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AGRICULTURA FAMILIAR:

LUCRATIVIDADE E SUSTENTABILIDADEl

FAMILY AGRlCULTURE: PROFIT{ÍBILITY AND SUSTAINABILITY

Maristela Simões do CARM02

RESUMO

A ag"rícultura familiar deve ser o centro do modelo de reestrutureçêo dos siste-


mas agroalimentares e de uma ruralidade socialmente sustentável. Ao tomar
decisões para produzir, o agricultor familiar apresenta diferenças básicas em
relação aos empresários capitalistas, que se refletem na formação dos preços
das mercadorias. Na lógica capitalista o preço ceve conter, além do custo
médio total de produção, o lucro médio esperado da atividade na economia
e a renda da terra. Na agricultura. familiar, não há a imposiçêo do preço da
mercadoria conter as fatias do lucro e da renda. Ademais, o agricultor familiar
não remunera sua mão-de-obra e nem seu trabalho "empresarial': Como o
objetivo primeiro desse agricultor é a subsistência familiar; a acumulação l7ão
é o fim único para a satisfação das suas necess/dedes. Sua sustentabi/idade
se dá mais em função da sua reprodução social e das possibilIdades de obter
uma renda para cobrir as despesas efetivas no curto prazo e repor os meios de
produção no longo prazo, do que em tentativas de valorizar o capital na busca
da taxa média de lucro da reprodução ampliada. O efeito é um rebaixamento
nos custos de produção e no preço da mercadoria. Esse mecanismo conduz,
dado o peso que a produção familiar ainda tem na oferta agrícola mundial, a
uma diminuição dos custos médios de produção e dos preços dos produtos
agrícolas, e também a menores necessidades econômicas para manter os
agrícultores familiares na produção.
Palavras-chave: agricultura socialmente sustentável, reprodução familiar,
formação de preços.

{'I Este trabalho foi apresentado no XV ISA World Congress of Sociology 2002, nd Rc-40 - Session: The GiobalFearm Crisis:
Comparative Perspectives, Brisbane, Austrália, realizado de 7 a .13 de julho de 2002. Contou com o apoio financeiro da
FAPESP, instituição à qual a autora agradece.
(2) Prof" da Faculdade de Ciências Agronômicas (FCA)/UNESP - Botucatu e Pror DI'" colaboradora do Programa de Pós-
Graduação da Faculdade de Engenharia Agricola (FEAGR.I)/UNICArvlP. CP 237, CEP 18603-970, Botucatu - SP, fax 14-
682i5467. E-mail: stella@fca.unesp.brestella@agr.unicamp.br

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I

ST~
JT __

Family agriculture must be the cent ~iallY su;tainable rurality and ag;ifOOd
systems restructuring mode/s. Production decisions by family farmers present
basic differences comparing to capitalistic entrepreneurs, with reflections on
price formation. According to the capitalistic logic, price should include, in
addition to total average production costs , the average expected profit for a
specific activity and land rent. In family agriculture, prices do not necessarily
contain profit and land rent. Moreover, family farmer may not remunerate his
own labor or his "managerial work". As the farmer's prime objective is family
subsistence, accumulation is not its only goal. His sustainability is due more to
his social reproduction, to his cbences ot obtaining enough income to cover
his expenses in the short rua, and to restore the production means in a long run,
tben to increase capital The result is lower production costs and prices. Given
the relevance that family produciion sti/l has in the world eqriculiurnl supply, .
tne: mechanism leads to a decrease in the average production costs and prices
of agricultural products, and a/so to smaller economic needs to maintain family
farmers in lhe production.
Key wortis: social/y susteinebí« agriculture, family reproduction, price for-
mstion.

1. INTRODUÇÃO Os países desenvolvidos concretizaram'


a modernização agropecuária do pós-sepen-,
A agricultura moderna, onçmana do da guerra mundial, conseguindo aumentos na •.
que se conhece como as revoluções agríco- produção de alimentos bem acima das neces-

las, vem capitaneando a história do desenvol- sidades internas de consumo, ao mesmo tem-
po em que estabeleceram programas de sus-
vimento rural no sentido de libertar o homem
do jugo e do medo da falta de alimentos. A tentação de preços agrícolas que evitaram '0 .
rebaixamento da taxa de lucratividade da agri-
base da agricultura capitalista, historicamente
cultura relativamente aos demais "setores" da
advinda de grandes posses territoriais da no-
economia. Enveredando por uma distribuição'
breza medieval, absorveu o campesinato em
a
transformações f, especializações atreladas,
menos concentrada
propriedade familiar,
da terra, e aparelhando
economicamente viável,
em cada país, ao caráter do trabalho familiar,
para ser o suporte. da produção agropecuária,
ao tamanho do estabelecimento eà natureza
esses países estabeleceram a modernidade
da produção.
agrícola na efetivação da agricultura familiar
Do ponto de vista econômico a produção (VEIGA, 1991).
familiar, visualizada como um conjunto, se Embora não se possa dizer o mesmo
contrapõe a outro de empresários capitalistas, em relação aos países subdesenvolvidos, os
no que se refere a elementos básicos e reflexos dessa modernização foram mais ou
limitantes na lógica de tomar decisões para menos intensos conforme a história social e
produzir. Ou seja, existem diferenças básicas política de cada país, e o grau de importância
entre eSS8S dois conjuntos que influenciam o dado aos segmentos patronal e familiar, o que
processo de produção, os custos de produção s8;;luraml?nte levou ao diferencial social entre
e o preço das mercadonas agrícolas, " cujos crescimento da economia e desenvolvimento
desempenhos levam a resultados diversos. econômico.

CiiGC:'/lOS da FACE~A} Campinas, v. J4, Il. 2, p, 157-17l: jul.zdez. 2005


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De outro lado, quando se pensa em custo da mercadoria e o lucro sobre os meios


desenvolvimento que seja sustentável" é de produção investidos, embora esses sejam
necessário o estabelecimento de políticas a forma iTéilsfiguiaéô da mais velie' (MARX
t.-; '\ -.....J .")(\\
públicas voltadas ao funcionamento sístêmico \0), ~.U..dJ}.

das unidades produtivas em sua totalidade, o


lucro, que é a manifestação histórica
principalmente no que se refere à diversidade, da evolução do modo de. produção capitalista,
seja do ponto de vista produtivo, seja social. é a categoria com à qual se procura diferen-
Nesse caso, uma política que privilegie a ciar o valor de mercado do custo de produção
evolução do sistema familiar de exploração da mercadoria. Porém, o valor da mercadoria
tem papel fundamental no sentido de garantir
pode não ser o mesmo do preço de venda,
a estabilidade da produção agropecuária, e
uma vez que, no mercado, fatos circuns-
também as necessidades sociais no campo
tanciais e concorrenciais podem provocar a
(CARMO, 2001).
desigualdade entre esses dois montantes. O
O objetivo deste trabalho é, a partir de importante é que, mesmo que a mercadoria
uma reflexão de como os preços dos produ- seja vendida abaixo do seu valor, a fração
tos se formam na agricultura, e da dinâmica correspondente ao lucro permanece, de tal
do sistema de exploração familiar agrícola, forma que o preço de custo fixa o limite infe-
apontar as possibilidades de ela vir a se rior do preço de venda da mercadoria (MARX
tornar a categoria social por excelência no (a), s.d.:40). Ademais, a concorrência entre
estabelecimento de uma outra agricultura que os capitais nos diferentes ramos da econo-
seja ambiental e socioeconomicamente mais mia, ao mesmo tempo que leva a uma taxa
sustentável. Suas diferenças na lógica de geral de lucro que se expressa no lucro médio
1m tomar decisões, em relação aos empresários esperado, conduz os preços diferenciados na
n- capitalistas, a tornam mais apta em direção a consolidação de urna média para os preços
1a um processo produtivo que almeje privilegiar
de mercado ou de venda.
:s- uma agricultura durável ambientalmente e
n- Na agricultura, aos preços da mer-
sem iniqüidades sociais.
,s- cadoria é preciso ainda acrescentar a parte
O relativa aos recursos naturais no processo
ri- produtivo, em especial a terra. A partir do
2. MARCO TEÓRICO
ja momento em que o modo de produção capita-
~o lista se generalizou também na agricultura, a
a 2.1 Formação dos preços na agricultura propriedade fundiária, símbolo do monopólio
31, privado da terra, garantiu a obtenção de uma
a, O preço de mercado de um bem pro- renda aos seus possuidores, pelo simples
te duzido e comercializado numa economia ca- fato de a possuírem. Para MARX (b), s.d.:
ar pitalista embute, necessariamente, o preço de 709, "... e ainda separa de todo a terra como

10
(3) Entende-se o sustentável como um desenvolvimento social e de progresso econômico, mantendo e conservando os recursos naturais,
)s
origem do futuro comum de uma humanidade que pretende tornar os impactos econômicos sobre o meio ambiente coisa do passado.
lU Logo, o processo de transformação transcende os limites geográficos e políticos, e coloca a sobrevivência de todas as espécies como
e seu objetivo maior, sendo o ambientalismo a face política desse processo que representa uma subversão aos valores atuais, recolocando

'a antigas questões como cultura e ética.


1'1 Este trabalho não pretende entrar no mérito da origem do lucro a partir da divisão do capital em constante e variável. Apenas para
e esclarecimento, segundo MARX (a), s.d.: 39, "Não se distinguindo, na forrnaçâo aparente do preço de custo, entre capital constante e capital
'6 variável, é mister transferir da parte variável do capital para o capital todo a origem da mutação de valor, ocorrida durante o processo de
produção". E complementa na págma46; "Relativamente, mais valia e taxa de mais valia são O invisível, o essencial a investigar, enquanto
o
a taxa de lucro e, por conseguinte, a mais valia sob a forma de lucro transborda na superfície dos fenômenos" (grifes da autora).

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M. S.CARMO
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condição de trabalho, da propriedade fundiária perfeita é regulado pelo sistema geral dos .;-,
e do proprietário, para quem aterra nada mais preços relativos, de tal forma que a procura
representa que um tributo em dinheiro que o pelo lucro estimula a produção e se otimiza, "
monopólio lhe permite arrecadar do capitalista socialmente,. pela competitividade. Ao optar '
industrial, o arrendatário". Dessa forma, a terra, pela maximização do lucro, enquanto racio-
à semelhança do servo da gleba, se liberta das nalidade econômica das empresas, esses au- .\
"amarras" da tradição política e social feudal, tores embutem nos custos totais o lucro con-
e assume gradativamente a sua formatação siderado "normal", ou seja, sem lucros extras,
econômica no capitalismo desenvolvido. uma vez que a concorrência perfeita elimina
Na origem da renda paga pela explo- essa possibilidade. Embora sem referência
ração do solo, a classe social emergente, os explícita, a renda da terra é parte desse lucro...
capita.listas-industriais-arrendatários, se con- Assim, os custos totais de produção incluem.
trapõe na esfera produtiva aos proprietários os custos de produção, o lucro (mais a renda
de terras, e é obrigada a Ihes pagar a renda da terra) e a remuneração a que o empresário
fundiária em suas diversas manítestações". tem direito por ser um trabalhador como os
Essa se destaca do montante da mais va/ía demais. A identidade receita total e custos
extraída do trabalho transfigurada na forma totais viabiliza o empresário capitalista na pro-
de lucro, que paga aos senhores territoriais dução em concorrência perfeita (LEFTWICH, .
para poderem aplicar seu capital na produção 1983). O preço da mercadoria, portanto, não
agrícola. é um valor que deva remunerar as diferentes
classes sociais, mas sim comportar e refletir,
O preço final da mercadoria, no rnerca-
do, tem assim que cobrir, de alguma forma, no mercado, o embate das produtividades dos
as remunerações das três grandes classes diferentes fatores de produção.
sociais existentes no capitalismo: os trabalha- Tudo. se passa como se a empresa
dores, cujos salários fazem parte do preço de capitalista fosse apenas "uma unidade de
custo, o lucro, como a retribuição ao capital produção definida e equipada de meios de
empregado pelos capitalistas-arrendatários, e produção importantes, postos em funciona-
a renda da terra. reservada aos seus donos", mento Dor trabalhadores assalariados" (AMJN
Assim, o preço, ao refletir as relações de pro- & VERGOPOULOS,1977), de tal sorte que,
dução sob o regime capitalista, vai comportar, no nível das aparências, o capitalismo se
além dos custos de produção em que se resume ao conjunto funcional das empresas
encontra a remuneração dos trabalhadores, capitalistas.
as frações correspondentes às remunerações No entanto, sob o ponto de vista do ca-
dos agentes econômicos das outras classes pital como uma relação social, independente-
sociais. mente se a renda da terra é escamoteada no
Na visão dos economistas neoclássi- montante do lucro médio, ou se ela é separa-
coso o processo produtivo sob concorrência da conceitualmente enquanto a fatia reserva- .

(51 A renda da terra se divide em renda absoluta e renda diferencial. A primeira constitui o montante a ser pago ao proprietário pelo uso da terra
enquanto monopólio da propriedade privada. Já a renda diferencial diz respeito ao uso da terra enquanto recurso para a produção econômica,
ou seja, "A renda diferencial que estudamos até agora decorre da produtividade diversa de aplicações iguais de capital em terras de área igual
e fertilidade desigual, de medo que a renda diferencial era determinada pela diferença entre o rendimento do capital empregado na pior terra,
desprovida de renda, I: (I rio capira) empregado em terra melhor" (MARX (b), s.d.: 771) Mais especificamente renda diferencial I se reporta
às diferenças na fertilidace do solo e na localização da propriedade em relação às condições locais de infra-estrutura e mercados de insumos
e produtos, c a renda diferencial II refere-se às diferenças aicançadas na aplicação da tccnologia na produção.
(61 Quando os donos dos meios de produção e o proprietário da terra são a mesma pessoa, lucro e renda coincidem, não se •.... destacando as
diferentes formas da mais valia" (MARX (b), s.d.: 921).

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os da aos proprietários de terra, o preço final de vez mais, negava (e ainda nega) sua existência
ira mercado dos bens produzidos no capitalismo configurada pelos movimentos reguladores da
ta, devem conter além dos custos de produção, o economia capitalista, ou pela atuação de inte-
tar lucro médio esperado reservado aos ernpre- lectuais que previram a.sua extinção nas déca-
io- sários-capitalistas, as rendas diferenciais i e 11 das pós-Marx, foram a preocupação primeira
IU- (se houver) ea renda absoluta, remunerações de Chayanov" em suas pesquisas na Escola
m- aos proprietários da terra. para a Análise da Organização e Produção
~s, Embora a formação dos preços pela Camponesas. Tanto Lenín" quanto Kautsky'",
na teoria econômica e a suaeteâvação nas ao estudar a diferenciação social dos pe-
cia . trocas comerciais constituam faces de urna quenos agricultores, acabaram postulando o
ro. mesma moeda, as incertezas quanto ao dectínio irremediável e a posterior extinção da
~m produção camponesa. No emparelhamento da
preço recebido pelos agricultores e o preço
da esperado pelo produto à época da tomada de agricultura e da indústria, a preferência lógica

rio para. a grande produção função da necessi-


decisão para produzir vão sempre existir nos
é

os diferentes tipos de concorrência mercantil, à dade de se acumular capital e de incorporar


recnolcçia, e, por conseqüência, de se moder-
os exceção dos monopólios puros.
"()-
nlzar, o que, dificilmente, seria conseguido pela
A instabilidade dos preços de merca-
pequena produção.
H, do é uma característica do capitalismo. E a
ão Os pesquisadores da Escola da Orga-
redução de o risco dos preços de mercado
es nização da Produção, no entanto, tinham em
flutuarem abaixo dos preços esperados, que
tir, contêm as fatias do lucro médio e renda da
conta que a tecnoloçia estava associada à
os maneira prática corno a economia camponesa
terra; vai depender das políticas públicas
atuava. Na realidade, a racionalidade própria
de sustentação dos preços de venda das
de urna organização familiar camponesa, se
sa mercadorias agrícolas, que estimulem os
não levada em consideração pelos promoto-
de empresários capitalistas a manterem seus ca-
res da tecnoiogia, impedia que as inovações
de pitais na agricultura. De toda forma, se por um
pudessem ser introduzidas eficazmente, e era
la- longo período de tempo não for incorporado o
necessária uma teoria além dos pressupostos
IN lucro médio e a renda da terra nos preços de
capitalistas para que se pudesse compreender
le, mercado, os empresários capitalistas, muito
a economia camponesa e sua permanência.
se provavelmente, saem da atividade e vão em
as busca de investir seu capital em outras áreas Uma unidade de produção camponesa,
de economia. aqui entendida como tipicamente familiar, ou
seja, talvez a mais familiar de todas por não
a-
empregar trabalho assalariado, não pode ser
:e-
2.2. A Dinâmica do Sistema de considerada como tipicamente capitalista. Isso
10
Exploração Familiar Agrícola (SFEA) porque ao computar seus custos de produção
a- não há uma remuneração objetiva da mão-de-
a- obra familiar, deixando de computar salários,
A importância da pequena produção' e
a sua persistência em um mundo que, cada categoria econômica capitalista por excelência.

rra
ca,
tn Não é intenção desse texto discutir as configurações e recorres do debate sobre a pequena produção e o campesinato.
lllII
:! . ~) Para finalidades dessa pesquisa basicamente adorou-se a construção teórica de Chayanov. A partir dos seus minuciosos levantamentos
Ta,
empiricos surgiu a "Teoria sobre a Unidade Econômica Camponesa", em que o autor construiu categorias analíticas específicas correspondentes
rta
tOS
às formas particulares de vida dos camponeses.
(9) LENIN, Vladimir 1.Capitalismo eAgriculrura nos Estados Unidos da América: novos dados sobre as leis de desenvolvimento do capitalismo
Da agriculrura. São Paulo: Brasil Debates, 1980. (Coleçào Alicerces). 100p.
as
(J~KAUTSKY, K. A Questão Agrária. São Paulo: Proposta Editorial. 1980.

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M.S.CARMO
162 s
r-

Logo, o excedente obtido pelo agricultor cam- com salários, e muito menos se preocupar
ponês e sua família não é caracterizado como em obter a taxa média de lucro matara da
lucro, mas somente como uma retribuição do empresa capitalista.
seu trabalho que vai ser gasto no consumo fa- A partir dessa premissa são, logica-
miliar de bens e serviços (CHAYANOV, 1974). mente, encadeados outros princípios, como
Os princípios básicos do comporta- o da diferenciação demográfica. A satisfação
mento social e econômico do campesinato das necessidades familiares e o grau da auto-
foram estabelecidos partindo do pressuposto exploração do trabalho se dá em função do
de que a economia familiar camponesa é um tamanho da família e da proporção entre os
fenômeno em si mesma, e, portanto, ela não é membros que trabalham e os que apenas con-
descapita/izada por ser pequena e tampouco somem. Ou seja, essa relação consumidor/
é pequena por ser descapitalizada. O funda- produtor está intimamente ligada ao ciclo
mental é procurar nas suas relações internas familiar, a fase na qual se encontra a família
e externas quais os mecanismos que fazem (recém-casados, nascimentos, falecimentos).
funcionar a engrenagem do trabalho familiar A família modifica-se ao longo do tempo
na obtenção do produto familiar. A lógica da cunhando uma diferenciação demográfica e
pequena produção camponesa faz com que alterando, portanto, o balanço consumidoresl
ela se movimente em função do trabalho e tra ba Ihad ores.
necessidades de consumo familiares, sendo A produção, produto bruto da unidade
portanto diferente da lógica da circulação do econômica familiar, se apresenta como fruto
capital e acumulação capitalista. da atividade inseparável, indivisível e única da
O ponto central da teoria da unidade família, e a leva a receber, como resultado do
camponesa reside na conceito estabelecido seu trabalho, uma quantidade de bens e ser-
do equilíbrio existente entre o consumo da viços que não pode ser considerada "lucro",
família e a exploração da mão-de-obra fa- "renda" ou "juro" (categorias que expressam
miliar conjunta (auto-exploração), conhecido fenômenos sociais estritamente capitalistas)
como o balanço trabalho-consumo familiar. por dois motivos. Primeiro porque não se
Assim, a unidade camponesa organiza sua pode objetivamente determinar os custos de
produção em função das necessidades de produção dessa unidade camponesa, visto
consumo, e mais, é motivada por uma retribui- não existir salário ou mão-de-obra assala-
ção do seu trabalho que lhe permita equilibrar riada; e segundo, pelas dificuldades em se
suas necessidades com a intensidade desse definir claramente a natureza e a origem de
mesmo trabalho. É nesse equil'brio, dado pela seus rendimentos, uma vez que os "fatores"
satisfação das necessidades de consumo de geradores de renda têm vinculações comple-
bens e serviços pela família ea quantidade de tamente diferentes da exploração capitalista.
trabalho empregada, que se apóia a originali-
Assim, a família é a, principal categoria
dade da teoria chayanoviana. de anáíise para Chayanov, que a considera
Dessa maneira, o momento 08 qual o como um conjunto de produtores e consumi-
camponês pára de trabalhar é aquele em que, dores, ou melhor, uma 'unidade de trabalho e
para ele, ir além siqnifica uma sobrexotoração de consumo. Para ele a conceituação mais
do seu esforço que só l/ai lhe dar insatisfação abranpente é que "A unidade econômica cam-
face às suas necessidadee culturalmente ponesa é uma. empresa na qual empresário e'
definidas, pois, dentro d2 lógica não capitaltsta trabalhador se combinam em uma só pessoa"
camponesa, o principal é obter condições (CHAYANO\/ 1974). Genericamente pode-se ~
para a sua sobrevivência 8 reprodução social, ficar com o conceito de que família e negócio Z
sern a necessidade de se auto-remunerar estão indissoluvelmente associados, ,
de forma .~
}

Cad".":'G[. i. FACEC.'., CalT'.pinas, v. 14. n. 2, t 157 .. ' 71, jul./oc,. :~OO.<


.~ ..

AGRICULTURA FAMILIAR: LUCRATIVIDADE E SUSTEN·[ABIUDA.DE 163

que a família é a principai preocupação nas Ao se operacionaüzar a unióade familiar


tomadas de decisão desses agricultores. na produção agrícola, pode-se interpretá-ia a
Corroborando as teses chayanovíanas, partir de' uma acordaqern de sistemas. Con-
ao afirmar que o campesinato sobreviveu ceítuahnents, sistemas 8gíários implicam a
a todas formações econômicas e sociais, exphcaçâo das mudanças históricas e das
resistindo às transformações na passagem adaptações geográlic33 dos processos de
de um modo de produção a outro, TEPICHT, produção, levando so entendimento dos
1973, pondera que ele manteve, em todas as modos de exploração por uma sociedade
épocas, características universais, tais como: rural, em um determinado espaço, resultado
unidade lndlssolúvel entre o empreendimemo da combinação de fatores naturais, sociocul-
agrícola e a família; uso intensivo do trabalho; turais, econômicos e técnicos (MAZOY~R,
e natureza patriarcal da organização social. 1988).
Outra característica do "modo de produção Os principais traços do sistema familiar
camponês", segundo esse autor, é que ele ga- de exploração agrícola referem-se aos seus
rante o rebaixamento do preço dos aürnentos componentes, a uma rede de comunicações
em relação ao preço cobrado pelas grandes e aos limites, configurando à unidade familiar
empresas capitalistas, pois o objetivo central a estrutura e o funcionamento de um sistema
da produção camponesa não é a elevação de produção.
constante da taxa média de lucro, mas sim A sua estrutura é composta pelos meios
uma renda que satisfaça as necessidades de produção, parcelas plantadas, animais,
básicas da reprodução familiar. benfeitorias, insurnos, trabalho físico e intelec-
WOLF, 1970, por sua vez, considera qUE: tual, estoques, e todos os produtos frutos da
"A propriedade (terra) é tanto uma unidade de exploração. Esses elementos são organizados,
produção quanto um lar e às sociedades cam- estruturados, hierarquizados em sistemas de
ponesas correspondern urna série de valores produçâo e subsistemas (cultivo, criação) que
próprios, cercados de construções simbólicas facilitam a sistematização do processo de pro-
que ultrapassam parárnetros de utilidade'. dução aqrícola" (DUFUMIER, 1985).
Dessa forma, a unidade de produção No funcionamento dessa estrutura se
familiar camponesa apresenta uma lógica que observam as relações que permeiam o siste-
lhe é peculiar, diferente da lógica da exploração ma. As funções mais importantes, definidoras
capitalista, posto que é a composição familiar dessas relações, são a função de produção
que determinará os limites, máximo e mínimo, (processo de transformação física); a função
do volume das suas atividades. É por isso que de intercâmbio (processo de troca com o
se coloca como objetivo principa.l da unidade entorno geral do sistema, em particular, tro-
camponesa a produção de valores de uso e cas comerciais); as funções de decisão e de
não apenas única e exclusivamente como na regulação (processo de repartição dos meios
unidade empresarial capitalista, valores de disponíveis). O funcionamento do SFEA como
troca. o conjunto de todas essas funções representa

(lIIPode-se definir sistema de produção como a "combinação coerente, no espaço e no tempo, da força-de-trabalho (familiar, assalariada
e parceria) e dos meios de produção (terra, máquinas e equipamentos, instrumentos de trabalho, benfeitorias, animais, insumos, etc.)
visando à obtenção de diferentes produções animais e vegetais. Na medida em que é o produtor que organiza essa combinação, segundo
uma determinada racionalidade (no caso dos agricultores familiares, visando à reprodução social da família), é possível entender o
papel de cada elemento do sistema e com isso a lógica de seu funcionamento como um todo, bem como, avaliar o grau de coerência ou
contradição do mesmo" (DUFUMIER. 1985). Logo, o sistema de produção é a combinação das produções e dos fatores de produção da
propriedade (conceitos agronômicos e econômicos), englobando os sistemas de cultivo e de pecuária. manejados dentro dos limites de
ocupação espacial da área explorada, dados pelas quantidades disponíveis de terra, mão-de-obra e capital.

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os fluxos físicos, os intercâmbios e as deci- agricultores, que são, na realidade, o resulta-


sões (D.URAND, s.d.). do da aplicação das técnicas pelo agricultor.

Cabe perceber que a todo momento, Fica claro. nessa construção teórica,
no funcionamento do sistema, deve existir um que o funcionamento de' uma exploração
equilíbrio entre as necessidades e os recursos familiar passa necessariamente pela família
disponíveis da família. Esse equilíbrio mostra enquanto elemento básico de gestão finan-
a importância dos mecanismos de regulação, ceira (destinação dos recursos auferidos), e
que garantem a reprodutibilidade do sistema do trabalho total disponível internamente na
e de sua permanência, embora em constante unidade do conjunto familiar. Nesse sentido,
transformação ao longo do tempo. Não é, as decisões sobre a renda líquida obtida com
portanto, uma estrutura fixa. ;: venda da produção, fruto do trabalho da
f,:1mília, pouco tem a ver com a categoria lucro
A família orienta os processos de trans-
puro de uma empresa, resultado da diferença
formação com os recursos em trabalho, meios
entre renda bruta e custo total.
de produção e dinheiro, que reparte segundo
seus objetivos de produção, consurno, auto- O projeto familiar é o centro das de-

exploração e reserva de patrimônio famillar. O cisões tomadas pelo conjunto da família. O


agricultor e sua família, dentro de um projeto passado e o futuro permeiam essas decisões,

familiar, têm que tornar decisões que dão a di- 8 os entornas agroecoiógicos e socloeco-

nâmica do SFEA e vão depender, basicamen- nômicos constituem a base e o limite das
decisões. Todo o sistema de produção está
te, do ciclo de vida da família. As diferenças
entre um agricultor chefE: da família, jovem,
ligado às gestões do trabalho e das finanças,
8 ao projeto familiar conjunto associado ao
maduro ou velho, se refletem na quantidade
ciclo de vida.
de mão-de-obra, no volume de produção
para subsistência, no patrimônio acumulado,
na transmissão hereditária da terra, entre
outros condicionantes, para a maximização 2.3. O Preço recebido pelo agricultor familiar
do bem-estar coletivo.
Face ao comportamento do agricultor
o grupo farniüar tom que tornar, cons-
familiar em relação à gestão do seu próprio
tanternents, declsões estratéqicas, táticas
negócio, e a influência da família, pode-se
e técnicas. As cecisôes estratégicas dizem
descortinar importâncias no que tange à
respeito à continuidade 8-: projeto 'fsmiliar. Im- participação. dos diferentes componentes
plica considerar a raclonalídade dos agricul- que formam o preço de mercado, ou o preço
tores que formulam suas decisões em partes, recebido pelo agricultor.
e vai determinar o desenho dos sistemas de
O conjunto de agricultores com formato
produção.
de produtores mercantis, ou seja, aqueles
Após o estabelecimento do projeto ge- com aigum grau de inserção no mercado, está
ral estratégico sobre o sistema de produção é mais propenso, no seu processo decisório, a
que ocorrem as decisões táticas, levando-se aceitar parcelas variadas sobre a remunera-
em conta as restrições existentes com relação ção dos meios em~regados na produção e no
à constelação de "fatores d\~ produçâo". Para IJSO 02 terra na forma de renda. Ou seja, para
a realização concreta das operações r,·;!cas- () agriçultuf familiar tanto o lucro esperado
sita-se, em f;':lguida, das dEC;~/)'3S de caráter cuanto :\ rendimento da terra não são elemen-
mais técnico, portanto de urn coniunto rj,:; dR- tos definídores stiictu sensu na formação do
cisões mais detalhadas, em Q'.i8 se destacam preço recebido, e, portanto, na sua decisão
o conhecimento acumulado e as práticas dos de produzir.

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AGRICULTURA FMI,:~!AR:t UCR:\T1V'D.'.:JE:-: S'JSTS":TAHI!.lDADE 165

Os estudos de Marx voltados ao en- contribui para regular os preços de produção,


tendimento do processo global da produção nem para formar o valor em geral." Portanto,
capitalista não se aprofunoararn nas uusstões não é "é'ccssário que o preço de venda da
referentes à produção camponesa, nem tam- rnercadona a.cance c preço de fJl oduçâo, em-
pouco nos problemas arnoientais advindos da bora esse i.Heryo mais baixo, assim estipulado,
exploração da natureza. Nesse Sf:nilt:lo, não somente resulte na pobreza dos agricultores
se detecta, no conjunto da SUEi obra, uni corpo camponeses, uma vez que o seu trabalho ex-
teórico específico relativo a essas questões, cedente, em especial daqueles que produzem
mas, sim, existem passaçens em cue são nas piores condições, é cedido à sociedade e
levantados pontos e ligações CGm os ternas não entra /12 reculação geral dos preços ele
campesinato e meio ambiente". produção.
No caso da produção camponesa, ao A anáüse marxista se direciona ao
camponês dono da terra não se paga arrenda- descobrimento dos mecanismos da formação
mento, e a renda não se confiqura corno uma dos preços de custos (custos de produção) e
forma particular de mais vetie. Mesmo que preços oe mercado, e à dinâmica das classes
se apresente como um ganho suplementar, sociais fia obtenção das suas fatias nesses
essa renda pertence ao agricultor camponês, preços.
a quem vai ser atribuído todo o rendimento
Para Marx, de um lado, a pequena pro-
do trabalho. Parte preponderante do produto
gerado vai para o consumo, garant.indo a priedade representava um entrave no desen-
volvimento das forças sociais do trabalho e da
sobrevivência do grupo familiar. De forma que
"o lucro médio do capital não limita a explo- aplicação da ciência; de outro, e isso também
ração da pequena propriedade, enquanto o vale para a grande exploração, o investimento
camponês é pequeno capitalista; tampouco a feito na compra de terra faz com que se diminua
limita a necessidade de uma renda. enquanto o capital aplicado na produção propriamente
ele é proprietário da terra. Embora pequeno dita. De tal sorte que, e aí é importante perce-
capitalista, o único limite absoluto para ele é ber o contexto histórico dos seus postulados,
o salário que paga a si mesmo, após deduzir o arrendatárío produtivo tem que drenar seus
os custos propriamente ditos. Enquanto o recursos ao proprietário de terra (improdutivo),
preço do produto cobrir os custos, cultivará a diminuind~ seus investimentos na produção
terra, e, freqüentes vezes, submetendo-se a agrícola. E por isso que sua crítica à pequena
salário reduzido, ao mínimo vital' (MARX (b), propriedade se dá enquanto crítica à proprie-
s.d.: 923.)13. E complementa (pág. 923/924): dade privada, que, no desenvolvimento das
"Não é mister portanto que o preço de mer- forças capitalistas, vai representar um entrave
cado atinja o valor ou o preço de produção do no processo produtivo da agricultura.
produto. Essa é uma das razões de G preço do A forma de produção camponesa pres-
trigo em países onde domina a propriedade supõe, segundo ele, que a população rural seja
parcelá ria estar mais baixo que nos países de predominantemente maior que a urbana, e
produção capitalista. nesse caso é períeitamente natural que a maior
Parte do trabalho excedente dos cam- parte de seu produto seja autoconsumida, sen-
poneses que lidam nas condições mais des- do comercializado às cidades apenas o exce-
favoráveis é dada de graça à sociedade e não dente. Portanto, implica não haver condições

mINo livro 3, em parte dedicado ao movimento capitalista na agricultura e à formação do preço da, mercadorias, incluindo preço de custo,
lucro médio e renda da terra, encontram-se passagens sobre a pequena produção e as implicações com o lucro e a renda (MARX, (b) s.d.,
Capítulo XLVII: Gênese da Renda Fundiária Capitalista).
113)Ver item "A Parceria e a Pequena Propriedade Camponesa", MARX (b), s.d.

Cadernos da FACECA. Campinas.v. 14. n. 2, p. 157-171,jui.ídel. 2005


166

materiais para um desenvolvimento capitalista, ciadas - produção, consumo e acumulação de


impedindo uma agricultura racional que atenda patrimônio - lhe alicerça uma lógica de produ-
às populações urbanas crescentes. ção-reprodução emque, a cada geração, se
procura assegurar um nível de vida estável
Na evolução capitalista, a grande pro-
para o conjunto da família e a reprodução dos
priedade vai se impor, e da mesma forma que
meios de produção. Esse mecanismo conduz
a pequena, embora por razões diferentes, vai
acabar colocando limites à produção agro- a menores necessidades econômicas para

pecuária pela característica da propriedade manter (daí a sustentabilidade) esse agricultor

privada da terra. Num certo sentido, o pen- na produção. Dentro desses parâmetros, o
samento marxista sobre a economia campo- sistema camponês agrícola é uma unidade
nesa, dentro de uma abordagem determlnista de trabalho e consumo, e não uma unidade
(absoluta) da história, pode-se resumir na capitalista.
seguinte frase (pág. 931): "A pequena pro-
priedade fundiária gera uma classe até certo
ponto à margem da sociedade e que combina 3. O LUCRO NA. CONTRAMÃO DA
toda a crueza das formas sociais primitivas PRODUÇÃO AGRíCOLA SUSTENTÁVEL
com todos os sofrimentos e todas as misérias
dos países civilizados". o lucro como a transformação da mais

No entanto, de acordo com CHAYA-


\Ia/ia expropriada do trabalhador se posiciona

NOV, (1981:134.), a unidade econômica fami- na contramão do desenvolvimento que pretenda

liar "...tem motivações muito específicas para ser sustentável nos seus três eixos básicos:

a atividade econômica, bem como uma. con- ambiental, econômico e social. Dito de outra

cepção bastante específica de lucretivioeae" forma: no desenvolvimento rural, a agricultura


(grifo da autora). Para e!e e seus seguidores, familiar está na direção da produção agrícola
o instrumental analítico sobre as empresas sustentável.
de economia capitaüsta era slJncierW~
não ["13 (i(, que para os empresanos capi-
para apreender a lónica de funcionamento da talistas as diferenças entre preço de custo
unidade de produção familiar camponesa, por (despesas com a produção propriamente dita),
elas apresentarem uma motivação econômi- prflç:o ele produção (custo + lucro médio + ren-
ca diferente, senao essa o equilíbrío entre o da difere,ncial) e preço de mercado (preço de
trabalho e o consumo (mínimo de fadiga no woduçÉQ';' renda absoluta) estão teoricamen-
trabalho e máximo de satisfação das neces- te ,4f:fini:las quando da decisão de produzir,
sidades de consumo próprio e da família). A espera-se que, no quadro das forças de mer-
condição básica oa permanência da estrutura cado. a realização dos produtos agrícolas, pelo
famíiiar no campo pode ser resumida no ba- menos no médio e longo prazos, cubra todas
lanço entre trabalho e consurno. as parcelas relativas ao preço anteriormente
A partir de um entorno aqroecotóqico a estabelecido.
família faz gestões do trabalho e da" finanças l\Cl dissecar (I trabalhador dos seus
de um determinado sistema de produção, com meios de produção e estabelecer a mais \lalia
base no seu passado (história) e conhecimento na fcrrna de lucro como motor do processo
técnico, e com vistas a um futuro almejado
capitalista do? produção, a reprodução am-
Gomo projeto farn!!iélí. PêF2 t?'~to, ~ coniunto
;;li2d,:;de capital se manifesta, configurando a
famEiar torna decisões f;:õ;i!'atégicas, t2h~8S e
necessidade da acumulação em escala cada
técnicas,
vez maior Dara a sobrevivência desse modo de
As e~pecificidéldes dê. orpanizaçâo produção. /\0 aumentar a relação capital - nú-
farniii81", operando em três ·:JirtOções não disso- rnerc c> trabalnadcres e ao aumentar o nível

---_ .._~------_.._-----_.
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~;ad':'::_.(;f 1;:: .Fi\CECI\~,(';;!Upinas, v. 14, n. 2 ..p. 157 17i.}l!J.lde::. 2005
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168
., M.S.CARMO

Essa sustentabilidade econômica vai se nova roupagem, ainda permanecem nesses


dar mais em função da sua estrutura familiar agricultores, e tornam a agricultura familiar
e das possibilidades de obter urna renda que urna situação particular de risco e renda en-
lhe permita cobrir as despesas efetivas no cravada no modo de produção capitalista.
curto prazo e repor os meios de produção no
A agricultura familiar se contrapõe à
longo prazo, do que em tentativas de valorizar
patronal por ser aquela praticada pelo grupo
o capital empatado, na busca de uma taxa
familiar, enquanto a patronal tem base no tra-
média de lucro para uma reprodução ampliada.
balho assalariado. A força de trabalho que vem
Diferentemente de uma empresa capitalista,
da própria família, diferentemente da empresa
numa unidade familiar agrícola o critério de
capitalista, em que a extração e apropriação do
maximização de utilidade não é a obtenção da
trabalho alheio é condição sine qua non para a
maior lucratividade possível para a satisfação
obtenção do lucro, é uma característica forte
de necessidades empresariais de lucro.
o suficiente para engatilhar lógicas diferentes
A lógica do COn~iUIl10 é muito forte de produção, conduzindo a comportamentos
nos agricultores familiares, e aumentando o sociais e econômicos diferenciados.
tamanho da família crescerá a intensidade do
Para os agricultores familiares, em es-
trabalho. Porém, o emprego do trabalho cam-
pecial aqueles com menores capacidades de
ponês é delimitado pelo objetivo fundamenta!
investimento, o critério familiar de decisão sobre
de satisfazer as necessidades familiares de-
(1 uso dos recursos é garantir o resultado eco-
correntes da reprodução do conjunto familiar.
nõrrico que cubra a subsistência da família, de
e não individualmente. Capital e patrimônio se
sorte que, embora com grande aversão ao risco,
confundem. podendo ocorrer prosperidade
p::!fado:':alm';l!lte, esses pequenos agricultores
familiar sem renda capitalista.
f2miEare:s acabam, nEI sua maioria, produzindo
8'.: culturas de mercado interno, justamente
aquelas com maior risco em relação aos preços
4. AGRICULTURA FAMILIAR E DESEN·
recebidos no mercado. Por sua vez, um mer-
VOLVIMENTO RURAL SUSTENTÁVEL
cado de alta instabilidade, como o de produtos
agrícolas de consumo interno, leva também
No estabelecimento do debate atual
a um quadro de dlversíâcação das atividades
foi preciso construir a ponte entre os estudos
clássicos do começo do século sobre o carn- produtivas desses agricultores, devido à base
da produçâo apoiada em apenas um produto
pesinato russo e europeu, e a nova roupagem
desse ator social que se transforma à medida
gere.; !lfT12 fonte de rendimentos pouco estável

que "a agricultura familiar que se reproduz


para a subsistência do conjunto familiar.

nas sociedades modernas deve adaptar-se a 1\ análise rio funcionamento do SFEA


um contexto sacio econômico próprio dessas po::s,ihllita (; apreensão de sua lógica produtiva
sociedades, que a obriga Ci realizar modifica- no contexto do equilíbrio familiar e do com-
ções importantes em sua rorma de produzir e p()~lament:) dos entornes ambiental e socio-
em sua vida social tradicionais" (WANDER- ecorôrnico. As relações entre a organização
LEY. i 996:2). Isto, no entanto, não irnplica interna da produção familiar e o mundo externo
rupturas totais e definitivas com a tracícào consul.stonciam, no processo de produção e
do camponês, o que de fato lhe dá condições rf!prndl!ç20 familiares, questões muito além da
de "mudar de roupagem" mas não percer Si~2 procura pela taxa mécta de lucro que rege os
essência camponesa. ipvest''Tlw\tO~;'2!::tritarnente capitalistas.
Os traços dos. produtores indep0nden .. }', p.'1Ttirdas ~ar(:\cterí~XG8" ela estrutura
e ,-:;i~ ri_ncic-;,:vTIento do SFE,\. pode ..se con-
---_ .._------_ .. _--_ ..__ .._- ..... .._._._ ...-_. __ . ------
,

Cadernos da PACECA. Campinas. v. 14, n.1, v. !:.7-1'! ! •.luL/dez. L005

,
ii~
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\~
·.AGRlCULTURA FAMILIAR: LUCRATI""lDADE E SUSTENTABILlDADE 169

siderar que esses mais se aproximem de um ô 'fêlmfi;:õ; i;, k~~Flr às g""raçôes vindouras
desenvolvimento rural sustentávei err, relação (;ondiç3{;·s para tarnném se reproduzi-
aos agricultores empresários capitafislas, rem GDmO [igricultofr3s farniliarr::s.
visto que:
Para que os agricultores possam se
- como o lucro não é condição básica para inserir num quadro de sustentabiudade arn-
as decisões de produzir, e o preço rece- bientai e econômica, é necessário adequar
bido pelo agricultor não necessariamente a ofeit" h!(;n();'~)flk;8 às r88.Ís condições pro-
contém essa fração, ocorre maior esta- dutivas desses agricultores. A potenciaHdade
biiidade econômica já que a produção técnica dos 8gric<.iitüres familiares, em seus
pode continuar em prazo mais longo, diferentes matizes, coloca a necessidade de
mesmo sem atingir, no mercado, o preço políticas diferenciadas, concebidas em um
esperado. O agricultor famiiiai' produz processo int~jiatiVG junto aos agricultores nas
com a expectativa de urna remuneração ~;uas· ,egioes ~,roj\.í10raS, num enfoque de
que íne permita soorevíver e constituir um sistemas Gg:iiÍ rios.
patrimônio. As não necessárias rernune-
Há que se considerar que a adjetivação
ração do capital f) do trabalho tamüiar
sustentável do desenvolvrrnento e da agricul-
fazem parte das decisões estratégicas
tura nao S~ H::stóinge simplesmente às alte-
do funcionamento do SFEA;
rações na base técnica, mas traz consigo a
- as propriedades familiares, por apresen- necessidade de políticas que possarn, de fato,
tarem menor escala produtiva, pressu-
promover o acesso democrático aos meios de
põem urna melhor distríbuição da terra produção e à desconcsntração da renda. Mais
e outros meios de produção. Ademais,
vontade pcAíUt;él no trato dessas interfaces é
por associar negócio e famHia, produção
também funcarr ental para que maior produ-
e consumo, o trabalho toma-se intensivo,
tividade aqropecuária em bases sustentáveis
e não é desprezível a capacidade dessas
refiita menores custos de produção e maior
unidades, ao'. inÍensificar sua produção,
estabilidade sociêJi dos agricultores familiares.
de absorver contingentes de mão-de-
A agricultura familiar tem que ser vista
obra, /10je, marginalizâdos no próprio
não no que ela tem de tradicional, mas sim de
campo e nas periferias das cidades;
uma maneira moderna de desenvolvimento do
- ambientalmente as propriedades fami-
meio rural, e mais, como o lócus de estraté-
liares têm maior diversidade produtiva
gias de reprodução social, com o que se rom-
e menor relação capital-trabalho, o que
pe a fatalidade histórica da associação entre
se expressa numa menor agressão ao
o desenvolvimento do capitalismo no campo
ambiente. Cabe lembrar ainda que, a
t a grande empresa patronal. Os elementos
manutenção das qualidades do solo em
conceituais da agricultura familiar tornam
termos de conservação e fertilidade im-
perceptível o entendimento da permanência
plica investimentos e, portanto, se privar
do pequeno agricuitor famiiiar no processo de
de parcelas do lucro atual em benefício
produção agrícola, entendimento esse ressal-
das gerações futuras. O que se de um
tado quando se pensa na concretização da
lado afasta o empresário-arrendatário
utopia da sustentabilidade na agricultura.
desse objetivo, de outro aproxima o
agricultor familiar por sua própria dinâ- O modo de produção capitalista não
mica de preservar o patrimônio para a destruiu as relações familiares na produção
continuidade da família. p, terra para ele agrícola, conforme preconizaram os intelec-
não é um objeto de lucro, mas sim parte tuais do inicio do século passado. Os descen-
do patrimônio que lhe permite viver com dentes dos camponeses produtores indepen-

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Cadernos da FACECA, Campinas. v. 14. fi. 2. p. 157-] 7 i,ju!.ldn 2005
170 M.S.CARMO

dentes se despiram dos resquícios feudais, agricultura reprodutível, diversificada e em


adaptaram-se e inovaram nas estratégias bases tecnológicas adaptadas aos diferentes
reprodutivas, de tal sorte que se tornaram os 2groeccssistemas e que assegurem a susten-
agricultores familiares atuais, um conjunto he- tabilidade da fertilidade do solo. No confronto
terogêneo, mas a base da produção agrícola com as forças capitalistas de produção é que
nos países desenvolvidos e o sustentáculo os pequenos produtores e trabalhadores mais
da oferta de alimentos de mercado interno expropriados conseguirão construir novos
em muitos subdesenvolvidos. É possível que padrões de organização técnica e social da
o trilho do determinismo histórico do seu de- produção agrícola. Políticas e atitudes qover-
saparecimento esteja mostrando outro desvio namentais, mais a participação da sociedade
que permite vislumbrar a conexão entre a civil consciente, fazem parte desse processo
agricultura familiar e a sustentabiiidade do de gestação de novas formas de estruturas
desenvolvimento. produtivas familiares como um projeto social

Apesar de todas 8.8 conseqüências da


alternativo que traça um paralelo com o m0de-
expansão das relações capitalistas na agri-· lo dominante de modernização agrícola.

cultura, é possível uma visão otimista como


proposta para uma nova agricultura. Como o
problema não S8 resume apenas ao meio rural, 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
é o conjunto da sociedade, campo e cidade,
que se deve conscientixar da necessidade de AMIN, S. & VERGOPOULOS, K. A Questão
se estabelecer nevar. formas de organização Agrária e o Capitalismo. Trad. Beatriz Resen-
social e de produção na aqricultura. A 9fetiva ele, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 179 p.
participação da pequena produção familiar (Pensamento Crítico, 15).
agrícola tem que ser bandeira de luta, também C/R/Vl0, r,J1. S. do La Production Familiale
da população urbana, que necessita de alimen- cornrne Locut: de L.'agriculture Durable p. 225-
tos não contaminados ea preços baixos. 244 In ZAf'JONI, M. & LAMARCHE, H. (coord.)
A agricultura tamiiiar, 80 não se limitar Agriculture et Ruralité au Brésli: un autre modele
i, à obtenção do lucro e mnGa d.?; terra para de !jávr~{7pp(lment, Paris: Ed. Karthala, 2001.
1, produzir, ou seja, não necessit::1r. obrigatoria- 3460.(lSBN: 2-84586-173-7)
: ~
mente, realizar o !~Y:ro nos r.;.rr~çI)Sq:)0 recebe. C Hf.Yl.UOV, AV La Organizáción de Ia Unidad
1 ;
não modifica sig'lifi-::ativ.9.menre a qwmtidade Ecortctrvc« Cernpesine. Buenos Aires, Nueva
;
ofertada face às )~LJtUrtçi)e!.'. nos preços, e Visión. ·i~il4. 339p.
<',
pode funcionar corno um elemento de esta-
l
.?
j;
bilidade na produção agr1cola. Dada 89 suas
CHAYANOV. A. V. Sobre a Teoria dos Sistemas
Ecollómicos n80 Capitalistas. ItI: GRAZIANO
características de díversíflcaçâo/mtecração
["Á S iLV A. J.& STOLC;KE, V. A Questão Agrária.
de atividades vegetais e arumais, e por traba-
São Pauío: BrasHiense, 1981. 185 p.
:. lhar em menores escalas, pode representar a
i; cateqoria par excellence no estabelecimento DU;:-UflA1ER. M. Systernes de Production et
de uma outra agricuitura em que se busquem LV've/o;Jrwmentl\gricole dans le 'Tiers Monde".
menores impactos ao ambienie natural e ü.es Cehiers de Ia Recherche Développment,
maior ecuilfbrio social e econômico. É tunda- N. 6), 1985, p. 31-38
mental, porém, que seja alvo de uma polrtica
L>JPfl.;',:[' r::;. ,t'.;jriculture et Environnement:
estruturaaa e imptememaoa para esse 11m.
!·?os apriorts de Ia demarche systémique. In:
;. É da consci§rv:::;a S'Jc:ifit rGai.r: Ativa 8iEf\!\lEi\lU, Catnerine & HANTONNE, Pascal
e crítk~::\ que S~!'''3 pG~.sf\f~~1 C0~,'~~::-:;~r.som (coorc.) Gestion de Cenvíronnement et des
b2SE, n;~, requ::~:!;::, prod:.iI;:<:.iJ fa....,;1i8~, uma Ressources Naturelies Agrícoles et Rurales.
-----_._ .._._-_._" ..__ ._..__ .-._--._-- .... _ _---
..--.-_._---- ..
AGfUCULTURA fAMILIAR: LUCRATl'IIDAI'E E ,;ü~TEl'TABr.L!DADE 171

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