Você está na página 1de 28
METAPSICOLOGIA/FANTASIA’ “Metapsicologia: termo criado por Freud para designar a psicologia que fundou, considerada em sua dimensio mais ted- rica. A metapsicologia elabora um conjunto de modelos con- ceituais mais ou menos distantes da experiéncia, como a ficgio de um aparelho psfquico dividido em instancias, a teoria das pulsdes etc.”" Clara e precisa, como de habito, a definigao do Vocabulaire de la psychanalyse? parece ser apenas uma caracterizagio da * Conferéncia no ciclo comemorativo dos cingtienta anos da motte de Freud, promo- vido pela Sociedade Brasileira de Psicandlise de So Paulo, em maio de 1989. Pu- blicado originalmente na Revista Brasileira de Psicandllise, 23 (4):57-77, 1989, ¢, simultaneamente, na coletfinea organizada por Joel Birman, Freud — Cingiienta Anos depois, Rio de Janciro, Relume-Dumara, 1989, pp. 115-132. . J. Lapanche ¢ J. B, Pontalis, J. “Métapsychologie”, Vocabulaire de ta psychana- lyse, Paris, PUF, 1967, p. 230. . CF, artigos “Elaboration”, “Perlaboration”, “Appareil psychique”, “Pulsion” ¢ ou- tros, facilmente identificdveis pela trilha dos asteriscos. O que ha de comum entre esses termos é a Gnfase na transformagao da quantidade de energia, ligando-a ou de- rivando-a; veremos no decorrer deste artigo que mesmo essa idéia ~ aparentemen- nv 34 FIGURAS DA TEORIA PSICANALITICA metapsicologia; mas como nio reparar nas ressonancias que extravasam o descritivo e, mesmo na “dimensdo mais teérica”, abrem espago para a associagio? Sem deixar de ser perfeita- mente exato, o enunciado contém ao menos dois termos que solicitam 0 ouvido psicanalitico: “elaboragdo” e “‘ficgio”. Em elaboragdo estd presente a idéia de trabalho, central no pensamento de Freud e, em especial, no registro econémico- dindmico, isto é, no registro mesmo daquilo que a definigio visa capturar: o aparelho psfquico executa um trabalho de me- tabolizagio e de controle das excitagées, e a pulsio € uma “me- dida do trabalho exigido A psique por sua conexio com o cor- po”. O pensamento abstrato, reino da metapsicologia, também é uma forma de elaboragio: no caso, elaboragiéo de modelos mais ou menos distantes da experiéncia — leia-se, da experién- cia clinica — e que, como todo trabalho, nega o dado imediato enquanto imediato, buscando a sua forma de constituigio. Mas siio sobretudo as reverberagdes do termo ficgdo que merecem reter nosso interesse, porque deixam entrever um pa- rentesco A primeira vista bastante estranho: com efeito, é na mesma frase que se insinuam, uma ao lado da outra, as pala- vras “ficgio” e “teoria”. Ao aproximar como quem nao quer nada estas duas pala- yras, os autores do Vocabulaire tomam implicitamente partido numa velha querela: a do cardter cientifico da psicanilise. E o fazem de um modo que, embora sutil, no deixa de retomar uma posi¢ao que remonta a Freud: a que reconhece no aspecto figurado dos modelos conceituais mais abstratos nado um vicio de origem, mas a pr6pria esséncia do trabalho de pensamento. Nao me parece util, nem fiel ao espirito da psicandlise, opor 0 ficcional ao teérico, como se o primeiro fosse puramente ima- ginativo, e o segundo cientificamente rigoroso; nem, como se tornou freqiiente em certos meios, inverter a valorizaciio e de- clarar que o “teérico” € pernicioso, porque denota intelectuali- te abstrata a0 extremo — no deixa de ter uma faceta fiecional, transparente no seu proprio cariter metaférico. METAPSICOLOGIA/FANTASIA 35 zacdo e favorece as resisténcias contra a psicandlise, enquanto o “ficcional” estaria préximo do afetivo, sendo, portanto, “nio- saturado” e, em tltima instancia, mais verdadeiro. Tanto uma quanto outra posigio perdem de vista algo que me parece fas- cinante explorar: a possibilidade que — sem se reduzir aele -a teoria carregue em sua propria constituigdo as marcas do ima- gindrio que preside a sua elaboragiio. A Feiticeira Sabemos que Freud era um grande escritor. Um dos tragos mais caracteristicos de sua prosa é a abundancia e a variedade das imagens, comparagGes e metdforas. Um motivo ébvio para essa proliferagao é a finalidade didatica, j4 que expor o funcio- namento de mecanismos psiquicos complexos nao é tarefa fa- cil para ninguém, e pode ficar um pouco menos drdua para quem se familiariza com eles se 0 expositor os ilustrar com exemplos felizes. Mas seria ingénuo atribuir apenas a essa ra- zo um trago verdadeiramente essencial na escrita de um autor. No caso de Freud, o uso da figuragao é mais do que um recur- so pedagégico: é um verdadeiro trago de estilo, e nao apenas em sentido literério, mas também como estilo de pensamento. Reflitamos um instante sobre a acuidade visual que trans- parece nos seus sonhos, tais como os conhecemos pela Traumdeutung: sio imagens precisas, de uma impressionante riqueza de detalhe, e 0 vocabulério pelo qual elas siio narradas reflete justamente essa qualidade plastica. Se isso é verdadeiro no plano do relato, também o é no plano da elaboragao teérica: um exemplo 6bvio é a prépria idéia de “aparelho psiquico”, descrito no capitulo VII da obra 4 maneira de um instrumento 6ptico com suas lentes. Pelo uso constante, essas imagens fo- ram se amortecendo; quantos de nds ainda somos sensiveis 4 fecunda incongruéncia dessa expressio, que alia sem a menor cerim6énia 0 mecfnico e o espiritual? Tampouco nos admira- 36 FIGURAS DA TEORIA PSICANALITICA mos com a tranqiiila auddcia com que Freud declarava: “a teo- ria das pulsdes é, por assim dizer, a nossa mitologia”’. Uma certa forma de ler os escritos de Freud, buscando neles a des- crigdo cientifica de fendmenos observaveis, ressaltando a di- mensio professoral de quem escreve para ensinar, acostumou- nos a deixar de lado o processo mesmo do escrever, o combate com o desconhecido, a presenga constante de um contraponto imagético que permeia a prépria construgaéo dos conceitos. Freud costumava contrastar duas maneiras de expor a psicand- lise: a “dogmatica” e a “genética”. Dogmiatica aqui nfo signi- fica intolerante, mas hipotético-dedutiva: parte-se dos princf- pios e vai-se mostrando metodicamente a que conseqiiéncias eles conduzem. E o estilo, por exemplo, do Compéndio de Psi- candlise, de 1938. A maneira “genética” é ilustrada pela Inter- pretagdo dos Sonhos ¢ pela maioria dos textos de Freud: aqui, nao se fala apenas de psicandlise, mas a prépria forma da pes- quisa é inspirada pelo método associativo; toma-se um dado, um fato, e, a partir do cardter enigmitico desse elemento, pde- se em marcha uma investigagao que avan¢ga de modo absoluta- mente nao-linear. Patrick Mahony, em seu recente estudo sobre o discurso de Freud, afirma que, nesse caso, ‘Freud opta por escrever de maneira explorat6ria; mais do que relatar uma ex- ploragao anterior, ele escreve para descobrir 0 que esté pensan- do e, por sua vez, partilha desta rica experiéncia com o leitor’’. Nao ha como discordar desta apreciagiio: € precisamente isso que nos faz voltar sempre aos textos de Freud, mesmo que as yezes parecam distantes daquilo que a psicandlise posterior veio a descobrir. Essa idéia — que Mahony expressa com vigor — sugere-nos um outro modo de ler Freud, procurando resgatar, no movimento mesmo do seu pensamento, a necessidade de recorrer 4 expressdo figurada nao apenas como recurso para facilitar a tarefa do leitor, mas também como procedimento 3. Novas Conferéncias, n, 32: SA I, p. 529; BN Il, p. 3154. 4. P.G. Mahony, On defining Freud's Discourse, New Haven, Yale University Press, 1989, p. 3. METAPSICOLOGIA/FANTASIA 37 constitutivo da prépria idéia que se busca expressar na luta ingl6ria com as palavras. Um exemplo especialmente valioso desse modo de escre- ver encontra-se numa passagem do terceiro capitulo de Andilise Termindvel e Intermindvel. Freud esta discutindo um problema complicado, o de saber se é possfvel resolver de modo perma- nente ¢ duradouro um conflito entre o ego e o que denomina “reivindicagio pulsional patogénica”. E de repente... Ougamos: Para evitar mal-entendidos, provavelmente nfo é desnecessirio explici- tar melhor o que se entende pela expressao: liquidagao permanente de uma reivindicagio pulsional. Certamente, nio é que ela desapareca, de modo que nunca mais s¢ escute falar dela. Isso é em geral impossivel, ¢ sem divida nio seria desejavel. Nao, trata-se de algo diferente, que se pode caracterizar apro- ximadamente como a “domesticagio” de pulsio: isso quer dizer que a pulsio & inteiramente harmonizada com o ego, que se torna acess{vel a todas as in- fluéncias de outras aspiragdes presentes no ego, ¢ néio mais segue seus pré- prios caminhos rumo a satisfagao. Se perguntarmos por quais caminhos ¢ com quais meios isso acontece, a resposta nio é coisa facil. Precisamos dizer: “so muss denn doch die Hexe dran”, aqui a feiticcira precisa intervir, A saber, a feiticeira metapsicologia. Sem especulagio ¢ teorizagio metapsicoldgicas — quase diria: fantasia — nao se da aqui nenhum passo a mais. Infelizmente, tam- bém dessa vez as informagées da feiticeira no sio nem muito claras nem muito explicitas. $6 temos um ponto de apoio — mas certamente inestimavel na oposigao entre processo primdrio ¢ secundario, ¢ é a cla que, aqui tam- bém, quero remeter’. Ha varias maneiras de ler um texto, eu dizia ha pouco. Ao lado da indispensdvel andlise formal — sem a qual nos conde- namos a jamais saber do que estd falando o autor, e arrogante- mente substitufmos os seus argumentos pelas nossas projegdes — existe uma segunda dimensao da leitura, na qual, acredito, os psicanalistas deveriam se exercitar. Nessa segunda dimensio, © aspecto a observar € 0 jogo dos enunciados entre si, nao mais 5. Freud, Andlise Termindivel e Intermindvel, SE Ergitnzungsband, pp. 365-366; BN Ill, p. 5345. A edigiio Standard Brasileira comete aqui um de seus habituais con- tra-sensos, substituindo a “feiticeira metapsicologia” por uma absurda “metapsico- logia das feiticeiras”. 38 FIGURAS DA TEORIA PSICANALITICA no sentido formal da cadeia de razGes, mas no sentido dinami- co da composigio, da alianga ou do recuo. Sensivel 4 preg- nancia das imagens, aos efeitos de contraste, de ruptura, de mudanga de tom, o leitor atento a essa dimensdo procurara apreender 0 movimento das figuras que animam o texto, bus- cando vislumbrar a paisagem imagindria que o sustenta. A se- qgiiéncia das frases, a ressonancia das metdforas, o contexto, o valor posicional de uma idéia, a dire¢io do movimento de re- flexdo, as correspondéncias e entrechoques — tudo isso se tor- na significativo, permitindo que se v4 desenhando o que Mahony designou como “movimento exploratério” da escrita. E nao € sem surpresa que verificamos, quando nos damos a este trabalho, que existe uma Idégica por assim dizer préxima do processo primdrio, por baixo ou nos intersticios do texto, l6gica que imprime sua marca na propria superficie desse tex- to. E alids por estas marcas ou indfcios que somos alertados para essa segunda dimensio, e elas nos permitem evitar um ris- co 6bvio nesse género de leitura: o de nos deixarmos levar pe- los ecos que 0 escrito provoca em nossa imaginagio, e atribui- los sem mais ao autor. Como diminuir este perigo fatal para uma leitura que nao seja mera projegio? Muito simples: to- mando 0 cuidado de verificar a propriedade de nossa constru- ¢ao pela contraprova dos indicios paralelos ou convergentes igualmente disponiveis na superficie do texto, ou, se for 0 caso, em outros textos andlogos do autor considerado. Essa espécie de atengao eqiiiflutuante nao deixa de lembrar o movimento da interpretagdo psicanalitica, e, por esta razao, autorizo-me a fa- lar em “camada fantasmatica” presente num texto. Em outras palavras, a rede de imagens, a principio nebulosa, vai-se tor- nando mais nitida pela comparagao e pelo dobramento das fi- guras umas sobre as outras, até que se destaque um roteiro, um cendrio que possa ser compreendido em termos de “impulso para” e “defesa contra”, isto é, em termos que tornem plausivel falar de fantasia no sentido admitido em psicanilise. Tentemos observar esses indicios no trecho que citei. Ele se presta de modo especial a tal tratamento, uma vez que osci- METAPSICOLOGIA/FANTASIA, 39 la do abstrato ao figurado com uma velocidade propriamente vertiginosa. O problema em exame é certamente dos mais “te6- ricos”, embora assentado numa evidente preocupagiao clinica: determinar se é possivel a resolugao permanente de um confli- to psfquico. O recurso A imagem ja transparece na palavra Erledigung, que significa nao exatamente resolugao, mas liqui- dagiio, execugio, portanto agées violentas cujo fim é eliminar alguma coisa. Se lermos com atengio, veremos que ha uma paulatina infiltragdo de imagens ja nesse nivel “abstrato”: a rei- vindicagao pulsional nao desaparece “de modo que nunca mais se ouve falar dela”. Com o “aproximadamente”, Freud introduz uma metdfora prenhe de reverberagGes: a domesticagio (Béindigung) da pulsao; e daf para frente o texto abandona o tom altaneiro da exposigéo teérica para mergulhar num verda- deiro labirinto de imagens: caminhos da satisfagio, caminhos pelos quais opera a terapia analftica, além de uma expresso coloquial que poderiamos traduzir por “ficar em palpos de ara- nha” (so hat man’s nicht leicht mit der Beantwortung), e cuja tradugao literal seria: “assim nao se tem [tarefa] facil com a resposta”. E € nesse contexto que aparece a feiticeira, como instancia salvadora de quem est4 perdido e nio encontra seu caminho: “precisamos nos dizer: aqui precisa intervir a feiticeira” (no- tem a repeticao do verbo “precisar”, muss, a indicar uma pre- mente necessidade). Observemos a aceleragio do texto, que passa a mesclar os registros conceitual e imagético: “a feiticei- Tra metapsicologia, a saber. Sem especulagiio ¢ teorizagiio me- tapsicolégicas — quase disse: fantasia [metapsicolégica] — nao se pode aqui dar nenhum passo adiante”. O que chamei de pai- sagem imagindaria é aqui facilmente constatdvel: a metéfora do passo adiante é convergente com a dos caminhos, ¢ reforgada, em sua espacialidade, pela locugio que traduzi como quase: “beinahe hiitte ich gesagt”, literalmente “estaria perto de di- zer”, E visivel aqui uma pressao que inexiste nas linhas ime- diatamente anteriores, pressaio que sugere uma situagao de es- tar perdido, sem orientagao, numa floresta “che Ja diritta via 40 FIGURAS DA TEORIA PSICANALITICA era smarrita”, como diria Dante Alighieri. Surge, entio, a fei- ticeira, apds o apelo a especulagio e a teorizagao, isto é, a for- mas de pensar cujos nomes implicam a idéia de ver: especular vem de “espelho”; teorizar vem de “theoréin”, que significa contemplar, olhar; e a prépria palavra Phantasieren tem em sua origem um radical grego que conota a luz’. Desse ponto méximo de pressio aflitiva, o pardgrafo pros- segue na direcdo inversa: o distanciamento do perigo é obtido primeiro pela ironia — infelizmente, as informagGes da feiticei- ra ndo sao 14 muito compreensiveis — e, em seguida, pela ima- gem do ponto de apoio, sem dtivida inestimdvel: a distingio dos processos primdrios e secundarios, obviamente terreno co- nhecido e mapeado. Reparem que existe aqui um entrelaga- mento entre duas redes de metéforas: estar perdido/recuperar a orientagio, por um lado, e, na linha do passo, algo como escor- regar/encontrar um ponto de apoio. E como se, caminhando por uma trilha até entio clara e nitida, Freud tivesse tropegado e, por pouco, evitado cair; o movimento de deslizar foi, porém, contido, e o resto do pardgrafo descreve a retomada do percur- so a partir do “ponto de apoio”, verdadeiro galho de 4rvore providencialmente ao alcance do viandante, e que lhe permite recuperar o controle dos seus passos. O interesse desse pequeno texto nao termina af. No préprio nfvel manifesto, Freud caracteriza a atividade metapsicolégica como “especulacio” e “teorizagfo”, marcando o registro abs- trato em que ela se move. Mas coloca entre travessdes algo in- finitamente mais interessante: a idéia furtiva de que ‘“‘quase te- tia dito: fantasia”. Ocorre aqui uma espécie de hesitagio: a metapsicologia nao € idéntica 4 fantasia, o que é marcado pelo “quase” e pelo recurso grafico dos travess6es; mas tem com ela algum parentesco, j4 que a metapsicologia é uma feiticeira, 6. Um interessantissimo apanhado dos termos para designar 0 conhecimento a partir do ato de ver se encontra no artigo de Marilena Chauf “Janela da Alma, Espelho do Mundo”, em Adauto Novaes (org.) O Olhar, Companhia das Letras, So Paulo, 1988, pp. 31-63. METAPSICOLOGIA/FANTASIA 41 personagem que, convenhamos, nada tem da racionalidade cla- ra e distinta prépria ao deus Logos. Gesto ambiguo, portanto, de aproximagio e de repulsa, suavizada em distanciamento: os travessdes isolam, reproduzem graficamente o intervalo que alcangou a expressdo verbal na palavra “beinahe”, por pouco... E possfvel assim perceber que o nivel manifesto do texto enun- cia algo que nao se esgota nele mesmo, a saber, a aproximagao entre atividade teorizante e atividade imaginativa; e esse “nao se esgota nele mesmo” significa aqui, precisamente, um nove- lo de representagdes cuja localizagao psiquica se reparte entre © pré-consciente ¢ o inconsciente. Aqui convém recordar o contexto do qual Freud retira a imagem da feiticeira, isto é, a cena do Primeiro Fausto que se passa na cozinha da bruxa (cena 6). Entediado pelo conheci- mento que nao conduz a felicidade, Fausto quer remogar e go- zar a vida. Mefist6feles lhe diz que, para isso, h4 um meio pra- tico: levar existéncia saudavel, viver em harmonia com a natu- reza, dedicar-se as lides agricolas. Mas Fausto niio se sensibi- liza com essa perspectiva ecolégica: Fausto: Nao me convém, nao tenho o habito disso; Brandir a enxada é duro servigo. A vida ristica nao é comigo. Mefistdfeles: Pois venha entio a bruxa, amigo’. A bruxa prepara uma pogio de acordo com férmulas secre- tas; Fausto bebe a pogo e rejuvenesce. Incontinenti, pde-se ao encalgo da bela e jovem Margarida. No plano do texto manifes- to, o que Freud faz —- como sempre, com maestria — é interca- lar uma citagao adequada para seu propésito: a metapsicologia opera com férmulas que nada mais sao do que configuragdes de conceitos e regras para lidar com eles; nesse sentido, € com- pardvel a feiticeira, que também prepara suas beberagens se- guindo regras para combinar os diversos elementos e, com isso, produzir um certo efeito. O que irmana as f6rmulas da 7. Goethe, Primeiro Fausto, trad. Jenny Klabin Segall, Sio Paulo, Edusp, 1981, p. 112. a FIGURAS DA TEORIA PSICANALITICA metapsicologia as da bruxa, portanto, é seu cardter operativo. E possivel permanecer nesse plano e nao interrogar mais a fundo tal imagem. Mas nao creio que um psicanalista — nem, de res- to, ninguém que se interesse pelo funcionamento de um siste- ma de representagées — contentar-se-ia com esse bom senso rasteiro. O especialista em literatura faria notar que a finalida- de da pogiio ingerida pelo personagem 6 rejuvenescé-lo, abrir- The um caminho para recuperar o vigor sexual; o psicanalista assinalaria que esses temas nao sao estranhos ao prdprio assun- to discutido no parégrafo em que comparece a citacio, isto é, 0 conflito entre a pulsiio e o ego. Por que a pulsio representa uma ameaga, por que sua reivindicagio precisa ser “domestica- da”? Porque visa obter uma satisfagdo sem atentar para as as- piragdes do ego, isto 6, sem considerar o principio de reali- dade. E por esta via que, no final do pardgrafo, vai se delinear a continuagao do raciocinio: processos primérios sio precisa- mente aqueles que obedecem unicamente ao principio do pra- zer, entendido como regulacio automatica do nivel de energia e descarga igualmente automiatica do investimento afetivo nas Tepresentagoes; processos secundarios sao aqueles em que essa energia se encontra “ligada”, fazendo-se seu escoamento em concordancia com o funcionamento do ego. O que sustenta a evocacio da feiticeira, portanto, é uma relagao mais profunda do que a mera analogia a partir da operatividade das férmulas: trata-se da relagao entre o prazer e a satisfag&o pulsional em que consiste a sua concretizagao. Se concordarmos em seguir a pista que assim se anuncia — ler a imagem da feiticeira 4 luz da questo do prazer, como fio condutor para compreender o estatuto da pulsfio — veremos se. descortinar uma perspectiva fascinante. Devemos a psicanalis- ta francesa Monique Schneider uma brilhante andlise desta problemitica, num livro extraordindrio que se intitula Freud et le plaisir. B nesta andlise que me apoiarei a seguir, pois ela me 8. Monique Schneider, Freud et le plaisir, Paris, Denoél, 1980. METAPSICOLOGIA/FANTASIA 43 parece modelar do que pode e deve ser uma leitura psicanaliti- cade um texto, igualmente distante do formalismo escolar que quer apreender apenas os resultados sem atentar para o proces- so que os produz, e da rematada tolice que consiste em aban- donar a precisiio da exegese para se entregar ds delicias nebu- losas do “eu acho” e “eu sinto”. Partamos da imagem da feiticeira. Ela aparece jé na cor- respondéncia com Fliess, no momento em que Freud redesco- bre fragmentos do seu passado infantil reprimido — outono de 1897 — e vem a inocentar o “Velho” de qualquer responsabili- dade pela génese da sua neurose: “minha originadora de neu- rose foi uma mulher velha e feia, mas sdbia, que me contou muitas coisas do céu e do inferno...” (carta 70 a Fliess, de 3.10.1897). Trata-se da famosa babd, a “Nannie”, acusada de roubo e¢ trancafiada, originando um acesso de angustia relata- do em Psicopatologia da Vida Quotidiana’. Mulher feia, tal- vez, mas “velha’’? Afinal, ela o lavava na dgua avermelhada por seu sangue menstrual... Figura feminina associada assim tanto ao conhecimento quanto 4 sexualidade, verdadeiro pro- t6tipo da bruxa de Andlise Termindvel e Intermindvel. Freud dird que ela foi sua “professora de sexualidade”, soldando na mesma expressdo aquelas duas vertentes; e se atentarmos para a disposigao das duas figuras, a de mulher e a do menino, ve- remos que essa sexualidade aparece como sedugiio, pois ela é quem desperta nele sensagées estranhas e incompreensiveis, acompanhadas por aquilo que Laplanche designar4 como “sig- nificantes enigmaticos”"’. Nio € preciso que me estenda sobre esses episédios ampla- mente conhecidos da biografia de Freud, j4 que meu objetivo nao € acrescentar mais um capitulo 4 pseudo-andlise de nosso. ancestral comum. Mas penso que mesmo essas breves indica- ¢des bastam para sugerir que a mengdo da feiticeira, no contex- 9. Freud, BN I, p. 787, nota 417, Esta lembranga infantil de Freud é comentada em R. Mezan, Freud Pensador da Cultura, Sio Paulo, Brasiliense, 1985, pp. 197-198. 10. Laplanche, Teoria da Sedugdo Generalizada, Porto Alegre, Artes Médicas, 1988. a4 FIGURAS DA TEORIA PSICANALITICA to de Andlise Termindvel e Intermindvel, encontra-se sobeja- mente sobredeterminada, j4 que essa figura mergulha suas raizes profundas no imagindrio de Freud ¢ na sua experiéncia infantil. Posta a conexio entre a feiticeira e a sexualidade, um bre- ve paréntese metodolégico. Se estamos comentando um tex- to de Freud, nio é suficiente apoiar nossa demonstra¢io ape- nas no que se conhece acerca do personagem cultural que foi, historicamente, a feiticeira. Sabemos que a “caga As bruxas”, promovida com entusiasmo na Europa a partir do final da Ida- de Média e aproximadamente até 1650, associou as feiticeiras ao diabo e 4 sensualidade desbragada, ja que seria através do ato sexual que essas pobres mulheres teriam firmado seu pac- to com Satands. A abundante literatura histérica a este respei- to é certamente valiosa, mas nao nos permite deduzir absolu- tamente nada sobre o sentido, para Freud, da figura chamada “die Hexe” — a bruxa. E isso porque, de um fato cultural & conseqiiéncia psiquica, a distdncia s6 pode ser vencida se pu- dermos mostrar como essa psique singular apropriou-se do dito fato, incluindo-o como significagao em suas préprias re- des associativas. Freud interessou-se pela histéria das feiticeiras no mo- mento em que se deu conta de que, provavelmente, os relatos sobre elas presentificavam os mesmos sintomas e as mesmas fantasias com que se habituara em seu trato com as pacientes histéricas: a bruxa seria apenas a histérica do passado, utili- zando-se do repertério de simbolos e de conexGes imagindrias disponivel na época em que vivia. Esse fato histérico e real, documentado na correspondéncia com Fliess, 6 um elemento a reforgar a sobredeterminagao da figura da bruxa para Freud; parece-me, contudo, mais conforme o espirito da psicandlise buscar a origem infantil dessa imagem na experiéncia e na fantasia do menino que Freud foi. E isso porque, mesmo no contexto do interesse clfnico e teérico pela feiticaria (Freud chegou a encomendar a seu livreiro um exemplar do Malleus Maleficarum, 0 manual dos inquisidores alemaes), a conexio METAPSICOLOGIA/FANTASIA 45 relevante é sempre a que situa nas mesmas paragens a bruxae a sensualidade, S6 que com um detalhe de enorme importin- cia: enquanto, na lembranga infantil, a bruxa é a sedutora, a que inicia o menino no mundo da sexualidade, a feiticeira per- seguida pela Inquisigao € a seduzida, ficando a fungio ativa de sedutor reservada para o dem6nio. Inversiio dos papéis e dos sexos muito interessante, se lembrarmos que a famosa “teoria da sedugiio” abandonada no outono de 1897 colocava precisa- mente um homem no papel de sedutor e uma menina no papel de seduzida: é esta a neurotica que vai ser descartada em se- tembro de 1897, abrindo caminho para a descoberta do desejo incestuoso e para tudo o que dai decorre. Essa descoberta, se por um lado funda a psicandlise, por outro implica um abandono: o da tematica da sedugiio, substi- tuida pela idéia de desejo que visa um objeto. E desse ponto que parte a andlise de Monique Schneider, que se interessa jus- tamente pelas conseqiiéncias tedricas desse abandono, porém buscando, para delas dar conta, restituir a rede de imagens em que se condensam as motivagées fantasmiaticas desse passo teérico. Pulsio x Sedugiio? Tomemos o caminho sugerido pelo pardgrafo de Andlise Termindvel e Intermindvel que poe em cena o tema da pulsao. Trata-se de saber se é possfvel eliminar por completo uma exi- géncia pulsional. A resposta é que tal coisa nao € nem possivel nem desejdvel, podendo a psicandlise, no maximo, obter algo como a “domesticagao” da pulsao: ela se torna entao razoavel- mente compativel com as aspiragdes do ego e deixa de perse- guir sua satisfagio de modo isolado, tornando-se acessivel As influéncias que emanam desse ego. A pulsao é assim figurada como uma entidade selvagem e cega, cuja busca de satisfagio pode p6r em risco aquele a quem ela move. Daf o interesse — a 46 FIGURAS DA TEORIA PSICANALITICA, partir dessa personagem que estamos examinando — em abrir o leque em direcio ao artigo Pulsdes e Destinos da Pulsdo, que, além de ser o locus classico para situar 0 estatuto da pulsdo na doutrina de Freud, tem a vantagem de abrir um conjunto de ensaios intitulado justamente Metapsicologia. Texto teérico entre todos, drido mesmo, mas que, sob a lupa interpretativa, revela-se surpreendentemente vivo, pulsando com a vitalidade propria da fantasia. A primeira constatagio que se impée, se lemos em parale- lo os dois textos — Andlise... e Pulsdo... — € a de uma impres- sionante similitude no nivel do vocabuldrio. A passagem do ar- tigo de 1937 aborda a pulsio num contexto muito preciso: o da eliminagao do impulso, que, embora dita indesejavel e impos- sfvel, nao deixa de estar presente no nivel da escrita. Para Freud, pulsdo e eliminagao estio com freqiiéncia em regime de vinculo; é raro que, ao discutir a problematica das pulsdes, 0 termo eliminagdo e seus sinénimos néo comparegam a poucas linhas de distancia. Sendo aqui impossivel a eliminagio/su- pressao, resta a alternativa da domesticagao, ou seja, de uma neutralizagio parcial do risco implicado pelo exercicio cego da l6gica que a governa. Domesticar a pulsao significa manté-la num certo nivel de intensidade, ligd-la a certas representagGes, controlé-la em seu potencial, enfim: submeté-la a um outro regime de funciona- mento. Nao é diffcil perceber que a pulsiio “pré-domesticada”, livre em seu exercfcio e na busca da satisfagaio desimpedida, esté préxima do processo primrio, enquanto a pulsao “domes- ticada” o é porque, em certa medida, sujeita-se ao controle do processo secundirio. Onde estd, entiio, a semelhanga, no nivel do vocabuldrio, a que me referi? Precisamente nas idéias de primdrio e secundario, de controle; de eliminagio/descarga, de nivel de intensidade, de ligagao/domesticagaio. Ora — dirao vocés — isso nada tem de extraordinario; se o tema é o mesmo, nada mais natural que as palavras que o revestem sejam as mesmas, ou muito parecidas. De acordo; mas os convido a prestar aten¢fo nas imagens que povoam a descrigdo freudiana, METAPSICOLOGIA/FANTASIA. a7 aparentemente “limpida”, “objetiva” e “abstrata’”’. Eis algumas frases do infcio de Pulsdes...: A fisiologia nos oferece 0 conceito do estimulo ¢ 0 esquema do reflexo, segundo o qual um estimulo trazido de fora ao tecido vivo (substAncia ner- vosa) é descarregado para fora através da agio. Esta agdo se torna adequada subtraindo a substancia estimulada A atuagao do estimulo, livrando-a do raio de ago do estfmulo. Quanto ao estfmulo, o essencial estard dado se assumirmos que ele age como um impacto unico; pode ser entio eliminado através de uma Unica agdo adequada, cujo modelo deve ser buscado na fuga motora da fonte esti- mulante. A mais importante destas pressuposigoes [...] enuncia: o sistema nervo- so 6 um aparelho ao qual compete a fungido de afastar novamente os est{mu- los que a ele chegam, de abaixd-los até o mais baixo nivel possivel, ou que, sc isto fosse possfvel, desejaria manter-se em geral livre de estfmulos [...) Atribuamos ao sistema nervoso a tarefa, dito de maneira genérica, de domi- nar os estimulos!!. A paisagem subjacente a estas formulagées teéricas 6 abso- lutamente nitida: 0 personagem chamado “tecido vivo”, “‘subs- tancia” ou “sistema nervoso” esté constantemente ds voltas com algo que o ataca; esse inimigo chama-se estimulo (Reiz), € entre ambos nao hd convivéncia possivel. Dessa agressio que vem tnica e exclusivamente de fora (0 grifo € de Freud), a substincia nervosa deve defender-se mediante uma agao que, na verdade, é uma reagao, pois seu desejo é estar, como Inés de Castro, “posta em sossego”. Tal agiio tem por finalidade “sub- trair” ou “livrar” o personagem do contato nefasto com o esti- mulo; o modelo desta agiio é a fuga, que por si s6 bastaria para caracterizar como hostil a “fonte estimulante”. Se a fuga é im- possivel, a substancia nervosa serd atingida pelo “impacto” do estimulo; sua tarefa torna-se, entio, elimin4-lo (erledigen) o quanto antes, “afastar novamente” o perigo; se isso nio estiver ao seu alcance, neutralizd-lo o mais que puder, abaixando sua 11. Freud, SA III, pp. 82-83; BN II, pp. 2040-2041. 48 FIGURAS DA TEORIA PSICANALITICA intensidade (“‘domesticando-o”?) até o patamar minimo atingi- vel nas circunstincias. E a tarefa que a primeira frase designa como “descarre- gar”, e que na terceira se converte em “dominar”... E facil compreender qual o princfpio que governa essa leitura, talvez pouco usual: estou simplesmente tomando ao pé da letra a in- dicagio de Freud segundo a qual “a teoria das puls6es é a nos- sa mitologia”. A mitologia, observa Monique Schneider no li- vro a que me referi, é uma série de relatos sobre as faganhas dos heréis lenddrios. Em Pulsées e Destinos de Pulsdo, 0 he- r6i € nada menos do que 0 préprio conceito de pulsio'?. O que a autora nos convida a fazer 6 acompanhar o relato feito por Freud das peripécias desse her6i. Embora nas frases que sele- cionei o personagem central ainda nao tenha aparecido, o ce- nario guerreiro jd esté armado: o exterior é uma fonte de risco € de tensdo, a agdo adequada (zweckmdssig) consiste numa re- tirada prudente ou, se isso se revelar impossivel, na maxima redugiio do poder disruptor do adversério... E nessa rede de imagens nada serena, como se pode ver, que Freud ancora 0 famoso principio do prazer, definido como tendéncia ao abai- xamento automatico do nivel de tensao, como descarga de algo que irrita porque excita. A idéia fecunda de Monique Schneider consiste em pesquisar, através de diversos textos de Freud, o sentido dessa concepgio do prazer. A nogio da nocividade como caractertfs- tica do aumento da tensfo é das mais antigas no itinerdrio freudiano: ela j4 se encontra, em 1892, no Manuscrito B envia- do a Fliess. Curiosamente, nesses primeiros tempos, a origem de neurose nao é vinculada a frustragaio nem a abstinéncia, mas ao desregramento, 4 dilapidagdo inconsiderada dos recursos organicos sem qualquer respeito pelo senso de proporgoes. Quem goza demais arrisca-se a morrer, por um processo in- controlivel de esvaziamento: tal é o destino do Lebemann, do gozador debochado que devorou a maga até a tiltima migalha. 12, Cf, Monique Schneider, op. cits p- 3 METAPSICOLOGIA/FANTASIA 49 Mas, se esta figura se eclipsa rapidamente nos escritos de Freud, ganha extraordindrio destaque a idéia de que o momen- to decisivo da experiéncia do prazer é 0 retorno a calma. O que enunciam os textos que extraf de Pulsées... aparece j4 na pri- meira pdgina do Projeto de 1895: 0 principio dito de “inércia neur6nica” postula “desembaragar-se das quantidades”. Nada menos voluptuoso do que o princfpio do prazer... Ora, nado é& esta a mesma idéia que sustenta a concepgao da terapia como catarse? “Eliminar 0 corpo estranho” 6 apenas uma outra for- mulagio do mesmo movimento que alicerga a metapsicologia no solo rochoso do inanimado. Diz o texto de Pulsdes... “o sis- tema nervoso desejaria em geral manter-se livre dos estimu- los...”; mas sera tal coisa possivel para um tecido vivo? Seguindo as indicagées da autora, é interessante considerar brevemente, por esse Angulo, a chamada teoria da sedugao. O termo “sedugio” contém a idéia de desvio, de atrair para si — se-ducere — mas significa também atrair para fora do bom ca- minho", A introdugdo da sexualidade no corpo e no psiquismo da menina é assim pensada, no fimbito de teoria da sedugiio, como equivalente a um estimulo excessivo, formando o nticleo do “corpo estranho” a partir do qual se estrutura a reminiscén- cia patogénica; é por isso que a terapia visa A expulsio, a eli- minagiio desse foco interno de excitagao. Ora, o abandono da teoria da sedugio, em setembro de 1897, dard lugar a uma ex- traordindria reviravolta na paisagem que até entao prevalecera. O estimulo provinha de uma figura masculina, forma discerni- vel ¢ perfeitamente separada de sua “vitima”; é a essa configu- ragéio que Freud renuncia, no movimento da sua auto-anilise — “o Velho nao teve qualquer participagdo na origem de minha 13. Ver Renato Mezan, “1004, 1005, 1006: Novas Espirais da Sedugiio”, em Renato J, Ribeiro (org.), A Sedugdo e suas Mascaras, S50 Paulo, Companhia das Letras, 1987. Republicado sob 0 titulo “A Sombra de Don Juan: 2 Sedugdo como Menti- rae como Iniciag? A Sombra de Don Juan e Outros Ensaios, Sio Paulo, Bra- siliense, 1993. Nesse artigo, o tema de Dom Juan, tal como Mozart o retrata em sua 6pera, di margem a consideragdes sobre 0 duplo aspecto da sedugdio, enten- dido no sentido de “desvio” e no sentido de “faseinio”. 30 FIGURAS DA TEORIA PSICANALITICA neurose” — para deparar com uma outra silhueta, bem mais ne- bulosa e, principalmente, feminina. Observei atrés que, de seduzida, a figura feminina converte-se em sedutora; a esse respeito, Monique Schneider faz um comentério instigante: No momento em que naufraga esta conexdo, no momento em que, por tras da forma discernivel do pai, perfila-se uma figura feminina que se des- vela como verdadeira origem da sedugiio, Freud tira uma conclusiio oposta & que os fatos descobertos pareceriam exigir: ao invés de reconhecer que a bus- ca de uma sedugiio situada na infancia se revela sempre frutuosa, desde que se atribua eventualmente 4 mie a fungao primitivamente concedida ao pai, Freud prefere abandonar pura ¢ simplesmente sua hipétese de uma seducio inicidtica'*. A idéia é, convenhamos, brilhante: ela consiste em inves- tigar se todo estimulo 6 mesmo um ataque, se toda excitagao proveniente do exterior tem necessariamente o sentido de um “impacto” agressivo. E seraé mesmo adequado falar aqui em “exterior”? Na mitologia de 1915, a substancia nervosa carac- teriza-se por possuir um contorno claro e nitido, uma periferia perfeitamente distingufvel daquilo que a circunda. Mas reflita- mos com Winnicott: “there is no such a thing as a baby", 0 que existe é esse bebé cercado de um ambiente que, caso nao seja propicio, conduzi-lo-d inevitavelmente 4 morte. Ora, 0 “am- biente” descrito por Freud em Pulsdes... € tudo menos “propi- cio”: para dizé-lo de uma vez, nao ha mae nessa paisagem lu- nar em que todo estimulo é uma violéncia, e toda tensio uma. ameaga. E com base nesse argumento que Monique Schneider propoe opor sedugio e pulsdo, trabalhando rente ao imagindrio que sustenta a elaboragdo de Freud. O que ela diz em substan- cia € que, para Freud, a idéia de uma sedugiio materna se afi- gura como pavorosa ¢ angustiante, na medida em que neste ce- nario a estimulagdo provém de um ente que nao € o sujeito, e pode produzir um prazer que nio consiste na eliminagiio do es- timulo, mas, ao contrdrio, na sua interiorizagdo. A experiéncia 14, Monique Schneider, op. cit., p. 35. METAPSICOLOGIAJ/FANTASIA 51 vivida do prazer comporta dois momentos indissocidveis: o da estimulagdo e o da distenséo. No argumento de Freud, apenas a segunda vertente pode ser figurada, permanecendo a primei- ra constantemente na sombra enguanto momento de prazer - pois ele comparece na qualidade de antiprazer, daquilo em cuja expulsio consiste o prazer. Nao existe, assim, aporte externo positivo, na versio mitolégica dos primérdios da vida psfquica que se estrutura em Pulsdes e Destinos de Pulsao. E certo que esta no € a nica versio em que a teoria do prazer aparece em Freud, e logo mais examinaremos outra faceta, radicalmente oposta 4 primeira. Mas vale a pena perma- necermos em companhia de Monique Schneider, na leitura que faz do texto metapsicolégico, j4 que é com extraordindria pre- cisao que ela acompanha os movimentos e as peripécias em que se envolvem os “herdis” dos relatos. A hipétese seguinte é de que o estudo de pulsiio — na medida em que localiza a fonte da sexualidade no mais intimo do psiquismo e faz isso de modo a ratificar a ficgo de uma autonomia profunda do sujeito — presta-se a ser lida como “denegacao ou anulacio retroativa do tema da sedugio: € o que fica evidente com a breve evocac¢do feita por Freud da situagao original da crianga. Situagio que serd escamoteada, negada tao logo posta, tanto a experiéncia original da dependéncia parece insustentdvel para o teérico preocupado antes de tudo em procurar no psiquismo aquilo que € causa de um movimento aut6nomo”", A referéncia aqui € a um texto propriamente desnorteador de Pulsdes e Destinos de Pulsdo, texto que descreve o ser vivo inicialmente em situagio de quase total desamparo, incapaz ainda de orientagdo no mun- do, e que recebe estimulos em sua substancia nervosa. O que vai ocorrer com esse “ser vivo”, cuja fragilidade é a de um bebé de poucos dias? Ougamos Freud: Este ser estard muito rapidamente [sehr bald] em condigdes de fazer uma primeira distingdo e de obter assim [gewinnen] uma primeira orientagao. Por 15. Idem, pp. 112-113, 82 FIGURAS DA TEORIA PSICANALITICA. um lado, experimentard estfmulos aos quais pode se subtrair através de uma agdo muscular [fuga]: esses estimulos sdo por ele atribufdos a um mundo ex- terior. Por outro lado, sentiré estimulos contra os quais tal agdo permanece indtil, que conservam apesar [dela] seu cardter de pressfo constante; esses estfmulos sio o indfcio de um mundo interno, a prova das necessidades pulsionais. A substancia perceptiva do ser vivo terd adquirido [gewonnen haben], na eficdcia de sua ago muscular, um ponto de apoio [Anhaléspunkt] para separar um “dentro” de um “fora’"'6, Os termos em alemio nfo figuram aqui como migangas de erudigéo ornamental, mas como instrumento colocado a disposi¢ao do leitor a fim de que possa acompanhar passo a passo a complexa teia de associagdes que eles desencadeiam. Freud descreve um processo que, supde-se, deve resultar na separagio do exterior e do interior; mas nao deixa de ser intri- gante a velocidade (sehr bald) com que tal processo chega a seu termo. O eixo do texto esta na idéia de orientagiio, e esta orientagio é apresentada como uma vitdria (note-se a fre- qliéncia do verbo gewinnen, to win). A imagem do “ponto de apoio”, também presente no texto de Andlise Termindvel e In- termindvel, reforga a idéia de que se apoiar é encontrar um ponto fixo, capaz de dar coordenadas a um espaco imaginado anteriormente como indiferenciado, homogéneo e envolvente. — por isso mesmo extremamente perigoso. Em Andlise..., 0 ponto de apoio era a oposi¢ao dos processos primérios e se- cundiarios, aqui é a separagio do dentro e do fora: gestos que localizam uma divisdo, uma reticulagao deste meio liso e uni- forme, reticulagdo essa que tem como foco o lugar ocupado pelo sujeito; é desse lugar que tal dirego serd o norte, e tal outra, o sul. Orientar-se é, assim, referenciar a partir de si. Também reencontramos nessa passagem os termos a que ja nos habituamos: a acdo, a fuga, a eficdcia ou a ineficdcia de “subtragdo” (outra metdfora distanciadora) em que consiste o tinico meio de lidar com o estfmulo: subtragdo de si mesmo a acio dele, ou subtragao de uma parte da sua intensidade a fim 16. Freud, SA Ill, p. 83, BN II, p. 2040. METAPSICOLOGIA/FANTASIA, 33 de reduzi-lo ao minimo possivel. Nesse sentido, convém repa- rar num outro trecho da mesma pagina, em que a idéia de ago em relagao a um fim (zweckmdssig, zielgerecht) também tem uma conotagiio de vitéria: Como a pulsio nfo ataca de fora, mas do interior do corpo, nenhuma ‘fuga pode ser util contra ela. Denominamos mais propriamente o estmulo pulsional “necessidade”; 0 que suprime a necessidade é a satisfacao. Ora, ela 86 pode ser obtida [gewonnen] através de uma alteragdo adequada da fonte interna de estimulagio!7, Creio que nao é necessdrio arrombar portas escancaradas: sto evidentes as conotagdes que desejo ressaltar, e que sao vei- culadas através dos termos que grifei. Elas se constelam em torno da idéia do combate contra um inimigo a ser neutraliza- do: a situagdo de desamparo caracteriza-se, assim, como aque- Ia em que existe o risco de ser envolvido, circundado ou abra- gado por um estimulo ao qual nao se possa atribuir uma fonte, isto é, um foco inico capaz de polarizar o contra-ataque. Reto- memos as frases mencionadas ha pouco: uma delas, a que situa o estfmulo como impacto, insiste no cardter unico (einmalig, que ocorre uma vez s6) do contato com o estimulo, sempre pensado como uma quantidade discreta, portanto discernivel. Antes de diferenciar o dentro ¢ o fora, o ser vivo tem como ta- refa diferenciar, no fora, de onde vem a estimulagaio, a fim de voltar contra a “fonte” a agdo adequada. Nao hd como negar razao a Monique Schneider quando in- siste em que o estudo da pulsio, ou do que ela chama com pro- priedade “o bebé-Hércules”, organiza-se como anulagio de qualquer possibilidade de sedugao, especialmente se refletir- Mos que o termo que estou traduzindo como “estimulo” — Reiz ~ significa igualmente, na lingua cotidiana, “‘atragio” ¢ “encan- to” (detalhe curioso: “reizlos” — que Freud emprega unicamen- 17, Freud, BN Il, p. 2.040 (grifes meus). 54 FIGURAS DA TEORIA PSICANALITICA te no sentido de “livre de estimulos” — é também o adjetivo para “sem graga”, “sem atrativos”’...). O que fica formalmente excluido, desse modo, é que o estimulo possa se dar como afa- go ou caricia, que ele se abra para uma nova sensacio ou para uma intensidade diferenciada. O prazer surge na ponta extrema de um movimento de subjuga¢io do estimulo, de derrota da excitagio. E é nesse sentido que ganha relevo uma idéia que, salvo melhor jufzo, aparece pela primeira vez no artigo de 1915: a de que a tarefa do psiquismo é dominar (bewéiltigen) os estimulos. Convenhamos que eliminar a tensao — descarrega- la, manté-la préxima de zero — é ainda algo que se deixa ima- ginar como um processo automatico: mas dominar nio é um teflexo, é um ato convergente com a insisténcia de Freud no aspecto finalizado da ago (zweckmiissig ou zielgerecht). E a autora nao deixa de ser perspicaz quando relaciona a essa at- mosfera belicosa o fato de que, poucas paginas adiante, o pa- radigma de pulséo v4 ser localizado por Freud precisamente no... sadismo. O que o texto de Pulsdes e Destinos de Pulsdo deixa in- teiramente na sombra é a existéncia da oralidade, do prazer que consiste em absorver do exterior algo que escapa as cate- gorias da violéncia e da agressdo. Ora, é nessa direg4o que se encaminha outra andlise de Freud: a célebre passagem dos Trés Ensaios que descreve o surgimento do auto-erotismo a partir da experiéncia da amamentagio. Os leitores de Vida e Morte em Psicandlise recordar-se-io da maneira pela qual Laplanche se serve desse texto para esclarecer o mal-entendi- do em torno do narcisismo primério, mal-entendido que tanta tinta fez correr na histéria da literatura psicanalitica. Com efeito, o que Freud descreve nao € nenhum estado “anobje- tal” que precederia a descoberta do mundo exterior, estado que s6 existe na miopia dos que léem no texto aquilo que querem ler. A caracterizagdo de Freud 6 cristalina: 0 auto- erotismo é 0 momento inaugural da sexualidade, porque nele © prazer se emancipa da satisfagao de uma necessidade vital; mas de modo algum é 0 momento inaugural da existéncia METAPSICOLOGIAJ/FANTASIA 55 biolédgica ou da vida psiquica, posto que se apdia na expe- riéncia de sugar o seio'*. O que me interessa assinalar, no entanto, é que nessa pas- sagem o estfmulo (aqui chamado Reizung) nao € de modo al- gum traumatizante: “dirfamos que os labios da crianga se com- portaram como uma zona erdgena, e que a estimulagao pelo fluxo quente do leite foi bem a causa do prazer...”!” Aqui, 0 meio nio é hostil; essa imagem reata com uma passagem do Projeto de 1895 na qual se fala de fremde Hilfe — de ajuda ex- terna — trazida pelo adulto ao bebé Ailflos, desamparado: situa- cao inimagin4vel, verdadeira contradigao in adjecto, na pers- pectiva de PulsGes e Destinos de Pulsdo. Aqui aparece, portan- to, a idéia de um prazer nao acorrentado a extingdo da tensio, mas que pode ser vislumbrado como decorrente de um aporte externo benfazejo, de um gesto que acaricia e suscita no corpo ou na psique novas ¢, até entio, desconhecidas possibilidades de desfrute. As Duas Faces da Metapsicologia Eis-nos bem longe, ao que parece, da metapsicologia-feiti- ceira. E contudo, nos meandros a que nos conduziu essa ima- gem, acredito que sua figura ganha corpo, tornando possivel 18, “E além disso € nitido que este comportamento da crianga que chupa o dedo estd determinado pela busca de um prazer j4 vivenciado ¢ agora lembrado [...) £ tam- bém fécil adivinhar em qual ocasidio a crianga teve a primeira experiéncia desse prazer que agora ela aspira a reproduzir, A primeira ¢ mais importante atividade vital da crianga, 0 sugar do scio materno, deve té-la familiarizado jé com esse pra- zer.” Assim se exprime Freud nos Trés Ensaios (segiio 2 do capitulo II, SA V, p. 88; BN II, p. 1 200). Laplanche discute longamente esse trecho no capitulo | de Vie et mort en psychanalyse, Paris, Flammarion, 1970, texto no qual também € proposta uma leitura instigante de Pulsdes e Destinos de Pulsdo. Essa leitura, por sua vez, inspira alguns dos desenvolvimentos que apresento em “A Medusa 10 Telese6pio", em Adauto Novaes (org.), 0 Olhar, So Paulo, Companhia das Letras, 1988, pp. 445-477. 19. Freud, SA V, p. 88; BN, p. 1 200. 56 FIGURAS DA TEORIA PSICANALITICA compreender por que, para Freud, ela funciona como emblema da teorizagao psicanalitica. Em primeiro lugar, trata-se de justificar 0 método de leitu- ra sugerido pela passagem de Andlise Termindvel e Intermind- vel da qual partimos. A especulagdo e a teorizagao se apdiam num vigoroso substrato de fantasias, como espero ter podido demonstrar. Essas fantasias tem uma faceta pré-consciente e uma outra, que me parece mais oportuno ressaltar, propriamen- te inconsciente. Nesse caso especffico, o tema do prazer, em suas vinculagdes com a pulsdo e a sedugao — em aparéncia, um dos mais rarefeitos e abstrusos problemas que a metapsicologia poderia abordar -, revela-se atravessado de cabo a rabo por uma organizagao fantasmatica notavel pela sua coeréncia, que Tepousa sobre movimentos de atragio e de repulsa por uma fi- gura feminina encarnada A perfeigao pela feiticeira. Monique Schneider resume, numa passagem clara e elegante, o argu- mento que procurei apresentar: Estamos longe das evocagées epistolares de geratriz que seduz e traz a vida, Mudangas devidas ao fato de que a paisagem solidaria do ato de es- crever mudou radicalmente: nao se trata mais de recolher lembrangas indi- viduais ou impresses, mas de edificar uma construgdo metapsicoldégica cuja tarefa é reconstruir os fundamentos do psiquismo [...]. Nao é, entdo, 0 pré- prio projeto que obriga a trajetéria a se experimentar como “desorientada”, quando ela quer deduzir os movimentos fundamentais do bebé, movimentos que sé ganham sentido numa situagdo de encontro, de imersdo no interior de um ambiente que continua a conter a crianga? [...] Se no lugar do bebé des- cobrimos a sombra de um tedrico que se imagina bebé, compreendemas a aceleragdo temporal surpreendente que transforma de stbito o lactente em herdi musculoso, transformagio exigida pela atualizagao da fantasia...2° Essa superposi¢io do teérico e do fantasmatico, de um teé- rico que mergulha raizes no fantasmatico e se ergue como es- cudo defensivo contra ele — escudo igualmente fantasmAtico, talvez seja oportuno dizé-lo -, encontra figuragdo exemplar na imagem da feiticeira. Pois naéo é de pouca monta transformar a 20. Monique Schneider, op. cit, p. 116. METAPSICOLOGIA/FANTASIA s1 figura sinistra da sedutora, que precisa ser recoberta com toda a malha conceitual, em auxiliar da propria malha conceitual: e € 0 que Freud realiza quando convoca a brvxa para salvd-lo do mau passo em que se meteu, isto é, quando ela nao surge mais como metéfora da nebulosa materna no que esta tem de envolvente e mortifero, e sim como “ponto de apoio”, verticalidade orientadora, cujas informagées, por escassas e imprecisas que possam ser, ndo se revelam por isso menos “inestim4veis”. A feiticeira é assim um espetacular exemplo de formagio de compromisso, na medida em que conota simulta- neamente o temivel e o aliviante, a desorganizagao das referén- cias no escuro da cavidade materna e a baliza separadora, tal- vez simbolizada pela vassoura... Mas este excurso pelas redes associativas que se destacam na paisagem conceitual da metapsicologia pode nos ser util ainda de outra maneira. Se a fantasia, pois, corresponde a fic- gao da definigéo do Vocabulaire, convém recordar que, na abertura deste texto, assinalei a importéncia da nogio de elabo- ragao, igualmente presente ali. A metapsicologia nao é sim- plesmente a tradugao em linguagem empolada das peripécias imagindrias vividas pela familia Freud no inconsciente do seu membro mais ilustre; se assim fosse, nao estariamos ainda hoje tentando pensar usando-a como instrumento. Essas figuras imagindrias articulam-se em outro nivel, como conceitos; e é justamente quando ganhamos uma nogio do seu funcionamen- to como figuras imagindrias que nos tornamos aptos a avaliar o imenso trabalho mediante o qual elas se transformam em conceitos. Trabalho esse que nao é outro senao a transformagao do processo primdrio em processo secundario, ponto a partir do qual se torna poss‘vel a abstragio e a generalizagdo que carac- terizam como conceito um conceito. E nesta passagem de um tipo de processo para outro que, a meu ver, reside a elaboragio a que se referem Laplanche e Pontalis. O trajeto que realizamos nas duas primeiras segdes deste trabalho visou desconstruir um pouco essa armadura re- flexiva em que, por vezes, converte-se a linguagem metapsico- 58 FIGURAS DA TEORIA PSICANALITICA l6gica, a fim de mostrar 0 seu avesso na fantasia e a imbricagao dos registros imagin4rio e simbélico-discursivo no exemplo privilegiado da linguagem figurada: para medir a distancia en- tre duas coisas, convém mostrar que elas, em certos pontos, aproximam-se, e que é no trabalho de negagiio interna que se configura a prépria possibilidade da disténcia. Aquilo que 4 primeira vista surge como dois pédlos absolutamente distintos — teoria e fantasia — revela-se assim como duas pontas de um processo plurideterminado. Mas esse percurso nao é de mao tinica: se, ao ler, pode ser titil ir em busca da fantasia que subjaz 4 teoria, ao tentarmos passar da posiga@o de “consumi- dor” para a de “produtor” o caminho inverso se impée. Cabe. assim estudar brevemente o que significa a metapsicologia en- quanto procedimento de elaboragio do processo secundario a partir de elementos oriundos do processo primdrio, seguindo a pista oferecida por Freud no pardgrafo de Andlise Termindvel e Intermindvel: “nosso ponto de apoio — inestimdvel — reside na oposi¢ao dos processos primério e secundirio...” A metapsicologia € 0 modo de exposi¢io em psicanilise, e a ela recorremos quando queremos dar forma as idétas balbu- ciantes que se formam em nosso espirito. Escrevendo certa vez a Ferenczi, Freud observou que o “mecanismo da produgiio consiste numa série de imaginagGes audazes e extravagantes, ¢ num senso critico implacavelmente realista”. Dar rédea solta A imaginagio é um primeiro momento, mas ele precisa ser con- tido e elaborado pelo “senso critico”, pela razio, caso contrd- rio estaremos numa situagdo que Patrick Lacoste caracteriza com propriedade como “sacralizagdo da fantasia”?! Esse autor oferece uma sugestiva contribuigdo ao esclare- cimento da conexdo metapsicologia/fantasia, no sentido em que nfo temos aqui dois fatores externos um ao outro, porém duas vertentes de um mesmo processo, a primeira consistindo numa elaboragdo e num refinamento da segunda. Para Lacoste, a me- tapsicologia opera em dois registros que vale a pena distinguir. 21. P. Lacoste, La Sorciére et le transfert, Paris, Ramsay, 1985, p. 238. METAPSICOLOGIA/FANTASIA 59 O primeiro é aquele em que me situei até aqui: a construgao de modelos conceituais do funcionamento psiquico, a exemplo do que faz Freud nfo apenas em Pulsdées... mas em toda uma série de textos que vio do Projeto de 1895 até, justamente, Andlise Termindvel e Intermindvel, com sua énfase na discussio do dr- duo problema da temporalidade psiquica”. Jé o segundo, me- nos freqiientemente lembrado, porém talvez mais importante, 6 aquele que esté a disposicao do psicanalista quando escuta seu paciente. Lacoste designa-o como o registro da “fantasia teori- zante, enquanto jogo de representacGes figuradas que participam de um processo de secundarizagao da situagao psiquica do ana- lista”. Isso quer dizer que, ao interpretar, o psicanalista efetua uma elabora¢io das imagens nele suscitadas pelas palavras do paciente, elaboragio que parte das imagens, mas nao se resume a elas ~ caso contrdrio estarfamos justamente na “sacralizacio da fantasia” ou na imposi¢ao arbitraria de um sentido bruto, em qualquer caso referente, antes de mais nada, ao préprio psica- nalista. Como psicanalisar no é o mesmo que traduzir simulta- neamente as representag6es do outro em meu dialeto particular, magicamente promovido a condigdo de metalinguagem apropriada para desvelar o sentido do que escuto, ha que se seguir a indica- cio de Freud e submeter a “imaginagio desvairada” ao crivo da “critica impiedosa”. O psicanalista efetua uma elaboragado das imagens nele suscitadas pelas palavras do paciente, elaboragao que as faz passar pelo prisma do processo secundario. Ora, ao fazer isso — ¢ muitas vezes sem se dar conta — o psicanalista mobiliza precisamente as representagGes auxilia- res oferecidas pela metapsicologia. A imagem da feiticeira recobre, assim, a maneira pela qual se organizam estas ima- gens, e funciona, diz Lacoste, como um “principio de seria- ¢4o”, como uma ordenagiio das imagens que justamente evita 22. Entre os muitos autores que se ocuparam com este artigo essencial de Freud, res- salto dois cuja contribuigio reputo das mais valiosas: Joel Birman, “Finitude ¢ Interminabilidade do Processo Psicanalitic Teoria e Prdtica, Rio de Janeiro, Campus, (6):19-47, 1988; Patrick Mahony, op. cit, cap. 3. 23, P, Lacoste, op. cit. p. 243, 60 FIGURAS DA TEORIA PSICANALITICA, a sacralizagao da fantasia, isto €, do mal-entendido que con- siste em tomar as imagens brutas que surgem no espfrito do analista como interpretacao direta da fantasia do paciente. Ao passar pelo filtro das representagdes metapsicolégicas — num processo em larga medida pré-consciente, é preciso dizer - essas imagens que formam a base da interpretagdo estrutu- ram-se a partir de um sistema de correlagGes. Esse sistema tem um pé nos modelos universais do funcionamento psiqui- co construidos pela psicandlise desde Freud (e nao apenas por ele), e outro pé na experiéncia imediata dessa anilise, com esses protagonistas singulares. E dessa tensio interna ao trabalho do pensamento que surge a interpretagao como for- mulagao verbal — portanto secundarizada — de um contetido que nasce em outras paragens e que é apreendido pelo pa- ciente em diversos nfveis de significagdo, um pouco a manei- ra de uma trilha sonora estereofénica. Metapsicologia/fantasia — a barra une-as e distingue-as, porque é assim que elas (cla?) funcionam. Se quisermos deixar a feiticeira em paz na sua cozinha, podemos recorrer a outra passagem deste repertério favorito de citagdes de mestre Sigmund — 0 Fausto de Goethe — a fim de obter uma outra re- presentagao figurada do seu entrelacamento — entrelagamento que € obra de sublimagao, de conversio de uma finalidade erotizada pela pulsao (ver e saber) em ferramenta capaz de ser posta a servico de um objetivo terapéutico e, portanto, a servi- go da compreensio e da transformagao de uma psique que nio é ado analista: Mefistéfeles: Decerto é a fabrica do pensamento Qual maquina de tecimento Em que um sé piso jd mil fios move. Voam, indo e vindo, as langadeiras Em que, invisfveis, fluem tramas ligeiras, Um golpe mil jungdes promove™. 24. Goethe, ap. cit., p. 90.

Você também pode gostar