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OS JOGOS E SUA IMPORTANCIA NA ESCOLA Lino de Macedo Instituto de Psicologia da USP RESUMO © propdsito deste texto ¢ caracterizar — segundo Plaget — exercicio, simbolo @ regra como formas de jogo ©, além dieso, ‘analisar a importancia de cada uma dolas para a conetrugso do ‘conhecimento na escola. Procurou-se analisar também a impor: tancia dos jogos na escola, mediante respostas as seguintes ‘questées: 0 que 6 0 jogo? por que\in) se joga? para que(m) 50 joga?. JOGOS NA ESCOLA — PIAGET — ESTAUTURAS DE JOGOS ABSTRACT GAMES AND THEIR IMPORTANCE IN THE SCHOOL. The purpose of this paper is to characterize, according to Piaget, ‘exercise, symbol, and rule as forms of games and, in addition, to analyse the importance of each in learning. The importance of games in the school was also analysed through the answers to the follwing questions: what is a game? whom or what do you play for? why do you play? Cad. Pesq., S40 Paulo; 193, p.5-10, maio 1995 © objetivo deste texto é, em primeiro lugar, caracte- rizar as trés estruturas de jogos — de exercicio, sim- bolo e regra — propostas por Piaget (1945) em La Formation du symbole chez renfant: imitation, jeu et réve, image et représentation. Na caracterizacao va- lorizou-se a forma de assimilacéo (funcional, defor- mante ou reciproca) nesses jogos bem como a pre- senga de uma estrutura anterior nas estruturas so- guintes. Em segundo, analisou-se a importancia, para a aprendizagem escolar, dos aspectos destacados. Piaget propde que os jogos — todos os jogos podem ser estruturados basicamente segundo trés formas: exercicio, simbolo ou regra. © que caracteriza essas formas e qual 6 a importéncia de cada uma delas para a construgao do conhecimento na escola? Responder a essa dupla questo 6 0 propésito deste texto. Comecemos pela primeira, a que estrutura as agdes como jogos de exercicios, e tentemos analisar sua presenga quando a crianga aprende as primeiras letras ou 0s primeiros nimeros na escola. JOGOS DE EXERCICIO As trés estruturas de jogos serdo caracterizadas se- gundo sua forma tipica de assimilacdo. Nos jogos de exercicio, essa forma € a da assimilacao funcional ou repetitiva, ou seja, do prazer da fungao, gragas & qual, por exemplo, as ciangas, no primeiro ano de vida, formam habitos na qualidade de esquemas sensorio- motores, Piaget, na introdugao do livro La Naissance de Fnteligence chez enfant (1936), propde que os seres vvivos tém sempre dois problemas: um de organizagao © outro de adaptagao. O primeiro nos remete a etera questo de se manter organizado, como ser vivo, em um contexto de trocas com 0 meio. Trocas necess4- rias, considerando que, como sistema aberto, o ser vivo depende do meio para sua sobtevivéncia. De fato: nossas estruturas podem assimilar 0 oxigénio do ar, mas nao podem produzio. O mesmo vale para {98 alimentos etc. Ou seja, 0 organismo vivo & um sis- tema aberto porque suas estruturas nao bastam a si mesmas. Por isso, a interagdo do organismo com 0 meio é uma eterna e infinita necessidade; sem ela, a sobrevivéncia desse ser — individuo ou espécie — esté sempre ameacada. O segundo problema nos re- mete & questo da construgo das possibilidades (ou formas qualitativas) pelas quais se faz essa interagao. Ou seja, adaptagao sao as formas pelas quais os se- res vivos fazem essa troca. Segundo Piaget, de um ponto de vista funcional, as duas formas invariantes, elas quais 0s seres vivos fazer a adaptacao sfio a assimilago e a acomodagao. A assimilagao corres- onde & intagragao, pelas acdes, dos elementos ex- temos ao ser vivo. A acomodagéo corresponde as modificagbes internas que tornam isso possivel Como dissemos acima, a atividade caracteristica da estrutura dos jogos de exercicio opera pela primei- ra forma de assimilagao: a assimilagao funcional. Por meio dela temos que, quando algo se estrutura como uma forma (se organiza como um todo ou um siste- ma), apresenta a tendéncia de se repetir funcional- mente. Em outras palavras, tudo 0 que se estrutura ‘como um sistema pede “alimentagdo" funcional, ou seja, pede repetig’o. Essa alimentagao constitui, do- ravante, fonte de satisfagdo ou prazer. Nao repetir, ou do alimentar o sistema, constitui fonte de dor, de ameaga a sua sobrevivencia. ‘A assimilagao funcional, ou prazer pela alimenta- 40 de algo que se tornou parte de um sistema © que or isso pede repetigao, caracteriza 0 aspecto Itidico fou autotélico dos esquemas de acao. Por exemplo, aprender a ler — de fato — significa ter a leitura como parte, agora inevitavel, de nosso sistema de interagao ‘com as coisas. Assim, quando uma crianga em pro- cesso de aprendizagem da leitura se interessa, por exemplo, pelo que esta escrito nos painéis, andando de carro com sua mae, ou quando compra livros, por sua propria iniciativa, com a mesada que ganha de seus pais, ilustra essa necessidade Iddica que a lei- tura esta tornando-se para ela. Em outras palavras, uma coisa 6 ler em fungdo de uma ordem da profes- sora, como um meio, portanto, para um outro fim; ou- tra coisa é a leitura como um fim em si mesmo. ‘A repetigao, requerida pelas demandas de assi- milagao funcional dos esquemas de agao, tem por conseqiiéncia algo muito importante para o desenvol- vimento da crianga: a formag4o de hébitos. Nesse sentido, os jogos de exercicio sao formas de, por seu prazer funcional, repetir, por exemplo, uma sequéncia ‘motora e por isso formar um habito. Os habitos, como analisa Piaget em seu livro La Naissance de inteli- gence chez l'enfant (1936), so a principal forma de ‘aprendizagem no primeiro ano de vida e constituem a base para as futuras operages mentais. Apenas para citar uma das raz6es para isso, 0 que se passa 6 que a repeti¢ao, pelos habitos, & fonte de significa- dos, ou seja, de compreensdo das agdes, enquanto formas dos conteudos (por isso, esquemas) que se repetem e generalizam em um sistema, Qual 6 a importancia da assimilagao funcional na construgio do conhecimento na escola? Para respon- der a isso, apenas apresentarei duas consideragées: uma de cardter funcional e outra, estrutural. De um ponto de vista funcional, a repetigao, como recurso de ‘aprendizagem, 6 muito importante na escola, Portan- to, fazer algo uma Unica vez tem pouco sentido. Mas, a repetigaio em si mesma, isto é, sem sentido Idico (prazer funcional), sem ser um jogo de exercicio, como costuma ocorrer hoje nas escolas, nao vale a pena. Outra coisa: todos valorizam a importancia de bons habitos de trabalho que, por sua repetigao cicli- ca, ajudam a organizar a vida escolar. Porém, muitas Os jogos. vezes as rotinas escolares se transformam elas mes- mas em um fim @ no se justificam mais nas atuais circunstancias daquela escola, Em uma palavra: a re- eti¢ao, com seu sentido funcional — como a conhe- ceu a crianga no primeiro ano de vida, gragas aos jogos de exercicio —, 6 matriz para a regularidade, ‘to fundamental para a aprendizagem escolar quanto para a vida em geral De um ponto de vista estrutural, proponho que os jogos de exercicio permitam as criangas enfrentar as tarefas escolares, mais em um sentido filoséfico do que apenas utiitério. © saber que a filosofia propor- ciona, segundo Piaget (1965), é a coordenacao de va- lores, isto 6, a produgao de conhecimento sobre as coisas em si mesmas. Nas ciéncias, ao contrario, 0 conhecimento justitica-se principaimente por sua fun- ¢40 aplicada ou instrumental’. Ora, essa segunda for- ma de conhecimento 6 a que predomina na escola, Sabemos que ela se justifica por sua fungao social de formar futuros cidadaos; cidadaos estes que tém de dominar as letras, os numeros, as ciéncias, Mas, tudo isso é muito abstrato @, por vezes, aborrecido para a crianga. Poder pensar e tratar as coisas como um jogo, como algo lUdico ou autotélico, faz muitas vezes mais sentido para ela. Antes de passar para os jogos simbélicos, consi- deremos que os jogos de exercicio caracterizam a ali- vidade Iddica da crianga no perfodo de desenvolvi- mento que Piaget (1936) chamou de sensério-motor © que compreende, em média, os primeiros dezoito meses de vida. Mas, consideremos ao mesmo tempo que as caracteristicas dessa estrutura continuam fa- zendo parte fundamental das outras estruturas de jo- gos © que esquecer isso significa ter uma vida sem prazer, caracterizada por um fazer obrigado externa- mente ao sujeito e que, por isso, nao tem sentido para ole. JOGOS SIMBOLICOS No proceso de desenvolvimento da crianga, os jo- gos simbélicos, como estrutura, vém depois dos jo- gos de exercicio. E caracterizam-se por seu valor analégico, ou seja, por se poder tratar “A” como se fosse “B”, ou vice-versa. Essa é a grande novidade dessa estrutura se comparada a anterior. Trata-se Portanto de repetir, como conteudo, o que a crianca assimilou como forma nos jogos de exercicio. Agir, em uma brincadeira de boneca, como a mae, por exem- plo, significa repetir, por analogia, 0 que a mao tantas vezes fez com ela om seu primeiro ano de vida. Sig- nifica também poder aplicar, agora como contetido, as formas dos esquemas de agao que assimilou em seus jogos de exercicio. Os jogos simbélicos caracterizam-se pela assimi- ago deformante (Piaget, 1945). Deformante porque Cad. Pesq. 1.93, maio 1995 nessa situacao a realidade (social, fisica etc.) é assi- milada por analogia, como a crianga pode ou deseja Isto é, 08 significados que ela da para os contetidos de suas agdes, quando joga, so deformagées — maiores ou no — dos significados correspondentes, nna vida social ou fisica. Gragas a isso, pode com- preender as coisas, afetiva ou cognitivamente, segun- do 0s limites de seu sistema cogritivo. As fantasias ‘ou mitos que a crianga inventa ou que escuta tantas vezes @ que tanto a encantam sao igualmente expres- ses dessa assimilagao deformante. Tém, além disso, uma fungéo explicativa: as fantasias ou mitos possi bilitam a crianga compreender, ao seu modo, os te- mas neles presentes. Isso favorece a integragao da crianga a um mundo social cada vez mais complexo (adaptagao & escola, habitos de higiene e alimentagao etc.). Em outras palavras, os significados das coisas, podem ser, por intuigdo, imaginados por ela. Essas construgdes possibilitadas pelos jogos simbélicos se- ‘Go, como as regularidades, possibilitadas pelos habi- tos nos jogos de exercicio, fontes das operagées. Qual 6 a importéncia da assimilagéo deformante ‘na construgéo do conhecimento na escola? De um onto de vista funcional, a crianga — assimilando o mundo como pode ou deseja, criando analogias, fa- zendo invengées, mitficando coisas — toma-se pro- dutora de linguagens, criadora de convencées. Gracas a isso, pode submeter-se as regras de funcionamento de sua casa ou escola, Esta, como sabemos, costuma ensinar os contetidos das matérias por um conjunto de signos, convengées, regras ou leis. Mais que isso: ‘como as analogias que possibilitam os jogos simbdli- 608 so convengdes motivadas, ou seja, séo conven ‘Ges em que o representado tem algo a ver com 0 Tepresentante, a crianga pode firmar 0 vinculo entre as coisas @ suas possiveis representagdes. Com isso poderd, talvez, na escola priméria, compreender ¢ uti- lizar convengdes como signos arbitrarios, isto é, cuja relagao representante-tepresentado nao seja to pré- xima como nos jogos simbélicos. De um ponto de vista estrutural, os jogos simbé- licos tém, igualmente, uma importéncia capital para a produgao do conhecimento na escola. O sentido e a ecessidade de teoria (do esforgo humano de explicar as coisas, de dar respostas ainda que provisorias para as perguntas que nos faz 0 jogo da vida) for- mulam-se e ganham contexto nos jogos simbélicos. Em outras palavras, as fantasias, as mitificagdes, os modos deformantes de pensar ou inventar a realidade ‘so como um prelidio para as futuras teorizagdes das criangas na escola primaria e mesmo dos futuros cien- tistas. Nesse sentido, a necessidade metodolégica (descoberta do valor da experimentagao que a crianga 1 Granger (1989), no capitulo 10 de seu lio Por um conhe- cimento flosofco, argumenta em favor da filasofia como um Jogo. Vale a pena 6s, péde construir gragas aos jogos de exercicio no pe- riodo sensério-motor) € agora a possiblidade de ex- plicagao das coisas, ainda que por assimilagao defor- mante, constituem as duas bases das operagées pe- las quais as criangas aprendem as matérias escola- res. Em sintese, 6 os jogos de exercicio sao a base para 0 como, os jogos simbdlicos sao a base para © porqué das coisas. Mas a coordenagao de ambos 86 se dara com a estrutura dos jogos seguintes, gra- a8 A assimilagdo reciproca. E 0 que analisarel na Proxima segdo. JOGOS DE REGRA Os jogos de regra contém, como propriedades funda- mentais de seu sistema, as duas caracteristicas her- dadas das estruturas dos jogos anteriores. Neles, como jé foi dito, a repeti¢ao dos jogos de exercicio corresponde A regularidade, gracas @ qual esses jo- gos se constituem em formas democraticas de inter- ‘cambio social entre criangas ou adultos. Regularidade Porque 0 “como fazer do jogo" € sempre 0 mesmo, até que se modifiquem as tegras. Na condicao de in- variante do sistema, pede consideragao reciproca de todos os participantes do jogo, sendo a transgressao das regras uma falta grave, que perturba o sentido do jogo (Macedo, 1994). Os jogos de regra herdam dos jogos simbélicos as convengdes, ou seja, a idéia de que as regras so combinados arbitrdrios que o inventor do jogo ou seus proponentes fazem e que 05 jogadores aceitam por sua vontade. Mas ha algo que é original e proprio dessa es- trutura de jogos: 0 seu carter coletivo. Ou seja, nes- sa estrutura s6 se pode jogar em fungao da jogada do outro. Por exemplo, em uma partida de xadrez, os movimentos da pega de um jogador sao feitos em fun- ‘g40 dos movimentos de seu adversério. Os jogadores, esse sentido, sempre dependem um do outro. Por isso. a idéia de assimilagao reciproca. Reciproca pelo sentido de coletividade ¢ de uma regularidade inten- cionalmente consentida ou buscada, e ainda pelas convengées que definem 0 que ambos os jogadores podem, ou nao, fazer no contexto do jogo. Vale a pena repetir: nos jogos de regra, 0 valor lédico das ages continua tendo oma importancia fun- damental. Esta é a primeira pergunta que se faz “quer jogar?". E, em goral, se é livre para dizer sim ‘ou nao. Mais que isso, 0 prazer funcional para os que dizem sim continua importante a0 longo de toda a partida. Nos jogos de regra, as convengées conti- nuam, igualmente, tendo uma importancia fundamen- tal. O tempo, o espaco, os critérios de ganho ou per- da etc. sao limites, ainda que arbitrarios (porque po- deriam ser outros), que reguiam as condutas recipro- cas dos partcipantes do jogo. Qual 6 a importancia dos jogos de regra na cons- trugdo do conhecimento na escola? De um ponto de vista funcional, essa forma de jogo muito importante porque atualiza, mas com um sentido simbélico e ope- ratério, 0 jogo de significados que a crianga conheceu rho primeiro ano de vida. Jogo de significados porque, para ganhar, 0 jogador tem de competir em um con- texto no qual, por principio, seu oponente tem as mes- mas condig6es. Compreender melhor, fazer melhores antecipagées, ser mais rapido, cometer menos erros ‘ou errar por Ultimo, coordenar situagdes, ter condutas estratégicas etc. sao chaves para o sucesso. Para ga- nhar, 6 preciso ser habilidoso, estar atento, concen- trado, ter boa meméria, abstrair as coisas, relaciona- las entre si todo o tempo. Por isso, o jogo de regra 6 um jogo de significados em que o desafio é ser me- lhor que si mesmo ou que 0 outro. Desafio que se renova a cada parlida porque vencer uma nao é su- ficiente para ganhar a proxima. Assim, os jogos de egra em uma perspectiva funcional valem por seu ca- rater competitivo. Vale a pena, pelas criticas que séo feitas a ela, analisar um pouco a competi¢ao — caracteristica fun- ional dos jogos de regras. Tais jogos — dizem — valorizam 0 espirito competitive (vencer a qualquer preco) @, por extensdo, a individualidade. A competi- gao em si ndo 6 ma, nem boa: caracteriza uma forma de problematizagao universal na vida. Apenas carac- teriza qualquer situagao em que dois (ou mais) sujei- tos querem uma coisa ou dela necessitam ao mesmo tempo, de tal forma que por causa desses limites (56 hé uma coisa) um a obteré @ 0 outro nao. Ou seja, competir (do latim competere) significa pedir simulta- neamente a mesma coisa; no jogo de regra os joga- dores fazem ao mesmo tempo um Gnico pedido: ga- har. E assim igualmente na vida. Os filhos, por exemplo, competem pelo amor de seus pais, pela atengio de sua mae. E mesmo aquela que tem um filho Unico teré esse problema, porque, com ele, com- petirao 0 trabalho da mae, seus cuidados pessoais, as outras pessoas etc. ‘A competigio caracteriza-se por uma estrutura as~ simétrica, de diferenca, porque nesse sistema nao se tem um para cada um, ou tudo para todos. Caracte- fiza-se — isto sim — por uma relagao de um para muitos. E, como as estruturas simétricas ou de igual- dado, 6 uma estrutura universal: descreve, como dis- semos, uma forma de problematizagao das coisas em um sistema. No entanto, 0 que modifica 0 sentido da Competigo em diferentes contextos ¢ 0 modo como se reage a ola, 6 0 que se faz diante dela. Em uma comunidade indigena, por exemplo, em uma situagao nna qual se tem um barco que comporta apenas trés pessoas, quando oito necessitam passar ao outro lado de um rio, a forma de resolver esse problema é, com certeza, muito diferente daquela de um sistema capi- talista. Assim, 0 que se critica ndo é a competicao em si mesma, mas as formas culturais, polticas etc. de se reagir diante deta Os jogos. Outro significado funcionalmente importante para “a competicao ¢ 0 da competéncia, da habilidade pes- soal ou talento para enfrentar problemas e resolvé-Ios da methor forma possivel. Ser competente em uma si- tuagéo desafiadora, em que, por suas caracteristicas, 86 um lado pode ganhar, nao significa ser individua- lista, ao menos nos jogos de regra, Como sabemos, nesses jogos, as condigdes, as regras etc. so as mesmas para todos: que o melhor seja 0 vencedor. E se a competéncia for a mesma, que seja vencedor quem tiver mais sorte. A competéncia é 0 desafio de ser melhor do que si mesmo. Nesse sentido, 0 outro de quem se ganha é apenas uma referéncia para 0 vencedor. Porque se um sempre ganha, 0 outro nao serve mais como referéncia; nesse caso, procura-se um adversario mais. forte, uma situacdo mais dificil para té-la como um espelho que reflita 0 quanto ainda © vencedor pode melhorar. Nessa perspectiva, 0 ga- har e 0 perder s4o sempre ganhar @ perder de si proprio. Mas, se alguém perde porque o adversario esta trapaceando, 0 jogo continua valido para ele, @ do para o trapaceiro, para quem o jogo é outro. ‘A importéncia estrutural dos jogos de regra cor- fesponde a seu valor operatério. Nessa estrutura de jogo, fazer, no sentido de conseguir (réussir), e com- preender (comprendre) so como faces da mesma moeda (Piaget, 1978). Por isso a importancia da as- similagdo reciproca de esquemas. Porque aqui para ganhar sao inevitaveis a coordenacao de diferentes Pontos de vista, a antecipagao, a recorréncia, o ra- ciocinio operatério. Por isso, o fim — ganhar dentro das regras — tem de ser coordenado com os meios (regras do jogo, competéncia etc). Quanto a esse as- ecto, costumamos cometer um equivoco com os jo- gos de regra. Vejamos 0 de acontece no jogo de xa- drez: uma coisa é conhecer as regras para movimen- tar as pecas (convengées do jogo), outra coisa é ga- nhar nesse jogo. Quem conhece as regras e nunca vence nao as conhece operativamente. Sabe sobre o jogo em um sentido simbélico, mas nao operatorio, CONSIDERAGOES FINAIS Os jogos simbdlicos contém, como parte, as caracte- risticas dos jogos de exercicio, e os jogos de regra contém, igualmente como parte, as caracteristicas de ambos, O mesmo ocorte no sentido oposto. Os jogos de exercicio supdem regras e simbolos como elemen- tos de sua estrutura. Porque quando alguém repete elo prazer funcional, pelo valor ldico, esta 6 a regra: © prazer funcional, a repetigao pela repetigao, a con: quista do significado por si mesmo. & quem diz sig- nificado diz conquista simbélica, interpretagao, jogo de signiticagao, forma de compreender as coisas segun- do sua pratica, segundo sua necessidade e possibili- dade. Na estrutura dos jogos simbdlicos, os aspectos fundamentais dos jogos de exercicio estado presentes Cad. Pesq. 1.93, maio 1995 como parte, como elemento, porque quando uma crianga brinca de boneca, simula sua casa; brincando com bonecas exercita papéis sociais, transforma as coisas, exercitando-as. Ou seja, no jogo simbélico ha exercicio, prazer funcional, repetigao. Ao mesmo tem- po, a regra implicita no jogo simbdlico ¢ a da simu- ago ou analogia: “Isso nao ¢ isso mas eu jogo como se fosse”. Esta 6 a regra: tatar A como B, ou vice- versa. Essa é a condi¢ao. Ou seja, quando se joga simbolicamento, as regras e os exercicios fazem parte constituinte do jogo simbélico. 0 mesmo vale, como Ja disse, para os jogos de regras, porque jogar com regras significa exercitar, repetir muitas vezes. Para quem aprecia 0 xadrez, uma vida é pouco para todas as partidas que gostaria de jogar. Mas, igualmente, esse jogo ha simbolos, convengdes para os movi- mentos dos cavalos, pedes, damas etc.; ha combina- dos fundamentais para as regras dentro das quais, certamente, se ganha ou se perde a partida. Os jogos so importantes na escola, mas antes disso sao importantes para a vida. Por que se joga? A vida, do nascimento & morte, propde-nos questdes fundamentais sobre nosso corpo, diferengas sexuais, enfermidades, sobre 0 porqué de nosso pai gostar mais de um fitho que de outro ete. Entao, como for- mular respostas quando se é crianga, ou quando se homem primitivo, sem tecnologia, com poucos re- cursos? Ou quando a vida é dura e a sobrevivéncia 8 uma ameaga constante? Os jogos séo respostas que damos a nés mesmos ou que a cultura da a per- guntas que ndo se sabe responder. Joga-se para nao morrer, para nao enlouquecer, para manter a satide possivel em um mundo dificil, com poucos recursos pessoais, culturais, sociais. Em nossos dias, mesmo ‘com tanta tecnologia, com uma ciéncia que explica, que controla cada vez mais as doengas, os problemas alimenticios etc., 0 espago do jogo continua sendo muito importante. Que sao as artes, a filosofia, as ex: pressdes religiosas, a politica etc. sendo formas de jo- gos (Caillois, 1990)? No jogo pode-se encontrar respostas, ainda que provisérias, para perguntas que nao se sabe respon- der. A explicagao cientifica, também proviséria, tem por vezes a melhor resposta, mas nem sempre esta 6 acessivel. Ou seja, existem assuntos que a ciéncia explica mas que ndo temos competéncia ou formagao, ara compreender. © jogo pode preencher nas crian- gas esse vazio. Nos adultos também: 0 trabalho, 0 esporte, a vida cultural, a politica nao so, na verda- de, complexos sistemas de jogos? Como precisar a importancia do jogo na escola? Como pensar 0 jogo na construgdo do conhecimento na escola? Gostaria de recordar, uma vez mais, que a funcdo eterna da escola é instrumental, ou seja, os adultos mantém os filhos na escola em fungao do fu- turo cidadao que, também gragas a ela, eles deverdo se tomar. Freqlentamos a escola para aprender a ler, escrever, fazer contas, porque as profissées adultas ecessitam desses conhecimentos. Mas, para a crian- ga essa funcao instrumental da escola é muito abs- trata, teérica, tem um sentido adulto por vezes muito distante dela. Jé 0 conhecimento tratado como um jogo pode fazer sentido para a crianga. Nao se trata de ministrar os conteudos escolares em forma de jogo. 1ss0 pode ser interessante, mas nesse momento nao € 0 que se esta defendends. Trata-se de analisar as felagdes pedagégicas como um jogo, em que os, jogadores nao tém consciéncia de que estao jogando, de que fazem, muitas vezes, um mau jogo, um jogo contra 0 conhecimento. A escola propde exercicios, ‘mas thes tira 0 sentido, 0 valor Iodico, 0 prazer fun- ional. Ensina convengdes, simbolos, matematicas, linguas etc., mas nao ensina as criangas a “ganha- em" dentro dessas convengdes. Principalmente se essas criangas sao pobres e poderao concorrer de verdade no futuro mercado de trabalho. Ou seja, pen- 50 que as matematicas, as linguas etc. so também jogos cujas regras nés ensinamos de forma esvazia- da, portanto, sem valor. ‘Como fazer para recuperar 0 sentido do jogo na escola e na vida? Proponho que, para isso, a escola adote uma postura menos rigida, que esquega um Pouco sua fungao instrumental. Por que ndo transfor- mar a escola em um espaco de jogo, no qual crian- (988, professores, qual filésofos, pudessem recuperar a possibilidade de um pensar seguindo boas regras? Ou seja, seria importante que se permitisse na escola que os meios, ao menos por algum tempo, fossem (8 préprios fins das tarefas; que se permitisse as criangas @ aos professores serem criativos, que tives- sem prazer estético e conhecessem 0 gozo da cons- trugdo do conhecimento. Alain, segundo Baudrillard (1992), dizia: “Quem joga jurou". Ou seja, as criangas quando jogam sao séfias, sao intensas, entregam todo seu corpo, toda sua alma para 0 que estéo fazendo. Jogar com regras 6 obedecer a algo que foi previamente aceito. Na es- cola, por vezes, 0 Unico jogo que se pratica 6 0 da transgressao. Mas, no jogo “para valer” 0 desatio no € a transgressdo, e sim a entrega ou obediéncia, por- que se aceitou jogar, livre @ convencionalmente, e com isso ganhar ou perder dentro de certos limites (Macedo, 1994). Por que ndo se pode fazer assim na escola? Por que nao possibiltar que nela as criangas ‘sejam qual fildsofos, artistas ou matematicos? Por que ao possibiltar que aprendam com seriedade, mas também com leveza e prazer; sem medo, mas com jdbilo? Jogar é passar por uma experiéncia fundamen- tal. Jogar 6 apostar na vida. Porém, nesse jogo, ga- 10 nhar nao 6 nada; perder tampouco (Caillois, 1990). Nesse sentido, interpretar as coisas como um jogo significa preparar-se simbolicamente para uma vida talvez menos hipécrita © jogo 6 uma prova de intimidade ¢ por isso de ‘conhecimento. Isso nos ensinam as criancas, as po- pulagées primitivas, os artistas, os cientistas © nds mesmos em muitos momentos. Quem joga pode che- gar a0 conhecimento, pelas caracteristicas do jogo, pelos exercicios, simbolos regras. Mas os adultos muitas vezes na vida utiizam os jogos contra a inti midade, como formas de ndo entrar nela ou de con- trolé-la. Por isso, tantas vezes a hipocrisia no jogo da vida. Porque nela frequentemente utiizamos 0 jogo para nao softer, para mentir, para fingir, para evitar © éxtase da derrota ou vitéria, que nada significam porque quando alguém ganha ou perde movimenta algo que s6 tem valor em si, Por isso 0 jogo tem um sentido espiritua, flosctico, cognitivo, cultural, simbé- lico, operaterio. Podemos ter dois tipos de reagao ante o estran- geiro ou 0 desconhecido. Ha uma forma primitiva, até ‘compreensivel quando nao se tem tantas técnicas ou recursos, que 6 considerar 0 desconhecido como um inimigo que se mata, que se destréi antes mesmo de entrar em contato com ele. Ou seja, "mato 0 desco- nhecido para ndo correr o risco de ser morto por ele”. Qs jogos nos ensinam uma outra forma de reagir ao adversério ou desconhecido, que é querer saber so- bre ele, pensar antes dele @ melhor que ele, toma-lo como uma referéncia. Muitas vezes, em nossa hipo- crisia intelectual dizemos: “Nao conhego Piaget endo gosto dele”. Ou seja, reagimos de uma forma negativa (como no primeiro sentido). Nao sei se as escolas fazer o jogo do conheci- mento com 0 qual estéo comprometidas, levando em conta os aspectos aqui analisados. Se assim fosse, a possibilidade de os alunos aprenderem seria, talvez, bem maior. Por isso, defendo o valor psicopedagégico do jogo. Porque pode significar para a crianga uma experiéncia fundamental de entrar na intimidade do conhecimento, da construgéo de respostas por meio de um trabalho Iidico, simbdlico e operatério integra- dos. Porque pode significar para a crianga que conhe- cer & um jogo de investigacéo — por isso de produ- ‘go de conhecimento — em que se pode ganhar, per- der, tentar novamente, usar as coisas, ter esperancas, softer com palxo, conhecer com amor, amor pelo co- nhecimento no qual as situagées de aprendizagem so tratadas de forma mais digna, filosofica, espiritual. Enfim, superior. Os jogos. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS: BAUDRILLARD, Jean. Da sedugtio. Campinas: Papirus, 1992. PIAGET, Jean, La Naissance de Vinteligence chez enfant. Neu- ‘chatel/Parls: Delachaux et Niesté, 1036. CAILLOIS, Roger. Os Jogos ¢ os homens: a mascara @ a ver tigem. Lisboa: Cotovia, 1990, _____-La Formation du symbole chez Ventant: imitation, jeu et ‘vs, image et représentation. Neuchatel/Paris: Delachaux et GRANGER, Gilles-Gaston. Por um conhecimento fiosdtico, Nestlé, 1946. Campinas: Papirus, 1989, ‘Sagesse et ilusions de (a philasophie. Pars: PUF, 1966. MACEDO, Lino. Ensaios construvistas, So Paulo: Casa do Fazer @ compreender. Sao Paulo: Melhoramen- Psicélogo, 1994, TosiEDUSP, 1978. Cad. Pesq. n.93, maio 1995 "

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