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A escravidao levou consigo oficios ¢ aparelhos, como tera sucedido a outras instituigées sociais, Nao cito alguns aparelhos ndo por se ligarem a certo oficio. Um deles era. ferro ao pes- ogo, outro o ferro ao pé; havia também a mascara de folha-de- flandres. A mascara fazia perder o vicio dalembriaguer'aos es ‘cravos, por Ihes tapar a boca. Tinha s6 trés buracos, dois para ver, um para respirar, ¢ era fechada atras da cabeca por um ca- deado. Com o vicio de beber, perdiam a tentacao de furtar, por- que geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e af ficavam dois pecados extintos, ¢ a sobrie- dade e a honestidade certas. Era grotesca tal mascara, mas 2 or dem social e humana nem sempre se alcanca sem 0 grotesco, € alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham pendurads, a ven- a, na porta das lojas. Masnao cuidemos de méscaras, O ferro ao pescoco era aplicado aos escravos fujoes! Imagi- nai uma coleira grossa, com a haste grossa também, & direita ou A esquerda, até ao alto da cabeca e fechada atrés com chave, Pe- sava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Eseravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reinci- Gente, ecom pouco erapegado. HA meio século, os escravos fugiam com freqiiéncia. Eram | muitos, e nem todos gostavam da escravidio. Sucedia ocasional- ‘mente apanharem pancada, e nem todos gostavain de apanhar pancada, Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, ¢ 0 mesmo dono nao era maui; 493, além disso, o sentimento da propriedade moderava aacio, por que dinheiro também di. A fuga repetiase, entretanto, Casos hhouve, ainda que raros, em que 0 escravo de contrabando, ape. nas comprado no Valongo, deitava a cotter, sem cor rruas da cidade. Dos que seguiam para casa, nio raro, apenas la dinos, pediam ao senhor que Ihes marcasse aluguel, iam ga- nhé-Jo fora, quitandand ‘Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a «quem Iho levasse. Puna antincios nas folhas pablicas, com o nals do fugido, o nome, a roupa, o defeito fisico, se o tinha, 0 bainro por onde andava ea quantia de gratificacio. Quando nio vinha a quanti, vinha promessa: “gratificarse-a getierosamen- te”, — ou “recebera uma boa gratificagio”. Muita ver 0 antincio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descal- 60, correndo, vara 20 ombro, e na ponta uma trouxa. Protestae todo o rigor dallei contra quem o acoutasse. (Ora, pegar escravos fugidios era um offcio do tempo. Nao seria nobre, mas por ser instrumento da forca com que se man- témalei ea propriedade, trazia esta outra nobreza implicita das a0des reivindicadoras. Ninguém se metia em tal oficio por des- fastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptido para outros trabalhos, 0 acaso, ¢ alguma vez 0 gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso 20 homem que se sentia bastante rijo para pr ordem adesordem. Candido Neves, — em famflia, Candinho; —éa pessoa a quem se liga a historia de uma fuga, €édeu A pobreza, quando adquiriu o oficio de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, nio agientava emprego nem oficio, carecia de estabilidade; é 0 que ele chamava caiporismo. Comecou por ‘er aprender tipografia, mas vu cedo que eta preciso algum, tempo para compor bem, ¢ ainda assim talver ndo ganhasse 0 bastante; foi o que ele disse asi mesmo. O cotnércio chamothe ‘atengio, era carreira boa. Com algun esforco entrou de cai- Xeiro paraum armarinho. A obrigagio, porém, de atendereset- ecer as a todos feria-o na corda do orgulho, seisscmanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartério, om two de uma repatticao anexa.a0 ministério do império, carte rocoutrosempregos foram deixaclos pouco depoisde obtios Quando veio a paixio da moca Clara, nao tinha ele mais que dividas, ainda que poucas, porque morava com uum primo, entalhador de oficio. Depois de varias tentativas para obter em» Prego, resolveu adotar o oficio do primo, de que aliés jé tomara algumas ligSes, Nao Ihe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mai. Nao fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofise relevos comuns para cat deiras. Queria ter em que tabalhar quando casasse, ¢ 0 casa mento nao se demorou muito. Contava trinta anos, Clara vinte e dois. Fla era érfa, morava ‘com uma tia, MOnica, ¢ cosia com ela. Nao cosia tanto que nao »namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queria ma- ‘ar a tempo; nao tinham outro empenho. Passavam as tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia re. colher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles Ihe deixava saudades nem Ihe acendia desejos. Talvez nem soubesse © nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Fra, como The dizia a tia, um pescar de canigo, a ver se o peixe pegava, mas o eixe passava de longe; algum que parasse, era s6 para andar & Fodadaisca, mirdla, cheirtla, deixélae ira outras Oamor traz sobrescritos. Quando a moga viu Candido Ne ves,sentiu que era este o possivel marido, omarido verdadeiroe Unico. O encontro dewse em um baile; tal foi — para lembraro Primeiro oficio do namorado, —tal foi pagina inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado, O casa- mento fezse onze meses depois, ¢ foi a mais bela festa das relac Ses dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredé-la do passo que ia dar. Nao negavam a Bentileza do noivo, nem o amor que Ihe tinha, nem ainda algu- mas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas ao cabo de cinco 0 485 — Pois ainda bem icava a noiva; ao Menos, no caso com defunto, —Nio, defunto nao; masé que... ‘Nao diziam o que era, Tia Ménica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falouthes uma vez nos fi- Ihos possiveis. Eles queriam um, um s6, embora viesse agravara necessidade. Voces, se ti sobrinha. —NossaSenhoranosdard de comer, acudiu Clara. Tia Ménica devia terthes feito a adverténcia, ou ameaga, quando ele Ihe foi pedir a mao da moca; mas também ela era amiga de patuscadas, ¢ o casamento seria uma festa, como foi. ‘Aalegria era comum aos trés, O casal ria a propésito de tw. do. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Candido; nao davam que comer, mas davam que rir, € 0 riso di- geria-se sem esforco. Elacosia agora mais, ele safa a empreitadas de uma coisa ¢ outra; nao tinha emprego certo. Nem por isso abriam mio do filho. O filho & que, nao s- endo daquele desejo especitico, deixavarse estar escondido na etermidade. Um dia, porém, deu sinal de sia crianca; varao ou fémea, era. fruto abencoado que viria trazer ao casal a suspira- da ventura. Tia Ménica ficou desorientada, Candido ¢ Clara ri ram dosseus sustos. —Deusnoshadeajudar, A noticia correu de vizinha a vizinha. Nao houve mais que cespreitara aurora do dlia grande. A esposa trabalhavaagoracom mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das cost ras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos 0 enxoval da crianca. A forca de pensar nela, vivia jé com ela, media-Ihe fraldas, cosia- Ihe camisas. A porgao era escassa, os intervalos longos. Tia Mé- nica ajudava, é certo, ainda que de mavontade. Voces verdo a triste vida, suspiravaela rem um filho, morrem de fome, disse a tia jaa fucura mie. 486 | —Masas outras criancas nd cem também? perguntou Cla —Nascem, e acham sempre alguma coisa ce ainda que pouco, —Certacomo? que comer, — Certa, um emprego, um oficio, uma ocupacio, mas em ‘que€ que o pai dessainfelizeriatura que ai vem, gasta o tempo? Candido Neves, logo que soube daquelaadverténcia, foi er coma tia, ndo éspero, mas muito menos manso que de costume, ethe perguntouse ja algum dia deixara de comer. — A senhora ainda nao jejuou senao pela semana santa, ¢ isso mesmo quando nao quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter onosso bacalhau. —Bem sei, mas somos wés, —Seremos quatro. —Nioéamesma coisa. — Que quer entio que eu faca, além do que faco? —Alguma coisa mais certa. Veja omarceneiro da esquina,o homem do armarinho, o tipégrafo que casou sabado, todos tém um emprego certo... Nao fique zangado; no digo que voce seja vadio, masa ocupacio que escolheu, évaga. Vocé passasemanas sem vintém. —Sim, mas}é vem uma noite que compensa tudo, até de so- bra, Deus nfo me abandona, e preto fugido sabe que comigo ‘do brinea; quase nenhum resiste, muitosentregam se logo. Tinha gloria nisto, falava da esperanga como de capital se- guro. Dafa pouco tia, ¢fazk que era naturalmente ale- sre, ¢ previa uma patuscada no batizado. Candido Neves perdera ja o offcio de entalhador, como abrira mao de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escra- ¥0s fugidos tronxethe um encanto novo. Nao obrigava a estar Tongas horassentado. $6 exigia forca, olho vivo, paciéncia, cora- gem eum pedaco de corda, Candido Neves lia os amincios, co- Piava-os, metia-os no bolso e safa is pesquisas, Tinha boa memé- 487 ria, Fixados os sinais ¢ os costumes de um escravo fugido, gasta- vapouco tempoe: a, aagilidade também, Mais de uma vez, auma esqui- a, conversando de coisas remotas, via passar um escravo como 0 outros, ¢ descobria logo que ia fugido, quem era, o n dono, a casa deste ¢ a gratificaco; interrompia a conver atras do vicioso. Nao o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinhaa grat nas maos. Nem sempre saia sem sangue, as unhas ¢ os dentes do outro trabalhavam, mas gerale mente ele osvencia semo menor arranhio. ‘Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos 1ndo vinham jé, como dantes, meter-se nas maos de Candido Ne- ves, Havia mios novase habeis. Como o negécio crescesse, mais deum desempregado pegou em sie numacorda, foi aosjornais, copiou antincios ¢ deitouse & cacada. No proprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dividas de Candido Neves comecaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ‘ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fezse dificil e dura. Comiase fiado ¢ mal; comiase tarde, O senhorio manda vapelosaluguéis. (Clara no tinha sequer tempo de remendar a roupa ao ma- ido, tanta eraanecessidade de coser para fora. Tia Monica aju- davaa sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava. tarde, via- se-Jhe pela cara que ndo trazia vintém. Jantava ¢ saia outra vez, cata de algum fugido. Ja Ihe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, ¢ pegar em escravo fiel que ia a servico de seu senho! tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de mur- rosque Ihe deram os parentesdohoraem. — Eo que the faltaval exclamou a tia Manica, ao vélo en- tar, ¢ depois de ouvir narrar 0 equivoco e suas conseqiiéncias. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego. Candido quisera efetivamente fazer outra coisa, nio pela taro do conselho, mas por simples gosto de trocar de offcio; e- cacram 488 PAI CONTMA MAE ria um modo de mudar de pele ou de pessoa, O pior é que nio achavad mao negécio que aprendesse depressa, Annavureza ia andando, o feto crescia, até fazerse pesado A amie, antes de nascer. Chegou o citavo més, més de angtisias ¢ necessidades, menos ainda que o nono, cuja narracio dispenso tm. Melhor & dizer somente os seus efeitos. Nao podiam ser maisamargos. — Nao, tia Ménica! bradou Candinho, recusando um con- selho que me custa escrever, quanto mais ao pai o nunca! Foi na tilima semana do derradeiro més que a tia Ménica deu ao casal o consetho de levar a crianca que nascesse a Roda dos enjeitados. Em verdade, aio podia haver palavra mais dtira de tolerara doisjovens pais que espreitavam a crianea, para bei- Fela, guardé-la, véla rir, erescer, engordar, pular...Enjeitar que? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, ¢ aca- boudando um murro na mesa de jantar, Amesa, que eravelhae desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio: —Titia nao fala pormal, Candinho. —Por mal? replicou tia Monica. Por mal ou por bem, sejao que for, digo que é o melhor que vocés podem fazer. Vocés de- vem tdo;a came ¢ 0 feifio vao faltando. Se no aparecer algum dinheito, como é que a famslia ha de aumentar? E depois, hd tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serio recebidos com o mesmo cuidado que es te ou major. Este sera bem criado, sem Ihe faltar nada, Pois en- to a Roda é alguma praia ou monturo? La nao se mata ni guém, ninguém morte a toa, enquanto que aqui é certo morret, seviver a mingua. Enfim. Tia Ménica terminou a frase com um gesto de ombros, det as costase foi meter-se na lcova, Tinha ja insinuadoaquela solu ‘sao, masera a primeira vez que o fazia com tal franquezae calor, — crueldade, se preferes. Clara estendeu a mao ao marido, co- lo. Isso 489 mo a ampararthe o animo; Candido Neves fez onbaixa. \ternura ma careta, € dois foi inter rompida pi —Quemé pergy —Soueu Erao dono da casa, credor de tis meses de aluguel, que vi nha em pessoaameacar o inquilino, Este quis que ele entrasse, —Nioé preciso... —Faca favor, O credor entrou e recusou sentar-se; deitou os olhos a mo- bilia para ver se daria algo a pentiora; achou que pouco. Vinka receber os aluguéis vencidos, nao podia esperar mais; se dentro de cinco dias nao fosse pago, pé-lo-anarua, Nao havia trabalha- do para regalo dos outros. Ao vé-lo, ninguém diria que era pro- prietério; masa palavca supria o que faltava ao gesto, eo pobre Candido Neves preferiucalar aretorquir. Fez uma inclinagiode promessa e stiplica ao mesmo tempo. O dono da casa niio cedew —Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mao no ferrolho daportae saindo. Candinho saiu por outro lado. Nesses lances no chegava nuncaao desespero, contava com algum empréstimo, nao sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorrew aos antincios, Achou varios, alguns ja velhos, mas em vo os buscava desde ‘muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, nao achou recursos; lancou mio de em- penhos, foi a pessoas amigas do proprietirio, nao alcancando mais que a ordem de mudanca. A situacdo era aguda. Nao achavam casa, nem contavam ‘com pessoa que Thes emprestasse alguma; era ir para a rua, Nao contavam coma tia. Tia Monica teve arte de aleangar aposento para os trés em casa de uma senhoravelha erica, que lhe prome- teu emprestar os quartos baixos da casa, ao fiundo da cocheira, ara os lados de um patio. Teve ainda aarte maior de no dizer 490 dois, para comecasse por enje Neves, no desespero da crise, © filho e acabasse alcangando algum, meio seguro e regular de obter dinheiro; emendara vida,em su- ma, Ouviaas queixas de Clara, sem asrepetir, écerto, massem as ‘consolar, No dia em que fossem obrigadosa deixar a casa, ficlos- ia espantar com anoticiado obséquio citiam dormir melhor do que cuidassem. Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dois dias depois nasceua crianca. A alegria do pai foi enorme, €2 tristeza também, Tia MOnica insistiu em dara crian- ad Roda. “Se vocé nao a quer levar, deixe isso comigo; eu vou a rua dos Barbonos.” Candido Neves pediu que nao, que esperas- 46. que ele mesmo a levaria, Notai que era um menino, e que ambos 0s pais desejavam justamente este sexo, Mal Ihe deram al- gum leite; mas, como chovesse @ noite, assentou o pai leviclo & Rodananoite seguinte. Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos. As sgratificagdes pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mikréis, Trae tayarse de uma mulata; vinham indicagdes de gesto e de vestido, Candido Neves andara pesquisilasem melhor fortuna, eabr- ra mao do negécio; imaginou que algun amante da escrava a houvesse recolhido, Agora, porém, a vista nova da quantia € a necessidade dela animaram Candido Neves a fazer um grande esforgo derradeiro, Saiu de manhda vere indagar pelaruaelar- go da Carioca, rua do Parto ¢ da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo 0 antincio, Nao a achou; apenas um farmacéutico da rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onca de quaiquer droga, trés dias antes, & pessoa que tinha os sinais (Candido Neves parecia falar como dono da escrava, eagradeceu cortesmente a noticia. Nao foi mais feliz com outros fugidos de gratificagao incerta ou barata. Voltou para a triste casa que The haviam emprestado. Tia Monica arranjara de si mesma a dieta para a recente mie, ¢ ti dicados. 491 nha jé.0 menino para sei pai, no obst acordo feito, mal pode esconder a dor do espeticulo. Nao quis comer 0 que Ga MO era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filo; nenhum, prestava. Nao podia esquecer o proprio albergue em que viv e guardara; nao tinha fome, disse, € Consultowa muthe ignada. Tia Monica pin- taralhe a criacdo do menino; seria maior miséria, podendo su- ceder que 0 filho achasse a morte sem recurso, Candido Neves foi obrigado a cumprira promessa; pediu a mulher que dese ao filho 0 resto do leite que ele beberia da mie, Assim se fer; 0 pe- queno adormeceu, o pai pegou dele, ¢ saitt na dire¢ao da rua dos Barbonos, Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, € certo; nao menos certo é que o agasalhava muito, que 0 va, que The cobria o rosto para preservé-lo do sereno. Ao entrar na rua da Guarda Velha, Candido Neves comecou a afrouxar 0 asso. — Hei de entregélo o mais tarde que puder, murmurou ele, Mas no sendoarua infinita ou sequer longa, viria a acabé- Ia; foi entdo que Ihe ocorreu entrar por um dos becos que liga- vam aquela arua da Ajuda. Chegouao fim do beco ¢, indoado- brar a direita, na direcio do largo da Ajuda, viu do lado oposto, um vulto de mulher: era.a mulata fugida, Nao dou aqui acomo- sao de Candido Neves por nio podé-lo fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme, Descendo a mulher, desceu cle também; a poucos passos estava a farmacia onde obti- veraa informagio, que refer acima. Entrot tico, pedit-Ihe a fineza de guardar a crianca por um instante; vi- ria bused-la sem falta, —Mns... i Candido Neves nao the deu tempo de dizer nada; saiu rép- do, atravessou a rua, até a0 ponto em que pudesse pegar a mu- Iher sem dar alarma, No extremo da rua, quando ela ia a descer 492 ade S. José, Céndido Neves aproximousse dela Eraa mesma craa mulata fujona. inda! bradou, conformea nomeava oantincio, Arminda voliouse sem cuidar malicia, Foi 6 quando ele, tendo trado 0 pedaco de corda da algibeira, pegou dos bracos erescrava, que cla compreendeu e quis fugir. Era impossivel Cindido Neves, com as mos robustas,atava-lhe os pulsosediris que andasse. A escrava quis gitar, parece que chegoua soltar al gumavor maisalta que de costume, masentendew logo que guém viria liber loamorde Deus. — Estou gravida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senho- via tem algum filho, peco-the por amor dele que me solte; eu se- ei sua escrava, vou servilo pelo tempo que quiser, Me solte, meusenhormogo! Sigal repetiu Candido Neves, —Mesolte! —Nio quero demoras;sigal Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastavase a #20 filho. Quem passava ou estava a porta de uma loja, com Preendia o que era e naturalmente nao acudia. Arminda ia ale- Sando que 0 senhor era muito mau, € provavelmente acastiga- ria com acoites, — coisa que, no estado em que ela estava, seria Pior de sentir. Com certeza, ele Ihe mandaria daracoites, —Vocé é que tem culpa. Quem the manda fazer filhos ¢ fac gir depois? perguntou Candido Neves, Nio estava em maré de riso, por causa do filho que ld ficara na farmacia, 4 espera dele, Também é certo que nao costumava dizer grandes coisas. Foi arrastando a escrava pela rua dos Our ves, em direcio a da Alfindega, onde residia osenhor. Naesqui- wna desta a luta cresceu; a escrava pés os pés & parede, recuou com grande esforco, imutilmente. O que aleancou foi, apesar de Ser acasa préxima, gastar mais tempo em la chegardo que deve- Fa. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda © contrario, Pedi entio que asoltasse pe- 493 sa | se, mas em vio, O senhor estava ern ¢: chamado e ao rumor. — Aqui esté afujona, disse Candido Neves, —E£clamesma. no corredor, Ali abrin a carteira e tirou os cem n \esmo o senhor da escrava de gratificacao, Candido Neves guardiou as duuas notas de cingtlenta milréls, enquanto o senhor novamente dizia 4 escrava que entrasse, No chi, onde Jazia, levada do medo e da dor, e apésalgum tempo de hutaa es- cravaabortou. fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, en- tre os gemidos da mie e os gestos de desespero do dono, Cindi- do Neves viu todo esse espetculo, Nao sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr a rua da Ajuda, ¢ foi o que cle fez sem querer conheceras conseqiiénciasdo desastre. Quando la chegou, viu o farmacéutico sozinho, sem o filho que Ihe entregara. Quis esgandlo, Felizmente, 0 farmacéutico explicou tudo a tempo; 0 menino estavalé dentro com a famili © ambos entraram, O pai recebeu o filho com a mesma firria com que pegara a escrava fujona de hi pouco, fiiria diversa, na- turalmente, firia de amor. Agradeceu depressa e mal, € sait 3s carreiras, no para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo, com o filho e os cem mil-réis de gratificacio. Tia Ménica, ouvida a explicacio, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia 05 cem mil-réis, Disse, é verdade, algumas patavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Can- dido Neves, beijando o fitho, entre kigrimas verdadeiras, aben- oavaa fugae nao se lhe dava do aborto. —Nem todasas criangas vingam, batewthe o coracao. 494

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