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UMA LEITURA DA HISTORIA DA EDUCAGAO SOB A PERSPECTIVA DO GENERO Guacira Lopes Louro* Atualmente véem se tornando mais freqiientes as referéncias A questo do gé- nero ~ nas Ciéncias Sociais, em geral, ¢ na Educagdo, em particular. Acompanhando um movimento de carter internacional, que tomou impulso na década de 70, também no Brasil surgiram, nesta €poca, grupos de estudos no meio académico que passaram a pesquisar questdes sobre a mulher ou a refletir sobre as relagdes homem/mulher em nossa sociedade. Muitas vezes esses grupos académicos estavam articulados ou eram alimentados pelos movimentos organizados de mulheres que se expressavam no pafs, lutando no s6 contra a dominagio feminina mas, em virtude do contexto politico econémico brasileiro, lutando pela anistia, contra a alta do custo de vida, por creches, etc. Num desdobrar desse movimento, muitos nucleos e grupos de estudos foram criados nas universidades brasileiras, alguns de cardter interdisciplinar, outros vin- culados a uma 4rea especffica. As pesquisas, que durante muito tempo tiveram um cardter mais descritivo e até mesmo denunciador (estudando, por exemplo, na érea da educag%o, os processos de socializago das meninas, ou 0 sexismo dos livros didaticos), passaram, mais recentemente, a construir teoria, ou seja, buscaram, a partir da descrigo ¢ da andlise, ensaiar explicagSes, promover articulagdes com paradigmas ou quadros tedricos “cl4ssicos” ou emergentes, propor novos paradigmas’. Esse mo- vimento indica, pois, uma trajetéria nos estudos, revelando uma certa vitalidade, * Faculdade de Educagéo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 1. Vérios(as) estudiosos(as) jé ensaiaram classificagdes com seferéncia as diversas posturas te6ricas que feministas e pesquisadoras tém assumido na abordagem dessa temdtica. Lembro, por exemplo, Alison Jaggar e Paula Rothenberg (1984) que, buscando apontar as matrizes teéricas das diferentes anélises sobre a opressio da mulher, identificaram as perspectivas do “conservantismo”, do ‘feminismo liberal”, do ‘‘marxismo tradicional”, do “feminismo radical”, do “feminismo socialista” ¢ do classificagio, 20 criticar as possibilidades e limites - para a anslise hist6cica - da perspectiva das feministas radicais (também chamadas de te6ricas do patriarcado), das feministas marxistas ¢ femi- nistas de inspiracéo psicanalitica. Proj, Histéria, Sdo Paulo, (11) nov. 1994 3 notada pelas divergéncias, confluencias e polémicas. Deste modo, especialmente nos Ultimos anos, passam a se colocar algumas questdes conccituais, dentre elas a propria designagao da drea, isto 6, passa-se a disculir uma dupla denomina “estudos da mulher” ou “estudos de género” (ou de “relagdes de género”). Nao me proponho aqui a reconstituir esta discusso. Creio que basta indicar que algumas estudiosas preferem a primeira denominacio por acreditarem que deixa explicito de quem se quer tratar e chama a atengio para um sujeito/objeto de estudos tradicionalmente escondido ou negado numa ciéncia androcéntrica; outras estudiosas preferem 0 con- ceito de género, j4 que este significa “a construgdo social e histérica dos sexos”, ou seja, pretendem, ao utilizar esse conceito, enfatizar o cardter social - ¢ ao mesmo tempo relacional — dos dois sexos (portanto nessa abordagem supGe-se que os estudos se dediquem a construgdo do feminino e do masculino). Assumindo essa tltima posicdio, desejo examinar aqui especificamente a abor- dagem hist6rica da educagio sob a perspectiva do género. Potencialidade e Relevancia do Género para os Estudos Histéricos Na perspectiva dos estudos de género, uma refertncia recorrente, referéncia hoje quase “clissica”, € 0 texto de Joan Scott: “Género: uma categoria «til para andlise hist6rica” (1990), onde a autora propde uma leitura da Hist6ria em que essa categoria tenha realce, buscando articulé-la com as categorias de classe e raga. Vale lembrar que embora numerosas(0s) estudiosas(os) afirmem a necessidade de articular essas diferentes categorias (raga, classe e género) e sejam mesmo ensaiadas aproxi- mages tedricas que as levem em consideragdo (Joan Scott, 1990; Madeleine Arnot, 1987; Jean Anyon, 1990; Heleieth Saffioti, 1992; Michael Apple, 1987, 1988 e ou- tos), este ainda é um terreno onde todos se movimentam com extrema cautela, onde sho freqiientes os tropegos e onde, algumas vezes, acaba-se por preferir as rotas mais conhecidas.” Joan Scoot constréi a sua definicdo de género na intengdo de propor — princi- palmente aos(as) historiadores(as) - uma ferramenta com potencial analitico. Afirma inicialmente que “‘o género é um elemento constitutivo de relagdes sociais fundadas sobre as diferencas percebidas entre os sexos”. Segundo ela, onde ou como se ob- 2. B isso que se pode depreender pela leitura de Mulher e Educagdo Formal no Brasil: Estado da Arte e Bibliografia, de Filvia Rosemberg ¢ outras, 1990, onde essas pesquisadoras da Fundagao Carlos ‘Chagas realizam uma sintese abrangente dos estudos produzidos em nosso meio sobre esta temitica, destacando, entre eles, os estudos de Histéria da Educacdo. 32 Proj Histéria, Sto Paulo, (11) nov. 1994 servaria esse elemento? Nos simbolos culturalmente invocados por uma sociedade; Nos conceitos normativos que interpretam esses simbolos e que usualmente estio expressos nas doutrinas religiosas, educacionais, cientificas, politicas e juridicas; na politica, nas instituigdes sociais e na propria organizacdo social, e por fim, nas identidades subjetivas, ou seja, “nas maneiras pelas quais as identidades de género s&o realmente contrufdas” pelos sujeitos concretos (Scott, ob. cit., p.15). Outro ele- mento importante na sua definigao de género refere-se a afirmacdo de que este € “um primeiro modo de dar significado as relagdes de poder’’. Assim, uma vez que os conceitos de género que atravessam uma sociedade acabam por estruturar tanto a percepgdo quanto a organizagéio - concreta e simbélica - da vida social, decorre daf que “‘o género tora-se envolvido na concep¢ao e na construgao do poder em si mesmo” (Scott, ob. cit. pp.14-16). Portanto, segundo essa autora, o género seria um campo no qual foi e é vivida a historia, e, para os(as) historiadores(as), um elemento que pode provocar nao s6 novas quest6es, mas novas respostas para velhas questées, além de colocar como ativos e visiveis sujeitos que usualmente t¢m estado escondidos nas anélises mais tradicionais. Além desse instigante texto de Joan Scott, outra fonte inspiradora para a pes- quisa hist6rica voltada para a questo do género pode ser encontrada nos trabalhos de Michelle Perrot, alguns deles j4 traduzidos, como € 0 caso do livro Os excluidos da historia: operdrios, mulheres e prisioneiros, ou de sua contribuigdo em niémero especial da Revista Brasileira de Historia. Mulher e 0 Espago Piiblico (n° 18, 1989), em que a estudiosa tabalha com Prdticas da Meméria Feminina. Com estas duas pesquisadoras estou de algum modo acenando para dois p6los tradicionais nos estudos de género: os Estados Unidos, onde j4 ha algumas décadas os Women’s Studies constituem-se em drea de pes- quisa e de estudos em nfvel de graduagio e pés-graduagao e cuja popularizagao e abrangéncia podem ser observadas, entre outros indicadores, pela impressio- nante quantidade de publicagées; e a Histoire des Femmes, campo de estudos s6lidos, na Franga.? Penso que estes j4 podem servir de indicadores da articulagdo Histéria e Género e demonstrar 0 esforgo de construgao tedérica e de pesquisa empirica que vem sendo empreendido internacionalmente nesta temética. Parece-me também que nao seria 3. Sobre essa produgdo Eliane Marta Lopes construiu uma sintese bastante interessante, intitulada Histoire des Femmes: uma Revisto Bibliogrdfica, (1990). Ainda dentro do cenério intelectual francés, vale lembrar o ndmero especial da revista Cahiers du Grif, intiuulado Le genre de l'histoire. Também poderia ser incluido o recente livro organizado por Peter Burke (1992), New Perspectives on Historical Writing, no qual, a0 lado de outras abordagens, encontra-se um capitulo sobre Historia da Mulher, escrito por Joan Scott. Proj. Histéria, Sao Paulo, (11) nov. 1994 33 necess4ria muita imaginagdo para estender essas reflexes para a Historia da Edu- cago. No entanto, & de se perguntar por qué - se j4 dispomos de pesquisas e le- vantamentos (inclusive da producao brasileira‘) sobre a tematica de Género — e até mesmo temos grupos ¢ niicleos de estudos especialmente dedicados a questdo, ainda precisamos dispender tantos esforgos para legitimar sua validade ¢ potencialidade analitica. Sou tentada a repetir um comentério que tenho feito muitas vezes (Louro e Meyer, 1992). A 4rea da Educago por muito tempo buscou garantir seu espago no mundo académico através da utilizagio de um paradigma experimental-positivista de andlise que, amparando-se em pré e pés-testes, varidveis dependentes ¢ independentes, € vistoso aparato estatistico, logrou construir uma imagem de “‘cientificidade”’. 6 ainda relativamente recente 0 abandono, ou pelo menos a secundarizagio, deste paradigma. Agora as pesquisas tém procurado “‘compreender a educagio articulada ao todo social” No entanto, este “todo social” tem sido por sua vez entendido de modo reduzido, ou seja, fundamentalmente, como a sociedade capitalista, dividida em classes sociais antagdnicas. Apenas eventualmente sao feitas mengdes A existéncia de outras con- tradigGes sociais (como as oposigdes de género, raga, idade, religido). Assim sendo, parece ainda restar aos que assumem o desafio de trabalhar com tais contradigdes 0 nus de reafirmar sua validade. Na tentativa de responder a este desafio, penso que duas vias sio colocadas para uma leitura da Hist6ria da Educagao sob a perspectiva do género. A primeira delas consiste em privilegiar a pesquisa e 0 ensino apoiados nas Pesquisas ¢ textos de Histéria da Educagio realizados explicitamente sob o recorte do género. Refiro-me aos estudos sobre instituigGes educacionais masculinas ou fe- mininas, estudos sobre os processos de socializagdo/educagao de meninas e meninos, Pesquisas sobre a construgao da feminidade ou masculinidade (na infancia, na ado- lescéncia, nas diferentes classes sociais, em diferentes épocas, etc.), ou ainda as andlises de determinados processos histrico-educacionais onde o género é realcado, como, por exemplo, 0 processo de feminizagaio do magistério, desenvolvido no Brasil ao final do século XIX. Uma outra via — talvez menos explorada — parece-me ser a de uma leitura “de género”, ou com o viés do género, das pesquisas hist6ricas e de Histéria da Educagdo em geral, ou seja, das pesquisas nas quais esse nao foi considerado ~ pelo menos 4. Com referéncia & produgdo brasileira, alguns levantamentos criticos interessantes tém sido feitos em especial pela Fundagio Carlos Chagas, tanto com referencia & Educacio, como a Histéria e Histéria da Educagao. Além do texto Muther e Educacdo Formal no Brasil: Estado da Arte e Bibliografia, deve ser lembrado o recente miimero de Cademos de Pesquisa (n° 80, fev., 1992). 34 Proj. Histéria, Sd0 Paulo, (11) nov. 1994 explicitamente — como categoria analitica. Para compreensao desta abordagem, tomo emprestada uma expresso de Eliane Marta Lopes que falava, em sua tese de dou- torado, em “fazer uma leitura educativa do movimento da historia”. Assim, 0 que proponho & fazer uma leitura “de género” da hist6ria (ou da historiografia de que dispomos), uma leitura com a preocupago de desvendar o género, interessada na observagio da construgdo (implicita ou explicita) dos géneros, uma leitura capaz. até mesmo de ler o siléncio, de perceber na omissio da questo, na sua negagao, uma forma determinada de concepgio dos géneros. Nessa via alargam-se imensamente as fontes para a historia da educagao sob a perspectiva do género, uma vez que nao mais ficamos restritas aos(as) pesquisadores(as) identificados(as) com tal tematica, mas temos a nosso dispor uma produgdo historiogréfica muito mais ampla. Tal pos- tura exigiré, sem dtvida, 0 desenvolvimento de uma sensibilidade para a questo, 0 que, por sua vez, também iré supor uma melhor instrumentalizagao conceitual € te6rica sobre género. Evidentemente essas duas vias de andlise nao so excludentes e, enquanto his- toriadoras(es) da educagio, certamente podemos cruzd4-las. Observo também que, especialmente, a produgiio historiografica mais recente (que tem utilizado aportes de outras 4reas, como da antropologia, da sociologia, da psicandlise, da literatura) traz um material muito rico para aqueles(as) capazes de decodificar os simbolos culturais, as doutrinas normativas, as formas de organizagao social € os sujeitos concretos {elementos que, como lembrou Joan Scott, podem expressar os conceitos de género de uma sociedade). Penso que é importante notar, ainda, o plural empregado, ou seja, venho me referindo sempre aos conceitos de género. Se, como vimos antes, quando falamos em género estamos nos referindo a uma construgao social ¢ hist6rica de sujeitos femininos e masculinos, entio € imprescind{vel entender que h4 diferentes constru- g6es de género numa mesma sociedade - construgdes estas que se fazem de acordo com diferentes modelos, ideais, imagens que tém as diferentes classes, racas, reli- gides, etc., sobre mulher ¢ sobre homem. Creio que devemos lembrar também que hA diferentes construgdes de género numa dada sociedade em contextos hist6ricos diferentes (0 que por sua vez supde dizer que o género tem hist6ria, que 0 feminino eo masculino se transformam histérica e socialmente). Por fim, em todos esses processos, ao se pensar na construgdo, parece-me que est implicada a idéia de so- cializagdo, de formagiio, de educacao. Dessa perspectiva decorre, no meu entender, as possibilidades ~ ¢ as potencialidades ~ de uma leitura hist6rica da educacao sob a perspectiva do género. Proj, Histéria, So Paulo, (11) nov. 1994 35 Género: Categoria Histérica e Bioldgica Repetidas vezes j4 se afirmou que 0 conceito de género pretende enfatizar a construgo social dos sexos. Sabemos mesmo que o uso do conceito teve, inicial- mente, entre outras motivagGes, a preocupagdo de acentuar 0 carter social como uma resposta, como um contraponto as interpretagSes biologistas, que viam na di- ferenga sexual um determinante das posigdes sociais hierarquicamente diferentes de homens e mulheres. Nao podemos esquecer que um amplo leque de estudiosos atribui as caracteristicas bioldgicas os tradicionais arranjos sociais dos géneros, ou seja, a delegagio aos homens das atividades publicas, da administracao e da politica, e as mulheres, das atividades privadas, do cuidado e educagiio das criangas, dos servigos domésticos ¢ de manutengio familiar. Em outras palavras, a supremacia social mas- culina e a subordinagdo feminina sio explicadas como sendo de algum modo inevi- t4veis, ou, para alguns intérpretes, como preferfveis. E portanto para se contrapor a essa posigao — a qual, grosso modo, poder-se-ia classificar de conservadora® - que inicialmente varias pesquisadoras americanas pas- saram a utilizar 0 conceito de género, procurando “‘nsistir sobre o cardter funda- mentalmente social das distin¢des fundadas sobre o sexo’ (J. Scott, ob.cit., p.5). Como uma decorréncia desse caréter social, h4 que lembrar que o género, bem como a classe, nao é uma categoria pronta e estética. Ainda que sejam de naturezas diferentes e tenham especificidade propria, ambas categorias partilham da caracte- ristica de serem dindmicas, de serem construfdas ¢ passfveis de transformagao. Ge- nero e classe nao so também elementos impostos unilateralmente pela sociedade, mas com referéncia a ambos se supde que os sujeitos sAo ativos e ao mesmo tempo determinados, recebendo e respondendo as determinagées e contradig6es sociais. Daf advém a importancia de se entender o fazer-se homem ou mulher como um processo € nao como um dado resolvido no nascimento. O masculino e o feminino so cons- trufdos através de prdticas sociais masculinizantes ou feminizantes, em consonancia com as concepgdes de cada sociedade. Integra essa concepedo a idéia de que homens e mulheres constroem-se num processo de relacdo. No entanto, embora praticamente tudo do que afirmei sobre género também possa ser aplicado em relagao A classe (pois nesse caso também nio se é burgués, proletério ou camponés de modo acabado e¢ estatico, mas 0 sujeito constréi-se na classe e, dialeticamente, essa constr6i 0 sujeito), ha algumas diferencas fundamentais 5. O termo conservatism é utilizado por Alison M. Jaggar e Paula Rothenberg, em Feminist Frameworks, no estudo de diferentes teorias para a opressio feminina, para classificar varios autores que compreen- dem essa opresso como biologicamente determinada. 36 Proj. Histéria, So Paulo, (11) nov. 1994 entre essas categorias. F importante lembrar que o género nao ¢ apenas social (em- bora algumas afirmagées possam levar a essa idéia), existe nele um componente biolégico. Como afirma muito apropriadamente Robert Connell (1990), 0 género é uma categoria ao mesmo tempo biolégica e histérica. Diz ele, estabelecendo uma analogia com as colocagdes de Thompson sobre classe: Vemos as relagdes do patriarcado como relagées historicas, construfdas pelas, e nas, priticas sociais, com as categorias fazendo-se a si proprias tanto quanto elas sdo feitas... Mas resta um fato inquietante. Aquelas categorias, “homens” “mulheres” sdo trans-histéricas em algum sentido, elas sdo simultaneamente sociais ¢ biolégicas (...). Temos portanto que considerar a relagao da biologia com a histéria... (Connell, 1990, p.90). Talvez seja necessirio desenvolver um pouco mais essa afirmagéio e suas con- seqiiéncias. Ao nascer, os sujeitos j4 trazem determinadas caracteristicas biolégicas que os predispdem a viver como homens ou mulheres, mas todo um conjunto de outros determinantes (sociais, psicolgicos, culturais) podem levé-los a construir-se em consonancia ou em oposicao as caracteristicas biolégicas. Nao so poucos os exemplos de homens criados como mulheres em conseqiiéncia de enganos na iden- tificagio de seu sexo no momento do nascimento e para os quais a socializacio (como sujeito feminino) acabou sendo de algum modo prioritéria e prevalente (a experiéncia oposta, com referéncia a mulheres criadas como homens também ocorre). H4, pois, uma conjuncao de fatores que se combinam para construir os sujeitos como homens ou mulheres. No entanto poder-se-ia argumentar que esse primeiro exemplo — embora forte — € muito simplista. Creio que ndo faltam exemplos de outras indicagSes, mais sutis e talvez menos perceptiveis, dessa imbricagiio entre o social e a biologia®. Sabemos todos que hé um jeito de ser feminino e um jeito de ser masculino, h4 comporta- mentos, falas, gestos, posturas fisicas, além de atividades e fungdes, que sdo social- mente entendidas como adequadas, “naturais”, apropriadas, etc., para as mulheres ou para os homens. Nossa tendéncia com referéncia a muitas dessas caracteristicas € percebé-las quase como uma extensiio da “natureza” de cada sexo. Assim, os gestos largos, a fala forte, os passos amplos, a dedicagdo a tarefas que exigem forga fisica, 0 maior desembarago nas agGes publicas, etc., sio usualmente atribufdos aos homens; enquanto que, em contrapartida (j4 que 0 conceito de género € relacional), se espera que as mulheres sejam mais discretas no falar e no andar, tenham gestos 6. Para pensar sobre essa imbricagéo valho-me especialmente de Pierte Bourdieu, em La domination ‘masculine, Actes de la Recherche, n° 84, set., 1990. Proj. Histéria, Silo Pauto, (11) nov. 1994 3” mais delicados, sentem-se e movimentem-se com graga € pudor, desempenhem-se com maior desenvoltura no cuidado de criancas € no trato com assuntos domésticos, etc. Sem langar mao de um exemplo que é lugar comum — “homem nao chora’’ — hA sem duvida varias outras manifestagdes fisicas decorrentes de imposigdes sociais diferenciadas para homens e mulheres. Praticamente todo o movimento corporal € distinto para os dois sexos: 0 andar balangando os quadris € assumido como feminino, enquanto que dos homens espera-se um caminhar mais “firme” (palavra que no diciondrio vem associada & seguro, ereto, resoluto - todas expresses muito mascu- linas ¢ positivas), 0 uso das maos acompanhando a fala, o direcionamento do olhar, © posicionamento de pernas no sentar, etc., enfim muitas posturas e movimentos sao marcadas (programadas) para um e para outro de modo diferente. Para os homens quase niio se admite a expresso de timidez e, em conseqiiéncia, deles se exige o olhar direto, o enfrentamento ou até 0 afrontamento do outro; das mulheres pode-se esperar que ruborizem diante de determinadas situagGes ( efetivamente essa reacdo tem muita possibilidade de ocorrer, independentemente do controle que dela se pre- tenda ter). Acaba-se por incorporar (ou seja, acaba-se por “dar uma forma corpérea a”) uma série de elementos sociais sexualmente diferenciados, tornando-os aparen- temente naturais para cada um dos sexos. Essa temética € trabalhada brilhantemente por Pierre Bourdieu, no artigo La domination masculine (1990). Considerando a dominagao masculina como a “forma paradigmatica da violéncia simbélica”, Bourdieu demonstra (apoiado especialmente pum estudo etnogr4fico) a somatizagao das relagdes de dominacao e a construgao social do sexo, além de desenvolver outros temas correlatos. Afirma que € no pro- cesso de socializagdio/educago que se inculca o “habitus sexuado e sexuante”, con- forme sua teoria, ou, dizendo de outra forma, constroem-se os sujeitos masculinos e femininos, e estes no séo construidos apenas socialmente, mas corporalmente, j4 que cada um dos sexos aprende gestos, posturas, falas, disposigGes, etc., a ele de- signado por sua sociedade; até mesmo a percepgao da realidade € sexualmente con- formada, ou é direcionada de acordo com o género. Bourdieu afirma isso de modo muito expressivo, ao dizer que “‘o golpe de forga que o mundo social exerce sobre cada um de seus sujeitos consiste em imprimir em seu corpo (...) um verdadeiro programa de percepgao” (ob. cit., p.12). Certamente, nao h4 como escapar da idéia de educagdo (no seu sentido mais amplo) que est implicita nesse processo. E preciso ent&o evocar o trabalho de formagao que se realiza, seja através da familiarizagao com um mundo simbolicamente estruturado, seja através de um trabalho de inculcagao 38 Proj. Histéria, Sao Paulo, (11) nov, 1994 coletivo, mais implicito do que explicito, do qual fazem parte principalmente os grandes rituais coletivos, ¢ pelo qual se opera uma transformagao durdvel dos corpos ¢ da maneira usual de usé-los (Bourdieu, op. cit,, p.11). Essa imbricagiio entre 0 corporal ¢ 0 social nfo s6 se manifesta de modo diferen- ciado em sociedades diferentes, mas também pode ser acompanhada (em transformagio) ‘nO processo histérico, o que permite evidenciar mais claramente as relagdes enue biologia ¢ hist6ria, Nas palavras de Connell, “os processos sexuais no escapam da hist6ria” (obcit., p.90). E, efetivamente, devemos admitir que a escolha do objeto sexual, as con- vengdes sociais de seduco, até mesmo a “técnica de copulacao”, como ele lembra, so sempre referidas socialmente. Também € preciso entender a homossexualidade ou a he- terosexualidade dominante como social ¢ historicamente determinadas. Uma sociedade, em dado momento histérico, decide (e essa decisio d4-se usualmente através de disputas e conflitos ¢ no de modo consensual) 0 que ou quem € adequado sexualmente: quais os sujeitos possfveis de elei¢ao sexual, quais as formas de aproximagiio e de realizagiio da conjungo sexual, qual 0 momento na vida de seus membros em que essa aproximagao deve acontecer, etc. Enfim, é preciso observar o quanto a sexualidade € social € his- t6rica. Podemos também pensar em outros exemplos, para além do terreno direta- mente ligado a sexualidade. As pr6prias etapas da vida de homens e mulheres sao historicamente determinadas. A infincia, da qual Philippe Arits (1986) demonstrou a construgao social ao longo dos séculos XVI a XVIII, ¢ muito mais do que um periodo marcado por caracteristicas fisicas, e sim, na verdade, um perfodo delimitado por fatores sociais (os quais, evidentemente, se transformam ao longo dos séculos). Poder-se-ia afirmar que cada sociedade indica quando seus membros atingem a ma- turidade, quando devem ter filhos, quando esto velhos, etc., ¢ que inimeras dessas indicages so diversificadas segundo o género. Connell ainda vai além, procurando demostrar que nao é apenas nas formas mais simples ou menos conscientes de nossa prética que podemos identificar essa relagao entre o social e 0 fisico. Conforme afirma, priticas sociais complexas e altamente conscientes, tais como as lutas de liberago, tém uma dimens&o corporal. As pessoas realmente sentem de forma diferente, tm uma sensibilidade intensificada e uma maior energia, no auge de uma greve importante ou num movimento de resisténcia, Numa revolugio a abertura das “‘portas da percepeo” toma-se uma experiéncia de massa (...). A tentativa de cortar a biologia da hist6ria s6 pode ter éxito ao custo de empobrecer a histéria (Connell, op. cit. p.91). Provavelmente ainda teremos muito que avancar na reflexdo sobre essas idéias, embora talvez possamos encontrar, em nossa propria historia de vida ou em nossas Proj. Histéria, So Paulo, (11) nov. 1994 39 observagées diretas, exemplos de situagdes nas quais 0 engajamento em processos em lutas coletivas implicaram ndo s6 tansformagio no plano das id¢ias e das representagdes, mas também investimento fisico, desenvolvimento da sensibilidade, mudangas de percepgdo e até mesmo superagao de limites corporais. Talvez seja interessante pensar que alguns dos elementos aqui citados também podem ser observados com relagao 4 classe, ou seja, também a classe (enquanto construgdo social) envolve o corpo — € novamente, valeria lembrar, que as classes podem apresentar diversidade quanto a expectativa de vida, quanto ao conceito de infancia, a idéia de maturidade (autonomia, inicio de vida sexual...), etc. No entanto, com referéncia ao género, além das diferengas fisicas realmente existentes ¢ obser- vaveis, a imbricagao do social e do biolégico est4 muito mais cnraizada culturalmente e portanto sfio muito maiores as possibilidades de se operar a naturaliza¢o do social e a socializacio do bioldgico. Penso portanto que s6 podemos avangar em nossa leitura da hist6ria (¢ da hist6ria da educago) sob a perspectiva do género, na medida em que efetivamente aceitarmos que essa categoria 6, a0 mesmo tempo, social (portanto histérica) e bio- l6gica. Ao minimizarmos (as vezes até ignorarmos) a dimensio biolégica presente no género, ficamos, no meu entender, extremamente vulncraveis as criticas e de certo modo acabamos por favorecer aqueles que pretendem ver nas distingdes fisicas a explicagiio final para as distingdes sociais. Se, inversamente, enquanto historiado- res(as), formos capazes de considerar ¢ integrar 0 biolégico & hist6ria, poderemos demonstrar que 0 proprio corpo € “ido” hist6rica e socialmente, ou seja, que também as concepgées sobre 0 biolégico dio-se num contexto sécio-histérico. Nao é dificil lembrar aqui, por exemplo, o discurso médico-higicnista divulgado no Brasil no final do século XIX sobre cada um dos sexos. Procurava-se, através de uma leitura “‘cien- tifica”’, demonstrar que homens e mulheres reagiam de modo diferente ao casamento ea vida familiar ou tinham distinto comportamento sexual e social devido as suas diferengas naturais, em Ultima instancia, as suas diferengas “‘anatmicas”. Como uma decorréncia dessa “‘constatagao”, apelava-se, entio, para a mulher como sustentéculo moral do lar, freio dos excessos masculinos ¢ educadora das futuras geragdes. Exem- plos como esse podem nos ajudar a compreender que as “capacidades” e as “limi- tagdes” de cada sexo so, usualmente, 0 resultado da posigao/do lugar que a sociedade atribui aos diferentes géneros. Mas se continuarmos com Connell, sera preciso entender que existe “uma dindmica biol6gica, isto 6, uma evolugio orginica”, ou seja, serd preciso aceitar que © biolégico também se transforma, tem ele também uma hist6ria. Para esse autor, € importante perceber que biologicamente homens e mulheres tém sofrido transforma- 40 Proj, Histéria, So Paulo, (11) nov. 1994 gdes ao longo dos tempos. Talvez, possamos lembrar aqui as transformagées fisicas resultantes de alteragdes em hdbitos alimentares, em condigdes de vida, ou em apa- ratos tecnolégicos que, incorporando-se ao cotidiano de grande parte da humanidade, acabaram por alterar algumas de suas caracterfsticas como duracdo média de vida, envelhecimento, capacidade motora, forga muscular, etc. No entanto, segundo Con- nell, 0 ritmo das transformagGes histéricas € muito maior do que 0 da evolugao organica e portanto domina seus efeitos. Desse modo, “‘hé uma dindmica social que incorpora, usa e transforma a diferenciagio bioldgica”, mas a cada nova geracdo reproduz-se essa diferenciacao biolégica, embora o mundo que 0 “material biolégi- co” encontre seja diferente (Connell, op. cit., p.91). Em outras palavras, deverfamos entender que cada homem ¢ mulher que nasce encontra um mundo hist6rico e social diverso das geragGes anteriores ¢ 0 seu ser homem ¢ ser mulher — ainda que mantenha certos atributos - também se transforma, nao s6 socialmente, mas até mesmo bio- Jogicamente, HA portanto, uma estreita articulagdo entre histéria e biologia, e no género temos integrado de modo indissohivel estas duas dimensdes. Somente um exercicio analitico ~ provavelmente inttil - 6 que poderd distinguir, separar, classificar 0 que € fisico e 0 que é social nos sujeitos masculinos e femininos. Se os corpos assumem a organizacdo social, a politica, as normas religiosas e culturais, também € através de manifestagées fisicas e corporais que se expressam as estruturas sociais. O pro- cesso de educacao de homens e mulheres supée portanto uma construgao social - e corporal - dos sujeitos. Implica na transmissiio/aprendizagem de princfpios, valores, conhecimentos, habilidades; supde também a internalizagdo de gestos, posturas, com- Pportamentos, disposigées ‘‘apropriados” a cada sexo. A Educagdo — no Feminino e no Masculino J4 foram apontados na se¢ao anterior alguns aspectos que marcam os proces- sos educativos de homens e mulheres. Talvez para alguns, isso possa parecer evidente. No entanto, nao creio que a historiografia tradicionalmente produzida em nosso meio esteja atenta para esse aspecto. Usualmente, escreve-se no masculino, ou seja, a grande maioria das pesquisas em educa¢ado (como em outras Areas) refere-se aos alunos, aos operdrios, aos pro- Sessores, aos adultos, etc., ou utiliza termos genéricos, como a classe trabalhadora, a elite brasileira, a burguesia, 0 professorado, 0 movimento sindical... A intengao primeira talvez seja de “‘dar conta” do coletivo, de fazer uma leitura mais geral e Proj. Histéria, Sto Paulo, (11) nov. 1994 4 generalizdvel dos fendmenos (¢ nada poderia ser mais enganoso do que isso!); outa interpretagdo posstvel seria perceber nestes estudos uma predominancia masculina, na suposic¢ao de que o que temos construido €, primordialmente, uma histéria da educacaéo dos homens. Penso que isso também ndo é feito. Acredito que a historia que usualmente se produz, ¢ pretensamente neutra, isto €, ao se referir aos movi- mentos de alfabetizacio de adultos dos anos cingiienta/sessenta, & disciplinarizagio imposta durante 0 Estado Novo, ao acesso das classes populares & escola, ou outros temas, usa-se 0 masculino genérico, mas lida-se de fato com atores sem corpo, sem cor, sem género. Na busca de um pretenso coletivo, 0 que se consegue ¢ uma ge- neralizag&o vaga, que expressa muito pouco a diversidade ¢ complexidade do tecido social. Isso ainda fica pior quando se pretende analisar a “uta social’’ apoiando-se apenas em classes antagénicas, ¢ esquecendo-se da heterogeneidade (de género, de raga, de etnia, de idade) que as atravessa. Parece-me portanto ser importante notar que, ao contrario do que alguns pensam, se temos poucos trabalhos sobre a educagdo de meninas e mulheres, talvez tenhamos ainda menos estudos sobre a formacao de meninos e homens. Uma histéria da educagdo na perspectiva do género pretenderia realgar esses processos de construgao. Volto mais uma vez a uma afirmagio anterior. J4 notamos a importincia de enfatizar que a construgiio de género nfo se dé através de um processo de imposigiio unilateral pela sociedade das atitudes e valores considerados adequados para meninas meninos que vao ent&o intemnaliz4-los. Ainda que essa afirmagdo possa parecer dispensdvel, porque Sbvia, muitas andlises assumem tal postura determinista ¢ me- cAnica. Sabemos que € impossfvel a imposigio externa, sobre sujeitos passivos, de atitudes, prdticas, habilidades, comportamentos, conhecimentos, sem que estes mes- mos sujeitos aceitem, rejeitem, contestem, adaptem, enfim, sem que, de miiltiplas formas, eles participem desse processo. Por outro lado, € preciso notar que em muitas 4reas, como no género, nao h4 uma posi¢ao tnica, consensual e harmoniosa que a sociedade na sua integralidade supde ser a adequada para ser transmitida, ensinada, inculcada, Nao 6 hd diferentes proposigdes em conflito, defendidas por grupos so- ciais em luta (e a histéria corre o risco, como lembra Joan Scott, de registrar como nica a posicao que foi vitoriosa em determinado momento), como hé também pro- Posig6es contraditérias e conflitantes denuo de um mesmo grupo social. Certamente, homens e mulheres sio provocados ou atravessados por diferentes contradigdes sociais e elaboram respostas individuais ou coletivas para lidar com essas contradigées. Diz Jean Anyon (1990), muito expressivamente: “o género en- volve tanto recep¢io passiva quanto resposta ativa as contradigGes sociais” (p.14). Segundo essa autora, temos que procurar perceber as “acomodagées ¢ resisténcias” 2 Proj Hist6ria, Sao Paulo, (11) nov. 1994 das mulheres (e eu acrescentaria também dos homens) as contradigdes sociais. Lem- bra ela que hd, freqiientemente, expectativas divergentes (até contradit6rias) para as mulheres (e provavelmente também para os homens) pertencentes a um mesmo grupo social. Podemos pensar, por exemplo, que muitas vezes se espera que as mulheres sejam déceis, mas ativas; submissas e capazes de tomar decisées em determinadas circunstincias; fortes, apoiando seus homens e sua familia nas situages dificeis, ¢ frdgeis, exteriorizando seus sentimentos com lagrimas, rubor; carentes da protecao de seus homens e protetoras de sua prole; pode-se esperar que mogas de camadas médias “fagam carreira”’ profissional ¢, a0 mesmo tempo, sejam perfeitas donas-de- casa e mies, etc. No entanto, conforme demonstra a pesquisadora, em situagdes de conflito, “‘nem as mulheres da classe operéria, nem as da classe média so passivas”. As formas de lidar com tais contradigdes podem ser miiltiplas, podem dar-se de modo coletivo ou individual, podem envolver acomodages e resisténcias e podem, segundo entendo, algumas vezes lograr(?) uma conciliagdo. Seria interessante obser- var como essas idéias s4o desenvolvidas em estudos referentes ao género masculino. No processo de educacao, ha portanto um conjunto bastante complexo e con- tradit6rio de expectativas e de atribuigdes designadas para cada um dos géneros, € ao(a) historiador(a) cabe estar atento(a) A complexidade desse processo. Com isso estou acenando para uma leitura mais ampliada da educagdo dos sujeitos, ou seja, suponho que também interessa ao estudioso da educagdo processos que se dio fora da escola, para além dela, mas que de um modo ou de outro acabam por atravess4-la. Quando Bourdieu fala de um “trabalho de formacao que se realiza, seja através da familiarizacéo com um mundo simbolicamente estruturado, seja através de um tra- balho de inculcacao coletivo” (Bourdieu, ob.cit., p.11), ele certamente pretende lem- brar as diversas priticas sociais que “educam” os sujeitos, muitas delas implicitas nas instituigdes sociais, na divisio/distribuigo dos espagos fisicos e do tempo, na vestimenta, na estética, etc.; e priticas explicitamente inscritas nas normas sociais, nas doutrinas religiosas, juridicas ou educacionais. Muitas vezes sabemos “ler” nos rituais de sociedades antigas processos de masculinizago ou feminizagio dos sujei- tos, € nao somos capazes de perceber nos nossos rituais, nos meios de comunicacao, nas “orientagdes vocacionais”’, nos atuais guetos profissionais ou escolares esses mesmos processos. Tornar-se homem ou tornar-se mulher (essa Ultima expresso feita cléssica por Simone de Beauvoir) supde portanto um trabalho de socializagio de sujeitos — ho- mens € mulheres - onde estes, longe de serem depositérios passivos de uma cultura, integram-na de forma ativa e propria. Esse processo também longe de ter um final, um momento em que est4 “‘pronto”, conclufdo, € um processo dinamico, que tem Proj, Histéria, So Paulo, (11) nov. 1994 a potencialmente possibilidades de ser modificado, transformado - € ndo s6 porque os sujeitos, com suas trajet6rias pessoais, sofrem crises ou modificagdes, mas também porque as sociedades transformam-se, revolucionam-se, podem assumir outros modos de produgio ¢ de reprodugio da vida, podem admitir outros valores, novos simbolos, outras nomnas, outras representacdes. Seriam muitos os exemplos que poderfamos buscar para ilustrar essas afirma- des. Uma leitura da historia atenta a tais questées poderia nos permitir, por exemplo, perceber na sociedade brasileira do infcio do século, a diversidade de processos edu- cativos que eram empreendidos para homens e mulheres de diferentes classes sociais. Refiro-me aqui ndo apenas as diferengas na educacdo escolar proposta para meninos meninas das classes proprietérias ¢ trabalhadoras, mas também, aos processos edu- cativos mais amplos que eram difundidos fora do espaco escolar e buscavam formar os novos cidadaos ¢ os novos trabalhadores para a nascente Repiblica Brasileira. A “construcéo de uma nova ideologia do trabalho”, como lembra Chalhoub, que era indispens4vel para exorciz4-lo do estigma da escravidao e que deveria lig4-lo 4 idéia de progresso, passaria a ser inculcada por diversas instincias e de modo diversificado conforme os grupos sociais. Em especial na formagao do novo traba- lhador atravessar-se-iam todas as esferas da vida dos sujeitos, buscando disciplinar nao apenas seu trabalho, mas também suas relagées familiares, a distribui¢’o de seu tempo de lazer, enfim, todo o seu cotidiano, e isso ndo se daria somente através de um processo de persuasio e educago, mas também através da coergao, da vigilincia e da repressao. Certamente, 0 novo conceito de trabalho seria difundido por toda a sociedade, mas, como nela haveria trabalhadores e trabalhadoras, homens e mulheres das classes proprietérias, homens ¢ mulheres brancos, negros e mulatos, brasileiros ¢ imigrantes, seguramente diferentes idéias ¢ posigSes diante do trabalho deveriam ser construfdas. A forma de concebé-lo - ¢ ao seu contraponto, 0 6cio ~ teria de ser diferente conforme os diferentes sujeitos sociais. Atividades intelectuais e de geréncia para os da elite, servigos manuais para as classes populares, trabalhos préprios para mulheres e préprios para homens, corpos bronzeados e musculosos para os traba- Ihadores, peles brancas e lassas para a elite, “vocagdes” masculinas e femininas, um. 6cio admitido e adequado para as mulheres da elite, e um 6cio negativo, a ser com- batido nas classes populares, enfim disposigées para diferentes atividades segundo os diferentes grupos sociais. Todos esses processos sociais eram ainda acompanhados de um “discurso edu- cacional” também diferenciador, que afirmava que as mulheres em geral (e os homens do povo) deveriam ser mais educados do que instruidos, entendendo-se por educacio a formagio (ou talvez conformagio) dos sujeitos dentro de determinados principios 4 Proj, Histéria, Sao Paulo, (11) nov. 1994 morais, enquanto que a instrucdo deveria supor 0 dominio de algumas informagées, habilidades, ou técnicas. Assim, admitia-se que os setores dominados tivessem um minimo indispensdvel de conhecimentos, cuidadosamente integrados num conjunto de valores e principios considerados fundamentais pelos setores dirigentes. E, certa- mente, toda uma ampla gama de disposigGes fisicas e corporais, de gestos, posturas, comportamentos, vestimentas, estética, habitos, gostos, era incutida e cultivada, em consonfincia com as diferentes expectativas para cada género e classe. Portanto, atra- vés de diversas prdticas sociais, diferentes instancias e meios educativos, através da persuasio e da coercao seriam construidos os sujeitos sociais na sua diversidade: como homens e mulheres, da elite e dos setores populares, brancos € negros... Talvez. seja essa a contribuigo que eu gostaria de trazer aqui, ou seja, a idéia de uma leitura da hist6ria da educacao em que a diversidade social esteja contem- plada, em que os sujeitos individuais ou coletivos nao sejam “neutros”, mas que, ao contrdrio, se apresentem como homens e mulheres construindo-se, no processo hist6rico, através de suas varias ¢ intrincadas relagdes de classe, de género, de raca. Referéncias Anyon, Jean. “Intersegdes de género e classe: acomodagao e resisténcia de mulheres e meninas as ideologias de paptis sexuais’’. In: Cadernos de Pesquisa, 73. So Paulo, Fundagao Carlos Chagas, mai. 1990. Apple, Michael. “Relagdes de classe ¢ de género e modificages no processo de trabalho docente’’. In: Cadernos de Pesquisa, 60. Sao Paulo, fev. 1987. Apple, Michael. “Ensino e trabalho feminino: uma andlise comparativa da hist6ria € da ideologia’’. In: Cadernos de Pesquisa, 64, Sio Paulo, fev. 1988. Arits, Philippe. Histéria social da crianca e da familia. 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