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| 4 CIENCIA, TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO: | | gy umalvisko CunrUKatioo COMiculo DE CIENCIAS Elizabeth Macedo Na contemporaneidade, vimos sendo impactados por amplas ‘modificagSes, tanto geopoliticas quanto econémicas. Vivemos momentos. de uma verdadeira revolugdo tecnol6gica que tem criado possibilidades de comunicagao em tempo real fora das limitagGes impostas pe geogrifica. Criam-se novos fluxos, novas relagées ¢ esvaem: vinculos. Ainda que a idéia de uma cultura mundial unifica fortemente questiondvel | que toda essa sorte de vem mexendo com a vida cotidiana das pessoas. Sio incontiveis as transformagSes por que tem passado 0 dia-a-dia dos cidaddos comuns: nas formas de trabalho ¢ lazer, em instituigdes tradicionais como a familia, * Texto originado da pesquisa “Curriculo como entre-lugaridenttirio: Raga, género ce sexualidade no curticulo de citncias (1971-2001)",financiada pelo CNPq e pelo | Programa Procigacia da UERI. | Curriculo de cidncias em dobale 110 sociedade lidades de ages dos sujeitos. $0 nio significa, como salienta Clough (2001), 0 desaparecimento da nagdo ou da familia ou piblica e privada ou, ainda, a diluigao da s econdmico global. Hé, apenas, numerosas reterritorializagées em curso, tanto nos paises ocidentais centrais como nas periferias. Do ponto de vista dos espagos periféricos, essas reterritorializacdes expli rocessos de troca cultural desde hé muito realizados. Processos que envolvem a apropriagio de caracteristicas do eixo Europa-EUA — por {rocas culturais espontineas ou por imposigdes ceonbmicas ~ assim come a violagdo dessas caracteristicas pelas culturas locais. Esse processo de apropriagio/violacdo, jé largamente estudado desde os anos 70, vem se intensificando, e sua influéncia sobre a escola e o curriculo tem gerado demandas que precisam de respostas para além das oferecidas pelas teorizagGes tradicionais. also a uma cultura “ocidental” comum, que, se nao se referia a cultura de origem de alunos e professores, era indiscutivelmente aquela a ser dominada ao final da escolarizagao. Em versdes modificadas, essa cultura “ociden nacional ou de cultura da classe dominante. De qualquer forma, tanto a nagio como as classes eram pensadas no panorama da cultura “ocidental” ‘comum, seguindo padrées europeus. Os estados nacionais passavam por cima de diferengas étnicas, muito visiveis no caso de nagdes sul- americanas, e/ou religiosas, em que a situagdo do Oriente Médio é exemplar. A cultura nacional era, assim, uma adaptagZo local de uma 1. O termo ocidental seré utilizado entre aspas em toda o texto para nos lembrar de {que muitas culturas que vivem no que se convencionou como Ocidente nio se ‘encontram representadas no termo. 6gica mais global imposta pela Europa, De maneira semelhante, a cultura da classe dominante referia-se a um grupo supostamente homogéneo, vinculado ao modo de produgiio do Ocidente. Pouca diferenga fazia, por mo em paises latino-americanos convivia com ainda muito enraizada e se sucedia a perfodos de exploragéo colonial A deniincia de que selegSes culturais lastreadas numa suposta cultura “ocidental” nao conseguem dar conta de politicas curriculares ¢ praticas pedagdgicas contemporaneas tem motivado o surgimento, nos ‘ltimos 30 anos, de propostas multiculturais de diferentes matizes. Alguns grupos minoritérios, por exemplo, sugerem escolas isoladas com curriculos especiais centrados em elementos de suas culturas de origem, numa versio da soluco utilizada hd séculos por grupos religiosos diversos. Ainda que como forma de resisténcia, essas sugestdes acabam ar as culturas a que se referem, numa visto espelhada dos curriculos norteados pelo ocidentalismo, Outras propostas de educagio ‘multicultural sfo resumidas por McCarthy (1994) em trés grande: © discurso do entendimento cultural que, lastreado pelo re cultural, centra-se na aceitagio da diferenga como algo positivo e no empoderamento cultur: dos resultados que esses grupos vém conq| instrumento de favorecimento do sucesso escolar ¢ econdn autor, esses modelos falham na solugo das desigualdades posto que “dependem quase que exclusivamente da reversao de valores, atitudes € natureza humana dos atores entendidos como ‘individuos™ (p. 87). Essas propostas multiculturais tém em comum a idéia de adigio ou substituigio do que jé est no curriculo, seja na forma de novos contetidos, seja no que se refere a outros valores ou a outras préticas pedagégicas. Defendo que uma teorizaco multicultural precisa deslocar 1a énfase da adicdo/substituigdo, buscando reconstruir 0 conceito de curriculo como pratica cultural. Trata-se de evitar a tradigao segundo a CCuriculo de iineas em debate 121 qual 0 curriculo € visto apenas como produto de uma selegio de conhecimentos e valores, retomando seu cardter de espago/tempo ambivalente que se vai construindo na relagdo entre os muitos mundos culturais que o constituem, Perceber essa ambivaléncia me parece enucial para entender nao apenas como se universalizam a cultura “ocidental” e ‘© conhecimento a ela associado, mas, sobretudo, como se criam possibilidades locais de superagdo. Por entender que pensar um currfculo multicultural envolve redefinir curriculo como “o local onde o significado ¢ negociado e fixado, onde a diferenga ¢ a identidade sio produzidas e postas em operago, onde a desigualdade ¢ gestacla” (Costa 2002, p.56), divido este texto em duas partes. Na primeira, buscarei elementos que permitam pensar a diferenga no curriculo tendo por horizonte a sua definigio como espago! tempo cultural, dinamico e imprevisivel em que sao estabelecidas divisoes € hierarquias, mas também aquele em que € possfvel resistir. Nesse sentido, argumentarei que a centralidade que os estudos culturais vém 0, na tendo no campo do curriculo apresenta inestimavel valor p\ Na segunda parte, tentarei pensar 0 curriculo de ciéncias como esse espago/tempo cultural. Trata-se de uma opgio complexa, uma vez {que as questdes da cultura parecem ter sido para sempre apartadas, pela hegemonia do pensamento iluminista na érea, do Ambito das naturais. Cultura ¢ natureza constituem um dos principais binémios modernos (Santos 2000) e a separagiio dessas instancias foi fortemente incorporada pelos curriculos escolares. Esses curriculos no falam de cultura, mas de conhecimentos vilidos por sua “verdade interna”, a- hist6ricos e independentes das culturas em que foram gerados. Encarnam saberes consensuais dos campos disciplinares, em linguagem cientifica, apenas adaptados para finalidades didéticas (Macedo 2000a 20006; Lopes 2000). Andando na contramao da universalidade da ciéncia, buscarei compreender por que determinadas tradigdes cientificas so ‘mais bem-sucedidas do que outras. Nesse sentido, postulo que seu sucesso no é devido a caracteristicas epistemoldgicas internas, mas a 402 Pacinm Edora combinagbes de estratégias sociais e técnicas. Esse sucesso faz parte de ‘uma tradigdo inventada ao longo de séculos de Huminismo. Valendo-me de exemplos retirados dos curriculos do municipio do Rio de Janeiro* dos tiltimos 30 anos, abordarei alguns aspectos dessa tradigao que permanecem inquestioniveis nos curriculos de ciéncias. Defendo que, tratados como textos culturais, esses curriculos permitem acompanhar a criagdo de diversos esterestipos (em toda a sua ambivaléncia) e, com isso, criar formas de aco politica lastreadas na cultura. Curriculo como entrelugar identitério: O pedagégico como tradugao cultural ‘Uma das mais fortes tradigdes do campo do currfculo nas dtimas décadas envolvia a sua compreensio como texto politico. Nela, 0 curriculo deveria ser contextualizado politica, econdmica e socialmer « tinha por horizonte uma utopia — a formago do cidadio emanci capaz. de alterar as condigdes coneretas de uma snciedade de classes injusta. Mantendo-se fiel &s discusses iniciadas pela Nova Sociologia ‘da Educagio, a vertente politica de andlise do currfculo tinha como uma de stias teméticas centrais a preocupagao com o conhecimento veiculado pelos curriculos. Relacionando conhecimento ¢ interesse, 0s teéricos do curriculo questionavam que grupos sociais tinham poder para definir os ‘conhecimentos validos.> Os currculos anteriores a 1975 slo do estado da Guanabara, que correspond h ‘mesma érea geogrifica do munici 3, Aimportincia que a categoria conhecimento deteve no campo do curiclo ponte sk “observada na sintese sobre pedagogia ertica,realizada por MeLaren (1097), Ui implesreferéncia a obras fundamentais do pensamento politico em curriculo Walt Yovas diregdes pan ‘a centrlidade da categoria: Conhecimento ¢ contr sociologia da educagao, organizado por M.Young: ‘Apple: Estratura texto e disciplina: Umasoci ‘de P. Wexler, No Brasil, obra clssica de Silva ( ceurricuo da revista Em Aberto (1993), asi (Macedo e Fundio 1996), mostram a relev ‘Segundo Pinar (2002), desde o inicio dos anos 90, a importancia \dimento do curriculo como texto pelo “explosivo crescimento dos estudos cul que a majoria dos curriculistas* que tratavam 0 1 tendo a perspectiva politica como norte passou a dedicar-se aos estudos culturais.. De certa forma, esses estudos representam uma continuagao do interesse politico desses autores, tendo uma base epistemol6gica mais hfbrida de tendéncia pés-marxista. O campo do curriculo passou a focalizar nao apenas a escola, mas espagos fora dela, relevantes para a cducagiio. No Brasil, apenas a partir de meados dessa década os estudos culturais passaram a ser mais freqtientes. Entender, como prope Pinar (2002), a centralidade da cultura no currfculo em sua dimensio politica implica traté-la como uma nog3o ‘estratégica integrada ao politico, ao econdmico € ao social. Jameson (2001) defende que no debate atual sobre a globalizago ou sobre o capitalism avangado, economia e cultura passaram a coincidir. O cultural, para 0 autor, oferece-se como bem a ser trocado ao mesmo tempo em que os produtos se apresentam como imagem de si, ou seja, como produtos culturais. Nesse sentido, “a colonizagio da realidade por formas visuais e espaciais (...) é também a mercantilizagio dessa mesma realidade intensamente colonizada em escala mundial” (p. 88), de modo que 0 potencial politico do cultural ficaria restrito ao exercicio de priticas de escolha ligadas ao consumo. Seguindo raciocfnio semelhante quanto & articulagdo entre cultura, politica e economia, Lowe e Loyd (citados por ‘Santos 2003) defendem, no entanto, que o cultural, ao ser refuncionalizado como mercadoria, rearticula sua dimensio politica. Desse modo, o espaco da cultura incorpora valores de mercado, mas também alte no se dio necessariamente no espago nacional nem so respons: de atores privilegiados. Ao contrétio, essas altemativas so no eruzamento das caracterfsticas globais do capitalismo com 10s casos de Apple, MeLaren, Wexler, Giroux e Bowers. No Brasil, © ‘grupo de estudiosos do Rio Grande do Sul, om a coordenaio do professor Tomaz, ‘Tadeu da Silva, guinada semelhante & descrita por Pinar (Lopes ¢ Macedo 2003), especificidades locais, num processo que envolve hifridismos e “era cespacos para praticas alternativas, esferas pablicas alternativas, contraculturas niio-oficiais e a recomposigao da sociedade das suas divisdes” (Lowe e Loyd, citados por Santos 2003, p. 37). Mesmo salientando a importancia crucial das alternativas, 0s autores acabam por, de certa forma, entendé-las como diretamente relacionadas ao Estado. ‘Nessa medida, segundo Santos (2003), as alternativas seriam limitadas por seu préprio carter local, sendo vélidas apenas aquelas que cconseguissem dialogar com as estruturas politicas modernas. ‘A fim de valorizar as altemativas heter6clitas, Santos (2003) defende ‘oespaco da cultura como aquele em que o didlogo entre as reivindicagbes identitérias dos variados grupos permite superar os particulatismos que esto na base da desigualdade. Para o autor, “é importante ide configuragées histéricas particulares em cada contexto, que podem mio obedecer necessariamente a essas diferenciagdes, mas apresentar outras formas de diferenciago associadas a modos de dominagao e de resisténcia ‘especificos” (p. 9). Dessa forma, a politica cultural toma-se um processo conflituoso entre atores sociais que ineorporam préticas diversas, um processo pleno de significagio politica. ‘A guinada do campo do currfculy de uma compreensao do objeto como texto politico para uma centralidade do cultural mantém, portanto, a discussdo no campo da politica, permitindo a construcao de alternativas. No entanto, essas alternativas nao podem ser construfdas tendo por horizonte apenas adiscussdo sobre os conhecimentos que podem/devem fazer parte do curriculo escolar ou sobre as relagdes de poder que a selego de tais conhecimentos expressa. Elas precisam estar articuladas a uma redefinigdo do préprio conceito de curriculo, que envolve a reconstruc de uma tradigdo centrada no conhecimento, Uma tradigio tao estabelecida que Pinar (2002), um autor cuja produgdo sempre esteve a margem da compreenstio politica do curriculo, argumenta, por exemp! aque'“ao se mover para os estudos culturais, nds especialistas em cur estamos perguntando, como uma vez fizemos, que conhecimento mais vélido” (p. 123). Essa tradigtio nao me parece dar conta da dindmi do curriculo como espago cultural, que deve ser pensado como I Ccurcule de etnian om dobalo 12 nfrontofnegociaedo entre culturas,? o que envolve criar formas de tradugo que permitam o didlogo intercultural. Ao considerar que as questdes culturais hoje esto no centro das preocupagoes curriculares, € preciso lembrar que a relagao entre escola e cultura foi desde sempre muito forte, na medida em que era fungao da a cultura. Cultura, nesses termos, era tida como uma colegio de priticas e objetos que, de alguma forma, eram definidos como tendo valores quer estéticos, quer morais, quer cognitivos. Para alguns, watava-se de uma colegao universal, admitindo-se apenas sua variabilidade no tempo. Outros falavam em culturas diversas, lastreadas pelo territ6rio, pela tradigao, pela etnia. Ainda que plurais, eram tidas como colegées puras, provas vivas das culturas de cada grupo. Annogiio de cultura estética que presidia as relagdes entre currfculo © cultura tornou-se insustentével. A cultura é hoje um conceito multifacetado que vem assumindo diferentes sentidos. Na tentativa de articular a mi lade de significados que vimos conferindo a cultura, quatro grandes concepcées: como instancia em que cada grupo organiza sua identidade; como instancia simbélica de produgtio ¢ reprodugtio da sociedade; como instancia de conformagio do consenso ¢ da hegemonia; como dramatizagio eufemizada dos conflitos sociais. Ainda que essas concepedes tenham por horizonte marcos te6ricos bastante diversos, 0 autor defende sua articulagio no estudo da cultura como “o conjunto de processos sociais de produgo, circulago e consumo da significagao na vida social” (p. 35). Processos, nos quais os objetos ¢ as tradigGes culturais vio mudando seus significados na medida em que sio reterritorializados e recolecionados. 5. Nao strata de proposta nova, na medida em que os autores que abordam o euriculo numa perspectva fenomenolégica sempre defenderam o currculo coun espayy Jo idlogo intersubjetivo. Salento apenas a centralidade na categoria cultura lembro ue, hoje, 0 espago escolar convive com uma diversidade de padres culturais inusitados,dadas as caratersticas das sociedades contemporineas. Giroux (2001), car tratar 0 cutrfculo coma cultural, rouxe boas contribuigses para ‘a discussto do curriculo em bases culturais. 126 Peapirus Etora Definindo cultura, na interse¢o das concepgies identificadas por Canelini (1997), Hall (1997) e Giroux (2001) centram suas preocupagdes na construgio de identidades que se estabelece no Ambito da cultura 20 ‘mesmo tempo em que defendem que a cultura € constitutiva de praticas cotidianas de significagdo e esté intimamente imbricada em relagdes de poder. Nas palavras de Giroux (2001), a cultura é “um terreno de contestagao [que] molda nosso sentido de agénci a, medeia as relagdes entre o protesto das bases materiais e as estruturas de prové os recursos para negociagio de contextos das lutas diéri 12). Hall (1997), ao defender a centralidade da cultura, argumenta que é no espago cultural que as identidades so constitufdas por um proceso que envolve a localizagio e a subjetivagio do sujeito em discursos cculturais. Na perspectiva pés-estrutu tura como “nada mais do que a soma de diferentes sistemas de classificacao e diferentes formagGes discursivas aos quais a lingua recorre a fim de dar significacao as coisas” (p. 29). Também Spivak (1999) salienta que a cultura é central para definigdo de identidades e da alteridade, acrescentando que, como tum espaco de lutas, ela se torna um recurso para exigir que a diferenca seja reconhecida. A cultura pode ser, portanto, entendida como o espago sim! ‘em que se articulam identidades em meio a interag6es, utas e hostilidades constantes. Nesse sentido, pensar 0 curriculo como pratica envolve compreendé-lo como espago de poder em que negociadas. E também um efeito de priticas discriminatérias, em que se produz a diferenciagio como forma de garantir autoridade. Como institucionais e préticos alimentados pela cultura hegem6nica. Mas também um espago em que se produzem novas subjetividades ¢ temporalidades. © desafio parece residir em pensar um curriculo que respeite a singularidade das diferencas, sem transformé-las em desigualdade. Laclau (1996) defende que a afirmagao da diferenga pressupée reconhecimento entre as identidades e, portanto, normas que regulem sua interagio. Para 0 autor, esas normas prec ‘Currioulo de cidnciaa om idabate 487. necessariamente transcender © particularismo, apontando par argumentagio que s6 pode ser efetivada em bases universais. Uma politica da diferenga que promovesse 0 desenvolvimento separado dos Particulares estaria na base de movimentos de segregacio de variadas naturezas. Em uma sociedade marcada pela exclusio, a opgio pela agudizagio das diferencas pode significar aceitar e até reforgar o lugar ‘marginal ocupado pela cultura dos grupos nao-hegem@nicos, ‘Uma das questdes cruciais para a pedagogia parece vir sendo, hé ‘muitos anos, a busca de formas de articulagao das culturas que convivem no espago/tempo da escola. No inicio do século passado, Herbart(s.d.) jé reconizava que o professor deveria buscar utilizar-se da realidade dos alunos, principio que se manteve presente tanto no coy, ismo expde claramente a ia do aluno devem ajustar-se 108 ponto de partida para o processo didliticn-pedagdgico que objetiva 0 domfnio do saber socialmente institufdo. Em comum, nessa historia, a concepgio de que a escolarizacao é um processo de troca de um Padrao cultural, que importa conhecer, por outro que a escola tem por Obrigacdo transmitir. Apenas para Freire (Freire e Guimardes 1984) Percebe-se que a escola é tratada como arena cultural em que “os alunos (..) também tém o que dizer, € nio apenas o que escutar” (p. 78), com a valorizagio das “situagSes existenciais do grupo” (p. 43). A resposta de Freire para as ansiedades a que o pensamento Pedag6gico veio buscando fazer face parece indicar a necessidade de uma redefini¢do do lugar da cultura no curriculo. Nao se trata de ensinar essa ou aquela cultura, mas de compreender o curriculo como espaco tempo coabitado por diferentes culturas. Isso implica aceitar nfo apenas Que respostas culturais so geradas nesse espaco/tempo, mas Principalmente que uma série de respostas produzidas em outros espacos/ tempo nele penetram. Como argumenta Giroux (2001), “0 pedagégico abre um espago narrativo que afirma o contextual eo espectfico enquanto 120 Paprus Eatora simultaneamente reconhece as formas como esses espagos so atravessados por questOes de poder” (p. 13). Assim, diferentes tradigges esto inscritas no curriculo escolar, seja por intermédio de saberes vividos trazidos pelos atores, scja por meio, pur exemplo, de diretrizes curriculares em suas mais variadas formas. Desse modo, entender 0 curriculo escolar € entender as relagdes que se estabelecem entre essas mailtiplas tradigOes num espago/tempo determinado, Nesse sentido, o curriculo é sempre um espagoltempo de transigio em que sujeitos negociam suas identidades. E imposs cculturas representadas em uma escola genérica, em que m se fazem presentes. E verdade, sem dhivida, que estard ser Ipre presente, com uma legitimidade quase indis arantida pela ciéncia e pela ideologia moderna, a cultura 1, na forma dos saberes formais expressos nos curriculos escolares. As conclusées do estudo de Meyer e outros (1991), que apontaram para uma certa permanéncia dos contetidos tratados na educacio bésica de diferentes paises ao longo de boa parte do tiltimo século, salientam essa presenca. Mas é verdade também que, como arena cultural, o currfculo estara articulando fencias as variadas formas de dominaco. Uma resisténcia uaa por aiores diferenciados, com identidades culturais préprias, forjadas dentro e fora da escola. Uma resisténcia que, por tudo isso, assume caracteristicas plurais. A pluralidade das alternativas é positiva, uma vez que confere especificidade e historiciza as resisténcias, mas toma necesséria acriagtio de um espaco de intelegibilidade que possibilite ‘uta comum a partir de préticas distintas. Santos (2000) argumenta que € necesstia uma teoria da tradugdo que, mantendo as especificidades, identifique “o que hé de comum a entidades que estio separadas por suas diferengas recfprocas” (p. 192). Para fazer face & pluralidade cultural da escola, torna-se crucial que 0 campo do eurriculo busque entender como se articulam, rejeitando tanto 0 jogo de dominagio que mascara a complexidade das relagSes interculturais quanto a convivéncia pacifica baseada na tolerdncia ¢ na civilidade; entender essa articulaco como uma interago complexa entre espagos, temporalidades e posigdes de sujeito, sempre problemitica para ‘Cuncuto da caress aqueles que compdem o que chamamos de minorias culturais. Penso que a teorizagao pés-colonial, ao buscar compreender como as identidades stio negociadas em espagos/tempos hibridos, pode ser itil 1a compreensio das relagGes entre as culturas em disputa na escola. 0s autores pés-coloniais, em especial Bhabha (1998), t€m buscado discutir a autoridade colonial lastreada por um padro cultural ditado pelo Iuminismo “ocidental” e atualizado pelo eixo Europa-Estados Unidos. Nessa discussio, tém pensado as interagdes culturais fugindo de polarizagées entre assimilacdo ¢ resisténcia totais. Entendem que a articulagio entre as diferengas culturais diz respeito a0 que pode ser traduzido de uma cultura a outra, Na medida em que em toda tradugio hd algo que néo quer ser dito, que € esvaziado de sentidu, que encarna ‘um reptidio que precisa ser percebido, o processo de aproximagao cultural sera sempre ambivalente. A missio smo, que pode ser comparada ‘com a da escola, ser sempre incompleta. A autoridade colonial, que se pretende a, ndo-dial6gica e marcada pela homoge: sempre suj representa aquele desvio ambivalente do sujeito discriminado em diregao a0 objeto aterrorizante, exorbitante, da classificagiio parandica — um ‘questionamento perturbador das imagens e presengas de autoridade” (p. sem, no entanto, poder ser confundido com efeito. Esse hibridismo permitir formas de subversio. Ao se inserirem no discurso acaba de culturas [seja] identificada ou avaliada como objeto de contemplagio epistemolégica ou moral: as culturas nao estio simplesmente 14 para serem vistas ou apropriadas” (pp. 166-167). Torna-se, a ‘a imposigao da autoridade ou da cultura, porém, mais propria autenticidade da dominagao passa a ser questiondvel. Se a dominagio ea autoridade no mais se legitimam quando 0 cultural que as sustenta se toma irreconhecfvel, os saberes discriminatérios produzidos passam a ser mesclados com os saberes nativos. A ‘marea desse espago/tempo hfbrido é uma certa contradigéo. 190 Papirus Esto Essa contradigio do espago/tempo colonial no pode ser resolvida za forma de binarismos. O discurso colonial é para sempre cindido, com duas atitudes ocupando o mesmo lugar e produzindo “uma crenga miiltipla € contraditéria” (p. 189), Fm face dessa cisio, as relagdes sociais sio sempre ambivalentes e permitem a desarticulagio da autoridade. O que fomos habituados a entender de forma bindria passa a ser pensado como ‘uma articulagio intersticial entre extremos. Numa espécie de entrelugar, esses extremos pod que seja \ca e semethanga nnma simultaneidade pla I6gica desconstréi os binarismos "as muito claras. Ela permite que as is sejam pensadas como entrelugares em que a logo entre as diferentes estratégias de dominagao nao apenas existe como ¢ inevitével. As lutas globais passam a er vistas “como uma forma de condicionalidade contingente ou como uma articulagao ial que mantém 0 [todo] unido e (...) [0] torna possivel e estratégia que permite, de certa forma, pensar as questBes postas por Santos (2003) quanto as formas de articulagdo das diferentes resisténcias locais. ‘Nesse quadro, torna-se im de identidades fixas. Nao hd produzidas por processos de hibridagao. Estio sempre em movimento, nunca completadas. Obviamente o pasado, a tradi¢ao que lastreia a maioria das identidades fixas, nfo é uma dimensdo sem importancia, ‘ela mesma, 0 direito & fala da minoria, Para Bhabha (1998), esse direito € “alimentado pelo poder da tradigo de se reinscrever através das condigdes de contingéncia e contraditoriedade que presidem sobre as vidas dos que esto na minoria” (p. 21). A rejeicdo & idéia de uma cultura pura tem implicagdes para a definigio do curriculo. Perguntar mais uma vez, como propés Pinar 6. Segundo Young (1995), essa dupa I6gca remete a0 conceito de Brisure de Derrida. O autor exemplifica ainda com a “cso ene as Iipicas incompativeis da fsica cissica © aquatica” (p. 27). 1e conhecimento € o mais vélido envolve aceitar uma fixidez la cultura que parece insustentavel. Qualquer resposta que possa ser dada remeteré a uma cultura da qual se pressupde possivel extrait algo que seja vélido para ser transplantado para 0 curriculo escolar. Ocorre que a experigncia curricular, como entrelugar cultural, estaré sempre reinscrevendo as tradigdes que ancoram tais conhecimentos em uma contingéncia em que outras tradigées estardio presentes. Subst acrescentar conhecimentos ao currfculo, sem percebé-lo como espago de cultura, mantém, como ressalta McCarthy (1994), nalterada a proposta da escolarizagio. A reconstrugio sugerida pelo autor fala em trazer “as experiéncias néo-institucionalizadas das minorias marginalizadas ¢ de homens e mulheres das classes trabalhadoras para o centro da organizacio, lo escolar” (p. 95). Experiéncias essas que ja esto na escola e los. Cumpre apenas trazé-las da periferia para o centro. O curriculo de ciéncias classico apelo a uma suposta cultura “ocidental” é uma das muitas tentativas de eolocar os curriculos escolares numa posigio que tenta normalizar, por sucessivos esquecimentos, o espago/tempo cultural hibrido. Esses esquecimentos, no en tem em chamar a atengao para si, nas contradigGes que desarticulam as vozes autorizadas. Restam ‘como uma presenga que ameaga a I6gica dos discursos estabelecidos. ‘Uma presenca que nao se localiza nas falsas distingdes que o campo do curriculo estabelece entre o formal e o prético, mas que os constitui a ‘ambos assim como os constituem os discursos hegemOnicos. Sea certeza dessa presenca indica as possibilidades de resisténcia, é preciso criar maneiras de entender como o poder tem operado no sentido, de garantir a hegemonia de determinadas formas culturais (Giroux 2001). ‘Trata-se da agenda necesséria para pensar na resisténcia ao colonialismo, entendida em uma dimensdo mais ampla como oposigio a toda forma de globalismo (Bhabha 1999). Como argumentei na segdo anterior, creio ‘que essa resisténcia passa por pensar o currfculo como entrelugar cultural. 192 Papin Editora Um lugar em que se reinscrevem vérios discursos, entre eles 0 discurso ficial do Huminismo “ocidental”. Na intengéio de ampliar a compreensio do curriculo, penso ser fundamental ler as tradigSes hegemdnicas nos currfculos escolares, tendo como contraponto “as tradighes intelectuais, € culturais desenvolvidas fora do ocidente (que) con: de conhecimento que pode ser usado com grande e! jidental” parece ter imadas pelos enor qual buscaram apagar as relagdes com priticas de colonialismo, racismo, sexismo. E no sentido de problematizar esses apagamentos que leio os curriculos de ciéncias do Rio de Janeiro.’ Ressal embora va me centrar na “eiéncia presente nos currfculos”, a prépri poderia suscitar debate semelhante. Vou me aproximar dos curriculos de forma indiciéria, buscando neles elementos que permitam entender o discurso sobre a ciéncia que apresentam * Ne forma geral, sao nitidos tanta um maior relacionamento formulado a partir de 1972 para o entio estado da Guanabara. O gt imttulado “Bases para o Easino de 1° grau” (Bases), nao taz informagSes sobre ‘data de produgio, mas se refere ao governo de Marcos Tamoyo, portanto 20 final dos aos 7, Somente em 1991, a peteitra municipal laborou novo documento ccurricul (Fundamentos), acompanhado de livo de “Sugesties M {depois de um processo que se iniciou em 1993, surge a siretriz curicular da Secretaria Municipal de Educacso. 8, Propositalmente, ndo analisi as diferentes matrizestericas de cada documento, Essa ‘opcio deveu-se a fato de que estou entendendo os guias currculares como hiridos, ‘em que se articulam virias tradicies pedagésicase epistemoldgicas. Para além das, twadigbes explictadas no documento mais geral, defendo que ha tradigdes prOprias ‘que surgem no curriculo de cincias eso elas que me importa analisar neste texto, (Cumteato de. citnciadien lela cincia e sociedade com base em documentos da década de 1990 toalgumas continuidades. Interrogarei dois aspectos que me parecem centrais no entendimento de como os curriculos de ciéncias vém lidando com as questdes de identidade em paises periféricos como o Brasil, com base em um conhecimento produzido, em grande parte, como resposta a questées postas pelo Iuminismo europeu e pelos apelos desenvolvimentistas do eixo Europa-EUA. O primeiro diz. respeito a0 préprio conceito de ciéncia e sua relagio com outros sistemas de conhecimento, enquanto 0 segundo busca tratar as vinculagées entre essa ciéncia, tecnologia ¢ desenvolvimento. Auniversalidade da ciéncia ‘Um dos primeiros aspectos que destaco dos guias curricul respeito ao cardter universalista que assume o conhecimento ciei Nos quatro documentos analisados, embora haja algumas diferengas, a cigncia é definida por uma epistemologia internalista, para a qual existe uum ideal cientffico universal verdade da natureza, ¢ pela anséncia completa ce referéncias as condigbes de producdo da ciéncia. Os sistemas classificat6rios estabelecidos pela ciéncia “ocidental” ocupam a quase totalidade dos documentos, que se referem a outros sistemas como o lugar da estranheza: “identificar Preconceitos ¢ superstigdes, e submeter as suas opiniGes a um exame honesto a fim de que os preconceitos as emogées nio as tornem erréneas” (Currfculo Pleno 1972, p. 194). Uma estranheza que opie 0 sistema de representagao universal a outros, estereotipados pela leitura etnocéntrica. A ciéncia busca, assim, em seu processo de hegemoni se como nica referéncia, substituir sistemas religiosos, préticas cotidianas e senso comum por uma nova crenga, a crenca na objetividade. No decorrer da década de 1990, as relagdes entre ciéncia e fatores socioeconémicos comecam a ser mais visfveis: “o ensino de ciéncias s6 tem sentido se puder eriar condigdes para que o individuo adquira uma 134 Papius Eatora ostura critica em relagio aos conhecimentos cientificos e tecnolégicos no seu processo de desenvolvimento, relacionando-os ao comportamento do homem diante da natureza’” (Fundamentos, p. 69). E nos Fundamentos, produzidos no inicio da década, que st6ricos associados a0 conhecimento cientifico stio mais fortemente explorados. A ciéncia é vista como “produto da igéncia e necessidade do homem” (p. 71), um homem que, noeni € tratado como espécie e ndo a partir de seus variados pertencimentos € de suas méltiplas relagées com a natureza, Embora os sistemas de conhecimento nao-cientificos sejam reconhecidos, com alusiio a saberes trazidos da vida cotidiana, destacam-se objetivos que indicam claramente a distingdo entre 0s modos de conhecer que os alunos trazem de sen ago cultural e 08 modos da ciéncia, numa clara superioridade destes timos. Em algumas passagens, por exemplo, observa-se a primazia que o sistema cientifico (nico e universal) detém sobre outras formas de conhecimento: “estabelecer a relagio entre senso comum/ conhecimento cientifico; analisar os fendmenos natura buscando as respostas através do conhecimento ciet p. 9). As atividades ropostas para a consecugdo dos objetivos explicitam ainda mais as relagdes entre as culturas presentes no espago/tempo escolar, ao sugerirem que curiosidades ciculfficas e ditos populares sejam interpretados a luz da cigncia (Sugestdes Metodolégicas, ativ.2). A superioridade da iéncia no se constr6i apenas sobre os sistemas populares ou do senso comum. E também constitufda em contraposigio a outros povos, geogrifica e temporalmente deslocados em relago a0 Ocidente contemporfineo. Em ‘outra passagem, ap6s uma longa discussio sobre unidades e medidas como linguagem das ciéncias, a descoberta da agricultura 6 apresentada como ocorrida no Oriente Médio apés a fixago do homem a terra. A apresentagdo se encerra com a questo: “qual a diferenga fundamental entre os homens da Idade da Pedra e 0s atuais?” (p. 42), cuja resposta é que 0 “actimulo de conhecimentos vem modificando as condigées de vida deste planeta” (Sugest6es Metodol6gicas, texto 2, p. 42). Cria-se uma dupla polaridade. De um passado so contrapostas ao actimulo propiciado pel De outro, ‘Curiouo do ldoenn om dabato. 198 respostas culturais do Oriente sio deslocadas temporalmente para a da Pedra, fazendo parte do passado de todos nés. Um passado do ‘qual a cigneia precisa resgatar 0 Oriente (os primitivos). Em 1996, a Multieducagdo? far da cultura um dos seus cixos centrais, propondo-se a estabelecer relagdes entre cultura e natureza, visando articular de certa forma esses “opostos”. Em relago ao conceito de ciéncia, surge a preocupagdo com a “percepgao da ciéncia como uma das formas de saber socialmente valorizadas” (p. 337), ¢ 0 seu caréter hist6rico € salientado. Varios ohjetivos sugerem a importincia de analisar ‘como as formas de compreender 0 mundo natural foram se modificando 1pO. Os sistemas alternativos de compreensio so, no conhecimento que se contraponham a ciéncia “ocidental” na contemporaneidade ou em qualquer momento histérico. Quando si citadas utras formas de saber socialmente valorizadas parecem pertencer a outros Luniversos e dar conta de outros objetos, como a arte (p. 168). A auséncia de questionamento sobre as formas como a ciéncia se constituiu como referéncia completa 0 quadro de universalismo da ciéncia, a despeito da Propalada énfase do documento na cultura. Um universalismo que cexplicitado nas diretrizes de matemdtica, definicla como “linguagem, como forma de raciocfnio ¢ como instrumental para outras ciéncias” (p. 167), onde o seguinte objetivo é estabelecido: “reconhecimento da matemtica ‘enquanto conhecimento intrinsecamente ligado & cultura dos grupos sociais € como conhecimento universal” (p. 335). Ou seja, ainda que produzido socialmente, o conhecimento cientifico é universal Nese documento, a universalidade do conhecimento cientifico parece ter uma contrapartida no que se refere ao conhecimento escolar, da Multiedueago € mais dificil na medida em que o documento apresenta as wn Conjunto de aspectos que deve ser considerados no pla atividades por série nas ue também é entendido numa perspectiva universal: “Um currfculo cuja Preocupagio seja trabalhar com o local e com o universal, tornando esta escola verdadeiramente democritica, porque parte da cultura do aluno para inseri-lo numa cultura mais ampla” (Multiecincagao, p. 107). Ainda que diferentes culturas sejam valorizadas e estejam presentes na escola trazidas pelos atores sociais, o objetivo da educagio é a sua substituicao or algo superior, posto que mais amplo. A cultura mais ampla precisa ser universalizada e conta com a escola para Ainda que 0s curriculos dos anos 90 passem u dar conta de que 0 ‘homem altera a natureza, a dicotomia entre cultural e natural permanece. A ago humana modifica 0 objeto da ciéncia, mas no se torna parte dessa ciéncia. Mesmo que a produgio ci como prética social, sendo, portanto, atividade cultural, sua verdade permanece seguindo regras internas que sio inerentes ao proprio conhecimento. A ldgica da ciéncia nao € alterada, a verdade que revela € imune aos espagos ¢ aos tempos em que € produzida. Portanto, a despeito das diferengas percebidas nos documentos, a crenga na universalidade da cifneia pare se em um todo homogéneo, pode ser revelada por uma politicas. Permite distinguir os sujeitos comuns daqueles que dominam © sistema de conhecimento privilegiado ~ a burguesia, 0 operariado, o tecnocientista ou todo aquele que se apresenta como imagem de um novo deus. Também sistemas de conhecimentos sio diferenciados, 0 Cientifico universal e os locais, estes desvalorizados. O estranhamento dos que niio pertencem a cultura cientifica, nomeados como o “outro”, acaba por justificar as mais diferentes formas de colonialismo, tanto politico como cultural. O surgimento dessa ciéncia que argii para si a universalidade data do infcio do Tuminismo, constituindo-se na marca distintiva da Modernidade. A ciéncia substitufa os sistemas religiosos de compreensio de mundo e fundava uma nova crenga, a crenga na obj Curiouo elds om dob estratégia para garantir a universalizagto, a ciéncia recém-fundada, por um lado, insistia nos fatos empiticos, como uma forma de fazer crer que ‘0s conhecimentos cientificos, assim como a natureza, eram isentos de valores. A isengio, no entanto, mais do que derivada da ciéncia, fazia junto de pressupostos que a fundavam. Por outro lado, “0 em que passava a deter enorme poder, a cigncia se apresentava como tendo uma unidade que fazia com que parte do seu corpo de conhecimentos nao precisasse ser testada pelo empirismo que valorizava. A idéia de universalidade produzida por tais estratégias itagbes da ciéncia (Harding 1998). Ao longo dos séculos, a ilustio de unidade ¢ universalidade da cigncia teve como objetivo declarado a sua proteco de toda e qualquer influéncia cultural, embora, cotidianamente, essa ciéncia se constituisse com base nos conhecimentos de diferentes culturas reinscritas nos ‘cAnones do conhecimento “ocidental” vélido. So numerosos os exemplos de como a cigneia moderna apropriou-se de saberes locais como forma de aumentar sua colegio, a0 mesmo tempo em que desvalorizava os | “periféricos, como os da América Latina, agravam-se na medida em idéia de crescimento econédmico associado & maior produtividade e a0 aumento do consumo. Embora refletindo valores locais da Europa e dos UA, esse desenvolvimento foi apresentado como opedo & pobreza e, portanto, como algo que deveria ser almejado pelo mundo, Universalizada, a racionalidade custo-beneficio sacrificava valores como a do ambiente e das relagdes comunitérias, em troca de possil consumo em curto prazo, Outros valores “éticos, politicos, estéticos e espirituais so desvalorizados” (Harding 2000, p. 246). A familia, a comunidade ea tradigao tendem a perder espaco, sendo atributos do “outro” ndo-desenvolvido ou em desenvolvimento, conforme aceite 0 jogo Se parece dbvio que distribufdos de forma desigu: fortemente sobre os pafses pobres e sobre as populagdes com piores condigdes socioecondmicas. Sao eles os principais afetados pelos financiamentos do progresso tecnolégico, uma vez que pagam os mais pesados enstns sociais das verhas destinadas ao desenvolvimento, S30 eles, também, os maiores prejudicados pela exploracao indiscriminada ses centrais em relacdo aos efeitos ambientais associados ao desenvolvimento fico e tecnol6gico, as atividades que apresentam riscos para o ambiente tém sido transferidas para a periferia, onde o controle € mais, frdgil eas reservas ainda menos exploradas e mais acessfveis. O horizonte das politicas de desenvolvimento acaba por ser 0 abandono da relagio. do sujeito com a terra € com as comunidades locais, com a migragio para a cidade e a entrada no espago de consumo. Os efeitos negativos desse conceito de desenvolvimento em pai a destruigo ambiental rompe com padrées culturais ligados a terri, especialmente fortes nesses pafses. Neles, ainda, os cu: muito superiores para as camadas populares, para as m Ho do clon cu outros grupos minoritérios que, com maior dificuldade para entrar no mercado de trabalho, dependem mais fortemente dos recursos naturais como fonte de sobrevivéncia. Em relago as mulheres populares, por exemplo, o desenvolvimento economicista tendeu a acirrar as més condigdes de vida que levavam. Além de o trabalho feminino ser desvalorizado pela l6gica produgao/consumo, na medida em que nio é remunerado, 0 deslocamento da populagdo masculina da terra para a inddstria deixou sobre os ombros femininos a responsabilidade com a terra, com a subsisténcia muitas vezes a ela associada e com tarefas sociais como 0 cuidado de criangas e velhos. As mulheres populares (e ‘outros grupos minoritarios) sdo ainda as mais afetadas quando a retérica do desenvolvimento refine politicas de corte sobre vantagens sociais. Assim, os custos das politicas de desenvolvimento propiciam uma acentuada exclusao das populagdes em pior situaco social. Na seqiiéncia das desigualdades acirradas pela definigio de desenvolvimento em bases economicistas, também as mudangas nos padres de consumo impostas pelo meio ambiente infligirio maiores restrigdes aos grupos mais pobres. Ainda que 0 consumo de paises periféticos, € neles de grupos minoritérios, esteja muito aquém do observado em paises centrais, é sobre ele que recaem os maiores cartes. ‘Sao pafses latino-americanos, africanos e do Oriente Médio que devem diminuir seus padrées de consumo para garantir a sobrevivéncia da natureza. Uma das estratégias para essa diminuigdo €0 acentuado controle da natalidade que acompanha a idéia de desenvolvimento aplicada aos patses periféricos. Parece claro que, como salienta Nunes (2002), essas mudangas ndo esconderam as desigualdades gritantes e permanece absolutamente visivel que o desenvolvimento dos paises periféricos nfo os fez imagem e semelhanga da Europa ou dos UA. Poder-se-ia admitir, como Harding (2000), que as po mento foram a versio contemporinea do Como nas politicas de ‘aura positiva construfda em tomo da ciéncia (e da tecnologia dela 146 PapitusEdtora advinda), cuja suposta neutralidade e cuja pretensa universalidade banem as desigualdades para fora do projeto de desenvolvimento tecnolégico. Nos por grupos subalternos na rarquia do desenvolvimento economicista. Sd0 modelos que questionam a universalidade da nogio de desenvolvimento € cujo compromisso esté na articulacdo entre ambiente e interesses econémicos [Harding 1998, 2000). Centram-se, como prope Santos (2003), nna vinculagiio entre diferentes experiéneias locais, construfdas ao longo do tempo pelas comunidades. A completa auséncia desses modelos. altemnativos de desenvolvimento dos curr do Rio de Janeiro apenas expoe mai ‘uma tecnologia universal redentora dos paises periféricos. A possi de construgiio de modelos alternativos como resposta as contradig&es entre interesses econdmicos, sociopoliticos e culturais aparece apenas nna Multieducagdo (1996), ainda assim de forma muito timida. Como pensar alternativas? Pretend, a0 longo deste texto, salientar como os curriculos de ciéncias tém colaborado na construgio e na manutengo da diferenga, ou, mais especificamente, da diferenga que exclui. Para tanto, tentei refletir sobre as formas como os grupos dominantes sio representados nos curriculos, e ausentes ou tidicularizadas as culturas dos “outros” da ciéncia. Busquei, portanto, compreender que relagdes de poder sio naturalizadas nas formas como os curriculos demarcam as fronteiras entre as culturas dos diferentes grupos. Os exemplos de marcadores de fronteiras arbitrérias so numerosos sua estabilidade pode ser tributada a aparatos institucionais e préticos, dentre os quais a escolae o curriculo. E importante observar como, apesar de sua pretensa universalidade, a ciéncia vai estabelecendo binarismos (Ocidente/Oriente, centro/periferia, conhecimento/saberes populares) que CCuriculo do ciincas om debate 147 préticas de nominagao do outro. Nominagdes que se -eruzam de maneiras diversas na sociedade e no curriculo escolar jam as condigdes para préticas de diferenciagao freqiientemente scriminatérias. No que concerne A ciéneia, a forga descomunal que detém em relago aos outros sistemas de conhecimento favorece um confronto ainda mais desigual entre o que é inclufdo como valido e aquilo que é deixado de fora das fronteiras do aceito. Questionar as hegemonias culturais refletidas nos ¢ estabelecidas elos curriculos escolares € um dos pontos propostos por McCarthy (1994) ao sugerir uma educagdo multicultural. O autor defende ser necesséria uma critica sistemstica a0 ocidentalismo eurocéntrico, que do questionamento acerca do que pode ser nomeado ”. Trata-se de uma tarefa que exige mais do que identificar a diversidade cultural nos currfculos escolares. Exige que seja compreendida a relacionalidade do conhecimento escolar, ou seja, como se estabelecem relagSes entre as culturas representadas nesses tutor sugere que se questione a representagdo ferentes grupos culturais no curriculo. Neste texto, procurei encaminhar esse questionamento centrando-me nos préprios iY presenles 0s los escolares. Pareceu-me que buscar entender tais conceitos itiria estabelecer as relagSes entre a cultura iluminista “ocidental € outros sistemas de conhecimento. de cigncias a primazia de como tecnologia e desenvolvimento eram definidos sem referéncia a aspectos culturais. Ainda que esse modelo tenha sido fortemente preponderante, algumas ‘nuangas jé podem ser observadas nos titimos anos. A ciéncia continua detendo um conhecimento universal, mas suas formas de produgio e seus efeitos sociais siio ressaltados. Para além dos contesidos presentes ‘nos curriculos, busquei demonstrar,utilizando-me desses conceitos como exemplos, a existéncia de um padrao cultural hegeménico, que fala nio apenas de ciéncia, mas do pertencimento dos sujeitos a uma cultura universal. Nesse sentido, nao questionei a seleciio operada pelo curriculo, 148 apis Eatora mas quis ressaltar que essa selecao ajuda a constituir um processo de marginalizagao cultural. Talver o aspecto mais sério da marginalizago propiciada pela ciéncia seja o seu efeito potencializador de outras desigualdades. A validade universal da ciéncia vem colaborando, desde a sua institucionalizagao, para a construgio de outros modelos universais tanto 08 quanto jurfdicos, reforgando, assim, outros quadros normativos eurocéntricos. Como salienta Santos (2003), conceitos como democracia, Jjustiga e dignidade sdo lidos como se detivessem um contetido universal € acabam por ser impostos a culturas em que ndo fazem sentido. Em. nome da concepgaies dle mnndo social sin exportadas, viabilizando a negagao de identidades e 0 surgimento (ou recrudescimento) de variadas formas de dominagao. As culturas marginalizadas tanto no plano social como no curriculo no so, no entanto, banidas desses espacos. As resisténcias geradas pelas formas de opressdo permitem 0 que Santos (2003) denomina de Conseqiiéncias eurocéntricas ~se articula localmente com outros saberes € vai sendo subvertida ao mesmo tempo em que é assimilac ciéncia nunca é totalmente assimilada, Loyola (1991) exemplifica esse duplo movimento em relagao a conceitos como satide e doenga. A autora mostra como as populagdes trabalhadoras"' se reapropriam desses conceitos, recolocando-os num quadro referencial em que se articulam ‘com concepeses religiosas do grupo. Dessa forma, os trabalhadores distinguem entre doengas do corpo e da alma, criando um sistema de representagdes que Ihes permite ndo apenas compreender ¢ atuar no ‘mundo, mas principalmente defender os seus saberes, cuja legitimidade 6 questionada pela ciéncia oficial. De forma semethante, Santos (2003) elenca uma sétie de resisténcias locais ao eurocentrismo globalizado, ibuido para a coustiugao de una polit 11, O estudo foi realizado em um muniefpio do Grande Rio. ulo, a autoridade pretensamente indiscutivel do conhecimento cientifico mostra-se hfbrida. A cultura indesejada — 0 “outro” da ciéncia ~ é ao mesmo tempo afastada aproximada, ensejando formas de subversao. Os saberes dos alunos que ‘sa0 chamados ao curriculo como ponto de partida ou como garantia da motivacio questionam a imposicdo cultural. Mais do que isso, no entant ferem de morte a prdpria legitimidade da dominagio da cultura hegemOnica, que, para se apresentar como tinica, precisa permitir a a produzir/transmitir saberes discriminatérios, mas os mesela a outros saberes nativos. A capacidade desses curriculos de questionar a autoridade da cultura “ocidental” padrdo reside, portanto, em sua valorizagao como pritica cultural, em que a imposicdo € sempre cindida em rejeigdo € aceitagio. Referéncias bibliogréficas BHABHA, H. (199: ly WITMi (1998). 0 local da cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG. (1999). “Conversation between John Comaroff and Homi Bhabha”. In ‘GOLDBERG, D. e AUAYSO, A. Rethinking postcolonialism: A ertical reader. ‘Nova York: Blackwell Publ 10 Comunicaci6n, 2001). "On the relationship ofthe criticism of ethnographic writing and studies of seience”. Cultural Studies: Critical methodologies, n® (2), pp. 240-270 (portal de perisdicos Capes). COSTA, MLV. (2002). 0 papel dos estudos cul 96, p56. 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