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Revista de Economia Politica, vol. 20, n° 4 (80), outubro-dezembro/2000 A Dialética Valores e Precos JOAO ANTONIO DE PAULA* ‘Most of the debate about the so-called “transformation problem”, which stems from Bohm-Bawerck’s criticism of the third volume of Capital, has a frame of refer- ence that attributes presuppositions and a methodology to Marx that are more suit- able to the walrasian theory. This article discusses that question aiming at two differ- ent goals. It points the problematic consequences to the marxist theory of values and prices of the acceptance of the presuppositions of the equilibrium approach. On the | other hand, it offers an argument for tackling the “transformation problem” from a strictly dialectical point of view. INTRODUGAO Hesito em enunciar o tema deste artigo. Ha perigos envolvidos. © primeiro é que gere expectativas que, talvez, nao sejam satisfeitas. Um outro risco € que in- duziré o leitor menos benevolente a abandond-lo no momento mesmo em que se enuncie seu contetido. Nao ha, neste caso, nem mesmo a possibilidade de reivin- dicar a “suspension of disbelief”. Nao hd atenuantes. O tema tem historia longa, € centendrio € controverso. Para muitos nao ha propésito em retomé-lo, porque, em seus termos basicos, esta resolvido de um jeito ou de outro. Para estes, a ques- tao foi resolvida com a demonstragao da inconsisténcia definitiva de uma certa matriz conceitual. Retomar a questao a partir dessa matriz seria assim continuar prisioneiro de um fantasma. Diz Steedman: “La ‘solucién’ del problema de la transformacién ofrecido por Marx es por entero inaceptable; es internamente incoherente, aun cuando se transformen los precios de los insumos. [...] Los eco- nomistas marxistas debieran dejar de perder el tiempo en debates incompetentes sobre sencillas cuestiones de légica. Cuando se liberen del fantasma del ‘proble- * Professor ¢ pesquisador do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (CEDEPLAR/FACE/UFMG). 116 ma de la transformacién’, quiza podran dedicar sus energias al trabajo marxista importante”. (Steedman, 1985, p. 35). Por algum motivo alguns marxistas se recusam a aceitar os bons conselhos ¢ as propostas dos que acreditam jé terem resolvido o problema. Talvez pela boa raz3o de que aceitar 0 que lhes oferecem os neo-ticardianos significa abrir mao da sua teoria do valor e com isso da base metodolégico-analitica fundamental de sua teo- tia do capital e do capitalismo. A chamada questdo da “transformagao dos valores em precos” teria tido ini- cio com a critica de um certo Dr, Wolfgang Miihlpfort, logo apés a publicagao do Livro III de O Capital, em 1893. Nessa critica, o Dr. Mithlpfort aponta suposta in- consisténcia no procedimento analitico de Marx — que ele deveria ter transforma- do também o capital constante e a varidvel em pregos de produgao — e tera grande recepgao, além de ter sido o primeiro a buscar corrigir 0 procedimento de Marx. (Neto, 1997, p. 21). ‘Apés a critica pioneira do Dr. Mithlpfort, que passou despercebida, em 1896, 0 grande economista neoclassico, da Es a, Bohm-Bawerk, publicara A conclusao do sistema de Marx (1974), trabalho cujo centro é a busca da invalidagao da teoria do valor de Marx, considerada de um lado desnecessaria para a constru- 40 de uma teoria dos precos, ¢ de outro lado inconsistente como base para uma teoria dos prego: A provocagao de Eugen von Bohm-Bawerk se seguira a tentativa insuficiente de resposta de Rudolf Hilferding (1974), de 1904, e a pseudo-efetiva solugo de Bortkiewicz (1974), apresentada em trabalhos de 1906 e 1907. O conjunto desses trabalhos foi reunido em volume, que, com introdugdo de Paul Sweezy, foi publi- cado em 1974, pelos Cuadernos Pasado y Presente, com 0 titulo — Economia Bur- guesa y Economia Socialista. Neste artigo, o tema da transformagao dos valores em precos sera retomado na medida em que é uma questo importante para o desenvolvimento do pensamento marxista, isto €, que 0 correto enquadramento enfrentamento do problema rea- firma a acuidade teérico-analitica do marxismo. Fundamentalmente, a tese que se vai defender aqui é que a tradigao da polé- mica sobre a “transformagio”, isto é, a busca de um método que estabelega a pas- sagem dos valores aos precos, como se estes constituissem dois momentos isolados da dinamica capitalista, criou um problema inteiramente desfocado, cujas solugé ou levam ao abandono da teoria do valor ou a reafirmagao de uma pretensa orto- doxia marxiana. Pretende-se apresentar aqui um argumento que busca enfrentar 0 problema a partir da afirmagao do que é rigorosamente fundamental em Marx, que éa centralidade da dialética como método e como ontologia. Isto é, enfrentar a questo nio mais no plano da afirmagao da identidade, nos marcos de uma pers- pectiva de equilibrio geral, mas no terreno em que a contradigao € 0 mével ¢ 0 con- tetido do processo de determinagao dos precos no regime capitalista. Significa, en- fim, dizer que nao ha um “problema de transformagao”, mas uma dialética na re- lacdo entre valores e pregos. Entre os muitos mistérios que assombram e perturbam a trajetéria do marxis- cola Austri es mo, um é particularmente intrigante. Como, por quase cem anos, 6 marxismo nao se deu conta de que, ao tentar responder a tentativa de invalidagaio de Bohm-Bawerk, a partir da “solugiio” de Bortkiewicz, fez entrar ¢ instalar-se, confortavelmente, em seu campo teérico, uma teoria e um método walranianos, que lhe so inteiramente estranhos e incompativeis? Para muitos marxistas, é certo, isto, na verdade, nunca foi problema porque sempre viram Marx como apenas mais um economista, melhor em alguns aspectos que outros economistas, dotado de perspectiva ético-ideologica superior, mas, a0 fim e ao cabo, um economista. Ora, nesse sentido, aceitar os termos do debate tal como proposto por Bhm-Bawerk/Bortkiewicz é, até, positivo, na medida em que mostra que os marxistas também sao capazes de formalizar seus conceitos. Contudo, a grande questao decorrente dessa invasao walraniana colocar 0 marxismo a reboque de uma perspectiva tedrica, de pressupostos ¢ implicagdes radicalmente incompativeis com o central de sua proposta te6rico-metodologica. E © que esta amplamente discutido no livro organizado por Alan Freeman e Guglielmo Carchedi, em 1996, Marx and Non-Equilibrium Economics. Este ensaio, talvez. correndo o risco de certo exotismo, é uma reafirmagio da atualidade e vitalidade do marxismo e uma recusa a rendigao tedrica ¢ politica que 08 vitoriosos de hoje estao exigindo de nés enquanto fazem negocios e barbarie. 1, RECOLOCANDO A QUESTAO Na contestada solugo de Marx ao “problema da transformagao”, mais re- corrente dos argumentos é quanto ao carater incompleto da “transformagao” ope- rada ali, que teria deixado de fora a transformagao dos insumos. Para resolver essa inconsisténcia, as solugdes, a partir de Bortkiewicz (1906, 1907), passaram a ado- tar o procedimento de determinagio simultnea de valores e precos mediante a mon- tagem de sistema de equagdes simultaneas em que é explicita a inspiracao walrasiana. Nesses procedimentos, a presenga de Walras é mais que uma inspiragao de um método algébrico. £ uma exigéncia tedrica forte, o equilibrio geral, que contraban- deado para o marxismo levou, entre outros aspectos, a equivocas interpretacées dos esquemas de reprodugao de Marx, como nos mostrou Rosdolsky (1978, cap. 2, apéndice I). Contudo, para o argumento que se vai desenvolver aqui, o essencial é lembrar que se 0 expediente da determinacao simultanea de pregos valores mediante siste- ma de equagdes tem eficécia matematica, do ponto de vista das determinag6es re- ais, ele € uma simplificagao destituida de sentido, sem nexos reais, sem causalida- des historicas, e que, sobretudo, interdita a seqiiéncia material de atos de compra e venda, que marca 0 processo de formagao dos precos e que esta posto em toda a cadeia de interagdes que marca o processo da produgao a realizagao. © que est implicito no ciclo do capital-dinheiro descrito por Marx — D - M .P.... M’- D’ —é a intercorréncia de diversos atos de compra ¢ venda no proces- so mesmo de produgao, o que significa dizer que a relagdo entre produgao e circu- 18 lago nao pode ser considerada uma seqiiéncia légico-histérica rigida, mas momentos interagentes e articulados do mesmo processo global: a produgao e reprodugao capitalista. Assim 0 dinheiro, D, que da origem ao processo de produgao, compra meios de produgao, MP, e aluga Forca-de-Trabalho, FT, atos que estabelecem de imediato a conexao entre a produgao € a circulacao, ¢ que explicitam a existéncia de pregos dados, isto é, 0 mercado de capital constante e 0 mercado de forga de trabalho. A seguir, esses elementos sio organizados no Processo de Produgao, P, 0 qual, ao final, gerard um conjunto de mercadorias, M’, que vendidas, possibilita- ro ao capitalista recuperar 0 dinheiro inicial que colocou no proceso, D, ¢ que foi usado para comprar MP e FT, e mais um lucro, resultante da mais valia, m, extraida da exploracao da FT. Esquematicamente: MP 1° momento: D—M = > compra “PT 2° momento: (MP + FT) > P M’ > produgao 3° momento: M’—D’ > realizagao > venda Entao, o proceso de produgao capitalista, isto é 0 processo de produgio que visa o lucro, é 0 resultado de atos que se dao articuladamente nos planos da produ- cio e da circulagao. Nesse sentido, nao ha propésito em estabelecer a “determina- ¢40 dos pregos como uma seqiiéncia légica em que primeiro sao definidos os valo- res (plano de produgao), que em seguida serdo levados ao mercado (plano de cir- culagdo) para a aferigao social dos valores, isto é, para a determinagao dos valores efetivamente sancionados socialmente. Na verdade, o processo de determinagao dos precos resulta de uma série sis- tematica de inter-relacées alternadas entre o plano de produgo ¢ da circulagao, entre valores e pregos. © proceso inicia-se com um conjunto de pregos dados — 0 prego do capital constante; os salérios; os juros; o aluguel; © lucro esperado — ¢ €a avaliacao desses precos que determinara a forma da producao. Nesse senti- do, quando os capitalistas iniciam © processo de produgao, esto cientes do con- junto de pregos relevantes e $6 tomam a atitude de produzir porque consideram viavel 0 negécio dados aqueles precos. O que é, entao, incégnita nesse processo, que se inicia com o conhecimento, pelo produtor, das condi¢des de mercado? Sao incégnitas os elementos mesmo da concorréncia: as modalidades concretas de ex- tracao da mais valia operadas pelos outros capitalistas; a dinamica do progresso tecnolégico; a “politizagao” dos pregos decorrente da agio do Estado; a entrada de novos capitalistas no ramo de produgao considerado; as modificagdes no gos- to e na preferéncia dos consumidores.. Nesse sentido, a determinagao dos precos, do ponto de vista da teoria marxis- ta, deve inicialmente abandonar um pressuposto que, até aqui, tem balizado todas as abordagens referentes ao chamado “problema da transformagao dos valores em precos”. Trata-se, no fundamental, de superar o procedimento padrao que reduz a questo a um puro exercicio de determinacao simultanea de pregos e valores. Nes- se caso, como sempre, é essencial ter em conta que a teoria marxista é uma ontologia social, 0 que significa dizer que qualquer procedimento analitico nesse campo tem 119 sua validago na medida em que toma a realidade material como seu ponto de par tida. Isso significa tomar a realidade como conjunto de atos coneretos, historica- mente determinados e determinantes. Um outro aspecto essencial do procedimento analitico genuinamente marxis- ta, que é preciso construir no referente & determinagao dos precos, é entender 0 processo nao como ldgica da identidade mas como dialética, isto é, como ontologia, contradigao e alteridade. 2. O QUE DE NOVO ESTA DITO AQUI Em 1996 apareceu o livro Marx and Non-Equilibrium Economics, organiza- do por Alan Freeman e Guglielmo Carchedi, que serve, para 0 texto que se vai ler aqui, apoio implicito e reiteragao de uma mesma recusa a perspectiva proto-walra- siana, que penetrou muitas das tentativas no campo do marxismo no teferente a relagao entre valores e pregos. Mais recentemente, Joao Machado Borges Neto, em sua Dissertago de Mestrado — “A Transformacao dos Valores em Pregos de Pro- dugao em um Sistema Unico Temporal”, de 1997, em artigo para a Revista ANPEC, n 3, de 1998, cujo titulo é *O Sistema Unico Temporal: uma Nova Abordagem da Transformagio dos Valores em Precos de Produgao”, sistematizaré o fundamental dos esforcos coletivos centrados na busca de uma alternativa marxista no-wal- raniana A “questo da transforms A base desses esforgos é a construgao de um sistema chamado tinico temporal, que, rejeitando o dualismo metodolégico introduzido por Bortkiewicz (1906, 1907), para estabelecer a transformacao dos valores em precos, perpassa grande parte do que se disse sobre o tema desde entao. Esse sistema tinico temporal teria como ca~ racteristica basica ser ndo-dualista e introduzir, efetivamente, 0 tempo, isto é, a se- qiténcia real-cronolégica de fatos, de que é feita a economia como dimensio cen- tral do processo. A rejeicao da pseudo-solucao da determinagao simultanea de va- lores e precos, que marca o tema de Bortkiewicz.a Sraffa, implica fundamentalmente considerar a relagao entre valores e pregos como um processo real, como ontologia, onde 0 valor nao é apenas relacao de troca, mas substancia social, produzida pelo trabalho abstrato ¢ redistribuido entre os varios capitais, sob a forma de mais va- lia, resultando dai a diferenciacao entre valores ¢ precos que é constitutiva, fundante, do de ser mesmo do proprio movimento do capital. Joao Machado Borges Neto mostra em seus trabalhos citados como foram sendo gestadas formulagdes alternativas a transformagao dualistica. Em primeiro lugar, o chamado “método iterativo de céleulo”, que, iniciando-se com Shibata em 1933, floresceu nas décadas de 1970 e 80 com os trabalhos de Brody, Okishio, Shaikh, Morishima, Catephores, Panizza ¢ Pala (Neto, 1997, p. 52). Uma segunda corrente, chamada new solution, new approach ou new inter- pretation, que se inicia na década de 1980, teve as contribuigdes decisivas de Duménil, Lipietz, Duncan Foley, Glick, Erbahr, Simon Mohun (Neto, 1997, p. 53). A terceira corrente buscou construir um sistema que é chamado de sistema tinico rai 120 simultanco; inicia-se também na década de 80, com, entre outros, os trabalhos de Wolff, Callari ¢ Roberts, Fred Moseley e Ramos e Rodriguez (Neto, 1997, pp. 54-5). Finalmente, a quarta corrente é a que aborda o tema do ponto de vista do s tema tinico temporal; que também tem inicio na década de 1980 ¢ tem como traba- Ihos pioneiros os de Kliman ¢ McGlone, Freeman, os diversos textos do livro ja citado c organizado por Freeman e Carchedi, além dos trabalhos de Perez, Ernst, Langston, Maldonado Filho, além dos trabalhos do proprio Jodo Machado Borges Neto (Neto, 1997, pp. 56-8). Todo esse inventério visa, de um lado, mostrar a atualidade e vivacidade do tema, de outro, situar 0 especifico do trabalho que se esta lendo. A questdo central a seguinte: tudo 0 que sera dito aqui, nao é, de forma algu- ma incompativel com a abordagem do sistema nico temporal. Contudo, reivindi- ca-se, talvez imodestamente, certa originalidade no que se propée. Trata-se da afir- maco de um principio metodolégico que, se esta implicito em muitos dos traba- Ihos considerados, nao teve qualquer fungao heuristica explicita nas abordagens — enfim, trata-se de afirmar a centralidade da dialética como método e como ontologia do ser social. Varios autores — Lukacs, Rosdolsky, Kosik —, em abordagens seminais, in- sistiram no inescapavel da dialética da obra de Marx. No entanto, muito poucos, de fato, conseguiram extrair as conseqiiéncias necessarias disso, que, quase sempre, transformou-se numa petigao de principio vazia de contetido. Afinal, 0 que signifi- ca ser dialético, como apresentar os resultados de uma pesquisa de forma dialética? So, como se sabe, questdes complexas. Incidindo dirctamente sobre o tema em pauta comecemos por uma ligdo de Lukacs: “Creio, entao, que o caminho que devemos empreender, ¢ com 0 qual ja entramos de cheio nos problemas ontolégicos, €o da pesquisa genética. Isto é: devemos tentar pesquisar as relagdes nas suas for- mas fenoménicas iniciais e ver em que condigdes estas formas fenoménicas podem tornar-se cada vez mais complexas ¢ mediatizadas” (Lukacs, 1969, p. 13). E as formas fenoménicas iniciais aqui nao sao os valores, como imagina certa falsa ortodoxia marxista. A forma fenoménica inicial aqui é a mercadoria. E isto que Marx disse, explicitamente, em seu tltimo texto econdmico, de 1882, “C marginais a0 Tratado de economia politica de Adolph Wagner” — “El senior Wag- ner olvida también que para mi no son sujetos ni el ‘valor’ ni el ‘valor de cambio’, sino que lo es solamente la mercancia” (Marx, 1977, p. 171). Tomando a mercadoria em sua realidade fisica e social, 0 fato de existir no mer- cado, de ser a coagulagao do trabalho humano, de ter um prego, é dai que a critica da economia politica parte, sendo a sua trajetoria 0 processo de constituicao das mediagées que transformaram a mercadoria, “de unidade elementar da riqueza”, em capital, isto €, “colegao de mercadorias, conjunto da riqueza nas sociedades onde rege a producao capitalista”, como esta dito na primeira frase de O Capital. Entdo, © que é decisivo na relagdo entre valores e precos, do ponto de vista marxista, nao € 0 estabelecimento de uma falsa anterioridade dos valores a que se segue um conjunto de precos correspondentes, cabendo a teoria a irrealizavel tare- fa de encontrar um “método de transformagio” que garanta a identidade entre va- s+ losas 121 lores e precos, Tal procedimento € absolutamente estranho as preocupagées de Marx € 86 tem solucao, como mostrado por Sraffa, com o abandono da teoria do valor como substncia social. Desse modo, este artigo tem como objetivo central mostrar a mecanica real da relagdo entre valores e pregos mediante a reivindicagao de seu carater dialético, a qual se concretiza pela explicitagao de trés aspectos centrais que distinguem o ar- gumento que se segue das outras abordagens do tema. O primeiro aspecto € 0 refe- rente a forma triadica da relagao entre valores ¢ precos. Ao contrario da usual apre- sentacao do problema, que reduz a questo ao dualismo: valores > valores — pre- 608, 0 que se diz aqui é que a relacao é, na verdade: precos > valores > prego: Isto é, todo o processo tem origem com pregos, os quais sao dados, esses pregos sia as referéncias que vao balizar as condigées concretas da produgao e desse modo a conservagao dos valores ja criados e a criagaio de novos valores, os quais se expres- sardo novamente como pregos, no momento da venda da mercadoria produzida, 0 que, adaptando-se a formula do ciclo do capital-dinheiro, seri _- MP... P... conservagao de valores Precos —< M’ — Precos ~\ = ~ FT... P... produgao de valores novos © segundo aspecto sobre o qual se reivindica a originalidade da apresenta- sao € no referente a relagao entre as esferas da produgao e da circulagao. A apre- sentagdo padrao estabelece, coerente com 0 que foi visto na relagao entre valores e precos, a dualidade: produgao —> circulagao. Ora, essa anterioridade da produ- Go em relagao a circulacdo é tanto légica quanto empiricamente sem sentido. Tanto a produgao capitalista como sistema, quanto o capital como categoria légi- co-genética tem como ponto de partida a circulagaos 0 que significa que o circui- to da interagao entre produgao e circulagao é, na verdade, o seguinte: circulagao = producio = circulagao. Finalmente, 0 terceiro aspecto sobre 0 qual se reivindica originalidade é que as duas triades anteriores (precos —> valores > pregos e circulagao — produgio circulagao) esto inter ¢ intra articuladas. Isto é, mudangas tanto nas condigdes de producdo quanto nos mercados determinam mudangas nas formas concretas de extragdo da mais valia ¢ nas estratégias concorrenciais. De tal modo que as duas triades articuladas teriam a seguinte formula: <—_ Precos. > Valores Precos ‘ a y Circulagio > Circulagao —— ru © que significa dizer que os capitalistas, de posse das informagées de merca- do, buscam a cada momento tanto adequarem suas estratégias competitivas, quan- to seus relacionamentos com fornecedores ¢ clientes, e, sobretudo, suas politicas de saldrios, organizacao do trabalho e inovagoes tecnolgicas, de tal modo que, de fato, ha uma permeabilidade permanente entre as esferas da circulagao e da produgao. 122 Isto significa que os precos que os produtores em principio “tomam” no mer- cado definem as estratégias de producao desses mesmos produtores, as formas con- cretas como vao organizar a extragao da mais valia e como vao se apresentar com- petitivos no momento da venda de seus produtos. Assim, 0 preco de venda das mer- cadorias é o resultado de um processo permanente de interacao entre as esferas da circulacao € produgao, em que os precos de compra de matérias-primas e os sald rios pagos, 0 desgaste do capital constante utilizado, que so quantidades de dinheiro, terao que ser conservados-ampliados no processo de produgao, possibilitando, as- sim, que, pela venda, a quantidade de dinheiro dispendida seja aumentada. 3. A DIALETIC. DA RELACAO ENTRE VALORES E PREGOS Mais de uma vez, quando o objetivo era analisar a génese historica do capital, Marx lembrou-nos que o ponto de partida, a forma inicial, histéria e logicamente, do capital é a circulagdo — “A circulagao das mercadorias € 0 ponto de partida do capital” (Marx, 1968, livro I, cap. IV, p. 165). O interessa aqui é afirmar a anterioridade histérica ¢ Logica da esfera da cir- culagao ¢ todas as conseqiiéncias disso para o processo de determinacao dos pre- gos. A circulacio, isto é, a existéncia dos mercados de dinheiro, de produtos, de forga de trabalho e seus precos, € um dado desde o inicio do processo de produgio. O proceso s6 serd iniciado se 0 capitalista avaliar, com base nos sinais do mercado, a viabilidade a priori do negécio. A circulacao, isto é, os mercados e os pregos, esta- belece os marcos abstratos, os elementos capazes de induzir, ou nao, 0 investimen- to. Entao, j4 desde o inicio, esto dados certos pregos, nao havendo propésito, se- nao os decorrentes da utilizagdo de um sistema de equagdes simultneas, em afir- mar que os precos serao determinados ao mesmo tempo que os valores, ou as quan- tidades fisicas de mercadorias. Alguns precos antecedem, ldgica e historicamente, a produgao. Entdo, se o capitalista, dada uma estrutura de precos, resolve produzir, € por- que ele acredita que, independentemente de sua posicao relativa na industria, ele tem condigdes, no processo de produgio, de se afirmar no mercado, obter lucros etc. Essa crenga, baseada no seu conhecimento ¢ experiéncia, e, sobretudo, nos ele- mentos de sua propria estrutura produtiva, significa que o proceso de produgao, que ele fara destanchar, € capaz, a priori, de garantir a lucratividade minima do em- preendimento. Tudo entio, a partir dai, vai se passar no interior da unidade pro- dutiva de forma a buscar sancionar o lucro esperado pelo capitalista. Rigorosamente, do ponto de vista légico-genético, a circulacao, os dados pre- liminares do mercado, a compra de capital constante e variavel, é a tese, momento abstrato do proceso de produgio do capital, que teré que ser materializada, mediante 0 processo de produgdo que aparece, assim, como antitese. Nesse processo, reinam, sobretudo, as estratégias concretas da apropriacao da forca de trabalho pelo capi- tal, as formas concretas da extragio da mais valia, que estarao calibradas em fun- ¢40 dos sinais de mercado, dos precos pagos pelo capital constante, dos salirios, 123 do prego do produto no mercado, da tecnologia disponivel. No interior da produ- 40, 0 capitalista tentara superar sua eventual inferioridade tecnol6gica em relagao a seus concorrentes mediante o aumento da exploragéo do trabalho, fundamental- mente, Nesse sentido, a esfera da producao, o processo de produgo que se segue & circulagdo, é sua complementagao necesséria ¢ sua negagao. A producdo, 0 proces- so de extragao de mais valia significam a transformagio — metamorfose — des- truigao — recriagao do capital constante e varidvel em mercadoria, que tera que conter, além do valor dos custos de producao (C + V), 0 lucro do capitalista. Contudo, esse momento, em que a matéria do capital constante foi transfor mada, que o capital varidvel foi posto em ago e tanto conservou o valor do capital constante quanto criou seu préprio valor e um valor excedente, esse momento crucial do proceso de produgao capitalista ainda nao € 0 que o realiza definitiva- mente. Ha ainda um outro, a sintese, tao essencial quanto os anteriores, que € 0 da venda das mercadorias produzidas, a volta a materialidade do mercado das novas mercadorias produzidas, e que, de novo na circulacao, confrontar-se-do com as outras mercadorias produzidas pelos concorrentes. Neste ponto, é importante lembrar que entre o D inicial e © D’ final da realiza- 40, ha descontinuidade espacial e temporal, o que significa dizer que tanto as con- digdes de mercado, a demanda ¢ a oferta, quanto as outras dimensdes da concor- réncia poderdo ter sofrido alteracées, invalidando ou reforgando as iniciativas dos capitalistas no plano da produgio. Trata-se, nesse sentido, da sintese do processo, isto &, da reunido dos momentos da circulagao inicial e da produgao, na realizacao. Busca-se, aqui, construir argumento baseado na idéia de que a dinamica concor- rencial é, imediatamente, intra-setorial, isto é, sio os capitalistas de um mesmo ramo industrial que efetivamente travam a competi¢ao. Contudo, é preciso ter claro que © proceso competitive efetivo, s6 se completa com a concorréncia inter-setorial. Também suposto aqui que a concorréncia tera os seus limites ¢ possibilidades de transferéncia intra-sctorial de mais valia dados pela diferenca entre o produtor mais eficiente e o mais ineficiente. Na base dessa interagao, esta a idéia de que todas as. tentativas que o produtor ineficiente fizer para se manter no negécio, aumentando a mais valia do ponto de vista absoluto e/ou relativo, pagando salarios abaixo do valor da forca-de-trabalho, reduzindo os pregos pagos pelo capital constante, to- dos esses expedientes acabam por ter efeito para o conjunto da economia na medi- da em que sao todos mecanismos que contribuem para o aumento da mais valia global, na medida em que reduzem, numa certa proporgao, os custos de reprodu- cao da forca de trabalho, e acabam assim, afinal, por beneficiar ainda mais os pro- dutores mais eficientes que, nesse caso, se beneficiariam com os expedientes desen- volvides pelos produtores mais ineficientes, sobretudo quando desenvolvem estra- tégias que acabam por baixar a taxa de salarios etc... Trata-se, entdo, de admitir uma permanente transferéncia intra-setorial ¢ inter- setorial de mais valia na medida mesmo da existéncia de diferencas significativas entre as estruturas produtivas. E costume tomar o capitulo IX do livro II de O Capital como o locus privile- giado da discussdo sobre a questdo da relagao entre valores e precos. Durante mui- 124 to tempo, esstas leituras, de Bortkiewicz a Sweezy, resultaram em aprisionar 0 pro- blema ao esquadro walraniano. Mais recentemente, como ja foi dito, os autores do sistema tinico temporal mostraram como é possivel afirmar a perspectiva efetiva- mente marxista da questao a partir do mesmo capitulo 1X. Como também ja se disse aqui, nada ha que objetar, do ponto de vista do ar- gumento que se desenvolve aqui, as contribuigdes das teses do sistema tinico tem- poral, que apresentam solugao rigorosa do ponto de vista formal e da fidelidade & perspectiva marxista. Contudo, é no capitulo X do livro TIT que Marx amplia o argumento referente as relagées entre valores ¢ pregos, para incorporar questdes de que nao trataré com- pletamente, mas que tém enorme importancia para os que véem no marxismo um instrumento heuristico atual. Trata-se da nao desenvolvida “teoria da concorrén- cia” que Marx planejou construir em livro que jamais foi escrito. Reportando-se a essa questo, Roman Rosdolsky cita Marx e conclui: “En uno de los tiltimos capi- tulos del libro III puede lerse a este respecto: ‘Exponiendo cémo las relaciones de produccién se reifican y se hacen auténomas frente a los agentes de la produccién, no examinamos la manera en que las relaciones tales como: el mercado mundial, sus coyunturas, el movimiento de los precios corrientes, los periodos de crédito, los ciclos de la industria y el comercio, la prosperidad y la crisis alternativamente, aparecen ante ellos como otras tantas fuerzas naturales, aplastantes y despiadadas, que les dominan y les parecen representar una necesidad ciega’. “Tales son los problemas que Marx reservé para una ‘continuacién eventual’ y que solamente trat6 en El Capital de manera fragmentaria 0 en conexién con otros temas. A nuestro parecer, los problemas més importantes son los del mercado mun- dial, las crisis econémicas y ‘el movimiento real de los precios’ (que Marx declaré expressamente que queria enlazar ‘con una investigacién particular sobre la com- petencia’)”. (Rosdolsky, 1972, p. 234). Embrides dessa teoria da concorréncia encontram-se no capitulo X, texto que incorpora, de forma rica e flexivel, varios elementos que devem compor uma teoria de concorréncia real, isto €, dos varios capitais, das contradigées entre eles, da presen- cada oferta e demanda como participantes do processo global da formacao dos pregos. 4, ASPECTOS QUANTITATIVOS DA RELAGAO ENTRE VALORES E PREGOS. A logica do argumento que se defende aqui est4 baseada em dois principios: 1) Na necessidade de se levar a sério 0 método dialético também no referente 4 relacio entre valores e precos; ¢ 2) na compreensio da realidade econ6mica como totalidade hist6rica concreta, isto é, como realidade complexa e contraditéria em sua dinamica. Nesse sentido, os esquemas analiticos quantitativos que serao expostos a se- guir devem ser entendidos como aproximacées simplificadoras de uma realidade em constante mutagao, onde nao ha lugar para identidades e equilibrios como metas e principios. 125 ‘A mecanica de construgo dos esquemas quantitativos que se vai apresentar difere dos esquemas tradicionais na medida em que tenta reproduzir a marcha real dos diversos momentos do processo de produgdo capitalista, o que significa admi- tir a interagao-alternancia entre os planos da circulagao e de produgao, a partir da seqiiéncia circulagao-produgao-circulacao, e entre valores e pregos a partir da se- giténcia pregos-valores-precos. Admita-se, em primeiro lugar, uma indtistria onde existam trés empresas, A, B, C, com as composi¢ées organicas do capital diferentes, responsaveis respecti- vamente por 20%, 60% e 20% da oferta, ¢ equilibrio entre oferta e demanda. Isso significa dizer que, nesse caso, 0 produtor B sera o produtor modal, isto €, definir 0s parametros basicos, da oferta, preco de produgdo que vai ser assim 0 prego do mercado. Admita-se também que o produtor A detém tecnologia superior utilizan- do-se de equipamentos ¢ materiais auxiliares mais avangados, pelos quais pagou 60$ 0s quais associou trabalhadores, que deverdo receber saladrios no valor de 40$. O produtor B pagou 50$ pelo capital constante que vai utilizar e pagara 50S em sali- rios. Finalmente o produtor C pagou 40 pelo capital constante ¢ pagara 60$ de salirios, tendo tecnologia inferior. Marx expressa essta situagéo da seguinte maneira: “Admitamos que a grande massa dessas mercadorias se produza aproximadamente em condigées sociais nor- mais, de modo que esse valor seja ao mesmo tempo o valor individual de cada uma das mercadorias que constituem essa massa. Se ha duas fragdes menores, uma pro- duzida abaixo, outra acima dessas condigées, de modo que o valor individual de uma é maior, ¢ 0 da outra menor que o valor médio dessa massa central, os dois extremos se compensam, de modo que o valor médio das mercadorias nela situa- das é igual ao valor das mercadorias da fatia do meio, e assim o valor de mercado fica determinado pelo valor das mercadorias produzidas em condiges médias” (Marx, 1974, p. 206). Além dos pregos dados, também sao conhecidos o prego de mercado do pro- duto, os juros e os aluguéis. E a partir desses precos que os capitalistas, os produ- tores A, B ¢ C, colocardo em marcha o proceso de produgao. Para cada nivel de prego do produto e para cada nivel da taxa de juros, os produtores, em fungao de sua estrutura técnica da produgao e das relacées concretas de dominacao do traba- Iho, adotarao estratégias que implicarao em tentativas de renegociar pregos de ca- pital constante, salarios, juros e aluguéis, redefinicao da jornada de trabalho, es- forgo de venda, busca de subsidios, incentivos e protegao etc. Contudo, a grande e fundamental estratégia que os produtores podem adotar € a alteragao das formas coneretas de extragao da mais valia. E sobretudo nesse plano, no dominio concreto do capital sobre a forga de trabalho, que as eventuais debilidades tecnolégicas de um produtor poderao ser compensadas pelo aumento da exploragao do trabalho. Nesse caso, o prego tende a ser fixado pelo produtor modal B, o que significa dizer que 0 preco sera fixado num nivel que cobre os custos de produgao (C + V) mais 0 lucto do produtor (M). Esse lucto é produto de extragao de trabalho nao pago a Forca de Trabalho. A taxa de exploracao da Forca de Trabalho, a taxa de mais valia, vai depender, em cada caso, do prego de mercado do produto, da estru- 126 tura técnica da produgao, da etapa vigente do ciclo econdmico, da politica de Esta- do e do grau de organizacao dos trabalhadores. Admita-se que o produtor B fixe sua taxa de exploragdo em 100%, isto é, que obtenha 508 de lucro. Nesse caso, 0 preco de mercado do produto sera igual a 1508. Nesse caso, restard aos produtores A eC se adaptarem ao preco de mercado, o que implicar no caso de C, para se manter competitivo, aumentar sua taxa de mais valia clou reduzir os salérios. Quanto ao produtor A ao vender seu produto ao prego do mercado, 150, se apropriara de um lucro extraordinario de 10. Contudo, nao é essa a dinamica real da determinacao dos pregos. 0 exposto acima, na verdade, estabclece uma condicao irreal, que é 0 equilibrio estatico, onde cada produtor se contentaria com uma fatia de mercado dada e irremovivel. Na realidade da dinamica capitalista, todos os trés produtores procurardo aumentar seus lucros seja por meio da redugdo de seus custos, seja pela ampliagao de suas participacdes no mercado. Todos esses objetivos estao, em tiltima instancia, vincu- lados a capacidade dos capitalistas em aumentarem suas taxas de mais valia. De qualquer modo, na situagao anterior, nao ha qualquer propésito em acei- tar que o produtor mais ineficiente se beneficie disso. Na verdade, esse produtor, por estar produzindo em condigées inferiores 4 moda, ser4 penalizado na medida em que estaré dispendendo um tempo de producio superior ao que é socialmente necessario ¢ que é definido pelo produtor modal, nas condigGes de equilibrio entre oferta ¢ demanda. Assim, na verdade, 0 produtor C, ao ter um custo de producao superior ao do produtor B, tera uma reducdo em seus lucros na proporcio da dife- renga entre seu custo de produgao ¢ © do produtor B. Contudo, 0 proceso nao se encerra ai. De posse deste dado objetivo, a dife- renga entre seu preco de produgio (C + V + M = 160$) e 0 prego de mercado, que no caso aqui ¢ igual ao preco de producao do produtor B, isto é, 150$, 0 produtor C podera desenvolver uma estratégia de permanéncia na indtistria mediante 0 au- mento de sua mais valia sob a forma absoluta (aumento da jornada e/ou intensifi- cago da jornada de trabalho) ou mesmo pela reducao dos salarios. Tais estraté- gias, na verdade, acabarao beneficiando os produtores A ¢ B na medida em que 0 aumento da mais valia do produtor C significaré redugao, em algum grau, dos cus- tos gerais de reprodugao da forga de trabalho e/ou redugao dos salérios. O que esta implicito na argumentagao usada nesse € nos outros casos que vao se seguir € que o mecanismo concorrencial, que significa em muitos casos a trans- gressdo da troca de equivalentes, 0 pagamento de salérios abaixo do valor, por exemplo, atua, decisivamente, na transferéncia da mais valia entre os capitais, isto é, na determinagao da taxa média de lucro, a partir de valores individuais e taxas de mais valia diferenciada Trata-se de lembrar capitulo quase sempre esquecido na discussio sobre a di- nimica da acumulacao, que é 0 XXII do livro I, que se chama “Transformagio da mais valia em capital”, em que Marx estuda as diversas formas concretas de extra- cao da mais valia que nao a forma por exceléncia tipificada no capitulo XXIII, do livro I — “Lei Geral de Acumulagao Capitalista”. E no capitulo XXII que Marx dira: “A reducao compulséria do salério abaixo desse valor, entretanto, na pratica 127 desempenha papel demasiadamente importante para ndo nos determos por um momento em sua andlise. Dentro de certos limites, essa redugao transforma efeti- vamente o fundo de consumo necessario 4 manutengao do trabalhador em fundo de acumulagao de capitais”. (Marx, 1968, p. 697). Ou seja, nao ha que se desdenhar papel decisivo, dentro de certos limites, de formas nao-candnicas de apropriacdo de lucros. Na verdade, no concreto da con- corréncia, 0s capitais esto, o tempo todo, na fronteira da delingiiéncia, em varios sentidos, onde tanto a lei do valor, quanto a lei moral ficam sob ameaga. A tentativa do produtor C de se manter na indiistria pode acabar por benefi- ciar os produtores mais eficientes, instituindo-se, efetivamente, um processo de trans- feréncia de mais valia dos setores mais atrasados para aqueles de tecnologia supe- rior, se essa tentativa resumir-se a aumentar a mais valia absoluta ou buscar redu- zit salarios. Salarios menores pagos num setor podem acabar por reduzir a taxa geral de salarios para 0 conjunto da economia. Numa visualizagao esquemati Quadro} Equilibrio entre oferta e demanda __Circulagio Produgéo ] ci Produtor} Prego inicial v M PP ME MT PM. A | 1508 60s | 408 | 40 | 140s | +10 | 50 | 1508 B 150$ 50S 50S 50 150$ 50 {1 ‘50$ c 1508 40S 60$ 60 160$ “10 50 150$ z= 4506 150$ | 150% 150 4508 | oO | 150 4508 onde’ Pre¢o inicial -» € 0 prego vigente no mercado no momento da decisao do investimento © prego do capital constante V— prego da forca de trabalho = salério M— mais valia efetiva extraida em cada setor PP — Prego de produgao ME — Mais valia extra extraida e transterids entre os produtores MT —+ Mais valia total efetivarnente apropriada por cada setor PM — Preco de mercado eletivamente praticado TL Taxa de lucro sobre 0 capital total Registre-se que esses sao resultados aproximados na medida em que haverd sempre diferenga entre valores, pregos de producao e precos de mercado, na medi- da mesmo em que esto se alterando, continuamente, tanto as condigdes técnicas, quanto as relagdes econdmicas, 0 quadro politico, a huta de classes, a agao do Esta- do e de outras instituigoes. No esquema anterior, nao foi explicitada a relagao essencial entre valores pregos, 0 que poderia conduzir & falsa idéia de que se assume aqui a ociosidade da teoria do valor tal como afirmam neoclassicos, como Samuelson, e neoricardianos. Ao contrario disso, neste ensaio a teoria de valor é fundamento necessario e impres- cindivel para uma compreensao critica da realidade econémica capitalista. 128 Nesse sentido, cabe destacar os momentos centrais da relagao entre valores ¢ ptecos, do trabalho abstrato como substancia de valor. Em primeiro lugar, lembre- se que é atributo intransferivel do trabalho vivo a capacidade de conservar valores pretéritos contidos no capital constante, c, mediante sua transferéncia para os va- lores das mercadorias num proceso que Marx chamou de depreciacao. Também prerrogativa exclusiva da forga de trabalho é a capacidade de criacao de valores novos, de seu proprio valor, v, e a criagao de valor excedente, mais valia, m. Assim, quando os capitalistas vao ao mercado ¢ compram capital constante, ¢, a conser- vagio desse valor, a possibilidade de no final do consumo produtivo desse capital, bastar para comprar novos elementos de capital constante, no mesmo valor que © inicial, € resultado da agao essencial ¢ exclusiva da forca de trabalho. Um outro momento em que essa dimensao essencial da forca de trabalho se manifesta, onde a massa de valores produzidos, a quantidade de trabalho materia- lizado em valores de uso se faz decisiva, 6 no referente 4 producao e apropriagao de luctos. Os capitalistas se apropriarao de lucro na quantidade total da mais valia gerada, isto é, do trabalho nao pago apropriado pelos capitalistas. Dai que a soma total dos lucros sera sempre igual 4 soma total da mais valia. No esquema, anterior sintetizado no Quadro I, tomou-se uma certa relagdo de equilibrio entre oferta e demanda. Havendo uma elevagdo da oferta ¢ conservan- do-se 0 suposto de que tal oferta encontraré demanda, segue-se que: Quadro tI Oferta crescente _ Circulagao Produgao Cireulagao Produtos| Prego inicial | C vo}omM | pp | Me MT | PM. TL= ur + A | 1408 60s | 408 | 40 | 1408 0 | 40 | 140s | 40% 8 1408 50s 50s | 50 | 1508 | -10 | 40 | 1408 40% c 1408 40s | 60s | 60 | 1608 | -20 | 40 | 1408 | 40% = 420s | 1508 | 1508 | 150 | 4508 | -30 | 120 | 4208 | 40% Nesse caso, os mesmos elementos que foram aduzidos para explicar a perma- néncia do produtor C, no caso de equilibrio entre oferta e demanda, sero conside- rados aqui com a seguinte conseqiiéncia: a permanéncia dos produtores B eC na indistria depende da capacidade deles de aumentarem suas mais valias absolutas elou da redugao de salarios 0 que, sobretudo, beneficiard o produtor A que podera até ampliar seus lucros bastando para isto que reduza seus precos, ampliando as- sim sua fatia de mercado, em detrimento de Be C, 0 que sé é possivel porque 0 esforso de permanéncia deles na industria tem como resultado pratico a redugao do custo de reprodugao da forca de trabalho e/ou dos salarios. Num terceiro momento, considere-se a situagdo em que a demanda ¢ crescente: 129 Quadro Ill Demanda crescente |___ Gireulagao Producao Circulagao Produtos) Prego inicial | C vo |oM | pp | ME | MT | eM “| 4608 60s | 408 | 40 | 1408 | +20 60 | 160s" B 1608 sos | 508 | 50 | 1508 | +10 | 60 | 1608 c 160s 408 | eos | 60 | 160s | 0 | 60 | 1608 z eos ___| 1508 | 1508 | 150 | 4508 +30 | 180 | 4808 i Nessa terceira situacaio, o aumento da demanda faz com que haja ¢40 do valor social do produto, isto é um aumento do tempo de trabalho social- ‘rio, configurando situago que Marx vai tratar de forma geral no contexto da discuss4o sobre a renda absoluta da terra, nos capitulos XLIV e XLV do livro Ill de O Capital. Nao se depreenda desses esquemas um algoritmo exato da transformagao dos valores em pregos. Na verdade, nao ha transformagao dos valores em precos, nao ha uma separacao rigida entre o momento de produgao — valores — e o momento de circulagao — precos. A producio e a circulagao sio esferas interagentes em que a informagao de uma esfera — conjunto dos elementos que definem a concorréncia (circulagao) — determina a dinamica conereta das formas de extragao da mais va- lia (produgao). Isso ocorre porque se est considerando um processo em que as mudangas nao sdo sincronizadas ¢ nem absolutamente proporcionais, a igualdade entre a massa total de mais valia e a de lucros e a igualdade entre a taxa de lucro medida em ter- mos de valor ea taxa de hucro medida em termos de prego, sao tendéncias, sao apro- ximagées a uma realidade, o capitalismo, definitivamente infenso ao equilibrio ea identidade. Contudo, admitir a alteridade, 0 desequilibrio, como centrais na dialética va- lores-pregos nao significa abrir mao do rigor, contentar-se com 0 casuistico, Rigo- rosamente, o que parece arrepiar os cultores do fetichismo da identidade e do equi- librio, para manter a universalidade do argumento basta que se estabeleca um con- junto de relacdes sisteméticas entre as categorias em pauta de modo a garantir sua sistematicidade, isto é, as condigdes basicas da reprodutibilidade do sistema. No caso em pauta, trata-se de construir as relagées tedricas basicas que garantam a repro- dugao capitalista. Essas relagdes tedricas incidirdo, necessariamente, sobre os ele- mentos do proprio processo de reprodugao capitalista — capital constante, capital varidvel e mais valia. No referente ao capital constante, a condigao basica capaz de garantir a repro- dugao do sistema é que o preco do capital constante C seja reproduzido mediante a aco do trabalho vivo, que a cada periodo de producdo transferira — descongelara uma parte do valor contido no capital constante numa fragdo proporcional a sua vida titil operacional, algebricamente: Cc=¥ mente neces: (1) 130 O capital varidvel, utilizado para alugar forca de trabalho, fonte de valor e mais valia, tem um prego que € igual a massa de salarios. A reprodugao basica do sistema estard assegurada mesmo com a flutuagio do salario desde que no intervalo que vai de um minimo, que é dado pelo minimo de subsisténcia, a um maximo, que € 0 salario acima do qual a acumulagao de capital fica comprometida. Esquematicamente: Min. subs. < salario < Max. (2) Finalmente, no referente mais valia, a relagao basica essencial é a que estabe- lece: 1) a mais valia é a fonte basica de todo excedente apropriado pelos capitalis- tas sob qualquer forma de renda —lucro, aluguéis, juros; 2) a soma total da renda capitalista é igual 4 soma total da mais valia. Algebricamente =M=EL (3) As trés condigdes basicas de reprodugao estabelecidas poderao nao se verifi- car, ao menos temporariamente, isto é, C > Lc; significando descapitalizagao; 0 salério poderd ser menor que o Min. subs. ou maior que o Max. acarretando num caso a nao reprodugio da forga de trabalho, noutro a redugdo do ritmo da acumu- lacdo; finalmente, 2M < ZL na medida em que o capital burlar a equivaléncia nas trocas, isto é, quando, por exemplo, pagar salério menor que o minimo de subsis- téncia. De qualquer modo, estas situagies, se se repetirem, comprometerdo a con- tinuidade do processo. Trata-se, enfim, de apontar a existéncia das condigées basicas de funcionamento da dialética entre valores e pregos sem que isso signifique a fetichizagao do equil brio, mas a presenga de faixas de viggncia dos fendmenos, onde ha lugar para a alteridade, para a ruptura, para a crise. Jo3o Machado Borges Neto sintetiza a manutengao da centralidade do valor em sua relacao com os pregos e do absoluto rigor ¢ coeréncia do procedimento de Marx, a partir da tese do sistema tinico temporal, da seguinte maneira: “Marx nao carecia de transformar os valores do capital constante e do capital varidvel em pre gos de producao, porque estes valores so dados em dinheiro, e porque os valores dos meios de produgao adquiridos pelos capitalistas, e dos meios de consumo ad- quiridos pelos trabalhadores, j4 haviam sido transformados em precos de pro- dugdo em um momento anterior” (Neto, 1998, p. 81). ‘A grande “novidade” da abordagem do sistema tinico temporal, 0 que permi- te que ela supere as invalidagées recorrentes ao chamado equivoco do “algoritmo da transformagao dos valores em pregos de Marx”, é a redescoberta de que para Marx tanto o valor do capital constante, quanto o valor do capital variével, quan- to a mais valia sao quantidades de dinheiro. Dizem Freeman e Carchedi: “Ramos and Rodriguez, and McGlone and Kliman argue and explain that this is not only incoherent but incompatible with Marx’s own presentation. In part the value tran: ferred by constant capital is equal to the value as measured by the money advanced to purchase the elements of this capital. Likewise the value of variable capital is measured by the money advanced to pay the labourer, not the value of the products she or he consumes. These two conclusions, amply supported by Marx’s own wri ings, utterly invalidate the traditional refutation of Marx’s transformation of value into price. They permit a further decisive development: a recuperation of money in 131 Marx’s analysis of value and price in particular, and economic movement in gene- ral” (Freeman e Carchedi, 1996, p. XI). Esse novo aporte, essa afirmagiio da coeréncia ¢ rigor da teoria marxista, trazida pela tese do sistema tinico temporal, permite que a teoria possa avancar sem que a cada momento seja obrigada a responder a falsas imputagdes. Hd, ainda, muito o que fazer no campo marxista, sobretudo no referente a teoria da concorréncia. 5. CIRCULACAO OU PRODUGAO? A tradigao sraffiana, adotada amplamente, inclusive por quem se reclama marxii ta, entre outras conseqiiéncias importantes sobre o conjunto da teoria econémica, implicou estabelecer uma rigida separagao entre produgao e distribuigdo, a qual se daria no plano da circulagdo e seria determinada, em tiltima instancia, pela luta entre capital e trabalho, enquanto a produgao seguiria sendo o reino das relagdes técni- cas. Esta “politizagio” da distribuigao acaba sendo, por outro lado, uma “fetichi zacdo” da produgao, tomada como espago técnico, neutra, infensa a luta de clas- ses. Ora, do ponto de vista de Marx, a luta de classes nao tem espagos restritos, ela se manifesta em todos os planos da vida social. Nao ha razao para excluir a produ- do de sua agao. Na verdade, 0 processo de trabalho, isto é, a forma concreta de produgao de valores de uso, é inteiramente condicionada pela dindmica da luta de classes, seja a0 materializar as estratégias de exploragao do trabalho, seja ao con- templar as estratégias de resistencia ¢ luta dos trabalhadores. De outro lado ha os que, como Joao Bernardo, insistem na centralidade-hege- monia da produgao transformando a esfera da circulagdo em mera coadjuvante de um processo definido, quase que inteiramente, no plano de produgio — “no capi- talismo, é devido a concorréncia na produgao que os produtos sao socializados no mesmo processo por que sao produzidos, antes portanto de alcancarem a esfera do mercado, Esta é meramente acess6ria, de antemao determinada na esfera da pro- ducao ¢, por isso, 0s mecanismos da circulagdo sao neste modelo constituidos fun- damentalmente pela repartigdo intercapitalista da mais valia, a qual decorre da concorréncia na produgao.” (Bernardo, 1991, p. 228). Para Bernardo, teria sido o proprio Marx que teria induzido uma leitura que apontaria 6 mercado, como a tnica instancia capaz de garantir a sociabilizagao do processo: “Para Karl Marx, a inter-relagdo econdmica se estabeleceria no mercado: na esfera da producao, os bens apenas antecipariam o carater social, em fungao de uma futura sociabilizagao na esfera da circulago”. (Bernardo, 1991, p. 228). Num registro mais nuangado, também Sérgio Silva aponta os “descuidos” de Marx, em alguns trechos de © Capital, quando trata a circulacdo como momento separado e posterior ao da produgao: “Esses efeitos de separagdo conduzem a uma ilusdo sobre a possibilidade de conceber e, mais geralmente, tratar a circulagao de modo isolado, como um momento posterior ao momento da produgio, quando, na verdade, essa seqiiéncia é puramente légica; na pratica, circulagao e produgac sao processos concomitantes”. 132 “Sem a preocupagao de desculpar o grande mestre, cabe afirmar que os tre- chos de Marx possiveis de servirem de base a esse mal-entendido devem ser inter- pretados como ‘descuidos’, uma vez que jd no primeiro paragrafo do primeiro ca- pitulo do Livro Ill de O Capital, como se nao bastasse o titulo do préprio Livro III, ele afirma que 0 seu objetivo é, através da consideragao dos problemas particula- res da circulagao, tratar do processo de produgao no seu conjunto”. (Silva, 1981, pp. 115-6). Sérgio Silva tem razao quando aponta a impropriedade de se falar da realida- de da producio anterior ¢ isolada da realidade da circulagao. Contudo, seu argu- mento — produgio ¢ circulagao como processos concomitantes — nao explicita, suficientemente, a estratégia conceitual de Marx, a presenga nesse passo, absoluta- mente fundamental, da dialética. Falar que produgao e circulagao so concomitantes pode ser apenas uma justificativa para a utilizagao do sistema de equagoes simulta- neas na “transformagao dos valores em precos”. O que o argumento que foi de- senvolvido aqui procurou mostrar € que nao ha passagem dos valores aos pregos, porque nao ha um momento real, isolado no tempo no espaco, em que os valores gerados sio levados ao mercado para adquirirem cardter social. Na verdade, a re- lacdo entre valores e precos nao é bindria. Nao se trata de realizar as passagens/ transformacées: 1) de valores a precos; 2) de produgao para a circulagao; 3) do trabalho individual para o trabalho social. Na verdade, a lgica da construgao de Marx pode ser pensada como baseada em triades dialéticas: a primeira delas apresentada por Isaak Rubin ¢ as duas ou- tras desenvolvidas neste artigo. 1) 1) Trabalho universal > 2) |) Trabalho Privado 3) [a') Trabalho social |b) Trabalho concreto > —_b’) Trabalho abstrato | ca tiebatho complexo > |i Trabalho simples d} Trabalho individual -» —_|d’) Trabalho socialmente necessario 1) 1) Circulagao > 2) Produgao > 3) Circulagao Ill) 1) Pregos > 2) Valores > 3) Pregos © que significa dizer que os atos privados de compra e venda, a explora individual da forca de trabalho, o carater concreto, complexo, heterogéneo e indi vidual do trabalho, tal como expostos por Rubin (Rubin, 1974, p. 180) so, na ver- dade, as manifestagdes necessarias e possiveis de um processo que é essencialmente universal, social, € totalidade, e que, no regime capitalist, sé pode se manifestar de forma alienada, particular, finita. 6. EM TEMPO Antes de dar por terminada a imprudente jornada, talvez se imponha a neces- sidade de sumarizar os pontos principais do que se procurou dizer. 1, Em primeiro lugar, registre-se que grande parte dos problemas, reais ou ima- 133 gindrios, atinentes & relacdo entre valores e pregos, na obra de Marx, decorrem da reiterada incompreensao, que aliados ¢ adversarios, ttm de sua metodologia. £ amplamente conhecida a estrutura da exposigao de O Capital, que avanga do abs- trato ao concreto, cuja dinamica é dada por démarche logico-genética, isto é, as categorias analiticas construidas por Marx nao so nem pura facticidade-imedia- ticidade, nem pura abstracao; so entidades ontolégicas, unidades elementares de uma realidade — totalidade — em movimento, cuja expressao necessdria é a contra- digao. Trata-se, nesse sentido, de entender que a compreensio da obra de Marx, pressupée, fortemente, levar a sério a dialética, dar-lhe conseqiiéncia analitica. No que interessa especificamente a este ensaio, trata-se de desfazer 0 equivoco interpretativo da teoria do valor de Marx. Essa teoria no esta exposta no capitulo I, do livro I de O Capital. Aquele é apenas 0 primeiro momento, légica ¢ geneticamente necessario, de afirmagao de uma realidade, o valor, que s6 poderd ser apreendida quando se a reconstituir em sua trajet6ria histérica, de suas formas mais elementares abstratas, até a culminancia de sua complexificacao, quando estiver mergulhada na concre- ticidade dos varios capitais em disputa, no meio do torvelinho da concorréncia. © Capital, em seu livro I, realiza um primeiro movimento: o valor transita da situagdo inicial onde esta considerado numa sociedade mercantil simples para os quadros de uma sociedade mercantil-capitalista, isto é, em que o trabalho ja se se- parou dos meios de produgao, que agora sao monopolizados por uma outra classe. Contudo, essa sociedade continua sendo pensada abstratamente, o Capital ai, ain- da, é uma totalidade abstrata-homogénea. Marx indicou, mais de uma vez, que seu método impunha um caminho sist matico-inescapavel do abstrato ao concreto, 0 que significa dizer que nao é possi vel surpreender a totalidade complexa, a realidade pensada e apreendida pelo con- ceito, em todos os momentos da caminhada. Isto é, ha uma progressao heuristica das categoria analiticas em Marx. Na verdade, 0 que Marx mostrou, insistente- mente, € que a aproximagao do real é possivel na medida em que se construa uma rede de mediagdes, em que as categorias analiticas mais simples, como o valor tal como aparece no capitulo 1 do livro I, vai ser enriquecido com a constelagao de com- plexidades, metamorfoses, que a sua trajet6ria vai experimentando. Karel Kosik, em seu notavel Dialética do Concreto, descreveu este processo como a “odisséia” da categoria mercadoria, odisséia que teria seu desenlace quan- do o heréi, transformado pela vivéncia e aspereza de sua experiéncia, voltasse a0 seu lugar de origem metamorfoseado pelo que viveu e experimentou. Se a odisséia homérica é o roteiro, a odisséia da mercadoria nao 0 percorreu inteiramente. A mercadoria, que Marx acompanha e descreve, se multiplica, se enriquece, se complexifica, se desdobra, torna-se capital. Contudo, esse capital con- tinua aquém de sua plena constituigao porque continua genérico, abstrato, capital em geral, mesmo no livro III. Dai que, efetivamente, nao se tenha realizado a meta- morfose final: do capital em geral para os varios capitais; da concorréncia abstrata para a conereticidade-alteridade da concorréncia real, etc. Nao entender isso, buscar no capitulo I do livro I uma teoria completa do va- lor, ou ainda mais grave, tomar esse capitulo e associé-lo ao capitulo IX do livro TT e extrair dai uma condenagao ou aprovagao da teoria do valor de Marx é de uma total impropriedade. A teoria do valor de Marx é, com certeza, a base de uma teo- ria dos pregos, contudo, isso s6 faz sentido em Marx como parte de uma teoria do capital. Isso significa dizer que é no contexto de uma teoria do capital que se deve entender a teoria do valor e dos pregos em Marx. E uma teoria do capital em Marx 6, sobretudo, uma teoria da desigualdade, do conflito, do desequilibrio, da alteridade. 2. Ea explicita incompreensao desse aspecto do método de Marx — a teoria do capital como teoria da desigualdade — que norteou grande parte do que se es- creveu sobre a relagao entre valores ¢ precos. Um exemplo disso esté em Paul representante de uma importante tradigao sobre essa questo, e que vé no respeito as condi de transformagao de valores em precos. Diz ele: “Se o proceso usado na transfor- magio de valores em precos for considerado satisfat6rio, nao deve resultar na rup- tura das condicdes de reproducio simples. (...) © exame desse quadro revela que 0 método marxista de transformagao resulta numa violagao do equilibrio da Repro- dugao Simples” (Sweezy, 1967, p. 142). As condigées basicas capazes de garantir a reprodugao do sistema nio sio, historicamente, as do equilibrio, seja no caso da reproducao simples, seja no caso da ampliada. As equagées de equilibrio da Reprodugio Simples ou ampliada nao sio metas perseguiveis pelo capital, ndo sdo os similares marxistas do Equilibrio geral. Aquelas equagées, por suas condigées restritissimas, apontam, na verdade, para 0 quanto a economia capitalista é incompativel com o equilibrio. Nesse sen- tido, nao ha propésito em impor a relacao entre valores e pregos a cléusula do equilibrio na reproducao. A reproducio real, historicamente condicionada, esta, sistematicamente, ocorrendo de forma desequilibrada, num proceso em que as crises, as rupturas sd conseqiiéncias necessarias de uma realidade marcada pelo conflito, pela desigualdade. 3. Também importante é registrar que a materializagdo de uma solugio ade- quada para a relagao entre valores ¢ precos, depende do desenvolvimento de uma teoria da concorréncia, isto é, de uma teoria que incorpore as estruturas oligopélicas e seus mecanismos de formagio de pregos ¢ diferenciagao de taxas de lucro; o siste- ma financeiro e sua plet6rica presenga contemporanea; a expansao de economias ndo-capitalistas, baseadas em formas comunitérias, cooperativas, familiares etc., de propriedade e gestao e circuitos ndo-capitalistas de produgio e circulagao; 0 do ea luta politica da sociedade civil, sua organizacao em sindicatos, associ partidos etc. Sweezy, Ses de equilibrio da reprodugao simples a garantia de um método correto REFERENCIAS BERNARDO, Jodo. Economia dos conflitos sociais. Sao Paulo, Cortez, 1991 BOHM-BAWERK, E. “La conclusién del sistema de Marx” in Economia Burguesa y Economia Socia- lista. 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