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ANTOINE COMPAGNON © TRABALHO DA CITACAO Tradugdo Cleonice P. B. Mourao 1° REIMPRESSAO Eprrora UFMG BELO HORIZONTE 2007 TESOURA E COLA Crianga, tenho uma tesoura, pequena tesoura de pontas arredondadas, para evitar que me machuque; as criangas sio muito desastradas até que atinjam a idade da razao, quando aprendem o alfabeto. Com minha tesoura nas maos, recorto papel, tecido, nao importa o que, talvez minhas roupas. As vezes, se sou bem comportado, oferecem-me um jogo de imagens para recortar. Sdo grandes folhas reunidas em um livreto, e sobre cada uma delas estao dispostos, em desordem, barcos, avides, _ carros, animais, homens, mulheres e criangas. Tudo o ’| que é necessario para reproduzir o mundo. Nao sei ler as " instrugdes, mas tenho-as no sangue, a paixio do recorte, da selegao e da combinagao. Meu gesto desejaria ser minucioso; ponho-me a seguir o contorno das figuras, um tra¢go negro em volta do corpo. Mas o recorte é de todos os jogos aquele que mais me deixa nervoso: serro os punhos, bato o pé, rolo pelo chao. Sapateio de raiva quando as coisas me op6em resisténcia, quando se recusam a submeter-se 4 minha vontade, rebeldes que sao a se deixarem representar em meu recorte, em meu modelo de universo. Ultrapasso sempre de alguns milimetros o limite, corto as pontas de papel que se dobram sobre os ombros ou que deslizam pelas fendas do corpo, a fim de que a roupa se mantenha sobre a silhueta de papelao nu. Fico louco. Mas como poderia conseguir, se somente minha mae dispée, para seus trabalhos de costura, de longas tesouras pontiagudas que me permitiriam esquadriar, sem mutilar as finas lingitetas? E preciso consertar os estragos, colar novamente as extremidades que faltam. Mas nao tenho sequer fita adesiva. Invejo esses dois grandes privilégios das pessoas adultas, a verdadeira tesoura, pontiaguda, e a verdadeira cola, que cola tudo, até o ferro. Sou fascinado como o ultimo indio Ishi pelos atributos que definiam, para ele, o homem branco: 0 fosforo e a cola.' Quanto a mim, tenho somente um pequeno pote de onde me vem 0 odor de xarope de cevada, uma espatula leve para espalhar a pasta que tem a cor, a consisténcia, 0 cheiro e o gosto dessa sobremesa servida nos restaurantes chineses de Paris, sob a denominagao apocrifa de “delicia das ilhas”. Colar novamente nao recupera jamais a autenticidade: descubro 0 defeito que conhego, nao consigo me impedir de vé-lo, sd a ele. Mas me acostumo pouco a pouco com o mais ou menos; subverto a regra, desfiguro o mundo: uma roupa feminina sobre um corpo masculino, e vice-versa. Compondo monstros, acabo por aceitar a fatalidade do fracasso e da imperfeicao. Nada se cria. Eu parodio o jogo recortando novos elementos em papel comum que vou pintando sem levar em conta o bom senso. Isso nao se parece mais com coisa alguma; nao me reconhego, a mim, Mas eu amo essa “coisa alguma”. 10 - Recorte e colagem sao 0 modelo do jogo infantil, uma forma um pouco mais elaborada que a brincadeira com © carretel, em cuja alternancia de presenga e de auséncia Freud via a origem do signo; uma forma primitiva do jogo da porrinha — papel, tesoura, calhau — e mais poderosa se nada, no fundo, resiste 4 minha cola. Construo um mundo 4 minha imagem, um mundo onde me perten¢o, e é um mundo de papel. Imagino que, quando bem velho — se eu ficar bem velho —, reencontrarei 0 puro prazer do recorte: voltarei a infancia. Todas as manhis, receberei o jornal, que recortarei linha por linha, em longas tiras de papel que colarei umas as outras e enrolarei como uma fita de maquina de escrever. Meu dia estara cheio: nao lerei mais, nao escreverei mais, nao saberei mais nem escrever nem ler, mas estarei ligado ainda ao papel, a tesoura e a cola. Recorte e colagem sao as experiéncias fundamentais com o papel, das quais a leitura e a escrita nao s4o senao formas derivadas, transitorias, efémeras. Entre a infancia ea senilidade, que terei feito? Terei aprendido a ler e a escrever. Leio e escrevo. Nao paro de ler e escrever. E por qué? Nao seria pela unica razdo inconfessavel de que, no momento, nao posso me dedicar inteiramente ao jogo de papel que satisfaria o meu desejo? A leitura ea escrita so substitutos desse jogo. Sinto saudade dos livros antigos, do tempo em que era preciso abri-los previamente com o corta-papel: “A dobra virgem do livro, além disso, pronta para um sacrificio que fez sangrar o corte vermelho dos tomos antigos; a introdugao de uma arma, ou corta-papel, para estabelecer a tomada de posse.’ Gosto do segundo tempo da escrita, quando recorto, junto e recomponho. Antes ler, depois escrever: momentos de puro prazer preservado. Sera que eu nao preferiria recortar as paginas e cold-las num outro lugar, em desordem, misturando de qualquer jeito? Sera que o sentido do que leio, do que escrevo tem uma real importancia para mim? Ou nao seria antes uma outra coisa que procuro e que me 6, as vezes, proporcionada por acaso, por estas atividades: a alegria da bricolagem, o prazer nostalgico do jogo de crianga? E por isso que se deve conservar a lembranga dessa pratica original do papel, anterior a linguagem, mas que 0 acesso a linguagem nao suprime de todo, para seguir seu trago sempre presente, na leitura, na escrita, no texto, cuja definicao menos restritiva (a que eu adoto) seria: 0 texto é a pratica do papel. Dois dentre os grandes escritores deste século comprovariam essa definicao: Joyce e Proust. O primeiro apresentava a tesoura e a cola, scissors and paste, como objetos emblematicos da escrita;* o segundo, pregando aqui e ali seus pedagos de papel, comparava de bom grado seu trabalho ao do costureiro que constréi um vestido, mais do que ao do arquiteto ou do construtor de catedrais. E no texto, como pratica complexa do papel, a \ | citagdo realiza, de maneira privilegiada, uma sobrevivéncia | | | que satisfaz 4 minha paixio pelo gesto arcaico do recortar- | colar. O HOMEM DA TESOURA Tenho uma biblioteca unicamente para meu uso e nao a apresento como exemplo. Movimento-me muito du- rante o dia, e 4 noite gosto de descansar perto dos meus livros. E meu reftigio, uma toca diante da qual apaguei todas as pegadas — ali estou em casa. Ha livros de todos os tipos, mas se vocé fosse abri-los ficaria surpreso. Sio todos incompletos, alguns nao contém mais que duas ou trés folhas, Acho que se deve fazer comodamente o que se faz todos os dias; entao leio com a tesoura nas mios, desculpem-me, e corto tudo o que me desagrada. Faco assim leituras que nao me ofendem jamais. De Loups (Lo- bos), conservei dez paginas, um pouco menos do que de Voyage au Bout de la Nuit (Viagem ao Fim da Noite). De Corneille, conservei todo 0 Polyeucte e uma parte do Cid. De meu Racine, nao suprimi quase nada. De Baudelaire, conservei duzentos versos e de Mugo um pouco menos. De La Bruyére, 0 capitulo “Coeur” (Coracao); de Saint- Evremond, a conversa do pai Canaye com o marechal de Hocquincourt. De Madame de Sévigné, as cartas sobre © processo de Fouquet; de Proust, o jantar em casa da duquesa de Guermantes; “Le Matin de Paris” (Manha de Paris), na Prisonniére (A Prisioneira).!* Assim respondia um guarda-florestal 4 pesquisa de uma revista literaria junto a seus leitores. “Eu leio com a tesoura na maos, desculpem-me, e eu corto tudo o que me desagrada.” Confissao terrivel, intoleravel: declarar cruamente e escrever preto no branco a retalhagdo a que cada um se entrega na intimidade de seu gabinete, omitir as formas a esse ponto. Que selvageria de homem da floresta! O anatema nao se fez esperar, ele foi langado por um eminente critico parisiense: Admite-se muito bem que um intelectual tenha preferén- cias definidas e escolha certos escritores entre outros, ou mesmo que constitua uma antologia para seu uso. Mas nao podemos compreender esse homem que fabrica para si mesmo uma biblioteca com despojos."? E Céline retoma, com menos pretensio, sem ditvida: Eis-nos aqui todos nés, grandes mortos e mintsculos viventes, despidos pelo terrivel guarda-florestal. Ele nao nos perdoa muito na nossa magnifica vestimenta (con- quistada com tantos sofrimentos!). Um pequeno nada! Ah! 0 veridico! [...] O homem da floresta nao brinca. [...] Nao se trata mais de brincadeiras, o homem da tesoura vai cortar tudo o que me resta." De que se tornara culpado o guarda-florestal para que sua carta fizesse tanto barulho na capital? Que diferenca haveria entre sua biblioteca e uma antologia, um manual escolar? Ele se desembaracara do dejeto, criara a verdade da leitura como excitagao e dilaceracao, apregoava essa verdade bruta e a praticava nos livros. “O veridico’", como diz Céline. Pois isso nao se diz, nado se faz. Ler com um lapis na mao, recopiar na caderneta de anotagées, isso é muito bom. Mas recortar e sobretudo jogar fora os restos, langa-los ao lixo, que inconveniéncia! Ora, no fundo, substancialmente, é a mesma coisa. O essencial da leitura é 0 que eu recorto, 0 que eu ex-cito; sua verdade é 0 que me compraz, 0 que me solicita. Mas como fazé-los coincidir? A citagdo éa ilusio de uma coincidéncia entre a solicitagao e aexcitacao, ilusao levada ao extremo pelo guarda-florestal, sintoma da leitura como citacao. Era preciso fazé-lo calar, pois o homem da tesoura é 0 unico verdadeiro leitor. Valéry confessava: “Leio com uma rapidez superficial, pronto a agarrar minha presa.” E verdade que logo acrescentava: “Tento escrever de tal forma que, se eu me lesse, nao poderia ler como eu leio.”® Sem dtivida, ele também nao teria gostado que bancassemos 0 homem da tesoura nos seus livros. 32 UMA CANONIZAGAO METONIMICA Bendita citagao! Ela tem o privilégio, entre todas as palavras do léxico, de designar ao mesmo tempo duas operagoes — uma, de extirpacio, outra, de enxerto — e ainda 0 objeto dessas duas operacdes — 0 objeto extirpado €0 objeto enxertado — como se ele permanecesse 0 mesmo em diferentes estados. Conhecerfamos em outra parte, em qualquer outro campo da atividade humana, uma reconciliacao semelhante, em uma tinica e mesma palavra, dos incompativeis fundamentais que sao a disjungao e a conjungao, a mutilacao e o enxerto, o menos e 0 mais, 0 exportado e 0 importado, 0 recorte e a colagem? Hé uma dialética toda-poderosa da citagdo, uma das vigorosas mecanicas do deslocamento, ainda mais forte que a cirurgia. Mas € tipico dos atos de escrita, ou de linguagem, autorizar a confusao dos contrarios ou dos contraditérios, dissolver as fronteiras em uma transacdo metonimica. Assim, a oposi¢aéo maior que se dissipa no vocabulario da arte de escrever é aquela entre 0 vazio eo pleno, o conteido 33 e 0 continente, o potencial e o atual. Encontrarfamos muitos exemplos de um tal deslocamento que aliena o sentido das praticas linguageiras. A palavra, que na antiga retorica designava uma casa vazia, um lugar (comum), apropria-se, na idade média, de uma idéia de contetido que para os gregos e os latinos sé a preenchia de maneira virtual. A topica transforma-se em tipica, em reservatdrio de tipos. Suas formas vazias, topoi koinoi, saturam-se de sentido, se fixam e se convertem em esteredtipos: a mdxima sententia e suas metamorfoses, 0 que nds chamamos de lugar comum e que é exatamente o contrario do que os antigos entendiam por essa expressao. Ora, 0 que sao 08 estereotipos e os clichés senao justamente citagdes? Da mesma forma, 0 pardgrafo era inicialmente, como a etimologia 0 atesta, um sinal colocado ao lado, na margem, que servia para separar os blocos, os cheios da escrita (como a a linea). Entre os gregos, era o unico sinal de pontuagao; ele marcava o fim de uma passagem importante com um travesséo na margem da linha em questao. A primeira referéncia ao pardgrafo encontra-se na Retérica, de Aristételes, a propdsito do ritmo.'* Ora, o paragrafo designa hoje o proprio bloco, contetido, intercalado entre dois paragrafos, no sentido antigo da palavra. O exergo, que ¢ espaco fora da obra, o lugar para se colocar ou nao alguma coisa, uma epigrafe, por exemplo, designa hoje em dia, segundo um barbarismo irrevogavel, essa propria coisa, com a conseqiiéncia paradoxal de se dizer que um texto “tem ou nao um exergo’, ainda que nao se compreenda como deixaria de haver um fora da obra. Isso significaria pretender — 0 que corresponde ao ideal do livro cercado, fechado sobre si mesmo — que 0 texto nao 34 tem lado de fora. Um grau de liberdade da escrita perde-se na confusao entre o exergo e a epigrafe se seu territério exterior mais proximo ja esta sempre virtualmente preenchido: 0 exergo torna-se uma rubrica obrigatéria do discurso, como se a sua auséncia soasse oco. Ora, uma epigrafe é uma citacéo — a citagdo por exceléncial”’ —, um tapa-buraco ou um encaixe, como a “entrada” de uma refeicdo sao legumes variados, os varia que nao cabem em nenhuma categoria taxonémica, motivo pelo qual sao apresentados imediatamente, para levantar a hipoteca. O egressio ou o ekphrasis da antiga retorica assumia sua mobilidade, sua estranheza, sua “atopia”. A escrita tem horror ao vazio: 0 vazio é o lugar do morto, da falta; e nao se p6em mais epigrafes senao nos monumentos funerdrios. Mas a pratica da escrita oferece esta imensa vantagem sobre as outras, sobre todas as outras, inclusive a da cirurgia, a vantagem de bastar-lhe, para conjurar o horror e preencher 0 vazio, modificar seu léxico. O transporte metonimico, que afeta todo 0 vocabuldrio da arte de escrever e altera o sentido das palavras que designavam 0 vazio, apresenta-se como uma evolucao natural. Imaginemos em que resultaria tal evolugao num outro dominio, se fossem suprimidas da lingua todas as palavras que remetem 4 falta. Nao haveria mais lugar para a falta? Nao haveria mais um lugar de angustia? E claro que nao: tais interdigdes nao mudariam nada; a vertigem da pagina branca, do paragrafo ou do exergo vazio subsiste apesar de todos os artificios de escrita que tentam enegrecer a pagina, preencher os espacos a priori. Entre esses artificios, a citagéo aparece em primeiro lugar. O amalgama, na citacdo, de duas manipulacées e do objeto manipulado tem por efeito tornar natural 35 um procedimento inteiramente cultural. Ele subsume as manipulagées sob o objeto, mascara-as atras de si. Em seu emprego habitual, a citacéo nao é nem 0 ato da extirpa¢éo, nem o do enxerto, mas somente a coisa, como se as manipulagGes nao existissem, como se a citacdo nao supusesse uma passagem ao ato. Na medida em que se ignora 0 ato, éa pessoa do citador que é¢ ignorada, 0 sujeito da citagao como transportador, negociante, cirurgiao ou carniceiro. A coisa circula sozinha, viaja de texto para texto sem sujar as maos: nela, 0 logos e o ergon se fundem, escondem a energeia, a producao e 0 ato. A citacado é sempre o verbo de um deus, ou uma dessas palavras aladas que, movidas por uma energia de que dispdem em si mesmas desde Homero, vao e vém sem se manter no universo do discurso, sem transporte nem transportador, sem recorte nem colagem. Aceitar a citacao como natural é pretender que ela caminhe por si mesma, como um automével. Ela é um 6rgio mutilado, mas jé seria um corpo limpo, vivo e suficiente: 0 animalzinho unicelular a partir do qual se explica toda a criag4o; tem um coragao e membros, um sujeito e um predicado. E é para alimentar essa representa¢4o que a citagao é exemplarmente uma frase: a menor unidade de linguagem aut6noma e fechada sobre simesma. A frase vive: podemos transplanté-la; 0 que nao significa matd-la mas somente intima-la. Alids, e melhor ainda, ela se movimenta sozinha, vagueia, e nao posso mais deté-la. Desaparece assim 0 sentido primeiro da citagao, o de uma movimentagao provocada por contato: sentido sempre atual, mas que, como ao guarda-florestal, vale a pena ignorar ou reduzir ao siléncio. A citagao é contato, fric¢o, corpo a corpo; ela é 0 ato que poe a mao na massa — na massa de papel. 36 ENXERTO A citagdo é um corpo estranho em meu texto, porque ela ndo me pertence, porque me aproprio dela. Também a sua assimila¢do, assim como o enxerto de um érgio, comporta um risco de rejeigéo contra o qual preciso me prevenir e cuja superagao é motivo de jubilo. O enxerto pega, a operacao é um sucesso: conhego a alegria do artesao consciencioso ao se separar de um produto acabado que nao traz o traco de seu trabalho, de suas intervencgdes empiricas. Embora com um compromisso diferente, é 0 mesmo prazer do cirurgido ao inscrever seu saber e sua técnica no corpo do paciente: seu talento é apreciado segundo a exatidao de seu trabalho, a beleza da cicatriz com que assina e autentica sua obra. A citacao ¢ uma cirurgia estética em que sou ao mesmo tempo 0 esteta, o cirurgiao e 0 paciente: pingo trechos escolhidos que serao ornamentos, no sentido forte que a antiga retorica e a arquitetura dao a essa palavra, enxerto-os no corpo de meu texto (como as papeletas de Proust). A armagcaio deve desaparecer sob 37 o produto final, e a propria cicatriz (as aspas) sera um adorno a mais. Mas 0 enxerto de uma citacao seria uma operacao muito diferente do resto da escrita? “Confrontar, agrupar, unir entre si elementos distintos, como por um obscuro apetite de justaposicao ou de combinagao”:'* tal 6, para Michel Leiris, “uma necessidade difundida” em sua existéncia, e o principio de sua escrita autobiografica como “puzzle de fatos’. Ele associa declaradamente esse método ao jogo do recorte e da colagem: Quando me sentia inapto a extrair de minha propria substancia © que quer que fosse que merecesse ser colocado sobre o papel, copiava voluntariamente textos. Colava artigos ou ilustragées recortadas de periddicos nas paginas virgens de cadernos ou de blocos."” Ele insiste ainda “na mecanica desses gestos em que ¢ dificil nao encontrar prazer, mesmo quando nao se espera deles nenhuma espécie de resultado pratico: cortar a tesouradas, aparar, pincelar, ajustar bem no esquadro uma superficie sobre outra’.”” Quando me ponho a escrever, disponho de um certo numero de unidades dispersas, materializadas (em fichas, por exemplo) ou nao. Talvez o estatuto dessas unidades nao tenha uma diferenga essencial, que elas sejam citagdes ou nao, nem que alterem muita coisa na escrita. Alias, estaria eu em condigdes de me recordar, de enunciar a origem das unidades que nao sao citacdes? Nao seria possivel que elas também o fossem? O trabalho da escrita é uma reescrita ja que se trata de converter elementos separados e descontinuos em um todo continuo e coerente, de 38 junta-los, de compreende-los (de tomé-los juntos), isto é, de 1é-los: nao é sempre assim? Reescrever, reproduzir um texto a partir de suas iscas, é organiz4-las ou associa-las, fazer as ligagGes ou as transi¢des que se impdem entre os elementos postos em presenca um do outro: toda escrita é colagem e glosa, citaco e comentario. Efetivamente, as ligagdes ) mais dificeis no caso das citagdes, pois ¢ necessario nao alterar nada e inseri-las assim como elas sao. Entretanto, seria essa uma diferenga? Antes, trata-se do ordinario da escrita. Alids, nada permite dizer que eu modificaria de bom grado uma de minhas notas, mesmo nao sendo ela a citacdo de uma outra. Ao contrario, eu faria tudo, até suprimiria uma citagdo, para conservar como me agrada uma ficha pessoal: sou muito apegado a ela. El Hacedor, tal é 0 titulo de uma pequena narrativa introdutéria que da nome a uma obra de Borges. A tradugdo por [Auteur (O Autor) ¢ imprecisa.”! Roger Caillois lembra, em uma observagao, as op¢des que teve de abandonar, embora elas fossem mais fi¢is 4 etimologia: fazedor, fabricante, fabricador, artesdo, operario. El Hacedor, derivado de hacer, fazer, é sindnimo do poietés do grego. Le Bricoleur teria sido mais conveniente, teria traduzido melhor o espirito da escrita, segundo Borges: o autor é um bricoleur mais do que um engenheiro, de acordo com a oposicao que traca Claude Lévi-Strauss em La Pensée Sauvage (O Pensamento Selvagem). E Mallarmé, por sua vez, dizia: “Comparado ao engenheiro, eu me torno, imediatamente, secundario.” Bricoleur, o autor trabalha com © que encontra, monta com alfinetes, ajusta; é uma costureirinha. Como\Robinsoi) perdido em sua ilha, ele tenta tomar posse dela, réconstruindo-a com os despojos de um naufragio ou de uma cultura. 39 De modo ainda mais radical, Aragon pretende compor seus livros néo em torno de uma rede de fragmentos ou de citagées, mas a partir de um unico vestigio, uma Unica frase, 0 incipit. Segundo declara em Je Nai Jamais Appris a Ecrire ou Les Incipit (Nunca Aprendi a Escrever ou Os Incipit), ele nunca escreveu seus romances, mas os leu; diante do desenvolvimento do texto, ele era tio ignorante quanto qualquer outro, e, nesse processo de desdobramento sem marcas premeditadas, a primeira frase, sobretudo, teve um papel decisivo e impulsionador. Foi 0 que ocorreu com La Mise 4 Mort (Condenado a Morte). “A frase inicial [...], ea me lembro de té-la lido, uma unica vez, naquela hora em que nao se dorme mais € nao se est certo de estar acordado e acho mesmo que foi ela que me tirou da cama.” Ou ainda, com o capitulo intitulado “CEdipe’, desse mesmo romance, de que Aragon relata a génese: “Eu decalquei exatamente de uma frase de Jean de Bueil o que ia ser a primeira frase de ‘Eidipe’: foi © menor tempo gasto para se conceber:’** Se o texto nao é, como o de Leiris, justaposigéo e combinacao de retalhos ou de fichas, se como o de Aragon, ele pretende ser uma aventura, nem por isso deixa de ser, como o incipit, um desencadeador de todo o livro, apresentando-se sob a forma de uma citagao, uma frase lida em um estado de sonoléncia ou em um outro livro. REESCRITA Escrever, pois, é sempre reescrever, nao difere de citar. A citac&o, gragas a confusaéo metonimica a que preside, é leitura e escrita, une 0 ato de leitura ao de escrita. Ler ou escrever é realizar um ato de citagao. A citacdo representa a pratica primeira do texto, o fundamento da leitura e da escrita: citar é repetir o gesto arcaico do recortar-colar, a experiéncia original do papel, antes que ele sejaa superficie de inscricao da letra, o suporte do texto manuscrito ou impresso, uma forma da significagao e da comunicagao lingtiistica. A substancia da leitura (solicitagao e excitagao) é a citagdo; a substancia da escrita (reescrita) é ainda a citagao. Toda pratica do texto é sempre citacao, e € por isso que nao é possivel nenhuma definicio da citagao. Ela pertence a origem, é uma rememoragao da origem, age e reage em qualquer tipo de atividade com 0 papel. Mas se o modelo da citagao esta na origem — arcaica (0 jogo de crianga) e atual (0 incipit) — da escrita, ele esta também, por isso mesmo, 41 em seu horizonte: 0 texto ideal, utépico, aquele com que sonhou Flaubert, seria uma citagao. A utilizacdo de uma citacao como epigrafe substitui esse ideal, deformando-o, E na impossibilidade de realizar 0 ideal, o livro se contenta €m ser a reescrita de uma citacdo inaugural que por si 56 seria suficiente. Se o modelo da citacao, do texto, todo ele reescrito, assusta, fascina ainda mais. Ele toca no limite em que a escritura se perde em si mesma, na cépia. Reescrever, sim. “Mas copiar”, diz Aragon, “isso é mal visto, observem que todo mundo copia, mas ha aqueles que sao espertos, que trocam os nomes, por exemplo, ou que dio um jeito de se apropriar de livros esgotados”?5 E Frangoise, cheia de bom Senso, prevenia 0 narrador de Em Busca do Tempo Perdido, recriminava-o por dar as dicas de seus artigos antes de té-los escrito: “Todas essas pessoas ai sdo copistas. Vocé precisa desconfiar mais? A obra de Borges representa, sem duvida, a exploracdo mais aguda do campo da Teescrita, sua extenuacao. Pois Se a escrita é sempre uma reescrita, mecanismos sutis de regulacao, varidveis segundo as épocas, trabalham para que ela nao seja simplesmente uma cépia, mas uma traducao, uma citacdo. E com esses mecanismos que Borges organiza a violacao. “Pierre Menard, Autor do Quijote’) um dos Contos reunidos sob 0 titulo de Fictions (Ficc6es), realiza 0 ideal do texto e pretende que ele se distinga da copia. Pierre Menard nao queria compor um outro Quichotte — 0 que é facil — mas © Quijote. Inutil acrescentar que ele nunca imaginou uma transcrigao mecanica do original, nao se propunha copia-lo, Sua admiravel ambicao era reproduzir algumas paginas que 42 coincidissem — palavra por palavra e linha por linha — com as de Miguel de Cervantes.” Esse € 0 ponto limite para o qual tenderia uma escrita que, enquanto reescrita, se concebesse até o fim como devir do ato de citagéo. Oportunamente, seré necessdrio retomar essa idéia. Mas, por ora, se impde uma questao: quais sao os textos que, ao escrever, eu desejaria reescrever? Aqueles que Roland Barthes chamava de “escriptiveis” quando perguntava: “Que textos eu aceitaria escrever (reescrever), desejar, levar adiante como uma forca nesse mundo que é © meu O que a avaliagao encontra ¢ este valor: o que pode ser hoje escrito (reescrito) — 0 escriptivel.”®* Ha sempre um livro com o qual desejo que minha escrita mantenha uma relagao privilegiada, “relacdo” em seu duplo sentido, o da narrativa (da recitagio) e 0 da ligacao (da afinidade eletiva). Isso nao quer dizer que eu teria gostado de escrever esse livro, que 0 invejo, que o recopiaria de bom gradoouo retomaria por minha conta, como modelo, que o imitaria, que o atualizaria ou citaria por extenso se pudesse; isso também nao demonstraria o meu amor por esse livro, Nao, 0 texto que é para mim “escriptivel” é aquele cuja postura de enunciacgao me convém (0 que cita como eu). E por isso que esse texto nao é nunca o mesmo livro, é por isso que o Quijote, de Menard, é também um outro Quixote. 43 O TRABALHO DA CITACAO Se a citacdo esta na base de toda pratica com o papel, se se atribui a ela seu sentido pleno (de operacées e de objetos), se se considera tudo 0 que ela p6e em movimento na leitura ena escrita— para manter esta distingao pratica, senao pertinente, tendo a citagio mostrado justamente a sua impertinéncia — nao é mais possivel falar da citagao Por si mesma, mas somente de seu trabalho, do trabalho da citagao. A nogo de trabalho é rica: é a poténcia em agao, 0 poder simbélico ou magico da palavra, é 0 carmen ou a oragao (os religiosos das ordens contemplativas dizem que seu trabalho é a oracdo); é 0 “labor”, segundo 0 termo favorito de Mallarmé para designar seus trabalhos lingitisticos, ou 0 labor intus, 0 trabalho que se faz por dentro, de acordo coma etimologia que propunha Evrard TAllemand para 0 labirinto.” E 0 labirinto é, no texto, uma rede de citagées em aco. Tudo isso parece um enigma: 0 que eu trabalho e me trabalha ao mesmo tempo? O texto, a citacao. 44 | Trabalho a citagéo como uma matéria que existe dentro de mim; e, ocupando-me, ela me trabalha; nao que eu esteja cheio de citagdes ou seja atormentado por elas, mas elas me perturbam e me provocam, deslocam uma fora, pelo menos a do meu punho, colocam em jogo uma energia — sao as definigdes do trabalho em fisica ou do trabalho fisico. Da citag4o, mascataria e tecelagem, sou a mao-de- obra. E de toda a ambivaléncia da citagao, mascarada por uma canoniza¢aéo metonimica, que esta carregada essa nogao de trabalho: a ambivaléncia do genitivo, em que a citacao é matéria e sujeito, em que eu sou ativo e passivo, ocupado com e pela citacao como uma mulher pronta para dar a luz. Os ingleses chamam alguns textos de working papers; a expressao, infelizmente, nao tem eqiiivalente em francés, pois ela evidencia a cumplicidade do transitivo e do intransitivo no trabalho — seria melhor dizer “na agao de trabalhar”. O working paper é 0 trabalho em processo, 0 texto se construindo (uma duracao que o livro gostaria de ignorar). E 0 papel em trabalho; é preciso imagind-lo crescendo como uma massa. Céline acentuava, freqiientemente, o trabalho que seus livros exigiam dele, trabalho imenso, prodigioso, doloroso, que se fazia em horas, em dias ¢ noites, em milhares de paginas, trabalho cujo destino era ser negado pelo livro feito, perder-se dentro dele. Freqiientemente as pessoas vém me ver e me dizem: “Parece que vocé escreve com muita facilidade.” Mas nao! Nao escrevo facilmente! $6 com muita dificuldade! Além disso escrever me cansa. E preciso fazer muito finamente, muito delicadamente. Fazem-se umas 80 000 paginas para obterem-se 800 paginas de manuscrito, em que o trabalho é apagado. Nao 0 vemos. O leitor nao deve perceber esse trabalho.” 45 “| A reescrita é uma realizacao, nao somente no sentido musical de uma tradu¢ao. O trabalho da citacdo, apesar de sua ambivaléncia ou por causa dela, é uma producao de texto, working paper. A leitura e a escrita, porque dependem da citagdo e a fazem trabalhar, produzem texto, no seu sentido mais material: volumes. A modalidade de existéncia da citacdo é 0 trabalho. Ou ainda, sea citagao é contingente e acidental, o trabalho da citacdo é necessario, ele é 0 proprio texto. A citagao trabalha o texto, o texto trabalha a citacdo. Aqui surge o sentido, de que ainda nao se tratou. Isso nao significa que 0 texto se distinga das outras praticas com 0 papel que nao teriam sentido: 0 jogo do recorte e da colagem faz sentido, e nao é indiferente para o sentido que eu coloque um vestido sobre uma silhueta masculina ou feminina. Mas era preciso comegar a falar da citacao sem se deter no sentido: o sentido vem por acréscimo, ele é 0 suplemento do trabalho; era preciso distingui-lo do ato e da producao para nao ignorar estes ultimos, para nao confundir o sentido da citagao (do enunciado) com 0 ato de citar (a enunciagao). Porque a mola do trabalho nao é uma paixdo pelo sentido, mas pelo fendmeno, pelo working ou o playing, pelo manejo da citagao. A leitura (solicitagao € excitagdo) e a escrita (reescrita) nao trabalham com o sentido: sao manobras e manipulacées, recortes € colagens. Ese, ao final da manobra, reconhece-se nela um sentido, tanto melhor, ou tanto pior, mas ja é outro problema. “O leitor nao deve perceber o trabalho”: a paixao, o desejo e O prazer. 46

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