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* SET ee MOREL. SCXSOS, MUPOCSSOS, IMUTES. IN: CARLIN, ROR. Historia cultural enire praticas e representacdes. Lisboa: Difel, 1990, p. 121-138. CAPITULO IV Textos, impressos, leituras Este texto propde-se, acima de tudo, tragar um projecto intelectual e um espaco de investigacio. O fundamento comum a ambos decorre da aparente contradicéo em que se encontra envolvida toda a histéria, ou toda a sociologia da leitura: quer se considere 0 caricter todo-poderoso do texto, e 0 seu poder de condicionamento sobre o leitor — 0 que significa fazer desapa- recer a leitura enquanto pritica auténoma —; quer se considere como primordial a liberdade do leitor, produtor inventivo de sentidos nao pretendidos e singulares — 0 que significa encarar 0 actos de leitura como uma colecsio indefinida de experién- cias irredutiveis umas as outras. Transformar em tensio operat6- fia aquilo que poderia surgir como uma aporia inul:rapassével é o designio, a aposta, de uma sociologia historica das priticas de Jeicura que tem por objective identificar, para cada época © para cada meio, as modalidades partilhadas do ler — «s quais dao formas e sentidos aos gestos individuais —, e que coloca no centro da sua interrogacao os processos pelos quais, face a um texto, & histéricamente produzido um sentido e diferenciada- mente construida uma significacio, M Para explicitar esta perspectiva, muitas vezes arriscada, s escolhemos como suporte um yelho texto espanhol, niio muito posterior aos primeiros tempos da imprensa, porque delimita bem, @ sua maneira e na sua linguagem, o lugar d> um traba- Iho a realizar entre textos, objectos impressos ¢ maneiras de ler. No Prélogo que escreve para a Celestina tal como é publicada em Saragoca em 1507, Fernando de Rojas intetroge-se sobre as razbes que podem explicar o porqué de a sua obra ter sido entendida, apreciada e utilizada de modos tao diversos desde a 122 ‘TEXTOS, IMPRESSOS, LEITURAS sua primeira publicagdo, em 1499, em Burgos‘. A questdo é simples: como é que um texto que & 0 mesmo para todos aqueles que o léem pode tornar-se um «instrumento de lid 0 contienda a sus lectores para ponerlos en diferencias, dando cada una sentencia sobre ella a sabore de su voluntad>? E a partir desta interrogacdo de um autor antigo sobre um velho texto que gostarfamos de formular as propostas ¢ as hipéreses essenciais que esto na base de um trabalho empenhado, sob diversas formas, na histéria das préticas de leitura, entendidas nas suas relaces com os objectos impressos (que nao so todos 05 livros, longe disso) e com 0s textos @ que servem de suporte. Para Rojas, os contrastes na tecepcao do texto que ele propds a0 piiblico tém que ver, em primeiro lugar, com 0s proprios leitores, cujos juizos contraditérios devem ser inscritos na diversidade dos caracteres ¢ dos humores («tantas y tan differentes condiciones»), e também na pluralidade das apti- does © das expectativas. Estas diferenciam-se consoante 0 esce- lio etario: nines, mozos, mancebos, e viejas ‘ndo manipulam do mesmo modo a matétia escrita, uns por nfo saberem Ié-la ‘outros por no quererem ou no 0 poderem fazer. Também se diferenciam de acordo com 0s usos bem distintos feitos do mesmo texto. Da tragicomedia, Rojas detecta pelo menos trés leituras. A primeira, que ndo presta atengio a histéria no seu todo, mas somente a alguns dos seus episédios, desligados uns dos outros, reduzindo 0 texto ao estaruto de um cuenta de camino, de uma histéria boa para narrar e feita para passer ‘© tempo, como a contada pot Sancho ao seu senhor no capieulo XX da primeira parte de Don Quijote. Uma outra aticude s6 retém da tragicomédia as formulas facilmente memorizéveis, esses donaires y refranes qN€ fornecem lugares-comuns e expres- 86s feitas, coligidos ao longo de uma leitura que nio estabele- ce qualquer relago intima, qualquer relacio individualizada entre 0 leitor e aquilo que ele Ié. A estas utilizages que mutilam a obra e passam a0 lado do seu verdadeiro significado, *0 texto de Rojas & citado de acordo com a edicio bilingue Le Celestina. Tragicomedia de Calisto y Melibea|La Géletine ox Tragicambdic de Caliste & Mélibie(atribatda a Fernando Rojas), Paris, Aubier-Flammation, 1980, pp. 116-119. CAPITULO IV 123, © seu autor opée aquilo que é a leitura correcta e proveitosa da mesma, a leitura que capta o texto na sua totalidace complexa sem o reduzir aos episédios da sua intriga ou a uma colectinea de sentencas impessoais. Os bons leitores da comédia «coligen Ia suma para su provecho, rien do donoso, las sentencias y dichos de filésofos guardan en su memoria para transponer en lugares convenibles a sus actos y propésitos». Eles poem em pritica uma leicura plural, que distingue o cémico e o sério, que retém os sentidos morais de uma histéria capaz de orientar a existéacia individual, que sabe entender na primeira pessoa aquilo que € proposto a todos. A sua maneira, 0 prélogo de Rojas indica a teasio central de toda a hist6ria da leitura. Por um lado, a leitura é pratica criadora, actividade producora de sentidos singulares, de signi- ficagdes de modo nenhum redutiveis as intengdes dos autores de textos ou dos fazedores de livros: ela é uma «caca furtivar, no dizer de Michel de Certeau?. Por outro lado, o leitor é, sempre, pensado pelo autor, pelo comentador ¢ pelo editor como devendo ficar sujeito a um sentido Gnico, « uma com- preensao correcta, a uma Jeitura autorizada. Abordar a leitura é, portanto, considerar, conjuntamente, a irredutivel liberdade dos leicores e 0s condicionamentos que pretendem refteé-la. Esta tensio fundamental pode ser trabalhada pelo historiador através de uma dupla pesquisa: idencificar a diversidade das leituras antigas a partir dos seus esparsos vestigios e reconhecer as estratégias através das quais autores ¢ editores tentavam impor uma ortodoxia do texto, uma leitura forcada. Dessas estratégias, umas sfo explicitas, recorrendo ao discurso (nos preficios, adverténcias, glosas ¢ notas), e outras implicitas, | fazendo do texto uma maquinaria que, necessariamente, deve impor uma justa compreensio. Orientado ou colocado numa arma- ditha, o leitor encontra-se, sempre, inscrito no texto, mas, por ‘seu turno, este inscreve-se diversamente nos seus leitores. Dai a necessidade de reunir duas perspectivas, frequentemente sepa- radas: o estudo da maneira como os textos, os impressos que 7M, de Corcean, «Lire: un braconnages, in Liimention du quotdien, 1, Ans de Faire, Paris, Union Générales d'Editions, 10/18, 1980, pp. 279-296. 124 TEXTOS, IMPRESSOS, LEITURAS hes servem de suporte, organizam a leitura que deles deve ser feita e, por outro Iado, a recolha das leituras efectivas, captadas nas confissdes individuais ou reconstruidas & escala das comuni- dades de leitores. Assim, para Rojas, as opinides diversas sobre a Celestina tem de ser reportadas a pluralidade das competéncias, das expectati- ‘vas © das disposigdes dos seus leitores. Dependem igualmente das maneiras como estes «léem» o texto. Resulta claro que Rojas se dirige a um leitor que 18 0 prélogo pata si mesmo, em sil€ncio, no retiro da sua intimidade. Mas nem todos os leitores da tragicomédia sio dessa natureza: «Asi que cuando diez personas se juntaren a ofr esta comedia, en quien quepa esta diferencia de condiciones, como suele acaccer, :quién negard que haya contienda en cosa que de tantas maneras se entienda?» Dez ouvintes, reunidos em torno do texto lido em voz alta: a « diz como o texto deve ser oralizado. Um dos acres- centos & obra nesta edigao intitula-se «Dice el modo que se ha de tener leyendo esta tragicomedia>. O «lector» que cle visa deve variar 0 tom, encarnat todas as personagens, reproduzir os partes falando entre-dentes, mobilizar «mil artes y modos» de ler com 0 fim de captar a atengio daqueles que o excutum, «los oyentes». A Celestina © outros textos, como as novelas pastorais ou os romances de cavalaria, so os objectos privilegiados dessas leituras em que, para um pequeno mimero, a palavra propde 0 escrito aos que poderiam 1e-lo. As observagdes de Rojas abrem varias pistas de pesquisa. Em primeiro lugar, sobre as sociabilidades da leicura, contraponto fundamental da privatizagao daj ler, recolhido na intimidade solitaria. Do século XVI ao século XVI, subsistem as leituras em voz alta, na taberna ou na carruagem, no salio ou no café, na sociedade selecta ou na reuniao doméstica. & preciso fazer a sua hist6ria®. Segunda pista: a andlise das relacées entre > CER. Chair, , para retomar a teemi- aologia de R. Engelsing, Par slém das elivagens macroscipi- cas, 0 trabalho histtico deve ter em visto reconecimenco de paradigmas de leitura vides para uma comunidade de lei res, num momento € num lugar determinados oe al ppuricana do século XVI, ou a leitura «rousseauniana», ou sind, 4 Teieura magica dis sociedades camponesss do séclo 1%, Cada uma destas «mane de let= comport ov seus gets especf- Cos, os seus proprios uss do Tivo, o seu exc de, eferncis (a Biblia, a Nowelle Halos, 0 Grande e 0 Pequeno Allerto) caja leieura se rorna 0 arquétipo de todas as outras. A sva caracteriza rique culturelle», in P, Boudica ¢ R, Chie, ta lecture: uns prt slurs, in ratiques de la bcte, s0b a direccfo de R. Chartier, Marselha, Rivages, pp. 217-239. 132 TEXTOS, IMPRESSOS, LEITURAS so & portanto, indispensivel a coda a abordagem que vise reconstituir 0 modo como 0s textos pocliam ser apreendidos, ‘compreendidos, manejados. As Giltimas observacies de Rojas no prélogo da Celestina dizem respeito a0 proprio género do texto: «Otros han litigado sobre el nombre, diciendo que no se habia de llamar comedia, [pues acababa en tristeza, sino que se lamase tragedia. El primer auctor quiso dar denominacién del principio, que fué placer, Haméla comedia, Yo, viendo estas discordias, entre estos estremos parti agora por medio Ia porfia, y Iaméla tragicome- dia». Este reparo pode levar a duas séties de reflexdes. Antes de mais, chama a atengio para as identificagdes explicitas, que designam e classificam 0s textos, criando em relacio a eles expectativas de leitura, antecipagdes de compreensdo. O mesmo sucede com a indicagio do género, que aproxima o texto a ler de outros, ja lides, e que aponta ao leitor qual o pré-saber onde inscrevé-lo. E igualmente 0 caso de indicadores puramente formais ou materiais: por exemplo, o formato e a imagem. Dos fGlios aos tamanhos pequenos, existe uma hierarquia que combi- ‘na o formato do livro, 0 género do texto, 0 momento e 0 modo de leitura. No século XVIUL, Lord Chesterfield € disso testemu- nha: «Os grandes in-folios so os homens de negscios com quem converso durante a mana. Os in-quartos so as companhias mais diversificadas com que me redino depois do almoco; ¢ os meus serdes, passa-os na cavaqueita amena e muitas vezes frivola dos pequenos in-octavos ¢ in-duodecimos» '. Tal hierarquia é, aliés, dicectamente herdada dos tempos do livro copiado a mio, fazendo a distinglo entre 0 livro de bancada, que tem de ser pousado para ser lido © que é livro de univers{dade e de estudo, © livro humanista, mais manuseivel no seu tamanho médio, ¢ que dé a ler textos clissicos ¢ novidades, e 0 livro transportével, © Tibsllus, liveo de bolso © de cabeceira, de miltiplas utilizacées “Em inglés, no original; «Solid folios are che people of business with whom I converse in the morning. Quartos are the easier mixed company wit whom 1 sit after dinner; and T pass my evenings in the light, snd often fivolous chit-chat of small octaves and duodecimoss, citalo por RE Stoddard, in art. ct, CAPITULO IV ee Jeitores mais aumerosos '', Do mesmo modo, a imagem, a taoniiipl ‘ou na pagina do titulo, na orla do texto ou na sua sltima pigina, classifica 0 texto, sugere ums leitun, costs tum significado, Ela € protocolo de leitura, indicio identificador. ‘Mas Rojas leva igualmente a pensar que a histéria dos géne- ros, vextuss © tipogricos, podeia forces uma bu de apo a9 projecto de histéria dos discursos tal como Foucault a formulou. Compreender as séries de discursos na sua desconti nuidade, desmontar 0s principios da sua regularidade, identificar as suas racionalidades particulares, supoe em nosso entender ter em conta os condicionamentos ¢ exigéncias que advém das proprias formas nas quais sio dados a ler. Donde 4 necesséria atengao 4s leis de produgio ¢ aos indispensiveis dispositivos que regem cada classe ou série de textos transformados em livros, as vidas de santos como os livros de horas, os livros de ocasiao como os livres bleus, os falbetos de cordel* como 0s chaphonks, os livros de emblemas como 0s livros de entrada... Donde igual- mente a identifica indispensivel das migreges de um género ppara 0 outro quando determinada forma se encontra investida de caracteristicas que Ihe sio habirnalmente estranhas ou de vextos ‘que geralmente se encontram nouttos locais sob outras formas © estudo crftico e genealégico dos discursos em séries rk pois, apoiar-se no projecto que visa cruzar at i ee u ada conjunco de textos consderado, a hiseéria dis vain sua letra e a das transformacies da sua passagem a objecto ress. sheriaat hipéteses de trabalho apoiam-se num certo aémero de revalidagdes critices que representam distanciamentos face @ certezas e habitos da histéria culeural francesa". As primeiras dizem tespeito aos empregos clissicos da nocio de cultura 11 A. Petrucci, «Alle origini del libro moderno: libri da banco, libri da bisaccia, libretti da mano», in Libri, serittura e pubblico nel Rinarcimente. Guida stra critica, acuta di A. Petrucci, Roma-Bari Laer, 1972. pp. Gere aie anh atc Haas ries eer ape aoe B4 TEXTOS, IMPRESSOS, LEITURAS popular. Esta no parece poder resistir a erés divides fondamen- tais. Antes de mais, deixou de ser sustentavel precender estabe. lecer correspondéncias estritas entre clivagens culturais e hierar

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