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A Morte de Mao SESE — Presidente, o senhor me chamou? Mao se esforcou para abrir os olhos e mover os labios. A méscara de oxigénio €scorregara de seu rosto e ele lutava para respirar. Inclinei-me sobre ele. Tudo o que deu para ouvir foi “ah... ah... ah...”. Sua cabeca estava boa, mas havia perdido a fala. Eu era o médico particular do presidente, no comando da equipe médica (16 dos melhores médicos da China ¢ 24 excelentes enfermeiras) que tentava salvar sua vida. Por mais de dois meses — desde o dia 26 de junho de 76, quando ele sofreu seu segundo enfarte do miocérdio — est4vamos de plantio noite e dia. Oito enfermeiras e trés médicos ficavam permanentemente ao lado dele, enquanto dois outros médicos monitoravam o eletrocardiograma. A troca de turnos ocorria a cada oito horas. Eu estava sempre dispontvel, dormindo intermitentemente umas trés ou quatro horas por noite. Meu escritério era um cubiculo ao lado da enfermaria de Mao. Os chineses nfo tinham sido informados de que seu lider estava doente. S6 podiam ter notado a decadéncia fisica pelas poucas fotos de seus raros encontros com dignitérios estrangeiros.! A Ultima delas fora a fotografia de Mao recebendo o lider do Laos, Kaysone Phoumvihan, em maio de 76. A imprensa insistia em dizer que ele estava bem, mas a foto Provava que o presidente havia envelhecido dramaticamente. Ainda assim, centenas de milhdes de 39 40 / A Vida Privada do Camarada Mao pessoas iniciaram aquela manhi de 8 de setembro de 76 cantando em unjssono: “Que viva dez mil anos, presidente Mao!” Mas aqueles que estavamos de servigo na enfermaria naquela noite sabfamos que o fim era apenas uma questao de horas, talvez de minutos. Sua satide vinha falhando desde junho. Dois membros do Politburo do Partido Comunista, escolhidos por posigSo € inclinag6es politicas (0 vice-presidente moderado Hua Guofeng e © radical Wang Hongwen; e o membro radical Zhang Chunqiao com 0 moderado Wang Dongxing) também se mantinham em vigilia 24 horas por dia, revezando-se a cada 12. Hua Guofeng, responsdvel-mor dos esforcos pela vida de Mao, era genuinamente leal a ele, ¢ profundamente preocupado com seu conforto e sua satide, acreditando que realmente estavamos fazen- do tudo ao nosso alcance para salvar a vida do presidente. Quando prescreviamos procedimentos médicos novos, ¢ as vezes des- confortdveis (como passar um tubo do nariz até o est6mago para poder alimentar o docntc), Hua Guofeng era 0 Yinico dentre os Hderes do partido disposto a testar 0 processo primeiro em si mesmo. Eu gostava de Hua Guofeng. Sua integridade e sincerida- de eram raras no meio da corrupcao e da podridao da elite do Partido. A primeira vez em que vi Hua Guofeng foi em 59, durante o Grande Salto para a Frente, quando acompanhei Mao numa visita 4 sua cidade natal de Shaoshan, na provincia de Hunan. Guofeng era © primeiro-secretério do Partido em Xiangtan, a prefeitura onde se situava a vila em questo, e Mao gostava imensamente dele. Dois anos mais tarde, enquanto os funciondrios locais insis- tiam em fingir que a produgao agricola estava aumentando — mesmo com 0 Grande Salto tendo jogado o pais numa depressao econémica — Hua teve a coragem de dizer que “o povo esté emagrecendo, o gado estd emagrecendo, até a terra estd emagre- cendo. E como ¢ que nés falamos em aumento na producao?” Mao me disse entao: —Ninguém fala a verdade como Hua Guofeng. Hua chegara aquela posicao, em abril de 76, como um primei- ro vitorioso na luta pelo poder que se desenrolava 4 medida que a morte do Ider se aproximava. Em janeiro daquele ano, Mao tinha A Morte de Mao / 41 SSS SSS ee indicado Hua como bremier executivo em sucessio ao falecido Zhou Enlai como chefe do Conselho de Estado, encarregado dos assuntos didtios do governo, No comego de abril, centenas de milhares de pessoas se aglomeraram na Praca Tiananmen para chorar pela morte de Zhou ¢ protestar contra a politica dos lideres tadicais, tais como a mulher de Mao, Jiang Qing, e seus amigos de Xangai: Zhang Chungiao, Yao Wenyuan e Wang Hongwen. As manifestacdes foram chama- das publicamente de “contra-revolucionérias” ¢ Mao aplacou a fitria dos radicais expurgando o moderado Deng Xiaoping, sob a acusacao de ter fomentado a Provocacao. Por outro lado, Para manter 0 equilfbrio de forcas, desapontou os radicais nomeando Hua como primeiro vice-presidente do Partido. Guofeng foi, Portanto, confirmado tanto como chefe de governo quanto como sucessor de Mao na lideranga do PC, 0 que me deixou muito feliz. Achei que ele tinha escolhido a Pessoa certa para dirigir o Estado € o Partido. Até 0 cozinheiro de Jiang Qing ficou maravilhado, chegando a comentar que até que enfim o presidente havia tomado uma decisao correta. Contudo, os radicais o acusavam de se inclinar Para a direita, O resultado foi que Hua decidiu que nao poderia mais conti- nuar. Eu estava na piscina de Mao, no dia 30 de abril, quando ele contou ao chefe que os ataques dirigidos contra ele tornavam imposstvel que continuasse a servir. Depois do encontro, Hua me falou da conversa que tiveram ¢ me mostrou trés bilhetes que o Presidente havia escrito. Mao rabiscara: “Com vocé no comando, minha cabeca est4 tranqliila.” “Aja de acordo com as decisoes tomadas.” “Nao fique nervoso, Tenha calma.” Essa béngdo Saratujada tornou-se o documento que legitimou a posse de Hua. hii Hil 42 | A Vida Privada do Camarada Mao tinha se elevado de 86 por 66 para 104 por 72 eo pulso se firmara um pouco, mas eu sabia que a melhora seria passageira. Hua Guofeng chamou-me de lado, logo depois de adminis- trada a injegao. — Dr. Li — sussurrou, enquanto Zhang Chungiao e Wang Dongxing faziam forca para ouvir — ainda ha alguma coisa que o senhor possa fazer? Nao falei nada. Hua sabia que nfo havia esperanga ¢ cu nao tinha o que dizer. Ainda nao conseguia pronunciar a palavra “morte”. Calado, fiquei olhando para ele. O ar estava gélido. O barulho do respirador artificial era o tinico som que se ouvia no quarto. — Fizemos tudo o que poderfamos fazer — murmurei, rouca- mente. Hua se virou para Wang Dongxing, diretor do Escritério Geral do Comité Central encarregado dos assuntos do Partido ¢ hé muito tempo chefe dos guarda-costas do presidente. Wang tinha estado com Mao pela primeira vez em Yanan e por varias décadas tinha sido 0 responsdvel pela seguranga presidencial. Poucos homens tiveram um contato mais longo ou t4o préximo a Mao. Hua o instruiu: — Pega A camarada Jiang Qing e a todos os membros do Politburo em Beijing para virem aqui imediatamente. E notifique os membros do Politburo nas outras partes do pafs a se apre- sentarem em Beijing. Wang se virou para sair. Quando jé estava indo embora, uma enfermeira veio correndo até mim. — Dr. Li, Zhang Yufeng diz que o presidente quer falar com o senhor. Corri imediatamente para o lado dele. Zhang Yufeng, que um dia fora atendente no trem especial que Mao usava para viajar pela China, agora era secretdria confidencial ¢ hd muito tempo sua amante mais proxima. Vi Zhang ¢ Mao juntos pela primeira vez num baile em Changsha onde ele era 0 anfitrido. Ela era uma garota de dezoito anos, de olhos grandes e redondos, aparéncia inocente « uma belissima pele. Tirou o presidente para dangar. E vi quando ele A Morte de Mao | 43 levou a menina escancaradamente da festa para sua hospedaria, onde passaram a noite juntos. A relagdo fora as vezes tumultuada e Mao tivera varias outras mulheres em sua vida. Mesmo agora duas jovens bailarinas traba- Ihavam extra-oficialmente como enfermeiras, limpando seu corpo ¢ dando-lhe de comer. Mas Zhang Yufeng esteve com ele por mais tempo e, embora tenha ficado velha e comegado a beber, ainda tinha sua confianga. Em 74, depois que Xu Yefu, a antiga secretdria confidencial de Mao, foi internada para se tratar de um cdncer no pulmfo, Zhang assumiua tarefa de mandar e receber os numerosos documentos que o presidente lia e despachava todos os dias. E quando sua visdo falhava, era ela quem os lia para ele. No final daquele ano, foi nomeada oficialmente sua secretdria confidencial por Wang Dongxing. Como médico de Mao, eu tinha acesso livre a ele, mas todos os outros tinham que passar primeiro por Zhang. Desde 74, até sua esposa, Jiang Qing, e membros do alto escalao do Politburo tinham de passar por ela, que tratava mesmo os lideres mais altos com o mais absoluto desdém. Um dia, em junho de 76, Zhang Yufeng estava cochilando quando Hua Guofeng chegou para visitar 0 presidente, e os funciondrios de plantao tiveram medo de acordé4-la. Duas horas depois, Zhang ainda nao tinha acordado, e Hua, que na lideranga do partido sé ficava atrds de Mao, saiu sem ver seu superior. Antes disso, naquele mesmo ano, Deng Xiaoping estava sendo atacado politicamente e ficou doente, sem contato coma famflia. Sua filha mais nova, Deng Rong, mandou uma carta para Mao pedindo permissao para ficar ao lado do pai. Zhang nao entregou a carta ao presidente e, conseqiientemente, Deng Rong ndo teve permiss4o para ir ao hospital. Grande parte de seu poder vinha do fato de que ela era a tinica pessoa capaz de entender o que ele dizia. Tinha de traduzir até mesmo para mim. —Dr. Li—falou, enquanto eu me colocava ao lado de Mao — o presidente quer saber se ainda hd alguma esperanca. Com um certo sacrificio, Mao confirmou e esticou o brago direito, pegando minha mo. Sua mio estava mole quando lhe tomei o pulso, por sua vez fraco e dificil de achar. Seu rosto redondo, to conhecido dos chineses, tinha murchado ¢ sua pele 44 | A Vida Privada do Camarada Mao estava acinzentada. Os olhos vazios tinham perdido o brilho habitual. A linha do eletrocardidgrafo ainda se mexia. Tinhamos transferido Mao para este quarto no Prédio 202 de Zhongnanhai hé seis semanas, nas primeiras horas do dia 28 de julho de 76, quando Beijing, assim como a maior parte da China, fora atingida por um terremoto que destruiu completamente a cidade de Tangshan, cerca de 150 quilémetros a leste da capital. Mais de 250 mil pessoas morreram na hora. Em Beijing, pouca gente morreu, mas o estrago foi grande e o medo de novos tremores levou milhdes de habitantes a passarem as semanas seguintes morando em tendas improvisadas, armadas nas ruas. A cama de Mao, no esttdio ao lado da piscina interna, para onde tinha se mudado no inicio da Revolugao Cultural, fora sacudida violentamente e decidimos transferi-lo para um local mais seguro. O Prédio 202 era a tinica opcao. Ligado a piscina por um corredor, fora construfdo especialmente para o presidente em 74, exatamente para resistir a grandes terremotos. Naquela noite, depois da mudanga, ocorreu mais um grande tremor durante uma tempestade. Contudo, praticamente nao o sentimos no 202. Alids, o mundo poderia ter desabado naquele momento que eu nio perceberia, de t&o concentrado que estava em salvar a vida do presidente. Agora, Hua Guofeng, Zhang Chungiao, Wang Hongwen e Wang Dongxing se dirigiam silenciosamente para a cama de Mao Por trds da diviséria, eu podia ver outras pessoas entrando devagar. Havia muito movimento devido a troca de turnos. Enquanto eu tomava o pulso, com quatro membros do Polit- buro postados atrés de mim, Jiang Qing entrou de repente, gritando: — Ser4 que alguém pode me dizer 0 que est4 acontecendo? Jiang Qing era a quarta mulher de Mao, se contarmos o casamento arranjado por seus pais quando era adolescente, que cle se negou a aceitar.” Estava casado com Jiang Qing desde 1938, em Yanan. Parece que ld ela se dava bem com as pessoas. Mas a partir de 49, cansada de sua vida ociosa, a esposa do lider m4ximo do pais comecou a ficar cada vez mais irascivel e exigente. E sé viria a se recuperar na Revolucéo Cultural, quando foi finalmente A Morte de Mao | 45 nomeada membro do Politburo e aproveitou a oportunidade para levar a cabo suas vendetas pessoais. Marido e mulher levaram vidas separadas durante anos, mas Mao nunca quis se divorciar, pois estaria livre para se casar outra vez — situacao que ele preferia evitar. Durante a Revoluc’o Cultural, Jiang Qing se mudara para uma das enormes vilas do complexo de Diaoyutai, mas acabou voltando a Zhongnanhai em junho, para a Camara da Létus de Primavera, quando do primeiro ataque cardfaco do marido. Nao foi facil para ela aceitar o dominio que Zhang Yufeng exercia sobre ele, mas quando finalmente aceitou o inevitvel, passou a cortejar a propria Zhang como forma de se comunicar com Mao. Jiang também tinha dificuldade em aceitar a doenca e morte iminente do marido. Ela se dividia entre o medo de que 0 presidente fosse sua tinica fonte de poder e a expectativa de que, com a sua morte, pudesse ser escolhida para assumir seu lugar. A doenga e a instabilidade da situag4o a atormentavam. Hua Guofeng procurou acalmé-la: — Camarada Jiang Qing, o presidente estd falando com Dr. Li exatamente agora. Tentei confortar Mao, mesmo sabendo que nao havia es- peranga. Sua satide vinha piorando hé anos e o baque principal ocorrera por volta de setembro de 71, quando Lin Biao, entiéo vice-presidente do Partido, vice-presidente da Comissao para As- suntos Militares e o homem que Mao tinha escolhido como seu sucessor (0 lider que toda a China via como o companheiro de luta mais préximo do presidente), voltou-se contra ele e conspirou para derrubé-lo. Porém, acreditando que seus planos tinham sido des- cobertos, Biao tomou um aviao e fugiu com a mulher eo filho em direg&o 4 Unido Sovitica. No meio do caminho, 0 aviao ficou sem combusttvel € caiu nas proximidades de Undur Khan, na Mongélia, matando todos seus ocupantes. Esse episédio deixou Mao deprimido, desencan- tado e incapaz de dormir. Acabou ficando doente. E ainda estava mal, rebelando-se contra seus médicos € recu- sando qualquer tipo de tratamento em fevereiro de 72, poucas 46 | A Vida Privada do Camarada Mao semanas antes da histérica primeira visita 4 China do presidente Richard Nixon. Foi somente trés semanas antes da data marcada para Nixon chegar que Mao me deu ordem para comegar 0 tratamento. Seu estado de satide era tio grave que nem se podia cogitar de uma recuperagao completa. Quando Nixon chegou, o Ifder chinés ainda estava tio fraco que mal conseguia falar. Sua infeccio pulmonar ainda nfo tinha sido totalmente curada e ele ainda se via as voltas com uma congestao no coragio. Estava téo gordo que precisamos fazer um terno mais largo. Cumprimentei 0 presidente Nixon quando seu carro chegou a residéncia oficial eo conduzi ao esttidio particular, retirando-me entio para o corredor logo ao lado da sala de recepcao, de onde estava apto a ouvir claramente toda a conversa € pronto para intervir com um equipamento mével de socorro, se necessério fosse. Agora, aos 83 anos, seu corpo estava tomado de doencas. Os cigarros que fumou a vida inteira destruiram seus pulmoes € ele softia de crises freqiientes de bronquite, pneumonia ¢ enfisema. E enquanto as linhas bronquiais perdiam a elasticidade, sua tosse compulsiva partira as paredes do pulmfo esquerdo, deixando trés grandes sopros de ar e dificultando a respiracao. Ele conseguia aspirar, mas tinha dificuldade em expirar es6 se sentia bem quando se deitava do lado esquerdo, com 0 peso do corpo comprimindo as bolhas de ar e permitindo que seu pulmio direito, mais saudavel, fizesse a respiracdo. Muitas vezes ele sd conseguia respirar com a ajuda de uma méscara de oxigénio, ¢ em certas ocasies de emer- géncia tinhamos que confiar num respirador artificial americano, que Henry Kissinger nos enviara em 71, depois de sua viagem secreta 4 China. Em 74, foi diagnosticado que Mao nfo sofria do “Mal de Parkinson” — como tanto se especulou no Ocidente — mas de uma doenca motora neuronal rara, incurdvel ¢ fatal chamada “esclerose lateral amiotréfica”, ou “Mal de Gehrig”, como é mais conhecida no Ocidente. Na evolugao normal da doenga, as células nervosas motoras na medula e na coluna vertebral (que controlam os miisculos da garganta, lingua, faringe e da mao e perna direitas) degeneram-se e morrem, levando a atrofia muscular e posterior- mente a paralisia das partes afetadas. Enquanto a doenga progride, A Morte de Mao | 47 © paciente perde a capacidade de falar e engolir e tem de ser alimentado por uma sonda que vai do nariz até o estémago. Os musculos atingidos tornam-se intiteis, e a respiragao cada vez mais dificil, com 0 paciente travando uma batalha constante contra infecgdes pulmonares. Nao ha cura, nem tratamento efetivo, ¢ a maioria dos doentes morre em até dois anos apds 0 diagndstico A doenga do lider chinés evoluiu exatamente como os es- pecialistas haviam previsto. Mas nao era sé a esclerose lateral amiotréfica que o estava matando. Havia também o coracio, enfraquecido pela idade e pelas doengas crénicas no pulmao. Mao sofrera seu primeiro enfarte do miocdrdio em meados de maio de 76, no meio de uma discussao com Zhang Yufeng. O segundo foi a26 dejunho. E o terceiro, no dia 2 de setembro. Todos os médicos sabiam, embora nenhum ousasse dizer, que a morte era iminente O presidente, no entanto, continuava a lutar. — Est4 tudo bem, presidente — falei para ele, sua mao ainda na minha. — Vamos conseguir lhe salvar. Por um momento, os olhos de Mao pareceram contentes Pequenos reflexos cor-de-rosa apareceram devagar em sua face. Entao, ele expirou profundamente. Os olhos se fecharam. A mao direita soltou-se sem vida da minha. No eletrocardiégrafo, a linha ficou reta. Olhei as horas em meu reldgio. Eram dez minutos do dia 9 de setembro de 1976. Nao fiquei triste em vé-lo falecer. Por vinte € dois anos, eu estivera a seu lado, diariamente, acompanhando-o nos encontros, viajando aonde quer que ele fosse. Mais do que seu médico, eu 0 servira por todos esses anos como confidente politico e pessoal, mais proximo a ele do que qualquer outra pessoa, com a possivel excecao de Wang Dongxing. No comego, eu o tinha reverenciado. Ele era o redentor da China, o messias nacional. Mas em 76, essa ilusao jé tinha aca- bado. Meu sonho de uma nova China, onde todos fossem iguais e nao houvesse exploragio, tinha se estilhagado hé muito tempo. E nfo confiava mais no Partido Comunista, do qual ainda era membro. 48 / A Vida Privada do Camarada Mao — Uma era se acabou — foi o melhor que pude pensar, enquanto olhava a linha reta no eletrocardiograma. — O tempo de Mao se foi. Foi um pensamento répido. Na mesma hora, fui tomado de pavor. O que aconteceria comigo? Como médico do presidente, tinha vivido anos de medo constante. Olhando do corpo inerte ma cama para as expressGes das pessoas reunidas 4 sua volta, percebi que todos os outros naquele quarto também deviam estar procurando adivinhar seu destino. A vida dentro de Zhongnanhai sempre fora um tanto precria. Vi-me frente a frente com Jiang Qing. —O que vocés fizeram? — perguntou-me, na cara. — Vao ser responsabilizados. Sua acusagio n4o me surpreendeu. Jiang Qing via complés e conspirag6es até mas coisas mais inocentes. As dificuldades no nosso relacionamento comegaram vinte anos antes e, quatro anos atr4s, em 72, ela me acusara de ser um espiao. Hua Guofeng interveio, andando devagar até ela ¢ falando educadamente: — Todos nés ficamos aqui o tempo todo. Os camaradas da equipe médica, todos eles, deram o maximo de si. Wang Hongwen confirmou a afirmagao de Hua. — E verdade. Nés quatro ficamos aqui o tempo todo — comegou, seu rosto ficando vermelho. Hongwen era o membro mais jovem do Politburo ¢ muitas vezes era chamado sarcasticamente de “o foguete” — devido a sua escalada meteérica do posto de mero oficial de seguranga numa fabrica de Xangai para os mais altos escal6es de poder politico. Ninguém sabia explicar como Mao havia se apegado tanto aquele jovem, ou por que o teria promovido com tanta rapidez. Wang era alto, elegante e parecia inteligente, mas era tudo sé apartncia. Tinha pouca educagao —sé completara o gindsio — era ignorante e nem mesmo chegava a ser esperto. Nao tinha nada para contri- buir a lideranga da China. Em maio, quando o presidente sofreu uma séria crise de satide, Wang veio a mim com uma sugest’do de cura: queria que Mao comesse pérolas trituradas que j4 haviam chegado a Beijing. Bati o pé ¢ o lider nunca comeu as tais pérolas. Nos turnos em que devia dar plant4o, enquanto Mao se esvafa, A Morte de Mao | 49 Wang muitas vezes safa para cacar coelhos nas imediag6es do acroporto militar secreto de Xiyuan ou passava a maior parte do tempo assistindo a filmes importados de Hong Kong. Estou convencido de que nunca fora propriamente um homem bom, mas © poder o corrompera ainda mais. — A equipe médica nos mantinha informados de cada deta- lhe — disse, defendendo-se frente a Jiang Qing. — Nés sabfamos perfeitamente que... — Entio por que nao me informaram antes da situagao? — interrompeu Qing. Mas a verdade é que ela vinha recebendo relatérios constantes sobre o estado de satide do marido. Sua reagdo em geral era a de acusar os médicos de exagerar a situagao. Dizia que éramos burgueses e que s6 se devia aproveitar um tergo de nossas recomendagoes. Em 28 de agosto, quando foi avisada formalmente da gravidade da situacao, ela desafiou a todos nds partindo numa “viagem de inspeco” para Dazhai, o modelo nacio- nal de organizacio agricola, do qual era uma ferrenha defensora. Hua Guofeng chamou-lhe de volta a 5 de setembro. Ela nem sequer perguntou sobre a satide do marido. Disse que estava cansada. No dia 7 de setembro, a satide do presidente entrou em estado grave e jd se esperava sua morte para qualquer momento. S6 af Jiang Qing veio ver a equipe médica. Ela caminhou pelo quarto cumprimentando a todos, médicos e enfermeiras, ¢ repetindo para cada um: “Vocé deve estar muito contente. Vocé deve estar muito contente.” Parecia estar convicta de que assumiria o poder quando © marido falecesse e achava que ficarfamos contentes com seu comando. Os outros médicos, vendo-a pela primeira vez, ficaram abismados com sua falta de sensibilidade. Wang Dongxing comen- tou comigo: — Nao devia ser tao espantoso assim. Jiang Qing pensa que a Unica coisa que a separa da instancia maxima do poder ¢ 0 presidente. Ela estava esperando ele morrer. A luta pelo poder ganhou forcga enquanto Mao se esvafa e aumentou antes que seu corpo esfriasse. Jiang Qing era a lider da facgao radical, apoiada por Zhang Chungiao, Wang Hongwen, Yao Wenyuan ¢ pelo sobrinho do presidente, Mao Yuanxin. Zhang Chungiao era um tedrico de 50 / A Vida Privada do Camarada Mao esquerda que morava em Xangai ¢ tinha sido um dos maiores expoentes da Revolugio Cultural. Costumava dizer que “sementes socialistas sio melhores que trigo capitalista”. Agora, com a explo- so de Jiang Qing, ele andava de um lado para o outro no quarto, mios nas costas € olhos no chao. O sobrinho de Mao perambulava triste pelo quarto, como se procurasse por alguma coisa. Mao Yuanxin era filho do irmao mais novo do presidente, Mao Zemin, que fora executado pelo gover- nador da provincia de Xinjiang, noroeste da China, durante a II Guerra Mundial. O referido governador, Sheng Shicai, no prin- cfpio tinha acolhido Zemin sob sua guarda, mas depois mudou sua posi¢ao, de aliado da Uniao Soviética e do Partido Comunista Chinés, para apoiar Chiang Kai-shck ¢ o Guomindang depois da invasio da Unido Soviética pelas tropas alemas. A mulher de Mao Zemin entio foi presa também e Yuanxin nasceu na prisdo. Quando sua mie se casou de novo, Mao Zedong assumiu a responsabilidad de cuidar do sobrinho, trazendo-o para Zhongnanhai em 49, embora 0 visse muito pouco. Eu vira Yuanxin crescer. Quando crianga, nao se dera bem com Jiang Qing. Mas tinha vinte ¢ poucos anos quando a Revolugao Cultural eclodiu em 66 ¢ ligou-se aos rebeldes. Escreveu a0 presidente desculpando-se pelos antigos confrontos com sua es- posa e anunciou que estava passando para 0 lado dela. Hoje, aos trinta e poucos anos, Yuanxin fora nomeado comissdrio politico da Regifo Militar de Shenyang, nordeste da China, e em fins de 75, quando Mao ficou doente demais para participar das reunides do Politburo, Yuanxin comegou a representé-lo ea servir de ponte entre o presidente ¢ os altos escaldes do partido. Possufa conside- rdvel poder e também a confianga de Jiang Qing. Enquanto médicos e enfermeiras baixavam a cabega de terror ante a explosio da primeira-dama, Wang Dongxing estava absorto numa conversa com seu subordinado Zhang Yaoci, comandante do Corpo da Guarnicao Central. A animosidade entre Wang e Jiang Qing j4 vinha de longa data. Wang nao tinha medo da mulher do presidente e nao tomou conhecimento de sua fiiria. Ele acumu- lara muitos postos e era homem de grande poder. Nao sé era o chefe do Escritério Geral do PC, como também servira por muitos anos como diretor do Biré Central da Guarda e era secretério do A Morte de Mao | 51 Partido no Corpo da Guarnigio Central, encarregado de proteger os lideres do PC e proporcionar seguranga as suas residéncias e escritérios. E até 4 Revolucao Cultural, também tinha sido vice- ministro do Ministério da Seguranga Publica. Zhang Yaoci, assim como Wang Dongxing, era um veterano do Partido e participante da Longa Marcha, e ambos eram da provincia de Jiangxi. Como funciondrios da seguranga, tinham muito o que planejar. O corpo de Mao seria exposto ao publico no Grande Salo do Povo. Dezenas de milhares de pessoas passariam por ali para prestar sua Ultima homenagem e a seguranga teria de ser reforcada. De repente, o rosto de Jiang Qing se desanuviou. Comegou a ser simpatica, talvez por ter chegado 4 conclusao de que o grande obstdculo para chegar ao poder havia sido afastado, que em breve assumiria a presidéncia. — Muito bem — admitiu ela — todos vocés trabalharam muito. Obrigada por tudo. Virando-se para sua enfermeira, mandou que passassem o vestido de seda preto que tinha sido preparado para a ocasiao. Estava pronta para fazer o papel de vitiva. Hua Guofeng voltou-se para Wang Dongxing. Os dois sé tinham se entrosado mais recentemente. — Marque uma reunio do Politburo para j4 — instruiu. A maioria de nds jé estava se retirando quando Zhang Yufeng comecou a gritar: — O presidente morreu!!! O que seré de mim? Jiang Qing caminhou até ela, abragou-a amigavelmente pelo ombro e, sorrindo, pediu-lhe para que parasse de chorar. — Agora vocé pode trabalhar para mim — falou. As lagrimas de Zhang pararam imediatamente e ela abriu um sorriso. — Camarada Jiang Qing, muito, mas muito obrigada mesmo. — De agora em diante, nao deixe ninguém entrar nos aposen- tos do presidente. Recolha todos os documentos dele, ponha-os em ordem e traga-os para mim — ouvi Qing sussurrar. Depois, encaminhou-se para a sala de conferéncias, a duas portas da enfermaria de Mao, onde a reuniao do Politburo estava prestes a 52 / A Vida Privada do Camarada Mao comegar. Zhang Yufeng correu atrés, prometendo cumprir suas ordens. Zhang Yaoci saiu do quarto do presidente e veio até mim, visivelmente preocupado. Queria saber se alguém da equipe mé- dica tinha visto o relégio de Mao. — Que relégio? — O que Guo Moruo lhe deu durante as negociagées de Chongging. Mao nunca tivera o hébito de usar rel6gio — tinha seus préprios hordrios — mas o Omega suigo que Guo Moruo (autor, caligrafo, professor multifacetado, chefe da Academia Chinesa de Ciéncias até sua morte, em 78, amigo e, finalmente, “puxa-saco” do presidente) Ihe dera em agosto de 45 era de grande valor histérico, Os americanos tinham usado as negociagées de Chong- qing para incentivar o Guomindang ¢ os comunistas a apararem suas arestas e formarem um governo de coalizao. O fracasso das negociagées marcou a inevitabilidade da guerra civil e o fim da cooperacio entre o PCC e os Estados Unidos. — Est4vamos muito ocupados tentando salvar a vida do presidente —respondi. —Ninguém estava prestando aten¢ao num relégio, Por que vocé nao pergunta a Zhang Yufeng? — Eu vi Mao Yuanxin correndo de um lado para o outro, mexendo nas coisas. Deve ter sido ele. —Ninguém da equipe médica se atreveria a roubar — repeti. Zhang Yaoci correu de volta 4 enfermaria. Pouco depois, Wang Dongxing saiu do recinto onde a reunido do Politburo comecara e me chamou em particular para uma sala ao lado. O Politburo tinha acabado de decidir que o corpo de Mao teria de ser preservado por duas semanas para que 0 povo pudesse prestar as homenagens. Beijing ainda é bem quente em setembro ¢ eles queriam que comecdssemos logo com o trabalho para evitar que o cadaver se deteriorasse. Wang me pediu pressa. Nenhum de nés ousara tocar na questao dos funerais enquanto © presidente estava vivo, mas 0 pedido para preservar 0 corpo por algumas semanas nfo era surpresa, nem nos daria problemas. Enquanto eu safa para comecar os preparativos, um capitao do Corpo da Guarni¢ado Central me reteve e avisou, misteriosamente: — Dr. Li, é melhor se preparar. O Politburo esté em reuniao A Morte de Mao | 53 € acho que as noticias nao vao ser das melhores para o senhor. Se alguma coisa sair errado, nao vai ter como escapar. Até pouco antes, sentia-me como se uma desgraca estivesse pairando sobre minha cabega e fiquei surpreso pela mais completa paz que tomou conta de mim ao ouvir o comentédrio daquele soldado. Estava totalmente preparado para ser acusado da morte do presidente. ‘Venho de uma longa linhagem (pelo menos cinco geragées) de médicos. No final da dinastia Qing, durante o reinado da imperatriz Dowager Cixi (1835-1908), meu bisavé era tao respeitado, que fora chamado da provincia de Anhui para servir de médico na corte imperial. Outro de meus ancestrais cuidou do imperador Tongzhi (1856-74) e depois, também, da familia inteira. Conta a Jenda que o imperador Tongzhi era muito dado a escapadas do palacio imperial, fazendo-se passar por homem co- mum, para ir aos bordéis que pontilhavam as ruas estreitas de Beijing, ao sul da Cidade Proibida. Segundo a histéria da minha familia, meu bisav6 diagnosticou que o imperador estava com sifilis e a imperatriz Cixi ficou uma fera com o diagnéstico. Tirou um alfinete de jade que lhe prendia o cabelo e jogou-o no chao com desgosto, recusando-se a permitir o tratamento que meu bisavé prescrevia ¢ insistindo que o imperador, ao invés disso, fosse tratado de varfola. O imperador morreu e meu bisavé foi “des-cha- pelado”, perdendo seu titulo nobilidrquico, muito embora conti- nuasse a servir no hospital imperial. Ele morreu sem ser perdoado, de maneira que o chapéu que designava sua posicao de nobreza foi posto a seu lado no caixdo, e nao na cabeca. Uma parte da tradicéo da familia sobreviveu: meus ancestrais continuaram a trabalhar como médicos; mas a restricao que meu bisavé impés de nao mais trabalharmos para a corte foi mantida de geragao em geracio. Desde entao, nenhum de meus antepassados voltara a servir ao imperador. Mas ninguém podia recusar um chamado dos mais altos circulos do poder. Eu havia protestado contra minha indicacio como médico de Mao, mas a honra nao poderia ser rejeitada. Por 54 / A Vida Privada do Camarada Mao varias vezes tentei largar tudo, mas o presidente sempre me cha- mara de volta. Meu trabalho era mantido em segredo de todos, com exce¢ao de minha familia e dos amigos mais préximos. As organizagOes responsdveis pela seguranca do presidente temiam que conspira- dores se utilizassem de seu médico particular para derrubé-lo. Aqueles que conheciam meu trabalho achavam que eu ia me dar mal, e freqiientemente me advertiam sobre as conseqiiéncias po- tencialmente tenebrosas de atuar como médico de Mao. —E uma grande responsabilidade — censurou um de meus primos em 63. — A satide do presidente é de grande importancia para o Partido e para a nacdo como um todo. Se algum membro do Comité Central algum dia se indispuser e comegar a criticar seu trabalho, vocé vai ver o tamanho da encrenca. Outros amigos se recusavam a nos visitar em casa, mesmo depois que nos mudamos de Zhongnanhai e as visitas passaram a ser permitidas. Uma amiga minha de Kunming, provincia de Yunnan, fora amiga intima de Tan Furen, antigo comissério da Regiao Militar de Kunming, assassinado durante a Revolucdo Cultural. — Depois do assassinato — ela me contou — todas as pessoas que algum dia puseram os pés na casa dele foram isoladas e inter- rogadas exaustivamente. Para minha felicidade, eu nunca tinha entrado 4. Assim sendo, também nfo viria me visitar. As acusagdes de que os médicos de Stalin haviam conspirado para a morte do lider soviético também sempre foram um peso em minha cabega. Sempre esperei acusag6es semelhantes contra mim e contra toda a equipe médica. A medida que a morte de Mao se aproximava, comecara a me preparar para ser preso. No comeco de setembro, logo apés seu terceiro ataque cardfaco, voltei a minha casa rapidamente pela primeira vez em meses para arrumar uma pequena trouxa de roupas — um casaco grosso, calcas e sobretu- do — pois esperava ser mantido numa cela sem aquecimento. Passei por cada cémodo do apartamento dando um silencioso adeus. Pensava que nunca mais voltaria. Minha mulher estava no trabalho e as criangas na escola. Ela depois me contou que a governanta tinha dito que me vira chegar apressado e que cu A Morte de Mao | 55 parecia preocupado. A governanta pensou que alguma coisa ruim tivesse acontecido. Assim, quando ouvi o aviso do capitao sé uns poucos minutos depois da morte do lider, preparei-me para o que desse e viesse. Mao gostava de dizer que “um porco morto nao tem medo de dgua escaldante”. E eu me sentia mole como um porco morto. Ainda estava escuro quando telefonei 4 ministra da Satide Publica, Liu Xiangping, em sua casa e pedi para vé-la imediata- mente. Recusei-me a dizer por que ¢ lhe disse apenas que precisd- vamos nos encontrar pessoalmente. Xiangping era a vitiva do falecido ministro da Seguranga Publica Xie Fuzhi. Eram ambos de esquerda e dedicados a Jiang Qing. Eu pensava que sua indicagio para ministra da Satide Ptiblica no meio da Revolugio Cultural tivesse sido recomendada por Qing, uma vez que Liu Xiangping néo era qualificada para o cargo. Ela ainda morava no terreno do Ministério da Seguranga Publica, numa safda da avenida Changan, ao norte da antiga d4rea diplomdtica, numa velha casa de estilo ocidental que um dia fora embaixada. Esperava por mim numa ante-sala, ainda nao total- mente acordada. — O presidente Mao faleceu 4 meia-noite e dez — comecei. Ela se pés a gritar antes que eu terminasse a frase. — Agora nés temos muito o que fazer e no podemos perder tempo — con- tinuei, pacientemente. — A autoridade central quer que preser- vemos © corpo por duas semanas. Temos de correr. Tem gente esperando por nds. Ela enxugou as l4grimas: — O que devemos fazer? Estava chorando. — Temos que falar com o pessoal da Academia de Ciéncias Médicas — respondi. — Os departamentos de Anatomia e His- tologia tém gente especializada. — Tudo bem. Mas antes deviamos pedir a Huang Shuze e Yang Chun que viessem aqui falar com eles. — Xiangping confiava em Huang Shuze, um médico que também era vice-ministro da Satide Publica, quando precisava de aconselhamento médico. Yang Chun era o secretdrio do PC na Academia de Ciéncias Médicas. — Vamos perder muito tempo se pedirmos para eles virem 56 / A Vida Privada do Camarada Mao aqui. Vamos chamar primeiro os especialistas ¢ depois faremos uma reunio na sala de Yang Chun na Academia. Liu aquiesceu procurou entrar em contato com eles enquanto eu me dirigia a0 prédio da Academia. Yang Chun e Huang Shuze j4 estavam 4 nossa espera quando chegamos. Com eles estavam dois especialistas na prescrvacio de corpos humanos — Zhang Bingchang, sdcio-pesquisador do De- partamento de Anatomia, e Xu Jing, pesquisadora assistente do Departamento de Histologia, que aparentava ter 40 anos. A ministra da Satide Publica nao os informara por que tinham sido chamados assim tao misteriosamente na calada da noite e Bing- chang, visivelmente nervoso, olhava fixo pela jancla. Vim saber depois que esta nao era a primeira vez que ele era chamado 4 Academia daquela maneira. Durante a Revolugio Cultural, fora acordado varias vezes para assinar os atestados de dbito de pessoas assassinadas ou que cometeram suicidio. Uma vez que os jovens militares da Guarda Vermelha, responséveis por essas mortes, nao queriam que assuntos tao desagraddveis fossem cadastrados, Zhang Bingchang era muitas vezes “trabalhado” e espancado. — Eu nao me importava com o espancamento — contou-me. — O que eu mais temia era o rétulo de “contra-revolucionério”. No muito tempo antes, ele havia sido chamado durante a noite para fazer a autépsia do ex-ministro da Seguranga Publica, Li Zhen, que morrera de uma overdose de soporiferos. Seu relatério desagradou ao Ministério da Seguranca Publica e ele foi mantido preso por mais de dois meses. Ficou visivelmente mais calmo depois que contei ao grupo sobre a morte do presidente. Os especialistas concordaram que o corpo poderia ser mantido facilmente por duas semanas. Era sé uma questo de injetar dois litros de formol numa artéria da perna. Huang Shuze e Yang Chun nio tinham objegGes quanto ao método, de modo que Zhang ¢ Xu foram buscar seringas ¢ equipamentos médicos e me acompa- nharam a Zhongnanhai. As ruas estavam desertas. Eram quatro horas da manhi e tudo ainda estava escuro. Os chineses demora- riam horas até saber da morte do presidente. O Politburo continuava reunido na sala de conferéncias. —O diretor Wang Dongxing perguntou varias vezes por vocé A Morte de Mao | 57 eo marechal Ye Jianying também andou lhe procurando — falou © responsdyel pelos sentinelas armados assim que me viu. — O Politburo aprovou um antncio oficial sobre a morte do presidente: “Mensagem a Todo o Partido, Todo o Exército e aos Povos de Todas as Nacionalidades deste Pais.” Vai ser transmitida 4s quatro da tarde. Esse era 0 antincio que eu tanto esperava. Daria o veredito oficial sobre a morte de Mao; ¢ se eu e a equipe médica serfamos culpabilizados. — O que é que dizia sobre a doenga e a morte do presidente? — inquiri, ansioso. Ele me passou uma cépia: — Veja vocé mesmo. Agarrei o papel e rapidamente passei os olhos pelo primeiro pardgrafo: “...recebeu excelente tratamento médico durante a sua enfermidade... No entanto, seu estado estava além de qualquer esperanca. Ele morreu aos dez minutos da madrugada de 9 de setembro de 1976, em Beijing.” Nao era preciso ler mais. Eu tinha sido absolvido. Alguns dias depois, no dia 13 de setembro, meu nome viria a aparecer no Diério do Povo como chefe da equipe médica. Estava salvo. Wang Dongxing veio me receber tao logo entrei na sala onde os membros do Politburo locados em Beijing (cerca de 17 pessoas ao todo) estavam reunidos. — Precisamos conversar. Vamos a um outro lugar. Entramos numa sala ao lado e ele me indagou: — Viu o antincio? — Acabei de ver. $6 li o primeiro pardgrafo. Ele sorriu, depois continuou: —O Politburo acabou de tomar uma decisao. Eles querem que 0 corpo do presidente seja preservado eternamente. Vocé vai ter de descobrir como é que se faz... Fiquei abismado. — Mas vocé me disse que era s6 por duas semanas. Por que preservar para sempre? Em 56, Mao foi o primeiro a assinar 0 pedido para ser cremado. Eu me lembro perfeitamente. —E uma decisio do Politburo. Acabou de ser tomada. — Mas isso é impossivel — protestei. —O que vocé acha? 58 / A Vida Privada do Camarada Mao — O premier Hua e eu apoiamos a decisio — ele respondeu. — Sé que nao dé para ser feito — discuti. — Até ferro e aco se deterioram, como é que vamos impedir um corpo humano de apodrecer? Estava me lembrando da nossa primeira viagem a Moscoucom © presidente em 57 € nossa visita aos restos mortais de Lénin e Stalin. Os corpos pareciam secos e encolhidos e fui informado de que o nariz ¢ as orelhas de Lénin tinham se decomposto e sido substituidos por préteses de cera. O bigode de Stalin também tinha caido. As técnicas de embalsamamento soviéticas eram bem mais avangadas do que as dos chineses e eu nfo tinha idéia do que farfamos para preservar 0 corpo. — Espero que respeite nossos sentimentos — respondeu Wang, piscando. — Sim, claro. S6 que a ciéncia chinesa nao é tao avangada para isso. —E por isso que vai ter que achar pessoas para lhe ajudar Qualquer coisa que precisar — espaco, equipamento, o que qui- ser —, € sé falar comigo. A autoridade central garante que vocé teré tudo. O velho marechal Ye Jianying veio se juntar a nés. Um dos mais antigos membros do Partido Comunista, fundador do Exér- cito de Libertagdo Popular e um dos membros do Politburo que me era mais querido, o marechal perguntou o que eu achava da preservagdo permanente do corpo do presidente. Mais uma vez, levantei minhas objecdes. Apés um breve siléncio, ele falou: — Dentro das circunstancias, nao temos escolha a nao ser respeitar a decisao do Politburo, Dr. Li. Mas por que nao consulta algumas pessoas de sua confianga, ou alguns instrutores do Ins- tituto de Artes e Técnicas para ver se eles nao conseguem fazer um boneco de cera do presidente? Algum dia poderemos usar o boneco como substituto, se necessdrio for. Fiquei aliviado. Pelo menos 0 marechal, vice-presidente da Comissio para Assuntos Militares e membro-chave do Politburo, no iria insistir no impossfvel. Wang Dongxing concordou, mas nao disse nada. Até hoje, nao sei quantas pessoas estiveram envolvidas nessa decisao. E possivel que nem mesmo Jiang Qing soubesse. A Morte de Mao / 59 Voltei a enfermaria de Mao. O corpo ainda estava 14, o lugar ainda cheio de equipamento médico. Transportamo-lo para um quarto mais espa¢oso, ao lado da sala onde o Politburo ainda se reunia. A temperatura era de 26 graus, muito alta para o corpo. Mandei que os funciondrios baixassem para dez graus. — Nao podemos — avisaram. — Todos os altos lideres esto aqui e a camarada Jiang Qing deu instrug6es estritas sobre a temperatura ambiente. E preciso obter a autoriza¢io com eles. Zhongnanhai era ligada diretamente a duas usinas de forga de Beijing, e geradores de reserva garantiam o aquecimento no inverno € ar condicionado no verao, mesmo que todo o resto da cidade estivesse sem luz. Porém, mesmo no Prédio 202, construido especialmente para o presidente, nao havia meios de se controlar a temperatura para um sé quarto. Dirigi-me a sala de conferéncias e obtive permissdo para baixar a temperatura do Politburo. A reuniao foi suspensa pouco tempo depois. Quando voltei ao necrotério improvisado, Zhang Bingchang e Xu Jing tinham acabado de injetar o formol. Comuniquei-lhes a decisdo do Politburo de preservar o corpo eternamente. Ficaram. espantadissimos. Concordaram que era impossivel. — Nio temos idéia de como fazer isso. Simpatizei com eles, mas insisti: — De alguma maneira, vamos ter que dar um jeito. Alguém tem que ir 4 biblioteca da Academia de Ciéncias Médicas e tentar achar alguns livros sobre a matéria. Xu Jing dirigiu-se imediatamente 4 biblioteca e telefonou depois de pouco mais de uma hora. — Hi um processo para se preservar um corpo por um perfodo relativamente grande — explicou. — Uma alta dose de formol (de a dezesseis litros, dependendo do tamanho do defunto) tem ser injetada de quatro a oito horas depois do dbito. Quando as tas dos dedos das mios e dos pés estiverem cheias de lfquido, ‘sinal de que ja foi injetado o suficiente. Mas ela ainda nao tinha certeza. Havia encontrado a formula boletim médico ocidental, mas nao sabia se ia funcionar. iu que consult4ssemos o Politburo. Falei com Wang Dong- — Isso é uma coisa que vocés vao ter que discutir e decidir — 60 / A Vida Privada do Camaradia Mme ele falou. —Mesmo assim, é melhor vocés pedirem antes @ opiniao do premier. Encontrei Hua Guofeng e lhe falei de Xu Jing. Ele pensou por um momento e depois falou: — Agora nao vai dar para fazer uma nova reunido. E mesmo que nos reunisscmos, nao iria adiantar nada. Nés do Politburo nao entendemos nada disso. Por que vocé simplesmente nao vai em frente? Nao vejo outra safda. No necrotério improvisado, dois recém-chegados se juntaram a Zhang Bingchang e Xu Jing. Um era um médico chamado Chen, que trabalhava no Departamento de Anatomia da Academia de Ciéncias Médicas, que estava ali para ajudar a administrar o formol. O outro era um tal de camarada Ma, do Departamento de Patolo- gia do Hospital de Beijing, eum especialista em maquiar mortos. Disse-lhes para comegarem a injecdo. Ao todo, injetamos um total de 22 litros, seis a mais do que mandava a formula, esperando que esse extra servisse de garantia adicional. O processo demorou horas e 86 terminou as dez da manha. © resultado foi surpreendente. A cara do presidente ficou inchada, redonda como uma bola, € 0 pescogo ficou da largura da cabega. A pele brilhava e de seus poros 0 formol transpirava como se fosse suor. As orelhas também estavam inchadas, formando dois Angulos retos com a cabega. O caddver estava um horror. Até os guardas ¢ funciondrios ficaram estarrecidos. Zhang Yufeng recla- mou: — Que diabo vocés fizeram para 0 presidente ficar desse jeito? Vocés acham que a autoridade central vai aprovar uma coisa dessas? Xu Jing permaneceu calmo por todo o calvario, mas eu estava preocupado com Zhang Bingchang. Ele estava pilido e visivel- mente nervoso. — Fique tranqitilo — procurei reconfort4-lo. — Nés vamos dar um jeito. De alguma maneira, nds tinhamos de restituir 0 aspecto ori- ginal do presidente, mas nao havia como retirar o formol. —Nio tem problema se 0 corpo continuar inchado — falei. — Mas é melhor nés tentarmos consertar 0 rosto € 0 pescogo. —Talvez se nés massagearmos 0 rosto seja possfvel forcar um pouco do liquido para o corpo — sugeriu. Zhang, e a equipe A Morte de Mao | 61 comecou a trabalhar com toalhas ¢ bolas de algodo nas faces do morto, tentando pressionar o formol para baixo da linha do pes- coco. Quando Chen forcou um pouco mais do que devia, um pedaco de pele do lado direito do rosto se rompeu e Chen estre- meceu. —Nio se preocupe — confortou-lhe Ma. — Podemos colocar um pouco de maquiagem. E usou uma mecha de algodao para colocar um pouco de vaselina e um liquido cor de pele no lugar da ruptura. Funcionou. A marca ficou imperceptivel. Os quatro continuaram trabalhando até as trés horas da tarde. No fim, Mao jé parecia normal. As orelhas nao se pronunciavam mais para fora. O pescoco ainda estava inchado, mas os funcion4- rios concordaram que a aparéncia estava muito melhor — dentro das circunstancias. Quando tentaram, porém, vestir-lhe o terno, 0 peito estava téo inflado que nao dava para abotoar o paletd. Tiveram de fazer um corte na parte de baixo do paleté e das calgas para que pudessem acomoda-los no novo corpo. Xu Shiyou, comandante da Regido Militar de Guangzhou, tinha acabado de chegar a Beijing e veio prestar sua homenagem exatamente quando vestfamos o morto. Ele era um dos generais mais famosos da China, membro do Partido desde a juventude e sobrevivente da Longa Marcha. Quando ainda era crianga, a pobreza o obrigara a ser monge budista no Templo Shaolin de ‘Henan, famoso em todo o mundo por suas artes matciais. Vinha de uma famflia de camponeses e nunca teve educagdo. Foi o Exército Vermelho que o ensinou a ler. Era um homem bronco e ignorante, mas Wang Dongxing costumava dizer que Xu Shiyou podia lutar com uma sé mao contra vinte homens e derrubar todos. Nunca foi com a cara de Jiang Qing, mas era fervorosamente leal ao presidente. Quando viu o corpo de Mao, Xu Shiyou curvou-se trés vezes & maneira tradicional. Depois inclinou-se para frente, a fim de olhar a pele no peito do morto. E subitamente virou-se para mim € perguntou: — Quantos ga ma ele tinha, antes de morrer? Eu nao tinha a menor idéia do que ele estava dizendo. Xu insistiu: 62 / A Vida Privada do Camarada Mao — Todo mundo tem vinte e quatro ga ma. Quantos tinha o presidente? Continuei mudo. — Vocé é um médico inteligente — comegou a provocar. — Vocé nao sabe o que é um ga ma? Até hoje nao sei. Alguns amigos que entendem mais de budis- mo do que eu contam que os budistas acreditam que todo corpo humano tem vinte e quatro ga ma, mas eu nao sabia nada disso. Xu Shiyou deu duas voltas ao redor do corpo, murmurando para si mesmo: — Que diabo! Por que essas marcas azuis esto no corpo? Curvou-se solenemente mais trés vezes, saudou o presidente € saiu. Ma refez a maquiagem. Certo de que tinhamos dado o melhor de nés € de que 0 corpo realmente se parecia com Mao, acabamos finalmente de vesti-lo e 0 cobrimos com a bandeira do PC — a foice cruzada com o martelo, sobre o fundo vermelho. Por volta da meia-noite do dia 9 para o dia 10 de setembro — cerca de 24 horas apés a morte — colocamos o corpo num caixdo de cristal Jacrado e a v4cuo. Varios membros do Politburo tiraram fotos olhando 0 caixao. O esquife entdo foi transportado nos fundos de uma ambulincia e eu me sentei a seu lado enquanto cruzdvamos os portdes de Zhongnanhai em direcao ao sul, passando pelas ruas escuras e desertas de Beijing rumo ao Grande Salo do Povo, onde © corpo ficaria exposto por uma semana. A intensa luta pelo poder que comegara durante a doenga agora se concentrava na posse dos documentos de Mao. Jiang Qing e Mao Yuanxin foram aos aposentos do presidente, onde Zhang Yufeng continuava a morar, ¢ Ihe pediram que entregasse os papéis do lider, principalmente as transcrigoes das conversas ocortidas numa viagem de inspegdo ao sul da China, de 14 de agosto a 12 de setembro de 71, pouco antes da desastrosa tentativa de fuga de Lin Biao para a Unido Soviética. As conver- sas do presidente durante a tal viagem nunca vieram a publico,* mas sabe-se que continham nfo sé criticas a Lin e a varios de seus colegas mais préximos, como também afirmagGes contra varios outros lideres do PC, inclusive Jiang Qing e seus colegas Zhang A Morte de Mao / 63 Chungiao, Wang Hongwen e Yao Wenyuan, que em breve seriam chamados de “Gangue dos Quatro”. Wang Dongxing, encarregado de guardar os documentos pre- sidenciais, estava com o esquife no Grande Salao do Povo, uma vez que ele também era responsdvel pelo esquema de seguranga no local. Dezenas de milhares de cidadaos cuidadosamente seleciona- dos vinham diariamente prestar suas homenagens, e as maiores liderangas do pajs ficavam em vigilia. Wang nada sabia das tenta- tivas de Jiang se apoderar dos documentos, até que Zhang Yaoci, comandante do Corpo da Guarni¢ao Central, o informou. Wang correu imediatamente a Zhang Yufeng e ralhou com ela: — Sua fungo aqui ¢ tomar conta dos documentos e nao de entregé-los aos outros. Pertencem a autoridade central do partido e ninguém tem permissio para levd-los. Zhang chorou e solugou: — A camarada Jiang Qing é do Politburo e mulher de Mao. Yuanxin é sobrinho do presidente e era sua ponte com o Politburo. Como é que eu poderia deté-los? — Muito bem. — Wang respondeu — Vou mandar alguém aqui inspecionar todos os documentos. Nesse meio-tempo, vocé vai ter de pedir a Jiang Qing para devolver os papéis que ela pegou. Jiang Qing recusou-se a devolver os documentos, até que Hua Guofeng insistiu: — O corpo de meu marido ainda nem esfriou e vocés jd estéo querendo me derrubar — ela reclamou. Mais tarde, Wang Dongxing me contou que trechos dos do- cumentos pareciam ter sido falsificados e que Jiang Qing tentara apagar as criticas que o marido lhe fizera. Nesse interim, eu comegara a organizar uma equipe para a Pteservaco definitiva do corpo do presidente, recrutando vinte dos maiores especialistas em anatomia, patologia e quimica or- ganica das escolas médicas de todo o pais. Pesquisamos os antigos meétodos chineses de preservacao. Descobertas arqueolégicas re- centes haviam desenterrado corpos de centenas de anos extraordi- nariamente bem conservados. Mas logo conclufmos que as técnicas antigas de nada adiantariam em nosso caso. Enterrados bem fundo na terra, Os antigos corpos nunca foram expostos ao oxigénio. Haviam sido cobertos com uma espécie de bélsamo ¢ imersos num 64 / A Vida Privada do Camarada Mao liquido que os cientistas acreditavam ser merctitio. Os corpos se esfacelaram imediatamente ao contato com 0 ar. ‘Também querfamos saber como fora preservado o corpo de Lénin, mas as relacdes entre a China ¢ a Unido Soviética estavam tdo ruins que mandar uma equipe de pesquisa para lé estava fora de cogitacao. Ao invés disso, enviamos dois pesquisadores a Handi para descobrir como se preservou o corpo de Ho Chi Minh (1890-1969). A viagem foi um fracasso. Ninguém no Vietna estava disposto a explicar 0 processo e nossos dois enviados sequer chegaram a ver 0 corpo. Mas foi-lhes dito em segredo que o nariz de Ho ja havia apodrecido e que a barba tinha caido. Dois outros pesquisadores na Inglaterra estiveram no Musca de Cera de Madame Tussaud para aprender a fazer bonecos como os de 14. A dupla, porém, concluiu que, ao menos nesta técnica, a China era muito mais avangada do que a Inglaterra. O boneco de Mao, feito em cera pelo Instituto de Artes e Técnicas, parecia ser extraordinariamente humano. Jé as réplicas do museu de Madame Tussaud eram visivelmente de cera. Finalmente, da leitura das revistas cientfficas, concluimos que a Unica maneira de preservarmos o corpo era através de uma alteracdo no método que jé havfamos usado. Deixarfamos intacto © cérebro do presidente — nao queriamos abrir-lhe 0 cranio — mas retirarfamos todas as visceras (corac4o, pulmGes, rins, es- témago, intestinos, figado, pancreas, bexiga, vesicula e bago). Essas, nds manterfamos em vasos separados de formol para 0 caso de algum dia questionarem sobre a causa da morte. A cavidade visceral seria entao enchida de algodao encharcado de formol. Um tubo inserido na nuca de Mao permitiria que a equipe repusesse 0 formol, em intervalos periddicos. O caixao de cristal seria entao cheio de gis hélio. O trabalho no corpo de Mao estava marcado para comegar logo apés 0 periodo oficial de tuto eseria feito dentro do maior segredo, no “Projeto Subterraneo 19 de Maio”, que seria nosso local de trabalho. O projeto subterraneo em questo datava dos tempos da guerra de fronteiras entre a China e a Uniéo Soviética pela ilha do Tesouro (Zhenbao), em Heilongjiang, extremo norte do pais. Pouco depois do comeco das hostilidades, no dia 2 de marco de 69, Mao se convenceu de que era a Unio Sovictica (e nao os A Morte de Mao | 65 Estados Unidos) a maior ameaga a seguranga da China. Sua convicco mais tarde o levaria 4 aproxima¢ao com a América, mas, enquanto isso, todos os chineses eram conclamados a “cavar ttineis profundos, estocar graos onde pudessem e nunca procurar a hegemonia”, dando a entender que a China amava a paz, mesmo quando se preparava para a guerra. Nas dreas urbanas de todo o pais, os cidadaos se mobilizavam em construir abrigos antiaéreos para se proteger dos ataques soviéticos. Até hoje Beijing é cortada Por esses tlincis subterraneos, e os zeladores desse labirinto gostam de alardear que toda a populacao da cidade pode ser evacuada para baixo da terra em apenas trés minutos. Enquanto os cidadaos de Beijing construfam esses tineis, 0 corpo de engenheiros do Exército comegava a construir secreta- mente 0 enorme complexo 19 de Maio, em homenagem ao dia de 69 em que sua construgao tinha sido decidida. Sem ligagio com os abrigos antia¢reos dos cidadaos comuns, o complexo deveria alojar o alto comando militar em tempo de guerra. L4 embaixo h4 uma auto-estrada grande o suficiente para comportar quatro cami- nhées lado a lado e que liga Zhongnanhai, Tiananmen, o Grande Salao do Povo, Maojiawan (antiga residéncia de Lin Biao) e o Hospital 305 do Exército de Libertagao Popular, no coragao da cidade, onde também hé quartéis-generais e residéncias de milita- res, do lado de cima. Além do complexo militar, hé uma série de escritérios, equipamentos de telégrafo e comunicac6es, alojamen- tos e um hospital moderno e bem-equipado a ser usado somente em caso de guerra. Este hospital secreto ficava exatamente abaixo do Hospital 305, onde servi como diretor e que virou 0 local de nosso trabalho secreto. Em algum momento depois da meia-noite de 17 de setembro de 76, ao término do Iuto oficial de uma semana e enquanto Beijing dormia, o esquife de Mao foi retirado do Grande Salio do Povo ecolocado na parte de tr4s de um microénibus. Hua Guofeng e Wang Dongxing, em carros separados, juntaram-se 4 comitiva de automédveis, sob forte esquema de seguranca, e 0 mesmo aconteceu com o ministro e um dos vice-ministros da Satide Publica, bem como com os principais membros da junta médica responsdvel pela preservagao do corpo. Eu estava no microénibus com 0 caix4o € percorriamos as ruas escuras de Beijing a Maojia- 66 / A Vida Privada do Camarada Mao wan, desocupada desde a morte de Biao, onde dois guardas estavam postados na entrada do complexo subterraneo. Os solda- dos acenaram pata que passdssemos, ¢ 0 microénibus desceu as entranhas da rodovia subterranea a caminho do hospital especial, auns dez ou quinze minutos dali. Chegando I, 0 corpo foi retirado € transportado para uma das salas de operacio da clinica, onde dentro em breve comecaria 0 trabalho de preservacdo. Alguns dias depois, o boneco de cera chegou e foi trancado num quarto ao lado. Foi a primeira vez que o vi e fiquei impressionado com a habilidade dos artistas do Instituto de Artes e Técnicas. O boneco era a cara de Mao Zedong, Os dois Maos — um mantido com formol, 0 outro feito de cera — dos quais pouquissimas pessoas tinham conhecimento, permaneceram no hospital subterraneo por um ano inteiro, onde eu os inspecionava uma vez por semana. Mesmo os soldados que montavam guarda no hospital nao tinham a menor idéia do que estavam protegendo. Em 77, com a conclusto do memorial na praca Tiananmen, onde 0 corpo do presidente ficaria em exposi- Go, os dois Maos — assim como as varias jarras de formol contendo os érgaos — foram transferidos para o enorme cofre abaixo do salao. Um elevador subia e descia 0 caixo da 4rea de exposicio. Xu Jing, que participara do esforgo de preservacao, ficou responsdvel pelos restos mortais e pelo mausoléu onde milhares de chineses comuns e turistas estrangeiros passam diariamente para homenagear o homem que foi presidente do Partido Comunista Chinés por cerca de quarenta anos. O funeral do presidente ocorreu no dia 18 de setembro, um dia depois de eu ter entregue 0 corpo ao cofre subterraneo secreto. Estava um calor de rachar e cheguei a Tiananmen — o Portao da Paz Celestial, antiga entrada sul para a Cidade Proibida, onde os imperadores das dinastias Ming e Qing haviam morado — as duas da tarde, uma hora antes do inicio da ceriménia. O retrato de Mao ainda estava no topo da Tiananmen, como sempre estivera desde o dia da vitdria comunista, ladeado de slogans revoluciondrios proclamando a unido do proletariado internacional e desejando uma vida longa de dez mil anos 4 Republica Popular da China. Nos quase trinta anos desde que voltei 4 China, estivera varias A Morte de Mao | 67 vezes na Tiananmen. Lé estive em 1° de outubro de 49, quando se fundou a Republica Popular, e mais tarde ao lado de Mao, duas vezes por ano, acompanhando as paradas de 1° de Outubro e 1° de Maio. No inicio da Revoluc4o Cultural, também estive 14 com ele para ver os milhGes de Guardas Vermelhos das universidades € das escolas do pais. Hoje, a imensa praca que se estende além do Portio da Paz Celestial, tendo a esquerda o Grande Salo do Povo, onde ficara a cdmara ardente, ¢ 4 direita o Museu de Historia Revolucionéria, estava lotada com meio milhZo de lamentadores tristes, especial- mente escolhidos para a ocasido dentre todas as esferas da vida. As trés em ponto da tarde, a China parou. Por trés minutos, 0s apitos de todos os trens e todas as fabricas do pais prestaram sua Ultima homenagem. Depois se seguiram mais trés minutos de sil€ncio. Foi af que, enquanto os chineses em todo o pais prestavam seu tributo individual nos locais de trabalho, Wang Hongwen deu inicio a ceriménia. Olhando lé de cima para a multidio, eu estava molhado de suor. A exaustao que eu vinha conseguindo driblar h4 varios meses de repente se abateu sobre mim. Quando Hua Guofeng comegou sua elegia, cambaleei e tive de Jutar para nao cair. Desde o primeiro ataque cardfaco do lider, eu vinha traba- Ihando noite e dia, sem dormir mais do que quatro horas por noite. Meu peso, que normalmente € de oitenta quilos, tinha baixado para 55. Minha cabega ficou tonta durante toda a ceriménia. Eusé sabia que, quando tudo acabasse, eu poderia dormir — talvez voltar enfim para minha familia. As cinco e meia da tarde, voltei 4 minha sala em Zhongnanhai, encolhi-me na pequena cama e dormi. Poucos minutos depois, o telefone me acordou. Era Wang Dongxing. O Politburo tinha marcado uma reunido para a manha de 22 de setembro, dali a quatro dias, no Grande Salio do Povo, € esperava que apresentdssemos um relatério completo sobre a doenga ¢ o tratamento do presidente, e que também explicasse como ele morreu. Toda a junta médica deveria comparecer ea mim caberia ler o relatério. — Prepare-se bem porque essa é uma reuniao muito impor- tante — enfatizou Wang. 68 / A Vida Privada do Camarada Mao No dia seguinte, meu nome aparecia outra vez no Didirio do Povo, encabegando a lista dos médicos do presidente. Assim, eu ainda no estava livre. O alfvio que sentira ao ler o amincio da morte de Mao tinha sido prematuro. Aquele comuni- cado, elogiando o tratamento médico, fora apenas uma satisfa- gio ao povo. Agora, todo o Politburo iria se reunir para decidir oficialmente sobre como e por que o presidente morrera. Se meu laudo fosse aprovado, significaria que Mao tinha morrido de morte natural ¢ a equipe estaria livre. Se o comité rejeitasse as explicagdes, as conseqiiéncias seriam desastrosas. Era uma questo de vida ou morte, para mim e para toda a equipe médica. Chamei a equipe toda e combinamos que eu faria um rascunho do relatério e que depois voltarfamos a nos reunir para discuti-lo. Comecei na mesma hora, escrevendo toda a noite de 18 de setem- bro ¢ também a manha seguinte. O laudo era detalhado ¢ tinha cerca de cingjienta paginas. Comegava com nossa tentativa bem- sucedida de salvar a vida do presidente depois de sua primeira insuficiéncia cardfaca congestiva, em janeiro de 72, e descrevia a degeneracdo progressiva da esclerose lateral amiotrofica ¢ os trés enfartes do miocardio. Expliquei como foram diagnosticadas ¢ tratadas as diversas doengas ¢ descrevi a causa da morte. A equipe médica fez varias observacées. Finalmente, encerramos 0 relatdrio na manha de 20 de setembro. Wang Dongxing nao quis lé-lo e sugeriu que Hua Guofeng o revisasse. Depois de ler o relato cuidadosamente, Guofeng tinha suas duividas se o Politburo entenderia todos os termos técnicos. Disse também que o relatério nao deixava claro qual tinha sido a causa da morte. Pediu que eu o modificasse. Meus colegas mostraram-se relutantes em alterar a terminolo- gia médica, pois achavam que muitos termos seriam extremamente dificeis de serem explicados em linguagem leiga. Sugeriram que eu explicasse essas expresses oralmente. Também nao queriam atri- buir a morte do presidente a uma sé causa. Mao era um homem velho que sofrera os efeitos acumulados da velhice ¢ de varias enfermidades sérias. Comentaram que eu deveria enfatizar sua dificuldade de respiragio — em razdo dos ataques cardiacos, do enfisema e da doenca neuronal motora — como causa imediata da morte. A Morte de Mao | 69 Envici 0 relatério corrigido a Hua Guofeng dia 21 de setem- bro e falei-Ihe das opinides de meus colegas. Ele avisou: — Alguns membros do comité podem fazer perguntas na reuniao. Faca 0 possivel para dar uma explicagao completa — uma que eles entendam! A reunifo ja estava em andamento quando meus colegas e eu chegamos ao Grande Salado do Povo naquela manha de 22 de setembro. Os membros do comité estavam sentados em cadeiras confortaveis dispostas num citculo informal, com pequenas mesas de madeira em frente a eles, portando xicaras de ché. Varias taquigrafas do Biré de Secretdrias (mishu jz) também estavam Presentes e muitos funciondrios jovens corriam de um lado para o outro. Sentei-me numa poltrona logo atrds do premier Hua Guo- feng e do marechal Ye Jianying, que sugerira o boneco de cera imitando Mao. Chen Xilian, comandante da Regiao Militar de Beijing, estava falando: — Quero ser dispensado! Nao consigo mais fazer meu traba- tho!* — Acalme-se, camarada Xilian — retorquiu Guofeng. — Discutiremos seu problema mais tarde. Agora vamos ouvir 0 relato da junta médica que atendeu o presidente. Eles trabalharam qua- tro meses dia e noite tentando salvar a vida do nosso lider. Dr. Li fard o relatério. — Até hoje nao sei por que Chen Xilian queria renunciar. ‘Ye Jianying pediu para que eu falasse alto. Varios membros do comité eram velhos e meio surdos. Fui interrompido varias vezes para explicar os termos técnicos. Quando passei a descrever como 0 presidente entrara em estado grave a partir de junho daquele ano, 0 general Xu Shiyou de repente se levantou e caminhou ameaca- doramente para mim. —Por que o corpo do presidente estava cheio de marcas pretas ¢ azuis? Qual 0 motivo? — perguntou, postando-se diretamente 4 minha frente. Na China, hé uma crenca popular que sustenta que, quando uma pessoa morre envenenada, seu corpo fica coberto de marcas. Tentei explicar: — Em seus tltimos dias de vida, o presidente mal podia respirar. Estava com pouco oxigénio. Dai a razao das marcas. 70 | A Vida Privada do Camarada Mao SS —Eu participei de lutas a minha vida inteira e jé vi muita gente morrer — ele me desafiou — mas nunca daquele jeito. Quando eu vi as marcas no corpo do presidente no Ultimo dia 9, perguntei quantas ya ma cle tinha e o senhor nao soube me responder. Actedito que o presidente foi envenenado. S6 veneno deixa marcas como aquelas. Proponho que interroguemos todos os médicos € enfermeiras para saber quem envenenou 0 presidente. ‘Um cuidadoso esquema para evitar que Mao fosse envenenado vigorava desde os primeiros dias da Reptblica Popular. Tentei explicé-lo a Xu: — Cada remédio que us4vamos tinha de ser primeiramente aprovado por todaa equipe. Aviava-se entaoa receita ¢ cada receita era certificada por duas enfermeiras € depois rechecadas pelos médicos de plantio. Bra entio levada a farmdcia especial que serve apenas aos lideres méximos do Partido e os remédios eram en- tregues em invdlucros selados que s6 podiam ser abertos pelos médicos na presenca do presidente. — Entio pode ser um compl6 armado por todes os envolvi- dos — ele insistiu. — Vamos ter de fazer uma investigagao minu- ciosa. — Xu Shiyou realmente acreditava que Mao fora envenena- do como parte de um intrincado plano. Suspeitava que Jiang Qing ¢ seus companheiros fossem os mentores intelectuais. Sem saber como minhas relagGes com a esposa do presidente eram tensas, achava que a equipe médica tinha sido toda convencida a participar. Quando ele terminou, a sala toda estava em silencio. Xu estava na minha frente, m4os na cintura. Com 0 olhar, fez uma acusagao muda contra Zhang Chunqiao, que olhou para 0 chao, a mao esquerda apoiando o queixo. Jiang Qing, ainda vestida de preto, olhava duro do sof4 para Xu. Hua Guofeng se empertigou. Wang Dongxing fingia ler uns documentos. Wang Hongwen, assustado, olhava nervoso pela sala. Entio o marechal Ye Jianying ¢ 0 general Li Desheng, coman- dante da Regio Militar de Shenyang, viraram-se para mim ¢ perguntaram baixinho: — Por que as marcas no corpo? — Havia trés grandes sopros de ar no pulmao esquerdo — respondi —¢ ele tinha pneumonia dupla. Tinha grande dificuldade de respirar e, portanto, estava com falta de oxigénio. Marcas como A Morte de Mao | 71 essas — que nds chamamos de “marcas da morte” — costumam aparecer normalmente quatro horas depois do falecimento. Quan- do o camarada Xu Shiyou viu o corpo as quatro da tarde, o presidente jd estava morto hd dezesseis horas, Nesse instante, a vitiva Jiang Qing levantou-se e disse: — Camarada Xu Shiyou, a equipe médica trabalhou duro por quatro meses. Por que o senhor nao os deixa terminar o relatério? E Wang Hongwen, aproveitando a deixa, também se pés de pé ¢ disse: — Desde que o presidente ficou em estado grave, Guofeng, Chungiao, Dongxing ¢ eu nos revezamos... Xu arregacou as mangas e caminhou para onde estava Jiang Qing. Comegou a bater tao forte na mesa que as x{caras cafam no tapete. —Asenhora nao esté deixando os membros do comité falarem numa reuniao do Politburo — urrou. — Qual é seu jogo? Hua Guofeng interveio: —Camarada Shiyou, acalme-se! — Virou-se para mim: —Dr. Li, por que o senhor e seus colegas nao nos deixam agora? Mais tarde voltaremos a esse assunto. A equipe médica, calada e desanimada, voltou a Zhongnanhai. Eu sé tinha lido as dez primeiras p4ginas do laudo. Zhang Yaoci veio avisar: — O diretor Dongxing disse para ninguém falar nada sobre o que aconteceu na reuniao do Politburo. Vocés sé tém de aguardar a decisao do comité. Eu esperava ser chamado a qualquer momento. No almogo, repeti a ordem de Zhang ao resto da equipe, que continuou apre- ensiva. Ninguém conseguiu comer. Eu esperava ser acusado de ter ajudado a matar o presidente. A surpresa foi que a acusac4o partira de Xu Shiyou e que Jiang Qing, que sd fizera criticar a equipe durante toda a enfermidade do marido, tivesse vindo em nossa defesa. Dai pensei que, como seus colegas Wang Hongwen e Zhang Chungiao tinham supervi- sionado os trabalhos da junta, se tivesse havido erro médico eles também seriam responsdveis. Se o comité decidisse que houvera 72. | A Vida Privada do Camarada Mao uma trama para envenenar Mao, entao Wang Hongwen ¢ Zhang Chungiao estariam implicados. Dafa insisténcia de Jiang Qing na inocéncia da equipe. Os dias foram passando e nada do Politburo se manifestar. Eu estava louco de ansiedade. Os membros da junta médica foram instrufdos a retornar as suas instituigdes de origem. Alguns pensa- ram que a crise tivesse passado. ‘Mas eu nio estava assim tio certo. Sabia mais do que eles que a luta pelo poder em Zhongnanhai estava apenas comegando. Em julho, dois meses antes da morte do lider, Wang Dongxing me disse que estava pensando seriamente em prender Jiang Qing enquanto Mao estivesse vivo. Mesmo com ele fingindo indiferenga ¢ Hua Guofeng sendo sempre muito gentil com ela, eu sabia que os dois queriam prender Jiang Qing e seu grupo radical. Assim, enquanto Qing se comportava como se o poder de Mao fosse brevemente passar para ela, de algum modo devia saber que nao estava segura. Com a luta pelo poder ainda aberta, a posi¢ao da equipe médica continuava a ser precdria. AcusagOes € contra-acusagées faziam parte do debate. E mesmo que a luta fosse decidida temporaria- mente com 0 afastamento de Jiang Qing e seus cumplices, quanto tempo ainda iria demorar até a luta seguinte, com uma nova rodada de recriminages? Depois de 27 anos em Zhongnanhai, cu tinha aprendido como a vida podia ser incerta. E tendo orientado a satide de Mao por 22 anos — suas varias doencas e, enfim, sua morte — eu sabia que nunca mais estaria seguro.

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