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45 copie O manto da Terra [Na escola, nés os estudamos como filésofos pré- -socriticos. Giorgio Colli chamava-os de sdbios gregos. dependiam da linha do hor no entanto, um desses sbios que ‘um auténtico mago, fila em manto da Terra. Ferécides, que nasceu no século via.C. ¢ viveu ceri Siro, uma pequena ilha do mar Egeu, conta, em um fragmento que milagrosamente chegou até nds, sobre as primeiras nifpeias sagradas, as primeiras niipcias do munda, Naquele tempo, 0s tinicos seres vivos eram trés: 0 Céu,a Tetra e o Oceano, que atua como sacerdote do rito, A Terra, ainda ndo se chamava Gea, a Gaia dos latinos, qu aquela que ri, que resplandece, que britha significa a Lazeza, a visibilidade e, portanto, a horizontalidade. A Terra ainda se chamava ss que significa subterrineo, obscuro, profindo, invisivel e que, portanto, implica nfo na horizontalidade, mas, 20 contrério, na dimensio vertical, a dimensdo do “6 f abismo sobre o qual estamos tentando refletir.O rito ‘das primeiras niipcias do mundo, as mais sagradas de todas, que sero modelo para todas as outras, acontece da seguinte forma: Cién, a noiva, apresenta-se velada quando reti tira 0 véu, 0 noivo, o céu (chamado Zas, coloca sobre seus ombros o manto que 1esmo bordou. A noiva fica nua apenas por um instante, e para os gregos, justamente nesse instante, © instante da revelacao, era possivel captar a verdade, (O rito consiste exatamente na substituigao do véu primordial pelo manto que ¢ 0 presente do noivo, Ao recebé-lo, a Terra casa-se e troca de nome, ou melhor, da mesma forma como ainda acontece com Mas este nao é umn simples manto, pois sobre cle 0 noivo bordou alguns desenhos, entreteceu em muitas cores a forma dos rios, dos lagos, das montanhas e dos .a forma do Oceano e de s i um vestido feito de véus e bordados quando se casam, ‘como uma inconsciente memaéria dessa ceriménia primordial, destinada nao apenas a marcar época, mas marcar todas as épocas que a sucederam. Averdade aparece em um instante. Mas é apenas um instante, logo a seguir o presente do noivo a cobre, cobre novamente o corpo da noiva: o abismo pode ficar descoberto, pode-se olhi-lo apenas por um instante. [Nesse instante nao conseguimos conhecer nada, pois 0 Céu ea Terra nesse momento nao podem ser distinguidos um do outro, a duplicidade torna-se uma 47 indiferenciada e indeterminada unidade. Somente com. ‘omanto de jipiter finalmente voltamos a comb algo: mas 0 qué precisamente podemos conhec wo dal des mipeas Sagrada, o que sev apenas “yeidadeisos mares, mas as imagens dos objetos aque se referem. Os objetos verdadeiros, as verdadeiras sere do ente, De qualquer modo, repetimos oque [ Ferécides, seis séculos antes de Cristo, revelou-n0s Zing > ‘em um instante: no podemos conhecer as coisas, "mas apenas como representacio, | ‘eralimente, pela geografa. an ee oem mats demonstra ter conscitncia de tudo isso, ainda no século vi a.C., Ristanis . \naximandro, aluno. ‘a ele que devemo: ‘(uatbla}«elade do pon nual modelo é3 ele que realmente devemos a invengio da Terra, assim como ainda hoje a pensamos, Como relata Agatémero, ‘Anaximandro foi quem primeiro “ousou inscrever ~ isto é, desenhar~ a Tersa em uma tébula’,o Feumene’, Palavra que para 08 gregos sgnifcavaa Testa habltads © conhecida, F de fato tratou-se de uma operagao tio -audau.e saerilega para o5 tempos a ponto de causar aAnaximandoo desprezo ea condenagio de todos Seus contemporaneos. SS : > Gost airmars qu no pnp mio haviao ag, [CEL © Verbo como dizia o Evangelho de Joo, mas a acao: ‘Anaximandro consiste entio na confece @ ira tdbula da Terra, do primeiro mapa, e por isso situa-se no princfpio de toda a cultura ocidental, é realmente 0 nascimento do Ocidente. Nao se sabe com preciso qual seria o material desse modelo: se bronze, pedra ou ceramica, como é mais veross{mil. Em todo o caso, tratava-se do que nés chamarlamos hoje de um hardware bem diferente do manto de que fila Ferécides, Um tecido nio é rigido e suas dobras podem cair cada vez de ‘maneira diferente, sobretudo se a superficie da ‘Terra, ‘como no caso das Niipcias Sagradas, é um pano que cobre um corpo, um manto que, seja como for, ‘mostra a forma auténtica, que pode ser adivinhada por baixo dele. E ninguém, nesse caso, pode crer que a Terra seja plana ou imével como de inicio somos, Jevados a pensar pela escultura de Anaximandro, a qual devemos imaginar como um tipo de pizza. © manto de Ferécides era algo que cobria a Terra ¢ de perfil correspondia evidentemente ao horizonte, 20 que ainda hoje é 0 nosso horizonte. A tibula de Anaximandro ¢ algo completamente diferente, ertence a uma geracdo muito diversa de modelos: io est4, como o manto, sobre a Terra, mas a sustenta € permite sua adaptacdo a uma forma geomeétrica, ¢ 4 Emportagués« dagu em diane com o mesmo sentido: ecdimene (NAT), 9 justamente porque esta embaixo, é a fiandacio que ‘assegura 4 Terra sua estabilidade e sua planura. ‘A prdpria cultura jénica, da qual Anaximandro era representante, preferiu esquecer imediatamente daquele que a conturbou internamente, no apenas reduzindo a cosmogonia a uma cosmologia, mas, antes disso, reduzindo a ‘Terra a um mapa. Pensando bem, Anaximandro aplica 3 Terra, que est no centro, ‘o mesmo modelo circular que vale para 0 universo: a ‘Terra €um cfreulo eno centro esti a Grécia,o pals de |, ‘Anaximandro. Mas como ensinava Elias Canetti, no | ‘20 modelo é sempre mal intencionado. Qual era 0 ‘metamodelo ao qual. imandro se referia? Afinal, de onde surgiu o modelo geométrico com o qual Anaximandro explica tanto a forma do universo quanto ada Terra? Surgiu da pritica da assembleia, tantas vezes descrita nos poems homéricos, que consiste em um cfrculo de homens que se consideram iguais, sejam guerreiros ou cidadaos, que por turos ocupam o centro do cfreulo enquanto falam e, assim, exercitam poder sobre os outros e, ( ‘uma vez terminado seu discurso, voltam para seu lugar, voltam para a circunferéncia para deixar lugar 7 patao orador seguinte. Ba pritica da assembleia “poe ene iguais, da aed dead je algo que ainda hoje __’ is ocupa c envolve, regulando nossa vida politica e Social aquilo que chamamos de democraca. | ‘Porém, ainda resta explicar a hostilidade dos contemporsineos para com Anaximandro. Acexplicagao mais difisndida para hostilidade consiste no seguinte: 20 realizar sua escultura ele teria feito algo que os homens absolutamente nao tinham a possibilidade de fazer: representara 0 mundo do alto, como apenas os deuses podiam ver, ‘como apenas a divindade podia olhar. 50 Mas se ele ¢ culpado disso, é também de algo bera sais grave: ter reduzido o que entio se chamava “physis", natureza, a um esquema. Em outros termos, ele endureceu, enrijeceu, solidificou, cristalizou, alids, o complexo dos processos de que se compoe o mundo em uina representagao rigida, em uma tumba. Eacredito que essa seja, ainda antes da visio do alto, da visio zenital, a culpa original de Anaximandro. * ‘Uma culpa da qual nao se livrou, senao pelo siléncio sobre a prépria figura do culpado. Até que, depois de mais um século, outro grego, também nascido na Asia Menor, Herédoto, ironizou abertamente os mapas jénicos, todos derivados do primeizo modelo €gcomeéiticos, como se fe ios do mesmo cerami ‘e cima. Mas no miudemos de assunto. Ainda é preciso éntender completamente, com outra histéria, ‘agravidade do pecado com que nos deparamos, e 20 qual se deve tanto 0 nascimento do Ocidente quanto a invengio da Terra como a conhecemos. E outro terrivel prato circular vem agora ao nosso encontro, 52 capitulo Salomé ‘Tanto pela cosmogonia grega quanto pela cosmologia de Anaximandro, o conhecimento ¢ algo que engana, ‘Tima ilusdo, Da mesma forma que para Ferécides rio podemos conhecer a Terra, mas apenas a imagem dos objetos que a compoem, Anaximandro fiz uma distingio entre as coisas que nunca poderemos conhecer eas que existem, que podemos conhecer ¢,no entanto, sao apenas a aparéncia das primeiras. Assim, a Terra aparece plana como mostrava a tabula circular de cerimica de Anaximandro, porém, ‘Anaximandro era perfeitamente consciente de que i representagio e de que Jndo a Terra, ou s¢ja, 0 ‘conjunto de todas as coisas, eram de forma bem diferente e permaneciam inating{veis, inalcangiveis. Aextensto, a superficie plana ideal de que falamos no inicio a propésito do Génesis, aquela extensio onde tudo principia, com Anaximandro transformou-se em hardware, algo sdlido, um modelo concreto, material, que nio é sobreposto & Terra, adaptado 2 ela como um manto, mas ao qual a'Terra deve se adaptar, pois é 0 modelo que a sustenta. Ahistéria extraordindria de Salomé conta a que prego ‘tudo isso aconteceu, Z ~~, Aimagem da bela moca que danca diante do v bn? e toda sua corte e suscita desejo, € uma i és também acreditamos conhecer bem a histéria acfeditamos nos lembrar dela e saber o que s ‘que ndo se esquece, mas a danca dos sete véus {nvéngio muito recente ¢ absolutamente enganosa, ite compreender nada do que realmente wo. Nesse caso ent Igo muito iportante: fncionamento do mundo ¢ seu voeés perceberdo que talvex haja a p compreendé-la de outra maneira. A danca de Salomé € uma danga que ainda nao terminou, pelo menos para o imagindrio ocidental, mas ainda sabemos pouco sobre ela. Quem é realmente Salomé? Quem & a filha de Herodiades que nao tem, de fato, nome na hhist6ria? Chamamos essa moca de Salomé somente porque um historiador, Flévio Josefo, 0 mesmo que narrou a luta entre romanos e judeus, diz que Herodiades tinha uma filha chamada Salomé. Sua historia é contada nos Evangelhos de Marcos e de Mateus, mas nenhum dos dois dé um nome a essa dangarina. Nés a chamamos de Salomé, mas desde jé estamos inventando alguma coisa. sando acontece a furnosa danga de Salomé diante des ¢ sua corte, 0s protagonistas principais da ‘0s mais determinados, os mais decididos, os sealmente izremoviveis, que sio dois, Herodiades de ‘um lado e Jozo Batista do outro, estio fora de cena, estio invisiveis, nao aparecem. Herodiades esté fora da sala, espiando nas imediac6es, a espera de que seus planos sejam executados. Jodo Batista est na 3B pristo, onde Herodes o jogou, provavelmente, para lo de Herodiades. Como informa 0 evangelista Marcos, Herodes teme Joao Batista ¢ 0 vvigia. Mesmo ficando perplexo toda vez que o escuta, ‘Herodes sempre o escuta de muito boa vontade, ‘Mas por que o rei deveria temer alguém que chega do deserto, como Joao Bat nao tem net a0 menos com o que s¢ cobrir? Qual é o poder de Joo, a razio da submissio que incute justamente em ‘quem manda em tudo? Isso pode ser explicado pelo é nome de Joo, 0“ to é, aquele que d4 nome as coisas. O pode: » éa linguagem, o poder do Togos entendido como palavra ou verbo, o poder de quem, atibuindo nomes ao que existe, eatabelece assim o contomo, o imbito, enfim, a condicio Dela qual o proprio poder do rei pode O poder terreno do rei é exercido sobre a ‘existe, Mas quem estabelece o que realment ‘Seno quem dé os nomes? A raiz do poder de Joao, ‘que evidentemente precede o de Herodes, reside na faculdade da nomeacao. Por via das dtividas, a partir daqui jé estamos avisados: Salomé, a mocinha um pouco ingénua € um pouco maliciosa que temos em mente, nao é a protagonista de uma sérdida histéria de paixdes artificiais, como no final do século xrx Oscar Wilde talver seja a histdria da paixio mais na todos os homens ¢ mulheres: 0 poder, que certamente também pode passar pelo sexo, mas apenas para se servir dele como instrumet Herodiades quer 0 poder © erodes, por ter entendido que no ‘tals seduzi-lo, O velho rei oferece 4 garota metade de seu reino desde que ela continue a dangar para cle, Dancar significa mover-se vertiginosamente sem \ Pf B 4 nunca perder 0 equilibrio, snesmo correndo 0 risco “ecaira cadi'momento, Basta pensar que a duracio, ou seja, a estabilidade & 0 primeiro problema de todo poderoso e que nao existe poderoso que nao eva encarar o Tato de que o mundo muda continua ‘e erfiginosamente para compreendermos com facilidade a real natureza da troca proposta por Herodes: metade de tudo o que tem em troca do segredo para consewar o poder para sempre. Muito mais do que o ve a vingenzinha. Ao ouvira proposta, a gar sala vai até a mie para eceber instrugdes sobre o que fazer. Quando volta, Salomé pronuncia a frase mais terrfvel jd pronunciada por uma boca humana: “Quero imediatamente a ‘abega do Batista em uma bandeja", Ninguém, ninguém mesmo, nunca realmente soube, ou pelo menos contou, o que Salomé e Herodiades, mic e filha, conversaram no instante da verdade, isto é, quando se encontraram fora da sala ea mie instruiu a filha, £ 0 mesmo instante que jé encontramos durante as néipeias sagradas, fer €aTerra, 0 momento em que o noivo vistumbra o corpo nu de Cidn, da noiva, ¢ que corresponde a9 momento em que Herodiades expde 2 garota, sua filha, olhando-a nos olhos, seu préprio desejo. Podemos apenas supor o que realmente conversarain entre si. A suposigao mais plaustvel foi feita, ha alguns anos, por René Girard, a quem, entre coutras coisas, se deve uma reconstrugao da histéria da qual esta que estamos contando, mesmo sendo muito Para dizer isso, continua Girard, a mie se exprime nna linguagem natural que todos nés, habitual ¢ cotidianamente, usamos, Essa linguagem nio pode fancionar sem metiforas, ou seja, sem 0 mecanismo 55 pelo qual uma palavra significa a0 m« pO mais de uma coisa~ € pelo qua a pedir a cabeca de alguém significa querer vé-lo morte. Amie, cabeca, quer simplesmente dizer para pedir a Herodes condenar o Batista & morte. ‘Masa filha, continua René Girard, ¢ uma crianga ¢ ‘no compreende a légica da linguagem natural, de razio da parte mais importante cuja 1pe de maneira inesperada, violenta e da bandeja sobre a qual a cabeca deve ser colocada, segundo a garota, Assim como toda a histéria da luta entre Ulisses ¢ Polifero ¢ marcada pelo suxgimento Hlerodiades ¢ o Batista € marcada pelo surgimento do prato pedido por Salomé, ~Note-se que para apresentar uma cabe¢a decapitada nao é absolutamente necessério que hhaja um prato, Na iconografia ocidental, pelo ‘menos outra cena representa o resultado de uma decapitacio, ¢ refere-se & histéria de Judite ¢ Holofernes. Nao existe um quadro que no mostre Judite segurando a cabeca de Holofernes pelo cabelos, sustentando-a com a mao. Da mem ma forma, cum quadro que nio mostre a cabeca do Tr iebie uneprata Isto & nao existe uma ilustrago em que a cabega do Batista seja segurada ‘com as mios, como Judite segura pelos cabelos a cabega de Holofernes, ¢ vice-versa. ‘No findo, a histéria de Salomé nao & mais do necessidade de sua existéncia que entra de maneira 56 decisiva na cultura ocidental, mas que jé se havia insinuado, por assim dizer, sorrateiramente (convérn diz8-lo), com Anaximandro. E també o surgimento é de fito nftido e rep discursivo é 0 produto de uma auténtica insinuacio. 0 dado verdadeiramente trégico de toda. situagao exatamente este: conscientemente, ninguém pede a cabeca do Batista em um prato, Salomé com certeza © faz, mas apenas porque nao entende o pedidio materno, ndo distingue entre significado metaférrico 7 esignificado literal da linguagem, e é precisamente ye, na diferenga entre os dois significados que, sem que // ninguém tenha desjadoo rato surge na histéra de Salomé e torna-se protagonista absoluto, a ponto de sobressair-se no centro de todas as iustragdes. E justamente para dar conta dessa intrusio, ¢ unicamente dela, que serve a histéria de Salomé, ‘bem, mas talvez tenhamos esquecido porque fizemos isso varias vezes 420 dia, no se pode colocar em um prato algo vivo, e se 0 que colocamos no prato for grande, como um corpo humano, por exemplo, é preciso corté-lo em pedacos. Neste caso, trata-se da cabega, euja separacio imy r acaso,o dilaceramento da fonte de poder io 0 que resta sobre o prato € simplesmente a uma boca inerte. Afinal, nao se pode colocar algo Sobre um prato, s¢ 30 reduzir o que estd alia simbolo, a a tabula plana nao haveria os histéria de Salome sul igao do logos dalinguagem pelo da tabula. Fla ilustra o prego ea ‘SGonica da invengio da Terra. O termo com que, nos Evangelhos, € definido o prato no qual € colocada a “cabeca do Batista, éexatamente o mesmo que servia ‘0 corte da garganta, o drgio da linguagem. B wra designar a tibula circular de Anaximandro: pia Dorante a Bora de Glaine e+ Hist ria de Anaximandro contam os mesmos acontecimentos, ‘com a diferenca que Salomé sacrifica a cabeca de Joo ¢, Anaximandro, como seus contemporineos haviam entendido perfeitamente, sacrifica o corpo vivo de toda a Terra Ahistdria de Salomé, Herodes, Herodiades ‘Batista ensina como afinal essa cabeca tenha se tornado, literalmente, uma algo de que nos alimentamos para viver: tanto é verdade que ainda hoje chamamos de Batista, por antonomésia,a figura do mordomo que leva os pratos 3 mesa. A ee ge al ares | pp PaMG, & Goren \ SECT AR © Leave ur 59. copes “A Terra é uma cabeca” eee Gao vo we gon? Que a Terra seja uma cabeca (e agora j4 sabemos de quem) é 0 que afirma o maior gedgrafo da antiguidade, Ptolomeu. Ptolomeu era um egipeio que ‘eserevia em geo, mis era sidito romano no século 11 d.C, no tempo do maximo esplendor do império. ‘Vivia em Alexandria, a mais extraordindria das cidades que jd existiram, nao apenas no Mediterr’neo: lugar de encontro de todas as fés, crencas, doutrinas, teorias, onde todos os modelos de mundo convergiam ese misturavam, Nao hd nenhuma cidade hoje que ppossa competir com o que entio era Alexandria ?Piolomeu era o ultimo dos sAbios gregos, por isso guardiao de uma tradi¢io, um saber que se deposita em sua figura de modo definitivo ¢ absolutamente exemplar. E foi Ptolomeu quem revelou A cultura ocidental, entre outras coisas, um de seus maiores segredo, talvez o mais importante: i aarte de transformar o globo em um mapa, em uma ara geografica. ‘Atualmente, chamamos, por tradicao, Geografia a obra em que isso acontece, mas no século xvi era conhecida como Cosmografia, cuja tradugio literal do grego soaria algo como “Cua para o desenho da carta geogréfica da Terra’. Mais precisamente: pelo 60 «que sabemos, Ptolomen foi 0 primeiro a produzir mapas to sofisticados a ponto de darem a impressio visual da curvatura terrestre, embora preservasse, até certo ponto, as distncias relativas entre as virias localidades. Uma arte que também é uma técnica, ois o trabalho de Ptolomeu é matemitico, seus cAlculos sao célculos astrondmicos. Foi quem ensinou (se nao inventou) 0 que ahamamos de projecs tezrestre em um desenho plano d dotado, duas dimensbes. Ptolomeu chama esses procedimentos de “modos a queda do império romano ¢ redescoberto por Bizancio somente no inicio do século que termina com a modernidade. £ uma palavra que vem da alguimia da arte de transformar as coisas, de_ que no procedimento alg suplantado entre os é -a moderna, entrava Ipicado sobre o metal ‘comum, transformava-o finalmente em ouro, na substincia mais preciosa. Ou seja, a projecio era 0 agente de uma grande transformagzo, a maior que se podia conceber, que para os modernos era justamente a da mutago do globo em um mapa, Assim, cles eram ¢ traduziram Ptolomeu & procura desse segredo capaz de transformar completamente o globo em um ‘mapa. Parece simples, mas mio é. Pelo contrétio, & matematicamente impossivel, Hoje, acreditamos nao sermos mais ptolomaicos apenas porque ni acreditamos mais que a Terra ‘esteja no centro do universo, como Ptolomeu ensinava em seu Almagesto— expressio 4rabe que o significa maior’ ¢refee-se ao fato de que essa obra €0 maior dos trabalhos astronémicos da antiguidade que chegou até nés. Mas nos enganamos, porque 10s um atlas, sem saber (i lutamente ptolomaicos: nto em razio da nossa imagem do cosmo, mas da Terra. Para a Terra, nfo houve ainda nenhum Copérnico “ou Kepler, nenhuma figura analogs a dos cient a g, juntamente os primeizo sulos da época mi de céu e desmantelaram o sistema geocéntrico. De ‘fo, foi Ptolomeu quem estabeleceu de coordenadas (latitude e longitude) superficie terrestre. Além disso, e antes ainda, foi Ptolomeu quem reduziu a um conjunto de pontos ‘geométricos a face da Terra, com base na regra de ‘equivaléneia geral entre as virias localidades. Foi a ral entre 26 vitias locas inventor do que se chama reticulo ainda hoje conserva a forma e as regras originais. Fé por isso que Ptolomeu é 0 primeiro e o principal dos gegrafos modernos, apesar de o mundo conbecido ¢-cartografido por ele limitar-se as terras ao redor continuow-se a publicar Ptolomen até até o aparecimento do primeiro atlas “Theatrum orbs terrarum do flamengo ‘Abraham Ortelius. O que é, de muitas formas, ‘Surpreendente se pensarmos que a geografia de Ptolomeu limitava-se a descrever o império romano, aquilo que cham4vamos de mundo antigo, antes que qualquer ideia de Novo Mundo se afirmasse no Ocidente. Basta pensar que a extensio da Africa é =) conbecida, que chegava até o Saara, era quase equivalente, nos mapas da época, a todo o resto da lace ponguie| ino a descrever (se? WTera ém termos esp: i¢ja, segundo 0 [Sistema que na época moderna inica aegulamentar _y de maneira sistemdtica 0 mundo inteio. Por isso wee Prolomeu também &0 pedgrafo de Colombo. Nao Porque sua obra contivesse indicagiies sobre 0 mar Oceano que separa o Mediterraneo das terras | americanas, mas porque fornecia, com o esquema espacial, o principio (a légica) que consentia pens | essas dltimas em termos de continuidade e de | GotGwemanisacekeecme apenas avargando da esquerda para a dre | (Bortanto vistena) mas tambGinarcontiiis, da 222 direlta para a esquerda, via mar, Acabamos de lembrar que a regra do espago é que toda parte I €perfeitamente equivalente a qualquer outra, | independentemente de sua natureza. | ao, a alirmasio de Plolomeu, que entende o mundo como uma cabega, a tornar \ finalmente compreensivel, se tomada ao pé da letra, a aventura de Colombo. Que a Terra fosse um globo ra, no final do século xv, uma consideracao banal as margens do Mediterrineo e da Europa atlAntica, — __ Mas antes de Colombo, e ao mesmo tempo que ele, os oxy navegadores (Martin Behaim e Vasco da Gama, para gp 930 citar mais do que dois) limitavam-se a construir & ‘material ou idealmente um modelo e ~~ @procuravam provar que este funcionava. ~ Colombo faz.exatamente o contririo,e porisso. | descobre um novo mundo. Toma (ou constréi ele | mesmo) um globo e tenta demonstrar que éa’Terra 2 gue funciona segundo o modelo ¢ e nao o modelo ‘que se adequa i Terra Por isso, enquanto todos os — Ae) outros homens do mar continuavam a procurar as ‘Indias através da ponta da Africa, nao pelo poente, ras descendo 2o sul e prosseguindo em diego 20 levante, Colombo avanga no sentido opo: inventa assim o Ocidente, Volta & mente ‘com as palavras de um gedgrafo, que nos fizeram estudar na escola como filésofo, e que mais de trés séculos depois de Colombo escreveu, a propdsito da “via segura da ciencia’, que quando esta foi ‘encontrada tornou-se muito mais importante do que a descoberta do “famoso Cabo da Boa Esperanga”, ou seja, a rota que Martin Behaim procurava e Vasco da Gama descobriu. ‘ Avia segura da cincia nao consiste em seguir as indicagdes do que se vé em uma figura, mas, I a0 contrario, tar da figura o que nés mesmos \_‘colocamos ld. Com as célebres palavras de nosso autor: Galilei, Torricelli ¢ todos os outros modernos “indagadores da natureza foram atingidos por uma luz”, compreenderam que “a razao 6 discerne o que ela mesma produz segundo seu projeto, e entenderam que cla deve ir em frente com princfpios de seus {julgamentos baseados em leis estabelecidas e obrigar ‘a natureza a responder is suas perguntas sem se deixar guiar somente por ela’ O autor, naturalmente, é Kant ¢ a citagho é retirada do preficio A segunda edigio da Critica da razdo pura “Trata-se de uma passagem que, apesar de milhares de ‘vezes comentada, ainda reserva alguma surpresa, se ue, também nesse caso, nio hi : uma via é uma via, e um projeto fom . Essa via € primeiro projetada € depois ‘praticada, Em outros termos: Kant diz no apenas we boot 64 efetivagio do percurso na via correta) é naturalmente consequéncia do modelo, Em outros termos, hé uma absoluta continuidade entre Anaximandro ¢ Kant. O primeiro reduz a ‘Terria seu caddver grfico, o segundo recofihece Gimplicitamente) a prioridade desse cadaver em telagao ao corpo vivo da Terra, ¢ faz derivar da Constituigio légica dest: do conhecimento da Terra, Sem querer ofender um ‘Gebre HBTOFS parisiense de nossos dias, para quem a diferenga entre moderno ¢ pés-moderno consistiria no fato de que enquanto na modernidade o mapa ¢ a cépia do territério, na pés-modernidade a relacio, seria inversa: pela primeira vez o simulacro (a tabula, a representago geogréfica) precederia o territério, Ento, é como dizer que Kant jé seria pés-moderno, sem falar de Anaximandro, Mas se o célebre filésofo arisiense tivesse razo, 0 mais pds-moderno de todos seria Cristévdo Colombo. Dessa forma, entre o infcio da modernidade ¢ o inicio da pds-modernidade ‘no haveria mais nenhuma diferenga, a primeira seria a segunda e vice-versa. De fato, com Colombo a.representagio geografica (a t4bula, o mapa) toma, ‘lugar do mundo, compreende e absorve tudo. o ‘que existe: o mapa, isto 6, o espaco, 0 primeiro dos instruments da modemidade-qneseafrma Justamente com Colombo, 65 caplulo9 De quem ¢ 0 ovo? a eet Tera Sob a data de 25 de setembro, no que resta do didrio de bordo da primeira viagem de Colombo, esté yelatada a histéria de uma alucinagao coletiva: a0, entardecer do dia, Martin Pinzén, capitio da “Pinta’, sobe para a popa de seu navio € gi Ento, todos sobem nos mastros caravelas e confirmam o avistadc fpennt no da segue deco “que na tarde anterior parecer: na verdad eden ge tinham confundido a face da terra com a imagem cartogrifica no mapa do Oceano desenhado pelo ‘sterioso dos cosmdgrafos modernos, 6 florentino Paolo dal Pozzo Toscanelli, e que muito provavelmenite Colombo levava uma cépia consigo. Se realmente Colombo conhecia o mapa en, uestio, agora perdido, mas sobre cuja existéncia seed hitidas ainda ¢rata dinyuiaistoringréfica intensa. Os historiadores espankéis esto convencidos da existéncia de uma relagao epistolar entre Colombo e Toscanelli, propiciada pelo cénego Martins, cortespondente portugués do cosmégrafo. Para outros, trata-se de uma falsa afirmagao dos portugueses, com o objetivo de receber parte do

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