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A PRODUÇÃO DA CASA NO BRASIL Este texto nasceu de anotações de aula na
FAUUSP nos anos 1968/69 e e um primeiro esboco de ·o canteiro e o desenho': Foí publ1
cado pelo GFAU em 1972, com o nome "A casa popular" (o primeiro subtítulo acabou
adotado como titulo provisório). Apresentamos aqui a versão original, mimeografada em
1969, revista e rebatizada por Sergio Ferro em 2005.
A CASA POPULAR
CONSTRUTOR Em qualquer bairro operário, Limão, American6polis, Veleiros,
Vila Carrão, Laranjal, Itaquera, Taguatinga, Núcleo Bandeirante, etc. a maio-
ria das residências foi construida pelos próprios moradores. Mesmo em Osasco,
bairro de operariado qualificado, estudo realizado para a elaboração de seu
Plano Diretor revelou grande porcentagem desta regra. Outra pesquisa,
orientada pelo professor Carlos Lemos sobre casas populares em São Paulo,
fornece as seguintes informações: de 122 moradias levantadas, 108 (88,5%)
foram construidas pelos proprietários; para as restantes 14, empreiteiros ou
pedreiros foram contratados enquanto os proprietários "às vezes, até se trans-
formavam em serventes solícitos." Geralmente sós, com filhos ou a mulher,
raramente em mutirão, os operários mesmos levantam para s~ nos fins de
semana, feriados, ou férias, seu abrigo. 1
MATERIAIS Os materiais, sempre os mesmos, são os de menor preço: o tijolo
e a telha de barro, feitos manualmente nas olarias neolíticas, o barro, como
1 A pesquisa do professor Carlos Lemos, em andamento (1969), ainda não foi publicada.
Seus resultados provisórios aparecem resumidos no relatório feito para o FAP (Fundo de
Amparo à Pesquisa), cuja cópia está no Departamento de História da FAUUSP. (A pesquisa
coordenada por Carlos Lemos e Maria Ruth Sampaio foi publicada em 1978, pela
61 FAUUSP, com o titulo Habi!.afão popular paulistana autoconstrulda. (N.o .)]
. - arelhada de '!/ para estrutura
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do telh
ad 0
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aglomera nte, a ma deira nao ap · ·
· d g Almimas vezes, sao materi ais Usad0
Portas janelas de tábuas, sem vi ro. i:,---
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' · l i ssor Carlos Lemos empre garai:n ma
31 das 122 casas pesquisadas pe O pro e ..
. d d . - Cha~o apiloado' por vezes at!Jolado, raramen te ci~ te,
n a1 e emo11çao. . . •.L.Lentad
Nenhum emboço ou revestimento. Em tese,_outros matena1 s poderiai:n o.
, rie de restrições onenta a escolha: o preço d ser
empregados. Mas uma se . . re Uzid
. , há • ele precisa estar disponíve l perto para evnar O trans o
dO matena1C SIC0 • de cada s lá P tte
0
.bi'litar compra parcelada com as reservas . a tio
oneroso, deve po SSl ·
.t do depósito suburban o, verdadei ro BNHzinho Popu] ºll
com o pequeno créd1 0 . 1 ar
. d'
d requerer mais do que um, m . iv1 uo para
'd mampu ação e , r·1na1 '
-
nao po e ·a1 sua
- deve exi· inr nenhuma tecmca espec1 no seu emprego É . · e'rlden
mente, nao b- . •
s limitarões se resumem na estreita• margem econômi ca te
que t odas esta- '?, • • , que
envolve O operário. A vinculação, portanto, de ta.1s matena1 s a casa popul
não r questão de gosto, higiene, estabilida_de ou conforto: é resultado do b:)( 0
nívc-1 de consumo permitido por seu salário.
TÉC;-;JCA A técnica utilizada, mais do que apr~ndid a, é vista, vivida, absorvida
or contínua vizinhança. Faz parte do conhecim ento popular quase espo nta. ,
P
iwo. que todos herdam, simples prática compatív el com nenhum a especia-
lização. A pesquisa referida mostrou pequena impossib ilidade dos operários
enfrentarem, eles sozinhos, a construção da própria moradia, apenas u ,s¾.
►
Entre os 88,5% capazes, havia de todas as áreas de produção, têxteis, mecâ-
nicos, carpinteiros, serventes, faxineiros. Não há empenho , ou m elhor, opor-
tunidade, para ousar alterações. Geralme nte casados e com filhos, a casa do
arrabalde é a alternativa às sórdidas condições dos porões e quartos dos bair-
ros centrais em decadência. A urgência elimina a inovação, que poderá custar
tempo. Além disso, os poucos tijolos obtidos devem seguir o modelo garan-
tido, afastado de experiências potencia lmente perigosas. Como na cozinha
popular, as receitas tradicionais poupam cuidados amente os ingredie ntes da
casa. Contradição menor que repete as maiores: continua mente, este mesmo
operário lida com os mais avançados meios de produção, ao responde r às suas
carências particulares, entretant o, dispõe somente de si e de pouquíss imos
instrumentos. Recorre ao que já foi largamen te provado no local, adaptand o
2 O nosso subdesenvolvimento está espelhado nestes materiais. A força do trabalho ainda
é o meio de produção mais barato, não porque sua manutençã o, com o avanço das
forças produtivas, tenha baixado de custo, mas porque o nível desta "manuten ção" é
baixissimo. A respeito de sua insuficiência, ver Josué de Castro, Geopolítica da fome. São
/J .! Paulo: Brasiliense, 1965.
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somente a raquítica técnica aos materiais que pôde obter. Dispõe do tempo
parcelado, não emprega processo algum que exija trabalho continuado, inin-
terrupto, mas aceita o velho modo que é apropriado à renovação completa em
cada etapa da construção, o empilhar de tijolos. Desprovido de qualquer m e io
de produção, é operário, recolhe a experiência feita sem equipamento pouco
mais complexo. Devendo contar somente com ele próprio, sem qualquer folga
para aprendizado, reencontra, cada vez, a mesma técnica pré-histórica.
PRODUTO Os próprios usuários, portanto, com a técnica absorvida, dispõem
do material de menor preço ou usado do melhor modo conhecido, o que, evi-
dentemente, é sempre precário. O produto obtido com tais limitações só pode
ser padrão. A casa mínima (entre as pesquisadas, 84 (70,5%) possuíam uni-
camente um quarto e 40,9%, apenas dois cômodos) é o utensílio abrigo puro
e elementar dotado exclusivamente do indispensável. A rudeza dos materiais,
a primariedade técnica geram o núcleo restrito ao atendimento franco, ime-
diato. A precisão imposta pela economia na produção ressurge como preci-
são no produto, precisão amarga, não resultado de engenho programado e
escolhido, mas depósito obrigatório de infinitas carências. Nenhum enfeite,
marca do "status" sobreposta: sua situação é evidenciada, exatamente por
sua ausência.
uso O utensílio elementar encaminha a uma utilização imediata, exata: assim
como o supérfluo não aparece na construção, o uso dispensa cuidados. Res-
tando no mini.mo, não há excessos que se interponham entre objeto e sua
serventia. Da casa, o operário requer, inicialmente, pouco ma.is que proteção
contra chuva e frio, espaço e equipamentos suficientes para o preparo de ali-
mentos e descanso. Enfim, tem com ela a relação direta e não mediatizada,
como só surge entre homem e seu instrumento de trabalho pessoal. Não é
envolvido por qualquer fetiche, usa simplesmente, sem mistério ou respeito
exagerado. A casa é feita para servi-lo e serve-se naturalmente dela. Organiza
as áreas conforme sua utilização. A maior e prioritária é reservada ao local
onde prepara alimento, descansa, convive, os filhos brincam ou estudam: a
cozinha (65 casas (54,8%) entre as estudadas possuem cozinha com área
superior a 11 m~). O modo de usar evidencia a classe, tal como o produto
usado. Limitado econômica e tecnicamente, o produto gera sua forma de con-
sumo, direta, eficaz. Interiorizado, o produto retorna como hábitos ou com-
portamentos que o confirmam. A eficácia forçada na produção corresponde
à eficácia no consumo, que se propõe como móvel ideal para qualquer nova
produção. E a herança inevitável será transmitida íntegra, imutada.
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A produç ão não cria somen te um objeto para o sujeito , mas també
. b. rn I..Un
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o Jeto do consur n0
su1e1to para o objeto [ ... ) Produz, por conseg uinte, 0
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modo de consum o e o instint o de consumo.~
uso SOCIAL Ora forçado ao primá rio por pressõ es econô .
o VALOR DE
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atinge o social, a eficácia, requer ida ao Pouco que tem, impõe a per,nll
ente é\nen.
eia da construça~o em torno do esquem a válido quase umve rsalm
nal e Pata.
os de sua cla~e. Portan to, apesar da forma de produ ção artesa
arcaica,
apesar de construir par• si, para atende r às suas necess idades básic
0 valor as Péltti.
culares, despre ocupad o com po~íve l utiliza ção por outros ,
cria.
é um valor de uso social. O valor de uso partic ular na misér ia é in:!:
mente um valor de uso social entre os danad os da terra; não há
e seca..
os qu,
permilAID a objetivação de idiossincrasias, a partic ulariz ação. E c:cess O
níve)
a que se deve ater é o da satisfa ção única de imper ativos vitais el ement
mo ~-
uer "<ll"es,
os resulta dos são pratica mente os mesmo s, sempr e e em qualq
_Parte,
varian do somen te em função do estágio históri co dos mater iais pnrná rio
. ' 1 · b d · corn s
mais arato a ca a mome nto e local) ' comp ativeis
(isto e, qua o
....... duç.ão artesan al e individ ual.
a pro.
.
ser.em transiç ão, o operár io se d eterm ina
A PEQUE~,\ PROPR - IEDAD. E Como
-
•
o de realizaçoes (efetivas ou apenas aspira das) g rad at1vam
romo sucessa
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. . e
superio
_ res e ser mercad oria, no operar iado e na catego ri· a d os trab alhad
.
ores
. dos peque-
nao manua is assalariados; e, quando vem a partic ipar da categona
uifão à critica da economia política. São Paulo: Martin s Fontes, 2 0 03 ,
3 K. Marx. Contrih
p..237.
o tijolo. A única
4 Em cerlas zonas, como Santa Catarina e Paraná, a madeira substit ui
possibilidade
constante na casa popular, com relação aos materiais, é seu baixo preço e
os com
de aquisição parcelada. Em pais subdesenvolvido, isto é sinônim o de produt
o.
baixíssima composição orgânica do capital, isto é, muita força de trabalh
ntemente
A t.a.ipa, por sua vez, só foi superada pelo tijolo depois que este foi suficie
r fornece ótimo
provado aqui e de escassearem os bambuzais. A cobertura da casa popula
ao tijolo foi
exemplo do conservadorismo técnico. A passagem do sapé à telha e da taipa
ura em
suave, contínua, sem grandes inovações. O tijolo, entreta nto, permit e a cobert
o, entreta nto,
abóbada, mais barata e eficaz que a telha A técnica disponível na tradiçã
determinada
não possibilitou o seu surgimento. Novamente, o compromisso popula r com
nível simples
técnica é baseado em condições históricas de formação desta camad a, no
a, aqui
que possua, nos materiais disponíveis. Não há uma técnica popular: a abóbad
li4
desconhecida, foi a cobertura tipicamente popular na Argélia.
...._____ ~
1
nos proprietários urbanos ou almeja dela participar, continua a aceitar para os
. s
outros, o ser mercadona.
A pesquisa do professor Carlos Lemos revela que geralmente o operário vê
a própria casa como temporária. O que corresponde a fatos comprovados:
grande parte das que possuem três ou mais cômodos são ampliações de um
núcleo original de 1 ou 2 cômodos. E mais, a própria disposição no terreno
denota insatisfação com o que tem: 60% das casas de 2 cômodos são locali-
zadas no fundo dos terrenos, a frente permanecendo reservada para a futura
casa maior. A possibilidade concreta para alguns de ir acumulando lenta-
mente a área ocupada, por sua vez, permite explicar a constatação da exis-
tência de mais de uma casa no terreno ou de quartos que são postos a aluguel.
Então, o operário "ser em transição" atinge exemplarmente o que para a
maioria permanece aspiração irrealizada: a categoria do "pequeno proprietá-
rio urbano" e passa a usufruir de renda não proveniente de sua venda, mas da
venda de seus "bens". Constitui cortiços de péssimas condições: o valor de uso
social que obtivera pensando em si, é visto e manipulado como mercadoria.
Entretanto, afirma o relatório da pesquisa, "raros são os que, a priori, já proje-
tam no próprio corpo da casa os cômodos destinados à locação" . O excedente,
eventualmente produzido, é explorado como valor de troca.
Em oposição ao funcionamento habitual da economia capitalista, não é
valor de troca que estimula a produção de valores de uso, mas valores de uso
excedentes são empregados como valor de troca. E o operário que teve a opor-
tunidade de acumulá-los realiza o pressuposto de suas aspirações de ascensão
à "categoria dos pequenos proprietários urbanos": sua personalidade básica
capitalista não negadora do sistema, mas unicamente do status proletário.6
Pois bem, voltemos ao início. Nos feriados, fins de semana ou férias
quando ergue sua casa, o trabalhador produz para si. Não como o faz diaria-
mente, como força de trabalho vendida, empenhada na valorização do capital.
Não como mercadoria abstrata - força socialmente necessária - a produ-
zir valores genéricos encarnados em valores de uso a ele indiferentes, não
enfrentando os meios de produção como poderes materiais hostis e alheios.
Ao contrário, produz com seus instrumentos seu abrigo, meios de produção
próprios guiados por sua vontade e direção a construir um objeto para seu uso.
O guia da produção, seu motor interno, a carência que atende são particu-
5 Luiz Pereira, Trabalho e desenvolvimento no Brasil São Paulo: Difusão Européia do
Livro, 1965, p. 208 .
65 6 Cf. Luiz Pereira, op. cit., cap. m.
~
ne .
me nto das condiçõ~s de pro duç ão
lar es e próximos. Mas, no afa sta e g~ltva8
o per de as con qw sta s qu e est as
que enc ont ra enq uan to assalariad ºUclições
had or isolado, só, qu e enf ren ta O
lhe per mi tem . Pois é como tra bal que quer
ser ven. te e. ope rár io sem i-q ual if'Icado
superai'.' sua mi sér ia . Vendo -se só, ' quer
pro teg er-se s6. Nega a uni ver sal - ida de
do
atm gid a, par te 1·d . bal hador co} . 0
tra
or .• .et1v
em massa, neg a a· so, 1 · an ed ad e gani
atu and o com meios de pro duç ao p . ca
um e ret om a o prmc1p10 da pro ne dad
e coletiva fru to do trabalho com elh a, tan i , e
riado. E o qu e pro du z esp
que lhe é negada enq uan to. assala
d á l b . " · ult ad
beni
. ve par a sua su s1stenc1a, res
ago ra, como produz: o m 1spens bo tosco
, é a mi nia tur a fru str ant e do lar
de individualismo auto-suficiente bull.rguês,
s os con tor nos de sua posse. Vai
isolada, fechada, ma rca ndo nít ido s~ar as
s, esq uec ido de tod a hig ien e e con st
mais distantes e precárias regiõe qU1 as .
res gua rda da a un ida de ob rig ato ria mente des t
sociais, para, .pod er ma nte . r . e1ta
sua ang ust ian te mo rad ia len tam
de sua farrulia e a pro pri eda de de a;t te depo.
ar sua rac ion ada nec ess ida de e
sitada na expectativa de tra nsb ord id rrn ar
sen hor de cap ita lzi nho . Se m dúv
sua admissão a peq uen o bur guê s tudo
o: a im pos sib ilid ade de sob rev ive r no s cor t'iços a,cen trai
o impele a esta sol, uçã ' . ' d'
- .
ros op era no s e me iad a pel a pro mi . s,
on e a re açao pro xim a com out SCU1dade'
r d -
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" · d alá ri os ms
a pressao econom1ca os s
segrega a am a pre sen tes na sua
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sm 1c mo aus ent e e oficial, o
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u 1c1entes háb ito s rur ";s fr u t o a VI.da
, a esp ecu laç ão im ob ili,a.n·a o
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pes o eno rm e do sis tem a ' en fim· as nao h ,
, ·d - pon íve l ' te m as m arca dª
e enc ont ram , talv ez a ún ica dis
duvi. a: a soluçao qu s e
sofrida adaptação.
ate am ent o da
BAIXA DE SAL ÁR IOS As con
seq üên cia s são im edi ata s: o bar
s e dispo-
tod as as sua s mí nim as hab ilid ade
moradia que obteve rec orr end o a o aba ixamento
com o recom pen sa aut om áti ca
nibilidades, o seu sacrifício, ter á olu ta-
ina dos pel o cus to me no r do abs
relativo dos salários, sem pre det erm a fei ta na
enç ão. Se gu ram ent e, a eco no mi
me nte indispensável à sua ma nut sis tem a. E
o de seu sal ári o rea l. É a lei do
obtenção da casa seg uir á a red uçã sem casa, é
tro del e: não po de pe rm an ece r
o antagonismo é ins upe ráv el den nom izando
e tem : nad a, mi l "je itin ho s", eco
levado a construi-la. Faz com o qu ini stra -
peq uen o cus to - nã o pa ga adm
na já ma gra me sa. Po rta nto, faz com dos, área
ta ma ter iai s rud im en tar es ou usa
ção, empreiteiro, mão-de-obra, ado o custo que
, águ a cor ren te, luz. É tão bai xo
mínima, sem banheiro, pia, esgoto uem com -
ent e pro gra ma das no BN H con seg
nem as barbaridades mi nuc ios am -pr od ução,
lic açã o des ta mi cro scó pic a sub
petir._ Como conseqüência da mu ltip bai xa a cota
das zonas cen tra is "m od ern as ",
associada à deterioração cresce nte entos
do s~ár!o de ina da à mo rad ia. E►
aum
st pro gre ssi vam ent e, dis far çad o sob · a1
· fl aci· onad os, ba1x • a cor res po nd ent em ent e o sal áno re
6G nominais totalm· entem
do operário - baixa acentuada por novo gasto, o da condução. Bastam como
indicação deste fato as seguintes informações do DIEESE (Departamento Inter-
sindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos): no Boletim Informativo
n. 9, de Janeiro de 1968, p. 2, lemos "Levantamentos efetuados pelo oIEESE
mostram que o aluguel médio de casas na cidade de São Paulo, em Janeiro
(de 1968) foi de NCR$ 174,19, muito diferente da quantia de NCR$ 34165 deter-
minada pelo referido decreto (sobre o salário mínimo)". Ora, tal discrepância
somente se explica pela enorme economia marginal que o operário consegue
ao produzir a própria casa, justificando uma redução em relação à média que
o governo decreta com satisfação.
RESUMO Em resumo, encontramos na casa operária uma exceção aparente ao
sistema. A produção, aqui, não é guiada pelo lucro, pelo valor de troca. O seu
imóvel é a produção de um valor de uso. Entretanto, o sistema e o modo de
produção capitalista estão presentes sob várias outras formas: no fato do valor
de uso particular na miséria tornar-se valor de uso social, e aparecer como
valor de troca, apontando a existência de mercado de outros miseráveis; na
contradição entre ser operário, expressão social de um sistema de produção
avançado, e o fato de ter que recorrer, no atendimento a pressões vitais, às
formas mais atrasadas, e mesmo reacionárias, de produção; na resultante de
sua poupança, o pouco conforto imediato, acarretando desconforto e preju-
ízo mediatos maiores. A produção aparentemente marginal revela o sistema
totalmente inclusivo.
A MANSÃO
INTRODUÇÃO No outro lado da escala social, no Morumbi, por exemplo, o
"fazer sua casa" significa aplicar capital. E, ao invés do mínimo indispensável,
a construção contém o maior acúmulo de elementos supérfluos compatíveis
com o funcionamento e a sanidade mental. Os materiais, a mão-de-obra
especializada e a técnica não mais constituem limitações, ao contrário, se o
deus capital existe, tudo é permitido, tudo e todos estão disponíveis. Pedras
de Ouro Preto, tijolões desenhados, tábuas de jacarandá da Bahia de 50 cen-
tímetros, mármores, granitos polidos, f6rmicas, vidros de 2 metros, metais
especiais, aço, alumínio, ladrilhos portugueses, massa corrida, "spots", lumi-
nárias suecas, torneirinhas em forma de peixe - materiais de tradição nobre
ou requintadamente industrializados ou artesanais alimentam a imaginação
esgotada do decorador. Lajes, balanços, pergolados, rampas, abóbadas, robus-
tas lâminas de concreto de madeirit lixado, motores, engenhos eletrônicos,
67 treliças, taipas, pedrinhas - tecnicamente, qualquer ousadia é realizável.
eiros de teto de vidr0
l
( 0 banh _ . , "ªga
Su estões sutis desejos remotos com anas , efeit satis.
r ! 'b' . '. ta) detalhadas subdivisões de funçoes diáf · " . os rq
1 açao exi 1c10n1s
, l 'dicos encontrarão "d es1g ners espec1alizad ágj_
. os ªPtos
cos, surpresas, arranJOS u
para efetivá-los.
a produção. Adquire uma gleb a gran de
, - ul ei:n zo
PRODUÇÃO Acompanbemos ção' que nao res ta de mel hor na
" al . d ,, _ "valoriza . . . aine n10
altamente v oriza a d s
. . d calização economicamente estra tégi ca, mas gai, a
extraordinários ou a 1O .
é, com pra. vários genero " ¾.
. - d · · hança A seguir contrata, isto
. . s
uda se1eçao a v1zm nher ro, o calc ulist a, 0 arqu·ltet
.r d trabalho e serviços, desde o enge . . . 0
de 1orça e vi· aias passando por pedreiros,
carp mte1 ros, mes tres t , . ,
, ecnicos
, . .
ate serventes e b. , ,. .
S
'd á - 1 tri·e1·dade eletromca, decoradores, pa1sag1stas' etc· onia
,
em h1 r u11ca, e e icas, habi lida des e energ1.'asna
. dade elevada de conhecimentos, técn
. .
obra, quantl em qual que~ instante, sem.
diversificadas. Fornece-lhes todo mate rial pedido
a nos
lhor qualidade. Enfim, .recl ama dos custos, pres sion contra.
pre com a me
tos e salários, mas põe na obra o deseJado.
o enge nhei ro, 0 paisa.
Guarda, próximos de si, o arqwteto, o decorador,
aind a não rea.
impõe O que quer, com a impressão de aspi raçã o
º!Tista. A eles erse m com sua família
lizada. Faz com que convivam com ele, jant em, conv
pref erên cias estéticas, seu '
re,·e1a pequenos hábitos, eventuais idiossincrasias,
es dom éstic as que recla-
amor à eficiência de alguns pormenores, frustraçõ
suas med idas , interpretarn
mam atendimento. Arquitetos e decoradores tiram
larg ueza e generosid ade
sua vontade, elaboram sua imagem. E traç am com
~ redu ção de ousadias excessi-
tudo o que puderem captar. Debates, alterações,
ação supl eme ntar , pois pode
vas. Neste momento o proprietário rece beu educ
o e das norm as sociais
desconhecer a si próprio, as exigências de bom gost
os rece bem seu "imp rima-
convenientes a seu "sta tus". Sob med ida, os plan
a dim ensi onar , precisar a
tur". Engenheiros e calculistas põem suas eqw pes
tre, tran spor tam , levantam.
construção. Operários, supervisionados pelo mes
ito com efei tos não previs-
Enquanto a mansão cresce, o proprietário, insatisfe
ubar , mod ifica r, acrescentar.
tos e descobrindo hábitos não atendidos, faz derr
frut o de sua von tade , foi feita
Em dois anos a obra está term inad a. A sua casa,
à sua imagem e semelhança. Passa a usá -la.
A CASA COMO MERCADORIA Mas, olhe
mos mel hor esta ima gem , esta seme -
ma, técn ica, projetos e,
lhança. Para "fazer sua casa", comprou mat éria -pri
não lhe é desc onhe cido ou
sobretudo, força de trabalho. Esse proc edim ento
ima s da que estabelece n~
novo: as relações de produção da man são estão próx
sua indústria ou outro negócio qual quer. Como aqui
, lá a mer cant iliza ção e5 ;ª
pra os mei os para ficar gra-
68
implícita na produção. Mais-valia acum ulad a com
~
vida de nova mais-valia, só que aqui, sob a forma da produção de um objeto
especifico, seu lar, doce lar. A semelhança de atuação nos dois casos traz, como
automáúca conseqüência, comportamento semelhante diante dos produtos.
Ambos são, para ele, mercadorias. As de lá, há que vender imediatamente, a
de cá, permanecerá em seu poder.
Se for necessário ou conveniente, venderá. Mas para garantir esta possí-
vel venda, deverá zelar para que o produto, sua casa, possua um valor de uso
social. Nas discussões com o arquiteto, nas modificações que introduz na obra,
tem sempre um olho no mercado. E, consciente da dignidade de sua pou-
pança, restringe o que fez de extremamente pessoal para que não contagie a
validade social de sua mansão. Restringe mas não elimina todas as originali-
dades: afinal, a mercadoria é feita sob medida.
o uso CONSPÍCUO A sua imagem e semelhança também tem que atentar para
as conveniências sociais. É homem de prestígio, posse e visão. Sua aparência e
a de seus objetos precisam responder às imposições de sua posição. É mesmo
forçado a isto.
Aos olhos da comunidade, os homens de prestígio precisam ter atingido um
certo padrão convencional de riqueza, embora tal padrão seja de certo modo
indefinido[ ... ] Para obter e conservar consideração alheia, não é bastante que
o homem tenha simplesmente riqueza ou poder. É preciso que ele patenteie
tal riqueza ou poder aos olhos de todos, porque sem prova patente não lhe
darão os outros tal consideração.7
Nos primórdios históricos do modo de produção capitalista - e cada parvenu
capitalista percorre individualmente essa fase -predominam a sede de
riqueza e a avareza como paixões absolutas. Mas o progresso da produção
capitalista não cria apenas um mundo de prazeres. Ele abre com a especulação
e o sistema de crédito milhares de fontes de súbito enriquecimento. Em certo
nível de desenvolvimento, um grau convencional de esbanjamento, que é ao
mesmo tempo ostentação de riqueza, e portanto, meio de obter crédito, torna-
se até uma necessidade do negócio para o 'infeliz' capitalista. O luxo entra nos
custos de representação do capital.8
7 Thorstein Vebl~n, A teoria da classe ociosa. São Paulo: Pioneira, 1965, pp. 43 e 48.
8 Karl Marx, O capital Tradução de Regis Barbosa e Flávio Kothe. São Paulo: Abril
69 Cultural, col. Os Economistas, 1983, v.I, t.2, p.173.
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.. rno conspícuo foram fartame nte des .
A e articulares d o conS te elas se espec1facam numa situaçã Cl'J. .tas Pot
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Thorstein Veblen. EVIdentedmen bservações (a sociedade norte -ani o d1.fereht
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cul . o livro Tlze J. ru;O 0fJ 9
no fim do sé O XIX, . importância tem esta especif , · lvtas
nos interessa aqw, pouca - . Icaçao '
para o que . . . d . d s de nossa situaçao colomal, nossa b11~ , tller~.
- rficHUS enva ª . . . . gu · "1
al teraçoes supe 'd .f car-se com a internacional, buscando no es1a
rocurando sempre J entJ. J • . • s restos
P d · t cratização pretend.ida,. tudo enfatiza do com tta
eses os ares e ans o . .
po~ _ ópria posição intermediária entre as cortes da Ços
de mqwetaça.0 que ª pr população brasiler . · C l'lletró
. ável ra provoca. orno todo 0 b' -
pole e o resto da mISer ( . Jet0
. ido exclusivamente pela classe A burgues ia), a man ,
ou seTVIÇO consum , . , dic . sao
. d uso suntuário. O uso suntuar1 0 e 1erenc1ador de cl asse ..
torna-se ob1eto e .
. . é a material ização da riqueza. A fartura de mater·iais . ' Ja
que o ob1eto 1uxu050 . . .
. d a complexa equipe mobilizada Já mesmo durante a obra • expoeni ,
requmta os, ,. . .
ªf
o poder do proprietário. A obra concluída, ~ua arenc1a, dimens ão e cuidado
rouelando-o· Esta demonstraçao, alem das vantage ns psicologicas ' .
prossegue·m .,.
ue proporciona, é fundamental, não esqueçamos, para o bom crédito na p
q · . b - b. - d b taça
Receber bem, hospedar bem, divertir em, sao o n~açoes o om burguês. ·
Quem esbanja e pede empréstimos não pede para s1, pede para ampliar sua
f potência, que a mansão prova. Logo merece o emprés timo.
Mas, O consumo conspícuo e o uso suntuário tem suas regras. Em pri·me1.ro
Jugar, as coisas usadas exclusivamente por uma classe e que se prestam a um
uso suntuário não envolvem, evidentemente, a vida privada : como todos a
possuem - a não ser os que estão excessivamente afastados na escala social,
"lumpens" e baixos proletários com os quais nem import a compet ir - não
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serve como diferenciação importante.
Como conseqüência, a vida privada , que elimina ria o efeito da distinção,
já que é elemento comum, é escondida. Assim, na mansão burgue sa, grande
porcentagem da área se destina à exposição de poder e riqueza : entrada social,
"hall", sala de visitas, sala de jantar, biblioteca, lavabo social, jardins, terraços,
9 "Ao mesmo tempo, o efeito sobre o consumo é de concentrá-lo sobre as linhas mais eviden·
tes aos observadores, cuja opinião favorável é almejada, enquanto as inclinações e aptidões,
cuja prática não envolve gastos honoríficos de tempo e de substância tendem a ser religa·
das ao deswo. Através desta discriminação em favor do consumo visível se verifica queª
vida doméstica da maioria das classes é relativamente mesquin ha em comparação com ª
parte o5tensiva da sua existência que se desenrola perante os olhos do observador. Corno
uma segunda comcqtiência da mesma discriminação, as pessoas geralme nte escondem da
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observação pública a sua vida privada." T. Veblen, op.cit., pp.11, -112.
.....
é_
salas de jogos, de música, muros etc. Outra parte substancial, entret anto,
serv1ço,
destinada a disfarçar a inevitável vida privada: circulação parale la de
isto
sala de almoço, entrad a e pátio de serviço, sala íntima etc. Note-se que
s-
não preten de simplesmente esconder empregados - que, afinal, são demon
tração móvel de riqueza, mas suas ocupações ligadas à vida privada.
Agora, o instrum ento abrigo - que malgrado a sobrecarga suntuá ria,
é
nte
ainda função da casa - é intruso componente de um todo maior, o ambie
radi-
demonstrador de riquezas. A exibição segue regras de compo rtamen to
tiques ,
calmente distintas das espontâneas maneiras de viver. Os milha res de
sufi~i~n-
gestos, etiquetas, cuja função é demonstrar que quem os exibe possui
cenan o
tes recursos para desenvolver estas atividades totalm ente inúteis , tem
determinado: salas, espaços, móveis, tapetes, quinquilharias que não devem
tos de
ser usadas. Aos caros comportamentos aleatórios, correspondem depósi
alidad e
trabalho dirigidos para a produção de objetos sem serventia. A prodig
se manife sta melho r quando não é necessária.
Mas, se o objeto por sua intrínseca razão servir, deverá servir contra riado:
habita
se for obrigado a sentar ou habitar, deve ficar patent e que se senta ou
a que
revestido de normas e desconforto específicos: surge óbvia uma riquez
pode diluir-se em objetos e espaços absurdos.
eficaz,
Mas, o industrial contemporâneo sabe o valor e o prestígio da técnic a
a
da automação que dispensa a presença desagradável do operário e o explor
terá
somente através de mediações complexas. E o trabalho desperdiçado
do
duas oportunidades preferenciais de surgimento: nos produtos de mórbi
os
artesanato e nos produtos de tecnologia avançada, empen hados em serviç
hadas de
dispensáveis. Paredes figurando taipa, formas minuc iosam ente desen
,
concreto, molduras de gesso patinadas escondem alto-falantes mudos
, discre ta-
"high-fidelities", interfones, controles remotos. Tudo em tom morno
mente aparente.
a,
Discrição para evitar o "nouveau-richismo", aparência para afirma r riquez
osa-
morm aço para espalhar fastio e indiferença. O tema é imens o e asquer
de,
mente variado. Bastam essas referências. Percebemos já, com maior acuida
o, existe ,
a image m e semelhança que a casa reflete: a sua casa, como ele própri
ima-
para os outros. Ou melhor, para oferecer aos outros uma image m de si,
image m
gem esperada, pré-estabelecida. Não uma image m real, atual, mas a
casa é o
do papel social a que pode, por sua situação econômica, preten der. A
origin al
cenário convencional para a representação de seu triunfo. Image m e
seu lar,
começam a inverter suas posições. Pois sua "imag em e semel hança ",
oe
é componente essencial de sua definição mesm a e lhe empre sta o sucess
honrabilidade que espelha.
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- vun· os é merc adori a. Decl ara no impo stoso :re a
b
TESO URO O ra, a mans ao, , .
quan do beni en
rend a entre os "ben s,, imóv eis e sabe que pode reali zá-la
cont ra a usur a qu.e lel'\.
der. Para isso, entre tanto , deve pres e~á- la,_ gara nti-l a
o é parc1mom oso no seu empr ego. Te...... ....... qu.e
pod erá corro er seu valor• Log , . .
anên cia do valor de troca do imov el e mesm o a cont inuid ade
garan tir a perm
do valor de uso social. ado' O "soc1al . ,,
· de \ Teleiros ·ama is pene trará neste merc
1 . . ,. .
Como o operári 0 de "s . y''.
. · - radic al ao que ocorr e em Veleiros, é smo nuno
. .. ,. . . , . . ociet
aqm, em opos1çao ha ongm alida des .
a mans ão só tem valor de uso para os ~IP~- ~o~s eque ncia.
item -com pleta men te .obJet1vave1s, agor a-, mas que não d
even:i.
que se perm .
qua1s,qu~r das fatní -
ser incom patív eis com o uso requ endo_a ~~ ca~a por
ve1s? Vun · os a
. " socie
11as · ty" . Ora. O que pode m ser tais ongm ahda des poss1
salão , ou talve z ~a
vida priva da está elim inada . Sobr am graci~sos jogos de
s prefe ndas , as orqu ídea s para sitas O ,
estuf azinb a para culti var suas flore . . 1 . u , se e
ena para seus prim ·-
intel ectua l, uma bibli oteca para livros reais ou uma ga
nalid ades , entretan t:
ti,·os, ou qualq uer outro "hob by" do gêne ro. Tais origi
m inter ferir ão no seu'
se trans pirar em na organ izaçã o da casa, de mod o algu
ser som adas às outras
even tual uso por outro s, mesm o ao contr ário, pode rão
prop rietá rio, ter ão
manifestações de cons umo cons pícuo, já que, para o novo
hono rífic os e suntu osos.
a mesm a essência, a inuti lidad e intrí nsec a dos gasto s
ia e isto poss ibilita a
Porta nto, a origi nalid ade não corro mper á sua merc ador
a, parti cula r.
concreção de sua aspiração: que a casa seja difer enci ador
r Mas, não basta afirm ar-se como parte de uma class e,
dentr o dela, na hiera rquia meno r, inclu ída na maio r,
outros mem bros.