Você está na página 1de 78
MARX-ENGELS : | i so Todos os direitos para: sta edicdo esto reservados ‘ EDITORIAL ESTAMPA por Editorial Eetampa, Lde., Lisboa, 1071 \ LISBOA ‘TRADUGAO DE ALBANO LIMA INDICE CAPITULO I—O materialismo histérico e as superes- trutras ideoldgicas .. 1, A filosofia conquistadora ao servigo do homem, 2, A filosofia nfo é exterior ao mundo... 3. B preciso dar aos homens a conscigncia de si proprios ... 4. A teoria transforma-se em forca material quando penetra nas massas ... 5. A impotéucia do pensamento puro . 6. Limite das ideias ... ore 7, Nao é a consciéncia que determina a vida, mas a vida é que determina a consciéncia .. 8. A evolugéo da consciéncia ... ... i 9, As ideias dominantes sio as da classe domi- s ideolégicas“mudam conforme as condicées sociais ... 11. O materialismo histérico 12. Resposta a um detractor t6rico ... on a 13. Nao existem verdades éternas | 14. A-moral foi sempre uma moral de classe 45. Base econémica e superestruturas ideolégicas 16. Entre a infraestrura econémica e as superes- truturas ideolégicas hd accdo € reaccéo re- ciprocas ... ee M1. As relagbes econémicas, a raga ¢ 0 indiviauo 18. As tarefas da critica marxista CAPITULO I — Nascimento e evolugdo da arte . 7 CAPITULO IV—A literatura e a arte, reflexos das relagies Sociais 0. oe vv s+ ou 9 1. O homem aprende a conhecer-se através do lag6 conhecimento do mundo exterior . 47 1. Homero e a sociedade grega ... .. c= 79 . 2. O cardcter histérico e social dos Orgaios ‘dos 2. A passagem do matriarcado ao pi ado, sentidos 48 revelada pela tragédia antiga ... we 8h . 3. $6 a educagio dos sentidos ‘permitiu o” nas- 3. A ignoraneia e 0 erro na tragédia antiga 85 cimento das artes 49 4. O amor na antiguidade .. 85 4. A politica, a arte e a literatura nao poderao 5: Hegel ea arte grea 35 ser estudadas fora da histéria do trabalho 6 Lucécio 86 e da industria a 30 7. Espartaco visto por Apiano 86 5. A verdadeira riqueza plenit St 8. Luciano ... ... 1 87 6. 0 trabalho e o nascimento da arte ... .. 31 9, Os cantos dos Vikings ©o\matriarcads 2.7 7. Antes de executar, o homem concebs 7 10. © amor no «Canto dos Nibelungos» ... 1." 88 8. A arte e a diviso do trabalho = B 41. © esmagamento pela dimensfo .......... (89 9. A arte, monopélio das classes dominantes 55 12, Dante 90 10. A nogdo estética e os metais preciosos ST 13. A poesia provengal ‘na Idade Média _ 90 11. A obra de arte, objecto de troca na sociedade 14. A Titeratura dos canhestros 2 capitalista agen: | Si) 15. O Renascimento ... 93 12. O capitalismo faz da'obra de arte uma ‘merca- 16. Corneille, Shakespeare ¢'a idade Média | 96 OTH ose oe wos vee toe oe os 8 17, Robinson Crusoe e 0 capitalismo nascente |. 96 13. Efeitos da obra de'arte 2 18, Com o mercado mundial surge uma literatura 14, A relag&o desigual entre o ‘desenvolvimento da universal 7 produgdo material ¢ a arte... 60 7 15, A producio capitalista é contréria 4 arte e'& on poesia... i cng te 8 Qs precursores do s 7 16. A comédia, Ultima fase de uma forma histérica 64 . Pierre Bayle ... .. i 99 17. O recurso a antigas formas literarias e artfs- }. A ideologia da ‘burguesia ascendente 100 ticas para exaltar as lutas novas ... ... 6 Diderot e Rousseau, dialécticos e progressistas 101 18. Os empréstimos que 0 presente pede ‘a0, Pas. . «O Sobrinho de Rameau» 102 sado eee 67 As origens do materialismo francés e os seus 19. O senhor rasa do passado oo prolongamentos: 0 socialismo e 0 comu- 20, «A Estética», de Hegel ee 6 camo eer 103 71. A literatura “inaierialisia “do século” XVI, 106 = igi itor... 1 apogeu da literatura francesa ... .. ae eee erred 28. Q teatro clissico francés uilizado pela reaceio 106 1. A liberdade da criagSo literdria ... .. a 29. A literatura alema antes de Lessing . 107 2. A liberdade do escritor .. 2 30. A importagéo da literatura francesa ‘na ale 3, MissSo revolucionéria do ‘pensador e do es- manha . 108 critor .. B 31. A literatura ‘alema no fim'do ‘século XVIII 110 4. A situagio do escritor na sociedade capitalista 75 32, Walter Scott, romancista dos clas escoceses ‘111 5. Os escritores devem estudar as ciéncias econd- 33. Goethe e a miséria alema . 12 micas ¢ sociais para darem & classe ope- 34. Goethe visto por Grin 4 raria obras dignas dela nee 6 35. As contradicdes de Goethe 116 6. Importincia do estilo ... : 77 36. Shakespeare e Goethe —a 18 4 7 Nao publicar nada que nfo esieja perfeito ... 8 37. O idealismo de Schiller e 0 ‘dealismo de Hegel 119 CAPITULO V—Contra o idealismo pequeno-burgués - 18. CAPITULO VI—Contra 0 romantismo reacciondrio Neweepr . Fourier, critico da sociedade burguesa .. . Guizot ea Inglaterra ... |. © amor trovadoresco e 0 casamento bargués . Flerovski ... 3. O futuro da China . A socialismo «verdadeiro» | O som do tambor ... . A revolucao adocicada na literatura . . © capitalismo néo inspira os poetas “. - . A lingua e a literatura russa Puchkine ... Tchernychevski rE O partido ope: € os literatos © cartéo do partido no basta para ser mar- xista © undp intelectual’ €” moral “do equieno- S mistério da construgao especulativa . A falsificagdo dos tipos e das relagdes sociais em «Os Mistérios de Paris» A idealizacdo burguesa da costureirinha Qs mistérios da economia politica Rodolfo ... A «Jovem ‘A poesia do socialismo ever Wistoriador Louis Blanc, orador e historiador ... Dois_filisteus ingl Martin Tupper Renan, romancista, Censura e Romantismo .. Os inconvenientes do romantismo « A «Jovem Inglaterra» e Thomas Carlyle . A concepgio do mundo de Carlyle .. . Thomas Carlyle ¢ 0 culto dos herbis . As lamirias, do socialismo feudal . O regresso & natureza ... . = 10 & A importincia literdria da pequena burguesia Contra os germandfilos oo 10 © Romantismo reacci H Chateaubriand, escritor Chateaubriand, diplomai 1: Lamartine, hometn police 14 A escola histéricoromantica na ‘Alemanta 5, Ricardo Wagner e os tempos antigos 16. Ricardo Wagner e a musica do futuro CAPITULO VII—Em prot do realismo 1. Nada de, coturnos nos pés nem de auréolas na cabeca Shakespeare ea literatura alema | Os realistas ingleses .. «Franz von Sickingen» e a realidade histérica A tendéncia em literatura O realismo de Balzac é Tbsen e o pequeno burgués ‘alemao | Noe YN CAPITULO VIII—Em prot de wma titeratw pro a literatura revolu Critica e literatura militante A lenda de Siegfried e o movimento revolucio- ndrio alemAo ... A literatura popular : ‘Thomas Hood .. © proletariado i Béranger ... Em prol de Henrique Heine Georg Weerth . Freiligrath em’ 1 A oposicdo através da cat Império 12, Uma_velha Boer oee yp marca... .. 13. A cangdo revolucionaria ANEXO I—Documentagdo e depoimentos acerca de Marx ... 1. © jovem Marx criticado 2 Confissio ° Por si Proprio : u 3. Os gostos literdrios de Marx ... 237 4 Byron ¢ Shelley vistos por Mar 242 5. Marx ¢ 0 teatro ... . 243 6, Marx, leitor ¢ narrador - 243 7. Marx e Lassalle através varias... ... 245 8, Marx e a alegoria 245 9. As apreciagées literdrias 27 ANEXO Il — Mars, Freiligrath e 0 Partido... .. 251 1. Marx pede a Freiligrath que deponha contra (0 seu caluniador Vogt ws. v0 vu 254 2, Freiligrath rompe com a classe operaria 255 Marx defende o partido do proletariado ... .. 256 Freiligrath, poeta da guerra de 1870... ...... 259 ANEXO III —Lassalle e a tragédia da revolugdo ... 261 1. A chabilidade» dos revoluciondrios, causa do seu fracasso ... eae 2. A sublevacdo da nobreza e a guerra dos cam- ‘poneses ... of Notas biograficas dos’principais nomes citados 2 CAPITULO I O MATERIALISMO HISTORICO EAS SUPERESTRUTURAS IDEOLOGICAS 1. A filosofia conquistadora ao servigo do homem No prefdcio da sua tese de douto- ramento, «Diferenca entre a Filosofia da Natureza em Demdcrito e Epicuro», apresentada 2 Universidade de lena em Abril de 1841, Marx define o papel que atribui a filosofia. A filosofia, enquanto uma gota de sangue fizer bater -lhe 0 coracéo absolutamente livre e mestre do universo, fo se cansard de langar contra 0s adversérios o grito de ipicuro: <0 fmpio no & o que despreza os deuses da multidao, mas que adere A fila que a multidso tem dos detr ses.» A filosofia no o esconde, Faz sua a profissio de fé de Prometeu: ‘Numa palavra, odeio todos os deuses! (2) ‘Opse esta divisa a todos os deuses do céu e da terra, quz,so reconhecem .« consciéncia humana como a divin de suprema, divindade que no suporta rivais. ‘Mas aos tristes poltrdes, que se vangloriam de, na apa- () Carta de Epicuro.a Menoikos. Citado em grego no texto. — (N. R.) ‘Verso ‘extratdo da, tragedia ‘de Bsquilo, «Frometeu Agrithosdo>. De Prometeu, ‘herol. mit y Bsquilo fer 0. s{imbolo do Iutador pela felicidade dos homens. Citado em grego n0 texto. — (Ni: R.) B MARX-ENGELS réncia, a situagdo social da filosofia ter piorado, a filosofia responde como Prometeu a Hermes, servidor dos deuses: Fica certo de que munca eu desejaria trocar Minha sorte miserdvel contra a tua serviddo. Porque prefiro mil vezes a prisao neste rochedo Que ser, de Zeus pai, fiel lacaio e mensageiro... (!) Prometeu é 0 primeiro santo, o primeiro martir do ca- lendario filoséfico. Marx: «Diferenca entre a Filosofia da Natureza em Demécrito e Epicuro», Oeuvres, t. I, p. 10, Mega. 2. A filosofia nao é exterior ao mundo A «Gazeta de Coldnia», jornal reac- ciondrio, num artigo de 28 de Junho de 1842, acusou a «Gazeta Renana» de ata- car 0 Cristianismo, fundamento do Es- tado, Convidava 0 ‘governo prussiano a proibir qualquer debate na imprensa Sobre problemas filosdficos ¢ religio $08. Marx responde-the em trés editoriais da Gazeta Renana», surgidos em 10, 12 e 14 de Julho de 1842 Os filésofos néo rompem da terra como os cogumelos. Sao fruto da sua época, do seu povo. Daf extraem as sei- vas mais subtis, as mais preciosas e as menos visiveis para as exprimirem ‘nas idelas filoséficas, © espirito que cons, tr6i os sistemas filoséficos nos cérebros dos fil6sofos é 0 mesmo que constréi os caminhos de ferro com as maos dos operarios. A filosofia nao é exterior ao mundo... Marx: «A Gazeta Renana», 14 de Julho de 1842, Oeu- vres, t. I, p. 242, Mega. (1). Versos extrafdos dat de Rsquilo, . Karl Marz e a Sua Doutrina, p. 60, Edi tions sociales, 1953). Mas as coisas correm ainda pior para as verdades eternas no terceiro grupo das ciéncias, as ciéncias histéricas, que estudam, na sua sucesséo histérica e no seu resultado pre- sente, as condigdes de vida dos homens, as relagdes sociais, ‘as formas do Direito ¢ do Estado com a sua superestrutura ideal feita de filosofia, de religido, de arte, etc: Na natureza orgamica, ainda assim, estamos perante uma sucesso de Processos que, na medida em que podemos observa-los Girectamente, se repetem com bastante regularidade dentro de limites muito extensos. Desde Aristoteles, as espécies organicas mantiveram-se mais ou menos as mesmas. Pelo contrério, na histéria da sociedade, a repeticao das situa- gles. € excepeio endo reara, desde que ultrapassamos a Saade primitiva da humanidade, a que é costume chamar-se jdade da pedra; e, quando surgem essas repetigées, nunca se produzem exactamente nas mesmas condigées. E 0 que s¢ passa ao encontrarmos a primitiva propriedade colectiva do solo em todos 0s povos civilizados ¢ a forma do seu desaparecimento, por isso que, no dom{nio da hist6ria da humanidade, a ciéncia est4 ainda muito mais atrasada gue no campo da biologia. E isso devesse, ainda em maior escala, ao facto de quando, excepcionalmente, se consegue ‘conhecer o encadeamento interno das formas de existéncia sociais polfticas de um dado periodo, isso ocorrer, regu- larmente, na altura em que essas formas j4 percorreram » SOBRE A LITERATURA E A ARTE metade do seu caminho, quando se dirigem para o declinio. Neste caso, o conhecimento ¢, portanto, essencialmente relativo, porque se limita a penetrar o-encadeamento e: as consequéncias de certas formas de sociedade e de Estado existentes apenas num dado tempo, para determinados POVos ¢, por natureza, transitérias. Assim, quem parte, neste dominio, & caca de verdades definitivas, em ultima andlise, de verdades auténticas, absolutamente imutdveis, poucos resultados obter4 além de banalidades e de lugares-comuns da pior espécie, por exemplo, que os homens ndo podem viver sem trabalhar, que até agora estiveram quase sempre divididos em dominadores e dominados, que Napoledo morreu em 5 de Maio de 1821, etc. Engels: eAntiDuhring», pp. 121-122, Editions sociales, 14. A moral foi sempre uma moral de classe De povo para povo, de época para época, as ideias de bem ¢ de mal variaram de tal modo que, muitas vezes, se revelaram contraditérias. Mas, objectar-se4, o bem ni&o éo mal e o mal nfo é o bem; se se confunde o bem.e © mal, desaparecem todas as formas de moralidade e cada um pode agir como bem entender. Despojada de toda a solenidade sibilina, é bem essa a opinido do sr. Duhring. Mas, apesar de tudo, a coisa no é assim tio simples. Se © fosse, nunca se discutiria sobre o bem e o mal, todos saberiam 0 que é bem e 0 que é mal. Ora, que sc passa actualmente nesse campo? Que moral nos pregam hoje? 2, em primeiro lugar, a moral feudal-crista, herdada dos sé- culos de fé e que Se divide essencialmente em moral caté- lica e protestante, sem prejuizo de subdivisées novas que vao da moral jesultica eda protestante ortodoxa ate & moral latitudindria, Ao lado dela, figura a moral burguesa moderna e, a par desta, a moral do futuro, a do proleta- tiado, de modo que, passado, presente e futuro fornecem, apenas em relacio aos paises mais avancados da Europa, trés grandes grupos de teorias morais, simultanea e con. correncialmente em vigor. Qual , portanto, a verdadeira? Nenhuma, no sentido de um absoluto definitive. Mas, dtivida, a’que contém mais elementos duradouros é aquela 3 MARX-ENGELS que, no presente, representa a destruigéo do presente, a que representa o futuro: a moral proletéria. i ‘Mas~quando vemos que as trés classes da sociedade moderna, a aristocracia feudal, a burguesia ¢ o proletariado tém, cada uma delas, a sua prépria moral, s6 podemos tirar uma conclusio: de forma consciente ou inconsciente, os homens vdo, em tltima andlise, colher as suas ideias de moral as condicées materiais em que repousa a situacdo da sua classe—as condicGes econémicas da sua producao © comércio. No entanto, ha varios elementos comuns as trés teorias morais. Ndo se poderd ver af um fragmento da moral fixada de uma vez para sempre? Essas teorias morais representam trés estddios diferentes da mesma evolugio histérica. Por conseguinte, ttm, necessariamente, muitos elementos comuns. E 0 que € mais, a estédios idénticos, ou aproxima- damente idénticos, da evolugdo econémice devem corres- ponder teorias que, necessariamente, teréo de concordar em maior ou menor escala. A partir'do momento em que se desenvolveu a propriedade privada dos cbjectos mobilid- ios, tornou-se necessério que todas as sociedades onde essa propriedade privada prevalecia tivessem em comum o man- damento moral: no roubards. Mas esse mandamento trans- forma-se, por isso, num mandamento moral eterno? De maneira nenhuma. Numa sociedade onde nao houver moti- vos para roubar, onde, por fim, s6 os loucos ‘do come- ter ‘oubos, cairé no ridiculo’ o pregador de moral que quiser proclamar solenemente a verdade eterna, néo row ards! Por conseguinte, afastamos todas as pretensdes de nos imporem um sistema qualquer de moral dogmatica como Iei moral eterna, definitiva, doravante imutavel, com 0 pre- texto de que o mundo moral tem também os seus princi- pios permanentes, superiores & histéria ¢ as diferencas de etnia, Afirmamos, pelo contrétio, que toda ¢ qualquer teoria moral foi, até agora, em tiltima andlise, produto do estado ‘econdmico da sociedade. E como a sociedade do seu tempo sempre evolutiu até agora através de antagonismos de clas- ‘ses, a moral foi sempre uma moral de classe. Ou justificou © dominio e os interesses da classe dominante, ou repre- ‘sentou, quando a classe oprimida se tornava suficientemente poderosa, a revolta contra esse dominio e z defesa dos inte- Tesses futuros dos oprimidos. Que, assim, no conjunto, se tenha conseguido um progresso, tanto pata a moral como para todos os outros ramos do conhecimento humano, é ponto fora de divida. Porém, ainda nao ultrapass4mos a 32 SOBRE A LITERATURA E A ARTE : moral de classe. Uma moral realmente humana, superior aos interesses de classe ¢ aos seus prolongamentos s6 ser4 pos- sivel numa sociedade que tenha ndo s6 ultrapassado, mas também esquecido, na pratica da vida, a oposicao das clas- Ses. B agora jé podemos medir a presiungao do sr. Duhring que, do interior da velha sociedade dividida em classes, pre- tende, na véspera de uma revolucSo social, impor & soci: - dade ‘sem classes do futuro uma moral eterna, indepen- dente do tempo ¢ das alteracées materiais! Mesmo supondo —0 que até agora nao sabemos— que ele compreenda, pelo menos ‘nas Tinhas essenciais, a estrutura dessa sociedade itura, Enggls: eAntiDubring», pp. 125-126, Editions sociales, 15. Base econdémica e superestruturas ideoldgicas Conrad Schmidt chamou a atengéo de Engels para o tivro de wm socidioso burgués, 0 professor Paul Barth: «A Filosofia da Histéria de Hegel e dos Hegelianos Incluindo Marx e Hart- mann». O autor da obra afirmava que 9 marxismo nao admite a aceao das ideologias sobre a infra-estrutura eco- némica. De Londres, Engels respondeu a Conrad Schmidt, numa carta com data de 27 de Outubro de 1890. © mesmo sucede com 0 direito. Logo que a nova divisdo do trabalho se torna necesséria e cria juristas profissionais, abre-se, por sua vez, um novo dominio auténomo. Ao mesmo tempo ‘que depende, de uma maneira geral, da producZo do comércio, esse novo dominio nao deixa de ter uma capacidade particular de reaccéo sobre esses dominios. Num Estado moderno, é necessério nfo sé que o direito ‘corresponda a situag&o econémica geral e seja a sua expres- ‘so, mas também que seja_uma expressdo sistemdtica, cujas contradigées internas nfo constituam um desmentido para si propria, Para conseguir isso, 0 direito reflecte cada B - MARX-ENGELS vez menos fielmente as relagdes econémicas. E isso numa escala tanto maior quanto mais raramente um cédigo se apresenta como a expresséo brutal, intransigente e autén- tica da dominacdo de uma classe, porque se_tal ocorresse © proprio facto contrariaria por si s6 a «no¢do de direito». ‘A pura nogdo de direito, consequente, da burguesia revolu- ciondria de 1792-1796, como sabemos, é falseada j4, em varios pontos, pelo cédigo napolednico e, na medida em que se concretiza, passa diariamente por toda a gama de atenuagdes em consequéncia do poderio crescente do pro- letariado. Isso néo impede, porém, o cédigo napoleénico de'ser 0 conjunto de leis que serve de base a todas as novas codificagdes, em todas as partes do mundo. Assim, em grande parte, o caminhar do «desenvolvimento do direito» no consiste’sendo em tentar eliminar, aates de tudo, as contradides resultantes da traducdo directa das relagdes econémicas em principios jurfdicos ¢ estabelecer um sis- tema, juridico harmonioso, para, em seguida, chegar A con- clusdo de que a influéncia ¢ a pressio do desenvolvimento ‘econémico ulterior quebram sempre, de novo, esse sistema €.0 precipitam em novas contradicées. (Refirome aqui, prin- cipalmente, ao direito civil) : (0 reflexo das relagées econémicas sob forma de princi- pios juridicos é necesstriamente também um reflexo inver- tido, Produzse sem que 0s que agem terham consciéncia dele. O jurista imagina para si mesmo que actua mediante proposta a priori, quando apenas se trata de reflexos eco- Romicos—¢ essa’ a razio por que, duo ¢ posto de pernas para o ar. E pareceme, sem , onde fiz a exposicao do ‘materialismo histérico da forma ‘mais pormenorizada de que tenho conhecimento. Se, por vezes, os jovens dio mais importancia do que a devida ao aspecto econémico, as responsabilidades cabem, parcialmente, a Marx e a mim préprio. Perante os adversé- ios, era necessdrio sublinharmos o princfpio essencial ne- gado por eles e, assim, nem sempre pudemos arranjar tempo, local, ou ocasigo’ para por no seu lugar os outros factores que participam na accao recfproca. Mas quando se tratava de representar um perfodo histérico, isto é de passar a aplicagio pratica, j4 isso ndio sucedia ¢ deixava de existir qualquer possibilidade de erro, Infelizmente, muitas vezes, julga-se ter compreendido perfeitamente uma nova teoria e poder manejéla sem dificuldade, logo que se dominarem os principios essenciais. Sucede que isso nem sempre é exacto. Nao posso evitar essa censura a alguns dos 39 * “t MARX-ENGELS * nossos recentes «marxistas», Surgiram, nesse aspecto, coi- sas verdadeiramente singulares... Engels: Carta a Joseph Bloch, de 21 de Setembro de a (Original do Museu ‘da Histéria, em Mon- treuil, MarxEngels: «Estudos Filosdficos», pp. 128-130, Edi- tions Sociales, 1951, 17. As relagdes econdmicas, a raca e o individuo Heinz Starkenburg, social-democrata alemdo, colaborador’ da «Neue Zeit», és a Engels as questées seguintes: 1. Em que medida as relacdes econd- micas podem agir como causas? (Sao causas suficientes, motoras, condicdes permanentes, etc, da evoiuedo?); 2. Qual é o lugar ocupado pela raca e pelo individuo na concepeao da historia de Marx ¢ de Engels? : Engels responde a Heinz Starkenburg numa carta, datada de Londres, em 25 de Janeiro de 1894, Segue-se a resposta as suas perguntas: 1. Por relagdes, econdmicas, que consideramos a base determinante da histéria da sociedade, en:endemos a ma- neira como os homens de uma sociedade definida produzem os meios de existéncia e trocam entre si os produtos (ma medida em que existe a divisio do trabalho). Por con- seguinte, toda a técnica da producdo e dos transportes est4 inclufda’nessas relacdes. Segundo a nossa concepcao, essa técnica determina tanto a forma das trocas comerciais, como da distribuicao dos produtos e, por conseguinte, apés a dissolucto da sociedade tribal, determina também a divi- sdo em classes. Assim e, por consequéncia, essa técnica de- termina ainda ‘as relagdes de dominio e de escravatura c, por conseguinte, determina o Estado, a politica, o direito, etc, Nas relacées econémicas est, além disso, inclufda a base geografica sobre a qual essas relagdes se desenrolam 40 e “SOBRE A LiTeraita E A ARTE € os vest{gios realmente transmitidos pelas fases de desen- volvimento anteriores, 4s vezes apenas por tradicdo, outras por «vis inertiae» (1). Naturalmente, incluise também nas relagdes econémicas o meio exterior que envolve essa forma de sociedade, Embora, como diz, a técnica dependa em grande parte do nfvel da ciéncia, esta depende, numa medida muito maior ainda, do nivel e das necessidades da técnica. Quando a sociedade tem necessidades técnicas, impulsiona mais a ciéncia do que dez universidades juntas. Toda a hidrosté- tica (Torricelli, etc.) surgiu devido A necessidade vital de regularizar as 'torrentes das montanhas italianas, nos sé culos XVI ¢ XVII. S6 comecdmos a saber alguma coisa de racional sobre a electricidade depois de ter sido des- coberta a sua utilizacio técnica. Mas, infelizmente, na Ale- manha, adquiriu-se o hébito de escrever a histéria das ciéncias como se tivessem cafdo do céu. 2, Consideramos as condigbes econémicas como o que condiciona, em ultima andlise, o desenvolvimento histérico. Ora, a propria raca é um factor econémico. Mas hé aqui dois pontos que € necessdrio ndo descurar. a) 0 desenvolvimento politico, juridico, filoséfico, reli- gioso, literério, artistico, etc. assenta no desenvolvimento econémico, mas reagindo uns sobre os outros e sobre a propria base econémica. Isto ndo se passa devido a situagio econémica ser a causa, a tinica causa activa ¢ tudo o resto exercer apenas uma acc&o passiva. Pelo contrario, trata-se de uma accdo reciproca com base na necessidade econé- mica, que vence sempre, em tiltima instancia. O Estado, Por exemplo, age pelo proteccionismo, pelo liperalismo eco- ‘némico, por uma boa ou mA politica fiscal. Mesmo 0 esgo- tamento e a impoténcia mortais do filisteu alemfo, que resultaram da miserdvel situacéo econémica da Alem: de 1648 a 1830 ¢ que se manifestaram, primeiramente, sob a forma de pietismo ¢, mais tarde, de sentimentalismo e de servilismo reptilineo perante os 'principes e a nobreza, ndo deixaram de sofrer a influéncia econémica. Foi esse um dos grandes obstaculos a um renascimento ¢ que s6 foi abalado pelas guerras da Revolucdo e napolednicas que fizeram passar a miséria crénica para o seu estado mais agudo. Nao se trata, pois, como alguém quer imaginélo, () Pela forga da inéreia. (N. R.) at MARX-ENGELS num caso € noutro por comodidade, de um efeito econd- mico automético. Pelo contrério. S40 0s préprios homens que constroem a sua histéria, mas num dado meio, que 2 condiciona na base de relagdes reais anteriores, entre as Guais figuram as condices econémicas. Por muito influen- Giadas que possam estar pelas outras condicdes polfticas e ideoldgicas, as econémicas nem por isso deixam de ser menos, em ultima anélise, as condicses determinantes © Constituem, de uma ponta a outra, 0 unico fio condutor que vos ‘permite compreender. . ) Os homens fazem, eles prdprios, a sua histéria, mas, até agora, ndo se conformaram a uma vontade colectiva, Segundo um plano de conjunto, mesmo no ambito de uma dada sociedade definida, organizada. Os seus esforgos con- trariam-se e € precisamente por isso que, em todas as socie- dades desse género, reina a necessidade, completada e ma- nifestada pelo acaso. A necessidade, que se afirma, neste caso, através de todos os acasos, é ainda, no fim de contas, & necessidade econémica. Deparamos aqui com a questao Gaquilo que se designa por grandes homens. B, evidente- mente, por mero acaso que este ou aquele grande homem Surge, em determinado momento, num dado pais. Mas, se © suprimirmos, fica a necessidade da sua substituicao ¢ ‘0 substituto acabard por se encontrar, melhor ou pior, mas encontrar-se4, com 0 tempo. Foi por’ aczso que Napoledo, que era corso, veio a ser precisamente o litador militar de que tinha absoluta necessidade a Reptiblica francesa, esgo- fada pela sua propria guerra. Porém, se nao houvesse um Napoledo, outro teria tomado o seu lugar. Isso demonstra- se pelo facto de que se encontrou sempre o homem neces- sarlo. Bo caso de Augusto, César, Cromwell, etc. Marx Gescobriu a concepgdo materialista da histéria, mas Thier- ry, Mignet, Guizot € todos os historiadores ingleses anterio- res a 1850 provam que se tendia para isso ¢ a descoberta da mesma concepgao por Morgan prova ainda que o tempo finha amadurecido para ela e que devia necessariamente ser descoberta. Isto passa-se com todos os acasos € com tudo aquilo que parece ser um acaso na histéria. Quanto mais o dominio que estudamos se afasta do econémico e se aproxima da pura ideologia abstracta, mais chegamos A conclusdo que, quanto mais 0 avanco hist6rico apresenta acasos, mais a sua curva se apresenta aos ziguezagues. Mas, Se se tracar o eixo médio da curva, averiguaremos que, quanto mais extenso é 0 periodo considerado e o dominio estudado é maior, mais esse ¢ixo se aproxima do eixo do desenvolvimento éconémico e mais tende a ser-lhe paralelo, a SOBRE A LITERATURA E A ARTE © maior obstéculo a uma: compreensio exacta é na manha, 0 facto de a histéria econémica ter ‘egencrado em literatura, Nao sé é muito dificil desabituarmonos das ideias repisadas na escola acerca da hist6ria, mas é ainda mais dificil reunir os materiais necessdrios para esse efeito. ‘Quem, por exemplo, leu, pelo menos, o velho G. von Gillich, cuja recolha de materiais concretos precisos contém tanta matéria capaz até de esclarecer inumeraveis factos politicos? De resto, o belo exemplo que Marx deu no «18—Bru- mério» deveria, penso eu, responder capazmente as per guntas que v. formula, precisamente porque se trata de um exemplo pratico. No “ms Ciencia verdad Marx: «Manuscritos Econdmicos e Filoséficos», Oeu- ‘res, t. IIL, pp. 121122, Mega. Eisele 5. A verdadeira riqueza esté na plenitude da vida ‘Vé-se como, em vez da riqueza e da miséria da i politica, existe 0 homem rico e a necessidade humana rica. © homem rico é ao mesmo tempo aquele que tem neces- sidade de uma totalidade de manifestacdes humanas da vida, O homem para quem a sua propria realizacdo existe como uma necessidade interior, como uma caréncia. Marx: «Manuscritos Econdémicos Fil icos», I erent pyran ee 6. 0 trabalho e o nascimento da arte Por isso, as operagdes com que os nossos ant durante ‘méitos myléatos, eprenderams, penta a pease, S adaptar a mao a época da passagem do simio ao homem, 86 puderam ser, inicialmente, operagdes muito simples. Os selvagens mais ‘inferiores, mesmo aqueles sobre os quais se pode levantar a hipdétese de um retrocesso para um. estado muito préximo do animal, incluindo uma regresso fisica, encontram-se ainda a um nivel muito mais elevado do que esas criaturas de transigéo, Antes que o primeiro bloco de pedra pudesse ser moldado pela mao do homem de maneira a dele fazer uma faca, tiveram de passar perio- dos em relagao aos quais o periodo histérico que conhe- cemos nos surge insignificante. Mas 0 passo decisivo estava dado: a mio tinha-se libertado. A partir de entdo, podia ir adguirindo outras_habllidades a maior destreza assim ir ansmitiu-se heredithriamente geragéo em geracao. a - 51 MARX-ENGBLS- Deste modo, a mio nao é s6 o érgio do trabalho, é tam- bémo produto do trabalho, Apenas devido a ele, devido a adaptagao a operagdes sempre novas, devido a transinissio hereditaria do desenvolvimento particular cos muisculos, ‘dos tendées e, a intervalos mais longos, dos préprios ossos, devido, em suma, & aplicagéo incessantemente repetida dessa afinacdo hereditaria a operagdes novas e cada vez jnais: complicadas, € que a mao do homem atingiu esse alto grau de perfeicéo susceptivel de fazer surgir 0 mila- re dos quadros de Rafael, das estétuas de Thorwaldsen, Ga musica de Paganini. Engels: «Diatéctica da Naturezas, pp. 172-173, Edi- tions sociales, 1952. 7. Antes de executar, 0 homem concebe 0 trabalho é antes de tudo um acto que decorre entre © homem e a natureza. O homem representa, ele proprio, em face da natureza, o papel de uma forca natural, As forcas de que 0 seu corpo é dotado, bracos e pernas, ca bega e mos, so por ele postas em movimento, a fim de se apropriar das matérias, dando-lhes uma forma util & sua vida, Ao mesmo tempo que, através desse movimento, factua sobre a natureza exterior e a modifica, modifica também a sua propria natureza ¢ desenvolve as faculdades que nela estavam adormecidas. Néo nos deteremos neste @stddio primordial do trabalho ainda no despojado do Seu modo puramente instintivo. O nosso ponto de partida é 0 trabalho sob uma forma que pertence exclusivamente ‘20 homem. Uma aranha faz operagées semelhantes as de uum tecelao € a abelba confunde, pela estratura das suas células de cera, muitos arquitectos habeis. Mas o que, logo Ge inicio, distingue o pior arquitecto da abelha mais des- tra é que ele construiu a célula na cabeca antes de a cons- truir na colmeia, O resultado a que chega o trabalhador preexiste, idealmente, na imaginacao do trabalhador. Nao Inuda apenas a forma das matérias naturais; realiza, a0 mesmo tempo, 0 seu proprio objectivo de que tem cons- ciéncia, que determina como lei o seu modo de acco € 3 gue, deve subordinar a vontade. E esta subordinagao nfo Tmomenténea, Durante toda a sua duragéo, além do es- forgo dos érgdos que actuam, a obra exige uma atengdo 52 SOBRE A LITERATURA E A ARTE. firme que nao pode resultar sénio de a tante da vontade. a Marx: «O Capital», livro I, pp. 185-186, Dietz Verlag, 185-186, , «O Capitals, livro I, t. 0-181, Editions socia- I. pp. 180-181, 8. A arte e a divisaéo do trabalho Como sempre, Sancho (1), neste caso, volta a na sorte com os exemplos ‘praticos, Pensa que ninguém pods «compor, em teu lugar, as tuas partituras musicais, exe- cutar os’ teus esbogos pictéricos. Ninguém pode substituir 08 trabalhos de Rafaels. Contudo, Sancho devia saber que nao foi Mozart, mas outro, quem compés a maior parte € terminou o Requiem de Mozart, e que Rafael sé «executou» luma fnfima parte dos. seus frescos. imagina 14 para ele que os que desi r organiza. dores do trabalho pretendem organizar a actividade com. pleta de cada individuo, quando sao precisamente eles que distinguem entre o ‘trabalho directamente _produtivo, que é necessdrio organizar, eo trabalho que nao € direc: tamente produtivo. No tocante a esta ultima categori ndo pensam, como supde Sancho, que qualquer pessoa deva substituir Rafael, mas que quem trouxer dentro de si um Rafael deve poder desenvolver-se livremente. A San- cho afigura-se que Rafael executou as suas pinturas inde- pendentemente da diviséo do trabalho, que existia em Roma, na sua época. Se comparar Rafael a Leonardo de Vinci ¢ Ticiano, veré a que ponto as obras de arte do pri meiro foram condicionadas pela expanso de Roma, devi- da, na altura, 4 influéncia florentina, a que ponto as de Leonardo o foram pelo estado social’ de Florenca e, mais tarde, as de Ticiano pelo completamente diferente desen- volvimento de Veneza, Rafael, como qualquer outro artista, foi condicionado pelos progressos técnicos da arte, obtidos antes dele, pela organizacao da sociedade e pela diviséo do trabalho no seu pajs e, finalmente, pela divisdo do tra- () Nome aus, po sstmio, Bats pl sm seully.S PS PA em Raw seta « Mex Sie, enter de SO Re 2 MARX-ENGELS balho em todos os paises que tinham relagdes com o seu. 0 facto de um individuo como Rafael poder desenvolver © seu talento depende inteiramente da procura que, por Sua vez, depende da divisdo do trabalho ¢ das condigées de educacéo dos homens, que dai derivam. Stirner, ao proclamar 0 cardcter tinico do trabalho cien- tifico e artistico, coloca-se muito abaixo da burguesia. Achou-se necessdrio, j4 mos nossos dias, organizar essa actividade «tinica», Horace Vernet nao teria tido tempo de executar a décima parte dos seus quadros, se os tivesse considerado como trabalhos «que sé esse ser unico pode Jevar a cabo». A grande procura de teatro de «vaudeville» de romances, em Paris, fez surgir uma organizagéo do trabalho para a produgdo desses artigos, que, apesar de tudo,-faz obra mais perfeita do que os seus concorrentes «inicos», na Alemanha. Em astronomia, homens como ‘Arago, Herschel, Enke ¢ Bessel, acharam ‘necessArio orga- nizar-se pondo em comum as suas observagées e s6 depois disso chegaram a alguns resultados satisfatérios. Em his- téria, é absolutamente impossivel para o «tinico» realizar © que quer que seja, e os franceses hé muito que ultra- passaram, também neste campo, todas as outras nagGes, gracas & organizacao do trabalho. De resto, € 6bvio que todas essas organizages baseadas na divisao moderna do trabalho s6 atingem, por enquanto, resultados muito limi- tados ¢ apenas representam um progresso relativamente & fragmentacao tacanha que até existia. Torna-se necessdrio acentuar ainda, muito especialmen- te, o facto de Sancho confundir a organizacéo do trabalho com 0 comunismo, ficando espantado por «2 comunismo» nio esclarecer as suas dtividas quanto a essa organizacao. Da mesma maneira se espanta um jovem camponés da Gasconha por Arago no saber dizerIne em que estrela © Pai do Céu fixou residéncia. ‘A concentragao exclusiva do talento artistico em alguns individuos e seu aniquilamento nas grandes massas— que resulta dessa concentragio— ¢ um efeito da divisio do trabalho. Se mesmo, em’ certas condicdes sociais, cada um pudesse vir a ser um pintor excelente, isso nao impediria Que cada um fosse também um pintor original, de maneira que, também neste caso, a diferenga entre © trabalho «hu- mano» e o trabalho «iinico» vem a dar no absurdo. Com uma organizagaéo comunista da sociedade termina, em to- dos os casos, a sujeicdo do artista & estreiteza local ¢ na- cional — que Qa ‘unicamente da divisdo do trabalho— € a sujeicéo do individuo a uma determinada arte, 0 que a SOBRE A LITERATURA E A ARTE - faz dele, exclusivamente, um pintor, um escultor, etc. Por si $6, estas qualificagdes jé exprimem suficientemente a es- treiteza do seu desenvolvimento profissional e a sua depen- déncia da diviséo do trabalho.,Numa sociedade comunista ndo ha pintores, mas, quando muito, homens que, entre outros, fazem também pintura. : Marx e Engels: «A Ideologia Alemas, Oeuvres, t. V, pp. 372-373, Mega. 8 9. A arte, monopétio das classes dominantes S6 a escravatura tornou possivel, em escala suficiente- mente grande, a divisio do trabalho entre agricultura ¢ industria e, por consequéncia, 0 apogeu do mundo antigo representado pelo helenismo.’ Sem. escravatura, nao have- ria Estado grego, nem arte, nem ciéncias gregas; sem escra- vatura, no existiria o Império Romano. Ora, sem a base do helenismo ¢ do Império Romano a Europa moderna néo existiria. Nunca deverfamos esquecer que toda a nossa evolugéo econémica, politica e intelectual tem como con- digSo'prévia um estado de coisas no qual a escravatura era t’o necessdéria como geralmente admitida. Nesse sen- tido, temos o direito de dizer: sem escravatura antiga nao haveria socialismo moderno. ‘Nao custa muito entrar em guerra, armado de férmulas gerais, contra a escravatura e outras coisas semelhantes e despejar sobre tal infamia uma indignacio moral supe- rior. Infelizmente, n&o se enuncia com isso nada para além do que toda a gente sabe, ou seja, que essas insti- tuigdes antigas j4 ndo correspondem as ‘nossas condicées actuais, nem aos sentimentos que essas condigdes deter- minam'em nés. Mas isso nao nos ensina nada sobre o modo como essas instituicées surgiram, sobre as causas porque subsistiram e sobre o papel que representaram na his- t6ria. E se nos debrugarmos sobre este problema seremos obrigados a afirmar, por muito contraditério .e herético que isso pareca, que a introduco da escravatura nas cir cunstancias de entao representava um grande progresso, # um facto incontroverso que a humanidade comecou pelo animal e que, por conseguinte, teve necessidade de recor- rer a meios barbaros, quase animais, para se ver livre do barbarismo. As comunidades antigas, onde esses- meios 55 MARX-ENGBELS: ainda subsistem, constituem, ha milénios, a base da mais seira forma de Estado, 0 despotismo oriental, das in- fas até A Russia, Os povos sé progrediram nos locais onde essas formas desapareceram eo seu primeiro progresso econémico consistiu no acréscimo e no desenvolvimento da produgso através do trabalho servil, O problema apre- sentase com clareza: enquanto o trabalho humano era t&o pouco produtivo que raro excedente fornecia para além dos meios de subsisténcia necessarios, o aumento das forcas produtivas, a extensio do tréfico, o desenvolvimento do Estado € do direito, o nascimento da arte e da ciéncia sé eram possiveis gragas a uma divisdo reforgada do tra- batho entre as massas encarregadas do trabalho manual simples ¢ alguns privilegiados entregues a direccdo do tra- dalho, a0 comércio, aos assuntos do Estado e, mais tarde, as ocupagées artisticas e cientificas. A forma mais simples ea mais natural desta divisio do trabalho era precisa- mente a escravatura. Tendo em conta os antecendentes historicos do mundo antigo, especialmente ¢o mundo gre- 0, a marcha progressiva para uma sociedade baseada nas oposigdes de classe s6 poderia realizar-se sob a forma da escravatura. Até para os escravos isso representou um pro- gresso. Os prisioneiros de guerra, onde era recrutada a massa dos escravos, conservavam agora pelo menos a vida, enquanto que, anteriormente, os massacravam ¢, num /pas- sado ainda mais remoto, os mandavam pura e simples- mente queimar. _ Devemos acrescentar aqui que, até hoje, todas as con- iradig6es hist6ricas entre classes exploradéras e explora- das, dominadoras e oprimidas, encontram a sua explica- gf0 sss, produtividade relativamente pouco desenvo vida trabalho humano. Enquanto a populacdo que trabalha- va, efectivamente, esteve a tal ponto ocupada pelo traba- tho necessdrio que nfo Ihe sobrou tempo para se dedicar aos assuntos comuns da sociedade — direccéo do trabalho, assuntos do Estado, questdes juridicas, arte, ciéncia, etc. — Sempre foi necessdria uma classe particular que, liberta do trabalho efectivo, pudesse ocupar-se desses assuntos: © que, em proveito proprio, néo a impediu de impor as tnassas trabalhadoras uma porgdo de trabalho cada vez mais pesada. Apenas o enorme acréscimo das forcas pro dutivas, atingido pela grande industria, permite repartir 0 trabalho por todos os membros da sociedade, sem exce co, e, assim limitar 0 tempo de trabalho ce cada um, de fnaneira que a todos sobre tempo livre suficiente para tomar parte nos assuntos gerais da sociedade— tanto te6- 56 SOBRE A LITERATURA E A ARTE * ricos, como praticos. Por conseguinte, s6 a todas as classes dominantes e exploradoras se ternaram: supe fluas ¢ até constituem um obstdculo ao desenvolvimento social, s6 agora é que essas classes serao impiedosamente eliminadas, por muito que tenham ain ‘Pod «violéncia imediata». : da em seu a Engels:, hd nesta ameaca a confissGo irénica de que o poeta se degrada quando a poesia se torna para ele um meio, O escritor nao considera, de maneira nenhuma, os seus trabalhos como um meio. O que escreve constitui um «fim em six, E em téo pequena escala um meio para si préprio © para os outros, que o escritor sacrifica a sua existéncia a existéncia do que escreve, quando isso se torna necessério €, como 0 pI lor religioso, submete-se ao princfpio: «Obe- decer a Deus mais do que aos homens», aos homens entre os quais ele préprio esta confinado com as suas neces- sidades € os seus desejos de homem. Em contrapartida, gostaria de ver um alfaiate, a quem tivesse encomendado um fraque parisiense e me trouxesse uma toga romana, a pretexto de que este trajo corresponde melhor & lei eterna do belo! A primeira liberdade para a imprensa consiste em ndo ser uma industria. O escritor que a rebaixa, até fazer dela um meio material, merece como puniggo desse cati- veiro interior, 0 cativeiro exterior, a censura, cuja simples existéncia é j4 a sua punicao. Marx: Debates sobre a liberdade da imprensa», Ocu- vres, t. I, pp. 222223, Mega. 3. Missdo revoluciondria do pensador e do escritor Redigidas por Marx, depois de chegar a Bruxelas em Marco de 1845, as teses Sobre Feuerbach denunciam a. insufé B ‘MARX-ENGELS ciéncia do materialismo anterior. As ideias expressas por Marx nessas onze teses —e, em especial, nas tltimas qua- tro— inferessam ndo 36 aos filésofos, ‘mas também aos escritores chamados a descrever 0 mundo no seu movimento ea lutar pela sua transformacio. viol A vida social 6 essencialmente prdtica. Todos os misté rigs que desviam a teoria para o misticismo encontram a ‘solugdo racional na pratica humana e na compreensio dessa pratica. IX © ponto mais elevado, a que consegue chegar 0 mate- rialismo intuitivo, isto €,'0 materialismo, que nBo concebe 0 mundo material como actividade pratica, é 0 modo de ver dos individuos encarados isoladamente’ na «sociedade burguesa>. x © ponto de vista do antigo materialismo é a sociedade sburguesa>, O ponto de vista do novo materialismo é a Sociedade humana, ou a humanidade socializada. XI Os filsofos nado fizeram mais do que interpretar 0 mundo de varias maneiras, mas trata-se de o transformar. Marx: «Teses sobre Feuerbach», Estudos Filoséficos, pp. 63-64, Editions Sociales, 195i. 4 SOBRE A’ LITERATURA E A ARTE 4. A situagao do escritor na sociedade capitalista I processo de produco capitalista nfo ¢ s6 uma pro- dugao de mercadorias. # um processo que absorve traba- Iho no pago e transforma os meios de produgéo em meios de absorcao do trabalho nao pago. Dai resulta que o cardcter especifico do trabalho produ- tivo ndo tem qualquer ligacéo com o conteddo determinado do trabalho, com a sua utilidade particular ou com o valor de uso especial com que se apresenta. © mesmo género de trabalho pode ser produtivo ou improdutivo, este modo, Milton, que escreveu O Paraiso Perdido, era um trabalhador improdutivo. Pelo contrario, o escritor que trabalha para o seu editor, como um assalariado da inddstria, é um trabalhador produtivo. Milton fez O Paratso Perdido como o bichoda-seda faz seda. Era uma manifesta. 40 da sua natureza. O poeta vendeu mais tarde o seu tra- balho por cinco libras esterlinas. Mas o escritor proletario de Leipzig que, sob a direceSo do seu editor, fabrica livros (or exemplo, ‘manuais de economia politica), ¢ um ope rério produtivo, visto que a sua producdo esté, desde o infcio, subordinada ao capital e s6 se realiza para seu lucro. ‘Uma ‘cantora que vende a voz por conta propria é uma trabalhadora improdutiva. Mas a mesma cantora, contra- tada por um empresdrio que a pée a cantar para receber dinheiro, é uma trabalhadora produtiva, porque, neste caso, a cantora produz capital. Marx: «Teorias sobre a Mais-Valia», t. I, p. 416 Stut- tgart, 1905. I Um actor, por exemplo, ou mesmo um palhago, so, pois, operdrios produtivos, se trabalham ao servigo de uum cap talista (de um empresdrio) a quem déo mais em trabi do que o que recebem em forma de salério, enquanto que quando um remendao vai a casa do capitalista para Ihe arranjar as calgas, fornece-lhe apenas um valor de uso € no passa de um operdrio improdutivo. O trabalho dos primeiros € trocado por dinheiro, 0 do segundo por um 15 MARX-ENGELS lucro, No primeiro caso, h4 criagio de mais-valia; no se- do, consumo de lucro. . sen distingao entre trabalho produtivo e improdutivo ¢ feita aqui apenas do ponto de vista do detentor de dinheiro, do capitalista, no do operdrio, Daf a insensatez de Ganil © quejandos. Entendem tio pouco do assunto que pergun- tam se o trabalho ou 0 oficio de uma meretriz, 0 latim, etc., rendem dinheiro. . - : ‘Um escritor é um operdrio produtivo, ndo por produzir ideias, mas porque enriquece o editor que se encarrega da impressdo e da venda dos livros, isto é, porque é 0 assala- riado de um capitalista. Marx: «Teorias sobre a Mais-Valiay, t. I, p. 260, Stut- tgart, 1905. 5. Os escritores devem estudar as ciéncias econd- micas e sociais para darem ¢ classe operd- ria obras dignas dela ..Em_ geral, a palavra «materialistas serve a_ muitos esctitores “recentes, na Alemanha, de simples designacéo. Funciona como uma etiqueta para toda a espécie de coisas. Nao as estudam com cuidado, pensando que basta colar esse rotulo para que tudo fique dito. Ora, a nossa concep- cao da histéria é, antes de tudo, uma directiva para o estudo e no uma alavanca para construgdes & maneira dos hegelianos, # preciso voltar a estudar toda a historia, ¢ preciso submeter a uma investigacdo pormenorizada as con- Jigdes de existéncia das diversas formagées sociais, antes de tentar deduzir daf os modos de corcepcio politicos, jurtdicos, estéticos, filoséficos, religiosos, etc. que Ihes cor- respondem. Sobre este ponto, pouco se fez até agora, por- ue 86 poucas pessoas a isso se dedicaram sériamente. emos necessidade de uma ajuda macica, 0 dominio é in nitamente vasto e quem quiser trabalhar striamente pode fazer muito e distinguir-se. Mas, em vez. disso, as frases vazias sobre 0 materialismo histérico (tudo se pode trans- formar em frase), para um mimero demasiado grande, de jovens alemaes, s6 servem para transformar, o mais rap Gamente possivel, os seus conhecimentos histéricos relati- 16 ” SOBRE A LITERATURA E A ARTE vamente magros —a histéria econémica nao anda ainda de fraldas?— numa sistemética construcdo artificial, para de- pois suporem que sdo espfritos indubitavelmente podero- $08... ‘Vocé que, sem diivida, j4 produziu alguma coisa, notou certamente como é reduzido o mimero de jovens literatos, filiados no Partido, que se dao ao trabalho de estudar a economia, a histéria da economia e a histéria do comércio, da industria, da agricultura e das formagGes sociais. Quan- ‘tos_conhecem de Maurer mais do que o nome? £ a auto- -suficiéncia do jornalista que deve resolver todas as dificul- dades, mas depois os resultados medem-se proporcional- mente! Dir-se-ia que esses senhores julgam que tudo é sem- pre suficientemente bom para os operarios. Se esses senho- Tes soubessem a que ponto Marx considerava que as suas melhores produgées nao eram ainda bastante boas para 0s operdrios e como considerava um crime oferecer aos trabalhadores qualquer coisa que estivesse aquém da per- feicdo!. Engels: Carta a Conrad Schmidt, datada de 5 de ‘Agosto de 1890. Estudos Filoséficos, pp. 127-128, Editions Sociales, 1951. 6. Importéncia do estilo A primeira obra de Proudhon —«O que ¢ a Proprieda- de?»— € seguramente o que de melhor produzitu. O livro fez carreira no tanto pela novidade do contetido como pela maneira nova e ousada de exprimir coisas velhas. Nas ol dos socialistas € comunisias franceses que ele. conhecia, naturalmente, a «propriedade» era ndo sé criticada de va rias maneiras, mas também «ultrapassada» de modo uté- pico. Proudhon, nessa obra, est para SaintSimon e Fou- rier, como Feuerbach esté para Hegel. Se o compararmos a Hegel, Feuerbach é muito pobre. No entanto, esteve na moda depois de Hegel, porque fez sobressair certos pontos, desagraddveis para a conscléncia crista e importantes para © progresso da critica, que Hegel tinha deixado numa obs- curidade mistica. Se assim posso exprimirme, nesse texto de Proudhon afirma-se, além do mais, um estilo poderoso. E considero O estilo da obra como a sua qualidade principal. Vese que, MARX-ENGELS mesmo onde apenas reproduz coisas velhas, Proudhon des- cobre por si proprio: o que diz afigura-selhe uma verdade nova e original. Uma auddcia provocaate contra o «santo dos santos» econémico, paradoxos espirituais que lhe permitem misti- ficar a razio burguesa vulgar, apreciacdes implacaveis, uma jronia amarga, um sentimento de indignacao profundo e verdadeiro, que surge de vez em quando contra a infamia do que existe, acompanhado de seriedade revolucionéria, fazem de «O que é a Propriedade?» uma obra que electrizou @ apaixonou os espfritos logo que foi publicada. Dentro de uma historia estritamente cientifica da economia politica, nao valeria a pena mencionar esse escrito. Mas livros de ‘Sensagdo como esse representam o scu papel, tanto nas ciéncias como na literatura romanesca. Recorde-se, por exemplo, a obra de Malthus sobre a «populacdo»! Na pri- meira edigio, nfo passa de um «panfleto sensacional» e, © que é mais, de um pldgio do principio ao fim. E, no entanto, que efeito nfio produziu esse pasquim acerca do género humano! Marx: Carta a Schweitzer, de 24 de Janeiro de 1865, Marz-Engels: eAusgewdhite Briefes, pp. 138-139, Moscovo, 1934, 7. Nao publicar nada que nio esteja perfeito Nao posso, portanto, decidir-me a enviar o que quer que seja, enquanto n4o tiver diante de mim todo o trabalho, completamente acabado. Sejam quais forem as insuficién- cias dos meus escritos(!), t8m, pelo menos, o mérito de constituirem um todo artistico completo. S6 consigo isso nao publicando nada enquanto o que escrevo no estiver inteiramente acabado em cima da mesa de trabalho. Marx: Carta a Engels, de 31 de Jutho de 1865. «Cor- respondéncia entre Marx e Engelss, t. III, pp. 333- “334, Dietz-Verlag, Berlim. () Em inglés, no texto. —(N. R) B CAPITULO IV A LITERATURA E A ARTE REFLEXOS DAS RELACOES SOCIAIS 1. Homero e a sociedade grega I © apogeu da fase superior da barbarie surgenos através dos poemas homéricos, em especial, na Iliada. Utensflios de ferro aperfeicoados, 0’ fole, 0 moinho manual, o torno do oleiro, a preparacdo do azeite e do vinho, o trabalho aper- feigoado dos metais prestes a tornar-se artfstico, a carreta © 0 carro de guerra, a construgio de navios por meio de traves e de pranchas, as comecos da arquitectura como arte, cidades rodeadas de muralhas com torres ¢ ameias, a epopeia homérica e toda a mitologia— constituem a pri cipal heranga que os Gregos fizeram passar da barbérie 8 civilizacdo. Se compararmos a isso a descrigéo que César, e mesmo Tacito, fazem dos Germanos, que se achavam, €ntio, no comeco da fase cultural que os Gregos homé ricos estavam a abandonar para passarem a um grau mais elevado, veremos como foi rico o desenvolvimento da pro- dugdo na fase superior da barbérie. Engels: «A Origem da Familia, da Propriedade Pri- vada e do Estado», p. 30, Dietz Verlag, Berlim, 1951, pp. 31-32, Editions Sociales, 1954: u A nova forma de famflia surge-nos entre os Gregos em todo 0 seu rigor. Como observou Marx, o papel das deusas na mitologia teferese a uma época mais antiga. Nela, as 9 “ENGELS mulheres tinham uma situagSo mais livre, de maior presti- gio. Na época herdica, encontramos j4 a mulher rebaixada pela predominancia do homem e ‘pela concorréncia das escravas, Basta ler, na Odisseia, como Telémaco repreende a mae e Ihe impée siléncio. Em Homero, as jovens captu- radas so entregues ao prazer sensual dos vencedores. Cada uum por sua vez, segundo a ordem hierérquica, os chefes escolhem as mais belas—é sabido que toda a Tlfada gira a volta de uma querela entre Aquiles e Agamemnon, a pro- pésito de uma escrava. Por cada heréi homérico de certa importancia é mencionada a jovem cativa com quem par- tila a tenda e 0 leito. O vencedor leva essas jovens para o seu pais e para a residéncia conjugal. B segundo ‘esse uso que, em Esquilo, Agamemnon leva Cassandra. Os filhos dessas escravas’recebem uma pequena parte da heranca paterna e séo considerados homens livres. Assim, Teucer, filho ilegitimo de Télamon, tem o direito de usar © nome do pai. A opinido corrente é que a. mulher Jegitima deve suportar tudo isso, observando a mais estrita castidade ea fidelidade conjugal mais absoluta. Na ver- dade, a mulher grega da época,herdica mais respeitada que a do perfodo civilizado, Mas, em definitivo, para o Tomem, néo passa da m&e dos seus herdeiros legitimos, ‘@ governanta suprema da casa e a vigilante das escravas de que o marido pode fazer, e faz como bem entende, suas eoncubinas. A existéncia da escravatura a par da mono- gamia, a presenca de jovens e belas escravas, que perten- cem do homem de corpo e alma, é 0 que imprime, desde ‘© comego, & monogamia o seu cardcter especifico: o de ser monégamo apenas para a mulher e nao para o homem. Essa caracteristica conservase ainda hoje. Engels: «A Origem da Familia, da Propriedade Pri- vada e do Estado», pp. 6263, Dietz-Verlag, Berlim, 1951. Pp. 61-62, Editions Sociales, 1954. mL Na Iliada, Agamemnon, chefe dos guerreiros, néo apa- rece como o'rei supremo dos Gregos, mas como o coman- dante-em-chefe de um exército confederado perante uma cidade cercada, E quando a discérdia estala entre os Gre- gos, é essa qualidade que Ulisses pée em destaque, na célebre passagem: «a multiplicidade do comando nada vale; 80 SOBRE A LITERATURA E A ARTE que um sé chefe comandes, etc. (e 0 verso muito conhecido, onde se trata do ceptro, é um aditamento) (1): Ulisses néo faz, neste caso, uma conferéncia sobre uma forma de governo; exige obediéncia ao que, na guerra, possui o comando supremo. Para os Gregos, que surgem diante de Tréia apenas como exército, as coisas passam-se assaz democraticamente, na 4go- ra. Aguiles, quando fala de «presentess, isto é, da partilha dos despojos, n4o encarrega Agamemnon, nem qualquer outro basileus de a fazer. Esse encargo tence aos «filhos dos Aqueus» (2), ou seja, a0 povo. s atributos —xengendrado por Zeus», «alimentado por Zeus»— nao provam pois, cada gens des- cende de um deus e, a do chefe de tribo, de um deus de categoria mais elevada— neste caso, de Zeus. Mesmo os que n&o gozam de liberdade pessoal, como Eumeo, o guardador de porcos, entre outros, sao também «divinos» (dioi e theioi) (3), e isto na Odis- seia, numa época, portanto, muito posterior a Iliada. Ainda na Odisseia, o nome de heréi vem junto ao do mensageiro Mylios e ao de Demodokos, o aedo ce- go (4), Em suma, a palavra basileia, que os escritores gregos empregam para designar a pscudorealeza ho- mérica (porque o comando do exército é disso a prin- cipal marca distintiva), acompanhada do conselho e ae ————— Engels: «A Origem da Familia, da Propriedade Pri- Yada © do’ Estado», p..106, Dietz Verlag, Berlim, BSI. P. 100, Editions Sociates, 1954. ° 2. A passagem do matriarcado ao patriarcado, reve- lada pela tragédia antiga Lewis Morgan, autor de Ancient So- ciety (1877), chegou, a sua maneira e quarenta anos depois de Marx, a uma Hie sn ser Rt a eae Sat Bees aR wm 2 et ree OE. yy, wn 4. — 0 Marz-Engels Archiv, t. IX, pp. 143-145 oR eee, ; Miada, canto I, versos 204206. —(N. R) 81 MARX-ENGELS concepefa. materialista da_histdria. ‘Apoiando-se nos seus trabalhos, deixa- dos na sombra pelos corifeus da cién- cia, Engels estuda na «Origem da Fami- lia, da Propriedade Privada ¢ do Esta- do» (1884) @ expanséo da sociedade pri mitiva_até ao aparecimenio das classes e do Estado. i" Engels, no prefdcio para a quarta edi- gdo da sua obra, surgida em 1891, ana- lisa os trabalhos dos primeiros histo- riadores que trataram de famitia: Ba- Ghofen, Mac Lennan e Lewis Morgan. Nao é ocioso lembrar que os escritos recentes de historiadores e de socidlo- gos de renome vém apoiar as opinides de Bachofen, consideradas hd mutito en- velhecidas pelos que esperavam atacar, assim, o valor cientifico da obra de Engels. A histéria da familia surgiu em 1861, ano da edi¢do do Direito Materno, de Bachofen. O autor faz ai as seguintes afirmagées: 1.°) De inicio, as relagdes sexuais da humani- dade eram desprovidas de qualquer regra,, concluséo, que se designa pelo termo mal achado de heterismo. 2.*) Essas relag6es excluem qualquer paternidade rigorosa; por isso, ‘a filiacko sé podia ser estabelecida pela Inha feminina —segundo o direito materno— 0 que, origintriamente, se verificou em todos os povos da antiguidade, 3.") Por con- sequéncia, era atribuido as mulheres, enquanto mies e tini- cos progenitores reconhecidos da jovem geracdo, um ele- vado grau de respeito e prestfgio que, segundo a concepcao de Bachofen, atingiu a perfeita ginecocracia, 4°) A’ pas- sagem para 0 casamento conjugal, em que a mulher per- tencia apenas a um homem, implicava a violagéo de um antigo mandamento religioso (por outras palavras, era, de facto, uma violacdo do direito tradicional dos outros’ ho- mens a mesma mulher) violagio que devia ser expiada, ou cuja tolerancia teria de ser adquirida pela mulher, entre- gando-se a outros por tempo limitado. ‘Bachofen prova essas assergdes com numerosos trechos da literatura cl4ssica da Antiguidade, reunidos com 0 maior zelo, Segundo ele, a passagem do «heterismo» para a monogamia e do direito materno para o paterno reali- 82 SOBRE A LITERATURA E A ARTE zase —particularmente entre os Gregos— em consequén- cia de uma evolucdo das ideias religiosas, devido & im- plantacio de novos deuses que representam a concepcao mais recente entre o grupo tradicional de divindades deten- toras da concepedo antiga, de tal maneira que aquela afasta cada vez mais esta para’ segundo plano, Nao foi, pois, a evolugéo das efectivas condigdes de existéncia dos ‘homens, mas 0 reflexo religioso dessas condigées na mente dos seres humanos que — segundo Bachofen— provotou as modificagSes historicas na posicao social recfproca do ho- mem ¢ da mulher. Por conseguinte, Bachofen apresenta a Oréstia de Esquilo como a descricio dramatica do con- flito entre o direito materno declinante ¢ o direito paterno em ascensio, que surge vitorioso na época grega das epo- peias. Por amor ao seu amante Egisto, Clitemnestra mata © marido Agamemnon, quando este regressa da guerra de Tréia. Porém, Orestes, filho de ambos, vinga a morte pa- terna, matando a prépria mae. Por isso, é perseguido pelas Erinias, protectoras demonfacas do direito materno, para quem © matricidio é 0 mais grave ¢ o mais inexpidvel dos crimes. Mas Apolo, que pelo seu ordculo incitou Ores- tes ao homicfdio, protege-o, juntamente com Palas Atena, nomeada juiz —as duas divindades representam, neste caso, a nova ordem, a do direito paterno. Palas Atena ouve as duas partes. Toda a discussao se resume, em cas palavras, no debate que opéc Orcstcs as Erinias. Orestes defende-se alegando que Clitmenestra cometeu um duplo crime: matou 0 préprio marido e, ao. mesmo tempo, o pai do seu filho. Qual a razdo porque as Erinias o perseguem e nao a Cliemnestra gue € muito mais culpada? A res. posta é decisiva: «Ela ndo estava unida pelos laos do sangue a0 homem que matou.» 0 assassinio de um homem a quem nio se est ligado pelos laos do sangue pode ser resgatado e nio cai sob a al- sada das Erinias, ainda que a vitima seja o marido da homi- cida, A fung&o das Erinias consiste em denunciar o crime entre consanguineos e, de acordo com o direito materno, 0 crime mais grave e inexpidvel ¢ 0 matricidio. Nessa altura, Apolo toma a defesa de Orestes e Atena submete 0 caso aos areopagitas do supremo tribunal de Atenas. A condenacéo recolhe 0 mesmo ntimero de votos que a absolvicio. Na qualidade de presidente, Atena concede, éntao, o seu voto a Orestes ¢ absolve-o. O direito paterno conseguiu a vitd- ria sobre 0 materno. Os «deuses da jovem cepa», assim designados pelas préprias Erinias, sfio mais poderosos do 83 MARX-ENGELS- ‘que elas, que finalmente se- deixam persuadir a ocupar Outras fungdes ao servigo do novo estado de coisas. Esta interpretagéo da Orestia, original, mas absoluta- mente justa, constitui uma das melhores ¢ mais belas pas- sagens de todo o livro. Prova porém, ao mesmo tempo, que Bachofen acredita nas Erinias, em Apolo e em Atena, pelo menos tanto como Esquilo acreditava outrora. Com efeito, cré, que, na época herdica da Grécia, essas divindades rea- lizaramh 0 milagre de derrubar o direito materno em pro- yeito do direito paterno. Evidentemente, esta concep¢ao, em que a religiéo é considerada como a alavanca deter- minante da historia universal, teré de desaguar, por fim, no misticismo -puro. Por isso, é ardua e, muitas vezes, pouco proveitosa, a tarefa de assimilar de uma ponta a Sutra o volumose livro de Bachofen. Mas isso no diminui © seu mérito de inovador. Foi Bachofen o primeiro a subs- fituir a formula oca de uma fase primitiva e desconhecida, em que as relacdes sexuais seriam alheias a qualquer re- gra, pela prova de que a literatura classica da Antiguidade esta cheia-de indicios testemunhando que, entre os Gregos € 0s Asidticos, existiu efectivamente, antes da monogamia, ‘uma fase em que nao sO um homem tinha relagdes sexuais com varias mulheres, mas também uma mulher com diver- sos homens, sem, por isso, pecarem contra os costumes. Ba- chofen provou que esse costume nao desapareceu sem dei- xar tragos: As mulheres entreganduse a varios homens adquiriam, assim, o direito a um casamen:o monégamo. Bachofen provou ‘ainda que, em consequéncia disso, a des- cendéncia s6 podia ser contada pela linha feminina, quer dizer, de mae a mie; que essa validade exclusiva da filia- cdo feminina se manteve por muito tempo ainda, durante 2 época da monogamia, a par da paternidede que, nesse tempo, jé estava assegurada ou, pelo menos era reconhe- cida; ¢ que essa situacio primitiva das mies, como tinicos progenitores validos. dos, fis, Thes garantia, bem como mulheres, em geral, a posico social mais elevada de jue desfrutaram em todos os tempos. E certo que Bacho- fen ndo enunciou esses principios com tanta clareza, pois ‘a sua concep¢do mistica nao Iho permitia, Mas o simples facto de os ter provado equivalia, em 1861, a uma revo- lug&o total. Engels: «A Origem da Familia, da Propriedade Pri- ‘vada e do Estado», prefdcio 4 quarta edicdo, pp. 11-13, Dietz Verlag, Berlim ,1951. Pp. 18-20, Editions Sociales, 1954. SOBRE A LITERATURA E A ARTE 3. A ignordncia e o erro na tragédia antiga A ignorancia é um deménio ¢ receamos que venha a provocar ainda numerosas tragédias. Os malores poetas Bregos mostraram-na, com razio, no papel do destino tré- gico, nos dramas assustadores das dinastias reais de Mice- nas e de Tebas. ° Marx: Editorial da Gazeta Renana, de 14 de Julho de 1842, Oeuvres, t. I, p. 249, Mega. 4. O amor na antiguidade No sentido moderno do termo, o amor, na Antiguidad sé aparece & margem da sociedade oficial. Os astores, de que Teécrito e Mosco cantam os prazeres ¢ os sofrimentos de amor, 0 Datnis e a Clog, de Longus, so todos escravgs. Nao tomiam parte no Estado, na esfera em que vive 0 cida Engels: «A Origem da Familia, da Propriedade Pri- vada e do Estado», p. 16, Dietz Verlag, Berlim, P. 74, Editions Sociales, 1954. 5. Hegel ea arte grega A filosofia da histéria, pelo contrério, tal como é ex. pressa, designadamente, por Hegel, reconhece que os mo- fivos aparentes os que determinam verdadeiramente as acgdes humanas na histéria nfo sdo, de forma nenhuma, as causa wltimas dos acontecimentos hist6ricos e que, por detras desses motivos, ha outras forcas determinantes que, precisamente, se trata de procurar. Mas essa filosofia nao as procura nla propria hist6ria. Pelo contrério, importaas do ‘exterior, da ideologia filoséfica. B por isso que, em vez de explicar a histéria da Grécia antiga pelas préprias 8 "| MARK-ENGELS relagGes internas, Hegel afirma simplesmente que essa his- t6ria ndo passa da elaboracdo das «formas da bela indivi- dualidades, a realizagio da «obra de arte» como tal. Diz, nessa altura, muitas coisas belas sobre os antigos Gregos, mas isso néo impede o facto de, hoje, nado nos satisfazer uma explicagéo dessas que, afinal, ndo passa de frases nada mais. +Mingels: «Ludwig Feuerbach», Estudcs Filoséficos, p. 50, Editions Sociales, 1951. 6. Lucrécio iucrécio é 0 verdadeiro poeta épico dos Romanos, por- ye canta a substancia do espfrito romano, Em vez das figuras prazenteiras, poderosas, inteiras, de Homero, en- contramos aqui herdis sélidos, armados de forma impene: travel € que no possuem outras qualidades. A guerra omnium contra omnes (1), a forma rigida do ser-para-si, uma natureza privada do’ divino e um dess alheado do mundo. Marx: «Trabathos Preparatérios de Diferenca entre a Filosofia da Natureza em Demécrito ¢ Epicuro», Oeuvres, 1. I, p. 126, Mega. 7. Espartaco visto por Apiano Em contrapartida, li, & noite, para repousar, a hist6ria das guerras civis romanas, de Apiano, no original grego. Livro de grande valor. O autor é de origem egipcia. Schlos- ser diz que o historiador pertence «a todas as €pocas», sem divida porque se esforca por explicar as guerras civis atra- vés das condicdes materiais. O retrato que nos dé de Es- partaco mostra 0 chefe dos escravos como o mais belo tipo que encontramos em toda a historia antiga. Tratase de (De todos contra todos. —(N. R) 8% SOBRE A LITERATURA E A ARTE um grande chefe de guerra (ndo de um Garibaldi), de am nobre cardcter ¢ de um auténtico representante (1)'do pro- letariado antigo. Marx: Carta a Engels, de 27. de Fevereiro de 1861. Correspondéncia entre Marx e Engels, t. 111, p. 15, Mega. - 8. Luciano _Uma das melhores fontes para conhecer os primeiros cristéos Luciano de Samosata, esse Voltaire da antigui- dade cléssica, que deu.provas de idéntico cepticismo em relago a todas as variedades de supersticées religiosas © que, por conseguinte, ndo tinha qualquer raz4o, ditada por Gonviogdes pagis ou politicas, para considerar os eristios dc maneira diferente das outras comunidades religiosas. Pelo contrério, ridicularizaas a todas, devido as suias su- perstigdes, tanto as adoradoras de Jipiter como as adora- doras ‘de ‘Cristo. Do seu ponto de vista, racionalista sem profundidade, essas superstigoes equivalem-se na idiotice. Engels: sContribuigdo para a Histdria do Cristianis- mo Primitivo», Die Neue Zeit, 1895, p. 6. 9. Os cantos dos Vikings e 0 matriarcado ‘Uma passagem da «Véluspas, canto normando sobre 0 creptsculo dos deuses ¢ 0 fim do mundo, é ainda mais deci- siva porque tem menos oito séculos. Essa «visio da profe- tisa» é entremeada com elementos cristfos, como Bang ¢ Bugge provaram. Nela é descrita a época dépravada ¢ cor- rupta que antecede a grande catéstrofe: Broedhr munu berjask ok at bénum verdask munu systrunger sifjum spilla. () Em inglés, no texto. —(N. R) ®. a MARX-ENGELS «Os irméos fargo a guerra entre si ¢ seraa os assassinos uns dos outros, filhos de irmas destruiréo a comunidade familiar.» Systrunger significa «o filho da irmai da en © facto de aqueles renegarem os lagos consanguineos de parentesco afigura-se a0 poeta um crime ainda mais grave que o de fratricfdio, O agravamento é expresso pela pala- Yra systrungar, que acentua o parentesco do lado materno. Se ey vez dela se dissesse syskina-born, filnos de irmaos e de Mmis, ou syskina-synir, com sentido idéntico, a se da linha do texto no constituiria uma progressdo em fice da primeira e até enfraqueceria. Per conseguinte, mesmo no tempo dos Vikings, em que foi criada a Voluspa, ndo se tinha ainda apagado, na Escandindvia, a recordagao do direito materno. : «A Origem da Familia, da Propriedade Pri- Engelta ¢ do Estadon, p. 173, Dietz Verlag, Berlim, P. 128, Editions Sociales, 1954. 10. O amor no «Canto dos Nibelungos» (') to em que a Antiguidade parou nos seus mBg,Broprio ponto em. cue, Antguidade anon, nos eas caer Descrevemos anteriormente o amor trova- doresco que inventou as Tagelieder (albas). Desse amor, jue pretende destruir o casamento, até ao amor que deve Eindamentérlo, ha um longo caminho a fercorrer e, de facto, nunca a cavalaria o percorren por completo. Mesmo se passarmos dos Latinos frivolos para os virtuosos Ale- mées, verificamos, no poema dos Nibelungos, que Kriem- hild, embora esteja secretamente enamorada’de Siegfried tanto como Siegfried esté enamorado dela, responde sim- Plesmente Gunther, quando este Ihe anuncia que a. pro Mmeteu a um cavaleiro de que nao diz 0 nome: «Nao preci- sais de mo pedir. Tal como o ordenais assim eu quero ser Sempre; aquele que me dais por marido, Senhor, € aquele ico slemio excita cerca do ano 1200, Conta os fltos de ieWlied "guard do iesouro\ Gov Nibclangos: ajuda Gunther 4 conqustar SeeREY, SAS 2, eau dc Gunther chamada Kriembil € mosve sob 08 golpes do traidor Hagen, mas ser4 vingado por Kriembil. SOBRE A LITERATURA E A ARTE com quem quero casar-me.» Nao aflora sequer ao espirito de Kriemhild que o seu amor possa entrar em linha de conta. Gunther pede em casamento Brunhild, Etzel faz 0 mesmo com Keiembild, sqm nunca as terem visio. Da mes ma maneira, em Gutrun, Sigebant da Irlanda pede em casa- mento Ute,'a norueguesa, enquanto Hetel de Hegelingen quer casar com Hilda da Irlanda, e, por fim, Siegfried de Morland, Hartmund de Ormanien e Herwig da Zelgndia procuram casar com Gutrun. E sé neste ultimy cao, a mulher, de sua livre vontade, se decide pelo terceiro pre- tendente, Em geral, a noiva do jovem principe ¢ escolhida pelos pais deste, se forem vivos, ou, em caso contrari por ele proprio, com a concordancia dos grandes feudais que, em todo o'caso, tém voto importante na matéria, De Testo, as coisas ndo poderiam passar-se doutro modo. Para © cavaleiro, o bardo, assim como para o principe, o casa- mento é um acto politico, uma possibilidade de aumentar © scu poderio através de ‘nnovas aliangas, E o interesse da ¢asa que deve decidir, ndo as preferéncias do individuo. Nestas condigdes, como é que o amor poderia ter a ultima palavra na concluséo do casamento? Engels: «A Origem da Familia, da Propriedade Pri- vada e do Estado», pp. 71-78, Dietz Verlag, Berlim, P. 75, Editions Sociales, 1954. 11. O esmagamento pela dimenséo Sem duividal Sem divida! A nossa época deixou de ter a nocdo efectiva da grandeza, que admiramos na Idade Média. Vejam os nossos mintsculos tratados pietistas, ve- Jam os nossos sistemas filoséficos nos seus pequenos’ «in- ‘octavo» e agora virem os olhos para os vinte «in-folios gigantescos de Duns Escoto. Nao terao necessidade de ler esses livros. Basta o seu aspecto extraordindrio para vos falar ao corac&o, impressionar os vossos sentidos, como qualquer monumento g6tico. Essas obras gigantescas, que parecem brotar da natureza, agem materialmente sobre © espirito, que se sente esmagado pela sua massa e a nogéo de esmagamento € 0 comeco da veneracdo. Nao possuis esses livros, so eles que vos possuem. Nao sois mais que acessérios deles. Do mesmo modo —pensa a Staatszeitung a9 prussiana—o povo deveria ser um acessério da sua lite- ratura politica. ; Marx: «Debates “sobre awbiberdade de Imprensa», Oeuvres, t. 1, p. 181, Mega. 12.° Dante No tiltimo pardgrafo do prefdcio que escreveu para_a edigao italiana do Manifesto do Partido Comunista, pre- facio datado de Londres, em 1 de Fe- Yyereiro de 1893, Engels lembra gue as épocas de transi¢éo sao favor eetosto dos génios literdrios. © Manifesto, presta inteira justiga a0, papel ,revolucio nério que o capitalismo representou no passado. A y Ragdo bapitalitia fol a Italia, O fim da Idade Média feudal e 6 aparecimento da era capitalista moderna sao assina- Jados por uma figura colossal. Um italiano, Dante, que é, a0 mesmo tempo, o Ultimo poeta medieval e o primeiro porla dos tempos modernos. Hojc, como & volta de 1300, uma nova era histérica vai iniciar-se. Darnos a Itélia um novo Dante, que anuncie o nascimento da nova era prole- taria? .. «Manifesto do Partido Comunista». Prefdcio ithe tatiana. Milo, Gabinete da Critica So- cial, 1893. 13. .A poesia provengal da Idade Média Depois das jornadas de Marco do ano de 1848, foi eleito um parlamento nacional alemdo, que reuniu em Frank flirt. Engels designa-o, num artigo da New York Tribune, em 27 de Fevereiro de 1852, como «uma assembleia de ve- thotas» que «tinha mais medo do-me- 90 SOBRE A LITERATURA E’A ARTE nor movimenio popular do que de to- das as conspiracées teacciondrias dos governos alemies no seu conjunto». Essa assembleia de poltroes ¢ patra- dores aprovou a partilha da Poldnia. Mars e Engels, via Nova Gazeta Re- nana, que editam em Col6nia, dedicam, entre 7 de Agosto e 6 de Setembro de 1848, uma série de artigos aos debates da assembieia sobre a Polénia. A pro- Pésito da “ocupacao, deste pats, pela Riissia dos tzares, Marx e Engels re- cordam a historia da Provenca que teve, na Idade Média, uma civilizagao brilhante e requintada, mas acabou por ser esmagada pelos franceses do norte, relativamente atrasados e pelos seus déspotas coroados (Lufs XI). As nacionalidades da Franca setentrional e meridional eram, na Idade Média, tao diferentes como 0 sao hoje os polacos dos russos. A nado da Franca meridional, vulgar- mente chamada nacdo provencal, tinha atingido, na Idade Média, néo s6 um «desenvolvimento precioso», mas encon- trava-se, até, & frente do desenvolvimento europeu. E, entre as nagdes Tecentemente aparecidas, a Provenca possuia, acima de tudo, uma lingua culta. A sua arte poética servia, entdo, de modelo inacessivel a todos os povos romnicos € mesmo aos alemies aos ingleses. Quanto A perfeigéo ¢ Tequinte dos costumes cavalheirescos, rivalizava com os castelhanos, os franceses do norte ¢ 0s normandos ingle- ses, Quanto & industria e ao comércio nko ficava atrés dos italianos. Nao foi apenas «uma fase da vida da Idade Mé- dia» que a Provenca fez progredir «até alcancar a forma Imais brilhantes. Chegou mesmo a langar um reflexo da antiguidade grega no seio da mais profunda Idade, Média. Deste modo, a nacdo da Franca meridional «adquiri. mé- ritos» verdadeiramente incomensurdveis, «no seio da famt- lia dos povos europeus». No entanto, como sucedeu com a Polénia, essa nacio foi, primeiramente, dividida entre a Franca ‘setentrional ¢ os ingleses e, mais tarde, subjugada pelos franceses do Norte. Engels: «Os Debates sobre a Poldnia, em Frankfiirt», jeuvres, t. VIL, pp. 332333, Mega. 1 - MARX-ENGELS 14. A literatura dos canhestros Karl Heinzen (1809-1880), publicista democrético, atacou os comunistas na Deutsche Briisseler Zeitung. En; els €, pais: tarde, Mars, respondemlhe no mesmo jornal e denunciam o cardcter bstracto e antehistorico das suas con- Gepebes politicas e sociais. Aos olhos de Heinzen, a monarquia deve-se A ae mente a uma aberragao secular do espirito humano e a questao social re Sumese por completo no seguinte dile mmonarguia ou rep meiog meses. de Outubro e Novembro de 1847, Marx publica, no Deutsche itiescler Zeitung, uma série de ar fos sob 0 titulo’ geral de «A Critica Wforalizante ea Moral Critica. Contri- buiedo para a Histéria da Cultura Ale- mas Contra Karl Heirzens, No primeiro esses artigos, publicado emt 28 | de Outubro de 1847, Marx v8 nos escritos de Heinzen uma eee da litera- ura dos eanhestros do século XVI. ante a €poca da Reforma, surgiy enn peace dee tun genero de literatura, cujo nome 18 de si € surpreendente —a literatura dos canhestros. Actual mente, encaminhamo-nos para uma época de perturt are andlogs 2 00 stot ee literatura, dos. cankestros. © alemies, apareca de novo a litera anhestros. O i lo progress histérico leva a melhor 2 Histo estftico que esse género de escritos provoca € pro vocava jA nos sécalos oe ‘XVI, mesmo entre as pes ico desenvolvido, . ee Besta, pelulante, repleta de bravatas © fanfarronices (), pretenciosamente grosseira no ataque © histéricamente Bensivel a grosseria dos outros; brandindo a espada © ges: ticulando com um inaudito desperdicio de forgas, para Geraimente: 2 maneira de Thras,, (Thvaso & uma personagem tagitiatSGutmtals ae uma comédla de Tetcie) 9 SOBRE A LITERATURA E A ARTE. pois no the utilizar o fio; pregando a moral sem paranca ¢ violandoa constantemente; misturando da maneira mais cémica o patético e o vulgar; preocupada apenas com a coisa em si e perdendo-a de vista continuamente; opondo com a mesma suficiéncia a semi-educagdo livresca, peque- no-burguesa, @ sabedoria popular e aquilo a que 9 «bom senso comums a ciéncia; transbordando até ao in- finito de uma imprecisa leviandade satisfeita; dando uma forma plebeia a um contetido pequenoburgués; lutando contra a expresso literdria, a fim de Ihe conferir, por assim dizer, um cunho puramente corporal; deixando, vo- luntariamente, aparecer, em segundo plano, a pessoa fisica do escritor que se pela’por executar um mimero qualquer, mostrar os ombros largos, esticar os membros em ptiblico; gabando um espirito sao mum corpo sao; infectada pelas querelas mais subtis e pela febre da fisica do século XVI; acorrentada a nogdes iticas estreitas, fazendo apelo, contra a ideia, a uma prdtica mesquinha; tonitruando con: tra a reacedo'e reagindo contra o progresso; na sua inca- pacidade de pintar o adversdrio a uma luz ridfcula, cobrin- doo, de maneira ridfcula, com toda a gama de injurias; Salomao e Marcolph, Dom Quixote e Sancho Pana, o idea- lista e o domésticamente prdtico na mesma pessoa; uma forma grosseira de indignacéo, uma forma de grosseria indignada; e, pairando sobre tudo isso, a consciéncia ho- nesta do homem de bem, contente consigo préprio— como tal se apresentava a literatura dos canhestros do século XVI, Se a meméria ndo nos falha, o espfrito popular eri- giulhe um monumento Irico, na ‘cangio de Heinecke, 0 valentao. O senhor Heinzen tem o mérito de ser um dos restauradores da literatura dos canhestros e de aparecer, sob esse aspecto, como uma das andorinhas alemas da primavera dos povos, que se aproxima. Marx: «A Critica Moralizante e a Moral Critica», Oeu- vres, t. VI, pp. 298-299, Mega. 15. O Renascimento 0 estudo moderno da natureza —o iinico que atingiu um desenvolvimento cientifico, sistemAtico e completo, a0 contrdrlo das, intuigoes genais dos fildsofos da natureza na Antiguidade e das descobertas dos Arabes, extrema- 93 ‘MARX-ENGELS mente importantes, mas esporédicas e desaparecidas, fre Guentemente, sem resultados — esse estudo moderno da natureza data, como toda a historia moderna, da poderosa epoca que, és, alemaes, designamos por ‘Reforma, de gpordo worn a infelicidade nacional que nos atacou nesse tempo (), que os franceses chamam Renascimento @ 0s ftalianos 0" Cinguecento, embora nenhum desses termos hina completamente a ideia. & a época que comeca com a segunda metade do século XV. A realeza, apoiada nos ‘burgueses das cidades, destruiu o poderio da nobreza feu- bere criow grandes monarquias, baseadzs, essencialmente, $a nacionalidade. Foi nesse Ambito que se desenvolveram ag nagdes europelas modernas ¢ a sociedade burguesa tam: $Sm moderna, E, enquanto a burguesia ¢ a nobreza se Petam ainda, a guerra dos camponeses, na Alemanha, veio, proféticamente, anunciar as futuras lutes de classes, pore Birbm cena n&o so os camponeses revoltados —o que dei- wo g'de ser uma novidade— mas também, por detrds deles, de precursores do proletariado moderno, empunhando 2 bandeira vermelha e reivindicando a comunidade dos bens. Nos manuscritos salvos depois da queda de BizAncio, nas estdtuas antigas desenterradas das ruines de Roma, o Oci- Gente descobria, surpreendido, um mundo novo — a antigui- Gade grega, As suas formas resplandescentes dissipavam os fattasnas da dade Média. A Itdlia desabrochava num flo- rescimento artistico imprevisto, que parecla um reflexo da antiguidade cléssica ¢ que nunca mais seria atingido. Na Itdlia, na Franca, na Alemanha aparecia uma literatura hhova’a primeira literatura moderna, A Inglaterra e a Espa- ha tiveram pouco depois a sua época literdria cldssica. Rs barreiras do antigo orbis terrarum foram destruidas. Pela primeira vez, a terra era verdadeiramente descoberta. Estavam criadas as bases para o comércio mundial poste- «Hor e para a passagem do artesanato & manufactura que, por sua ver, deveria servir de ponto de partida. & grande Pofisiria moderna. A ditadura espiritual da Tgreja foi, des: india, A maioria dos povos germanicos rejelitou-a direc: famente, adoptando o protestantismo, enguanto que, entre iamovos romanicos, um vivo espirito de livre exame, her- dado dos Arabes e alimentado pela filosofia grega nova GW) A efervescéncia revoluciondria do povo alemfo, que, no plano reli: 10; Tadurida pela Reforma, manifestow-se, no plano politico, pela siose. fo, Megucna qobreza e pela. guerra dos camponeses. A vitéria Feral da. Pega er por amsto. tempo 0 progresso Sconce, © See an Alemania, nese ealdo que Bogs te’ Ge ‘infelicidade ne SOBRE A LITERATURA E A ARTE mente descoberta, se enrafzava is © materialismo do século Rv “7 mais © Preparava ‘oi o maior abalo progressista que a humani nheceu em odot os fompos. ra uma dooce que tian pensamento, da’ pando ¢ do Corscter pussta pela, cus nsamento, e do cardcter, gigantes pel: universalidade e pelo seu saber. Os homens caram 98 fundamentos do domfnio moderna da ‘ulguesia ram tudo, excepto burgueses tacanhos. Pelo contrario, 0 esp!- rito aventureiro do tempo tocouos mais ou menos a todos fiomem Sgportante due nig. tvcase Pete aranden een tivesse feito ide i gue nao falasce quatro ou cinco linguas, que nio brilhasse em varias especialidades. Leonardo ‘de Vinci foi nao sé um grande pintor, mas também um matemético, um me- ganico e um engenheiro eminente, a quem os ramos mais diversos da fies deve importantes descobertas, Albert vintor, gravador, escultor, arquitecto e inven- rad, RR Sa Se aaa # are ideias retomadas, mais tarde, por Montalembert pela arte moderna de fortificacdes’ na Alemanha. Ma- guiavel fol homem de Estado, historiador, poeta ao mes- , © primeiro escritor militar digno dess os, tempos modernos. Latero nao s6 limpou as cavalaieas eee mas também as da lingua alema. Criou joderna e compés 0 texto isi hino triunfal que foi a Marselhe So Sure OS herdis dessa época nto cram ainda escravos da thvisho do (Spor ainda escravos da divisdéo do trabalho, cujas influéncias limitath ilaterais, se , a ‘vas, unilaterais, se fa- zem tantas vezes sentir entre os sucessores. Mas y er . Mas or exceléncia, os caracteriza ¢ 0 facto de quase todos eles 7 fo da sua época, participarei ue pratica, tomarem partido e _. cOnH bate, um pela palavra e pela escrita, outro pela espada e, frequentemente, por todas 20 mesmo tempo. Daf essa ple- ca de caracter que os fazem surgir he mens completos. Os sébios de gabinete sa excepoao. Ou. se trata de gente de segunda e terceira ordem, ou de 1 its teus prudenfes que no querem queimar os dedos, Engels: Introdugdo a. «Dialécti 95531, Baltlons Sociales 7055 4" Naturezar, pp. () «Bi ort ecBine fgg Bure ist unser Gotte (0 Nosso Deus & uma Sétida 95

Você também pode gostar