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Ana CrAupia VieGAS Buss & BLUE SEGREDOS DE ANA C. This One NCLD-ZFT-48S8 satu Catalogagio na Fonte do Departamento Nacional de Livro vos6b Viegas, Ana Claudia Coutinho, Bliss & blue : segredos de Ana C. / Ana Cléudia Coutinho Viegas. ~ Sio Paulo :Annablume, 1998. 142p. 10,5 x 18cm. ISBN 85-7419-032-2 Inclui bibliografia 1, Cesar, Ana Cristina, 1952-1983 ~ Critica e in- terpretagio. I. Titulo. (CDD-B869.1 BLISS & BLUE ‘SEGREDOS DE ANA C. ‘Ana Cléudia Viegas Coordenagao editorial Mara Guasco Preparagao de originais ‘Ana Cecflia Agua de Melo CONSELHO EDITORIAL, Eduardo Pefiuela Cafiizal Willi Bolle Norval Baitello Junior Carlos Gardin Luerécia D'Aléssio Ferrara Ivan Bystrina Salma T. Muchail Ubiratan D’ Ambrésio Plinio de Arruda Sampaio Maria Odila Leite da Silva Dias Gilberto Mendonca Teles Maria de Lourdes SekefT 1" edigdo: novembro de 1998 © Ana Claudia Viegas ANNABLUME editora . comunicayao Rua Ferreira de Arajo, 353 . Pinheiros (05428-000 . So Paulo . SP . Brasil Tel e Fax. (011) 212.6764 ‘hup://www.annablume.com.br 24 BLISS & BLUE - SEGREDOS DE ANA C. Um texto vive como texto literdrio [...] em sistemas histéricos definidos por determina- dos processos de socializagdo e determina- das necessidades, capacidades cognitivas, Sentimentos, intengdes e motivagdes gerais e, ainda, por condicionamentos politicos, sociais, econdmicos e culturais que corres- pondam ans “sistemas de pressupostas” de sua ago (OuiNTO, op. cit., p. 11). E ainda um “sistema de pressupostos” que estabelece 0s li- mites entre “arte” e “realidade”, sendo esta dada como auto-eviden- te, Na medida, porém, em que se reflete sobre a realidade como processo construtivo, as relagdes entre ela e a ficgdo se redimen- sionam. [..] literatura e arte representam duas entre muitas possibilidades de comunicagdo e descrigao de nossas experiéncias, que se distinguem pelo uso de procedimentos espe- cificos e nao pela forma construida dos processos construtivos da realidade que ndo concebemos como arte. Um olhar sobre a histéria da arte revela que a classificagao de certas partes dos modelos sociais da rea- lidade como reais ou ficcionais era e é uma decisdo cultural e nao ontolégica |...) (Scumupr. In: Ouunto [org.), op. cit., p. 65. CapituLo II oO AUTOR, ESSA CATEGORIA FUGIDIA A critica do século XIX, ao colocar o autor como o principio da explicagao estética das obras, criou um mito em torno do poeta € construiu o autor como personalidade literdria. Vérios géneros se ligam a formagao da personagem autoral: os didlogos com o autor, 0 retratos ou as fotografia, os depoimentos e, sobretudo, as escri- turas fntimas. Philippe Lejeune, em texto classico sobre o género autobio- gréfico (1975), define, inicialmente, a autobiografia como uma nar- rativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua prépria existéncia, desde que ela focalize sua vida individual, em particular a hist6ria de sua personalidade. Estao ai envolvidos termos ~ histéria, vida pessoal, escrita, 0 ser ~ que no mais parecem auto-evidentes ¢ merecem, portanto, uma problematizagdo. Comecemos por questionar a propria nogio de realidade que, no pensamento pés-modemo, nao se constitui mais ‘como um todo apreensfvel, mas como uma construgio intelectual. Refletir sobre 0 modo pelo qual a literatura contemporfinea se relaciona com a realidade nos parece esclarecedor no que con- ceme a essas recentes concepgdes do real. Ronald Sukenick (apud McCarerry, 1984, p. 197) afirma que o escritor contemporineo de- ve comegar do nada: a realidade no existe, 0 tempo nio existe, a Personalidade no existe. Deus era 0 autor onisciente, mas, como ele morreu, agora ninguém sabe o enredo, ¢, j4 que a nossa realidade nao possui mais a sangfo de um criador, no hé nenhuma garantia de autenticidade da versio recebida. O tempo é reduzido a presenga, a uma série de momentos descontinuos. Nao h4 destino, apenas acaso. Oescritor p6s-moderno se volta nao para a realidade, mas para aresposta da imaginago Aquela, sendo essa resposta 0 tinico aspecto do real passfvel de ser conhecido. A ficciio nao pode “espelhar a realidade” ou “dizer a verdade”, porque “realidade” ¢ “verdade” 28 BLISS & BLUE - SEGREDOS DE ANA C. também sio abstracGes ficcionais, cuja validade tem-se tornado cada vez mais suspeita em nosso século. AA ficgaio contemporfinea desafia tanto a concepgao realista da transparéncia da linguagem e da narrativa como formas no media- das de representar a historia ou qualquer realidade fora do discurso, quanto a tradicional transparéncia da primeira pessoa como um re- flexo da subjetividade ¢ da terceira como a garantia da objetividade. Aponta-se como trago comumentre as obras posteriores adéca- dade 60 a preocupagao com o fiction-making. Emborao didlogo com ficgdes precedentes eo livro sobre a escrita de um livro nao sejam novidades inauguradas pela literatura p6s-moderna, o conceito de me- taficgdio deve ser ampliado quando se trata desses textos contempo- rneos. Neles, arelagdo escritor-leitor-texto éusada para sugerircomo. ohomem desenvolve sistemas ficcionais num sentido mais amplo. Nao sc pede ao leitor que cle admita que os objetos de ficgao sio “como. a vida", mas sim que ele participe da criagdo de mundos, por meio da linguagem., Otextoolevaareconhecer ocardter ficticiodomundo,em cujacriagdo ele também toma parte. Diante de sua impossibilidade de conhecer objetivamente o mundo, o homem desenvolve metéforas ¢ sistemas ficcionais para ajudé-lo a organizar suas experiéncias. O papel destinado ao leitor de criar o mundo romanesco atra- vés da acumulagao de referentes da linguagem literdria aproxima 08 atos da leitura ¢ da escritura e diferencia a metaficgo contem- pordinea das formas anteriores de “consciéncia romanesca autocen- trada” (Hutcion, 1974, p. 99). As préticas de Icitura ¢ escritura constituem uma espécie de metifora dos esforgos despendidos pelo homem todos os dias para “dar sentido” & experiéncia vivida. As recentes preocupagdes com 0 problema do sujeito no discurso literdrio e com o papel da linguagem na constituigao do “ser” levaram a um novo interesse pela autobiografia, Talvez porque em nenhum outro tipo de obra literria a relago entre 0 cu-autor e © cu-sujeito scja to Sbvia ¢ to problematica. As contradigdes inerentes & autobiografia, relacionadas & bus- ca de identidade de um sujeito, so insepardveis das contradig6es da escrita em si, em que ocorre sempre uma desapropriagdo da iden- tidade pela linguagem. Se é possfvel encontrar, em todo texto, marcas daquele que escreve, 0 processo de escrita envolve, ao mesmo tempo, a impos- sibilidade de revelagZo da intimidade. SA CATEGORIA FUGIDIA 29 [..] quando vocé escreve, tem sempre uma hist6ria que ndo pode ser contada, entende, que é basicamente a histéria, a histéria da nossa intimidade, a nossa historia pessoal. Essa historia, ela ndo consegue ser contada. Se vocé conseguir contar a tua hist6ria pessoal e virar literatura, ndo é mais a tua historia pessoal, j4 mudou (Cesar, 1993, p. 197-8) Alguns projetos autobiograficos de nosso século, como o de Roland Barthes (1977),! estabelecs dade entre o “eu” ¢ sua “biografia”. A nogdo de um autor dividido entre o presente ¢ o passado, 0 qual tentaria reconstruir este ultimo, ‘se contrapde Aquela de um sujeito disperso e difratado no presente. O sujeito do século XX se escreve como desapropriado, problema- tizando a forma da autobiografia. Essa problematizagio é tio mais intensa quanto maior é a preocupacdo com as relagées entre lingua- gem ¢ subjetividade. A vida do escritor permanece central, mas a “vida” no é mais pensada em termos de uma série de eventos cro- nolégicos ou histéricos. Ao contrério, concebe-se a “vida” como fragmentada ¢ nao dissocidvel do tempo da escrita, mas sim cons- titufda nele ¢ por ele. Nega-se, dessa maneira, o sujeito como alguma coisa além de uma criagdo da consciéncia ¢ da linguagem humanas, 1 una relagay de descuntinui- Nao digo: “vou descrever-me”, mas sim: “Escrevo um texto e chamo-the R. B.”. pres- cindo da imitagao (da descrigdo) e entrego- me & nomeagdo. Pois ndo sei eu que no campo do sujeito nao existe referente? (idem, ibidem, p. 69). Entende-se a subjetividade como um processo. O “eu” € uma linguagem conceitual criada por nés mesmos: a ficgdo de que um conjunto de caracterfsticas semelhantes de um sujeito € o resultado de uma esséncia, quando fomos nés mesmos que as agrupamos ¢ criamos a sua similaridade. 1, No Capftulo IIL, voltaremos a essa obra. 30 BLISS & BLUE - SEGREDOS DE ANA C. Logo, se hé um ser representado no texto autobiografico, sua identidade é formada tanto pelas mediagdes da linguagem e da escritura literdria quanto pela “personalidade” do autor, que é, ela mesma. também uma representagio conceitual. {A ficcionalizagdo ¢ 0 questionamento do sujcito se operam por um deslocamento das fronteiras habituais da escritura. Nesses textos de estatuto contradit6rio, em que a distingdio entre a narrativa ficcio- nal ¢ a narrativa autobiografica se dilui, o que se tematiza é a im- possibilidade de o sujeito da enunciagio se dizer. A fungao fundadora do sujeito tem como corolério a nogio da andlise hist6rica como o discurso do contfnuo. Tanto a teoria quanto a literatura contemporineas langam um olhar de desconfianga para qualquer teoria ou prdtica estética que assumam um conhecimento seguro ¢ confidvel do sujeito ou o fagam desaparecer completamente. Reinserir 0 sujeito no dmbito de sua fala, de seu contexto social ¢ hist6rico configura uma redefiniga0 nao $6 do sujeito, como da hist6ria. Desfaz-se 0 sonho de que a histéria é contfnua e um lugar de certezas © reconciliaydes para v sujcitu. Foucault identifica como a principal alteragao ocorrida na His- t6ria em relagdo a sua forma cléssica amudanga de status danogiode descontinuidade, “estigma da dispersio temporal que o historiador tinha a seu cargo suprimir” ¢ que se tornou, hoje, um dos elementos fundamentais da andlise histérica. As disciplinas hist6ricas deixaram de ser a reconstituicdo dos encadeamentos factuais para praticar a “disposigdo sistematica do descontinuo” (Siva, 1976, p. 57-8) Uma das principais questdes que se colocaram para a histo- riografia tradicional, que pretendia fazer uma Hist6ria Geral de todo um periodo por meio de um relato objetivo, sem deixar diividas sobre a sua veracidade, foi “como resolver a dificuldade criada pela existéncia de aspectos do passado que as fontes nos deixam ignorar € que ignoramos que elas nos deixam ignorar” (Vevxe. In: SILVA, 1976, p. 46). Hoje, jd se concebe a Historia como a proje¢o dos nossos va- lores ¢ a resposta As questées que nés resolvemos propor-Ihe. Ao inyés de uma Historia, fala-sc cm histérias, cujos recortes sdo es- colhidos livremente por quem a produz. Retomam-se as nogdes de perspectiva, subjetividade c parcialidade, que, até o século XVIII, eram acopladas & Histéria, mas foram postas & margem a partir do desenvolvimento de teorias cientificistas. A CATEGORIA FUGIDIA tT Dentro de uma visdo construtivista radical na filosofia do conhecimento e da ciéncia, propde-se uma nova historiografia, se- gundo a qual o passado é uma construgdo intelectual e a hist6ria deve ser considerada o resultado de nossas atividades historiogréficas. Dissipam-se, assim, os limites entre a sucessdo dos fatos ¢ 0 discurso sobre os fatos. Se 0 passado muda continuamente, pois ele s6 existe no pre- sente ¢ este € puro movimento, estabelece-se uma relacao dialética entre o passado ¢ 0 presente, em que um determina ¢ é determinado pelo outro. A meméria pode ser entendida, entdo, como uma espécie de palimpsesto, um texto cujo contetido foi sujeito a acréscimos pelo tempo, rasuras ¢ emendas deliberadas, sobrevivéncias acidentais. ‘Sendo assim, um palimpsesto pode servir para evocar tanto a dimen- ‘so consciente como a inconsciente da relagdo entre presente ¢ pas- sado que ocorre no ato autohiogrdfico (Fakin, 1988). Justamente a alteragio do fato relembrado e do ser é que nos permite, por mais paradoxal que possa parecer, a possibilidade da identidade. A variago do que fomos em nossa meméria ajuda a manter a hist6ria do ser anterior em relagio com o ser que nos tornamos. Ao se tentar definir a autobiografia como género, todas essas questdes devem ser relevadas. Parece-nos que, diante de tais confi- guracdes, muitas das definigdes existentes caem por terra. Numa perspectiva construtivista, o proprio conceito de género se redimen- siona. Se anteriormente procurava-se fundar e legitimar esse con- ceito em termos ontol6gicos ou antropolégicos, as tentativas re- centes basciam-se em argumentos das teorias da agao e da comunicagdo. Isto significa que os géneros sio agora vistos como fendmenos socioculturais historicamente varidveis, relacionados a convengées ¢ instituigdes (Scuupr, 1987). Um géncro como a autobiografia se define pelos papéis que assume e pelos usos aos quais se associa. Nao é a composigao ou 0 estilo da autobiografia que explicam sua fungdo genérica. Elizabeth Bruss (1974, p. 14-26) aponta algumas ordens de variabilidade que podem afetar um género: a natureza das caracte- Hfsticas textuais pelas quais se assinala a fungao genérica de um tex- to, 0 grau de integragdo da fungdo genérica com outros aspectos funcionais do texto, o valor literério de um género ¢ a natureza ilo- cutéria da fungao genérica. (Entenda-se essa natureza ilocutéria 32 BLISS & BLUE _SEGREDOS DE ANA C. ‘como a analogia entre a nogio de género ¢ a de “ato ilocutério”, a partir de que, assim como todo discurso responde a diferentes tipos de atividade ilocutéria ~ afirmago, ordem, promessa, pergunta -, todo discurso literdrio € um sistema de tipos ilocut6rios ou géneros.) A definigao de um género também est4 associada aos limites que 0 distinguem de outros tipos de textos, de modo que qualquer alterago nesses limites modificard a sua natureza. Na histéria literdria de um género, parece que, & medida que este se torna familiar aos leitores, vai havendo menor integragdo en- tre a funcio genérica ¢ outros aspectos funcionais do texto, porque 0 ‘autor passa ater uma necessidade menor de marcar no seu texto omo- do de leitura esperado. Assim, conforme um género se desenvolve, vio aumentando as diferengas entre as obras que dele fazem parte. ato autobiogréfico repousa, hoje, sobre distingdes conven- cionais, tais como a identidade individual, a importincia da expe- riéncia pessoal, a oportunidade de ser sincero com 0 outro. Se esses fatores deixassem de ser pertinentes aos olhos de uma sociedade ou para sua literatura, haveria, decerto, um comprometimento do gé- nero autobiogréfico tal qual o entendemos atualmente. Silviano Santiago, cm artigo sobre o narrador pés-moderno (1989, p. 38-52),? distingue aquele que narra a experiéncia por cle vivida daquele que narra a partir da observacdo do outro. O que esta em questéo é a nogdo de auten- ticidade. Sé é auténtico 0 que eu narro a partir do que experimento, ou pode ser au- téntico 0 que eu narro e conheco por ter observado? (p. 38) A partir da caracterizagao benjaminiana de trés estdgios evo- lutivos do narrador ~ 0 narrador clissico, o narrador de romance € © narrador-jornalista ~ Silviano Santiago situa o narrador pés- moderno nessa terceira categoria. [...] 0 narrador pés-moderno € 0 que trans- mite uma “sabedoria” que é decorréncia da 2. As trés citagdes seguintes so desse texto, indicando-se apenas as respectivas paginas. © AUTOR, ESSA CATEGORIA FUGIDIA 33 observagdo de uma vivéncia alheia a ele, visto que a agdo que narra néo foi tecida na substancia viva da sua existénci oO narrador pés-moderno sabe que o “real” ¢ 0 “auténtico” sao construgdes de linguagem (p. 40). A experiéncia do mais velho nfo consti bedoria, pois a “incomunicabilidade da experiéncia entre geragdes diferentes” dificulta um processo linear de aprimoramento do ho- mem e da sociedade. Diferencia-se, assim, o narrador memorialista do narrador pés- moderno, pois aquele fala de si mesmo como personagem menos experiente extraindo da distincia temporal e do processo de trans- formagdo por ele sofrido a “possibilidade de um bom consetho”. O ato de conversio que, desde as Confissdes de Santo Agostinho, se associa A autobiografia deixa de fazer sentido, se néio mais est pressuposto um amadurecimento linear do ser humano. Hé um ar de superioridade ferida, de nar- cisismo esquartejado no narrador pés-mo- derno, impavido por ser ainda portador de palavra num mundo onde ela pouco conta, anacronico por saber que o que a sua pala- vra pode narrar como percurso de vida pou- ca utilidade tem (p. 48) ‘A importancia da experiéncia individual fica assim abalada no mundo da imagem, em que a palavra escrita sobrevive para tes- temunhar o olhar. E como isso afetaria o género autobiogréfico, fun- dado na supremacia da subjetividade? Elizabeth Bruss (1983, p. 461-82) analisa o rompimento, efe- tuado no cinema, da identidade implfcita entre autor, narrador e pro- tagonista, sobre a qual repousa a autobiografia cléssica. O eu da autobiografia se decompée em dois elementos irreconcilidveis: a pessoa filmada, visfvel, registrada e projetada sobre a tela, e a pessoa que filma, inteiramente dissimulada atrés da objetiva. Essa impos- sibilidade de caracterizar-se ¢ de mostrar-se no cinema coloca em questo 0 primado aparente do sujeito. 34 BLISS & BLUE - SEGREDOS DE ANA C. Qualquer prética lingiifstica permite que o mesmo individuo exerga a fungo de locutor e, ao mesmo tempo, referente. A estrutura autobiogrifica reflete e reforga a capacidade simultéinea de conhecer e ser aquele que se conhece. £ sobre a unidade do observador e do observado, a continuidade pretendida entre passado e presente, vida e escritura que repousa 0 projeto autobiogrifico. A extrema precariedade desse equilibrio se explicita quando se passa da escritura ao cinema. O eu autobiogrifico é menos um ser aut6nomo e mais uma posig&o abstrata que aparece desde que um certo numero de convengdes estejam presentes ¢ desaparece quando essas convengées siio abandonadas, No cinema, 0 lugar da identidade € ocupado pela imagem des- titufda da propriedade do corpo. Essa imagem nao é una como a do espelho, mas um conjunto articulado, uma construgdo nova de ele- mentos, que podem ser separados uns dos outros (a voz ¢ 0 corpo, por exemplo), desfazendo o todo, ¢ se juntar novamente em confi- guragdes inéditas. Também a integridade do sujeito que observa € posta em pe- rigo no cinema. O olhar da cimera é um conjunto composto de di- versos elementos: diregdo, fotografia, registro, montagem — uma subjetividade livre da integridade espacio-temporal do sujcito do discurso. Tal liberdade s6 se faz possivel com a assisténcia me- canica. A multiplicidade de papéis exercidos pelos realizadores de um filme altera a questdo da autoridade sobre a obra. Onde as leis da linguagem designam uma origem tnica, o cinema apresenta um conjunto heterogéneo de papéis. Mesmo que um individuo venha a ser, simultancamente, responsdvel pelo cenério, enquadramento, fotografia, montagem, diregdo (como acontece em certos casos), 0 resultado dependerd mais do conjunto do que da tradicional ¢ indestrutivel integridade do sujeito do discurso. Desde que a autobiografia subentende a idéia de um autor inico, a divisdo tradicional entre o eu ¢ 0 outro ¢ a concepgao de que um individuo pode ter conhecimento auténtico sobre seu cu (¢, por conseqiiéncia, que meu préprio eu é 0 Unico ser que eu posso conhecer verdadeiramente), essa indeterminacdo da autoria faz com que as definigdes classicas do género autobiogrifico nfo sejam mais pertinentes. Um dos efeitos potenciais do cinema seria desconstruir 0 O AUTOR, ESSA CA’ FUGIDIA 35, projeto autobiogréfico de fixar o eu sobre o papel, colocando em evidéncia certas tendéncias jé implcitas na escritura. [...] no hé ponte entre o que esié fora da linguagem ¢ o sistema de inscrigdes desta ~ entre o “real” e o par différance / écriture ~escrever ndo é “traduzir” um referente em um nome, é sim introduzir uma diferenca, um suplemento (Lima, 1988, p. 339). Considerando-se, assim, a nogdo derrideana de escritura como auséncia, a desconstrugdo do projeto autobiogréfico operada pelo cinema demonstra a ilusio de uma subjetividade que tenta estar presente a si mesma na escritura, que é a marca de sua prépria auséncia. Muitos autores se valerdo do modelo autobiogréfico para, por meio de sua desconstruco, questionar a transparéncia da linguagem. Os textos que se utilizam conscientemente dos mecanismos do ato autobiogréfico ~ que tem por caracterfstica assegurar o primado da experiéncia individual pela transparéncia da primeira pessoa como um reflexo da subjetividade — buscam revelar 0 processo de des- personalizacZo inerente a toda escritura, até mesmo onde pretensa- mente se estabelece com o leitor um pacto de representagio da verdade. O que define a autobiografia para quem lé, segundo 0 jd citado Philippe Lejeune, é, antes de tudo, um contrato de identidade selado pelo nome préprio, que resume a existéncia do autor, pois aquele seria a nica marca no texto de um fora-do-texto, remetendo a uma pessoa real que assume a responsabilidade da enunciagiio do texto escrito. Um autor no é uma pessoa, mas uma pessoa que escreve € que publica. Para o leitor, que no conhece a pessoa real, o autor se define como a pessoa capaz. de produzir tal discurso. Talvez nio haja autor antes de um segundo livro, quando o nome proprio inscrito na capa se torna “fator comum” de, pelo menos, dois textos dife- rentes ¢ dé, entdo, a idéia de uma pessoa que é irredutivel a um desses textos em particular ¢ que, suscetivel de produzir outros, os ultra- passa. Se a autobiografia é um primeiro livro, seu autor 6 um desco- 36 BLISS & BLUE - SEGREDOS DE ANA C. nhecido, mesmo se ele se conta a si mesmo no livro: falta-Ihe, aos olhos do leitor, o signo da realidade que € a produgio anterior de outros textos, no autobiogréficos, indispensével ao “espaco auto- biogréfico”. O autor tira a sua realidade da lista de suas outras obras que figura frequientemente no livro sob o titulo “do mesmo autor”. O pacto autobiogréfico é a afirmagdo no texto da identidade autor-personagem-narrador, remetendo, em ditima instancia, ao no- me do autor na capa. O contrato estabelecido determinaré a atitude do leitor: se aquela for afirmada, como na autobiografia, oleitor ten- deré a procurar diferengas; se a identidade nao for afirmada, como no caso da ficgo, o leitor tentard estabelecer semelhangas. Dessa forma, o leitor desafia o pacto que Ihe foi proposto. A leitura se constitui, portanto, mais do que de um contrato pacifico, de “conflitos” 3 H. Porter Abbott (1988, p. 597-615) ressalta que aqueles que Iéem uma autobiografia com a atengo voltada para a hist6ria de seu autor e no para 0 autor, no presente, usando essa histéria a lem como uma biografia. Ler autograficamente implica uma leitura “com suspeita”, pois toda autobiografia seria corrompida pelo presente. O leitor deseja sempre ter acesso & intimidade do autor, que, entretanto, no é comunicével e foge eternamente. O texto que joga conscientemente com os mecanismos autobiogréficos puxa até o limite esse desejo do leitor. Propomos aqui uma inversdo desse processo: ao invés de pro- curar no texto tragos que identifiquem a personalidade de seu autor, considerar 0 texto como um elemento para a construgio da perso- nagem-autor: Eu vou continuar em Borges, nao em mim (se é que sou alguém), mas me reconheco ‘menos nos seus livros do que em muitos outros ou do que no trabathoso rasqueado de wm violao. Anos atrés tentei livrar-me dele e passei das mitologias do subtirbio para os jogos com o tempo e com 0 infinito. 3. “A verdadeira leitura é uma luta entre subjetividade que afirmam e néo abrem mio do que afirmam, sem as cores da intransigéncia. O conflito romanesco &, ‘em forma de intriga, uma c6pia do conflito da leitura” (SaxT1AGo, 1981, p. 117). © AUTOR, ESSA CATEGORIA FUGIDIA 37 Mas agora esses jogos sdo de Borges e terei que imaginar outras coisas. Assim, minha vida é uma fuga e tudo perco e tudo pertence ao esquecimento, ou ao outro (BORGES, 1960, p. 14). Os textos de Borges, assim como a jé citada autobiografia barthesiana ou os escritos de Ana Cristina Cesar, entre outros, au- tenticam a ficgdo, irrealizando o autor. A utilizagdio do nome préprio, conforme nos lembra Jean-Pierre Mourey (1985, p. 313-24), é um recurso textual particularmente eficaz para aumentar a hesitagao do leitor entre realidade ¢ irrealidade, mundo conhecido ¢ mundo estranho. ‘Sc apersonagem autoral é uma representago, a cle nao subjaz a “verdadeira” personalidade do autor. “A subjetividade se parece com um roubo inicial” (Cesar, 1987, p. 12) ¢ 0 individuo nao se define como um ser fntegro, fonte produtora de textos e verdades. Luiz Costa Lima (1986, p. 243-309) nos chama a atengo para © fato de que, devido ao prestigio da categoria “individualidade” no Ocidente, pelo menos a partir do século XVIII, tende-se a con- sideré-la como nogo atemporal, auto-evidente ¢ autojustificdvel e nio como categoria cultural e, portanto, historicamente varidvel. J4 que a “caracterizacao da autobiografia como género depende do destino da individualidade”, a reflexdo sobre essa historicidade se faria paralela & problematizagao do género autobiografico enquanto fen6meno mutével ao longo do tempo. Refletindo sobre o estatuto do individuo desde a Antigilidade, Lima conclui que a autobiografia, conforme a entendemos hoje, 86 se constitui a partir da nogdo do individuo moderno. Nao poderfamos falar do género autobiografico na Anti- gilidade, pois, entio, ignorava-se o valor do cu individual. Na ver- dade, nem mesmo a literatura, como discurso ficcional, existia, Porque nao havia frontciras absolutas entre as formas ficcionais ¢ formas de apresentagiio do eu. Na Idade Média, mesmo quando hd referéncias a um cu, faltam a0 sujeito dimensées psicolégicas ¢ o intercimbio de um eu empirico com 0 mundo, indispensdvel & autobiografia. Durante o Renascimento, passamos a encontrar condigdes efe- tivas para o aparecimento da autobiografia. A secularizagio do 38 BLISS & BLUE — SEGREDOS DE ANA C. pensamento e da experiéncia da vida transformou lentamente a an- tiga prética da meditago no proceso do auto-exame. Entretanto, embora jé se possa falar em autobiografia nesse perfodo, visto que © homem escolhe individualmente sua forma de conduta, essa escolha ainda € de tal modo dependente da vontade dos poderosos que no hé espaco para 0 auto-exame radical. Este s6 sera possfvel numa nova concepgao de homem, dotado de livre-arbitrio: 0 individuo moderno. Luiz Costa Lima estabelece como paradigma da autobiografia as Confissdes, de Rousseau, pelo “seu imediato ¢ largo propésito: o desvendamento do cu pela sondagem de suas motivagdes, por mais remotas, ocultas ou desagradaveis”. Comentamos, anteriormente, o esfacelamento do modelo au- tobiogréfico, seja no cinema ou na propria escritura. Se a autobio- grafia classica esté vinculada & constituigdo do individuo moderno, a sua desconstrugdo niio indicaria a formagio de um novo individuo que ndo mais pertence aos paradigmas da modernidade? E, se j4 se pode falar desse novo sujeito, estaria a sua formagdo ligada & pro- Pagagdo crescente das imagens ¢ as novas relagdes que estas insti- tuem com o homem?

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