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© Editora Meridional, 2004 Capa: Eduardo Miotto Tlustragdo da capa: “O gedgrafo” (1668-1669). Veermer, Jobannes. Projeto grafico e editoragio: Obseruatério Grifico/ Daniel Ferreira da Silva Revisio: Gabrisla Koga Editor: Luis Gomes Bibliotecicia Respoasavel: Denise Mari de Andrade Souza CRB 10/960 G345 Geografia: ciéncia do complexus: ensaios transdiciplinaces / Aldo Aloisio Dantas da Silva ¢ Alex Galeno (orgs). — Porto Alegre : Sulina, 2004. 334p. ISBN: 85-205-0378-0, 1. Geografia - Teoria. 2. Sociologia do Conhecimento. 3. Meio de Informagio. | Silva, Aldo Aloisio Dantas da. Il. Galeno, Alex. CDU: 910.1 CDD: 070.1 306.4 Editora Sulina Todos os direitos desta edigiio reservados 4 Eprrora Meripionat Lrpa. Ay. Osvaldo Aranha, 440 ¢j. 101 Bom-Fim Cep: 90035-190 Porto Alegre-RS Tel: (Oxx51) 3311-4082 Fax:(Oxx51) 3264-4194 www.editorasulina.com.br sulina@editorasulina.com.br Outubro/2004 IMpRESSO NO Brasit/PRINTED IN BRAZIL “Uma verdadeira viagem de descobrimento nao é encontrar novas terras, mas ter um olhar novo.” Marcel Proust “Ah, encontrassemos também nds uma estreita faixa de terra fértilpuramente humana, entre a torrente e a rocha!” Rainer Maria Rilke Introdugao0 Mapa INACABADO DA COMPLEXIDADE Afaria pt CoNnchICaO DE ALMEIDA® Todo texto de natureza introdutéria corre o risco de se tornar generalista e navegar na superficie, Tal risco aumenta na medida em que a pretensao a totalidade se torna um escudo de protec4o contra o inacabamento ¢ a parcialidade que parasitam todo conhecimento. Mesmo assim, as introdugses servem como esbogos, guias € mapas provisOrios para serem revistos e com- pletados permanentemente. Essa é sua face positiva. Além do mais, é sempre melhor dizer de forma parcial (consciente da dinamica coletiva do conhecimento) do que esperar para anun- ciar a suposta informacao completa, inequivoca, exata e verda- deira — atitude tio a goszo da ortodoxia que nutre os discursos de autoridade ¢ reanima o velho patadigma da certeza. Como nenhum texto surge por encanto, embora todos tenham um encanto, essa introducao é a ampliagao de uma con- feréncia no XIX Encontro Nacional sobre Ensino de Arquite- tura ¢ Urbanismo, ¢ que teve por titulo Complexidade: a educacao do arquiteto ¢ urbanista, realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Natal, novembro de 2002). E a partir da perspectiva de um mapa a ser completado que esbogamos os sintomas de uma ciéncia nova; o contesto de sua cmergéncia; alguns topicos para a compreensao da comple- * Anteupdtoga. Doutora em Ciéncias Sociais pela PUCSP. Professora dos Programas, de Pés-Graduagio em Fducagio ¢ em Cigneias Seciais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coordenadora do Grupo de Estudos da Complexidade - GRECOM/UFRN. Membro da Associacao para o Pensamento Complexo, ditigida por Edyar Morin (Paris), e-mail: calmeidal 7@hotmaiLcom xidadg; ¢, por fim, o estado da arte dos estudos sobre a tematica. Antes, porém, de adentrar no roteiro indicado acima, co- mecemos por esclarecer a compreensao da qual partimos para falar do surgimento de novos modos de conhecimento. POR QUE © NOVO NA CIENCIA Qualquer teoria, interpretagdo ou concep¢gio de mundo esta atrelada, e depende, de uma construgio hist6rica dada, tan- to quanto das demandas suscitadas por fenémenos natutais € sociais novos. Mas nao sé. A esse carater de dependéncia sociotemporal, que oferece substrato para as socologias do conbeci- mento, se aliam outras circunstincias que abrigam 0 acaso ¢ a imprevisibilidade — caracteristicas da aventura do conhecer. Por outro lado, nao é possivel desconhecer uma certa autonomia do pensamento diante das contingéncias do “real”, ¢ esse fato res- ponde pela consolidacio dos patamares propriamente huma- nos de criagao, representagao e duplicacao da realidade. Edgar Morin fala dessa duplicagio como um dos poucos operadores de distingio da espécie sapicns-demens, tesponsa- vel pela edificagao de um fabuloso imaginario. Descolando-se das objetividades e constricdes conjunturais, esse imaginario da vida ¢ realidade ao mundo nooldgico que retroage sobre as materialidades modificando-as, injetando sentidos, tecendo a cultura. Por caminhos diferentes, e se referindo aos mitos, tam- bém Claude Lévi-Strauss afirma a auto-regeneracio dos dispo- sitivos mitoldgicos e atribui 4s cosmologias imaginarias o papel de cimento mitoligico que oferece textura sdlida as construgdes culturais. Hsses argumentos, que poderiam ser identificados com uma antropologia do conhecimento, ganham contornos mais alargados no ambito da historia ¢ filosofia das ciéncias pelas reflexdes de Isabelle Stengers. O livro A invengéio das citncias mo- dernas', onde a autota ptoblematiza os meandros da construcio 10 da ciéncia; a relagdo por vezes ambigua entre ciéncia, nio-cién- cia, ficgo e opiniao; 0 “grito de protesto dos cientistas contra a abordagem dos socidlogos”; a complicada encruzilhada entre pratica cientifica, ética e politica; os discursos de autoridade “em nome da ciéncia”, entre outros temas, permite inferir as matri- zes polifénicas da existéncia ¢ organizacéo do conhecimento, da ciéncia, das teorias, dos paradigmas. im sintese, as teorias e concepgdes do mundo exibem, ao mesmo tempo, as propriedades de dependéncia e autonomia em relacao as socicdades das quais emergem e as quais retornam para organizar ¢ imputar sentido. Recusando os determinismos estreitos — sejam eles sociolégicos ou noolégicos — é mais ade- quado dizer que a historia do conhecimento, e dentro dela, a da ciéncia, comporta repeticdes, variacdes e dispersdes: “uma su- cessio de bifurcagées”, conforme expressao de Ilya Prigogine. Essas bifurcacdes, que identificam o que é da ordem da vatia- ¢4o e do novo, nao se limitam as contingéncias do presente ou do passado, mas as contém igualmente, ainda que delas se dis- tanciem pata compor outros esbocgos do pensamento, novas organizagdes de saberes. pds expor a perspectiva a partir da qual compreende- mos o advento de uma nova configuracdo do conhecimento, explicitemos os sintomas que permitem infetir 0 ponto de muta- edo em cujo interior gravita hoje a cultura cientifica. SINTOMAS DE UMA CIENCIA NOVA Os apelos do pensamento complexo tornam-se cada dia mais audiveis na comunidade cientifica, apesar dos natutais (e necessirios) espacos de resisténcia que se cristalizam em mo- mentos de mudanca paradigmatica. Assim é que a religagao das areas de conhecimento aparece em um “conselho” freqiiente; assumir uma atitude dialogal diante dos fenédmenos, ¢ nio uma postura estritamente analitica de “dissecagao do cadaver”, con- i figura uma das tendéncias da ciéncia; aceitar 0 paradoxo, a in- certeza € 0 inacabamento como propriedades dos fendmenos e do sujeito-observador, uma sugestio desafiadora; admitir que o erro parasita o ato de conhecet, que é ténue o limite entre reali- dade, ilusao e¢ ficc&o, ¢ que as interpretagGes ¢ teorias sao sem- pte mais, ou menos, do que os fendmenos aos quais se referem, configura hoje um estilo cognitive em construgio. A compreensao de que o observador interfere ma realida- de da qual trata tem permitido reduzir a ciséo entre sujeito € objeto, objetividade e subjetividade, mundo fenomenal, teoria e pratica, fazer e saber. A relagio de simbiose entre politica e cién- cia, ética, vida ¢ idéias assume uma voz que nao pode calar no debate sobre ciéncia e sociedade. Por fim, até mesmo a conscién- cia de que a ciéncia é uma entre outras formas de representagdo do mundo e, por isso, precisa dialogar com diversos métodos € “outras configuragdes do saber”, comega a exercitar seus pri- meiros passos. Esses sintomas de um novo paradigma, que acondiciona ou supée praticas investigativas mais miultiplas e flexfveis, bem como um novo estilo de intelectual igualmente miultiplo ¢ hibri- do, néo consolidam, entretanto, um horizonte hegeménico nem padronizado. Como num jogo cujo contexto esta pronto, mas as pecas ainda esto em construgio, é mais adequado dizer que esses sintomas aparecem como manchas no interior dos diver- sos dominios ¢ areas do conhecimento cientifico. Como se fos- se por contaminagao virética, essas manchas se difundem pelos muitos tetrtitérios disciplinares e por vezes constelam investi- mentos importantes e¢ transdisciplinares. Outras vezes, se in- crustam em tecidos académicos dridos, resistentes ou necrosados, que lhes dificultam a irrigagio e a vida. Nesses casos, esses fo- cos de uma ciéncia da complexidade acabam sucumbindo ou se tornam ilhas contra as quais sao langados torpedos carregados de descontiancas ¢ desclassificagdes aprioristicas. Distante de uma visio triunfante ¢ ufanista, é necessario 12 afirmar que ha também contrafluos ¢ regressées em complexidade no nascimento dessa ciéncia nova. Assim, o pragmatismo algu- mas vezes secundariza o paradigmatic, © “como fazer” e “como aplicar” — essas obsess6es cognitivas que denotam timidez do intelectual para criar seus préprios caminhos — redundam em reccitas de pesquisa e metodologias franksteinianas. A tradugao dos velhos estilos redutores em argumentos construidos com frases de efeito e novas palavras cvidencia que, ainda ¢ sempre, a ciéncia desliza em terreno pantanoso, tao logo se encontre num ponto de bifurcagao, numa situag&o inaugural. Seja como for, os sintomas de reorganizacio de conheci- mento evidenciados pelos apelos, sugestées e tendéncias acima aludidos prefiguram um horizonte aberto, incerto ¢, sobretudo, marcado por paradoxos desafiadores ¢ criadores, Agugar a ¢s- cuta pata compreender e lidar com a diversidade de “ruidos” que desordenam ou redimensionam os padrées ja consagrados de conceber 6 mundo é uma atitude intelectual importante e inadiavel. E, do ponto de vista das ciéneias da complexidade, essa escuta precisa ser cxercida com amplitude, cuidado, cautela, ti- gor ¢ delicadeza, dado o cenério de dispersio do qual emerge ss¢ novo modo de conhecer. CONTEXTO DE EMERGENCIA DA COMPLEXIDADE, Os tempos e as circunstancias que abrigaram Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-1642), Johannes Wepler (1571-1630), Isaac Newton (1642-1727), Antoine Lavoisicr (1743-94), Michacl Faraday (1791-1867), Charles Darwin (1809-82), Max Planck (1858-1947) ¢ Albert Einstein (1879-1955), foram bem distintos do tempo ¢ do contesto da emergéncia da complexidade. Mantidas as singularidades que distinguem as circunstancias © os pertis dos clentistas reterides acina, podemos afirmar que a producto de representagdes sobre o mundo se dava, até o século 13 XVI, no ambito de uma reduzida circulagio das idéias ¢ se pauta- va, sobretudo, por uma interlocugio mais direcionada, linear e seqiienciada, Aysim, cada nova teoria ou hipétese se dirigia a con- testar, ampliar ou reafirmar as concepgdes ja aceitas. Havia quase sempre um foco principal, uma teoria ou uma interpretagio em torno da qual giravam as investigagGes, os debates e a “fabricagio” de instrumentos que permitissem demonstrat 0 que estava sendo defendido. E, mesmo acompanhando a descric&o de Claude Allégre, para quem Galileu, “longe de mantet confidenciais as suas desco- bertas ou confinadas ao meio cientifico, dé-thes imediatamente uma grande publicidade” (1998 p.26)*, é importante ressaltar que os “se- rdes astrondmicos” organizados por Galileu se circunscreviam 4 Italia (Padua, Veneza e Bolonha). As descobertas desse fisico ¢ as- trénomo, que marcou nossa histéria, se estenderam aos poucos a toda Europa, ultrapassaram continentes ¢ chegaram até nés, mas numa velocidade ¢ fiuxo de comunicacao absolutamente distintos dos que vivemos hoje. Certamente, a alianga estreita entre a Ciéncia ea Igreja Catdlica responde também pela morosidade da divulga- io cientifica e do reconhecimento das teorias. Para Allégre, é elucidativo a esse respeito o atraso com o qual a Igreja reconheceu © seu erro na questio do heliocentrismo e em relacio a Galileu. “Em 1757, o papa Bento XIV autoriza a interpretagde simbdlica da Biblia relativamente ao Sol. Mas esse primeiro passo permane- cera sem seqiiéncia. 1 apenas em 1846 que a Inquisicao retira Copétnico e Galileu do index, e sera preciso chegar av ano de 1992 pata que o papa Joao Paulo II reabilite Galileu quando de uma declaracZo solene na Academia Pontificia das Ciéncias, ou seja, tre- zentos e cingtienta anos apés a sua condenacio”™. Essa referéncia feita a Copérnico € Galileu é certamente emblematica de uma forma de fazer ciéncia circunscrita a um tempo onde o processo de globalizag&o estava em sua fase inici- alt. Esse tempo, de certa forma, contrasta com © panorama das descobettas cientificas que acabarao por construir o nicho de uma ciéncia da complesidade. . 14 O final do século dezenove € 0 inicio do século vinte acio- nario o motor de uma velocidade estonteante no que diz res- peile ao fluso da historia da ciéncia para nos brindar hoje com uum estoque de informacées, teorias ¢ pesquisas impossivel de oryanizar, compreender ¢ tratar em seu conjunto e totalidade. Na Carta ds futuras geracées,’ Iya Prigogine, prémio Nobel de quimica em 1977, declara: “Na nossa era, ¢ isso sera mais verda- de no futuro, as coisas estio mudando a uma velocidade jamais vista, Quarenta anos atras, o nimero de cientistas interessados na fisica de estado sdlido ¢ na tecnologia da informagao nao passava de umas poucas centenas. Era uma “flutuagao”, quan- «lo comparada as ciéncias como um todo. Hoje, essas discipli- nas se tornaram tio importantes que tém conseqiiéncias decisi- para a historia da humanidade”’. O cenirio descrito por Prigogine para duas areas da ciéncia pode ser estendido para outras tantas como as da satide, da Iioengenharia, do meio ambiente, dos estudos da biosfera, para citar algumas. Nesse novo cenario, a produgao do conhecimento cientifico € a circulagao das idéias em quase nada se assemelham aos “serdes asttondmicos” da época de Galileu Galilei. Nao ha um direcionamento pontual, uma interlocugao inter ¢ intra cién- via concatenada de forma linear e seqtienciada, nem mesmo um toco em direcao ao qual os cientistas langam seus dardos. Um big bang, como quer Edgar Morin, caractetiza 0 novo perfil da ciéncia, sobtetudo a partir da segunda metade do sécu- lo vinte. Isso é compreensivel: ao panorama de uma sociedade- mando que tem que se haver com uma multiplicidade de fend- inenos e problemas de toda ordem e em todo lugar, corresponde uma explosio descontrolada de engenhos cientificos. Nao po- demos falar mais do estritamente local, a nao ser pelas feigdes singulares que assumem os problemas globais; as bactérias, os fundamentalismos, os novos modelos econdmicos ¢ os desas- tres ecolégicos ultrapassam barreitas alfandegatias, nacionali- dades, territérios. “Estamos, pois, em época de convulsées ¢ 45, terremotos de todo tipo, Encontramo-nos diante de um extra- ordinério momento: turbuléncia nas idéias € nas construgdes intelectuais; fusdes de disciplinas; redistribuicgao dos dominios do saber; crescimento do sentimento profundo de incerteza; consciéncia, cada vez mais forte, do sujeito humano de estar implicado no conhecimento que produz’””. Essa “turbuléncia das idéias” nio é apenas reflexo do mun- do-tede. O conhecimento cientifico retroage sobre a sociedade ¢ produz um big bang do saber. “Poram os desenvolvimentos da teoria geral dos sistemas, da cibernética, os progressos das cién~ cias cognitivas, da biologia, da ecologia, da geofisica, da pré- historia, da astrofisica e da cosmologia que produziram esses abalos que observamos”*. Se o espectto dessas turbuléncias do conhecimento é imensuravel e configura uma rede que “se afirma como um zoma, sem limites, sem principio de exclusio, sem Gulgamento de Deus””, isso se deve 4 agitacdo ¢ 4 turbuléncia das estruturas de comunicagio da ciéncia. Conforme Gilles Deleuze ¢ Felix Guattari, “niio nos falta comunicacao, pelo contririo, nés a temos bastan- te, falta-nos criagio. Falta-nos resistencia ao presente". A resisténcia ao presente da qual falam Deleuze e Guattari parece constituir o horizonte que o pensamento complexo to- mou para si. Como dar conta do bombardeio de informagées, de novas descobertas da ciéncia e da emergéncia de novos fend- meros? Como proceder diante do crescimento exponencial das tepresentagdes cientificas? A partir de que estilos cognitivos, modelos de pensamento ¢ “mentefatos” (Ubiratan D” Ambrosio) é possivel identificar, eleger e articular “fatos portadores de sen- tido de futuro”'! capazes de organizar o fluxo rizomitico da ciéncia contempordnea? Em sintese, de que estratégias do pen- samento nos valet para tratar de fenémenos que se apresentam de forma incerta, e esto no intersticio das areas disciplinares? ‘Ao desafio posto responde a necessidade de articular os cam- pos de vizinhanca das descobertas cicntificas que emergem das 16, reas especificas do conhecimento, Reunir em arquipélagos es- sas ilhas de conhecimento e fazé-las comunicarem entre si foi 0 desafio inicial que abracou 0 pensamento complexo. A partir desse macro itinerdtio floresceu a idéia de com- plexidade, o método complexo, as ciéncias da complesidade ou a. paradigma da complexidade, conforme a diversidade de di- mens6es, designacGes e escalas de compreensao dessa ciéncia em construgao. Nao ha como identificar 0 criador das ciéncias da com- plexidade. Um exame do DNA dessa ciéncia anunciaria o estra- nho resultado de uma maternidade/paternidade miltipla, polifénica, difusa, talvez mesmo promiscua. Nos primeiros anos do século XX, 0 fisico dinamarqués Niels Bohr (1885-1962) discutiré a ambigiiidade de manifestacio da matéria em relacio a alguns fendmenos. Para ele, nao podemos na ciéncia proferir o enunciado “isto é assim”, sendo mais adequado dizer: “dadas essas circunstancias de apresentacio (de tal fendmeno), é isto que posso dizer”. Niels Bohr amplia as descobertas de Max Planck, fisico alemao, seu contemporaneo, para quem os pro- cessos at6micos nao ocorrem continuamente, mas por “saltos discretos”, chamados “quanta” ou quantum. “Uma pagina da his- t6ria da fisica foi definitivamente virada. Do ponto de vista das mutac6es conccituais fundamentais por que a fisica passou, este século XX 6 é comparivel ao século XVII, que viu o nasci- mento da ciéncia moderna”, dizem Prigogine e Stengers' A ambigitidade de expressio e descontinuidade de certos fendémenos se transformam em argumentos cientificos impor- tantes que ultrapassam o espaco da fisica quantica. Permitem problematizar a suposta exatidao de certas areas da ciéncia (cha- madas de ciéncias exatas) tanto quanto legitimam ¢ oferecem “am lugar ao sol” a dominios do conhecimento que eram tidos como aquém da ciéncia oficial por tratarem de fenémenos ¢ processos nao formalizaveis, mutantes e de dificil mensuracao. Em 1926, Werner Heisenberg, fisico alemao (1901-76) propde 17 © principio da incerteza que, em conjunto com a nogao de ambigit- dade @ descontinuidade formam como que um quebra-cabega para a emergéncia posterior de um método complexo construido por Edgar Morin. F possivel, entretanto, identificar alguns dos ingredientes da sopa cognoscente da qual se originou a complexidade. Para Edgar Moria, é Gaston Bachelard (1884-1962) em O nov espérite cientifico quem usa pela primeira vez a palavra complexidade na acepgio de um modo de conceber da ciéncia. Mas nao é s6. Para Morin, 0 artigo de Weawer (colaborador de Shannon na Teoria da Informa- Gao) escrito em 1948 na Scientific American com o titulo “Ciéncia e Complexidade”; as proposigdes de Von Neumann, com a éoria das automates, de Von Foerster, com a nogao de auto-organizagao dos sistemas em relacao a seus ambientes; de H. A. Simon como artigo “Architecture of complexity; de Henri Adan com o livro Entre 0 cristal ¢ a fitmaga, onde expSe © conceito de auto-organizagéo pelo ruido e a afirmagao do limite ténue entre o vivo ¢ 0 nao-vivo; ¢ ainda as pesquisas de Hayek e seu artigo “The Teory of complex phenomena” se constituem no fermento propicio para a reorgani- zacao do conhecimento cientifico ora em curso’. “Na época contemporanea, o pensamento complexo co- meca seu desenvolvimento na confluéncia de duas revolugdes cientificas. \ primeira revolugio introduz a incerteza com a termodinamica, a fisica quantica e a cosmofisica. Essa revolu- sho cientifica desencadeou as reflexdes epistemoldgicas de Popper, Kuhn, Holton, Lakatos, Feyrabend, que mostraram que a ciéncia nao era a certeza, mas a hipotese, que uma teoria pro- vada nfo o eta em definitivo e se mantinha “falsificavel”, que existia 0 nao-cientifico (postulados, paradigmas, shemafd) no seio da prdéptia cientificidade”. “A segunda revolugao cientifica, mais recente, ainda indetectada, € a revolugdo sistémica nas ciéncias da Terra e a ciéncia ecologica. Ela nao encontrou ainda seu prolongamento epistemolégico (que os meus prdprios trabalhos anunciamy”". 18 Certamente aos nomes j4 citados podemos acrescentar os de Norbert Wiener com suas descobertas na cibernética, dos matematicos franceses Benoit Mandelbrot e René Thom, cria- dores, respectivamente, do conceito de fractais e da Teoria da Catastrofe'* ¢ do bidlogo chileno Humberto Maturana com a critica 4 nogao de objetividade a afirmaco de que o observa- dor interfere na realidade observada. Nas pesquisas ligadas & etologia, e em especial 4 etologia humana, é substancial a im- portancia das peSquisas de Boris Cyrulnik. Argumentando con- tra os determinismos de qualquer ordem (sejam eles bioldgicos, genéticos, sociais, geograficos ou ecoldgicos), Cyrulnik oferece uma farta agenda de argumentos e nogoes para a ciéncia da com- plexidade. A indissociagao entre natureza e cultura (somos 100% inato € 100% adquirido); as nocées de corpo poroso e de ambigit- dade do dominio pré-verbal, bem como sua critica 4 ideologia dos cientistas que se escondem nas “descobertas” das pesqui- sas, so alguns dos investimentos desse médico e etologista para uma ciéncia em constru¢io. No conjunto dessas enunciag6es originariamente disper- sas por varios dominios de saberes e areas do conhecimento, o nome de Ilya Prigogine (1917-2003) merece destaque. As no- ces de bifiurcacéo como o que é da ordem do acontecimento novo; de flutuaczo como o que esta por se configurar ou se cons- titui numa possibilidade (nfo tendéncia); ou ainda os argumen- tos de que a “condicéo humana consiste em aprender a lidar com a ambigiidade”; que a irreversibildade e 0 ndo-determintsmo sio as marcas do nosso tempo; e que a instabilidade e a incerte- za.requetem que facamos nossas apostas, vao configurar uma matriz instigante que aos poucos penetram de forma inespera- da em diversas disciplinas cientificas. Distante do imobilismo, Prigogine propée “lutar contra os sentimentos de resignagéo ou impoténcia”. Para ele, “as recentes ciéncias da complesidade negam o determinismo; insistem na criatividade em todos os niveis da natureza. O futuro n3o é dado”"*. 19 O contexto de cmergéncia da complexidade se constréi, pois, & medida que comecam a se dissolver os “quatro pilares da certeza” que sustentaram a ciéncia “cléssica”, conforme sinteti- za Morin. O primeiro pilar é a Ordem e postula um universo regido por leis deterministas (Newton). ©) segundo é o Princi- pio da Separabilidade. Esse principio aconselha a decompor qualquer fendmeno cm elementos simples como condigio de analisd-lo (Descartes no Discurso sobre » Método). O principio da separabilidade foi o maior responsavel pela especializacio comunicante. Separou os grandes ramos da ciéncia e, no interior de cada um detes, as disciplinas. Separou as ciéncias das técni- cas, a filosofia da ciéncia, e assim por diante, até configurar “uma parcelarizacao generalizada do saber”. Conforme Morin, iso- lou-se os objetos de seus meios, o sujeito de objeto. O terceiro pilar diz respeito ao Principio de Reducao ¢ fortalece o princi- pio da separabilidade. Por um lado, supde que os elementos de base do conhecimento se circunscrevem aos dominios fisicos € biolégicos, deixando em plano secundario a compreensao do conjunto, da mudanca e da diversidade. Por outro, “tende a re- duzir o cognoscivel aquilo que é mensuravel, quantificavel, formalizavel, segundo o axioma de Galileu: os fendmenos s6 devem ser descritos com a ajuda de quantidades mensuraveis. A reducio ao quantificavel “condena 4 morte qualquer conccito que nao se traduza por medida. Ora, nem o ser, nem a existén- cia, nem 0 sujeito conhecedor nio podem ser matematizados nem formalizados”"”’. O principio da redugao opera a partir de conceitos mes- tres e dominios privilegiados ¢ determinantes: explica o huma- no pelo biolégico, 0 biolégico pelo quimico. Assim, a depender do dominio da especialidade do cientista, esse principio subsume o humano ao dominio do meio ambiente, ou das estruturas psf- quicas, ov da historia, da genética, e assim por diante. © quarto pilar no qual se assentava a ciéncia classica era o da Légica Indutiva-dedutiva-identitaria, que se identificaré com a Razio. ao- 20 Por essa logica, tudo que no passa pelo crivo da razao é expur- gado da ciéncia. O principio aristotélico da identidade excluira o que é variante e contraditério. Esse principio privilegia a or- dem e 0 que é inferivel a partir de um sistema de premissas. “Uma tal logica”, diz Morin, “é estritamente aditiva ¢ no pode conceber as transformacoes qualitativas ou as emergéncias que sobrevém a partir das interagGes organizacionais. Ela fortalece o pensamento linear que vai da causa ao efeito”"*. A julgar pelo pragmatismo, normatividade e hermetismo desses quatro pilares do conhecimento, poder-se-ia supor que eles permaneceriam inabalaveis para sempre. Suposi¢a’o equi- vocada: a ciéncia do século XX, em meio ao conjunto desordenado de seus avangos, provocara um abalo sismico que os atingira. “Os quatro pilares so desse modo sacudidos pelo surgimento da desordem, da n&o-separabilidade, da nao- redutibilidade, da incerteza logica””” . . Em meio ao big bang dos avangos do conhecimento e a crise dos principios que norteavam a ciéncia classica, coube a Edgar Morin assumir 0 desafio de religar e fazer dialogar 0 que & partida se constituiam em revolugées dispersas por dominios disciplinares. Se, pois, as ciéncias da complexidade nao tém patri- maternidade definida, o método complexo tem, em Edgar Morin, seu artifice e construtor. Para empreender uma investida de tal dimensao, Morin abre mio de sua formacao disciplinar para, sistematica e obsti- nadamente, penetrar em territorios dispersos e gravidos de frag- mentos de complexidade. De que metier Morin faz uso para isso? Se é possivel iden- tificar as ferramentas morinianas, estas sio a migracio conceitual ea construcao de metaforas. Migra¢do conceitual de um domi- nio para outro, o que garante a ressignificacao e ampliacio de conceitos ¢ nogées, originariamente disciplinares; construgio de metaforas, que permitem religar homem e mundo; sujeito € objeto; natureza ¢ cultura; mito e dggos; objetividade e subjetivi- 2t dade; ciéncia, arte ¢ filosotia; vida e idéias. A partir desse weffer, melhor dizendo, dessas ferramentas, Morin tem, sobretudo a partir dos anos 1970, formulado incansavelmente os argumen- tos, as premissas e os fundamentos de uma déncia nova — funda- mentos, premissas ¢ argumentos que devem alimentat sma refor ma do pensamento. “C) problema da complesidade nao é nem con- cebidg nem formulado nos meus esctitos antes de 1970”, con- forme palavras de Motin no livro Ciéseia com Consciéncia, Nao é s6 na biologia, na teoria da informagao e na cibex- nética que nosso “contrabandista dos saberes” vai buscar os fios para tecer o exercicio do pensamento complexo. Também da fisica retira principios e leis que funcionam como operadores que transversalizam as ciéncias da vida, do mundo fisico « do homem. Assim, a nogao de esiropia agrega-se a outras tantas pata exemplificar que tanto a desordem como o ruido € 0 acaso estao no interior ¢ no exterior de qualquer fendmeno, o que Ihes possibilita permanentes reorganizag6es, ou seja, novas or- dens que se desordenam e reordenam scm cessat. Esse atgu- mento, facilmente aceito em se tratando de fendmenos fisicos, climaticos ou ecoldgicos, encontra terreno de ressonancia ex- tremamente fércil no ambito dos fendmenos sociais e dos siste- mas de idéias, Nao se trata de transpor modelos, mas de potencializar operadores cognitivos que facilitam a compreen- sao da complexidade no mundo, porque permitem reconhecer, no singulas, a0 mesmo tempo sua originalidade € sua macro identidade. Numa sintese artojada a esse respeito, diz Iya Prigogine: “Ha uma histéria cosmolégica, no interior da qual ha uma histéria da matéria, no interior da qual ha uma histéria da vida, na qual hé finalmente nossa propria histéria’’. A fecundidade da construgao do Método por Edgar Morin esta no fato de tentar religar, no dominio do pensamento, o que jA se encontra direta ou indiretamente interconectado no mun- do das materialidades e das topologias imaginarias. Longe, pois, das transposigdes mecanicas de conceitos, oriundos da biolo- 22 gia, da fisica ou da teoria da informagio, trata-se mais propria- mente de exercitar o pensamento metaférico no que ele tem de mais incitador: aproximar, relacionar, fazer dialogar ¢ buscar pontos de aproximagao entre as complexas singularidades da matéria, mesmo que no se deva descuidar dos perigos da extrapolacao indevida das metéforas. A construgao ‘de um Método que ultrapasse 0 modelo redutor e disjuntor no qual se ancora o pensamento simplificador € 0 desafio maior que Edgar Morin abraca. Esse desafio se en- contra objetivado no conjunto de cinco livros que se complementam e tém inicio em 1977, data de publicacio do primeiro volume de O Método” . Trata-se de um método capaz de absorver, conviver e di- idade e dialogia que mo- alogar com a incerteza; de tratar da recursin vem os sistemas complexos; de reintroduzir 0 objeto no seu contexto, isto é, de reconhecer a relacao parte-todo, conforme uma configuracao hologramatica; de considerar a wnidade na diversi- dade ¢ a diversidade na unidade; de distinguir sem separar nem opor, de reconhecer a simbiose, a complementaridade, e por vezes mes- mo a hibridacdo, entre ordem e desordem, padrao e desvio, re- peticio e bifurcagao, que subjazem aos dominios da matéria, da vida, do pensamento e das construgées sociais; de fratar do para- doxo como uma expressao de resisténcia ao dualismo disjuntor €, portanto, como foco de emergéncas criadoras e imprevisiveis; de introduzir 0 sujeito no conhecimento, o observador na reali- dade; de refgar, sem fundir, ciéncia, arte, filosofia ¢ espiritualidade, tanto quanto vida e idéias, ética e estética, ciéncia e politica, saber ¢ fazer. Aberto e em construcao, o método proposto por Edgar Morin se distancia de uma pragmatica e expde principios organizadores do pensamento complexo. Nao permite inferir stiga- um protocolo normativo, nem uma metodologia de inv cdo. Imbuido do poema de Antonio Machado, para quem “o caminho se faz ao andar”, Morin nao oferece ao conhecimento 23 cientifico uma tabua de mandamentos, mas insufla o cientista a, de posse de principios fundamentais e gerai prios caminhos técnicos ¢ metodolégicos no fazer ciéncia, edu- , ensalar seus prd- cacao e pesquisa. A chave compreensiva para essa maneira de pensar um novo métedo centifico esti na distingdo entre estra programa, “O programa & construido por uma seqiiéncia pi estabelecida de agGes encadeadas ¢ acionadas por um signo ou sinal. A estratégia produz-se durante a ago, modificando, con- forme o surgimento dos acontecimentos ou a recepcdo das in- formacdes, a conduta desejada”. E, pois, com a estratégia de pensar que se compromete o método complexo, deixando a cada cientista © desafio de escolher € arquitetar 0 conjunto de con- duras e formas de abordar o problema a ser compreendido. Em sintese, principios gerais capazes de dialogat com a incerteza, a imprevisibilidade e a causalidade multipla so os fundamentos do método complexo construido por Edgar Morin. O cardter inaugural desse método reside no fato de se tra- tar de uma proposi¢ao capaz de ser acionada pot qualquer 4tca de conhecimento. Esse fato, longe de configurar um modelo uni- versal ¢ unititio que dilui a distingZo entre areas disciplinares ¢ dominios cognoscentes, permite o didlogo entre eles. Isso por que, a partir de prinefpios gerais, as diversidades e singularidades dos fenémenos se conectam, seja por propriedades comuns, por campos de vizinhanga ou por oposicSes e complementaridades. Certamente 0 novo patamar de organizagio do conheci- mento permitido pelo método complexo facilita um intercAm- bio mais respeitoso ¢ menos desigual entre areas e disciplinas cientificas. Nao podemos esquecer que a Sociologia, por exem- pio, surgiu com o nome de Fisica Social, o que denota uma trans- posicaéo do modelo de pensat o mundo oritundo da Fisica. Hoje, diferentemente da época de Augusto Comte, a hegemonia de fatias da ciéncia entendidas como nobres (porque “exatas”) tende a ser substituida por uma confederacao mais democratica dos conhecimentos. 24 A imagem da orquestra que faz conjugar sons de instru- mentos distintos numa sinfonia talvez seja fecunda para com- preender ¢ visualizar os horizontes da ciéncia que se inaugura. Os desafios miltiplos, diversos ¢ simultancos que emergem de uma sociedade-mundo, e um método nao pragmatico de conhecer so as bases para o momento de reorganizacéo do conhecimen- to cientifico que estamos a construir. EF. preciso repetir com Ilya Prigogine que o futuro esta aberto. Se néo ha como predizé-lo, ha sim como iluminar, destacar e apostar nos “possiveis” que esto em flutuacao e podem se consiituir em emergéncias de complexidade do pensamento. © Que & comPLEXIDADE? Uma constelacio de propriedades e compreensées diver- sas cercam a noc&o de complexidade. Do que se trata? De um método? Uma teoria? As duas coisas? Uma propriedade atinente a alguns sistemas? Um atributo de todos os fendmenos? Essas perguntas poderiam se multiplicar, uma vez que, com a utiliza- cao crescente da palavra complexidade na ciéncia, multiplicam-se também as acepcées a ela imputadas. Essa face da construcio do conhecimento é positiva porque evita a cristalizagio de um unico sentido, mas ela também dificulta uma compreensao mais acurada da nocéo de complexidade e a banaliza. “Para evitar explicar”, diz Morin, “afirma-se cada vez mais “isto é comple- xo”. Torna-se necessatio proceder a uma verdadeira reviravolta € mostrar que a complexidade constitui um desafio que a mente pode e deve ultrapassar, apelando a alguns principios que per- mitem 0 exercicio do pensamento complexo””*. Essa sintética forma de anunciar a complexidade — “um desafio que a mente pode e deve ultrapassar” ~— se desmembra num conjunto de atgumentos que facilitam sua compreensio. E, mesmo que esses argumentos tecam toda a obra de Edgar Morin, eles se encontram de forma sintética nos livros A intel- 25 géncia da complexidade, de Morin ¢ Le Moigne™, ¢ [duear na era blanetdria, de Morin, Ciurana e Motta™ . Fixemos, a partir dessas obras e de fragmentos das idéias de Ilya Prigogine e outros autores, um conjunto de argumentos que permitem circunstanciar a compreensao da complexidade. 1, Quando dizemos “isto ¢ complexo” estamos confes- sando a dificuldade de descrever e explicar um objcto que com- porta diversas dimensées, tracos diversos, indistingio interna. Confessar a dificuldade de descrever um objeto nao redunda na compreensio da complexidade, mas atesta a intuico de que ha fendmenos mais complexos do que outros. De fato, ha niveis de complexidade distintos nos fendmenos. Quanto mais aberto um sistema, quanto mais dom{nios incidem sobre ele, maior sua complexidade. A condigao humana, o sujeito, a sociedade, a cultura, a educac&o e a politica sio mais complexos do que a dindmica das marés, 0 nascimentn ¢ a morte das estrelas, um programa de computador, o equilibrio da cadeia entrépica dos seres vivos. Ou seja, podemos falar com maior aproximagao e pertinéncia sobre um abalo sismico, as tect6nicas das placas eo fim das reservas fosseis do planeta Terra, do que tratar satisfa- toriamente do fendmeno da violéncia humana, dos processos de aprendizagem e da producao do conhecimento. 2. [i preciso distinguir complexidade de complicagin. A com- plexidade “difere da complicacdo, com a qual é confundida, por preguica intelectual ou por galanteria tedrica”™. O complicado pode set decomposto em partes, tantas quantas forem necessa- rias para permitir sua compreensao. Esse ¢ um dos postulados do Método de Descartes: dividir para explicar melhor, tornar inteligivel. O complexo, ao contrario, é “tecido de elementos he- terogéneos inseparavelmente associados que apresentam a rela- ao patadoxal entre 0 uno eo miltiplo”™ . Assim, se decompo- mos um fendmeno complexo “dividindo” os elementos € as dimensées que 0 constituem, estamos operando pelo modelo mental da simplificagao. Nao podemos, em relagdo a um com- 26 portamento humano, dissociar as dimensdes sociais das biolo- gicas, da singularidade do sujeito, dos condicionamentos do momento etc. Quando agimos por simplificacdo, incorremos no erro de tomar a parte pelo todo, de identificar uma causa unica, de reduzir o fendmeno a uma de suas dimensdes. Na tentativa de resolver a “complicacio”, produzimos a simplifica- cao, isto é, fragmentamos o complexo, reduzindo-o a uma de suas dimensées. 3. O complexo comporta a inverteza. “Em toda a comple- xidade existe a presenga de incertezas, sejam empiricas, sejam tedricas, ¢ mais freqiientemente ao mesmo tempo, empirica e teética”’®. Quanto maior a complexidade, maior 0 peso da in- certeza. Disso decorre, pois, que: 4. O complexo é marcado pela imprevisibilidade, Justamente porque sobre ele incidem miltiplas causas, elementos diversos que interagem entre si ea aptidio para se modificar em funcao de eventos ¢ informagGes externas, nao é possivel prever a tendén- cia de um fendmeno complexo. Nas palavras de llya Prigogine, “nunca podemos predizer o futuro de um sistema complexo”” . “A impprevisibilidade essencial é, sem divida, a caracteristica mais ge- tal que associamos a complexidade. A nogio foi introduzida por Paul Valéry (Cahiers) e retomada por M. Bessis””. 5. O complexo é ndo-deterministico, nao-linear e instavel. Os fenémenos complexos nfo se regem por leis universais ¢ imuté- veis; nao € possivel inferir uma seqiiéncia linear de sua dinamica porque ele é caracterizado pela instabilidade, pela variacdo im- prevista. “Na concepgao classica, o determinismo era funda- mental e a probabilidade era uma aproximagao da descri¢ao determinista, derivada da nossa informacao imperfeita. Hoje é © contrario: as estruturas da natureza obrigam-nos a introduzir as probabilidades éndependeniemente da informac4o que possui- mos. A descricio determinista no se aplica de fato a no ser a situacdes simples idealizadas, que nio sio representativas da realidade fisica que nos rodeia”!. Essa referéncia feita por 27 { Prigogine no que tange A tcalidade fisica, se torna mais perti-! nente ainda em relagéo aos dominios bioldgicos, ecolégicos € humanos. Nao € possivel determinar 0 futuro das organizagdes vivas, do ecossistema terrestre nem das sociedades. Como siste- mas hipercomplexos, esses dominios sio constituidos por trocas intensas e permanentes, tanto no seu interior quanto com a re- alidade que os contornam. Como é impossivel identificar, co- nhecet € tratar de todas as informagées e da relacao entre elas, é-nos igualmente impossivel conceber deterministicamente seu devir. E isto porque: i 6. O complexe se constrdi e se mantém pela anto-organiza- so, propriedade pela qual alguns sistemas tratam internamente suas informacées, regenerando-as, modificando-as e gerindo novos padrées de organizacdo. Como os fendmenos comple- xos s&o sistemas abertos, dependem do meio ¢ com ele troca informagées, o complexo é mais propriamente um sistema auto- eco-organizado, \sto é, para sc manter, trata a informacao que lhe chega a partir dos scus padrdes de ordenacao interna ¢, quanto mais flexiveis so esses padrdes, maior a capacidade de absor- ¢ao de elementos estranhos e de “ruidos”. Nisso reside como que uma medida de complexidade: quanto mais informagdes adversas um sistema é capaz de absorver, ressignificando-as e reintegrando-as ao seu nicleo organizador, mais compleso é. Dois exemplos que podem scr simplificadores, mas permitem entender © processo referido, dizem respeito a barata e ao cu- pim. Estando exposta ao bombardcio de inscticidas ao longo do tempo, a barata, longe de enfraquecer seu padrao de organi- zacao e caminhar para o exterminio da espécie, tem apresenta- do uma resisténcia admiravel, 0 que indica uma auto-eco-orga- nizagao consideravel. Quanto ao cupim, sabemos que esse is6ptero se alimenta de celulose de madeira ¢ habitualmente constréi seu ninho nas arvores. Atualmente, por causa, sobre- tudo, do desequilibrio do ecossistema (desmatamento excessi- vo e conseqiiente comprometimento de seu habitat natural), esse 28 animal tem, estranhamente, por vezes construido seus novos caminhos € ninhos no interior das estruturas de concreto dos prédios urbanos. Esses dois exemplos de capacidade de resis- téncia 4 adversidade (que se ampliam se nos damos conta da mutacao dos virus, das viroses chamadas inespecificas) assu- mem patamares hipercomplexos se considerarmos a sociedade, o individuo e a construcio do conhecimento. 7. O complexo é marcado pelo inacabamento. Est sempre em evolucio, mutacio, transformacao. Tem aptidao para se trans- formar, criar novos padrées de organizacao, mas a transforma- cao nao supde uma direcao determinada nem necessariamente gera aumento de complexidade: a regresséo de complexidade e a desordem desestruturante parasitam os sistemas complexos € ¢ comprometimento. E a pro- podem se constituir em ameat priedade do inacabamento que permite a interagdo com outros fendmenos, matérias e sistemas. Disso se depreende-que: 8. O complexo é simultaneamente dependente € autinomo. Necessita de contexto, do entorno, mas se organiza a partir de si. Um bom exemplo da relacao estreita entre autonomia e de- pendéncia é 0 proceso cognoscente. Como sabemos, para co- es que nos chegam nhecer é necessario processar as informag: de fora: dependemos de um meio, um contexto, uma cultura acumulada, um estoque de informacées. Por outro lado, s6 pro- duzimos conhecimento (isto é, tratamos as informagées que nos chegam) a partir de nds prdprios, de nossos modelos cognitivos. Ninguém pode conhecer por mim, no meu lugar. Esta € a face da autonomia cognoscente. Todo “sujeito conhece por si, em si, para si”, ressalta Edgar Morin. A simbiose entre autonomia e dependéncia nao se restringe ao processo de pro- ducio de conhecimento. E uma dinémica essencial dos siste- mas complexos. Assim, no que diz respeito a construcio social do individuo, podemos dizer que quanto mais depende das in- formagées, vivencia situacées diversas e experimenta miltiplos “estados do ser”, mais possibilidades tem 0 individuo de se auto- 29 otganizar em patamares mais complexos e abertos. A autono- mia ¢, pois, a face bem-sucedida da dependéncia. 9. O complexo comporta, supde ou expressa emeredntias. Como o que é da ordem do acontecimento novo € nao previsi- vel, aemergéncia é uma noc crucial para compreender a com- plexidade. © surgimento da vida foi uma emergéncia em rela- cio ao dominio do nio-vivo; uma descoberta cientifica € uma emergéncia em telagao ao conjunto de conhecimentos ja con- solidados; o aparecimento de uma nova espécie (a espécie hu- mana, p.ex.) constitui urna emergéncia na cadeia da evolugio animal; um novo paradigma é uma emergéncia na histéria do conhecimento, ¢ assim por diante. A emergéncia diz respeito a uma combinacéo original de elementos ou padres ja existentes. ‘Nas palavras de Hubert Reeves, “essas combinacGes sao porta- doras de propriedades novas, ditas emengentes, que nao preexistiam absolutamente nos elementos isolados. A molécula de agua, por exemplo, é um excedente solvente, 0 que nao séo de forma al- guma 0 hidrogénio ¢ 0 oxiggnio que a compéem””. Mesmo que nao se possa compreender a dinamica imprevisivel da emergén- cia, ha que se ter em conta a relagao incerta entre os “dois ele- mentos fundadores da complexidade na escala universal: as leis € 0 acaso” (Hubert Reeves). Dito de outro modo, a emergéncia supée relagdes inaugurais entre padrao e variacio; universal € particular; unidade e diversidade. A criacio artistica e a singula- ridade do sujeito sao (de forma analégica ao que ocorre com a matéria em geral), expressGes da emergéncia no dominio da cultura humana. Vejamos o que diz a esse respeito Hubert Reeves: “Ao colocar na tela as matérias coloridas e a0 combina- Jas com seu génio, Van Gogh pinta quadros sublimes. A associa- ao das cores, na configuracao decidida pelo pintor, faz emergir essas propriedades picturais que tanto nos comovem. Da mes- ma forma, Johann Sebastian Bach, no seu cravo ou no 6rgio, dispée inicialmente notas que seus dedos fazem soar. A partitu- ta terminada da fuga possui, em relacao a esses sons iniciais, um es 30 “valor agregado” que a fara entrar facilmente no patriménio humano. A analogia, como 0 comportamento da natureza, en- contta-se ainda no nivel “do acaso e da necessidade” — para empregar as palavras de Deméctito. Cada época musical tem suas regras de escuta faceis de reconhecer: por exemplo, a mu- sica elisabetana, o barroco, e hoje a mtisica tecno. Essas regras estruturam a obra em suas grandes linhas, mas nao determinam absolutamente sua forma final. Johann Sebastian Bach escreveu 354 cantatas no mesmo estilo, mas diferentes, e tendo cada uma amarca de seu génio”*. A emergéncia como singularidade nova ¢ nio previsivel da qual fala Reeves poderia, resguardados os limites das analogias, ajudar a compreender a singularidade dos sujeitos humanos. Assim, das hipoteses, argumentos e pesqui- sas de Boris Cyrulnik™ , poderiamos inferir que a construgao de cada sujeito esté atrelada a uma combinacao original de dois dominios que lhes precedem: a constitui¢ao biolégica da espé- cie ¢ 0 patrimdnio genético “mixado” por seus pais. Poderia- mos dizer, pois, que cada sujeito é uma emergéncia — portanto uma composicao nao previsivel, nem determinada — do domi- nio biolégico da espécie e da configuracio genética herdados. E Obvio que nao se trata aqui da mesma emergéncia aludida por Reeves no caso da propriedade solvente da agua. Por outro lado, a aproximacao com a composicao da fuga de Bach e a pintura de Van Gogh é mais apropriada, mas, ainda assim, esses dois exemplos nao oferecem elementos fundadores para pensar a reorganizacao do sujeito como uma emergéncia. Seria melhor dizer que talvez estejamos diante de outro tipo de emergéncia, a qual poderiamos denominar de emergéncia discreta, para diferencié-la da emergéncia nos dominios da matéria de modo geral. As emergéncias discretas seriam um tipo particular de emetgéncia, e sio precisamente discretas porque mais comple- xas, mais difusas, mais ambiguas na sua expresso. 10. O complexo se instala /onge do equilibrio. Em suas teses sobre a “dinamica dos sistemas longe do equilibrio”, Ilya 31 Prigogine trata dessa caracteristica dos sistemas complexos. Vi- vendo da instabilidade, 0 complexo produz bijircacées, porque admite novos acontecimentos; provoca fixtuagdes, uma vez que se alimenta dos “possiveis” ¢ das probabilidades, mesmo que nao induza tendéncias. Nas palavras de Morin, Ciurana e Motta “nao é possivel prever com exatidio como se comportarao es- ses sistemas (dinamicos) para além de certo tempo, uma vez que parecem nao seguir nenhuma lei c ser regido pelo acaso”**. 11. O compleso vive da fensco entre determinismo e liberdade. Mesmo sendo instaveis, dinamicos e imprevisiveis, os fendme- nos complexos nao escapam aos determinismos da naturcza. Através de argumentos sofisticados, ¢ além de tudo desconfortaveis para as getagGes de intelectuais que defende- ram © livre-arbitrio como liberdade ¢ autonomia sem limites, Henri Atlan discute a relacio entre determinismo e liberdade como uma das caracteristicas dos sistemas complexos ¢ em es- pecial da complexidade humana. Nesse caso, nao sendo o homem nem um foguete no interior de um projeto teleoldgico predeterminado, nem um qualquer determinagao, esta ele atrelado a condigdes das quais nao pode escapar, devendo ele, no interior dessas, determina- goes, gerir seu destino, fazer suas escolhas. “Descobrimos, cada vez mais, mecanismos que explicam como nossos comporta- mentos, que acreditavamos livres, sao causados por isso ou aqui- lo”*. Entreranto, assinala Atlan, “o fato de que sejamos deter- minados em nossas escolhas € nossas a¢des nao implica neces- sariamente que nio sejamos responsiveis™*. Longe disso, “uma nova concepgio da responsabilidade pode ¢ deve emergir de 0 er que define seu destino livre de uma ética do determinismo’ Esse elenco de caracteristicas, propriedades e nocdes que dizem respeito ao que é complexo nao esgota sua compreen- sio, No artigo “Sobre el Concepto de Complejidad: de la Insimplificable a la Fraternidad Amante (Complejidad hipercomplejidad en la obra de Edgar Morin”, Solana Ruiz empre- 32 ende uma atrojada arqueologia do conceito na obra de Edgar Morin. Os onze tépicos elencados nessa introducio nfo tratam, pois, de fixar uma definigio de complexidade, mas de indicar caminhos e pistas para sua compreensio. “Qualquer que sejam as definicées, a complexidade surpreende pela irrealidade, ou melhor, pela itreversibilidade do seu contetdo. E uma nocio nao-positiva por exceléncia”™' Para Le Moigne, a compreensao do que seja complexida- de nao se reduz 4 dissecacao de sua natureza. “A complexidade talvez no tenha realidade ontoldgica: ela € uma propriedade intrinseca de certos componentes do universo, ou de certos sis- temas? Ou, ainda, ela é uma propriedade atribuida a certas des- cricdes de certos sistemas?**. Para 0 autor, essas questdes, que nao elucidam o problema da complexidade, suscitam entretan- to “debates muito bem-vindos” para sua compteensgo. E den- tro desse espirito que Le Moigne formula um argumento sinte- se importante. “Sera complexo o que certamente nao é total- mente previsivel ¢ as vezes nfo localmente antecipavel”®, As quest6es formuladas no inicio desse tépico, tanto quan- to aquelas retotalizadas por Le Moigne, circunscrevem um pto- blema propriamente epistemolégico recorrente na historia da ciéncia: estariamos diante de uma propriedade intrinseca dos fendmenos ou a complexidade diz respeito a uma caracteristica de certas descricdes, isto é, de certas formas de narrar 0 mun- do? Certamente essa disjun¢4o nao faz mais sentido como tal, se considerarmos o panorama das reflexGes sobre as ciéncias contemporaneas. Edgar Morin, Humberto Maturana, Rupert Sheldrake, Bruno Latour, Isabelle Stengers, llya Prigogine, David Bohm e Michel Serres, entre outros e cada um a sua maneira, ja problematizaram os sintomas de uma nova percep¢ao da reali- dade; 0 problema da introducao do sujeito no conhecimento; a recursividade entre a narrativa e o mundo; os campos e domini- os de ordens que transversalizam o ser ¢ 0 mundo. E mais apro- 33 priado no momento lidar com o desafio do didlogo entre as descrigdes dos fendmenos e suas propriedades. Esse é, mini- mamente, o horizonte comum das “ciéncias da complexidade”. Se nio é, pois, promissor resolver a equacio disjuntiva (os fendmenos sao em si complexos ou o pensamento é que articula de maneira complexa os fendmenos), resta saber de quais ferramentas podemos nos valer para construir um modo de pensar e de fazer ciéncia capaz de ultrapassar a explicacao pela compreensao. As metodologias, as técnicas de investigacio, os conceitos ¢ mesmo “uma” teoria especifica ndo se constituem em ferramentas adequadas e suficientes para tal empreitada. A resposta ¢ a aposta de Edgar Morin a respeito dos desafios da complexidade se direcionam para um método de pensar, pro- duzir e organizar 0 conhecimento. Tecido por principios gerais que dizem respeito 4 complexidade dos fenémenos, tanto quanto do dominio cognitivo do sujeito, o Método Complexo nao se restringe a um programa que articula metodologias. “As metodologias sao guias a priori que programam as pesquisas, enquanto 0 método, derivado do nosso percurso, seré uma aju- da a estratégia” de conhecer"’. Daf porque, para Morin, 0 “ob- jetivo do método é ajudar a pensar por si mesmo para respon- der ao desafio da complexidade dos problemas’* EsTADO DA ARTE DAS CIENCIAS DA COMPLEXIDADE Dado que a emergéncia da complexidade se deu na interface entre dominios diversos do cenhecimento; na relagao entre o fenomenal eo cognitivo; ¢ também por meio de hipdie- ses cientificas isoladas que redundam em desdobramentos dispersos, é temerario, se nao impossivel, fazer um balango ou um diagrama do panorama atual dessa ciéncia nova. Mesmo assim, é importante destacar alguns cendrios que sirvam de guia para construir, provisoriamente, o estado da arte dessa perspec- tiva de ler, compreender ¢ narrar 0 mundo. 34 Numa escala telescépica, portanto ampliada, mas difusa, es de investimentos poderfamos visualizar duas constel atinentes 4 complexidade: uma mais pragmatica, outra mais paradigmatica. A primeira diz respeito 4s pesquisas € constru- c6es intelectuais que se atém 4 modelizacio e aplicabilidade do conceito. Habitando 0 espaco académico, mas também Institu- tos de pesquisas interinstitucionais, grandes empresas e Orga- nizagdes n’io-governamentais, cientistas ¢ administradores tém investido em moielos de compreensao dos fendmenos fisicos e sociais com base nas idéias de indecidibilidade, incerteza, emer- géncia, mobilidade instavel, reorganizagio dos padrées de de- sordem, entre outras. C eixo central dessa primeira constelagio se apéia no con- ceito de sistemas complexos. A idéia de um sistema que se auto- organiza, em funcao da relacao com seu entorno e apresenta aber- ura pata receber novas informagées ¢ ruidos, tem fornecido modelos para discutir “geréncia empresarial”, “administragio de recursos humanos”, ptojetos ambientais e ecoldgicos, tanto quanto tem permitido intervengdes mais pontuais — como € 0 caso das pesquisas de perfurac&o do solo para extrair petréleo. Também as pesquisas na interface entre Complexidade e Biofisica merecem destaque. Para os biofisicos ha sistemas fisi- olégicos nos quais os padrdes de bifurcacdes so similares em diferentes escalas: as redes vasculares e neurais so exemplos de estruturas fractais. Para citar uma referéncia, é nessa direcio que o Grupo de Biofisica Tedrica e Computacional da UFRPE, coordenado pelo biofisico Romildo Nogueira e 0 oftalmologis- ta Fabricio S4 vem desenvolvendo suas pesquisas. Na 4rea da Administragao, os conceitos de sistema e com- plexidade sio hoje, tidos como imprescindiveis para 0 estudo das organizacées (identificadas como estruturas naturalmente complexas, como partes gue ora se juntam e ora se separam, prefigurando sempre novas configuragées). As empresas sio compreendidas como sistemas adaptativos, capazes de apren- 35. der, continuamente, em um processo de auto-regulacao. Essa visio da empresa como um sistema complexo tem sido propos- ta por alguns autores, entre os quais Angela Nankran, do Ni cleo de Estudos da Transdisciplinaridade (NET), do Complexo Educacional dos Guararapes, em Jaboatio, Pernambuco. Em sintese, nesse conjunto diverso, que configura uma primeira constelacao dos estudos da complexidade, cabe ao con- ceito de sistemas complexos o papel de aglutinador de uma rede de nogées e ferramentas cognitivas, entre as quais as nogdes de fractal, acaso e teorias do caos. As simulagées em computador que permitem contabilizar categorias e propriedades nao-dedutiveis dos fendmenos em si, tanto quanto o conceito de wbigiitdade, eis de fendmenos fisi- que permite pensar situagGes imprevisi cos € de dinamicas populacionais, sio bons exemplos de modelizagées. Convivendo lado a lado com essa primeira constelacio, uma outra aglutina pesquisas e construcées tedricas de base pre- dominantemente epistemoldgica. Sobretudo alocados nos es- pacos universitarios, mas também tecendo redes de interlocugao extra-académica ¢ interinstitucional, pesquisadores e intelectuais de varios dominios da ciéncia tem se dedicado de forma siste- matica 4 reflexio sobre a nova “fabricacio da ciéncia”. Marcada pela diversidade de escalas e formas de abordagens, essa cons- telacdo se concentra na rediscussio de conceitos matriciais da ciéncia como os de verdade, objetividade, razio e realidade, e investe fortemente na construgao de operadores cognitivos ca- pazes de religar disciplinas e areas de conhecimento. Como de- corréncia da reflexdo fundamental sobre 0 conhecimento com- plexo, e da meta de uma “reforma do pensamento”, comecam a se consolidar projetos educacionais orientados para reduzir a fragmentacao do conhecimento. Projetos de reforma da educa- cio (do ensino fundamental ao universitario); reorientacdo dos princfpios de organizacio dos curriculos; articulacio entre ati- vidades escolares e extra-escolares, bem como a criacio de es- pacos institucionais estruturados para facilitar 0 exercicio da transdisciplinaridade, sao alguns dos cenarios que emergem em decorréncia dessa segunda constelacdo de investimento na com- plesidade. Os personagens dessa constelagio, mesmo que se reconhecam por sua identidade de otigem — gedgrafos, epistemdlogos, fildsofos, matematicos, socidlogos, cognitivistas, bidlogos, fisicos, antropdlogos etc. — estéo a construir o proté- tipo de um cientista hibrido, mestico em seus pertencimentos e travessias disciplinares. E claro que essa perspectiva telescopica nao permite iden- tificar os avancos e os entraves do pensamento complexo leva- dos a efeito nos espacos microscépicos e pontuais. Mas, certa- mente, s¢ considerarmos 0 panorama colocado é possivel des- tacar 0 que parece se constituir um paradoxo — isso se atenta- mos para o horizonte da religacdo para o qual apela o pensa- mento complexo. Assim, temos de um lado um investimento pragmatico (aplicabilidade/modelizagao da complexidade), de outro uma aposta paradigmatica (reflexao epistemolégica que privilegia um método). Estarfamos diante de uma impossibili- dade estrutural de reorganizagao do conhecimento em patama- res complexos, dado nosso modelo dual de producao da cién- cia? Sim e nfo. Sim, se compreendemos a modelizacao e a aplicabilidade como engenhos das “tecnicidades” desprovidos de criag4o e mobilizacdo cognoscentes — o que, obviamente, € uma concepcao simplista. Sim, também, se supormos ser possi- vel uma reflexdo fundamental desprovida dos elementos mate- riais e dos fendmenos que oferecem substrato e vida ao regime noolégico —e isso seria uma outra simplificagao. Mas é possivel responder igualmente que no estamos diante de uma impossi- bilidade. Isso porque, da oposigio entre os eixos da modelizacio e da epistemologia podem emergir complementaridades, retotalizacao € mesticagens. Mesmo assim, a hipdtese de uma construcdo dualizada das ciéncias da complexidade deve nos alertar para 0 cuidado de nao fragmentar, & partida, o que se 37 projeta como uma ciéncia da religacao de saberes e areas disci- plinares, tanto quanto da dialégica entre especulacio e experi- mentagao. Talvez 0 Coléquio sobre “emergéncia”, que ocorreu na Universidade de Stanford durante cinco intensos dias em agos- to de 2002, seja emblematico para compreender os sintomas da religagdo que contamina a ciéncia no ambito planetario. “Vinte estudiosos de diferentes getages e uma gama de disciplinas que variava da pesquisa actistica, passando pela fisica tedrica, teologia e estudos de direito”, além de bidlogos, literatos e pré- mios nébeis, discutiram as interfaces entre suas especialidades e como que “experimentaram” a contingéncia do conceito de emergéncia. Para eles, a co-emergéncia € uma nocio matricial para compreender 0 processo de producao do conhecimento, ou seja, o observador ¢ o fendmeno emergem juntos. O Manifesto de Stanford afirma, entre outras coisas, que © observador nio se restringe ao sujeito humano e advoga a “possivel existéncia de observadores no humanos para os quais os fendmenos emergem, observadores que nao partici- pam da linguagem ou que nao tém sentimentos e consciéncia ou ao menos aos quais nao possamos facilmente atribuir essas aoa7 qualidades”*’. Mesmo que nao venha ao caso discutir, aqui, os pontos principais do referido manifesto — que apela entre outras coisas para a “liberdade, coragem e 0 risco de trabalhar sem objetivos predeterminados” — cabe registrar uma certa surpresa de teste- munhar emergéncias de complexidade da ciéncia no pais do Tio Sam, que conforme a imagem consagrada é 0 pais do pragmatismo por exceléncia. O Manifesto norte-americano, na verdade, reedita e le- gitima hipoteses, reflexdes, apostas e apelos, j4 formulados a partir dos anos 60 do século passado, e lapidados sobretudo por Edgar Morin, mas também por Humberto Maturana e Francisco Varela, Boris Cyrulnik, Henri Atlan e Ilya Prigogine, 38 para citar alguns dos pensadores nos quais se reconhece o pioneirismo de inaugurar uma ciéncia nova, complexa, transdisciplinar, capaz de conviver e dialogar com as incerte- zas € os mistérios do mundo. Esse mapa inacabado da complexidade, que teve por objetivo indicar pistas para uma compreensao complexa da ciéncia, pre- cisa interromper seu tracado que perfila caminhos, vilas, ruelas e oasis da complexidade. Deixemos ao leitor o espago para completé-lo. Os artigos contidos neste livro organizado por Aldo Dantas e Alex Galeno talvez possam desvendar outros cami- nhos e descaminhos da complexidade nao anunciados aqui. Noite de “fim de verio” em Natal/RN Notas ' STENGERS, Isabelle. A invengio das ciéncias modernas. Sio Paulo: Editora 34, 2002. > ALLEGRE, Claude. Deus face @ Ciéncia. Traducio de Luis Serrano. Portugal. Lisboa’ Universidade de Aveito/ Gradiva, 1998. p.26. ALLEGRE, opcit,. p37. + Contratiamente a0 ar de novidade com o qual alguns autores tratam do fendmeno da globalizacio, Edgar Morin circunstancia esse fendmeno qualiticando-o em trés tapas. Para Morin, estamos hoje no terceiro momento desse processo que ele prefe- re chamar de mundializacio. A primeira etapa corresponde ao fiuxo de comunicagio intercontinental maesteado pela colonizacio e responsével, entre outras coisas, pelo intercimbio dos micrdbios ¢ doencas (sifilis, gripe etc). * Pronunciamento de Ilva Prigogine na UNESCO, em outubro de 1999. Publicado na Folha de Sao Paulo, 30 de janeizo de 2000. Republicado em PRIGOGINE, lly Citicia, raxao e paixéo, (Organizado por Edgard de Assis Carvalho e Maria da Concei- cio de Almeida), Belém: EDUEPA, 2001. p.15 a 20 * PRIGOGINE, Ciéncia, razdo e paixao, op.cit., p.16. ” MORIN, Edgar. Preficio (coro de vozes) a0 liveo Polifimicas Idéias: por uma ciécia aberta. (Organizado por Maria da Conceicio de Almeida, Margarida Maria Knobbe e Angela Almeida). Porto Alegre: Sulina, 2005, p.7. ® MORIN, opcit, p7. ° STENGERS, Isabelle. 4 invencao das cincias modernas, opcit., p.186. Apud STENGERS, opcit,, p.186. "Nos liveos O bomem simbidtico © O macroscdpio, Joel de Rosnay fala da necessidade de identificarmos os “fatos portadores de sentido do futuro” como um método retsoprospectivo capaz de organizar modelos mais simbiéticos, cooperativos ¢ dura- douros de sociedade. Penso que a expressio de Rosnay pode ser estendida para re- ae pensar 0 dominio do conhecimento e, em particular, do fazer cientifico. © PRIGOGINE, liva e STENGERS, Isabelle. Entre o tempo + a eternidaate. Sto Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.13 ° MORIN, Edgar e LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteliggncia da complexidade. Tradu- go Nurimar M. Falci. Sie Paulo: Peirépolis, 2000, p.46 e 4”. ' MORIN e LE MOIGNE, op.cit,. p.206. SE importante acentuar a revolugio permitida por René Thom e Bendit Mandelbrot na Matematica. Segundo I. Stengers, “Thom defende uma forma de matennitica “‘nd- made”, cuja vocacio seria nio a de ceduzir a multiplicidade dos fenémenos sensiveis A unidade de uma descricio matematica que os pudesse submeter 4 ordem da similitude, e sim de criar a inteligibilidade matemitica de sua diferenga qualitativa. A queda de uma folha, entio, nfo seria mais um caso muito complicado de queda de objeto pesado galineano, mas deveria suscitar sua propria matemitica” ... Na matemética fractal de Mandelbrot a revolucao esti no fato de suscitar novos modelos de compreen- der o mundo: “Compreender, significar, criar uma linguagem que abra a possibitida- de de “encontrar” as distintas formas sensiveis de reproduzi-las, sem por isso submeté- las a uma lei geral que forneceria suas razdes ¢ permitiria manipulé-las.” (STENGE! op.cit, p.189 ¢ 190). ° Carwa as fururas geragdes. La: PRIGOGINE, Llya, Cinta, ragio¢ paixdo, op.it, p16. MORIN e LE MOIGNE, opcit, p.06. '8 Idem, idem, p.98. ” Idem, idem, p.103. *” PRIGOGINE, Ilya. Do ser ao devir. In: Nomes de deuses. Entrevistas a Edmond Blactchen. Traducio de Maria Leonor F. R. Loureiro. $40 Paulo: Unesp; Belém, PA: Editora da Universidade Estadual do Paré, 2002, p.26. 3 Sao eles: O Método 1 — a natureza des natureze; O Método 2 — a vida da vida; O Método 3 = o conhecimento do conbecimento; O Métado 4 ~ As idéias — sua vida, habitat, arganizagia; O Método 5 — a iumanidade da humanidade, Ataalmente Edgar Morin se dedica 4 consteu- cio de mais um volume do Método que tem como titulo previsto “A ética da ética”. A edigao brasileira do conjunto do Método foi levada a cabo pela Editora Sulina. ® MORIN, Edgar. O Métado 3 — O conbecimento do conbecimento, Introducio de Juremir Machado. Porto Alegre: Sulina, 1999, p.78. 3 In: Educar na era planetéria— O pensamento compleco coma métado de aprendizagemt pelo erro ¢ incerieza humana, MORIN, Edgar; CIURANA, Emilio-Roger; MOTTA, Rail Do- mingo. Sio Paulo: Cortez; Brasilia, DF: UNESCO, 2003, p.3. % A intelgéncia da complexidade, op.cit. sobretado o capitulo 5 de autoria de Le Moigne “Sobre a modelizacio da complexidade”; 0 capitulo 3, “Universalidade, incerteza, edu- cacio ¢ complexidade ~ Didlogos com Edgar Morin” (especialmente no diilogo com Francois Ewald); ¢ 0 capitulo 2 de autoria de Morin, “A epissemologia da complexi- dade” (especialmente o tépico 2.3, “Complexidade: os desafios do método”). % Opec. ® LE MOIGNE. A inteliginia da complexidade, op.cit., p19. MORIN, CIURANA e MOTTA, opcit, p.44. % MORIN. A inteligéncia da complesidade, op.cit., p.159 ® PRIGOGINE.. O nascimento do tempo, op cit. LE MOIGNE. A inteligéncia da complexidade, op.it., p.220. 40 § PRIGOGINE. O nascimenta do tempo, opsit., p.A9. © REEVES, Hubert. Os artesios do oitavo dia. In: Nowes de Denses. Entrevistas a Edmond Blatichen.. Tradugio de Maria Leonor F. R, Loureito, Sio Paulo: Unesp; Belém, Pars: Editora da Universidade do Estado do Pari, 2002, p.46, * REEVES, op.cit, p.48 ¢ 49. + CYRULNIK, Boris, sobretudo no livro Memsita de macaco ¢ palavras de bomen. Lis- boa: Instiruto Piaget. % Educar na ern planetéria, op.cit., pAT ATLAN, Henri, Eutre 0 istale a fumaca: ensaio sobre a cognicio do ser vivo, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992; | inere Condecer. In: Cronos ~ Revista do Programa “de Pos-Graduagio em Ciéncias Sociais da UFRN. v. 2, n. 2, jul/dez 2001. Natal/RN: EDUERN, 2002, p.63.a 74, ~ ATLAN. Vere conbecer, op.cit, p69. % Id,, ibid. "Id, ibid. #” LUIS SOLANA RUIZ. O artigo foi publicado em Cronos - Revista do Programa de Pés-Graduacio em Ciéneias Sociais da UFRN ~ vol.2, 0.2 - jul/dez, 2001 * LE MOIGNE,. In: A inteligéacia da complexidads, op.cit., p.219. 21d, ibid “Id, ibid, p.220. “Yd,, ibid. + MORIN, Edgar. O Método 3 — O conbecinento do conbecimenta, Traducio Juremir Ma- chado da Silva, Porto Alegre: Sulina, 1999, p.39. “Id, ibid, ~ © Manifesto do coléquio de Stanford foi taduzido por Paulo Migllacci ¢ publica- do a Fata de Séo Paulo, Caderno Mais (p.4 a 8). Sa0 Paulo, domingo, 24 de novem- bro de 2002, 41

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