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A AFRICA E 0 DIREITO Pelo Dr. José Fernando Nunes Barata Professor Visitante na Universidade Federal do Part SUMARIO 1 --INTRODUGAO. ‘UNDO CONSUETUDINARIO AFRICANO 21 CONCEPGAO AFRICANA DE ORDEM SOCIAL. 22- ESTRUTURA E DINAMICA DO COSTUME 23-— FUNGAO DO PROCESSO. 24— A REDACCAO DOS COSTUMES 3 —INTRODUCAO DO CRISTIANISMO E DO ISLAMISMO NA AFRICA 4 —PEKIODO DA COLONIZAGAO 41— — CONCEITO DE COLONIZACAO POLITICAS COLONIAIS DIREITOS EUROPEUS E SUA INTRODUCAO NA AFRICA 4 PERMANENCIA E EVOLUCAO DO DIREITO CONSUETUDINARIO 5 —DIREITO NOS ESTADOS AFRICANOS INDEPENDENTES 5.1— A EXPERIENCIA DA ETIOPIA REABILITACAO DOS VALORES AFRICANOS SOCIALISMO AFRICANO PRIMAZIA A IDEIA DE NACAO E AO DESENVOLVIMENTO POLITICA DA TERRA x POVOAMENTO AGRARIO 6 —CONCLUSAO 1 — INTRODUCAO Poder-se-4 fular na existéncia de um Direito Africano? Para bem compreender a oportunidade desta pergunta e o sentido das possiveis respostas nao sera descabida uma ligeira 646 JOSE FERNANDO NUNES BARATA divagagéo sobre os aspectos da geografia, da histéria e da sociologia africanas. Todos estio de acordo em que nao existe uma Africa mas vérias Africas. Clima, vegetagio, relevo, solos, linhas de agua, variedades étnicas, densidades de ocupagao humana, tudo se conjuga para compreender essa diversidade. Num plano politico, e com a fragilidade que tais expedien- tes comportam, tem-se ouvido falar de trés Africas: a seten- trional, integrada por pafses de longa tradig&o islamica; a negra, fundamentalmente intertropical; a austral, onde a fixagio e 0 labor do homem brarico so mais patentes. A propria Africa negra é, contudo, bem diversa na sua con- figuragdo geografica. Do Futa-Jalon, na Africa Ocidental, ao norte dos paises limitrofes do Golfo da Guiné, correm, em sen- tidos opostos, para o mesmo Atlantico, por um lado os rios Senegal e Gambia e por outro o lendario Niger. Ora, quem fizer um destes percursos, facilmente se compenetrard de pro- fundas diversidades. Mais para o interior, em idéntica latitude, a depress&o de Bodelé, com o Lago Chade, apenas a 243 metros de altitude, evoca dreas de desolag&o, onde secas persistentes tém semeado a fome e impiedosas mortes. Nas mesmas coor- denadas, marchando para leste, atravessaremos o plateau de Hordofan, o Vale do Nilo, para findar no extremo do Cabo de Guardafui, cuja aspereza j4 o nosso Camées cantara. Outras imagens mais agradaveis desta Africa intertropical, poderao ser guardadas das areas da antiga Africa Oriental Bri- tanica — as nascentes do Nilo, a regido dos Lagos, a famosa depressio do Vale do Rift a morrer no ja celebrado Parque Nacional da Gorongosa em Mocambique. Evocam-se ainda as neves do Kilimanjaro, que a pena de Hemingway vulgarizou; o Tsavo National Park, fonte de divisas turfsticas ou os povos pastores (Masai), com seus particularismos costumeiros e pro- blemas de adaptagdio aos novos tempos (*). @) Cf. H. A. Fosbrooke, «An Administrative Survey of the Masai Social Systemm, Tanganyka Notes and Recorts, 1948 (26). A AFRICA E O DIREITO eT Toda esta Africa tem relevante expressio continental. Uma simples comparagio com a Europa é ilustrativa: enquanto na Europa se verifica uma relagéo de 300 km’ de superficie por quilémetro de linha de costa, na Africa a relagéo é de 1.400 km’ de area continental para cada quilémetro sobre o mar. Indice de variabilidade de condigdes naturais desta grande massa 6, ainda, o da repartigao das chuvas. No Duala (Camarées) ou na capital do Ghana, chovem mais de 4.000 mm por ano; em Walfish Bay, no Sudoeste Africano, a média nfo vai além de 100 mm e€ no Sahara queda-se em 23,2 mm. Solos degenerados pela erosio, solos laterizados (bowal), areas de desertos correspondentes a cerca de 40% do conti- nente, tornaram impossivel ou extremamente precdria a vida, agudizaram as distincias € consolidaram ag separacées étnicas. As dificuldades de penetragdo em grandes espagos, onde os rios navegiveis sv poucos © as grandes massas planilticas (co- mo as de Angola ou os highlands da antiga Africa Oriental Bri- tinica) constituiram desafio aos mais ousados pioneiros, devem ser tidas em conta, ao explicar-se o movimento e fixagdo das populacdes. Nao se deve esquecer, igualmente, que as velhas civilizagées africanas, caracterizadas por uma organizacéo social mais evoluida e por um modo de vida mais refinado, ligaram-se a esta presenga dos rios, total ou parcialmente navegiveis. Foi assim com o Nilo, «dom dos deuses». Recordem-se também o curso inferior do Niger, com o Benin-Nok-Ife e uma curacteris- lica «mesopotamia, entre os rios Logone e Shari, que serviu de bergo a civilizagéo do Chade. O mesmo tera ainda acontecido do Alto-Niger ao Alto-Senegal, com os impérios do Ghana (ano 1,000), Mandingo (1332) e Gao ou Songhai (1515). Na Africa austral, 0 Zambeze e o Limpopo relacionam-se com 0 Monomo- tapa e Zimbabwe. Aquilo que, por brevidade de exposigéo, chamaremos agora de direito consuetudindrio africano, ligase a «Africa tradi- cional», 648 JOS£ FERNANDO NUNES BARATA Trata-se de um longo periodo que comega com a revolugao do neolitico (desenvolvimento da agricultura e do pastoreio) e termina com o advento da revoluc&o industrial. Ora, este «periodo tradicional», também nao se iniciou simul- taneamente por toda a Africa ao sul do Sahara. Habitualmente admite-se que as técnicas agricolas tenham irradiado do Egipto para o resto do continente. No Vale do Nilo teriam sido introduzidas 5.000 anos antes de Cristo, pro- venientes do sudoeste da Asia. Mais ou menos por essa época, porém, no Alto-Niger, ter-se-ia assistido a uma floragio de iguais técnicas, em expresso independente. Ora, a sua extensio alargada a toda a Africa, nao tinha conhe- cido ainda seu termo quando, no século passado, se inaugurou a era moderna africana. Se é facil determinar simbolicamente o inicio desta era moderna (Tratado de Berlim de 1885), muito do passado africano tem um valor nada despiciendo, ao mesmo tempo que, por outro lado, se reconhece a coexisténcia, até nos- sos dias, dos diferentes estagios evolutivos. Caga e recolecgao; actividade na selva apoiada na colheita de raizes; cultivo da savana, incentivado pelos cereais; pastoreio combinado com a agricultura; exploragio de recursos naturais em ligagio com o artesanato e 0 comércio exterior; técnicas industriais modernas — quem no encontrou de tudo um pouco, ao percorrer a Africa do século XX? Ja hoje se divide a cra moderna africana em dois periodos: o colonial e o das independéncias. A Africa das novas indepen- déncias comega a concreiizar-se na segunda parte dos anos 50 (Sudao, 1956; Ghana, 1957), a afirmar-se especialmente em 1960 (17 Estados independentes nesse ano) e prossegue até aos nossos dias. A «colénia» constitui uma etapa histérica entre a sociedade tradicional e a sociedade nacional, hem mais perto da segunda do que da primeira. Pode dizer-se que a sua realidade, como unidade politica, ficou demonstrada por certas persisténcias, para ja da colonizagio e das independéncias. Os novos paises conti- A AFRICA E O DIREITO 49 nuaram a movimentar-se dentro das antigas fronteiras tragadas pela «partilha da Africa». Os sistemas de relacdes politicas, administrativas, educativas, comerciais ¢ juridicas, basearam-se, depois de 1885, na colénia, como unidade social: mas, nao obstante a extenséo das acgdes € interaccdes alargadas 4 colénia, pode dizer-se que sempre foi dificil lograr uma total identificagao psicolégica dos povos com a mesma. Reinos ¢ tribos continuaram constituindo o marco onde hoa parte dos africanos movimentavam a sua vida. A organiza- Go social da producio e do consumo, o matriménio, a heranga, as relacées religiosas e comunitirias persistiram, reguladas pelas instituigdes tradieionais, Com as novas independéncias procurou-se, contudo, aumen- tar a importancia do sector controlado pela «sociedade de maior dimensao». Subsistem, porém, factores negativos relativamente facil consagragao de tal designio. A recordacio ou reedigéo de velhos conflitos tribais, a prépria utilizagdo, pelos politicos, de tais irredutibilidades, a proeminéncia de interesses regionais, tudo ajuda a comprcender as dificuldades vividas pelos novos gover- nantes. Enquanto, na Europa, se partiu da Nagdo para o Estado, na Africa o processo foi inverso —a estatalidade preceden a nacionalidade. Ora, como j4 acentuara Renan, as nagdes, como os homens, nao se improvisam. Resultam de uma longa caminha- da; so o produto de um persistente esforco, Mas ser, nesta variedade e multiplicidade africanas, pos- sivel falar de um conceito comum de civilizagGo? Jacques Maquet, numa obra bastante divulgada (*), trouxe para debate aportagdes de interesse. Civilizagao, como um todo cultural integrado, nao vinculado a uma sociedade global particular, pode servir-nos como ponto de partida. Compendiara o que consideramos de comum e essen- cial nas culturas de varias sociedades. Fluira como construgao () Afrique: les civilisations noires, Horizons de France, Paris, 1962. 650 JOSE FERNANDO NUNES BARATA abstracta que pode aplicar-se nfo sé a culturas especificas, em que tenha sido elaborada, mas também a outras. O método permitir-nos-4, na Africa, reduzir o nimero ele- vado de entidades sociais globais e examinar sistemas ampla- mentes articulados. Nao se deve esquecer que na Africa tradicional ao sul do Sahara se dava conta, sem grande esforco de investigacao, de 800 a 1.000 sociedades. Na Africa actual, os novos Estados nao vao além de meia centena. A andlise poderd desenvolver-se, relativamente as socieda- des tradicionais, em trés planos: a) aquisig&o e producao de mercadorias, processos que dependem de um factor natural —o meio —e de outro cultural —a técnica que possibi- lita a obtengao de alimentos e outros bens; 5) as instituigdes sociais que regulam os diversos sistemas de interacc4o: 0 econémico, através do qual os bens chegam aos consumidores; 0 poli- tico, que organiza as relagdes entre governantes e governados; o parentesco, pelo qual os des- cendentes de um antepassado comum (e seus afins) guiam o seu comportamento mituo; as associagées, onde os individuos se congregam voluntariamente para alcangar, mediante accdo conjunta, objectivos comuns ; c) as representagées colectivas, sistemas de ideias e simbolos compartilhados por todos os membros da sociedade e que englobam as crengas religio- sas ou méagicas, ideias éticas e concepgio do mundo, filosofia e arte, idioma e poesia. O fundo consuetudindrio africano é assim um denominador comum, susceptivel mesmo de ser classificado numa identidade de aspectos, 4 luz deste esforgo de sistematizacio e sintese. A AFRICA E O DIREITO 651 ALN, Allott, esereve que (*) : «Os direitos da Africa apresentam bastante semelhan- ga, relativamente ao processo, aos principios, as ins: tituigdes e As técnicas, pelo que se torna possivel compreendé-los_globalmente. Pode-se afirmar que eles constituem uma familia, ainda que nfo se possa descobrir algum antepassado que lhes tivesse sido comum», ‘DO CONSUETUDINARIO AFRICANO 0 vamos reeditar aqui os termos da velha contro’ sobre 0 que ha-de entender-se por Direito nos povos primitivos. Ne nio existe uma autoridade central que imponha de forma habi- tual a lei e a ordem. Eles nao dispdem, naturalmente, de tribu- nais organizados, com um cardcter de permanéncia, especializa- dos na fungao de derimir conflitos entre os individuos. O termo «primitivo> abarcard, deste modo, a situagio de alguns povos nos primérdios da sua histéria (por exemplo, o primitivo povo romano) ou aqueles que persistem hoje, fora da corrente da ci zacéo moderna, No tem sido raro afirmar que nestas sociedades primitivas nao existe uma distingdo entre as diferentes classes de normas de conduta. Nos «usos da tribo» misturar-se-iam regras de essén- cia juridica, com normas morais, usos sociais, praticas de magia, simples regras de arte ou ditames de experiéncia. Mas também é exacto que uma anilise mais aprofundada permite, muitas vezes, assinalar, em povos primitivos, algumas diferenciagées entre certos grupos de normas. temos que povos primitivos sao as comunidades onde (3) (A. N. Allott, «African Lawn, na edigdo colectiva An Introduction to Legal Systems, Derret (Ed.), 1968, pég. 131. 652 JOS£ FERNANDO NUNES BARATA Acontece, precisamente, que algumas destas normas, por se considerarem obrigatérias, por derivarem sobretudo de razées praticas da vida social, por nao se fundarem essencialmente em crengas magicas ou religiosas, podem ser qualificadas de «juri- dicas». Encontram-se amparadas em mecanismos rudimentares de coaccio. Ser4, muitas vezes, um mundo de contornos imprecisos, 4m- bito de casos-limite onde 0 uso convencional da palavra «Direito», bem nos distancia das situagdes claras e definidas do Direito num Estado moderno ou, até, do préprio direito internacional. Estamos, em suma, muito longe de um Julius Stone, quando, caracterizou o Direito como: (1) um todo complexo, (2) que sempre inclue normas sociais que regulam a conduta humana. Estas normas (3) de caracter social, constituiram (4) um todo ordenado. Ordenamento (5) caracteristicamente coactivo e (6) institucionalizado. Algo que possui (7) um grau de eficiéncia para se manter a si préprio (*). O Direito manifesta-se, pois, nos povos primitivos, através do costume. Ainda aqui uma caracterizagio precisa nao sera isenta de controvérsias. Recordem-se og debates desde que, nos anos vinte, Bronislaw Malionowski, publicou o livrinho Crime and Custom in Savage Society (*). Ligados a uma éptica «mais moderna», poderiamos cair no expediente generalizado e simples de chamar costume 4 norma de conduta nascida na pratica social e considerada obrigatéria pela comunidade. O seu nicleo origindrio seré um uso ou pra- tica social, Distinguir-se-4, contudo, dos usos sociais em geral, porque a comunidade o considera obrigatério para todos (opinio juris ac necessitatis). O elemento externo do costume é aqui dado pela repetigio constante de certos actos; o elemento interno é representado pela (4) Cf, Julius Stone, Social Dimensions of Law and Justice, Stanford ‘University Press, California, 1966. () Cf. B. Malinowski, Crime and Custém in Savage Society, Routledge, London, 1927. A AFRICA E O DIREITO 653 conviccao, talvez obscura mas instintiva e profunda, da sua obri- gatoriedade juridica. Se falta a repetigao geral, constante e uni- forme dos actos, teremos apenas comportamentos especiais de determinadas classes da sociedade ou comportamentos irregu- lares. Se falta a convicgo da sua obrigatoriedade teremos usos sociais, como as chamadas «regras de etiqueta». Nas sociedades que superaram as primeiras fases da sua evolugao, a tarefa de determinar que usos so costume sub o ponto de vista juridico, acaba por competir aos tribunais. Em pocas anteriores 4 existéncia de tribunais organizados e estaveis, nem sempre foi assim facil distinguir 9 costume, em sentido juridico, dos simples usos sociais. Insista-se, contrariamente 4 opiniio de Bobbio, que nao bastara o simples uso, por extenso e antigo que seja. Devera existir igualmente uma «vontade de validade»—a_vontade colvctiva de que a norma é obrigatéria e coercivel por um me- cinismo social organizado. A conviegio da validade dispensard inclusive a exigéncia de uma antiguidade consideravel. Voltando aos povos primitives, é hoje pacifico salientar que os estudos de etnologia juridica revelam que o costume nem sempre ¢ imemorial, nem demasiadamente antigo; mais tem um dinamismo que permite a sua adaptagio a novas circunstancias, Ihe prodigaliza mobilidade apreciivel. Dé-se conta de costumes que apareceram, se transformaram ou desapareceram com rela- tiva facilidade. Como assinala Angel Latorre, na sua Introduccién al Dere- cho (°), © costume nao é mais uma fonte de direito estavel, que se desenrola magestosamente numa evolugao lenta e quase im- perceptivel. E uma visio dindmica, para 14 da teoria tradicio- nal, em que ele surge harmonizado com as alteragdes sociais de uma comunidade aberta 4 evolugo. Dentro de tal enquadramento evolutivo ganha precisamente maior compreensio para os estudiosos a dimensio do «direito costumeiro africano». Acresce que os que pretendem salvar mui- (*) Hi tradugdo portuguesa, Colecgéo Almedina, Coimbra, 1974. 654 JOSE FERNANDO NUNES BARATA tas das suas potencialidades para a ordem juridica futura, na Africa, encontram igualmente maior animo neste modo de ver. 2.1 CONCEPCAO AFRICANA DE ORDEM SOCIAL Nas velhas sociedades tradicionais africanas a vida tinha um sentido unitério. Nao havia pois distingo entre a actividade religiosa, social ou politica. 0 homem que caga, que danca, que luta ou que sofre é sempre o mesmo que adora os seus deuses. A sociedade tradicional africana abrange os vivos e os mor- tos. Os antepassados siio os detentores da «forga vital». Dispdem de poder sobre os vivos; prodigalizam-lhes ou negam-lhes recom- pensas e dons. Além de «legisladores», os antepassados so tam- bém os guardides dos costumes e das leis. Acompanham a con- duta dos descendentes, encontrando-se, sob o seu controle, a fide- lidade as tradigdes, 0 respeito pelos mortos e pelos ancides, 0 cumprimento das ceriménias. Fazem parte dos clas. Invisiveis sempre presentes, os seus espiritos permanecem em comunhao constante com os vivos. A comunidade dos vivos e dos mortos compreende, em suma, os individuos de ambos os sexos «viven- do», em cima e debaixo da terra. A terra nao é individualmente apropridvel, nesta sociedade ritual ¢ integrativa. Pertence a uma grande familia, da qual muitos membros esto mortos, outros vivos e inumeraveis ainda por nascer. Jorge Dias, na sua monumental obra sobre Os Macondes de Mogambique (") acentua que entre estes ndo existia, até ha anos, um conceito de posse da terra: «A terra nfo pertence aos homens; ela é uma enti- dade quase metafisica ; espécie de ser vivo que contém em si imensas potencialidades; reino dos vivos e dos (1) Cf. o vol. ILI, Vida Social e Ritual, 1970, pag. 339. Esta obra foi editada pela Junta de Investigagaéo do Ultramar em Lisboa. A AFRICA E O DIREITO 655 mortos; de interferéncia do aquém e do além! A terra é sempre terra. E 0 palco onde decorre a existéncia dos homens e sé mediante consentimento ou praticas propiciatérias € possivel o homem fixar-se e obter dela o sustento e o acolhimento indispensdvel & subsis- téncia. Por isso sempre que um nanolo, chefe de qualquer povoacao, quer mudar para outro lugar, nao o pode fazer sem primeiro consultar os antepassados ou espiritos da terra e saber se eles dao assentimento». Outro povo, mais primitive e mais singular no seu nomadis- mo (os Bochimanes), vivendo da recolecgao e da caga, cuida que Deus, nava ou gawa, nao quer que cultivem a terra. Pé-los no mundo para viverem no mato e sé dele. Créem que se langarem a semente a terra ndo choverA; e, até, que poderao morrer. Manuel Viegas Guerreiro, na sua bela monografia sobre os Bochimanes, inclina-se para que estes manifestem, relativamente 4 terra, a natural despreocupagio de quem nao julga seu o que & bem comum (*) : «Gawa todo-poderoso criou o céu e a terra e tudo quanto ela da. A terra seri assim de todos ou de ninguém e os frutos de quem os apanhar, tal como os animais silvestres. Nem num nem noutro caso 0 esforco humano se empregou para produzir riqueza, e s6 este parece conferir o direito de propriedade». O cardcter religioso do patriménio comunitario das socie- dades tradicionais africanas apoia-se e projecta-se nas estruturas sociais, Nas sociedades primitivas, dada a auséncia de dominio fisico da terra, o poder dos chefes e dos ancides é exercido e mantido através do controlo directo dos homens e do sistema de circula- ¢ao dos produtos. A forga de trabalho séo os «novos». Se aos (8) Ct. Bochimanes de Angola, Instituto de Investigagio Cientifica de Angola, 1968, pag. 149. 656 JOSE FERNANDO NUNES BARATA «novos» fosse permitido o acesso A terra que cultivam, sairia profundamente afectada a estabilidade tradicional. O suporte econémico geraria uma autonomia pessoal que faria perigar a solidariedade tribal, que permitiria aos «novos» eximirem-se & autoridade dos ancides. Este sentido de integragéio, este comunitarismo social, pro- longa-se para 14 da simples propriedade da terra. Mesmo que esta possa ser cultivada individualmente, as grandes operagées de derrubas, as sementeiras e as colheitas séo habitualmente rea- lizadas em conjunto. A cooperagio nos trabalhos agricolas e, até, nas cagadas é, deste modo, também imposta pela magnitude do esforgo a despender. Soe dizer-se que a economia destas comunidades se funda- menta na solidariedade e dela se alimenta. Outra nota, em contraste com as economias evolufdas, tra- duz-se numa adaptagio passiva e ambiental & natureza. Daqui decorrem diferengas fundamentais entre 0 negro africano primi- tivo e o homem civilizado europeu. As respostas que um ou outro dio ao desafio da natureza so diferentes. A resposta euro- peia é uma resposta de luta agressiva, pretendendo dominar a natureza; a africana é mais passiva do que activa, é uma atitude de conformidade — «responde, produzindo homens, ao desafio hostil que a natureza lhe langa, consumindo esses homens» (*). Podemos, em suma, afirmar que o comunitarismo, a auséncia de propriedade individual, a agricultura itinerante, se repercur- tem, na Africa, em toda uma estrutura s6cio-econémica das socie- dades tradicionais, dando tonalidade especifica as «instituigdes juridicasy, as relagdes de troca, aos melhoramentos fundiérios, & produtividade. Na variedade de expressdes e estruturas & possivel descor- tinar um fundo comum. (®) Cf. Alfredo de Sousa, «Estruturas sdcio-econémicas e dialéctica de culturas em Africa», in Andlise Social, 1963, n° 3. A AFRICA E O DIREITO 657 José Redinha, numa obra que conheceu grande divulgagao, Etnossociologia do Nordeste de Angola, assinala, relativamente aos grupos étnicos que estudou (**): «O trabalho da tribo é considerado como uma neces- sidade social das pessoas e do grupo. Dado o sistema comunitirio destas sociedades, resulta que cada indi- viduo € um co-associado do seu semelhante, e, da‘, presidir ao trabalho uma certa obrigatoriedade moral, desacompanhada, contudo, de quaisquer medidas coer- civas. O trabalho, segundo 0 modo como o indigena © encara, é uma concepgio social tradicional (caga, pesca, agricultura, oficios e artes) e religiosa (orga- nizagao de ceriménias piblicas, ritos, etc). Por estes motivos, a institucionalizagéo ¢ 0 rito condicionam e regulam muitos aspectos do trabalho, como sejam: a transmissio de offcios ¢ artes por linha da familia e a ritualizagio observada no exercicio de algumas técni- cas e profissées». 2,2 — ESTRUTURA E DINAMICA DO COSTUME O direito tradicional africano é assim constituido por um Conjunto de normas cuja reintegrago, no caso de inobservancia, é assegurada por sangées formais ou informais. A sua fonte é a vontade dos ancestrais. F. ela que confere um fundamento trans- cendente ao imperativo juridico e um poder de articulag&o neces- sirio para garantir a coesdo e a solidariedade do grupo. Suas regras sdo os vectores das forcas sdécio-econdémicas reinantes em dada época ou lugar. Sua fungdo nao é apenas a de resolver con- flitos de interesses individuais, mas, antes, a Promogio do equi- librio osmético da sociedade. G9) Edigdo da Agéncia Geral do Ultramar, Lisboa, MCMLVIII, pg. 139. 658 JOS£ FERNANDO NUNES BARATA Em termos de Direito Comparado, René David (**) escreveu: «O costume africano funda-se em concepgées diame- tralmente opostas 4s que tm dominado o pensamento ocidental moderno». Numa concepgio essencialmente estatica do mundo, os afri- canos rejeitam a ideia de progresso e aceitam desfavoravelmente qualquer operagao (seja a venda imobilidria), qualquer institui- Gio (tal como a prescrigéo), que tenha por consequéncia alterar esquemas pré-existentes. O interesse destes povos concentra-se sobre grupos que per- duram no tempo e para la do tempo (tribos, aldeias, linhagem), e nao, como acontece no Ocidente, onde a base so elementos transitérios — individuos, casais, domicilios. Ja vimos que na sociedade tradicional a terra pertence mais aos antepassados e as geracdes futuras, do que propriamente aos homens vivos. De igual modo, 0 casamento, mais do que uma unido entre dois seres, é uma alianga entre duas familias. A.N. Allot (7) salienta contudo que o individuo nao é igno- rado; a sua personalidade é reconhecida, mas, perante o exte- rior, é 0 grupo que funciona como unidade base. Bem mais importante que os direitos subjectivos, ligados & personalidade do individuo, sAo as obrigagdes que impendem sobre cada um, em fungio da sua condigao social. 2.3 — FUNCAO DO PROCESSO 0 verdadeiro sentido do justo, no contexto africano tradicio- nal, prende-se, fundamentalmente, com a necessidade de assegu- rar a coesio do grupo. O grande objectivo reside no restabele- cimento da concérdia, da boa harmonia. (11) Cf. Os Grandes Sistemas do Direito Contempordneo, Editora Meri- diano, Lisboa, pag. 606. (2) Ver «African Law» cit., pigs. 147 e segs. A obra colectiva editada por Derret, An Introduction to Legal Systems, contém sete artigos de espe- clalistas sobre direito romano, hebraico, muculmano, hindu, chinés, africano © inglés, A AFRICA E O DIREITO 659 A «justiga», mais do que sancionar direitos, procura uma conciliacdo amigavel entre as partes. As regras do costume limitam-se, quando surge um litigio, a indicar um mecanismo para lhe pér fim, fornecendo simul- taneamente uma base de discussio. Gluckman ("*) pde em destaque a auséncia, na Africa tradi- cional, de regras de processo limitadoras da competéncia ou dos poderes dos érgdos encarregados de administrar a justiga. Vale aqui a regra Ubi jus ibi remedium, Instituigao de paz, a justica tradicional nao visa, em primeira linha, a aplicago de um direito estrito, tal como acontece nos direitos ocidentai: reconciliagdo das partes, a obtengo da harmonia na colec- tividade, poder&o ser acompanhadas de uma atitude «generosa». Traduzir-se-i na renincia, por parte daquele que obteve uma decisio favordvel, a sua execucao, De resto, a auséncia de processos eficazes de execugéo das decisdes, recomenda a obtengdo de um entendimento. Quando, no periodo colonial, se procurou assegurar a «subsis- téncia das relagGes juridicas», transformaram-se as condigées de funcionamento e a propria fungdo destas jurisdigdes tradicionais, No afa de uma garantia dos direitos subjectivos, reconhecidos aos individuos, a justiga tradicional deixou de cumprir o seu velho papel de conciliatéria. As formas consuetudindrias cederam lugar a instituigdes estatutdrias, 2.4— A REDACCAO DOS COSTUMES A Africa tradicional nfo conheceu naturalmente uma Ciéncia do Direito. As distingdes em que se comprazem (ou se debatem), por exemplo, os juristas da familia romano-germanica nunca ai fo- ram sonhadas. Classificagdes de direito piblico e direito priva- (03) Cf. The Ideas in Barotse Jurisprudence, Yale University Press, New Haven, 1965, pags. 10 e segs. 660 JOSE FERNANDO NUNES BARATA do, nogées de direito civil ou direito comercial, conceitos de direito ou de equidade, sio apandgios do labor racionalista europeu. A oralidade do costume é uma constante secular. Quando, no period colonial, a solicitude dos «administrativos» se quiz manifestar na compilagio dos direitos consuetudindrios, as difi- culdades revelaram-se quase intransponiveis e os resultados prd- ticos muito minguados ("*). Por seu turno, Gluckman assinala, numa publicagio editada sob a direccéo de A. Tunc, que tentar descobrir nestes direitos consuetudindrios as categorias ¢ utilizar os métodos dos direitos ocidentais apenas poderia conduzir & sua total deformagio (°). ‘A maioria dos conhecimentos relacionados com o mecanismo eo funcionamento dos direitos tradicionais africanos ficou a dever-se As investigagdes socioldgicas. Actualmente as normas juridicas e sociais que presidem ao comportamento das comunidades africanas tém uma origem com- plexa. Devido a fluxidez da maioria destas comunidades continua a ser preferivel evitar o recurso a esquemas teéricos para as investigagdes juridicas. Acentua-se que até hi poucos anos, o essencial do que se escrevera sobre o direito na Africa, dizia principalmente respeito ao direito europeu importado ou ao seu encontro com as socie- dades nativas. Algo de diverso se tem passado agora. Cresce o interesse pelo direito consuetudindrio africano e encara-se o direito europeu numa éptica de «adaptagio ajustada» as realidades locais. Conferéneias internacionais realizadas ultimamente sublinha- ram a oportunidade de reduzir a escrito as leis costumeiras. Assim aconteceu, em 1963, na Conferéncia africana sobre os tri- bunais locais e os direitos costumeiros (Dar-es-Salaam) e na (Ver, por exemplo, a introdug&o de B. Manpoil, na obra Coutumiers Juridiques de UA. O. F., 3° vol. 1939. (as) «Legal Aspects of Development in African inserto na obra colectiva Les aspects juridiques du développement économique, A. Tune (Ed.), Libr. Dalloz, Paris, 1966, pags. 59 e segs. A AFRICA E O DIREITO 661 Conferéncia de Veneza sobre o direito tradicional africano e 0 direito moderno. Em Veneza salientou-se a relevincia do costume e a «sua redaccio numa lingua e sob uma forma juridica apropriadas», como «etapa importante no conhecimento do direito africano e condig&o essencial 4 sua evolugio». Nestes propésitos residira um dos muitos paradoxos da Africa de hoje. A reducio a escrito do direito costumeiro correspondera, em certa medida, & sua europeizagio. O verdadeiro conceito do direito africano, aos olhos dos proprios africanos, enquanto dircito em sentido abstracto, por oposicao ao direito europeu, seré um conceito de transformacao. No espirito dos ancifies, como jé demos a entender, a nogio de direito repousava numa certa ordem, num conjunto de meios adaptados para restaurar o equilibrio social, quando este era afectado. Os anciaes acreditavam que o direito costumeiro, na sua forma oral, permitia, na medida em que podia ser aplicado globalmente, resolver todos os problemas da sociedade tradi- cional. O africano moderno podera nao pensar deste modo. Embora detentor de uma formacio que lhe permite manejar o direito costumeiro, sente a necessidade de recorrer a regras atinentes & Prova e€ ao processo. Reconhece a indispensabilidade de um direito escrito para se guiar. Um grande nimero de temas apresentam-se-lhe como exigin- do regras escritas: registo do casamento e do divércio; regula- mento da conservagéo do solo; disciplina pecudria; comercia- lizago dos produtos; sistemas de impostos e taxas; tabelas judi- cidrias relacionadas com os encargos das custas processuais; etc.. Dar condigées de sobrevivéncia escrita ao costume numa so- ciedade em profunda transformagao comporta grande dose de risco. O Estado, nao podera, por seu turno, sem destruir 0 cos- tume, substituir-se aos agrupamentos origindrios. O congelamen- to, através da «codificago», do direito consuetudindrio nao The fard perder a propria alma? 662 JOS£ FERNANDO NUNES BARATA — INTRODUCAO DO CRISTIANISMO E DO ISLAMISMO NA AFRICA NEGRA O Cristianismo e o Islamismo penetraram na Africa negra muito antes do periodo colonial moderno (**). A Africa setentrional, que foi romana e conheceu a floragéo da comunidade cristé, de que o génio de Agostinho de Hipona é a mais esplendorosa expressao, viria, no século VII da nossa era, a sofrer uma alteragaio profunda, com a expans&o islamica. Os séculos futuros trariam uma irradiagio do islamismo para o interior e na linha da costa atlantica até ao Golfo da Guiné. Ja depois do ano mil os Almordvidas, sob a direccdo de Youssef Ibn-Tachfine (1052-1107) deixariam o Senegal para anexar o Ghana, converter o Mali e conquistar Marrocos. Na costa oriental assistimos & implantagdo do Isléo na So- malia e ao seu progressivo avanco até Mocambique (séculos XIV e XV). Quando as naus de Vasco da Gama chegaram aos portos africanos do {ndico, ja ai os encontraram (*"). A expansio islamica acarretou consigo 0 direito mugulmano. Este € apenas uma das faces da religiao do Isléo. Ao lado de uma teologia, que fixa os dogmas e determina aquilo que o mu- gulmano deve crer, existe o «char» que prescreve 0 que os cren- tes devem ou nao fazer. Este «char», isto é «caminho a seguir», constitui precisamente a esséncia do direito mugulmano. Na sociedade islmica perfeita, fundamentalmente teocrtica, o Estado nao tem valor a n&o ser como servidor da religiao revelada. Nenhum crente pode ignorar o direito mugulmano. Gibb acentua que o direito mugulmano foi a ciéncia basica e o factor mais importante para conformar a ordem social e a vida da comunidade dos povos mugulmanos. Ele manteve coerente e firme (@*) Quanto & Africa tropical cf. C. G. Baéta, Christianity in Tropical Africa, Oxford University Press, 1968. (27) Sobre 0 Isléo na Africa tropical, ver I. M. Lewis, Islam in Tropical Africa, Oxford University Press, 2* ed., 1969. Cf. ainda J. C. Froelich, Les musulmans d'Afrique noire, Orante, Paris, 1962. A AFRICA E O DIREITO 663 a estrutura do Islao através de todas as flutuagées da vida polf- tica e fez sentir a sua influéncia sobre quase todos os aspectos da vida social e sobre cada ramo da literatura. Proclamando uma originalidade relativamente aos outros sis- temas do direito em geral (tal independéncia resulta do facto de se fundar sobre 0 Cordo, gue é um livro revelado), o direito islamico deixa, contudo, largo campo de aplicagdo ao costume, & convengao das tes, A regulamentagio administrativa. A ciéncia do direito mugulmano formou-se e estabilizou-se no periodo correspondente & Alta Idade Média europeia, O ca- ricter arcaico de algumas d instituigdes, 0 seu _aspecto casuistico, a auséncia de sistematizagio compreendem-se, deste modo, com a sua idade. Mas ele, contrariamente ao que posi- gdes ortodoxas possam fazer crer, sofreu, logo de inicio, a influéncia do direito dos paises conquistados. Por outro lado, a consideragdo de cinco categorias nas acces do homem (obrigatérias, recomendadas, indiferentes, censurdveis ou interditas) deixa certa discricionaridade A conduta indivi- dual. Foi a «atitude liberal» que facilitou (e ainda facilita hoje na Africa) a expansio do islamismo. Dai que numerosas sociedades muculmanas, nas quais se reconhece, como dogma, a exceléncia e a autoridade do dircito mugulmano, tenham podido viver durante séculos (e ainda vivam hoje) sob a vigéncia do costume (°"). O costume, assinala René David, néo pode ordenar um com- portanto que o direito proibe ou proibir um comportamento que o direito declara obrigatério; mas pode legitimamente orde- nar uma coisa que, segundo o direito, é somente recomendada ou permitida, ou pode proibir uma coisa que, segundo o direito, é censuravel ou simplesmente permitida. O préprio grau de islamizagio dos actuais paises africanos é diverso. Se na Africa setentrional 98% da populagdo da Argé- sua (4 Ver H. Gibb, Mohammedamism An Historical Survey, 1953, pags. 9 e Segs.; J. Schacht, An Introduction to Islamic Law, 1964, pags. 78 e segs. Ver funda, deste ultimo autor, Esquisse d'une histoire du droit musulman, Besson, 664 JOSE FERNANDO NUNES BARATA lia se declara mugulmana (99% na Tunisia, 99,5% no Marro- cos), & medida que se marcha para o Equador tal percentagem vai diminuindo. Sao ainda 86% da populagao do Senegal, 55% da populagio da antiga Guiné Francesa ou 50% da populagio do Chade. Mas ja nfo vio além de 13% da populagdo do Ghana, 15% da populagio do Dahomé a 7% da populagdo do Togo. Na costa oriental representam a quase totalidade da popu- lagfio da costa da Somélia, para serem 18% dos habitantes do Kénia, 12% dos habitantes do Uganda e 25% dos habitantes da Tanzinia. Em Mocambique a maior densidade da sua pre- senca vai do Rovuma & Zambézia, por ai se quedando o seu esforco de expansio no sentido da Africa austral. Tudo isto ajudou a comprender, em suma, a persisténcia do direito costumeiro africano em populagées islamizadas. Quanto ao Cristianismo, a sua penetragao na Eitépia remon- ta, pelo menos, ao século IV. O famoso Reino do Prestes Joao das fndias, tio procurado pelos Portugueses, no perfodo dos Descobrimentos, viria a ser af localizado e as memérias dos via- jantes, com destaque para a famosa Informagio do Padre Fran- cisco Alvares, sio ainda hoje depoimentos curiosissimos sobre as estruturas do pais no século XVI. Foram ainda as descobertas dos Portugueses, ao longo de toda a costa africana, que contribuiram para a abertura de vastos territérios & expansio do Cristianismo, na area do Atlantico e do {ndico. As ligagdes entre a Corte de Portugal e o Reino do Congo e a existéncia do primeiro Bispo negro, inserem-se neste processo, logo nos alvores do século XVI (**). (18) Sobre a viagem de Vasco da Gama, ver Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama (1497-1499), por Alvaro Velho, prefdcio, notas e anexos de A. Fontoura da Costa, Agéncia Geral do Ultramar, MCMLX; José Pedro Machado e Viriato Campos, Vasco da Gama e a sua Viagem de Descobri- ‘mento, Lisboa, 1969. Da obra do Padre Francisco Alvares hé uma reedicio recente de 1974. Padre Francisco Alvares, Verdadeira Informacdo das Terras do Prestes Jodo, Agéncia Geral do Ultramar, MCMLXXIV. Esta Teedigfio é a reproducao fac-similada de uma de 1943 que fora anotada e actualizada na grafia por Augusto Reis Machado. A AFRICA E O DIREITO 665 Também a introdug%o do Cristianismo seria portadora de inovacdes. Atente-se, por exemplo, nos direitos de familia, que no sistema romano-germanico foram moldados pelo Direito Cané- nico. A «familia» africana constitui um grupo diferenciado da «familia» ocidental. Sao diversas as concepgdes do casamento, as relagies de parentesco. o dote. A prépria devolugio suces- séria realiza-se. na Africa tradicional, segundo regras que o homem ocidental tem dificuldade em compreender. A verdade & que os costumes africanos, mesmo nas Areas mais trabalhadas pelo Catolicismo ou por Igrejas protestantes, continuaram a ser observados pelas populagdes nativas. Da introdugio do Cristianismo ou do Islamismo na Africa negra resultou, contudo, algo de importante: aos olhos dos nati- vos os seus costumes perderam aquele «cardcter necessério», ligado ao sobrenatural que antes os caracterizava. Em lugar de surgirem impostos pela ordem natural do mundo, tornaram-se exemplo de uma socicdade imperfeita. Como acentua René Da- sid, na medida em que nao tinham a qualidade necessiria para se reformarem, continuaram a viver, tal como no passado, mas, a partir de entao estes africanos reconheceram que nao viviam segundo a lei de Deus, segundo 0 «Direito». Na medida em que o Cristianismo e o Islamismo retiraram ao costume o seu fundamento sobrenatural (e magico) abriram caminho & sua decadéncia. 4— PER{ODO DA COLONIZACAO Nao constituird tarefa isenta de dificuldades a caracteriza- so, procurando abranger todas as coordenadas do tempo e do esforgo, de colonizagao. Desde logo no se trata de um fenémeno restrito & época contemporanea. Com vulto grandioso, como a colonizagio chinesa na Manchiria, na Mongélia, no Tibet, em Tonquim, na Malasia, como a expansio romana e a muculmana, como as migragdes barbaras na Europa, ou, em relativamente mais modesta afir- 6 666 JOSE FERNANDO NUNES BARATA magiio, como a colonizagio fenicia, grega, cartaginesa e das cidades italianas na costa do Mediterraneo, o fenédmeno antecede em muitos séculos a nossa era. Assume hoje aspectos e proporgées singulares nos espagos da U.R.SS., quando consideramos as populagées asiaticas ¢ até europeias submetidas ao dominio da Grande Rissia, herdeira dos czares. Como é ébvio a colonizag’o que prende, neste momento, as nossas atengdes respeita aos dois ultimos séculos e restringe-se ao continente africano, nomeadamente as Areas da chamada Africa negra (°°). Todo este fenémeno se transporta para o mundo do direito e da politica. Interessam-nos especialmente os seus aspectos juridicos. Ja demos a entender que a situago colonial moderna afri- cana teve como grande marco a Conferéncia de Berlim. Assis- tiu-se, porém, desde o século XV, a um enorme labor juridico- -politico, relativamente aos problemas da aquisigao, posse e admi- nistragao de territérios ultramarinos (”). A influéncia dos ideais politico-juridicos da Idade Média europeia, com as suas concepgées da sociedade internacional ; a intervengio pontifica na legitimacao das expansées portuguesa e espanhola; a famosa questio da Jiberdade dos mares; 0 sis- tema do pacto colonial; as controvérsias sobre a escravatura e a sua aboligio, sio momentos relevantes nesta caminhada de sé- culos. Depois da Conferéncia de Berlim, viriam o Pacto da S. D. N. e a Carta das Nagdes Unidas. No Ambito deste ultimo periodo, a Conferéncia de Bandung, realizada em Abril de 1955, marcou um momento decisivo para a era das novas independén- cias, que hoje se vive (”). (2) Ver, por exemplo, H. Deschamps (Dir.), Histoire générale de PAfrique noire, If. De 1800 a nos jours, P. U. F., Paris, 1971. () Cf. Marcello Caetano, Portugal e a Internacionalizagdo dos Pro- blemas Africanos, 3+ ed., 1965. plo, H. Grimal, La décolonisation, 1919-1963, Colin, A AFRICA E O DIREITO 687 4.1 — CONCEITO DE COLONIZAGAO s tempos modernos ganhou adesées 0 conceito de coloni- Zagdo como acto de transmissao de cultura. No serd aqui o local adequado para nos empenharmos em discussdes sobre 0 conceito de cultura. Servir-nos-4, para avan- gar na andlise da nossa tematica, a posigio de um Bronislaw Malinowski (*), quando fala de um «todo integral consistente em utensilios, bens de consumo, elementos de organizagio dos varios grupos sociais, ideias humanas e offcios, crengas e cos- tumes». Quer se trate de uma cultura muito simples e primitiva ou de uma cultura extremamente complexa e desenvolvida, en- contrar-nos-emos perante um vasto maquinismo, em parte mate- rial, em parte humano e espiritual, que habilita 0 homem a lutar contra os problemas concretos e especificos que o enfrentam. Neste encontro de culturas, nesta acculturation da termino- ): —da parte do «colonizador», a existéncia de uma cultura unitéria e harmoniosa, isto 6, cujos valores espirituais essenciais nfo se revelem contraditérios, mas antes possam conciliar-se e fundir-se num corpo organico de principios fundamentais, dotados de rele- vante finalidade humana; logia anglo-saxénica, exigir-s —em relacg&o ao «colonizado», 0 respeito pela cul- tura propria, nos seus elementos integrantes, procu- rando uma substituig&o progressiva que nao gere, de imediato, perturbagdes no equilibrio humano destes povos, nao lhes destrua a unidade da sua personali- dade, a harmonia do seu espirito. (23) In A Scientific Theory of Culture, 1944. ca ey ae Armando Martins, Correntes Actuais do Pensamento Colonial, 668 JOS& FERNANDO NUNES BARATA Num livro, que ao tempo conheceu muita nomeada (*), 0 Padre Placide Tempels escrevia que seria um crime de lesa- -humanidade da parte do colonizador, emancipar as ragas primi tivas do que tem valor, do que constitui um nicleo de verdade no seu pensamento tradicional, na sua filosofia e no seu ideal de vida, formando corpo com a prépria esséncia do seu ser. A aferigio dos valores culturais constituiré sempre esforgo atraigoado por boa dose de subjetivismo e relativismo. Saber o que ha de vlido na cultura de um povo colonizador; deter- minar quais séo, no mundo do colonizado, as instituigdes sociais, as regras juridicas, os princfpios religiosos que possuem forga perene — tudo isto nfo é tarefa facil. Muitos discutirdo mesmo 0 «abusivo» de uma transmutacao cultural. Ainda aqui, neste momento, a nossa posigéo nao é apolo- gética ou sistematicamente negativa. Recolhemos um pensamento, uma situagdo, como elementos indispensdveis & compreensio do que se segue. Com Gluckmann, os antropolégos da Escola de Manchester, yém conduzindo as suas investigagées no sentido do dinamismo proprio das sociedades. Incompatibilidades, contradigdes, tensées, conflitos e movi- mentos sio préprios de toda e qualquer sociedade, afirma-se. Para estes adeptos de um dinamismo cultural, na expressio de Paul Mercier (**), as sociedades africanas seriam sociedades instaveis. Nelas 0 conflito nao destrdi o sistema; pelo contrario, & por seu intermédio que o sistema social adquire um vigor sem- pre renovado (”"). Esta interpretagdo dinamica das sociedades, ao mesmo tem- po que nao aceita a consciéncia histérica per accidens, que «rea- (25) La philosophie bantoue, Présence africaine, 1949. Citamos a tra- dugdo_ francesa. (28) Of. Histoire de l'Anthropologie, P. U. F., 1966. (@) Ver de Max Gluckman: Custom and conflict in Africa, Barnes & Noble, Oxford, 1955; Order and Rebellion in Tribal Africa, Cohen & West, London, 1963. A AFRICA E O DIREITO 669 bilita» a mudanga social, acaba por justificar a colonizacdo. Paul Mercier chega a pretender que as perturbagées numa so- ciedade colonizada podem ter por causa o facto de algumas das dimensdes necessdrias & solugio dos conflitos tradicionais serem a partir de entao impossiveis e de determinados quadros insti- tucionais que a possibilitavam se terem tornado ineficazes. A propdsito dos dinamismos que operam nas sociedades deste Terceiro Mundo, distingue-se entre a modernizagéo e a mutagao. A modernizacgéo traduzir-se-ia numa ruptura com a cultura ou os padrées culturais do grupo; a mutagdo significaria transforma- cao estrutural rapida. Mas voltemos a Malinowski. Ele pds em destaque a neces- sidade de uma compreensio ¢ estima da cultura das sociedades nativas, com suas leis e dialéticas, 9 grau de harmonia das su- perestruturas. Mas este corpo social nio é também encarado como entidade ideal parada, inerte. &, antes, no seu devenir constante, na sua evolugéo sob a acgio da cultura europeia, nos movimentos ¢ reacgées yue o choque com esta lhe Pprovoca, que ela procura destringar a sua matéria essencial, as suas correntes directoras, 0 seu determinismo e vitalidade. Insiste-se que, no mais amplo sentido, mutacdo cultural sera motor permanente da civilizagéo humana, Encontrar-se-a em toda a parte e em qualquer tempo. Pode ser movida por factores e forgas que espontaneamente surgem dentro da comunidade ou pode ter lugar através do contacto de diferentes culturas (*). E da nossa experiéncia africana, a constatagio de que, quan- do 0 homem da sociedade tradicional entra em contacto com 0 mundo complexo dos valores materiais e espirituais da civili- zagdo europeia, se sente surpreso e, muitas vezes, possuido de maravilhada admiragao. Ao desejo de conhecer, sucede o de imitar; um esforgo de assimilagao significa transposigéo, para 14 da cultura propria. (24) Wet Bronislaw Malinowski, The Dynamics of Culture Change, New Haven, 1945. 670 JOS£ FERNANDO NUNES BARATA De tudo, incluindo a fragilidade da cultura nativa, resultam consequéncias psicolégicas profundas. O indigena é agora um insatisfeito perante as explicagdes do mundo e da vida que lhe oferecia 0 pensamento dos ancestrais; mas encontra-se, igualmente, em crise pelo pouco que consegue apreender e assimilar da cultura europeia. Perdeu, em suma, um critério tribal de apreciagao e de julgamento, sem que tenha adquirido outro novo. Desintegrado do todo comunitério, que era a razio principal da sua vida, desligado da tribo, que monopo- lizava as suas motivagées e interesses, ele nao sabe o que fazer, nem como viver, 4 sombra de uma independéncia, de uma indi- vidualidade, que lhe oferece a cultura europeia. Tudo lhe aparece como novidade — formas de instituigao familiar, casamento, propriedade, relagées sociais. Infelizmente a quebra dos valores morais da cultura euro- peia, na sua extenséo 4 Africa, mais fez agudizar o problema dos destribalizados, Os prineipios morais que, na cultura ocidental, conduziriam 4 condenagao da escravatura e da guerra, nfo foram respeitados pelo homem europeu, a ponto de substituir a escraviddo e as lutas, anteriormente generalizadas no seio das populagées afri- canas. Antes pelo contrério: lamentavelmente o europeu reedi- tou condutas to cruéis. A visio pessimista de Malinowski manifestou-se ao afirmar que na Africa a mutagGo cultural produziu, em boa dose, con- digdes de miséria econédmica, de inquietacao politica, de conflitos sociais. «Nada surpreende — escreveu — que a crenga na feiti- garia aumente em vez de diminuir». A solugao feiticista nfo é, de facto, na Africa, um simples epifenémeno. Revela-se como um corpo rico de doutrinas. Nao é o feiticeiro que inventa a «sua» religigo e a mantém. Sao as condigées sociais que provocam o seu aparecimento. Nesta reli- giosidade negra ha uma necessidade psicolégica de evaséo ao complexo de fraqueza, de inferioridade, perante as forgas do sofrimento, A AFRICA E O DIREITO ont Ainda neste plano de valoragées, e sua fundamentagio, me- tecem estudo cuidadoso os profetismos africanos, A existéncia de um povo oprimido, a vinda de um mensageiro divino, a capa- cidade de este reparar as injustigas e conduzir os seus ao primeiro plano, integram 0 contetido do messianismo (*"). O negro adornou o feiticismo com um elemento psicolégico de expiagao social. Quando niio se pode combater directamente © infortinio, responsabiliza-se uma pessoa ou um grupo pelo seu aparecimento. Todas estas dificuldades e desencantos conduziram os mais animosos e generosos a advogar a necessidade de partir «do chao da cultura e civilizagdo negras, com seus ricos contetidos € persistentes complexos, num caminhar gradual e ascendente para a civilizagdo». Insistiu-se em cultivar «o espirito do nativo e orienta-lo sem rupturas, para o seu gradual aperfeicoamento». Proclamou-se 0 cuidado «em Ihe manter e constituir uma perso- nalidade espiritual harmoniosa e ordenada, e em nao romper o seu equilibrio humano». Revelou-se a grande preocupacao de Ihe mostrar «a certeza de que na sociedade que se lhe pretendia construir, ele nao seria repelido, mas antes seriam justamente estimadas todas as suas possibilidades» (Armando Martins, cit.) Entre 0 ideul ¢ o real, debatem-se os ideolégicos, og politicos, os missiondrios, os homens de negécios. E quando a voz da Africa se fez ouvir, outras foram igualmente as suas expressdes € anseios, como adiante referiremos (°°). 4.2 — POLITICAS COLONIAIS A expansao colonial europeia na Africa, a partir da Confe- réncia de Berlim, fez-se invocando varias razées, muitas vezes aH Ver, por exemplo, Robert Kaufmann, Millénarisme et accultura- tion, I. ) Ct, por exemplo, Claude Wauthier, L'Afrique des africans. Inven- taire de la négritude, Ed. du Seuil, 1964. 672 JOSE FERNANDO NUNES BARATA apoiadas em express6es sonoras: missdo sagrada de civilizagao, cruzada de civilizagao, etc. (*). A independéncia dos Estados-Unidos da América e a Revo- lugao Industrial tornaram desnecessdrio, para a Inglaterra, o tréfego dos escravos. A partir dai a Gra-Bretanha aderiu ao abolicionismo. A velha periferia, que compreendia a América das plantagées e a Africa do comércio de escravos, daria lugar a uma nova periferia traduzida, para as Ilhas Britanicas, na proviso de produtos, matérias-primas e bens agricolas que ten- deriam a reduzir os custos do capital fixo e dos capitais flutuan- tes utilizados na metrépole (°*). Esta consciéncia das novas oportunidades nem sempre teré sido imediata. Quando Cameron ¢ Stanley insistiam com 0 Go- verno de Sua Magestade para que este se interessasse pelos terri- torios que haviam de constituir o Estado-Livre do Congo, o Governo de Disraeli, demasiadamente positivo, classificava as declaragées dos dois exploradores como vagas e impossiveis de serem aproveitadas naquela geragao. As imensas potencialidades do continente negro, reveladas por audazes exploradores, como Levingstone, Serpa Pinto, Stan- ley, Brito Capelo e Robert Ivens, logo desencadearam um movi- mento de maior curiosidade e apetite, na Europa. Partilhada a Africa, depois da histérica «corrida», af se definiram, por parte das poténcias europeias, politicas coloaiais. Dobrado o século, com a guerra sul-africana (1899) em que os ingleses se empenharam, chegar-se-ia ao grande conflito de 1914-18, de onde resultaram profundas alteragdes na situacdo colonial. A presenga europeia juntar-se-iam os interesses dos Estados Unidos da América, tantas vezes generosamente disfar- gados, mas sempre desejosos de partilhar mercados defendidos através de exclusivos ou privilégios. (81) | Sobre o anticoloniatismo europeu cf. Marcel Merle e Roberto Mesa, El Anticolonialismo Europeu. Desde Las Casas a Marz, Alianza Editorial, Madrid, 1972. Citamos uma tradugdo do original francés. (s2) Sobre a escravatura, cf., por exemplo: Eric Williams, Capitalismo e Escraviddo, Companhia Editora Americana, Rio de Janeiro, 1975; Eugene Genovese, A Economia Politica da Escraviddo, Companhia Editora Americana, Rio de Janeiro, 1976, A AFRICA E O DIREITO 673 O Pacto das Sociedades das Nagies nao afectou os direitos das poténcias coloniais vencedoras nem interferiu na organiza- ¢4o social ou politica das suas colénias. Apenas na alinea b do artigo 23 se estipulou que os membros da S. D. N. se compro- meteriam a assegurar um trato equitativo is populagdes indi- genas submetidas & sua administracao (°). Ji quanto aos territérios dos paises vencidos, entravam no regime de mandatos. O seu bemrestar e desenvolvimento eram considerados, pelo Pacto, como uma misséo sagrada de civiliza- ¢do, para o cumprimento da qual se incorporavam no Pacto certas garantias 0 Pacto confiava a tutela dos ditos povos as nagdes mais adiantadas, que, por motivo de seus recursos, da sua experiéncia ou da sua posigéo geografica, se encontrariam cm melhores con digdes de assumir tal responsabilidade e consentissem em aceiti-la. As nagées exerceriam a tutela na qualidade de mandatarios e em nome da S. D.N. Esta «tutela dos povos atrasados pelos civilizados» limitou-se, Pportanto, aos territ6rios que anteriormente se encontravam na dependéncia dos paises que sairam vencidos da Grande Guerra. O valor desta experiéncia, como costuma assinalar-se, residiu no facto de, pela primeira vez, se definirem e codificarem, num documento com projecgio internacional, Principios essenciais formulados pela doutrina, quanto ao fundamento e as finalidades da colonizacio. Posteriormente, 0 pensamento colonial internacional viria a evoluir com a aceitagao, pela opinido publica e pela moral inter- nacional, de certas regras que, consignadas no Pacto da S, D. N,, deveriam ser estendidas aos territérios das poténcias coloniais néo mandatadas. (®) Sobre o processo do imperialismo europeu, cf. Heinz Gollwitzer, Q Imperialismo Europeu, 1880-1914, Ed. Verbo, Lisboa. Cf. também J. B. Duroselle, A Europa de 1815 aos nossos dias, Pioneira Ed. Sio Paulo, 1976 Estas obras tém uma vasta bibliografia. ort JOS£ FERNANDO NUNES BARATA Ocorre destacar, a tal propésito, os seguintes aspectos : —reconhecimento da primazia dos interesses dos po- vos nativos sobre os europeus estabelecidos nesses territérios ; — dever de promover o desenvolvimento do bem-estar desses povos ; — existéncia de um interesse internacional no modo como se e¢xercia a administragio dos territérios coloniais ; —direito de todos os paises no acesso as matérias- -primas e aos mercados das colénias; — conceito de que a preparagdo de um governo auté- nomo seria a finalidade ultima da colonizagao ; —necessidade de responsabilizar 0 colonizador pe- rante um controle internacional ; — intensificagio da cooperac&o e colaboragio inter- nacionais em matéria de administracao colonial. Neste periodo, que medeia entre as duas Grandes Guerras, 6 possivel distinguir algumas afinidades que constituirao o «fun- do comum do pensamento dos pafses colonizadores europeus», ao mesmo tempo que é facil distinguir os tragos gerais do pensa- mento colonial latino dos tragos gerais do pensamento colonial dos povos anglo-saxées. Estas distingSes sfo do maior interesse para a compreensao dos mecanismos de extensio dos direitos da familia romano-ger- mianica e da common law & Africa e consequentes posigdes pe- rante os direitos tradicionais africanos . Pode dizer-se que, nesse entretempo, os paises europeug com interesses coloniais na Africa revelaram de comum: a ideia de promover 0 progresso dos povos nativos e de eleva-los ao acesso dos beneficios da civilizago; a necessidade de uma colaboragaio nas administragdes coloniais, com vista 4 resolug&o de problemas afins, muitas vezes gerados pela vizinhanga geografica; 0 maior empenho em realizar um esforco de colonizaggio que os tornasse receptivos perante a moral e a comunidade internacionais. A AFRICA E O DIREITO ors A solidariedade resultante da identidade de situagdes, peran- te paises concorrentes aos interesses africanos (Estados Unidos e Rissia) ou perante uma comunidade idealista, a desenvolver-se no seio da opiniao piblica mundial, pode aproximar-se de dois outros «estados de espiritoy : — mentalidade conservadora, desejosa de manter os territérios dependentes e de defendé-los de amea- gas de internacionalizagées ou de ingeréncias estra- nhas (v.g. capitalismo norte-americano e¢ comunis- mo russo) ; —maior realismo ¢ simultanea desconfianga relati- vamente a formulas gerais, pretensamente humani- tarias, ora rotuladas de abstracges generusas, ora supostas de encobrirem inconfessados interesses (v.g. expansio das Igrejas protestantes americanas na Africa). Os sistemas latinos aplicados na Africa apresentaram duas caracteristicas gerais: centralizadores no campo politico, assimi- ladores no campo social. Absorver 0 nativo através da cultura do colonizador, ergué-lo A condi¢ao de cidadania, constituiam assim Propésitos de acco governativa, Um fundo psicolégico latino, incompativel com a segregagio racial, aberto ao contacto e a fraternidade entre os homens, qual- quer que fosse a raga ou a religifo, manifestava-se aqui. A auséncia de barreiras raciais conjugava-se com o senti- mento de igualdade natural de todos os homens, com um desejo de promogao generalizada com vista As mesmas oportunidades culturais, sociais e econémicas. A politica de assimilagio comporta contudo graduagées em fungao dos paises colonizadores ou dos territérios colonizados. Assimilagao politica e assimilag&o cultural nao se confundem. 616 JOSE FERNANDO NUNES BARATA O préprio processo temporal pode impor-se na consideragéo de que importa evitar atritos e roturas de consequéncias dolorosas. No pensamento colonial anglo-saxénico destacou-se a posiga0 britanica. E esta, de resto, que interessa para a economia da nossa exposigao. O conceito inglés de trusteeship compreendia uma ideia de promogao do progresso politico e um dever de desenvolvimento material e bem-estar das populagdes nativas. Em 1931, 0 Estatuto de Westminster descrevia os Dominios como comunidades com existéncia auténoma no seio do Império Britdnico, independentes umas das outras nos seus negécios inte- riores ¢ exteriores, iguais e associadas livremente 4 Coroa como membros da comunidade das Nagées Britanicas. A Inglaterra punha como fim ultimo 4 sua administragao dos territérios coloniais a autonomia. Lord Hailey (°*) acentuava ser o futuro politico que a Gra- -Bretanha marcou 4s colénias africanas a auto-governagio (self- -government), baseado em instituigdes representativas. Ajudar a aprendizagem do self-government, seria igualmente designio da politica colonial briténica. EF ainda Lord Hailey quem assinala que o tutor nfo deve confiar 0 desenvolvimento dos recursos do territério 4s empresas privadas. Ele préprio deve tomar uma parte activa; «nem deve esperar que as sociedades indigenas aperfeigoem a evolugio das suas organizagdes para o melhoramento social, antes deve fazer ele préprio um enérgico esforgo para consegui-lo». Lord Lugard (**) por seu turno, viria a enunciar o principio do dual mandate, sequéncia da aplicagdo no campo econémico da doutrina do trusteeshiv. Segundo tal princfpio a Gra-Bretanha tinha aceite como um dever a explorag&o dos recursos naturais da colénia, primeiro para beneficio das populagées nativas, de- pois também para proveito de todos os paises do Mundo, devendo ser prodigalizados a estes paises os frutos de tal exploragio. (34) Cf. The Future of Colonial Peoples, Oxford, 1944. (3)_Cf, The Dual Mandate in British Tropical Africa, F. Cass. London, 1965 (1 ed. 19233). A AFRICA E O DIREITO err Fora Lord Lugard quem pela primeira vez pusera em exe- cugdo na Nigéria (de que foi Governador) o sistema do indirect rule. Tal sistema resultava de uma necessidade pratica da admi- nistragio britinica (a falta de pessoal qualificado) e traduzia-se no recurso aos chefes tradicionais para suprir tal caréncia. Acabou por se justificar de acordo com os seguintes prin- cipios: — as instituigdes nativas representam formas estdveis com valor politico para a administragio; 0 aproveitamento dos chefes tradicionais significa a economia de um escaléo nessa administracio; — a utilizagao de chefes natives aceites pelas popu- lacdes ¢ consagrados pela tradi¢o, toma a admi- nistragéo mais popular e permite uma condugio mais eficaz dos nativos. O sistema de governo, através de chefes tradicionais, assist dos por «conselhos de notaveis», acaba assim por se conereti numa administragdo que se harmoniza com as leis e costumes indigenas. Os chefes asseguram a justi¢a e recolhem e adminis ctivos, na base dos erdrios Zar tram grande parte dos rendimentos cole das populagées. Os funciondrios britanicos acabariam por se limitar a acon- selhar os chefes e a vigiar a sua actuagio, procurando reduzir ao minimo a sua intervengdo directa. Estaria implicito, na filosofia da indirect rule, segundo Lord Hailey, que a natureza das formas politicas, que nela seriam incluidas, nao deveria ser prematuramente definida. Por outro lado, o desenvolvimento, baseado nas instituigdes africanas, po- deria conduzir a algum tipo novo de organizagao auténoma (self-government organization). Trusteeship, no plano politico, e dual mandate, no econémico, tinham-se assim congregado «na mais construtiva unio entre associados mais velhos e mais novos». 678 JOS£ FERNANDO NUNES BARATA Nao cabe aqui discutir as dificuldades do sistema da indirect rule, que o préprio Lord Hailey assinala (**), nem referir posi- gdes irredutiveis que a politica colonial britanica originou ou fez desenvolver (*"). Apenas desejamos proporcionar melhor en- quadramento a andlise que se segue. 4.3 —DIREITOS EUROPEUS E SUA INTRODUGAO NA AFRICA Os sistemas de direito das duas grandes familias ocidentais (romano-germanica e da common law) , foram naturalmente trans- plantados para a Africa, com a presenga das poténcias coloni Esta expansio dos direitos ocidentais verificou-se, de resto, relativamente 4s outras partes do Mundo, onde o homem europeu chegou ou se instalou. A intensidade da presenga de tais direitos é muito diversa nos varios territérios extra-europeus. A densidade demogréfica dos novos ambientes, a estrutura cultural dos incolas, as épocas em que se processou a introdug&o dos direitos ocidentais, a forma como se realizou o encontro com os direitos tradicionais ou, até, com sistemas de outras familias alienfgenas j4 ai instaladas, tudo ajuda a compreender a variedade de implantago. A expansio da familia romano-germfnica nfo ficou apenas a dever-se 4 colonizagio, A técnica juridica da codificagéo, adop- tada geralmente pelos direitos romanistas a partir do comeco do século XIX, facilitou a recepgdo destes direitos em varios paises do Médio e do Extremo Oriente. Aconteceu assim com o Japao, a partir da era dos Meiji e com a China, no seguimento dos propésitos originados com a Revolugao de 1911. (88) Ct. An African Survey. A Study of Problems Arising in Africa South of Sahara, London, 1938. (87) Ver, por exemplo, F. Margery Perham: Lugard: The Years of Aventure, 1858-1889, London, 1956; Lugard: The Years of Authority 1898-1945, London, 1960. A AFRICA E O DIREITO ono A partir de 1872 preparou-se toda uma série de Cédigos no Japao, esforgo que culminou, em 1898, com a entrada em vigor do Cédigo Civil Japonés. Quanto & China, o Cédigo Civil de 1929/1931, englobaria o Direito Civil e o Direito Comercial. Em termos gerais pode dizer-se que as poténcias coloniais europeias que se implantaram na Africa levaram consigo o di- reito pablico metropolitano. Quanto ao direito privado europeu, passou a reger as relagdes entre os brancos ou, ainda, entre estes © os nativos. As normas consuetudindrias manter-se-iam quanto as relagdes dos autéctones entre si. Narana Coissoré, num trabalho sohre as instituigdes de di- reito _costumeiro negro-africano, pretende a seguinte cio (*): «A engrenagem da maquina administrativa, a regula- mentagao normativa do uso dos elementos de produ- so (terra, mao-de-obra e capital) ¢ a repressio crimi- nal dos delinquentes foram, desde o primeiro dia, postos sob o império do direito do Branco. Por outro lado, porque a actividade econémica foi sempre acom- panhada do esforgo ou da intengiio de trazer as popu- lagdes autéctones A civilizagéo ocidental, desde logo também houve a preocupagio de exportar para terras distantes aqueles valores fundamentais que segundo os cdnones da época eram havidos como imanentes da prépria dignidade humana. Foi com estes critérios de imposigio do direito metropolitano em tudo o que interessasse directamente ao exercicio da soberania, a ordem piblica e a exploracio econémica, de um lado, e pela recusa em aceitar direitos costumeiros locais quando ofendessem a moral do colonizador, por outro, que foram balizados os sistemas juridicos locais». (9) Cf. Estudos Politicos e Sociais, Lisboa, vol. II, n° 1, 1954, pg. 80. 680 JOSE FERNANDO NUNES BARATA JA acentuamos atrds que a presenga europeia se realizou em moldes e com propésitos diversos segundo se tratou dos anglo-saxdes ou dos latinos. Diversas eram as estruturas das suas familias de direito. Como se sabe, a familia romano-germanica, formada e de- senvolvida na Europa Continental, teve por base o direito romano. As regras de direito séo aqui concebidas como regras de conduta, estreitamente ligadas a preocupagées de justiga e de moral. Deter- minar quais devam ser estas regras é a tarefa essencial da ciéncia do direito. Os direitos destas familias foram, antes de tudo, elaborados com vista a regular as relagdes entre os cidados. Como acentua René David, os outros ramos do direito sé mais tardiamente e menos perfeitamente foram desenvolvidos partindo dos principios do «direito civil», que ainda hoje é 0 centro por exceléncia da ciéncia do direito. A melhor maneira de chegar As solugées de justiga consiste para os juristas em procurar apoio nas disposigées da lei. O primado da lei, é pois, nesta familia, nota distintiva por exceléncia. No século passado a quase totalidade dos Estados da Europa yomanista muniu-se de constituigdes escritas e de cédigos. A designagio de Cédigo reserva-se mesmo, nesse perfodo, para as compilagdes que visavam expor os principios do jus comune moderno, declarado aplicével num Estado, mas dotado de uma vocagdo universal, por oposig&o as regras inspiradas mais em consideragdes de oportunidade do que em razdes de jus- tiga (°°). Compreende-se como a consagragio, no século passado, des- tes princfpios se harmoniza com a tendéncia centralizadora ¢ assimiladora em matéria de politica ultramarina dos povos latinos. (89) Sobre 0 Cédigo Napolednico e sua projecgao cf. a obra cléssica: Le Code civil francais, 1804-1904, Le livre du centenaire, Paris, 1904, tomo I. Ver também: R, Savatier, L’art de faire les lois. Bonaparte et le Code Civil, Dalloz, Paris, 1927; Gaston Morin, La revolte des faits contre le Code, Grasset, Paris, 1920; Duguit, Les transformations générales du droit privé depuis le Code Napoléon, Alcan, Paris, 1912. A AFRICA E O DIREITO aL No caso de Portugal (onde a influéncia francesa, ao tempo, era notéria) o Cédigo Administrativo de 1842 foi logo aplicado ao Ultramar. As circunstincias peculiares desses_ territérios extra-curopeus tornavam-no, contudo, ai inexequivel. Dai as alte- ragdes introduzidas por um Decreto de 1 de Dezembro de 1869. O mesmo espirito se revelou com o Codigo Civil Portugués de 1867, onde a ideia de assimilagdo consentiu que ele fosse esten- dido as Colinias, para logo as realidades contrariarem tal pro- posito tio prematuramente uniformizador. As caracteristicas tradicionais da common law sio muito diferentes da familia romano-germinica. A regra de direito da common law, menos abstracta do que a da familia romano-ger- mndniea, visa dar solugdes a um processo; ndo a formular uma regra geral de conduta para o futuro. A preocupagdo imediata consiste em restabelecer a ordem perturbada; nado em langar as bases da sociedade, As regras respeitantes 4 administragdo da justica, ao proceso, 4 prova, 4 execugio das decisées da justiga, tém, aos olhos dos common lawyers, um interesse igual, ou mes- mo superior, ds regras concernentes ao fundo do direito. Ao lado da common law consagrou-se, na Inglaterra, a equity. As regras da equity, desenvolvidas pelo Tribunal da Chancelaria, tiveram, até 1875, uma origem histérica diferente das da common law, elaboradas pelos Tribunais de Westminster. Conheceram seu periodo dureo nos séculos XV e XVI ¢ foram editadas para rever © sistema da common law, entio defeituoso. Na verdade, quando sistema da common law funcionava mal, ou porque os tribunais ndo podiam ser consultados, ou n@o podiam conceder solu- so adequada solicitada por um pleiteante, ou nio dispunham de meios para bem conduzirem um proceso, ou chegavam a uma decisio contraria & equidade, ‘os-particulares tinham, segundo as ideias da Idade Média, a possibilidade de pedir a intervengao do rei, fazendo apelo aos imperativos da consciéncia, para que tomasse uma decisio que facilitasse 0 curso da justiga, ou para que impusesse a solucdo exigida pela justiga (‘°). reais (#9) Cf. René David, Le droit anglais, P. U. F., 2 ed., 1969. 682 JOSE FERNANDO NUNES BARATA Ao sistema dos direitos romanistas, relativamente racional e légico, ordenado considerando as regras de fundo de direito, gracas ao labor das Universidades europeias a partir do século XIII ¢ dos legisladores depois da Revolugéo Francesa, corres- ponde, um direito inglés organizado, longe de qualquer preocu- pagao légica, nos quadros impostos pelo processo. E certo que estas posigées nao foram irredutiveis ¢ que os sistemas tendem hoje a aproximar-se, com relevancia para a lei no Ambito dos pafses da common law. Mas a estrutura basica, que definiu o sistema e ainda actualmente o alimenta em boa medida, explica igualmente, no mundo do direito, a posig&o do colonizador britanico nas suas politicas ultramarinas (“*). Epocas diversas, meios diferentes, originaram diferenciagdes profundas entre a common law no pais onde nasceu e nos varios territérios onde foi introduzida. O processo especial dos Estados Unidos da América, onde a common law se defrontou com os direitos romanistas, configurou um sistema, que, embora incluido naquela familia, é bem distinto do direito inglés originario. Os paises ibero-americanos esto mais perto, ao menos nas insti- tuigdes de direito privado, dos direitos portugués e espanhol, tra- zidos para as Américas pelos seus povoadores de origem latina. Na Africa britanica atribuia-se, em termos gerais, a cada colénia o direito inglés (common law e equity), em vigor na metrépole 4 data da declarag&o pelo Parlamento do respectivo estatuto colonial (order in council). A estas regras acresciam os diplomas legais (statutes) expressamente declarados como de aplicago geral e os textos emanados dos drgios legislativos locais. Ao direito inglés vigente na data da sua «exportagdo» e as normas legisladas em cada colénia juntavam-se, naturalmente, as decisdes dos tribunais. Ora, como estes se encontravam desli- (4) Sobre o caso dos Estados Unidos da América, cf. os dois traba- Ihos de André Tune Le droit des Etats-Unis, ed, Dalloz (1955) e P. U. F. ( ed., 1969). Ver ainda F. Stone, Institutions fondamentales du droit des Etats- -Unis, Librairie Générale de Droit et Jurisprudence, 1965. A AFRICA E O DIREITO 683 gados da hierarquia jurisdicional da metrépole, com excepgéo do Privy Council, mais se acentuava a autonomizagio do direito territorial de cada colénia. Tal autonomizagdo processou-se nao sé em relagdo a Ingla- terra, mas quando consideradas as coldnias entre si. De resto, a recepgio do direito inglés no era definitiva, nem total, O legislador local podia, em principio, modificar o direito assim reeebido. Os tribunais podiam também excluir a aplicagio de uma ou outra norma se estas se afigurassem inadequadas is condigies locais. Na Africa Ocidental, na Rodésia Norte, na Niassalandia, na Somalia Britanica, aplicaram-se a common law, as doutrinas da «equidade» e as leis de alcance geral (Statutes of General Application) em vigor em determinada data — Costa do Ouro (1874) : Serra Leoa (1880) ; Gambia (1888) ; Somalia (1900) ; ? dia (1902) ; Rodésia Norte (1911)... Na Africa Orien- tal Britanica a referéncia era feita ao British India (Direito da India) de determinada data: 1897, para o Kénia; 1902, para a Uganda; 1920, para a Tanganica. Aqui o direito inglés tinha mero valor subsidiario, A tradigao romana e os principios racionalistas que inspi- ravam © pensamento latino geraram uma repugnncia quanto & autonomizagao do direito de cada territério e apoiaram a exten- so dos textos legais metropolitanos as colénias. A propria estru- tura jurisdicional, com um érgao de topo dotado de poderes de revista sobre a totalidade dos tribunais, assegurando a identidade do direito, conheceu igualmente consagragao. Nas relagGes privadas dos autéctones entre si o fundamento dos direitos tradicionais revelava a mesma dualidade de con- cepcdes. Os Britanicos permitiam a vigéncia do direito costu- meiro e atribuiam aos tribunais tradicionais a faculdade de o aplicarem, significando, naturalmente, tal atribuigio, reconhe- cimento. Os Latinos contemporizaram com o direito gentilico, mas nao 0 encararam como sistema juridico. Nas colénias inglesas, ao invés do que se processou com as das poténcias latinas, nfo se consagrou mesmo o principio da 684 JOSE FERNANDO NUNES BARATA opcao, a adoptar pelos nativos relativamente ao direito privado europeu. As populagées era dada a faculdade de revogar ou modi- ficar os seus costumes. Daqui, também, a territorialidade de cada ordem juridica costumeira. Ao direito da colénia, diferente do direito da metrépole, correspondiam direitos locais dife- rentes de um direito geral. A crenga de que os usos e costumes sio em boa medida sobrevivéncias transitérias do passado, que naturalmente devem ceder progressivamente ao primado da lei, harmonizava-se, para os latinos, com a tradig&o de um jus gentium, que assegurava uma coesao nacional e contrariava a feig&o estatiea e fechada das sociedades rurais primitivas. O direito tradicional poderia exprimir, a propésito de diversas questées, a concepcio da ordem social reinante na tribo ou na aldeia, mas revelava-se incapaz para se adaptar, com a necessdria rapidez, as exigéncias de uma sociedade nova, mais ampla e evolutiva (*). 4.4— PERMANENCIA E EVOLUCAO DO DIREITO CON- SUETUDINARIO A Africa sofreu, portanto, mais intensamente a partir da «corrida», do século passado, o impacto da economia monetaria, do fenédmeno urbano, do mercado de trabalho, das facilidades nas comunicagées, da difusdo da instrugio. A tudo, seguir-se-ia 0 individualismo, a expanséio das ideias democraticas, a maior internacionalizagao dos seus problemas, enfim o processo das novas independéncias. Na véspera destas, 9 quadro de vida das populagées africanas j4 no se apreendia exclusivamente & som- bra de classificagdes classicas (povos pastores, agricultores ou de economia mista; povos patrilineares, matrilineares e bili- neares), mas segundo uma perspectiva mais dindmica: nativos (*) Cf. @ edig&io colectiva sobre a direcgio de J. Poirier, £tudes de droit africain et de droit malgache, Editions Cujas (Université de Madagascar), 1965. A AFRICA E O DIREITO 685 estabelecides nos centros urbanos de tipo europeu ou nas suas redondezas: mao-de-obra para trabalho migrante; agricultores sedentirios ¢ integrados na economia de mercado; populagdes ainda itinerantes ou apegadas velha economia de subsisténcia. Nao constituiria, contudo, heresia, afirmar que cerca de 80% dos habitantes da Africa negra se encontravam ainda ligados, de vida ancestral. Para éncia, mals ou menos intensamente, a forma va a ser norma de exi: cies 0 costume africano continu: embora afectado pelo proprio encontro com os valores alienige- nas (OO). Poderia. por exemplo, falar-se ja, relativamente a essas sociedades tradicionais, em propriedade da terra? Te sentido © alcanee que a aproximassem das concepgé a a expresso propriedade para os costumes nativos um s dos povos europeus? Como reagiu a velha sociedade ritual ¢ integrativa aos novos contactos? Este 6 um dos temas que mais tem preocupado og estudiosos da actual realidade costumeira africana. y se verifica. nestes dominios, uma uniformidade de con- é, de interpretagdo dos varios estadios sociais. cepgdes ou. 2 Valera a pena alinhar alguns depoimentos: Para C.K. Meek os povos da Africa, por tradigao, nao con- cebiam a propriedade fundidria de acordo com o modo de pensar ocidental. A terra continua pertencendo a Deus e a sua utilizagdo aos que a ocupam, Podem, deste modo, encontrar-se pessoas, pertencentes a grupos, sem lagos de parentesco, que exploram a terra sem qualquer sentido da sua apropriagao (**). () Para uma interpretacio econémica segundo a teoria da depen- dencia da «periferias face ao «centro» no seio do sistema capitalista mundial cf S. Amin, L'accumulation a U'échelle mondiale, Anthopos, Paris, 1910. Da edigao revista e abreviada (Le développement inégal, Minuit, 1973) h& tradu- Gao portuguesa—O Desenvolvimento Desigual, Forense-Universitéria, Rio de Janeiro, 1976. (4) Ct. Land Tenure and Land Administration in Nigeria and the Cameroons, Her Majesty's Stationery Office, London, 1957, pag. 113. 686 JOSE FERNANDO NUNES BARATA André P. Robert considera como principais caracteristicas do regime fundidrio africano: por um lado, o seu aspecto comu- nitario e o facto da posse ser tribal ou familiar, mas nunca indi- vidual; por outro lado, o seu cardcter hierdrquico, nos termos do qual podem os direitos, em escalées diferentes, ser exercidos por diversos individuos, relativamente ao mesmo terreno. A terra, anota Robert, nao pertence a ninguém, dado que pretence a ela mesma. EF uma forca, como o ar, a Agua, o fogo, que se manifesta pela produgo das culturas. O homem é um simples usufrutuério (**). T. O. Elias pde em relevo que o direito de propriedade repousa sobre a familia e que é apenas no contexto mais vasto das exigéncias deste grupo que os «direitos individuaisy se podem considerar. O individuo, com esta reserva e com o dever de satisfazer as obrigagées costumeiras que lhe cabem, tem a seguranga de fruir o seu lote de terra familiar. Nao pode aliend-lo definitivamente, mas, sem o acordo da familia, pode ceder o seu uso temporario a estranhos. Os seus descendentes sucedem-lhe por morte, embora ele no seja proprietario absoluto (**). Quanto aos Ibos, admite-se a existéncia de um direito de propriedade, se se entender por isso «o conjunto de direitos cuja atribuigdo a lei autoriza a uma pessoa ou a um grupo de pes- soas». Este & 0 ponto de vista de S. N. Chinwuba Obi, em obra aparecida em 1963. Relativamente 4 propriedade individual, Chinwuba Obi refere, como elemento de apoio, o exemplo de terrenos sobre os quais um individuo pode exercer, mercé do costume, os seguintes poderes: construir, fazer colheitas, plan- tar Arvores 4 sua escolha, vender ou ceder terreno 4 sua discri- go, extrair minérios e, sobretudo, pdr fora do terreno qualquer outro. Como prova do direito de propriedade do grupo assinala-se que todos os poderes individuais enunciados podem ser reconhe- (*) Cf. The Future of Customary Law in Africa. Symposium, Amster- dam, 1955, Leiden, pag. 179. () Ct. Nigerian Land Law and Custom, Routledge and Kegan Paul, London, 1951, pag. 95 e segs. A AFRICA E O DIREITO 687 cidos ao referido grupo. As pessoas que o constituem partilham desses poderes, ndo podendo, contudo, cada uma, exercé-los sem © consentimento dos outros ("). A defesa das terras das populagdes nativas ¢ 0 respeito dos ctivos usos e costumes constituiram objecto de especiais preocupacées do legislador europe Exemplifique-se com a experiéncia portuguesa. Se nos res- stculo, encontraremos tais pro- tringirmos apenas © no correspondente Regulamento Geral Provisério de 2 de Se- tembro do mesmo ano, Reconheceu-se «aos indigenas 0 direito de propriedade dos terrenos por eles habitualmente cultivad (artigo 2." da Carta de Lei de 1901), garantiu-se-Ihe «a suce legitimaria segundo os usos ¢ costumes locais» (artigo 3.°) € consideraram-se «nulos todos os actos € contratos dos chefes e outros indigenas celebrados contra as disposigdes desta leiv (arti- go 4°), Acautelaram-se possiveis esbulhos por parte de alienige- nas ¢ consignou-se um sistema expedito de arbitragem (artigo 6."), relativamente & demarcacio de terras e divisio de proprie- dade comum. Em toda a legislacéo posterior continua a acen- tuarse a defesa da «propriedade nativay. O Ato Colonial (11 de Abril de 1933) garantiu aos indigenas, mais uma vez, a pro- priedade e a posse dos seus terrenos ¢ culturas. Este principio transitou, em 1951, para a Constituicio Politica. Em 1953 a Carta Organica foi substituida pela Lei Organica do Ultramar. Aqui se reconheceram os regimes especiais da propriedade indi- gena ou se previu a sua criagéo (Base LXXXV). O Estatuto dos Indigenas Portugueses das Provincias da Guiné, Angola e Mo- csambique (1954) estipulava que aos indigenas que vivessem em organizagées tribais eram garantidos em conjunto, 0 uso e a fruigdo, na forma consuetudindria, das terras necessdrias ao esta- belecimento das suas populagées e das suas culturas e ao pascigo (*) Cf. The Ido Law of Property, Butterworths, London, 1963, pag. 43. Sobre esta problemética ver Frank M. Mifsud, Droit’ Foncier Coutumier en Afrique, F. A. O., Rome, 1967, rags. 43 e segs. 688. JOSE FERNANDO NUNES BARATA do seu gado (artigo 35.°), nfo conferindo, a ocupagio assim realizada, direitos de propriedade individual, que seria regu- lada, entre os indigenas pelos respectivos usos e costumes (§ unico do artigo 35.°). Com a aboligéo do regime do indigenato (5 de Setembro de 1961) mantém-se a politica de defesa da «propriedade nativa». FE dessa data o Regulamento de Ocupagio e Concessio de Ter- renos (Decreto n.° 43.894), através do qual se regula de forma minuciosa a problematica da terra na Africa. Simultaneamente, o Decreto n.° 43.897, da mesma data, reconhece os usos e€ cos- tumes locais, reguladores das relagdes jurfdicas privadas, quer os j4 compilados, quer os néo compilados e vigentes nas rege- dorias (artigo 1.°), Estes usos e costumes de direito privado cons- tituem um estatuto pessoal, que deve ser respeitado em qualquer parte do territério nacional e cuja aplicagio seria apenas limi- tada pelos princfpios morais e pelas regras fundamentais e ba- sicas do sistema juridico portugués (artigo 2.°). Finalmente, a Lei n.° 5/72, afirmou que o Estado criar& regimes especiais de propriedades imobilidrias com o fim de garantir 4s pessoas que nas suas relagées de direito privado se rejam pelos usos e€ cos- tumes, os terrenos necessdrios para as suas povoagées e culturas (Base LXXV). A evolugio social na Europa contribuiu, em certa medida, para, nas ultimas décadas, melhor se compreender o espirito comunitdrio africano. Nos paises latinos, o absolutismo legalista do jus utendi, fruendi et abutendi da tradicao romanista, cedeu aos imperativos da fungio social da propriedade (“). Voltando ao caso portugués, o artigo 2170.° do Cédigo Civil de 1867 estipulava que «o direito de propriedade e cada um dos direitos especiais que esse direito abrange nao tem outros limites seno aqueles que lhe forem assinalados pela natureza das coi- sas por vontade do proprietdrio, ou por disposig&o expressa da (48) Cf, por exemplo, Curso de Direito e Economia Agraria, Suple- mento & «Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa», 1965, pgs. 81 € segs., 153 e segs. e 281 € segs. A AFRICA E O DIREITO 689 leiv, E 0 artigo 2167, assinalava a propriedade a fungio de conservagio da existéncia ¢ de melhoramento da condigéo do seu titular. Em 1933, a Constituigdo Politica da Republica Por- tuguesa avangava ji da fungdo pessoal para a fungdo social da Propriedade ao consignar no artigo 33." que «a propriedade, o capital e o trabalho desempenham uma fungio social, em regime de cooperagao econimica e solidariedade, podendo a lei deter- minar as condigdes do seu emprege ou exploracéo conforme com a finalidade colectivay. Publicado em 1966 0 novo Cédigo Civil Portugués, este deelarou (artigo 334.") cilegitimo o exer- cicio de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa t¢, pelos bons costumes ou pelo fim econsmico desse direitos (! Na publicagio, ja citada, da F.A.O, reafirmase que no contexto das relagGes entre a terra e os homens, com as suas similitudes ¢ as suas diversidades, segundo o lugar c as cireuns- tancias ¢ segundo igualmente a autoridade com a qual um afri- cano pode falar da sua terra que «lappartenance juridique de la terres deve ser encarada (°°). © direito de dispor da terra constituiu para a tradigéo romanista europeia uma nota essencial. Esta ndo se encontra no direito tradicional afrieano, A verdade é que, posto o problema do acesso do native & terra (propriedade individual), as legis- lagées sentiram necessidade, para a defesa deste, de consignarem limitagGes quanto a tal faculdade de disposigao. Ha anos (1953) em documento da East Africa Royal Com- mission (") _manifestava-se empenhadamente 0 propisito. de encorajar a individualizagao dos direitos. Tal estado de espirito resultava da conviegéo de que a causa fundamental do atraso econémico de diversos territérios africanos residia na cireuns- (4) Cf. Vaz Serra, Abuso do direito (em matéria de responsabilidade civil), in «Boletim do Ministério da Justicay, Lisboa, n.° 85, pags. 243 e seguintes; José de Oliveira Ascencéo, Direitos Reai Técnica Fiscal, Lisboa, 1973, nomeadamente a pags. 47 e segs, e 209 e segs. e segs. 690 JOSE FERNANDO NUNES BARATA tancia de nao se ter alterado 0 dominio costumeiro da ocupagao e posse da terra. A verdade é que reconhecida, até em nome das exigéncias do desenvolvimento sécio-econémico, a necessidade de existéncia de um «direito de propriedade» no costume, haverd naturalmente que encarar, na explorac&o das suas virtualidades, a tarefa realista de harmonizar estruturas tradicionais com fér- mulas de contexto moderno que, sem violéncia, as recebam e valorizem. Seré o caso de novas solugées comunitarias. 5-—DIREITO NOS ESTADOS AFRICANOS INDEPEN- DENTES Ja se escreveu que a Conferéncia de Bandung (1955) surgiu como a resposta 4 Conferéncia de Berlim (1885). Dela disse Léopold Senghor que era a morte do complexo de inferioridade dos povos colonizados (**). Em 1939 apenas era habitual falar em dois paises indepen- dentes, na Africa: a Libéria, que independente desde 1847, se encontraria, segundo se tem escrito, «sob 0 dominio da orga- nizagéo americana Firestone, detentora das plantagées de bor- tacha»; o Egipto gozando, depois de 1922, de uma autonomia algo tedrica, que o tratado de 1936 alargou consideravelmente, sem contudo suprimir a presenca militar britdnica. Todo o restante do continente, incluindo a velha Etidpia, sob 0 estatuto de colénia, protectorado ou mandato, encontra- va-se ao tempo submetido As poténcias europeias. Na Unido Sul Africana, um estatuto de dominio, no seio da Commonwealth britanica, e na Rodésia do Sul, «colénia auté- (82) Sobre 0 processo histérico da Africa contempordnea, cf., por exemplo, H. Deschamps (Dir.), Histoire générale de l'Afrique noire, vol. II (De 1800 a nos jours), P. U. F., Paris, 1971; R. Olivier e A. Atmore; L’Afrique depuis 1800, P. U. F., Paris, 1970; M. Cornevin, Histoire d UAfrique contem- poraine de la deuriéme guerre mondiale @ nos jours, Payot, Paris, 1972. A AFRICA E O DIREITO eal noma» depois de 1923, a gestdo era, em grande parte, do homem branco, ai radicado, Nos outros territérios, a fungio dos «admi- nistrativos», originarios das respectivas metropoles, constituia aspecto relevante. Ainda no periodo anterior a 2." Grande Guerra assistiu-se, de resto, a reivindicagdes coloniais de outros paises, como a Alemanha, onde em 1936 foi criada a Liga Colonial do Reich (Reichskolonialbund). ¢ & constituigdo de L'Impero italiano (9 de Maio de 1936), depois da entrada das tropas de Mussolini em Addis-Abeba, Com o termo da 2.* Grande Guerra consolidaram-se causas que conduziriam 4 independér dominio colonial (°°). ‘ia dos territérios africanos sob O processo nao foi imediato, nem uniforme. Manifestou-se contudo irreversivel, Os fastos de tais ocorréncias sio miltiplos ¢ complexos para que nos possamos ocupar deles aqui (°). P. P P. Proclamadas as novas independéncias, recebidos com jabilo na comunidade internacional os estados africanos, os homens voltaram naturalmente a interrogar-se sobre o seu destino, a aferir dos processos de colonizagio, descolonizagao e neo-colo- nialismo, a «fazer 0 ponto» sobre a permanéncia, transformagéo ou substituigao radical das instituigdes ancestrais. Depois das primeiras horas de euforia, das convulsdes, das desilusées, da busca de novos pontos de equilibrio, persiste a pergunta: o que se pastou, na Africa das novas independéncias, e 0 que vir ai a acontecer no mundo do direito? (3) Sobre a Conferéncia de Bandung, no Sudoeste Asidtico, ver, por exemplo, Odette Guitard, Bandoung et le réveil des peuples colonisés, P. U. F., Paris, 1955. (54) Cf. por exemplo, A. Rivkim, Nation Building in Africa, Problems and Prospects, Rutgers University, 1969; Ken Post, The New States of West Africa, Penguin, 1968; Y¥. Benot, Idéologies des indépendances africaines, Maspero, Paris, 1969; A. Mabileau e J. Meyriat, Décolonisations et régimes politiques en Afrique Noire, Colin, Paris, 1967; Wilfred Carter e Martin Kilson, The African Reader, Colonial Africa, 1970. 692 JOSE FERNANDO NUNES BARATA 5.1— A EXPERIENCIA DA ETIOPIA Abramos um paréntese para o mais velho Estado indepen- dente da Africa. Conheceu apenas um eclipse moment4neo, com a anexagao italiana. O final da 2.* Grande Guerra, com a derrota das poténcias do «eixo», permitiu ao Negus voltar ao seu trono milenar. Uma resolugdo mais recente alterou profundamente 0 quadro politico do velho Reino. A obra de modernizagao do direito fez-se aqui ainda no periodo mondrquico sem grandes protestos. O Fetha Negast (Jus- tiga dos Reis) era considerado como o Direito, pelo menos a partir do século XVI. Entretanto costumes muito diversificados presidiam as condutas reais das populagdes, mesmo cristas (Amaras, Tigrés, Galas cristianizados). Entre 1957 e 1965 foram promulgados na Etidpia cinco cédigos, de conteido correspon- dente aos cédigos napoleénicos (°°). 5.2 — REABILITACAO DOS VALORES AFRICANOS O movimento de reabilitagao dos valores africanos nao é de ontem. A prépria atitude do colonizador foi muitas vezes mais receptiva aos valores culturais na Africa do que noutras regides do mundo. Panafricanismo e negritude s&io expressdes j4 consagradas antes da guerra de 1939. Aos negros das Antilhas americanas, dos Estados Unidos e das Guianas ficou a dever-se uma movi- mentagao de conceitos e propésitos visando «valorizar a imagem do homem negro no seu pensamento e perante o branco, elimi- () Cf. Jacques Vanderlinden, Introduction au droit de l’Ethiopie mo- derne, 1971. A AFRICA E O DIREITO 603 nando, simultaneamente, 0 complexo de inferioridade do colo- nizado eo complexo de superioridade do colonizador» (°). A Biblia © 0 panafricanismo para os negros relacionados com a dominagao britanica, os Direitos do Homem e a negritude para os africanos dependentes da Franca, e 0 Islae, e 0 pana rabismo para as populagdes da Africa da eosta do Mediterraneo sf trés aspectos de unt movimento que expressa ou solicita apelos ideoligicos. Em 1989, por exemplo, vemos Aimé Cesaire utilizar com um sentido bem intencional a expre: ‘ahier Cun retour au pays natal, Léopold Senghor entretanto publicava alectiva (homme de couleur). um ensaio intit- io negritude no seu numa obra lade Ce que Chomme noir apporte. Definir a originalidade de homem negro, justificar a sua inseredo no mundo contemporanco continua a ser, depois do final da Guerra (1945). um designio simultaneamente cultural © politico, Em 1947 Jean-Paul Sartre compée um prefacio para tnthologie de la nourelle potsie négre et malgache de langue francaise, de Léopold Sedar Senghor, ¢ procura explicar a razio pela qual «a poesia negra da lingua francesa constitui, em nos- sos dias, a dnica grande poesia revoluciondriay. No ano seguinte © etndlogo Marcel Griaule publica Diew d'eau. Entretiens avec Ogotemmeéli, onde xe ocupa do mito, da religido ¢ da filosofia dos Dogon (Mali). A difusdo dos estudos sobre og Dogon ganhara longa difusiy nao sé nox meios politicos mas, muito especial- mente, em sectores universitirios franceses. Q movimento de simpatia para com a filosofia negra é reafirmado com a edigo francesa (1919) da obra do Padre Tempels, missiondrio no Congo Belga, sobre os Bantos, que ja referim Mas sera, pro- vavelmente. a obra de Cheikh Anta Diop, a que despertaré maior efervescéncia. Opde-se a tese, universalmente admitida até entdo, de uma origem asidtica da civilizagio dos faraés. Propde-se demonstrar a anterioridade da civilizagéo negra. Esereve no (*) Sobre o panafricanismo ver Philippe Decraene, Le panafricanisme, . U. FP. Paris, 1970 (1* ed., 1959). Cf. ainda G. Padmore, Panafricanisme ou Communisme, Présence africaine, 1960. om JOSE FERNANDO NUNES BARATA prefacio de Nations négres et cultures, que apenas a existéncia de Estados indepndentes permitiré aos africanos afirmarem-se plenamente, dar toda a medida das suas faculdades nos diferen- tes dominios da criagdo. Na segunda parte do seu livro, Anta Diop defende a utilizagao das linguas africanas para exprimirem as ideias cientificas e filoséficas do mundo moderno (*). Vemos, portanto, que a negritude foi muito mais do que um simples movimento literdrio. Nos diferentes dominios das cién- cias do homem tentou-se a reabilitaggao dos valores africanos. Inventério, repetimos, que abarcaria a histéria, a etnologia, a economia, a politica. O problema nfo reside apenas em home- nagear a poesia de Senghor ou referir as teses do Cheikh Anta Diop. Alarga-se ao contributo de um Jomo Kenyatta sobre a organizagéo tribal dos Kikuyu ou aos textos do Mamadou Dia sobre o socialismo africano (**). Os dirigentes dos novos estados africanos, recrutados na sua elite, em boa parte formada em universidades europeias, exal- taram, em seus discursos, a negritude como concepgio global de vida, fizeram profissio de fé do seu africanismo (ou panafrica- nismo). Postos, porém, diante das exigéncias de modernizagéo dos seus paises, ciosos do designio de transformarem os seus territérios em verdadeiras nagdes — qual o dilema entre o direito moderno e a persisténcia dos costumes locais? 5.3 — SOCIALISMO AFRICANO socialismo africano apareceu a muitos como uma bandeira desfraldada contra o Ocidente. Doudou Thian escreveu que «de momento é importante reter que a forga ideoldgica do socialismo (31) Ct. Nations négres et cultures, Editions Africaines, 1954. Ver tam- ‘pém, George Peter Murdock, Africa: Its Peoples and their Culture History, New York, 1959. (38) Cf. Mamadon Dia, Réflexions sur I'économie de l'Afrique noire, Présence africaine, 1961. A AFRICA E O DIREITO os ter declarado, desde na Africa reside, em parte. no facto de s © principio. um meio da luta anticolonialista» (*). O problema comporta, contudo, outros dngulos de anilise. Um deles, por certo de interesse nada despiciendo, residira em saber, como escreve L. V. Thomas, se se «conforma com as estru- turas reais africanas», ou se se encontra em flagrante contra- indo de uma sintese mitica de digdo com ax mesmas, «nde pas elementos incompativeis». Nao raro ouvimos distinguir 0 socialisme cientifica de ins- piracdo marxista de Modibo Keita, Kwame N’Krumah ou Sekou Touré, do socialismo humanista, de Léopold Senghor, ou do socialismo tradicionalista, animado por Julius Nyerere ou outros dirigentes da Africa Oriental. Dentro desta diversidade no sera paz de ente e construir o futuro da Africa negra. se da negritude, que envolve a estima pelas estruturas tradicionais africanas, e a tese facil a unanimidade numa tia africana do socialismo, ¢ encarar a situagdo pre: Como sera possivel um paralelo entre a tes de um socialismo africano revolucionario e universalista? Senghor procurou integrar no socialismo os valores culturais negro-africanos, nomeadainente religiosos: «nao somos marxis- tas, escreve, no sentido que hoje se da ao termo, na medida em que 0 marxismo ¢ considerado como uma metafisica ateia, uma visdo total e totalitaria do mundo». Reespiritualizar 0 marxismo, democratizar o socialismo, harmonizar-se-iam com a certeza de que «a planificagdo nao deve ser teérica, mas gravitar 4 volta do Homem, tendo-o como centro, suporte e finalidade». (2%) A bibliografia sobre o «socialismo africano» é j4 hoje numerosa. Referimos apenas algumas obras para uma andlise introdutoria: L. V. Tho- mas, Le Socialisme ex l'Afrique, 2 vol., Le livre africain, Paris, 1966; William Friedland e Carl Rosberg Jr. (comp.), African Socialism, Stanford, 1963; Jitendra Mohan, «Variedades do Socialismo Africano», em Problemas € pers- pectivas do Socialismo, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1969. O passo que citamos no texto de Doudou Thian é extrafdo da obra La politique extérleure des Etats africains, P. U. F., Paris, 1962. O que citamos de Leopold Senghor pertence a Nation et voie africaine du Socialisme, Présence africaine, 1961. De Mamadon Dia, ef. Nations frieaines et solidarité mondiale, P. U. P., Paris, 1960. 696 JOSE FERNANDO NUNES BARATA Mamadou Dia, compatriota de Senghor e seu vencido poli- tico, condenaria este cariz humanitério, «premeditado no gabi- nete de trabalho do filésofo e do socidlogo, sendo um esquema ideal desenraizado das realidades e sem o sentido e a forga revoluciondrias indispensdveis para fazer apagar as reminiscén- s da sitwacdo colonialp. Mais do que filosofia social e humanismo integral, 0 socia- lismo africano seria também, para muitos, um complexo de técnicas, uma construcao especifica e original adaptada as rea- lidades africanas, uma ética dirigida. Como técnica, o socialismo africano implicaria: a planifi- cacao pelo Estado; a promoc&o, modernizacdo e diversificagio da agricultura; a criagdo de inddstrias; o investimento humano «voluntario, consentido ou imposto»; 0 desenvolvimento comu- nitario. Este desenvolvimento comunitario identificar-se-ia com o reordenamento rural, a existéncia de comunas, a constituigéo de cooperativas de producao e de consumo. Numa obra plena de interesse, Albert Meister, induz-nos num silogismo compreensivo do socialismo como construgao especifica e original, adaptada as realidades africanas: os africanos sao por esséncia comunitarios ; 0 socialismo é uma extensio do comu- nalismo ; logo o socialismo é desejavel para os africanos. A Africa seria, portanto, uma sociedade socialista (°°). Compreende-se, deste modo, que um Nyerere tenha afirmado que a familia extensa 6 o fundamenio e o fim do socialismo africano, Do socialismo comunitdrio ao paternalismo estatal é um passo. O Estado, considerado como um pai de familia, deve tomar as iniciativas no interesse geral e coordenar a accéo das comu- nidades familiares ("). E certo que se carece de explicagées (60) Albert Meister, L’Afrique peut-elle partir?, Ed. du Seuil, Paris, 1966, pags. 314 © segs. (©) Gf. John O'Connor, «Family and Socialism», East Africa Journal, Junho de 1964, pags. 11 e segs. A AFRICA E O DIRETTO 607 quanto a identificagdo da familia tradicional com o Estado. Kenyatta, porém. nao hesitou em comparar 0 Conselho dos Velhos com o Parlamento. Na sociedade comunalista o socialismo nado é um credo revo- lucionirio, mas a reafirmagio, em linguagem contempordnea, de prineipios ancestrais. E ainda N’Krumah que afirma: «Na medida em que se desenvolve 0 renascimento politico, social. econsmico e cultural da Africa, come- 1 novo correspon gaese 4 procura de um sistema sos dente ds tradigées, 4 hist6ria, ao meio ambiente e ds bases comunais de uma sociedade africana que, a despeito da infiuéncia ocidental, resta ainda, em larga medida, imutavel. Em vastas regides rurais da Africa existe uma propricdade colectiva da terra e€ 0 povo trabalha sobre a base da cooperagio. Tais so os tragos essenciais e predominantes na sociedade afri- na, ¢ no podemos fazer nada de melhor do que adapti-los iis oxigéneias de uma estrutura mais mo- derna de sociedades. Sekou Touré, por seu turno, falara da necessidade de reen- contrar as virtudes origindrias do negro e de superar a menta- lidade do colonizado. Esta «ética dirigiday harmoniza-se com 0 amor ao trabalho, a substituigio do comportamento individua- lista, de raiz colonial, pelas «solidariedades especificamente negro-africanas». O socialismo africano seria «mai! do que o uso de técnicas eficazes, um sentido comunitério de retorno ao africanismo», na afirmagao de Senghor. Seria ainda «uma tensio moral a manter da base para o cume da piramide social», gragas ao «controle estrito exercido pelo partido dominante que, positiva- mente, animara tanto as massas urbanas como as massas rurais». Insiste-se neste ponto, transcrito do Livro Branco publicado em 1965 pelo Governo do Kénia: 698 JOSE FERNANDO NUNES BARATA «Na expresso socialismo africano a palavra africano nao se refere a um continente para o qual se pretenda transplantar uma ideologia estrangeira. Refere-se, sim, as raizes africanas de um sistema que 6, ele pr6- prio, africano pelas suas caracteristicas». As condigées sécio-econémicas da Europa e da Africa nao poderiam, na sua profunda diversidade, gerar uma mesma espé- cie de socialismo. Na Europa, do marxismo-leninismo ao socia- lismo reformista a multiplicidade de situagdes é notoria (2). Perante 0 processo de uma Europa industrializada, afectada por século e meio de luta de classes, ja se escreveu que o socialismo africano nao passaria de «socialismo de laboratério». Na Europa © movimento surge e acumula-se com a grande industria. Esta economia industrial esté igualmente bem distante da economia agricola, tantas vezes de subsisténcia, do continente negro. Final- mente e, em especial, na éptica do Senghor ele nao se desliga, na Africa, dos sentimentos religiosos das populagées. F, Bro- ckway pés em evidéncia, por exemplo, as notas distintivas deste socialismo africano e do marxismo-leninismo. Estao bem longe um do outro em muitos aspectos essenciais ("). No discurso que pronunciou ao assumir as fungdes de pre- sidente da sua nova reptiblica, Julius Nyerere (1952) afirmou: «De todos os crimes do colonialismo, 0 pior de todos é a tentativa de nos fazer acreditar que néo possuimos cultura propria e independente ou que a que tinhamos nada valia — tentativa de fazer com que nos sintamos envergonhados do que € afinal motivo de orgulhoy. Se este socialismo africano pretende ser «uma construcéo especifica e original adaptada As realidades africanasy, em que (2) Cf., por exemplo, Robert Kilroy-Silk, Socialism Since Marz, 1972, obra de que hé traducdo portuguesa— Socialismo depois de Marz, Verbo, Lisboa. (®3) In African Socialism, London, 1963, cf. também L. V. Thomas, citado, vol. I, pags. 58 € segs. A AFRICA E O DIREITO 69 medida fomentari ou atenuari um choque entre o tradiciona- lismo e a modernizaga0? ificuldades do problema foram reconhecidas nos «Ren- contres Internationales de Bouaké» (Costa do Marfim). Tradi- rica negra ocuparam entdo os peritos africanos. Ai se reconheceu que «se pretende situar a Africa na coesisténcia entre o seu passado eo seu futuro, entre as suas < exteriores, do que resulta, pelo cio & modemismo na proprias tradigdes © as relag menos de momento, um equilibrio instavel e precdrio, entre dois mundos diversos e distantes» (“). 5.4— PRIMAZIA A IDEIA DE NACAO E AO DESENVOL- VIMENTO A comolidagio da unidade nacional ¢ a aceleragio do desen- pri pagdes dos dirigentes dos novos estados afrieanos. io de Léopold . Ano- volvimento sécio-econdmico figuram entre neiras preocu: A. Africa dos «microestadoss, na expres Senghor, tem graves problemas a resolver nestes domini¢ africanas independentes te-se que de quarenta ¢ trés nagdes em 1970, vinte € ito contavam com uma populagao inferior a cinco milhées de habitantes. Assim, 4s perspectivas de uma «bal- canizacio» procur multinacional ("). desenvolvimento regional ("). Ora todos estes esforgos fazem largo apelo ao «primado da lei». O direito legislado surge como instrumento ao servigo das (8) Ver Tradition et modernisme en Afrique noire, Ed. du Seull, Paris, 1965. (5) Cf, por exemplo, A. Hazelwood (Ed.), African Integration and Desintegration: Political and Economics Case Studies, Royal Institute of International Affairs, London, 1967. (88) Ct. Planificactén Regional y Desarrollo Nacional en Africa, Simpésio realizado em 1972 na Universidade de Ibadan (Nigéria). Ed. espanhola da SLAP, Buenos Aires, 1973. Ver ainda Jacques Bugnicourt, Disparités regionales et aménagement du territoire en Afrique, Paris, 1971. 700 JOS£ FERNANDO NUNES BARATA novas politicas governamentais. A lei é indispensdvel ao sucesso do plano. O fenémeno nao é inédito. Sabe-se, por exemplo, como a common law, nesta época do welfare-state, conheceu uma reno- vagio, com proeminéncia para a lei, relativamente a jurispru- déncia tradicional. A alianca entre o Parlamento e o Governo, especialmente depois da 2." Grande Guerra, traduziu-se num corpo de statute law que visa a construcdo de uma nova socie- dade no campo econémico-social. Da previdéncia social ao urba- nismo, da coordenagao dos transportes A reforma dos sistemas educacionais, 6 um mundo vastissimo de novas disposigées legis- lativas, a revelarem assim um movimento de aproximagao com o direito do continente europeu. Tal aproximagio é, de resto, estimulada pelas necessidades do comércio internacional, vivifi- cadas pela integracéo econémica europeia ("). Este «primado da lei» nao se consagra apenas nos direitos romanistas ou se incrementa na common law. Ele é apandgio da familia dos direitos socialistas, na fase actual da transformagio destas sociedades. Um principio da legalidade socialista resti- tuiu, embora transitoriamente, ao direito o caracter e a autori- dade que tem nos paises da Europa ocidental. Reconhece-se, nos paises socialistas, que o Direito e o Estado sao uma necessidade na fase actual. E conformando-se estrictamente com o direito, que as administraggées, us empresas do Estado, as cooperativas, os cidadaos cooperam na politica do governo, abrindo os cami- nhos ao advento da sociedade comunista do futuro. A @énfase dada ao direito pablico por este «primado da lei», ndo arreda naturalmente na Africa, como j& de resto devia acontecer no «perfodo colonial», a importancia das relagdes privadas. A primazia da ideia de desenvolvimento pode fundamentar aqui outro tipo de observagées. Partindo do préprio espirito do (87) Quanto aos paises atrasados a problematica institucional é igual- mente relevante. Cf., por exemplo, a publicagiio das Nagdes Unidas, Proble- ‘mas actuales de la integracion econdmica. El papel de las instituciones en la integracién regional entre paises en desarrollo, Nueva York, 1974. A AFRICA E O DIREITO 71 costume tradicional, na Africa mais do que na Europa, e sem sactifieio dos valores morais © da dignidade do homem, o indi- subordinar-se aos imperatives da comu- nidade. que ~20 os do progresso. Os povos nttives, para se evar vidno. afirma-se, dev direm da rotina e dos preconceitos, para vencerem a pobreza ea ignorancia, consentirao uma intervengdo mais decidida, mais completa. de Estado, Este devera garantir os direitos naturais, mas impori cores, OF em nome do desenvolvimento, outro tipo de restri- deter sagrado da propriedade, por exemplo, nio deverd obstar is reforma s agnirias, a legislagio sobre 0 erédito lizem facilidades que acabam por se impedira qur se prodi traduvir na transferéncia da propriedade para os usurdrios ou no desperdicio do dinheiro mutiado em cerimdnias de easamento on de funerais, Li atnas veferimos que dar condigdes de sobrevivéneia ao restume numa sociedade em profunda transformagio comporta grande dose de riseo, Invista-se que também na Africa o Estado nao poder, sem afectar profundamente o costume, substituir-se wor agrupamentos originirios, Mas, se mais de 80% da popu- lagao dispersa pelo continente africano se encontra ligada a formas de vida ancestral, que dificuldades nio encontrarao as recentes reformas introdazidas no Senegal, no Ghana, no Kénia, relativamente ao regime predial? E que dizer, quanto aos direitos de familia, das reformas revoluciondrias, anunciadas para a Tanzania ¢ para paises francéfonos (")? Salientar-se-<4 que correrio agora por conta dos seus gover- no. nos novos Estados, os riscos de formularem regras que acabam por ser letra morta para a maioria da populacao, vindo a tirar proveito delas um grupo restrito de habitantes, os mais evolufdos? Resultaré daqui um reforgo de posigies de privilégio para uns tantos, com menosprezo da grande massa de africanos? (e) Ver © trabalho de Keba M'Baye, eDroit et développement en Afrique francophone de Quests, na publicagio colectiva, J cltada, dirigida por A. Tune, Les aspects juridiques du développement économique, pig. 121 e segs. 702 JOSE FERNANDO NUNES BARATA Eis perguntas que ha ano; se faziam aos colonizadores, mas que naturalmente ainda nao perderam actualidade. 5.5 — POLITICA DA TERRA Para ilustracdo das dificuldades no encontro entre os direitos tradicionais e 0 direito moderno e das medidas tomadas com vista a novas solugdes voltamos a uma questdo essencial na Africa: os regimes fundiarios. Na Conferéncia Mundial sobre a Reforma Agraria de 1966 pretendeu-se demonstrar existirem na Africa possibilidades de construir uma agricultura moderna, baseada nas praticas costu- meiras de obrigacéo comunitaria. O grande problema, entao assi- nalado, residiria em estruturar instituigdes adaptadas as socieda- des africanas que entrem em contacto com as exigéncias do mundo moderno, de harmonia com 0 modo de ver, o sentido dos valores e as possibilidades das populagées nativas. Para muitos no seria avisado aplicar sistemas rigidos, inspirados em consi- deragées ideolégicas, ou até profissionais, que nada tém a ver com a realidade africana ("). Outro depoimento de interesse é 0 j4 citado relatério de 1955 da Real Comissio do Leste Africano. Um dos membros da Co- missio refere que a causa fundamental do atraso econémico de diversos territérios africanos residia na circunstincia de nao se ter alterado o dominio costumeiro da ocupagao e posse da terra. Isto teria impedido a criagdo de formas de propriedade e a utilizagéo da terra em moldes adequados as exigéncias de produgio comercializada numa economia monetiria. A circuns- tancia de nfo se ter feito da terra um factor de produgdo vidvel tinha amarrado as populagées que nela viviam a uma subsisténcia precaria. (09) Cf. Réforme agraire: rapport de la Conférence Mondiale de 1966 sur la réforme agraire, F. A. O., 1967, nomeadamente a 3. parte, que se refere & andlise das principais questées tratadas. A AFRICA E O DIREITO 703 Parece evidente que os regimes fundidrios tradicionais desa- parecerao progressivamente. O que se impée é vigiar o processo, em termos de evitar convulsdes profundas que conduzam, sem contrapartidas positivas, a uma destruigao total da sociedade indigena. Em publicagéo da F.A.O. escreve-se, a tal propé- sito (): «Infelizmente, é quase corrente centrar o processo de adaptagio, ou, como também se costuma dizer, de destribalizagao, no progresso do individualismo, e per- der de vista a importancia da acco do grupo e da cooperacéo na agricultura. Tendo em conta a neces- sidade de uma modernizagio radical e répida da agri- cultura africana, a criago de pequenas exploragdes individuais em vastas areas, to vigorosamente apoia- da pelos advogados entusiastas da individualizagio, corre todos os riscos de se transformar num mau em- prego de recursos pouco abundantes». Quando se verifica num ritmo rapido a individualizaggao do regime fundiério, tornam-se indispensdveis novas instituigdes sociais que possibilitem a reconciliagao da individualizagéo com a vida em comunidade. Sé deste modo, insiste-se, se evitaré uma destruigéo total da vida comunitéria. Quando, por exemplo, © processo de individualizagéo atinge seu termo e o conceito de propriedade privada se consagra, deve tender-se ao regime do arrendamento e 4 sucesso. No relatério de um grupo de trabalho da F.A.O., que em 1957-1958 se ocupou do regime fundidrio africano, sublinhava-se que «a experiéncia de nume- rosos paises demonstrava que o meio mais seguro de despojar um agricultor da sua terra 6 dar-lhe um titulo de propriedade garantido e livremente negocidvel»... Os programas de politica agréria na Africa devem ser dota- dos de certa maleabilidade. Os sistemas fundidrios mostrar-se-Zo (7) F, A. O. Reconstruction agraire, Rome, 1968, pags. 65 e 66. 108 JOS£ FERNANDO NUNES BARATA simultaneamente capazes de se adaptarem a dado modo de pro- dugdo e, por outro lado, a um indispensdvel progresso agricola e econémico. Dir-se-4 que a coexisténcia na Africa de sistemas fundiarios diversos nao apresenta inconvenientes do ponto de vista do progresso agrario, pois nenhum deles ofereceré uma garantia absoluta e exclusiva para o encorajamento da eficacia da agricultura no vasto continente negro (""). Esta «abertura» ajuda-nos a bem compreender o seguinte passo da obra editada pela F.A.O., Droit foncier coutumier en Afrique, que ja citamos: «Assegura-se algumas vezes que a cooperagéo proporciona ao pequeno agricultor a maior parte das vantagens da grande exploragio, os meios financeiros, a efi- cacia operacional, a introdugio de técnicas modernas, um orde- namento apropriado das rotagdes, uma solugo para o parce- lamento e exploragéo dos diferentes tipos de solos pela forma melhor adequada a cada um deles. Todavia, nos pafses desen- volvidos, a experiéncia demonstrou que o cultivador individual conheceu, em geral, maior sucesso no que respeita 4 melhoria das culturas do que os membros das propriedades colectivas ou das fazendas do Estado. Acresce que a maioria das vantagens oferecidas pela cooperagéo podem ser obtidas dos estabeleci- mentos de crédito, das cooperativas de aprovisionamento, de servicos e de venda, sem colectivizagéo prévia das terras, evi- tando, deste modo, certas despesas importantes como os saldrios de gestio e do pessoal técnico. Resta, contudo, valido que as cooperativas de produgao podem proporcionar a base indispen- savel a um aumento da produtividade, particularmente nas Areas onde as exploragdes sao ainda de baixo nivel. Nestes casos a solidariedade social tradicional de que elas tiram a sua forga constitue um poderoso argumento a seu favor, com exclusio de todas as consideracgdes econdmicas. Torna-se, sem divida, ainda (*) Cf. D. Christodoulou, Réforme des regimes fonciers coutummiers ajricains, F. A. 0., Rome, 1966. A AFRICA E O DIREITO 705 indispensdvel uma grande tarefa educativa para permitir 4s coo- perativas de produgdo implantarem-se, pois, nao obstante as sociedades tradicionais poderem fornecer as suas estruturas so- ciais, os conhecimentos técnicos e a necessdria disciplina séo ainda incipientes» ("*). 5.6 — POVOAMENTO AGRARIO Ultrapassada uma visio positivista do direito, que no século passado fez escola em sociedades burguesas europeias, a Africa do futuro apoia-se numa vis&o dinamica dos sistemas juridicos, procurando harmonizar o que de valido possa existir no pro- cesso das suas estruturas tradicionais com novas férmulas aptas a vencerem o «cfrculo vicioso de pobreza e de atraso» de que, em 1955, falava Gunnar Myrdal em conferéncias proferidas no Cairo ("). E ainda nesta éptica que a politica da terra se encontra profundamente relacionada com 0 povoamento. Embora esta tiltima express&o possa ter um sentido estdtico ou dindmico, & sempre o homem e a sua acomodagio ao espaco que esto em jogo. A Africa ensina-nos que a transferéncia de populagées nao devera constituir apenas expediente para resolver problemas de saturagdo demogrdfica de certas dreas ou para realizar o apro- veitamento dos recursos naturais de zonas de recepgao, pouco ocupadas ou inexploradas. A fixacéo de populagdes mais evo- lufdas nos territérios atrasados deve ser util 4 promog&o dos incolas originarios, pelo enquadramento num convivio fraterno, pela abertura & economia de mercado e, de um modo mais lato, pelo acesso aos beneficios gerais da civilizagio. Uma consciéncia esclarecida sobre a estrutura das institui- goes tradicionais, sobre o contetido dos seus valores culturais, (2) Ob. cit., pag. 68. () Ver também Gunnar Myrdal, Teoria econdémica e regides subde- , Editora Sage, Rio de Janeiro, 3.* ed., 1972, pags. 31 © segs. 706 JOSE FERNANDO NUNES BARATA é sempre indispensavel a seriedade de um esforgo de encontro e de interpenetragdv. Os componentes do «bem-estar rural» sio complexos. Ao lado de elementos de natureza objectiva, que se traduzem na melhoria das condigdes sanitarias, do regime ali- mentar e da habitacio, da luta contra o analfabetismo, etc., cncontram-se os factores subjectivos, manifestados nas possibi- lidades de expressfio da personalidade, no sentimento de segu- ranga, na adaptagdo harmoniosa ao meio. Quer no sentido estatico, quer no sentido dindmico, 0 povoa- mento encontra-se com 0 ordenamento — ordenamento das popu- lagées servidas pelo ordenamento do territério. O homem nfo é um meio; o seu bem-estar 6 um fim. As estruturas devem, pois, ser postas ao seu servigo. A reestruturagao agraria africana constitui algo mais do que uma convencional «reforma agraria». De resto, também na Africa a terra ndo se esgota com a problematica rural. O uso das terras nas areas urbanas j4 aqui se reveste de acuidade juridica, eco- némica e social (**). A andalise dos procedimentos preconizados ou concretizados em paises africanos relativamente 4 terra, nos meios rurais, per- mite destacar o interesse de solugdes praticas conexionadas com as cooperativas de cultura, as associagées de povos pastores, as aquisigées de terra pelo Estado visando o seu ulterior aproveita- mento, a atribuigGo de terra vagas ou a redistribuigao de dreas mal aproveitadas ¢ a eleicéo de dreas de desenvolvimento rural. ‘As cooperativas revelam o interesse geral de poderem dar expressio ¢ validade, na economia de mercado, as tradigées de solidariedade colectiva. (°). Paises como a Tunisia e 0 Daomé publicaram legislagao sobre a utilizagdo das cooperativas. Nao se trata sé de sedenta- (74) Cf, UNESCO, Aspects sociaur de Vindustrialisation et de Vurbanis- me en Afrique au Sud du Sahara, Paris, 1956; Nations Unies, L’usage des terrains dans les villes. Principes et réglementation. I — Afrique, New York, 1974, (73) Cf, El Progresso Rural Através de las Cooperativas, Naciones Uni- das, Nueva York, 1954, pags. 22 € segs. A AFRICA E O DIREITO Ld rizar populagdes semindmadas, Outros propésitos entram em jogo. A cooperacao visa remediar as insuficiéncias da pequena exploracdo e permitir aos modestos agricultores obter mais facil- mente capital e crédito e beneficiar de auxilio técnico. No mundo tio singuiar dos povos pastores, assinala-se que o deseguilibrio entre os direitos tradicionais de pastagens € a capacidade das direas a isso votadas dew particular actualidade a este sector da vida social africana. Por outro lado, todo um esforgo de promogao pecudria tem imposto a revisio dos pro- blemas relacionados com a trilogia terra — pastagens — dgua. ia, © os Masai, na Tan- Em 1954, por aos Masai, pro- s, na linha, Certas tribos como os Samburos, no Ke zinia. constituiram, de longa data, problem. exemplo, foi publicada legislago relativamente pondo-se uma solugio slectiva para use das past: . do sistema tradicional, A existéncia, captagado ¢ distribuigdo dos recursos aquiferos conexionam-se com os planos de ordenamento © valorizagao das regides pastoris, Exemplifique-se com o «Plano de Coordenagio para o Abastecimento de Agua as Regides Pastoris do Sul de Angola» (1963). A Africa, como ja referimos, é um continente de situagdes extremas em matéria de dguas. Dai, por exemplo, a importancia das dguas subterraneas (") ¢ dos regimes juridicos ditados pela al escassez ¢ melhor aproveitamento dos recursos. A accao legislativa quanto as terras é completada por um esforco de persuasdo junto dos povos pastores, no sentido de se encorajarem férmulas de evolugao sécio~ conomica que permi- tam uma integracdo progressiva na economia de mercado. O gado deixard entéo de ser uma simples manifestagio de poderio, mera expressdo ostentéria de riqueza. A aquisigéo de terras aos proprietérios atravas de expro- priagao por utilidade piblica nao tem constituido, na Africa, procedimento legal portador, em termos gerais, de inovagdes especificas, relativamente aos métodos habituais noutros conti- s) Cf Nations Unies, Les eaur souterraines de l'Afrique, New York, 1971, nomeadamente 8 pags. 6 € segs. e 72 e segs. 708 JOSE FERNANDO NUNES BARATA nentes. Uma nota de destaque, para 14 dos enidados que impée a certificagéo da propriedade efectiva, reside na possibilidade de a compensago se poder realizar noutras terras, em vez de se concretizar em numerério, JA assim acontecia, em 1930, no Sudao. O mesmo foi consignado, em lei de 1962, para o Ghana, relativamente as terras dominiais. Outro problema é o dos terrenos que se encontram nas mos dos particulares, sem aproveitamento efectivo. Desta forma vas- tas areas podem no conhecer, durante anos sucessivos, qualquer valorizagio. Nao raro os seus detentores se manifestam incapa- zes de um esforgo de fomento ou apenas aguardam a oportuni- dade para operagées especulativas. A «Lei de Terras do Ultramary (Lei n.° 6/73, de 13 de Agosto) consagrou, para os territérios ultramarinos entao ligados a Portugal, disposigées tendentes a impedir situacdes desta natu- reza. Na Franca, em 1957, o Decreto n.° 57.243, instituiu um processo especial de expropriag4o, nos territérios ultramarinos franceses, relativamente a terras adquiridas por concessao. Na Costa do Marfim, depois da independéncia, continuou a vigorar tal disposigao. Em 1952 a Constituigéo de Madagascar conheceu uma emenda (Lei n.° 62.033, de 27 de Dezembro), nog termos da qual o Estado passou a poder apropriar-se de terras nfo exploradas ou abandonadas, sem que dai resultasse ofensa para o principio da inviolabilidade da propriedade pri- vada. Disposigées posteriores (1964) consideraram a possibili- dade de cessio ao Estado de propriedades nao exploradas. Todo © proprietério de terras que as n&o aproveitasse seria conside- rado como tendo abusado do seu direito de propriedade. Estas disposigdes aplicam-se a bens fundidrios de drea superior a 15 ha, pertencentes ao mesmo proprietdrio, seja qual fér o titulo de aquisigio, incluindo 0 costume. As propriedades assim transfe- ridas sao integradas no dominio privado do Estado. Na Repiblica dos Camarées, legislagio de 1964 (Decreto n.° 64-8/COR, de 30 de Janeiro) prevé a incorporagéo no do- minio privado do Estado, por motivo de utilidade publica, de terras possuidas ao abrigo do direito costumeiro. Estas dispo- sigdes visou introduzir um processo destinado a obter terras A AFRICA E O DIREITO 709 necessérias aos programas de colohizagio. As terras sio incor- poradas no dominio privado do Estado. Se até entéo nfo eram exploradas, o seu possuidor nao recebe qualquer indemnizagio. No Alto Volta a legisiac&o preocupou-se com a subutilizagio do solo. O Governo podera reservar para o Estado uma parte das terras objecto de ordenamentos especiais e declarar como bens do Estado terras pouco povoadas ou afastadas dos aglome- rados populacionais. Como se tem largamente divulgado, as dreas de desenvolvi- mento rural assumem aspectos variados em funcdo das condigdes dos meios ou, até, dos propésitos e capacidades dos governos, por todo o mundo. Incluem-se, desde a primeira hora, nos gran- des projectos norte-americanos ("), nos programas para as zonas criticas da Asia ("*) ou na generalidade dos aproveitamentos dos tios para fins miltiplos (“). Relativamente ao aproveitamento da terra, estes projectos, baseados nas grandes e pequenas obras de regra, tém visado transformar ag caracteristicas naturais e econémicas das regides beneficiadas, modificanda 0 modo de vida e a repartigo espa- cial das populagées. Tudo isto pressupée a criago de novas instituigdes aptas a encorajar uma melhor utilizagio dos recursos, a definir os direi- tos dos cultivadores, a regular e valorizar as relagSes humanas. O plano de irrigag&io e da cultura de algodéo do Gezira (Sudao) costuma ser recordado como uma das mais importantes realizagoes neste sector, na Africa (°°). Outras realizagdes especiais, no Ambito das chamadas «aires de mise en valeur rurale» (AMVR), foram ensaiadas na Tunisia e em Madagascar. (7) Cf. David Lilienthal, TVA, Democracy on the March, New York, 1945. HA tradugio portuguesa.—TVA, A Democracia em Marcha, 2. ed., Civi- lizagdo Brasileira, Rio de Janeiro, 1972. (78) Cf. Naciones Unidas, Planificaciém Regional, n. 12/13, Nueva York, 1959, (79)_Ct. Nations Unies, Aménagement a fins multipliques des bassins fluviaur, New York, 1957. (50) Ver A, Gaitskell, Gezira, Faber & Faber, London, 1959. no JOSE FERNANDO NUNES BARATA Qual 0 conceito comum de AMVR? «Uma AMVR é uma zona geografica bem definida no interior da qual se projecta empreender trabalhos de ordenamento e onde se instalam rurais que se1ao iniciados, sob 0 controle de pessoal qualificado, nas técnicas da agricultura moderna. Regem-se por legislagdo especial, que nao se aplica aos perimetros urbanos incluidos nessas Areas. A criagdo de uma AMVR é precedida de inquérito respeitante aos direitos fundidrios aplicdveis na area. Esta operagado implica emparcelamentos e parcelamentos, de forma a que cada lote venha a constituir uma unidade de explo- ragdo racional» (“*). Alguns planos de «colonizago agricola» deram origem, na Africa, a fundadas controvérsias. Um exemplo destacado é 0 do Niger, que René Dumont caracteriza de «tipicamente tecnocratico», empreendido «sem qualquer desejo ou adesio das populagées interessadas» (*). No debate entre 0 que se tem chamado rendabilidade social como algo mais extenso do que a imediata rendabilidade econédmica pesa o processo de ajustamento das infra-estruturas juridicas (*°). Na Nigéria setentrional, o plano do Sheridan (1949) visou transferir populagées de colinas superpovoadas e erodidas, ins- talando-as em aldeamentos na planicie. Mudaram-se, deste modo, colectividades inteiras, mantendo-se intacta a autoridade tradi- cional dos chefes de familia. De acordo com regulamentacado de 1949, determinadas dreas podem ser declaradas «zonas de colonizag&o agricola» pelas autoridades nativas. Sio as autori- dades nativas que destribuem a terra e os correspondentes certi- ficados. A terra passa a ser pertenca individual e a area atribui- da nfo pode ser objecto de subdivisdéo. Passaré, em caso de sucessio, para um tinico herdeiro. Razées econémicas pesaram ainda aqui na alteracdo das fruigées tradicionais. (81) Droit foncier coutumier en Afrique, cit., pag. 59. (82) In L'Afrique noire est mal partie, Ed. Seuil, 1962, pag. 39. (3) Cf, por exemplo, L. Lescar, «L’évolution de VOffice du Niger», in Hommes et commerce, 33 (1956) e «L’Office du Nigern in Notes et Etudes Documentaires, dez. de 1956. A AFRICA E O DIREITO m1 Na Libia, com o apoio da F.A.O., ensaiou-se outra férmula, com 0 propésito de fixar populagdes seminémadas e individuos sem terra empregados como trabalhadores rurais (**). Aspecto assinalavel deste projecto diz respeito 4 investigagaéo sobre a situag&o das terras tribais, sua repartig&o e respectivos limites. Deu lugar a estudos de natureza sociolégica, sobre a estrutura familiar, direitos fundidrios e usos e costumes das tribos. Os litigios entre tribos quanto & utilizag&o de terras séo aqui, como alias noutras zonas da Africa, frequentes. Assim, em 1959, foi promulgada uma lei destinada a regular tais pendéncias. Aconteceu que as comissées previstas na lei para a solugio dos diferendos nao realizaram trabalho positivo. As populagdes aca- baram por acusar as comissdes de facilmente influencidveis e as suas decisdes de parciais e inexequiveis. A natureza incipiente de algumas experiéncias relacionadas com a terra € 0 povoamento na Africa ou, até, a modéstia dos resultados obtidos, nem sempre prodigalizaraéo um resultado animador. No entanto, a multiplicidade dos esforgos empreen- didos e a diversidade das solugdes ensaiadas faz supor um pro- pésito generalizado de aproveitamento das potencialidades do direito costumeiro africano e de superagéo de alguns dos seus aspectos negativos. 6 — CONCLUSAO Ocupamo-nos, ao longo deste trabalho, da situagdo do Direito na Africa nos trés perfodos: consuetudindrio, colonial e das novas independéncias. Preocupou-nos especialmente o problema da permanéncia do direito costumeiro nos tempos modernos. Vimos que ele é detentor de virtualidades capazes de servi- rem o futuro desenvolvimento sécio-econémico africano: oposi- (“) Ver «Etat actuel du nomadisme au Sahara», in Les problemes de la zone aride, U.N.E.S.C.0., Actas do Coléquio de Paris, 1962. 12 JOS£ FERNANDO NUNES BARATA ¢G0 ao absentismo e a proletarizago rural; impedimento da especulagio fundidria e da monopolizagio das grandes areas; manutengao da coesio do grupo social e criagao de clima apro- priado ao desenvolvimento de empreendimentos de caracter colectivo. Reconhecem-se-lhe, por outro lado, aspectos negativos: defi- nigio imprecisa de direitos; inseguranga na posse ou fruigéo; desencorajamento na conservacio e melhoria dos recursos; estor- vo no desenvolvimento da agricultura; distribuigao desigual de terras; paradoxo da penuria de terras e insuficiente aproveita- mento das superficies disponiveis; desencorajamento dos inves- timentos e do acesso ao crédito; perpetuagao de rivalidades tri- bais; obstaculizagio a melhoria das praticas culturais; fragmen- tago antieconémica das terras. HA miltiplos esforgos a empreender ou a prosseguir em Africa, relacionados com o Direito. A este cabe um papel deci- sivo no desenvolvimento sécio-econémico das populagées. A grande tarefa nfo pertencerd isoladamente a um grupo restrito ou sectorial de homens de pensamento ou de acgiio. Se o lago que tradicionalmente liga a terra ao homem se tem pro- jectado na «universalidade» da vida e do comportamento dos povos africanos, o apelo a etndlogos, socidlogos, juristas, eco- nomistas, agrénomos, técnicos de acgGo social, etc., continua a revestir-se de particular acuidade. Revestidos, simultaneamente, de humildade cientifica e de espirito de missio buscarao, para as novas solugées, a maxima substituicdo no que ha de moribundo nas estruturas tradicionais com 0 minimo de sacrificio no que respeita aos custos humanos. :

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