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zs PODER SOBRE A VIDA, POTENCIAS DA VIDA © Imperador da China resolveu construir uma muralha que contomasse a Jmensidio do Império eo protegesse conta a invasio dos némades vindos do None empreendida por partes: um bloco de pedra era erguido aqui, outro ali, mais um acoli, € nido necessariamente eles se encontravam, de modo que entre um ¢ outro ped erritica pelusfronteres do Impétio,tvesse alguma nogio do conjunto da obra. No ‘entanto, todos supuntiam que a construgio obedecesse a um ph pelo Comando Supremo, mas ninguém sabia quem dele fazia parte ¢ qt verdadeiros desfgnios. Enquanto isso, um sapateiro residente em Pequim Imperial, e que seu nimero a vez na janela para espiar aa ‘no coragio da capital enquanto Tmperador todo poderoso & um prisioneiro em seu proprio palicio, Katka dé poucas indicagdes sobre os ném dentes afiados, comem c: 08 olhios e afiam consta imperial. Eles desconhecem os costumes locais e imprimem & capital em que se infiltraram sua esquisitice. Ignoram as leis do Império, parecem ter sua prépria lei, que ninguém entende. E uma lei-esquiza, dizem Deleure-Guattari,’ talvez pela semelhanga do nomade com o esquizo. O esquizo esté presente e ausente io, Modesto Carne 20m Vida capital simmultaneamente, ele estd na tua frente e ao mesmo tempo t e fora, daconversa, da um territério mas ao mesmo tempo o desmancha, di ‘capa, sempre est dentro a, dalinguagem. Ocupa mente entra em cont he o sentido, corto prdprio campo: ‘O ndmade, a exemplo do é foge ¢ faz. tudo fugir, Ele faz. da propria desterr ‘Como pode o Império lidar com um t le lidar precisamente com isso? Por mais que um Império nenhum pode fiear indiferente a essa dimensio subjetiva sobre a qual ele se assenta primordialment ; “se —o que é ainda mais verdadeito nas condigdes de ho} Império atual manter-se €aso no capturasse 0 desejo de tanta gente caso ni plugasse o sono das multidoes & sua Como se expandiria se no vendesse a todlos a promessa nal, o que nos € vendido o tempo tod subjetivo ‘da populagio, ainda assim essa tendéncia ‘Através dos fluxos de imagem, de informagao, de conhecimento ¢ de absorvemos maneiras de vi dade. Chame-se como se quiser isto que \do de relagdo entre o capital e a subjetividade. O capite dda ascensiio da midia e da inddstria de propa teria tno e colonizado um (0 Inconsciente. Mas esse diagnéstico te. Ele agora no 6 penetra nas esferas as mais mais da ele as pde para trabalhar, ele as explorae amplia, iva sem precedentes, que ao mesmo tempo Ihe produzindo uma cescapa por todos os lados, O Imp£gio Nomapizano s do conto de Kafka, 10s acontecimentos Poder sobre 2 vide, poréncias da vida m2 como o diz Rifkin (e agora trata-se ndio $6 da rede tico, mas das redes de redes de vida da maioria da pop inventividade e perversio parecer re examinar as nova pss nesse contexto. Pois nada do que foi ev agregar, de trabalhar, autovalorizagdio, Num capi em rede, como se viabilizam outras redes que 1 jan, 2000. Vero 22m vida capital uum modo proprio de ocupar o espago doméstico, de cadenciar 0 tempo co ‘de mobilizar a meméria coletiva, de produzir bens e conhecimento ef dle transitar por esferas consideradas invisfveis, de reinventar a corporeidade, de getit a vizinhanga e a solidariedade, de prazer ou a dor® Mais radicalmente, impée-se Jago, de tecer um territ6rio existenci reletitorializagbes propostas a cada minuto pela economia materiale imaterialatual no repert6rio de nossas cidades? Hé alguns anos no Brasil eram visiveis configuragdes comunitirias diversas, ora sadas h Igreja, ora ao Movimento dos Sem-Terra, ora as redes de trafic, ou ndicatérios e estéticos diversos, como o hip-hop, No contexto de um ea io haveria uma tendéncia erescente, por parte dos chamados exeluidos, em usar 1 sua precariedade de subsisténcia, como um vetor de autovalorizagio? Quando um grupo de pre 0 que eles mostram vendem nfo é s6 sua mi sua singularidade, sua percepeio, sua revolta, sua causticidade, sua maneira de vestir, de "morar” na pristo, de gesticular, de protestar, de rebelar-se— em suma, sendo sua vida, no seu estado extremo de sobrevida e izeram um vetor de la que facilmente também ela possa ser transformada em mero smo étnico de consumo descartivel. Mas a partir desse exemplo extremo € luz dos némades de Kafka a quem me referi capacidade dos chamados “excluidos construfrem terrt6rios subjetivos a partir das préprias linhas de escape a que sio Poder sobre a via, poténcias da vida ml 23 impelidos, ou dos terr ris ce miséria a que foram relegados, ou da incandescéneia iapos de vida em momentos de desespero coletivo. A FORCA-INVENCAO DOS CEREBROS EM REDE indo de maneira original textos de Gabriel Tarde, Maurizio Lazzarato eu retomo nesse contexto de maneira excessivamente sucinta, € que todos produzem constantemente, mesmo aqueles que no estio vinculados a0 processo produtivo. Produzir 0 novo ¢ inventar novos desejos e novas crencas, novas formas de cooperagio. Todos e qualquer um invent da cidade, na conversa, nos costumes, no lazer — novos desejos novas crengas, novas associagGes ¢ novas formas de cooperagdo. A invengdio no & prerrogal grandes génios, nem monopsioda ind cla 6 poténein do homem ‘comum. Cada variago, por miniscula q nfo € efeito ou superestrutura etérea, mas forga viva, qua psiquica e politica, esse contexto, as foreas vivas presentes por toda parte na rede social deixam ser consideradas elas mesmas um capi autovalorizagao. Em vez ide imanente © expansiva que o Imp modular, controlar. A poténcia de vida da multidio, no seu misto cligéncia coletiva, afetagio reefproca, produgio de lago, capacidade de invengio de novos desejos € novas crengas, de novas associagies e novas “cooperagio, € cada vez mais a fonte primordial de riqus se esforga 24m Vida capital 4o trabalhador que € posta a trabalhar, ndio mais 0 corpo, que apenas Ihe serve de suporte. Por isso, quando trabalhamos nossa alma se cansa como um corpo, pois nao hi liberdade sufciente para a alma, assim como niio hésalério suficiente pars o corpo, Em todo caso, que a alma trabalhe significa, nos termos que mencionévamos itada e posta a trabalhar. so dos c&rebr0s lor. B cérebro-corpo é fonte de valor, cada parte da rede pode se tornar vetor de valorizagao de autovalorizagao. Assim, 0 que vem a tona com cada vez. maior clareza ¢ a biopoténeia do coletivo, a riqueza biopolitica da multiddo. £ esse corpo vital coletivo as décadas que, nos seus poderes de idade expansiva, desenha as possibilidades de uma democracia biop’ BloporeNcia DA MULTIDAO © termo “biopolitica” foi forjado por Foucault para designar uma das modalidades de exercicio do poder sobre a vida, vigentes desde 0 século 18. entrada prioritariamente nos mecanismos do ser vivo e nos processos bi 1 biopolitica tem por objeto a populacdo, isto é uma massa global afetada por processos de conjunto, Biopolitica designa pois essa entrada do corpo e da vida, bem como de seus mecanismos, no dom‘nio dos céleulos explicitos do poder, fazendo do poder-saber ante de transformagio da vida humana. Um grupo de teéricos, majoritariament props uma peque também conceitual e politica. Com ela, a biopolitica deixa de ser pri perspectiva do poder e de sua racionalidade refletida tendo por objeto passivo 0 corpo dda populagao e suas condigdes de reprodugio, sua vida. A prépria nogio de vida deixa de ser definida apenas a partir dos processos biol6gicos que afetam a populagfo. Vida inci iva no contexto de produgio ‘material e i Vida significa inteliggn econémico. Aquém da di 2 vida a0 mesmo tempo se pulveriza e se hil moleculariza e se 1. mas como a poténcia da vida. ‘A biopolitica como poder sobre a vida biol6gico, como z © que vemos operando vida como um fato, natural, Agamben, como vida nua, como sobrevida."* E pulagio genética, m 1 Qaeda em Guanténamo, 0 espetacularizada que esses jovens protagonizan de choque e das cmaras de televisio, parecem ser a tentativa de reversio a partir desse “minimo” que Ihes resta, 0 corpo nu," e apontam numa outra direcio, Muito Ainda uma palavra sobre a m maneira pejorativa, dominar. J4 0 povo é concebi pactos com o soberano endo delega a ele formas de democraci . tal como os ndmades de Kafka, Numa frmula sugestiva, Vino ainda diz: a multidio deriva do Uno, o povo tende a0 Uno. O que é esse Uno do deriva? Para irépido, € o que Simondon chamou de realidade pré-indi pré-socréticos chamavam de apeiron, limitado), que Tarde referiu como virtualidade, 12) Poa um resume das ses de Agamben a espit, ver texto “Vida nua a Parte, 9.60, deste ir, 26 mia capital 10, esse magma go —a poténcia 1, na sua configuragiio acentrada e acéfala, no seu agenciamento cesquizo, também pode ser vista como 0 oposto da massa. Canetti lembra que na massa ‘gualdade homogénea entre seus a densidade deve ser absoluta (nada deve se interpor entre seus membros, nada deve abrir um intervaloem seu meio), ¢ por diltimo, nela eaonia uma direglo tinica, que se sobrepde a todas sieges rmuliiecionalA economia paranoica da masiae a gic esquizo da mold so diametralmente opostas, mesmo que elas se encavalem, como o notaram Deleuze & Guattari a propésito da relagao entre massa e malta. De todo modo, as religides, bem ‘como os Bstados, sempre souberam usar e dosar a energia da massa e seus afetos, mas encontram-se em situagao ta em relagio A multida0, que testemunha de um outro desejo e de um: PODER E POTENCIA ‘Talvez Foucault continue tendo razo: hoje em dia, ao lado das lutas tradicionais ‘contra a dominagio (de um povo sobre outro, por exemplo) e contra a exploragio (de uma classe sobre outra, por exemplo), € a luta contra as formas de assujeitamento, idade, que prevalece. Talvez a explosividade desse -mapear 0 sequestro soci ra sua penetragio ilimitada, tendo em vista as mo% mais sofisticadas a que ele recorre, sobretudo quando ele se realavanca na base ativo dos “exeluidos”? produtivo atual e suas vampirizagGes, os modelos de subjetivagiio que ele engendrou (porexemplo, o do trabalhador assalariado), os cdleulos do poder que ele suscita, a ccaptura imperial e suas linhas de comand de exeloracio hezeménicas, como criaela suas préprias pos Poder sobre a vida, poténcias da vida 27 mesmo quando isso € feito a céu aberto, nem que o Imperador esteja por perto, & espreita para capitalizar aquilo que dele escapa? ‘contingent niio para d coragio da capital, numa vizinhanga de intimidagao crescente © num que, como diria Kafka, sofre-se de ‘quanto os némades de Kafka, na medo: “Ao lado do poder, a insubordinagio. E baixo: este ponto... é mi se de cavar, de continuar a cavar, a par mplesmente li onde as pessoas sofre s pobres ¢ as mais explor separados de qi €a vida e nao am

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