra en- "Foi Danilo Martuscelli quem me chamou atenglo para 0 sesquicentenario da publicago do Dezoito Brumério, 0 que me estimulou a produzir este texto 128 ¢ CENA POLITICA E INTERESSE DE CLASSE cerra uma fase do colossal trabalho de Marx de fundacao da anilise cientffica da politica e, particularmente, da ané- lise da politica nas sociedades capita- listas — a fase iniciada com a ruptura te6rica de A ideologia alemd e encer- rada com o balango politico da experién- cia das revolugGes de 1848. Utilizemos, ento, esse sesquicentendrio para tirar algumas ligdes. A cena politica dissimula os interesses e os conflitos de classes Em O Dezoito Brumdrio e tam- bém no Luras de classes na Franga, li- vro que 0 antecedeu e Ihe serviu de base, Marx concebe a cena politica nas sociedades capitalistas, que é 0 espago de luta entre partidos e organizagdes po- liticas, como uma espécie de superes- trutura da luta de classes e de fragdes de classe, que formam aquilo que po- derfamos denominar a base socioeco- nOmica da cena politica. A cena politica € uma realidade superficial. enganosa, que deve ser desmistificada, despida de seus préprios termos, para que se te nha acesso & realidade profunda dos interesses e dos conflitos de classes. Podemos conceber, aqui, uma diferen- ¢a com a cena politica e as instituigdes representativas nas sociedades pré-ca- pitalistas. O Senado Romano ou os Es- tados Gerais da Franga medieval sao, como parlamentos pré-capitalistas, e se- guindo as caracterfsticas escravista ¢ feudal do Estado romano e do Estado francés, instituigdes particularistas cujos vinculos sociais so evidentes por si sds. No Senado Romano, antes da criagdo da figura do tribuno, sé entram 08 patricios e nos Estados Gerais fran- ceses s6 os homens livres tm assento, Mas as caracteristicas da cena politica na sociedade capitalista decorrem das caracteristicas gerais do Estado capita- lista e, desse modo, a aparéncia universalista desse Estado, frato do di- reito igualitario ¢ da burocracia profis- sional formalmente aberta a todas as classes, essa aparéncia contamina to- dos os partidos politicos burgueses e pe- queno-burgueses ¢ todas as correntes de opiniio. A sociedade burguesa & uma sociedade anénima e os seus par tidos politicos devem manter esse ano- nimato de classe. Para esclarecer essa idéiac, a0 mesmo tempo, fazer uma re- feréncia critica ao conceito gramsciano de sociedade civil, dirfamos que as fi- guras bisicas da ideologia da socieda- de civil sao produzidas ¢ difundidas pelo préprio aparelho repressivo do Es- tado (pelo direito e pela burocracia). Pois bem, os partidos burgueses e pequeno-burgueses nao anunciam aber- tamente os interesses que representam ¢ organizam. Na verdade, eles represen- tam e, ao mesmo tempo, dissimulam in- teresses de classe. As idéias, os valores © 0s programas desses partidos cumprem a dupla fungdo de organizar seus repre- sentados ¢ iludir a classe operdtia. Ve- remos, no final deste comentario, que € outra (e deve ser outra) a relacio dos partidos operdrios com a classe que re- presentam. Por ora, contudo, o que inte- ressa destacar € que a anélise polftica marxista das sociedades capitalistas s6 comega quando, ¢ somente quando, o CRITICA MARXISTA © 129 analista evidencia os lagos complexos que unem a cena politica aos interesses econdémicos e aos conflitos de classe. Praticar andlise politica designando os agentes presentes na cena politica pelos nomes e objetivos que eles proprios se do € permanecer na superficie engano- sa do fenémeno, e muitos marxistas in- correm nesse erro, tipico da ciéncia po- Iitica vulgar’, No espago desse breve comenté- tio, nao € possivel analisar todas as mil- tiplas relagdes entre, de um lado, os par- tidos e agrupamentos presentes na cena politica francesa de meados do século XIX e, de outro lado, os interesses das diferentes classes (burguesia, classe ope- réria, pequena burguesia e campesinato), fragdes de classe (indtistria, financas, agricultura etc.) ¢ camadas sociais (0 lumpemproletariado), tal qual essas re- lagdes so pensadas, com riqueza de detalhes, nas obras O Dezoito Brumdrio e Luta de classes na Franga. Por isso, vale a pena apresentar, de safda, um qua- dro geral e esquemitico dessas relacdes. Ele poder servir de referéncia para 0 leitor e para nossa argumentagio’. No quadro ao lado, a terceira co- luna apresenta 0 que seriam, para Marx, as provas da relagdo de representagao existente entre, de um lado, determina- dos partidos politicos, grupos parla- mentares, associagdes e correntes de opiniao e, de outro lado, certos interes- ses de classe, de fragdo de classe e de camadas sociais. Observando essa ter- ceira coluna, vé-se que, para detectar as telagdes de representaco de interesses, Marx opera em dois planos. Num plano objetivo, procura estabelecer correspon- déncias entre, de um lado, os programas e as priticas dos partidos politicos e, de outro lado, os interesses potenciais ou. efetivos de classes e fragdes; num pla- no subjetivo, procura detectar a exi: téncia de identificagao entre os partidos, de um lado, ¢ determinadas classes e fra- Ges, de outro. Ele pensa, alias, dois ti- pos de identificacao (subjetiva). O cam- pesinato identifica-se com Bonaparte porque vé nele a possibilidade de res- tauragao de um passado mitico e, em conseqiiéncia, vota nele; a Montanha representa a pequena burguesia porque suas hesitagdes ¢ bravatas correspon- 2 Nem vale a pena se referir aqui as andlises que se restringem aos nomes dos politicos profissio- nais ou as suas siglas pai ias. Mas lembremos que mesmo aqueles analistas que tentam dar um passo a frente, caracterizando correntes de opinido e escolas de pensamento, procedimento Go comum no pensamento de esquerda brasil © enganosa. Imaginam que as lutas politicas opdem, pura e simples- dessa realidade superti , mesmo 0s que procedem assim so vitimas mente, a esquerda a direita, os progressistas aos conservadores, os desenvolvimentistas aos libe- rais, os nacionalistas aos entreguistas e assim por dainte. Nunca se perguntam que interesses de classe ou fracao tais correntes representam ¢ por qué. > Ha uma andlise ampla e detalhada das relacdes entre classes e partidos na obra O Dezoito Brumério no livre de Nicos Poulantzas, Pouvoir Politique ct Classcs Sociales, Paris, Francois Maspero, 1968, 130 ¢ CENA POLITICA E INTERESSE DE CLASSE Luta de classes e cena politica — Franga (1848-1851) Classes, Partidos e Evidéncias da Grupo Plataforma frages e ca- tendéncias —_—relagao do parlamentar _ politica madas sociais partido com a classe ou fracao Proletariado Blanqui, Cabet, Republicanismo Ala esquerda Republica Raspail, Blanc, radical, criagao_ da Nova Social Albert, Barbés, das Oficinas. Montanha ala esquerda da _Nacionais e do Social- Ministério do democracia Trabalho e acdo insurrecional Pequena ‘Social- Conciliagdo, _ Montanha Repiblica burguesia democracia _triunfalismo e Democratica hesitagoes Burguesia Republicanos — Ideologia Republicanos — Repiiblica republicana —Puros republicana e — Puros Parlamentar composi¢ao social Grande Monarquistas Apoliticada Orleanistas, —Defesa burguesia orleanistas monarquia Partido da doutrinaria da financeira, (conde de Pa- constitucional_ Ordem monarquia, industriale ris, Luis Felipe _ dos Orleans, aceitacao comercial d’Orleans) em 1830-1848. pratica da Repiblica Burguesia Monarquistas Atradicioea Legitimistas, Defesa agraria e legitimistas politica da Partido da doutrinaria da proprietdrios de (conde de monarquia dos Ordem monarquia, terra em geral Chambord, Bourbons aceitagso pretenso entrel815 e pratica da Henrique V)__ 1830. Repiblica CampesinatoBonapartistas, Tradigao, Bonapartistas, Restauracéo do conservador, Sociedade 10 _eleices Partido da Império lumpem e exér- de Dezembro regime politico Ordem cito bonapantista Fontes: Karl Marx, O Dezoito Brumério de Luis Bonaparte e As Lutas de Classes na Franca (1848-1850). dem & situagdo de classe intermediaria da pequena burguesia, dilacerada entre as duas classes antag6nicas. Feitas es- sas observagdes, passemos ao ponto que nos interessa. Marx se serve amplamente da metéfora teatral em seu texto, como ja destacaram diversos comentadores: drama, comédia, tragédia, ato, entreato, personagem, cena, proscénio etc. Me- tforas so, muitas vezes, o indicador da existéncia de idéias e conceitos de uma teoria nova, que n&o cabem nas nogdes e na terminologia tradicionais. Tais figuras pecam pela imprecisao, mas ajudam a avangar mais rapidamen- CRITICA MARXISTA ¢ 137 te no territério selyagem de uma nova ciéncia. As metdforas de O Dezoito Brumdrio indicam, a todo momento, que a cena politica das sociedades ca- pitalistas deve ser pensada por referén- cia a algo que se encontra fora dela. Polemizando com a visdo que os de- mocratas possuiam da Revolugio de 48 na Franca ¢ das lutas subseqiientes, Marx procura desmistificar os confli- tos entre republicanos ¢ monarquistas €, no campo dos monarquistas, entre os monarquistas legitimistas ¢ os orlea- nistas — ver o Capitulo III de O Dezoito Brumario. Nesses dois casos, as lutas, tal qual se apresentam na cena politica, dividindo republicanos e monarquistas € subdividindo-os entre legitimistas ¢ orleanistas, essas lutas entre partidos e correntes de opinitio, embora existam, sejam reais, ao mesmo tempo ocultam uma realidade mais profunda, a reali- dade da luta entre classes ¢ fragdes de classe. Marx anuncia, com a simplici~ dade dos classicos, essa sua descober- ta cientffica e revoluciondria nos se- guintes termos: Antes de prosseguirmos com a histé- ria parlamentar dessa época, devemos fazer aqui algumas observagoes para evitar as ilusdes correntes sobre 0 ca- rater do perfodo que estudamos. Ob- servando as coisas do ponto de vista dos democratas, tratar-se-ia, tanto no perfodo da Assembiéia Legislativa quanto no da Assembléia Constituin- te, de uma mera luta entre republica- ‘Tos e monarquistas. (...) Mas, se exa- minamos mais de perto a situacio e 08 partidos, desaparece essa aparén- cia superficial que dissimula a luta de classes a fisionomia particular desse periodo.* O trabalho de anélise da cena po- litica nas sociedades capitalistas é um trabalho de desmascaramento. A argu- mentagao de Marx para desfazer a dis- simulagdo € clara. Os monarquistas aceitaram a Reptiblica, enquanto essa se revelou adequada para a dominacao burguesa. Marx diz: “agem como bur- gueses, € nao como monarquistas” ou “como representantes do regime bur- gués, nfo como paladinos de princesas errantes”. Acrescentarfamos: agem co- mo classe, nao como corrente de opi- nido, Os monarquistas falam muito em restauragao da monarquia, mas poster- gam sine die a restaurago monarquica. Marx desce aos detalhes da crénica politica na sua argumentagdo, Destaca que, cada vez que os parlamentares legitimistas e orleanistas visitavam os membros de suas respectivas dinastias, 0s Bourbon e os Orleans, esses exter- navam 0 sentimento de que eram traf- dos por aqueles que deveriam lutar pela restauragao do trono. Vejamos agora quanto valiam os grandes princfpios republicanos. Marx destaca que os denominados “republi- canos puros” uniram-se aos monarquis- tas para sufocar a insurreigo operéria de junho de 1848 e também para sufo- * Kail Marx, Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte, Patis, Editions Sociales, colegio Classiques du ‘Marxisme, 1976, p. 46-7 (traducdo e destaques meus). 132 * CENA POLITICA E INTERESSE DE CLASSE car a insurreigdo pequeno-burguesa de junho de 1849. Ora, se a luta entre re- publicanos e monarquistas dividisse a politica francesa, tal alianga seria incon- cebfvel. Essa pritica politica, lembra Marx, mostra que havia, para os repu- blicanos, um “valor” maior que a Re- piiblica a ser preservado, valor que na yerdade s6 era valor no sentido finan- ceiro do termo. Diz Marx: (...) [a insurreigao operdtia de junho de 1848] havia mostrado, ao mesmo tempo, que na Enropa se colocavam outros problemas além daquele da re- piblica ou da monarquia. Portanto, a alternativa repablica ou monarquia 6, em primeiro lugar, limita da. Em segundo lugar, a insurreigdo pe~ queno-burguesa de junho de 1849 era republicana e, no entanto, os denomina- dos republicanos puros uniram-se aos monarquistas contra ela, Fazendo um balango: se monarquistas aceitam a re- publica, se republicanos aliados a monar- quistas lutam contra republicanos, se a revolta operdriae popular vai além da al- ternativa repiblica versus monarquia, a divisio entre republicanos e monarquis- tas deve ser repensada e remetida, segun- do sustenta Marx, & sua base de classe. Os monarquistas burgueses podem se unir aos republicanos burgueses para derrotar os republicanos pequeno-bur- gueses, porque os dois primeiros so burgueses e estes tiltimos so pequeno- burgueses, isto €, porque uns € outros Karl Marx, Le 18 Brumaire..., op. cit, p. 25. se guiam de acordo com sua posigao de classe. A agio desses partidos e corren- tes de opiniao demonstrou que o funda- mental para eles era o interesse de clas- se € nfo a doutrina politica © 0 compromisso abstrato com esta ou aque- la forma de Estado (monarquia ou rept- blica). Esse trabalho de desmasca- ramento nfo é uma imputagio arbitraria, mas, sim, uma conclusao decorrente da anélise do discurso e da prética dos par- tidos politicos. ‘A cena politica representa € articula os interesses € os conflitos de classe E interessante acompanhar ainda o desvelamento do conflito no interior do campo monérquico, conflito que opunha legitimistas ¢ orleanistas, por- que nesse caso Marx indica que os per- sonagens acreditam em sua pr6pria fan- tasia, A relacio entre aparénciac esséncia nao é pensada por Marx como uma re- lagio simples entre a mentira ¢ a ver- dade. A aparéncia faz parte da tea- lidade, tem a sua “espessura” prépria. Na andlise de Marx, cada uma dessas correntes representa uma fragao das classes dominantes. Defendem in- teresses econdmicos concorrentes endo © direito que esta ou aquela dinastia teria de ocupar 0 trono. Os legitimistas representam os interesses da proprie- dade da terra e os orleanistas, os inte- resses do capital (financeiro, comercial e industrial). Carlos X, monarca Bour- CRITICA MARXISTA # 133 bon (1824-1830), ramo defendido pe- os legitimistas, radicalizara durante 0 seu reinado a politica conhecida como de restauragéo, em defesa dos interes- ses dos grandes proprietarios de terra — indenizagao da aristocracia emigrada pelas perdas provocadas pela Revolu- gio, supressio do direito de voto dos comerciantes e industriais, supresstio da liberdade de imprensa. Os orleanistas foram oposigao a Carlos X e, quando assumiram 0 poder gracas 4 Revolugio de Julho de 1830, colocaram Luis Felipe I no trono e governaram em nome da burguesia — implantaram uma reforma eleitoral ampla o suficiente para integrar ‘a burguesia ao corpo de eleitores da ca- mara dos deputados, mas suficientemen- te restrita para manter as profissdes li- berais, os pequeno-burgueses, os camponeses e os operdrios exclufdos do sistema eleitoral, suprimiram a here- ditariedade dos postos na cdmara aris- tocrética (Chambre des Pairs) e a prer- rogativa real de emitir ordonnances (decretos-lei). Seguramente, so indicios como esses que Marx tem em mente quando afirma que no reinado de Carlos Xa propriedade rural era a forca “hege- ménica” no Estado, enquanto no reina- do de Luis Felipe I tal posicao seria ocu- pada pela burguesia. Entretanto, 0 apego a uma ou a outra casa dindstica no é concebido por Marx como um mero despiste manipu- lado pelos parlamentares monarquistas. Tal apego funciona, de fato, como ele- mento de coesao para cada uma das fac- Ges rivais. Cada dinastia, na verdade, organiza uma frago da classe dominan- te. Tais fragdes existem como fragdes diferenciadas também gracas & atuag&o politica das famflias reais. Para ilustrar, vale a pena fazer outra longa citacdo. Nesse trecho Marx parte da realidade su- perficial do conflito dindstico, aponta o conflito entre fragdes burguesas que se oculta num plano mais profundo e, fi- nalmente, retorna ao conflito superfici- al para indicar que cle também faz parte da realidade. Os legitimistas ¢ 0s orleanistas, como dissemos, formavam as duas grandes facgbes do partido da ordem. O que ligava estas facgdes aos seus preten- dentes e as opunha uma & outra seriam apenas as flores-de-lis ¢ a bandeira tricolor, a Casa dos Bourbons e a Casa de Orleans, diferentes matizes do mo- narquismo? Sob os Bourbons [1815- 1830], governara a grande proprieda- de territorial, com seus padres lacaios; sob os Orleans (1830-1848), a alta finanga, a grande indiistria, 0 alto comércio, ou seja, © capital, com seu séquito de advogados, professo- res oradores melifiuos. A Monarquia Legitimista foi apenas a expresso po- Iitica do domfnio hereditério dos se- nhores de terra, como a Monarquia de Julho fora apenas a exptesséo politi- ca do usurpado dominio dos burgue- ses artivistas, O que separava as duas facgdes, portanto, nao era nenhuma questiio de princfpios, eram suas con- dig6es materiais de existéncia, duas diferentes espécies de propriedade, era © velho contraste entre a cidade © 0 campo, a rivalidade entre 0 capital e 134 © CENA POLITICA E INTERESSE DE CLASSE o latifiindio. Que havia, 20 mesmo tempo, velhas recordag6es, inimiza- des pessoais, temores ¢ esperancas, preconceitos ¢ ilusGes, simpatias e an- tipatias, convicgdes, questdes de £6 ¢ de prinefpio que as mantinham liga- das a uma ou a outra casa real —quem nega? Sobre as diferentes formas de propriedade, sobre as condigées so- ciais de existéncia, ergue-se todauma superestrutura de sentimentos, ilusdes, maneiras de pensar € concepedes de vida distintas e peculiarmente consti- tufdas, (...) 0 individuo isolado, que as adquire através da tradigdo e da educagio, poder imaginar que cons- tituem os motivos reais e 0 ponto de partida de sua conduta.® A respeito dessa dialética entre realidade superficial ¢ realidade pro- funda, é ilustrativa a andlise feita por Marx das tentativas empreendidas por diversos parlamentares legitimistas orleanistas para unificar as duas casas dindsticas, isto é, para unir os monar- quistas em torno de um s6 pretenden- te ao trono a ser restaurado. Eles fra- cassaram, na avaliagao de Marx, porque o problema era mais compli- cado que simplesmente convencer este. ou aquele pretendente ao trono a ab- dicar em favor do outro. O fundo do problema seria a impossibilidade de conciliar 0 capital com a propriedade da terra. Ou seja, muitos parlamenta- res monarquistas acreditam de fato que so apenas as pretensdes familiares de duas dinastias rivais que os dividiriam. Mas a dinamica do jogo de interesses, cuja natureza profunda pode escapar & consciéncia dos préprios agentes envolvidos, a dinamica desse jogo impSe-se a essa crenga. A realidade superficial faz sim parte da realidade, mas esta subordinada a realidade pro- funda, independentemente da conscién- cia dos parlamentares. Os diplomatas do partido da ordem pensavam que podiam solucionar a contenda [sobre o direito de sucesso] através do amélgama das duas dinas- tias, por meio de uma suposta fustio dos partidos monarquistas e de suas casas reais. (...) Era a pedra filosofal que os doutores do partido da ordem quebravam a cabega para descobrir. Como se a monarquia legitimista pudes- se converter-se na monarquia da bur- guesia industrial ea monarquia burguesa converter-se na monarquia da tradici- onal aristocracia da terra. Como se 0 latifiindio e a indtistria pudessem ir- manar-se sob uma s6 coroa, quando a coroa s6 podia descer sobre uma cabega (...). Se Henrique V morresse no dia seguinte, o conde de Paris nao se tornaria por isso rei dos legitimistas, a menos que deixasse de ser rei dos orleanistas. Os fildsofos da fusio, entretanto, (...) considera- Karl Marx, O Dezoito Brumério de Luis Bonaparte, in Karl Marx e Friedrich Engels, Obras esco- Ihidas, volume 1, $30 Paulo, Alfa-Omega, sid, p. 224. (Os destaques sto do criginal.) CRITICA MARXISTA # 135 vam que toda a dificuldade provinha da oposigao e rivalidade entre as duas dinastias. (...) Os adeptos da fuséo percebem tarde demais que os inte- resses das duas faccdes burguesas ndo perdem seu exclusivismo, nem adqui- tem maleabilidade, quando acentua- dos na forma de interesse de familia, interesses de duas casas reais.? Os “diplomatas” dos legitimistas e dus orleanistas, aqueles parlamentares que realizavam misses entre uma e ou- tra casa dindstica como mensageiros artifices da fusdo, desconheciam, segun- do a anilise de Marx, os interesses eco- némicos de fragiio de classe que os se- paravam. Os representantes nao tinham consciéncia clara dos interesses que re- presentavam. Os parlamentares monar- quistas que defendiam a proposta de fu- so das duas dinastias julgavam que eram apenas valores, relagdes pessoais, costumes e simbolos que distinguiam as duas correntes monarquistas. Por igno- rar a base material do conflito no qual estavam envolvidos foi que esses indi- -viduos propuseram a fustio dos partidos monérquicos. Contudo, na andlise de Marx em O Dezoito Brumdrio, a dina- mica do interesse econémico de fracio acaba “corrigindo” a agio dos parlamentares partidérios da fustio das casas dindsticas. A determinagao da cena politica pelos interesses e conflitos de classe e de fragdo de classe aparece também nas mudangas que ocorrem no processo 7 Idem, ibidem, op. cit, p. 261. politico. Os partidos, organizag&es e cor- rentes de opinido que ignoram os inte- resses de classe ou de frac&io que repre- sentam, seja por abandonarem antigas posic6es politicas sem que a situagao 0 justifique, seja por permanecerem afer- rados a antigas posigdes num momen- to de mudanga que atinge sua base so- cial, tais partidos e organizac&es podem ser condenados ao declinio ¢ ao desa- parecimento—o que de fato ocorreu em 1851, quando a massa da classe bur- guesa abandonou os republicanos, os legitimistas ¢ os orleanistas, bem como 0 parlamento que essas correntes bur- guesas controlavam, e passou a apoiar a solugio ditatorial para a crise politi- ca, que era a solugao representada por Luis Bonaparte — processo que Marx analisa no capftulo VI de O Dezoito Brumdario. Cena politica: marxismo, liberalismo e teoria das elites O desvelamento da cena politica nas sociedades capitalistas € um proce- dimento metodolégico préprio do mar- xismo, mas somente se tal desvelamento evidenciar os interesses de classe e de fragdo de classe que esto na base das lutas partidarias e de idéias. Os pensadores liberais concebem a cena politica como algo transparen- te. Pensemos no caso de John Stuart Mill. Para esse classico do liberalismo, os partidos ¢ as correntes de opiniao que aparecem na cena politica sao, de 136 © CENA POLITICA E INTERESSE DE CLASSE fato, 0 que dizem ser, nao representan- do nada de oculto ou dissimulado. Atra- vés do debate e do voto, 0 eleitor, indi- viduo racional, escolhe, na vitrine transparente que € a cena politica, a cor rente que melhor se adapta aos seus valores e objetivos*. Temos, entao, a luta entre conservadores e reformistas, liberais e autoritérios, monarquistas ¢ republicanos etc. Cada uma dessas cor- rentes congrega individuos livres ¢ ra- cionais, partidarios, por mera escolha e convicgao pessoal, dos valores que as caracterizam como correntes de opi- nido. A cena politica é 0 espago da dis- puta entre correntes ou projetos ¢ é 86. E muito instrutivo e oportuno para a nossa discussio comparat a anélise feita por Marx da cena politica france- sa em 1848-1851 com a anflise de Alexis de Tocqueville. Tocqueville é um liberal conservador, foi deputado monarquista na Assembléia Nacional francesa, ¢ nos legou a sua andlise da Revolugio de 1848 na conhecida obra Souvenirs? Tocqueville, tal qual os grandes historiadores liberais da Revo- lugdo Francesa, opera com 0 conceito de classe ¢ luta de classes. Tais concei- tos, como se sabe, nao so apandgio do marxismo. Para esse pensador liberal, as Jornadas de Julho de 1830, quando foi deposto Carlos X, foram uma revo- lugao da burguesia em luta contra a aris- tocraciae a Revolugdo de 1848 foi uma revolugao “(...) das classes que traba- ham com as maos™!”. Contudo, na ana- lise de Tocqueville, as classes e a luta de classes nao aparecem de modo or- ganico na cena politica. Nessa esfera, desfilam as correntes de opiniiio: os “conservadores”, os “radicais”, a “opo- sigo dindstica”, a “oposi¢to republi- cana”, a “oposi¢ao moderada”, o “cen- tro-esquerda”, a “esquerda”, a“coroa”, e, ao fundo, o rufdo disforme das ruas -a“canalha”, a “turba”, o “populacho”, as “classes que trabalham com as ma- os”. Para o liberal, pode haver Juta de classes, mas a cena politica nao é parte integrante desse conflito. JA os partidarios da teoria das eli- tes invertem os sinais da concep¢io li- beral da cena politica. Apresentam-se como pensadores realistas e como cri- ticos mordazes da concepeao liberal, que seria idealistae ingénua. Eliminam 0 indivfduo racional e a politica trans- parente e¢ introduzem a massa irracio- nal e a cena politica sempre opaca. Numa democracia, as propostas polf- ticas e os programas dos partidos, longe de defender os valores, idéias e obje- tivos proclamados, seriam meros sig- nos, manipulados pelos politicos pro- fissionais, com 0 tinico objetivo de angariar voto do eleitorado. As elites disputam entre si o voto do homem co- © Basta ver as idéias desenvolvidas por John Stuart Mill em Consideragdes sobre 0 governo repre- sentativo, Brasilia, Editora da Universidade de Brasilia, Colegao Pensamento Politico. ° Utilize a tradugdo brasileira feita por Modesto Florenzano. Ver Alexis de Tocqueville, Lembran- as de 1848, as jornadas revolucionérias em Paris. Sao Paulo, Companhia das Letras, 1991 10 Idem, ibidem, p. 91 CRITICA MARXISTA ¢ 137 mum e fazem dos programas partidé- rios um instrumento de manipulagao da massa. O eleitorado, para os parti- darios da teoria das elites, nao age ra- cionalmente e nem sequer tem condi- Ges intelectuais de se apropriar das informag6es necessérias para tomar uma posig&o racionalmente fundamen- tada em matéria politica". Marx, como deve ter ficado claro na anilise de O Dezoito Brumdrio, di- fere tanto da concepeaio liberal quanto da elitista. Tal qual os partidérios da teo- ria das elites, Marx rejeita a concep ¢&o liberal. Considera a cena politica uma realidade superficial ¢ enganosa e tampouco avalia que os individuos ajam de modo livre e consciente. Por isso, a filiagao direta e mecnica da obra de Marx 8 filosofia iluminista seria, segundo nos parece, problemé- tica. Porém, a concepgiio de Marx é distinta também da concepgao dos elitistas. A opacidade da cena politica remete & dissimulagao ¢ representacao dos interesses de classe, nao se cir- cunscrevendo, portanto, ao universo dos interesses dos politicos profissio- nais — uma “classe politica” ou uma “elite” dotada de interesses préprios e exclusivos. Os individuos estao deter- minados por sua situagio de classe ¢ de fragdo. Fazem escolhas, mas essas escolhas também refletem interesses e condig6es que, no mais das vezes, eles préprios ignoram. Uma pratica nao transparente, ao contrdrio do que pre- tendem os liberais, mas na qual os in- divfduos, seguindo seus “instintos de classe”, podem, ao contrario do que pretendem os clitistas, acabar se situ- ando de “modo racional”. O partido tepresenta interesses que estdo fora dele, fora da cena politica, enraizados na producao social. Mas, de um lado, os membros desse partido, que sio os representantes, e, de outro lado, os in- dividuos que integram as classes soci- ais, que s&o os representados, todos podem ignorar as raz6es profundas des- sa relacao de representagiio. Nem libe- ral, nem clitista, a concepgao de Marx de representagao politica e de cena po- litica € um produto sofisticado e, € im- portante indicat, revolucionério Dizemos revolucionario porque, para Marx, os critérios para analisar a cena politica n&io s&io os mesmos que se deve utilizar na anélise dos partidos operdrios. A opacidade da cena politi- ca pode ser superada, ao contrério do que apregoam os partidérios da teoria das elites. Os partidos do proletariado, para representar os interesses dessa classe, necessitam fazé-lo abertamen- te. A sua relagdo de representagao ex- ™ Essa € a tese desenvolvida por Schumpeter na sua conhecida obra Capitalismo, socialismo democracia, na qual ele critica a concepgao liberal da politica. Esclareco que Stuart Mill, quan- do analisa 0 comportamento dos trabalhadores manuals no livro que citamos na nota anterior, acaba introduzindo, pela porta dos fundos de seu sistema, essa mesma nocio elitista de massa irracional. Tal desvio doutrinario, contudo, no compromete o carter essencialmente liberal da obra Consideragdes sobre o governo representativo, 138 * CENA POLITICA E INTERESSE DE CLASSE clui qualquer relacio de dissimulagao. Ao proceder assim, os partidos operd- rios langam uma luz nova sobre 0 con- junto da cena politica. Fazem que cada partido apareca, aos olhos do operaria- do organizado, como aquilo que ele re- almente é, a despgito do trabalho da ideologia que encobre os interesses pro- fundos de cada partido e de cada cor- rente politica burguesa ¢ pequeno-bur- guesa. No episédio memoravel e pio- neiro da Comuna de Paris de 1871, 0 Comité Central da Guarda Nacional, eleito pelo operariado, ao organizar a insurreigio de 18 de marco e tomar 0 poder, proclamou abertamente que o fa- ziaem nome de uma classe social —“em nome do proletariado de Paris”. Isso € dizer tudo — sobre si proprio e sobre todos os demais. CRITICA MARXISTA ¢ 139

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