Você está na página 1de 34

L

L
L

i
L
L
JUNICHIRO TANIZAKI
l
L
l
L Em louvor da
L
(__ solllbra \

(_ '
l
l
(_ 1
li
Traduçãodojaponêse notas
Leiko Gotoda
l_

l
L
l
l
e
l'
(__
(_
1
l ..
/'
\,___ COMPANHIA DAS LETRAS

L
(
(_
/

l
)
Copyright © 1933 by Herdeiros de Junichiro Tanizaki )
,
Títulooriginal
In'ei Raisan '
Capa
Raul Loureiro

Fotodec:apa
Wemer Bischof / Magnum Photos

Revisão
Cecília Ramos
Ana Marta Barbosa

'

Dados tnternaáonais de Catalogação na Publicação {CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, sP, Brasil)

Tarúuki, Jurúchiro, 1886-1965. EM LOUVOR DA SOMBRA


Em louvor da sombra I Jurúchiro Tarúuki ; tradução
do japonês Leiko Gotoda. - São Paulo : Companhia das
Letras, 2007.

Título original: In'ei Raisan.


ISBN978-85-359-1029-2
")
'
1. Ensaios japoneses
2. Estética japonesa ,. Título .
')
')
07-2620 CDD-895.64

lndice i,ara catálogo sistemático:


)
1. Ensaios : Llteratura japonesa 895.64
")
!1 -,
J
[2007] 1,
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ !IDA.
)
Rua Bandeira Paulista 702 tj. 32 J
04532-002-São Paulo-sP ...,
Telefone (11} 3707-3500
Fax (11) 3707-3501
www.companhiadasletras.com.br
1
i
\__
\
\..__
'
'-
L
\.....,

(__
1
"-·
1
í
\.....
\..__ 1
ã
Hoje em dia, qualquer indivíduo interessado em
construir sua própria casa no mais puro estilo arqui-
l!i
\..__
tetônico japonês precisa recorrer a uma série de estra -
\__
tagemas engenhosos para harmonizar certas insta-
lações como rede elétrica, de água e de luz com a
1 sobriedade dos aposentos japoneses, estratagemas

,.....
l
tj
"'
que, assim acredito, mesmo aqueles que nunca passa-
ram pela experiência de construir uma casa são capa-
zes de perceber ao entrar em estabelecimentos tradi-
cionais como casas de chá, restaurantes ou hospedarias.
Pois por mais que queiram seguir fielmente os costu-
mes japoneses, tais amantes da arquitetura japonesa
- aqui desconsiderados o excêntrico ermitão ou o
austero apreciador da arte do chá que, ignorando con-
~ quistas científicas, preferem erigir singela cabana col-
i mada em localidades remotas -jamais conseguirão
evitar a instalação, em seus lares, de certas comodida-
des como aquecimento central, luz elétrica e apare-
'--

7
\~

' ~
lhos sanitários, essenciais no cotidiano de suas famí- harmonizam com aposentos japoneses. Numa resi-
'
lias. Nesta altura, o purista dará tratos à imaginação dência, poderiam até ser totalmente banidos caso seu
para, por exemplo, tornar menos conspícua apre- uso não agrade ao dono, mas num estabelecimento
sença de um simples aparelho telefônico, relegan- comercial o gosto do proprietário nem sempre pode
do-o para o fundo de uma caixa de esCéidaou o canto prevalecer em detrimento do bem-estar de eventuais
escuro de um corredor. E se além disso resolver ado- hóspedes, principalmente no verão. O proprietário do
tar também outras medidas, como enterrar a fiação do restaurante Kairakuen, meu amigo e também ferre-
jardim, ocultar o comutador de luz no interior de ar- nho defensor do mais puro estilo arquitetônico japo-
mários ou de compartimentos ao rés-do-chão, ou nês, recusou-se durante muito tempo a ter ventiladores
ainda provide~ciar para que fios elétricos aparentes em seu estabelecimento, mas, de tanto ouvirreclama-
se esgueirem por trás de biombos, correrá o risco de ções de clientes todos os anos no período do verão,
ver tanta criatividade transformar-se em motivo de acabou cedendo e os instalou afinal.
Eu mesmo passei por experiência semelhante há
contrariedade por excesso de zelo.No caso das lâmpa-
alguns anos ao construir minha casa - e gastar mais
das elétricas, por exemplo, a v~r~ade é que nossos
do que podia-, pois percebi que a meticulosidade
olhos já se habituaram à presença delas e, a tomar
excessiva na escolha de acabamentos e de comple-
meias medidas inadequadas com o intuito de camu-
mentos acarreta dificuldades inesperadas. Por exem-
flá-las, creio ser muito melhor mantê-las nuas, ape-
plo, o acabamento dos shoji:por meu gosto, jamais os
nas protegidas por convencionais quebra-luzes de revestiria de vidro, mas se me mostrasse rígido demais
vidro leitoso, pois assim terão aspecto mais simples, optando por papel em todas as circunstâncias, ver- --,
natural. Tanto é verdade que, quando viajo por uma me-ia imediatamente às voltas com problemas de ilu-
região rural ao entardecer e avisto pela janela ,dotrem minação e de segurança. Em desespero de causa, optei '
uma dessas lâmpadas providas de antiquado quebra- por revesti-los de papel internamente e de vidro
luz leitoso a brilhar solitária por trás do shoji 1 de rústi- externamente. Para que esta opção se tornasse exe-
cas casas colmadas, o cenário chega a me parecer poé- qüível, precisei instalar molduras duplas, uma para o
tko. Esse porém não é o caso dos ventiladores que, shoji externo e outra para o interno, medida que acar-
tanto pelo ruído como pelo formato, ainda hoje não se retou considerável acréscimo de dispêndio e trouxe,
ao contrário do que esperava, resultado decepcio-
1. Shoji: painel, geralmente corrediço, cuja estrutura de madeira nante, já que visto por fora transformou-se em sim-
leve forma pequenos quadrados vedados por folhas de papel
ples painel envidraçado e, por dentro, o shojirevestido
japonês (washi). São geralmente usados para compartimentar
aposentos, assim como para vedar janelas e o lado interno das de papel não proporcionou os esperados aconchego e
varandas. suavidade por causa da existência, por trás dele, do

8 9
1 outro, acabado em vidro. Nessa altura, e só então,
concluí arrependido que se era para obter tão pífio
plementada com chaminé, sem a qual quase certa-
mente provocará enxaqueca nos usuários. Nesse
resultado eu devia ter optado por revesti-los unica- aspecto, o ideal é a estufa elétrica, mas o problema da
mente de vidro desde o início, conclusão capaz de pro- forma que não se coaduna com ambientes japoneses

'--
l.....
1
!J
i
vocar o riso do espectador descomprometido, mas a
que eu mesmo só cheguei depois de lançar mão de
persiste. Compartimentar ao rés-do-chão um aquece-
dor elétrico do tipo usado em vagões de trem seria

~
todos os expedientes imagináveis para manter os shoji uma boa saída, mas a ausência de uma chama quei-
revestidos de papel. A iluminação também consti- mando rubra em noites frias me privaria do prazer de
R tuiu-se em outro problema: modernamente, existem apreciar devidamente tanto o inverno quanto a reu-

L
~ à venda diversos tipos de luminária elétrica que se nião familiar em volta do fogo. Depois de muito dar
harmonizam com o ambiente japonês, desde modelos tratos à imaginação, mandei cavar no piso da sala de
\... que imitam abajures 2 e lanternas de papeP medievais estar um grande braseiro semelhante aos existentes
até os que pendem do teto em forma êle globos acha- em casas rurais e dentro dele instalei brasas elétricas,
tados4 ou de candelabros,5 mas como nenhum me esquema que se mostrou eficaz para aquecer o
agradou, procurei em lojas especializadas autênticos ambiente e também para ferver uma água, e que,
i exemplares de antigos abajures de cabeceira e de lam- excettj pelo alto custo, considerei urna adaptação esti-
'-- losa de um sistema ocidental.
parinas alimentadas por querosene 6 e a eles adaptei
'--
bulbos elétricos. O aquecimento a funcionar satisfatoriamente,
Especialmente problemática mostrou-se a esque- tive em seguida de enfrentar o problema do banho e
matização do sistema de aquecimento. Nenhuma estu- do sanitário. O proprietário do Kairakuen, o amigo já
fa que se preze tem formato adaptável a um zashiki 7 mencionado, não gostou da idéia de azulejar a sala de
japonês. A alimentada a gás, por exemplo, além do in- banho e a banheira ,8 e optou por revestir de genuína
conveniente de rugir quando acesa, precisa ser com- madeira as instalações destinadas a hóspedes, mas,
nem é preciso dizer, o azulejo é muito mais adequado
2. No original, andon: estrutura de madeira cercada de papel, em do ponto de vista higiênico corno também mais eco-
cujo interior era introduzido um prato raso de óleo destinado a nômico. O único problema é que, quando se usa
alimentar a chama de um pavio.
madeira japonesa de boa qualidade em pilares, forro
3. No original, chouchin : lanterna portátil semelhante a um tubo de
papel, dentro do qual se levava a vela acesa. e lambris, a área revestida de chamativos e brilhantes
4. No original, happoshiki andon.
5. No original, shokudai. 8. Na maioria das casas japonesas há um aposento reservado ape-
! 6. No original, makura andon e ariake andon . na s para o banho, no qual são instalados banheira (furô) e chu-
7. Zashiki: sala de visita ou de estar. veiro , e outro , separado, com vaso sanitário e pia.

10 11

'--
,' :: . ;'·>,', ~
t '
azulejos passa a destoar do conjunto. A princípio, o paredes de madeira de r~quintado veio, pode-se con-
contraste nem é tão notável, mas com o passar dos anos templar tanto o céu azul~ -om·o ·o verdejante frescor
e o envelhecimento da madeira, pilares e lambris es-
curecem evidenciando a beleza dos veios, momento
..
das plantas. Além disso, volto a dizer, é imprescindí-
vel que o ambiente seja sombrio e absolutamente
em que a brancura ofuscante do azulejo destoa como limpo, e esteja imerso em silêncio tão profundo que
sol no meio da noite. Seja como for, na sala de banho tome audível até o fino zumbido de um pernilongo.
a praticidade pode até ser sacrificada em nome do Gosto de ouvir a chuva caindo mansamente enquan-
bom gosto, mas no banheiro os problemas tornam-se to estou em latrinas semelhantes. Sobretudo as da
mais complexos. região de Kanto, providas de longas e estreitas abertu-
., ras similares a janelas ao rés-do-chão, 10 possibilitam
(/ J
ouvir bem de perto o suave murmúrio da chuva que,
Sempre que, em templos de Kyoto ou Nara, sou gotejando de um beiral ou de folhas, lava a base da
conduzido a uma escura e antiquada latrina 9 impeca- lanterna de pedra, umedece o musgo crescido em bor-
velmente limpa, sinto renovar-se em mim a admira- das de lajotas e quietamente desaparece terra aden-
ção pela arquitetura japonesa. Zashiki, as salas de estar tro. Com efeito, são lugares propícios para se ouvir o
japonesas, são belas, não há dúvida, mas na minha cricrilar de grilos e o gorjeio de pássaros, propícios
opinião as latrinas oferecem paz de espírito aos usuá- também para apreciar o 1uar: neles se sente com pene-
rios. Construída invariavelmente longe do corpo da trante intensidade a passagem das estações e a transi-
casa, à sombn(de arbustos e em meio à folhagem e ao toriedade das coisas terrenas, neles provavelmente
musgo de verde fragrância, a ela se chega transpondo poetas de antanho vislumbraram temas para seus hai-
corredores, quando então, acocorado em meio à baça cais. Assim, não considero de todo impossível afirmar -.
claridade refletida pelo shoji,considero simplesmente que a latrina é a dependência de maior valorização
1

indescritível a sensação de cont~mplar o jardim pela estética da arquitetura japonesa. Com sua ímpar ca-
janela e me perder em pensameritbs. Segundo dizem, pacidade de tudo transformar em poema, nossos ante-
1
passados acabaram por converter em ponto de extre-
o escritor Soseki Natsume contava as idas matinais ao
mo bom gosto o mais insalubre aposento da casa,
-,
-1 banheiro entre os prazeres de sua vida, e delas auferia
unindo-o a manifestações de incomparável formo-
êxtase fisiológico. E para experimentar tal êxtase não
sura da natureza - flores, pássaros, brisa ou luar - e
há em minha opinião lugar mais adequado que uma
a uma cadeia de concepções poéticas repletas de nos-
latrina em estilo japonês, onde, cercado por sóbrias
talgia. Comparada à atitude ocidentalde ver a latrina ~

9. Aqui, o autor se refere ao compartimento externo 'com vaso


sanitário e fossa. 10. Aberturas para facilitar a limpeza.

12 13
como algo·deletério, impróprio até para ser citado em ambiente de imaculada brancura que expõe cada
público, a nossa é mais sábia, compreendeu o subs- canto ou: fresta, mas qual a necessidade de se visuali-
i trato do requinte. E se algum defeito tem de existir, o zar com tanta clareza o local destinado ao que expeli-
único a meu ver é o da localização:situada em ponto mos do nosso organismo? Se nem à beldade de alva
distante do corpo da casa, seu uso no meio da noite pele acetinada perdoamos a grosseria de exibir seu
\...
pode ser desconfortável, principalmente no rigor do traseiro ou pés desnudos, a excessiva iluminação que
t__
inverno, quando se arrisca a pegar um resfriado. desvenda e exibe todo detalhe é ofensa ímpar, sem
Ainda assim considero preferível que a temperatura falar que a limpeza do que vemos nos leva a pensar
de tais instalações seja a mesma da do ambiente naquilo que não vemos. Eis por que continuo achan-
L externo, citando como justificativa o escritor Ryoku do que lugares como banheiros devem ser envoltos
---....
~,.. Saito, segundo o qual '~o_fr~9 -~~!_i!Ill!-Jª_?_es~~~~.1:,
_O ar numa suave penumbra que torne vaga e imprecisa a
.. ~ -.!:
,·/ I?
morno da calefação que bafeja o interior de banheiros linha entre o higiênico e o não higiênico. E assim, aca-
~l~ ==~
-•t
~'.
em hotéis, por exemplo, é para mim extremamente bei instalando louça sanitária interligada à rede de
desagradável. É portanto quase certo que nosso con- água e esgoto no banheiro de minha casa, mas preferi
\...
ceito de latrina seja considerado ideal por todo amante assoalhar o piso com tábuas de canforeira para obter
da pura arquitetura japonesa, mas não féfácil man- um ar ,bem japonês e excluí por completo os azulejos.
'- ter a limpeza desse tipo de instalação no padrão impe- Àquela altura, porém, problema maior foi escolher o
\._ cável dos que existem em instituições como o templo, aparelho sanitário. Como todos sabem, os disponíveis
onde a área construída é bem maior que o número de no mercado são todos imaculadamente brancos e têm
usuários e onde há também um eficiente pessoal de detalhes metálicos brilhantes. Por meu gosto, optaria
manutenção. Numa casa, a observância estrita de boas por vasos de madeira, um exclusivamente masculino
maneiras e de regras de limpeza não impedirá a su- e outro feminino. A madeira encerada seria ainda
jeira de aparecer eventualmente, em particular se o melhor , mas mesmo sem nenhum acabamento esse
1

piso da latrina for de madeira ou de tatame. E assim, tipo de material adquire tonalidade escurecida com o
acabo concluindo que um banheiro ocidental azu- passar do tempo, 'e o atraente desenho dos veios pro-
lejado e com vaso sanitário ligado à rede de água e porciona curioso efeito relaxante. Sobretudo atraente
esgoto é mais h_igi.ê_nicoe fácil de manter e, em troca, é, para mim, o mictório forrado todas as manhãs com
digo adeus à estesia} à apreciação da natureza. Claro, ramos de cedro recendentes que, al~hi de agradáveis
pois com quatro paredes de puro branco e tanta cla- à vista, têm a vantagem de tornar a micção silenciosa.
ridade concentrada, será difícil experimentar a sen- A manutenção desse tipo de luxo, porém , está acima
1
1
sação de "êxtase fisiológico " mencionada por Sose- de minhas posses, de modo que pensei em me conten-
ki. Realmente, ninguém há de discutir higiene num tar mandando fazer um vaso do meu gosto, ao qual
14
15
\._

~
adaptaria o sistema de descarga convencional, mas cientes para esquentar um aposento. Alguns dirão
a~é disso fui obrigado a abrir mão por causa da dificul- que discutir preferências e antipatias por esta ou
dade e do alto custo que representaria a execução aquela prosaica engenhoca de uso diário é luxo reser-
dessa peça única. E foi nessa altura que me dei conta: vado aos que não têm o que fazer na vida. Que impor-
luminárias, aquecedores e aparelhos sanitários são tância teria a forma das tais engenhocas se nos prote-
modernidades a cuja adoção não me oponho; mas gem das intempéries ou nos salvam de morrer de
como foi que nós, os japoneses, não nos empenhamos fome? Realmente, por mais que tentemos negar, o
em aperfeiçoá-los para melhor conformá-los a nossos frio dos dias nevados é intenso, e se deparamos com
hábitos, gostos e modo de vida? invenções úteis para atenuá-lo, a tendência inevitá-
3 vel é buscar rapidamente seus benefícios e deixar de
lado a questão estética. Estas considerações levam-
Nos últimos tempos, a crescente popularidade me sempre a imaginar quão diferente seria o aspecto
dos abajures elétricos muito parecidos com seus pre- atual da nossa sociedade caso uma cultura científica
cursores medievais-aqueles providos de quebra-luz única, diversa da ocidental, houvesse prosperado no
de papel - vem provar que desperta entre nós uma Oriente. Por exemplo, se tivéssemos desenvolvido
vez mais a percepção momentaneamente adorme- física ou química únicas, exclusivamente nossas, não
cida de que o papel, além de macio e cálido, também se teriam, tanto a tecnologia como a indústria nelas "'"\

harmoniza mais que o vidro com uma casa japonesa. baseadas, se desenvolvido de maneira diferente e, por
Infelizmente, porém, nada semelhante ocorreu com conseguinte, dado origem a incontáveis pequenos -----

relação a aparelhos sanitários e a estufas, pois deles inventos, bem como a remédios e a artefatos mais
até hoje continuam inexistindo na praça exemplares ajustados às características do nosso povo? Melhor
mais condizentes com nosso ambiente. Na questão das ainda, os próprios princípios da física e da química se
estufas, acredito que a melhor adaptação foi aquela baseariam em visões diferentes das ocidentais, e tanto
que eu mesmo consegui, qual seja, a de instalar bra- a natureza como o desempenho de fenômenos como
sas elétricas no fundo de um braseiro tradicional luz, eletricidade e átomo apresentariam agora aspec-
cavado no piso do aposento, mas o que mais me intri- tos diferentes daqueles que hoje conhecemos. Sem
ga é que ninguém até hoje tenha sequer tentado im- nada entender de teorias científicas, estou apenas '
plementartais~equenas modificações e que continuem tecendo vagas conjecturas levado pela imaginação,
à venda apenas as desajeitadas estufas ocidentais. As mas supondo que, se ao menos os inventos de uso prá-
únicas versões elétricas de aquecedores japoneses tico tivessem trilhado um rumo original em nosso
existentes no mercado são adaptações dos tradicio- país, tais inventos teriam obrigatoriamente exercido,
nais braseiros a carvão (hibachi), pequenos e insufi- antes de mais nada, ampla influência sobre o nosso

16 17
cotidiano e, em seguida, também sobre a nossa estru- Í•
***
tura política, religiosa, artística e industrial. Esse racio-
cínio leva-me facilmente à conclusão de que o Orien- Sei muito bem que as considerações acima são
te teria desenvolvido um universo todo seu, peculiar apenas devaneios de um escritor e que no estágio em
"-
e ímpar. Exemplos disso são dois objetos familiares, a que nos encontramos é impossível voltar atrás e reco-
caneta-tinteiro e o pincel, sobre os quais já escrevi meçar. Estou apenas desejando o impossível e me
(.
anteriormente num ensaio para o mensário Bungeis- lamuriando, mas já que estamos no terreno das lamú-
'- hunju. Se a caneta-tinteiro tivesse sido inventada na rias, creio não fazer mal algum prosseguir mais um
/'
w Antiguidade por japoneses ou chineses, na certa teria tanto e considerar o tamanho da nossa desvantagem
adaptada à sua ponta não uma pena, mas um tufo de em relação aos ocidentais. Resumindo, o Ocidente
pêlos semelhante ao de pincéis. Ademais, a tinta não veio trilhando seu caminho natural rumo ao que é
teria essa cor azulada, mas seria um tipo de sumi lí- hoje, enquanto o Oriente, confrontado com uma civi-
quida que escorreria aos poucos do corpo da caneta lização superior, absorveu-a mas, em troca, desviou-se
para umedecer os pêlos. Nesse caso, não usaríamos o da própria rota de progresso que percorria havia
papel ocidental para escrever, e sim folhas com carac- alguns milênios e buscou novos rumos, o que no meu
\____
terísticas semelhantes às do papel japonês (washi), entender originoµ inúmeros desacertos e inconve-
~
<... niências. Contudo, isso não significa que teríamos
mas de categoria um tanto inferior (kairyobanshi) para
L feito grandes progressos materiais caso tivéssemos
atender à demanda em massa. E se papel, sumi e pin-
'- sido deixados à mercê de nossa própria sorte nos últi-
cel tivessem realmente evoluído dessa maneira, ca-
mos quinhentos anos. Basta ver qu/ no interior da
neta e tinta não teriam a popularidade de que hoje
China e da Índia o povo ainda leva um tipo de vida
í gozam, discussões sobre a romanização da escrita ja-
quase idêntico ao da época de Sídharta Gautama e
1 ponesa não teriam campo para se expandir e, em con-
Confúcio, mas ao menos estaríamos seguindo um

,_
1 trapartida, a preferência popular pelos ideogramas e
pela escrita de nomes ocidentais com ideogramas
rumo que nos agrada. E um dia-impossível não seria
- talvez viéssemos a descobrir, em lento e cuidadoso
foneticamente adaptados teria saído fortalecida. Aliás,
progresso, substitutos para os trens, os aviões e os
as alterações não se restringiriam às citadas; elas alcan-
rádios atuais, inventos não mais tomados de emprés-
çariam também o nosso modo de pensar e até a nossa timo de outras civilizações, e sim modernas conve-
1 literatura, que então talvez não imitasse tanto a ociden- niências realmente adequadas ao nosso modo de vida.
tal e se expandisse rumo a um mundo novo e criativo. Exemplo disso é o cinema: o sombreamento e o mati -
Assim considerada, a esfera de influência de um sim- zado das fitas americanas diferem dos das francesas e
ples artigo de papelaria é quase inimaginável. alemãs . Ou seja, mesmo desconsiderando enredos ou

I._ 18
19
t.....
'-- 1 41
,.

modos de atuar, as nacionalidades diferentes manifes- macia primeira neve de inverno e como ela absorve
tam-se de algum modo na imagem fotográfica. Se fitas brandamente a luz. Bastante maleável, não produz
que usaram o mesmo tipo de filme, filmadora e quí- ruído ao ser dobrado ou amassado. Manuseá-lo é o
mica produzem tanta diferença, imaginem o que não mesmo que tocar em folhas de árvores frescas e úmidas.
faria uma tecnologia fotográfica própria, só nossa, ade- De um modo geral, nós, os japoneses, sentimos
quada à nossa pele, feições, tempo e clima. O mesmo desassossego diante de objetos cintilantes. No Oci-
se pode dizer de toca-discos e rádios: caso os tivésse- dente, prata, ferro ou cobre são usados na fabricação
mos inventado, na certa eles ressaltariam as caracterís- de aparelhos de jantar e talheres, os quais são polidos
ticas de nossas vozes e instrumentos musicais. Nossa até brilhar, coisa que não apreciamos. Às vezes, faze-
música primitiva é contida, toda feita de atmosfera. mos chaleiras, taças e frascos de saquê de prata, mas
Gravada em disco ou amplificada, perde boa parte de não os lustramos. Ao contrário, apraz-nos observar o
seu encanto. O mesmo se dá com a arte narrativa que, tempo marcar sua passagem esmaecendo o brilho do
em nosso caso, é realizada em voz baixa, com econo- metal, queimando e esfumaçando sua superfície. Ver-
mia de palavras e, sobretudo, num ritmo peculiar cuja dadeiras comoções são provocadas em muitos lares
propriedade se perde totalmente em gravações. E quando, pensando agradar, empregadas desavisadas
então ·acabamos distorcendo nossa própria arte para lustram utensílios cujo aspecto seus patrões viam com
que ela se ajuste às máquinas. O ocidental, contudo, satisfação adquirir um sóbrio tom envelhecido.
desenvolveu o próprio engenho, o qual obviamente Ultimamente, a culinária chinesa é servida em
serve aos interesses dele. Imagino que isso tenha ori- utensílios de estanho porque os chineses amam a
~\
ginado inúmeras desvantagens para nós. tonalidade envelhecida desse metal. Quando novos,
r~"''_,_
"
os utensílios de 'btanho assemelham-se aos de alumí- '
nio e não são atraentes, mas os chineses os usam até
O papel, segundo ouvi dizer, foi inventado pelos obter uma delicada tonalidade envelhecida. E con-
chineses, e para nós, os japoneses, o papel ocidental forme a superfície escurece, os versos que às vezes
nada mais é que uma utilidade; já o aspecto e a textura encontramos gravados nela passam a ser parte har-
do papel japonês (washi) ou do chinês (toushi) nos pro- moniosa do conjunto. Em outras palavras, o estanho,
porcionam sensação de tépido aconchego e paz de espí- metal leve, brilhante e delgado, transforma-se nas
rito. Além disso, a brancura do papel ocidental difere da mãos dos chineses em algo profundo, sombrio e im-
)
do papel japonês especial (housho), ou da do papel chi- ponente, muito semelhante à sua tradicional cerâmica
nês branco (hakutoushi). A textura do papel ocidental shudei, de coloração castanho-avermelhada. Os chine-
tende a repelir a luminosidade, mas tanto o housho ses também amam o jade, mas aqui cabe uma pergun-
como o hakutoushi têm textura suave semelhante à da ta: não seríamos apenas nós, os orientais, que senti-

20 21
1 mos atração por esse bloco de pedra estranhamente nada mais é que sebo acumulado. Ou seja, é o brilho
l
! resultante da contínua manipulação de áreas ou de
enevoado que parece conter uma luz mortiça em suas
i profundezas semelhante à atmosfera concentrada de objetos: tocadas e acariciadas constantemente, tais
j centenas de anos? Nós mesmos somos incapazes de peças acabam absorvendo a gordura das mãos. E
\_
l compreender por que o jade, que não tem o vívido
colorido de um rubi ou de uma esmeralda, nem o bri-
então, em vez de "o frio estimula a estesia", talvez
pudéssemos dizer também que "a sujeira estimula a
j
l lho de um diamante, tanto nos seduz, mas ao contem- estesia". Seja como for, as coisas que apreciamos
"- l plar a superfície baça dessa pedra tão genuinamente como belas e requintadas têm em sua composição
'-- chinesa, sua densa turbidez parece nos falar do sebo parcelas de sujeira e desasseio, não há como negar.
\_ Em contraposição ao ocidental, que renega o sebo e
de uma velha civilização. Agora a estranha atração
~ dessa cor e da própria matéria passa a fazer sentido. tudo faz para livrar-se dele, digo - tjilvez tentando
'- Vejam também o caso dos cristais, importados em não dar o braço a torcer - que faz parte da natureza
grande quantidade do Chile nos últimos tempos: do oriental valorizar, preservar e glorificar objetos
quando comparados aos cristais japoneses, os chile- marcados por constante manipulação, fuligem, chu-
nos são limpos, demasiado translúcidos, o que não va e vento, e amar tudo o que tenha a cor ou o brilho
\....
nos atrai. Os nossos, extraídos desde a Antiguidade de tais objetos. Tê-los ao nosso redor e morarem cons-
I.,_
das minas de Koushu, têm em meio à transparência truções com suas características tranqüiliza-nos a
L alma, proporciona-nos estranha serenidade. Eis por
certo anuviamento generalizado que lhes confere mais
peso; aliás, apreciamos mais ainda a espécie chamada que sempre penso: em vez de usar cores e materiais
kusairi, que contém corpúsculos sólidos embutidos. brancos e brilhantes em paredes de hospitais, aventais
Do mesmo modo, o vidro produzido por mãos chine- e equipamentos médicos, por que não optamos por
sas se assemelha muito mais a jade ou a ágata. Embora outros, foscos e suaves, no tratamento de pacientes
'-
a técnica da vidraria fosse conhecida desde a Antigui- japoneses? Tenho certeza de que a tensão deles se
dade no Oriente, por aqui ela não se desenvolveu atenuaria consideravelmente caso fossem examina-
tanto quanto no Ocidente, mas, em troca, a cerâmica dos sobre tatames em aposentos semelhantes a zas-
mostrou notável evolução, fato na certa relacionado hiki e em hospitais cujas paredes fossem cor de areia.
com as características dos povos envolvidos. Isso não Por trás da nossa aversão por consultórios dentários
significa que todo brilho nos desgoste, mas ao super- está, de um lado, o irritante zunido da broca e, de ou-
ficial e faiscante preferimos o profundo e sombrio. tro, o excessivo número de instrumentos brilhantes, de
Seja em pedras ou em utensílios, nosso gosto é pelo vidro du de metal, que nos enchem de pavor.Na época
brilho mortiço que remete ao lustro dos anos. Lustro em que sofri aguda crise de nervos, eu sentia o terror
dosanosé'expressão poética, pois tal lustro na verdade me invadir à simples menção de certo dentista recém-

22 23
'-
\_
voltado dos Estados Unidos, orgulhoso de seus méto- ridão por causa do teto e do pilar do nicho tokonoma ,
dos e equipamentos modernos. E então eu procurava enegrecidos e de brilho baço. Mas no instante em que
outro, um tanto antiquado, que mantinha consultório a luz elétrica foi substituída por velas e contemplei o
num canto da própria casa de típico estilo interiorano. aparelho de jantar e as tigelas à sua luz bruxuleante,
Não estou com isso afirmando que equipamentos descobri no lustro denso e profundo como pântano
obsoletos e de cores esmaeddas não constituam sério dos utensílios laqueados um encanto que até então
problema médico, mas, se a moderna medicina tivesse desconhecia. E dou-me conta de que não por acaso
se desenvolvido no Japão, instalações e equipamen- nossos ancestrais, ao divisar um uso para a laca, tanto
tos na certa teriam sido desenhados de maneira a se se apegaram aos utensílios pintados com ela. Sabar-
harmonizar com zashiki japoneses. Esse é mais um wal, meu amigo indiano, disse-me certa vez que em
exemplo de empréstimo de outras culturas que nos sua terra o povo ainda hoje prefere aparelhos de mesa
"i
foi desvantajoso. laqueados aos de porcelana. Ao contrário deles, usa-
Em Kyoto, existe um restaurante de nome Wa- mos quase tudo de porcelana, exceto bandejas e tige-
ranjiya, famoso por ainda iluminar seus aposentos las de sopa (wan), pois consideramos pouco refinado
com velas em antiquados castiçais. Fiquei muito tem- e de gosto duvidoso o jogo de jantar totalmente la-
po sem lá ir e quando os procurei na primavera pas- queado e restringimos seu uso a ocasiões especiais e a
sada descobri que tinham substituído velas e castiçais cerimônias do chá. Isso porém não seria conseqüên-
por imitações elétricas dos medievais abajures andon. cia da claridade proveniente de modernos processos e
Perguntei-lhes quando haviam adotado a novidade e equipamentos de iluminação? Realmente, a sombra é
responderam-me que o tinham feito muito a contra- elemento indispensável à beleza dos utensílios la-
}
gosto no ano anterior e apenas porque muitos clien- queados. Embora hoje em dia haja até laca branca, os
)
tes reclamavam da excessiva obscuridade. "Mas se o objetos laqueados existentes desde a Antiguidade
senhor prefere velas em castiçais, nós as traremos sempre foram pretos, marrons ou vermelhos, cores
com p:r:azer",acrescentaram. Uma vez que eu mesmo que resultaram da sobreposição de camadas e cama- "")

havia ido até lá com o único intento de apreciar a das de sombra, e que nasceram de maneira natural da
antiga iluminação, pedi que assim fizessem. :pfoi en- escuridão que tudo envolvia. A visão de caixinhas,
tão que percebi: a verdadeira beleza da laca japonesa só mesas de apoio e prateleiras de laca brilhantemente
se revela plenamente na penumbra. Em Waranjiya, enceradas com vistoso acabamento makie 11 dourado
os aposentos, pequenos, têm o tamanho aproximado ou prateado nãf>raro provoca uma perturbadora sen-
de quatro tatames e meio, íntimos como aqueles em
que se realizam cerimônias do chá, e mesmo a luz de 11.Makie: desenho executado com pó de ouro ou prata (por vezes
um abajur elétrico é insuficiente para vencer a escu- pigmentos coloridos) aspergido sobre superfície laqueada.

25
24
sação de espalhafato e até de vulgaridade, mas expe- Embora tenha suas qualidades, a porcelana não
rimente o caro leitor cobrir de densa treva o espaço possui nem a sombra nem a profundidade da laca.
branco em torno desses objetos e iluminar o ambiente Além de tudo, a porcelana, pesada e frilao toque, é, sem
com um ponto de luz de candeeiro ou de vela em subs- mencionar seu incômodo retinido, ótima condutora de
.....
1 tituição aos raios solares ou à brilhante luz elétrica: o
espalhafato prontamente submergirá e dará lugar a
calor e portanto imprópria para conter coisas quentes,
enquanto a laca é leve, macia, e seu ruído, quase imper-
'--- 1 uma sóbria suntuosidade. Ao laquear objetos e exe- ceptível. Gosto em especial do peso e da reconfortante
'- t cutar sobre eles desenhos em makie, os artesãos da
Antiguidade na certa tinham em mente esses escuros
sensação de calor que me chega à palma da mão toda
'- vez que seguro uma wan - a tigela de madeira reves-
(._ 1 aposentos e procuraram tirar máximo proveito da par- tida de laca - repleta de caldo quente. A sensação é
i
\... ca luminosidade. E se usaram de maneira profusa e ex- comparável à de amparar um tenro recém-nascido nos
\._
travagante o ouro em pó, foi porque imaginaram esse braços. Esse prazer não nos daria a porcelana, fato que
metal refletindo a luz do candeeiro e ganhando vida
1,
explica plenamente por que as wan são até hoje laquea-
no escuro. Em outras palavras, trabalhos em makie das. Tigelas de porcelana revelariam, no instante em
dourado não foram feitos para ser vistos em sua ple- que as destampássemos, tanto o caldo como a cor das
'-- nitude sob luz brilhante, mas sim para ser apreciados coisas nelas contidas. A virtude da tigela de laca é a meu
'- em lugares sombrios, onde os diversos detalhes asso- ver a sensação que ela nos proporciona quando, logo
..... mam aos poucos e de maneira inteqp.itente, um aqui, depois de destampada e no curto percurso até chegar à
.... outro acolá, em misteriosas visões de brilho mortiço e boca, o nosso olhar incide sobre o líquido de cor quase
apenas porque o esplêndido padrão está quase todo idêntica à da própria tigela e que repousa placidamente
oculto em trevas. Em ambiente escuro, a lustrosa su- no fundo escuro. Somos incapazes de divisar o que
perfície da laca reflete o tremular da chama, faz-nos existe no interior sombrio da wan, mas captamos na
saber que leves aragens visitam vez ou outra a placi- mão o suave balanço do líquido, perceberµos pela
dez do aposento e convida-nos a devanear. Se laca ali borda suada da vasilha o vapor perfumado que dali se
não houvesse, o mundo de sonhos gerado pela miste- desprende e por ele pressentimos vagamente o gosto
riosa luz do candeeiro, cuja oscilação é o pulsar da do caldo antes ainda de tê-lo na boca. Quanta diferença
própria noite, na certa perderia grande parte da sua entre esse momento sensacional e aquele em que
sedução. Regatos correm sobre o tatame, lagos se for- vemos a sopa servida à maneira ocidental num prato
mam aqui e ali quando a laca aprisiona a fina, tênue lu- claro e raso! Esse momento, chego até afirmar, é mís-
minosidade proveniente dos pontos de luz cambian- tico, zen.
te, tecendo padrões que parecem compor um makie
no negrume da própria noite.

'- 26
27
'-
(.~ ,_
l
~,,
~r -..
Toda vez que, com uma wan de caldo quente viço de mesa e com a tonalidade das paredes. Pois a
diante de mim, sinto entranhar-se em meus ouvidos culinária japonesa, especialmente, perde metade da
seu caracteristico zumbido de inseto a voar distante e apetência quando servida em ambiente e pratos cla-
antecipo os sabores que logo provarei, tenho a impres- ros. Quando considero por exemplo o avermelhado
são de que vou entrar em transe. O fenômeno deve caldo de missô de todas as manhãs, percebo que essa
assemelhar-se ao êxtase transcendental experimen- cor foi desenvolvida nos escuros aposentos de antigas
tado por um mestre do chá que ouve a água ferver e casas. Certa vez, fui convidado a participar de uma ce-
imagina o vento percorrendo a copa dos pinheiros no rimônia do chá onde me serviram um caldo de missô,
alto de uma montanha. Diz-se que a culinária japo- mas ao vê-lo no fundo de uma wan preta à vacilante
nesa é para ser contemplada e não consumida, mas luz de velas notei esse grosso caldo de cor ocre, que to-
aqui, eu diria mais: ela é digna de meditação. É melodia mo com tanta naturalidade no cotidiano, adquirir um
inaudível, concerto executado pela vela a bruxulear colorido profundo, realmente apetitoso. Considere
no escuro e pelos vasilhames de laca. Soseki Natsume também o shoyu, em especial o do tipo denso que cos-
louvou tempos atrás em seu K.usamakura[Travesseiro tumeiramente acompanha sashimi, conservas e ver-
de ervas] a coloração do youkan, o tradicional doce de duras da região de Kyoto: como esse líquido espesso e
feijão azuki, e, realmente, nada mais digno de contem- brilhante é rico em sombras, como se harmoniza com
plação que essa cor. A tonalidade profunda e com- as trevas! E mesmo as iguarias de cor clara - o caldo
plexa, a massa semitransparente e nublada de miste- de missô claro, o tofu, a massa de peixe kamaboko, o
riosa profundidade que atrai e retéma luz em forma de sashimi feito de pescado de carne branca - perdem
tênue, sonhadora luminosidade- são coisas que não vida pela ausência de contraste quando apresentados
se vêem em doces ocidentais. Comparado ao youkan, em ambientes claros. E, acima de tudo, o arroz: seu as-
um creme ocidental, por exemplo, é primário e super- pecto é belo e apetitoso quando o vemos à meia-luz '
ficial. Pois acomode uma fatia desse doce youkan num servido em terrina revestida de laca escura e lustrosa.
vasilhame laqueado e mergulhe-o num ambiente de Que japonês digno desse nome não se comove quan-
}
claridade apenas suficiente para divisar-lhe a cor: do, removida de golpe a tampa da terrina, vê o cálido
}
agora, a guloseima tornou-se digna de meditação. Ter vapor subir do arroz recém-preparado, cada grão a
na boca esse pedaço acetinado e frio que a sombra luzir como pérola em gota? Nesta altura do raciocínio
"""'
ac:resceu de estranha profundidade -e cujo sabor real dou-me conta de que também a nossa culinária tem sua
talvez nem seja tão notável- é ter o próprio negrume j tônica na sombra, e que com ela mantém uma relação
transformado em delicioso bocado derretendo na indissolúvel.
ponta da língua. Creio que a culinária da maioria dos
países foi concebida para se harmonizar com o ser-

28 29
,7
/..

Sou totalmente leigo em matéria de arquitetura, ral. Mas a amplitude dos telhados japoneses talvez se
mas, segundo me dizem, a beleza das igrejas de estilo relacione com o nosso clima, com o material de cons-
gótico reside em suas torres altas, muito altas e pontia- trução de que dispúnhamos e com mais alguns fatores.
gudas, quase a tocar o céu. Ao contrário, um templo em Uma vez que também teríamos preferido aposentos
nosso país começa a ser construído pela cobertura, claros a escuros, foi certamente a falta de recursos -
ampla e revestida de pesada telha; e na sombra densa como a inexistência do tijolo, da vidraça e do concreto
limitada pelo beiral recolhemos toda a edificação. - que nos obrigou a aumentar a projeção do beiral
\...
Externamente, o que mais se destaca nas construções para proteger-nos das arremetidas da chuva.
\...
japonesas, sejam elas templos, palácios ou casas popu- Mas como a beleza sempre se desenvolve em
lares, é o telhado - por vezes revestido de telha, por meio à realidade do nosso cotidiano, nossos antepas-
vezes revestido de colmo-e a espessa sombra reinante sados, obrigados a habitar aposentos escuros, desco-
'- sob o beiral. Às vezes, pode acontecer de, em pleno dia, briram beleza nas sombras e, com o tempo, aprenderam
a escuridão sob o beiral ser tão intensa e cavernosa que a usar as sombras para favorecer o belo. Realmente, a
quase nos impossibilita localizar entrada, porta, parede beleza do aposento japonês é apenas gradação de
e pilares. E ao comparar visualmente o telhado com o sombras, nada mais nada menos. Considero perfeita-
volume construído debaixo dele, notamos que na mente compreensível e até inevitável que o ocidental,
......
grande maioria das construções antigas, aqui incluídos ao examinar um zashiki, se espante com sua simplici-
tanto rústicas casas da zona rural como imponentes dade e com suas paredes acinzentadas desprovidas de
templos semelhantes ao Chion'in ou ao Honganji, o itens decorativos, mas creio que isso acontece porque
telhado tem mais peso, volume e dimensão. Assim, ao não decifrou o enigma da sombra. Nós, os japoneses,
construir uma residência, abrimos antes de mais nada ampliamos o beiral diante dos zashiki,já de si tão pou-
um guarda-sol - o telhado- sobre a terra, isto é, nela co insolados, e ali construímos varandas com o in-
projetamos um pedaço de sombra, e nesse espaço tuito de afastar ainda mais o sol. Em seguida, provi-
escuro e sombrio construímos a casa. Casas ocidentais denciamos para que o reflexo proveniente do jardim
também têm telhado, claro, mas este serve muito mais atravessasse o shoji e se infiltrasse vagamente no inte-
para proteger da chuva e do sereno que do sol: uma rior do aposento. O elemento de beleza primordial de
análise externa das construções ocidentais é suficiente nossos aposentos é pura e simplesmente essa dúbia
para evidenciar o esforço despendido no sentido de luz indireta. Pintamos intencionalmente as paredes
insolar o interior e evitar a formação de áreas sombrias. em tons esmaecidos para que essa claridade frágil,
Se o telhado japonês é guarda-sol, o ocidental é apenas desolada e tímida nelas se infiltrasse com tocante
chapéu. Aliás, chapéu de aba bem estreita, um boné, serenidade. Paredes de depósitos, cozinhas e corre-
que possibilita o acesso dos raios solares à área sob o bei- dores podem ser mais lustrosas, mas as de zashiki são

30

l
31
,_
,
'\

foscas, quase sempre rebocadas com fina camada de emoldura (o papel ou o pano que suporta o elemento
'
-,
areia colorida, já que o brilho fpagaria a caracterís- gráfico, assim como cordões e acessórios), e o mais
tica suave e frágil dessa parca claridade. Apreciamos importante pintor ou calígrafo terá sua obra invali-
especialmente observar essa vacilante luz externa dada se o rolo não se coadunar com o ambiente do
agarrando-se à parede cor de crepúsculo e a custo ali nicho tokonomaonde será exposto. Em contrapartida,
se manter. Para nós, essa claridade baça- ou, se pre- existem casos em que o rolo não é nenhuma obra-
ferirem, essa penumbra - que adere às paredes su- prima, mas uma vez exposto no nicho harmoniza-se
pera qualquer peça decorativa e, comovidos, não nos à perfeição com o aposento, e inesperadamente tanto
cansamos de admirá-la. É natural, portanto, que para este como o próprio rolo se valorizam. E então nos
não perturbar essa preciosa claridade as paredes se- perguntamos: qual elemento desse rolo desprovido
jam pintadas de alto a baixo numa única cor. A tona- de atrativos foi responsável pela harmonia? Quase
lidade pode variar de aposento para aposento de ma- sempre, o ar de antiguidade do elemento que emol-
neira tão sutil que se julgaria imperceptível, uma dura a pintura ou a caligrafia, assim como a cor da
variação não de cor, mas feita de mínimas gradações sumi e dos demais acessórios. É esse ar de antiguidade
de claro e escuro, cuja percepção dependeria apenas que vai compor o devido equilíbrio entre o nicho
do humor de quem observa. Contudo, são essas tê- onde é exposto e as sombras do aposento. Em visita a
templos famosos de Kyoto ou Nara, somos com fre-
nues variações que alteram o tom das sombras dos
qüência conduzidos a um zashiki de estudos (sho'in}
aposentos.
nas profundezas do prédio e ali convidados a apreciar
Mas em nossos zashiki.existe mais um elemento,
denominado tokonoma- reentrância ou nicho deco-
rativo-, onde dispomos rolos 12 e arranjos florais que
um rolo - o tesouro da instituição - exposto no
nicho. Tais aposentos, porém, são geralmente tão '--..
escuros que quase nada conseguimos !obrigar da pin-
visam antes acrescentar profundidade às sombras do tura ou da caligrafia propriamente dita, só nos res- ""'\
que exercer função decorativa. E na escolha do rolo tando então perseguir com o olhar os vagos traços da
priorizamos a harmonia entre este e a parede do ni- tinta sumi e imaginar a excelência da pintura que
)
cho. Eis por que valorizamos igualmente tanto o con- temos à frente enquanto ouvimos a explicação do
teúdo (a caligrafia ou a pintura} como a peça que o

12.No original, kakejiku: pintura ou exercício caligráfico, ou ainda


monge-guia. Simultaneamente, porém, sentimos
que essa obra esmaecida e o nicho sombrio compõem
um intrigante conjunto harmônico e, no mesmo ins-
''
'I
uma composição de ambos em papel ou tecido. A obra é fixada
sobre papel ou tecido especial e o conjunto é guardado enrolado tante, a imprecisão dos traços não só deixa de ter
em torno de um eixo cilíndrico à maneira dos antigos manuscri- importância como também se torna perfeitamente
tos em papiro. apropriada. Ou seja, nessa situação, a pintura nada

32 33
" serve para cap-
mais é que uma refinada superfície que criança, sentia indizível, enregelante pavor toda vez
turar a débil e vacilante luz, e exerce a mesma função que olhava para o recesso do nicho no zashiki de casa
da parede fosca de textura granulada. Fica assim ou de um templo, e observava esse espaço jamais
"-- explicada a razão por que, no momento de escolher alcançado diretamente por raios de sol. Onde está a
\.... um rolo, valorizamos a antiguidade e o ar de elegante chave desse mistério? Para dizer a verdade, na magia
envelhecimento (sabi), pois uma pintura nova, mes- das sombras. Se a sombra originada em recessos e
L
mo em sumi monocrômica ou em suave tonalidade recantos fosse sumariamente banida, o nicho reverte-
\...
pastel, é capaz de destruir o jogo de sombras de um ria de imediato à condição de simples espaço vazio. A
\,_
nicho tokonoma. genialidade de nossos antepassados escureceu propo-
,.__
sitalmente um espaço vazio e conferiu ao mundo_ de
7
'- sombras que ali se formou profundeza e sutilidade
O aposento japonês é comparável a uma pintura que superam qualquer mural ou peça decorativa.
\... monocromática a sumi, em que os painéis shoji corres- Embora não pareça, essa técnica é difícil. Na instala -
l_ pondem à tonalidade mais clara e o nicho tokonoma ção da janela lateral sho 'in, 13 no posicionamento da
à mais escura. Ver um desses nichos num zashiki exe- trave, na altura do piso elevado, em cada pequeno
'--- cutado com bom gosto faz-me sempre admirar a capa-
(_ detalhe do nicho facilmente se percebe todo um pro-
cidade dos japoneses de compreender o mistério das cesso invisível e trabalhoso. A claridade difusa e
'- sombras e usar o claro-escuro com propriedade e esbranquiçada que ilumina o shoji da janela lateral
\._
engenho. Não existe nenhum elemento decorativo faz-me estacar e perder a noção das horas em muda
especial num nicho. Ou seja, o tokonoma é uma reen- contemplação. Destinadas originalmente a lançar cla-
trância vazia formada de madeira e parede, para onde ridade sobre escrivaninhas em salas de estudos, com o
-
'--
a claridade é atraída de maneira a criar indistintas man-
chas sombrias aqui e ali. Ainda assim, quando contem-
tempo tais janelas passaram também a ser construídas
na parede lateral do nicho e a desempenhar a função
plamos as manchas que se agregam por trás da trave
de filtro inicial da luz externa. Vista internamente,
(otoshigake), em torno dos recipientes para arranjos
como é gelada e triste a claridade que chega ao shoji
florais, ou ainda sob as estreitas prateleiras laterais
dessas janelas! Depois de passar sob o beiral, cruzar o
(chigaidana) - simples sombras, nada mais-, temos
corredor e a duras penas alcançar essas falsas janelas,
a forte impressão de que o ar se condensou só ali em
agudo silêncio e em desolada solidão, imutável, eter- 13. Sho 'in:janela falsa, geralmente de formato arredondado,
na. Penso que a expressão "Oriente misterioso" usada vedada comshoji. Construída na parede lateral do nicho tokonoma,
por ocidentais designa esse tipo de sinistra quietude esse tipo de janela tem esse nome por se assemelhar à existente
que carâcteriza nossas sombras. Eu mesmo, quando nas salas de estudo denominadas sho 'in.

"-- 34 35
'-
1._
)
...._
os raios solares provenientes do jardim perdem a biombo ou a uma folha de porta corrediça capturar a
capacidade de iluminar, empalidecem e mal conse- ponta de um único feixe de luz proveniente de jardins
guem salientar baçamente a cor do papel do shoji. Em distantes e emitir um difuso clarão de sonho? Penso
pé diante dessas janelas, fico muitas vezes só contem- que em nenhuma outra situação a beleza do ouro é tão
plando a superfície luminosa, nada ofuscante. Em pungente quanto essa em que seu clarão irradia, assim
construções amplas como templos, a distância que como o céu do entardecer, uma frágil luminescência
separa um z~ hiki do jardim é maior e torna a lumino- dourada na penumbra ao redor. Sigo em frente mas
sidade ainda mais fraca e baça, imutável pelas quatro volto-me diversas vezes e torno a olhar: conforme me
estações do ano, por manhãs e tardes, em dias de sol desloco, a superfície dourada emite um estranho bri-
ou de chuva. E a sombra projetada no papel de cada lho mortiço, profundo e envolvente. Não um cintilar
quadrado do shoji faz-me descorifiar que uma espécie
1
rápido e inquieto, mas um clarão de lento declínio co-
de poeira tingida ali se acumulou para sempre. Pesta- mo o empalidecer de um rosto gigantesco. Ou então
nejo então, duvidoso dessa claridade de sonho. Sinto descubro, sempre me deslocando, o ouro em pó espar-
como se algo incerto e vaporoso pairasse diante dos gido ao fundo, até então baço, adormecido, de repente
meus olhos e empanasse minha visão. Esse estranho ganhar vida e cintilar como labareda. Nesses momen-
efeito é causado pela claridade esbranquiçada que se tos, não posso deixar de me perguntar, maravilhado,
reflete no papel do shoji: sem forças para expulsar a como esse metal é capaz de atrair tanta luz em local tão
densa treva reinante no nicho, a claridade é repelida sombrio. Eis a razão por que os antigos usavam ouro
e cria um mundo indistinto em que claro e escuro não para pintar as imagens búdicas, ou para folhear as qua-
têm limites definidos. Ao entrar nesse tipo de apo- tro paredes dos aposentos usados pela nobreza no coti-
diano. Os modernos desconhecem esse aspecto da )
sento, não terá o leitor alguma vez sentido que sua
claridade é diferente de todas as outras, que há algo beleza do ouro porque vivem em casas bem ilumina- l
solene e aprazível no ar? Talvez desconfie que meses das. Mas os antigos, que viviam em casas escuras, não
e anos podem transcorrer despercebidos, e que quan- só sentiram fascínio por essa bela cor, como também se
do de lá sair poderá estar transformado num ancião de deram conta da sua utilidade. O ouro servia como
cabelos brancos como a neve. E talvez sinta um reve- refletor em aposentos parcamente iluminados. Em
J
rente temor da eternidade ... outras palavras, os antigos não consideravam ouro em
pó ou em folha um artigo de luxo; simplesmente tira-
/' !/
vam proveito do seu poder reflexivo para obter a clari- ""\
~
Ao visitar as entranhas de vastas construções, dade de que careciam. Eis por que esse metal era tão
como templos, numa hora em que a luz externa já não apreciado: diferentemente da prata e dos demais metais
as alcança, não terá o leitor visto o ouro aplicado a um que depressa perdem o lustro, o ouro mantém o brilho

36 37
por muito tempo. Eujá disse anteriormente que traba- brancos e lisos. E se o ator é jovem e belo, a cor e a tex-
lhos em makie foram feitos para ser contemplados no tura fina e brilhante da pele da face destacam-se, resul-
j escuro, e a mesma lógica está por trás do pródigo tando numa aparência sedutora diferente da femi-
'-.
1
emprego de fios de ouro em tecidos antigos. O para- 1 nina, fato que me leva finalmente a compreender: ali
1 i
'- 1 mento em brocado de ouro usado por monges budis- está a razão pela qual antigamente daimios perdiam a
j tas é, aliás, um dos melhores exemplos disso. Nos cabeça por seus pajens belos e jovens. A roupagem do
\. modernos templos erigidos em centros urbanos, o san- gênero teatral Kabuki, tanto em peças históricas
~
tuário bem iluminado não nos permite apreciar devi- como em bailados dramáticos, nada fica a dever em
damente tais vestes: elas nos parecem apenas espalha- matéria de beleza à do Nô, mas, depois de assistir repe-
L
fatosas, qualquer que seja a personalidade do ilustre tidamente tanto a um como a outro, acho, ao contrá-
l.
monge que as usa. Basta porém comparecer a um rito rio da maioria das pessoas, que as roupas do teatro Nô
tradicional em templo histórico para perceber enfim são mais sensuais que as do Kabuki. A primeira vista,
com que propriedade harmonizam-se a pele enrugada o teatro Kabuki, principalmente o antigo, é mais eró-
do idoso monge com a bruxuleante luz votiva e com a tico e vistoso, mas nos palcos feericamente ilumina-
textura do brocado de ouro , e como o conjunto contri- dos à maneira ocidental dos nossos dias o berrante
bui para intensificar a solenidade da cerimônia. Isso colorido dessa roupagem tende a parecer vulgar e
acontece porque, assim como no caso do makie, grande enfastiante. O mesmo se dá com relação à pesada ma-
parte do espalhafatoso brocado oculta-se nas sombras, quiagem usada pelos atores do Kabuki: apesar de
e apenas fios prateados e dourados vez ou outra pro- bela, constrói um rosto inteiramente artificial, que
duzem cintilações . nada tem a ver com a autêntica beleza da pele natu-
Penso também - e isso talvez seja uma impres- ral. O ator do teatro Nô sobe ao palco com rosto, pes-
são pessoal, só minha - não existir nada que combine coço e mãos limpos, e a sedução que emana de suas
tanto com o tom de pele japonês quanto a roupagem feições é dele, nada existe em seu rosto capaz de iludir
dos atores do teatro Nô. Há fios de ouro e prata usados nosso olhar. Por essa razão, nunca nos desapontamos
em profusão no brocado dessas roupas, contra as ao ser apresentados fora do palco ao ator que inter-
quais a pele dos atores do Nô, bronze avermelhada ou preta o galã ou o papel feminino de uma peça Nô. A
cor de marfim com leve sugestão dourada, típica dos única pergunta que então nos fazemos é: por que mis-
rostos japoneses, exibe uma sedução ímpar que não teriosa razão a aparência desses atores, cujo tom de
me canso de admirar. Tecidos bordados ou entremea- pele é idêntico ao nosso, toma-se magnífica no mo-
dos de fios de ouro ou prata combinam admiravel- mento em que eles vestem as roupas de cores espalha-
mente com o tom de nossa pele, assim como sobretu - fatosas da época das casas guerreiras, roupas que aliás
dos verde-escuros ou cor de caqui, ou ainda quimonos jamais julgaríamos que lhes cairiam bem? Certa vez,

38 39
'-
')

"
assisti a uma atuação do sr. Iwao Kongo no papel da res bonitos ou jovens. Por exemplo, lábios masculi-
bela princesa Youki14 na peça Koutei [O palácio impe- nos não parecem atraentes em circunstâncias nor-
rial] e nunca me esquecerei da beleza daquelas mãos mais, mas os de um ator Nô, úmídos e vermelho-
que espiavam pela boca das mangas. Enquanto as escuros, adquirem no palco um aspecto viscoso e
observava, volvi diversas vezes o olhar para as mi- sedutor que suplanta os femininos cobertos de
nhas, sobre meus joelhos. Movimentos sutis a partir batom. Parte desse aspecto se deve ao fato de o ator
do pulso e técnica apurada no controle dos dedos umedecê-los continuamente com saliva para facili-
eram sem dúvida responsáveis pela impressão de tar o entoamento de suas linhas, mas não creio que
beleza daquelas mãos, mas ainda não explicavam a seja apenas isso. Outro detalhe notável é o rubor
misteriosa cor daquela pele nem o lustro que dela viçoso que sobe às faces de um ator-mirim. A expe-
parecia se desprender. Aquelas mãos pertenciam a riência me permite concluir que o rubor torna-se
um japonês comum, sua cor e textura não diferiam ainda mais deslumbrante quando as roupas do ator-
das que pousavam sobre meus joelhos. Duas, três mirim são de tonalidade verde. Essa cor favorece os
vezes comparei as mãos do sr. Iwao Kongo com as atores de pele clara, naturalmente, mas destaca mui-
minhas, e sell\Pre me pareceram iguais. Apesar disso, to mais os de pele morena porque o contraste do ver-
as mãos do h~mem sobre o palco eram belas, quase melho sobre a pele branca é excessivo contra a roupa
voluptuosas, enquanto as que descansavam sobre verde-escura, enquanto o vermelho sobressai menos
minhas coxas eram apenas mãos. O atributo não é na pele morena e, em conseqüência, roupa e rosto ilu-
exclusivo do sr. Kongo. No teatrq Nô, a roupa oculta minam -se mutuamente. A harmonia do verde-es-
todo o corpo do ator, com eX:ceçãqde rosto, pescoço e curo com o castanho-escuro destaca ambas as cores,
mãos, as últimas até o pulso, e em papéis como o da e disso se aproveita o povo de pele amarela para atrair
princesa Youki, até o rosto se esconde por trás de uma olhares admirados. Não sei de outros exemplos de
máscara. Ainda assim o brilho e a textura desse pouco beleza envolvendo harmonia de cores, mas de uma
de pele exposta são marcantes. O sr. Kong o é um exem - coisa tenho certeza: tal beleza será totalmente ba-
'"'l
plo particularmente notável, mas a maioria das mãos nida se os palcos do teatro Nô passarem a ser ilumi-
nados por modernos refletores, tal como os do teatro l
dos atores do teatro Nô- mãos comuns que em nada
diferem das de qualquer cidadão japonês- ~xibe um Kabuki. Até hoje, um acordo tácito tem mantido na
fascínio que jamais vimos em pessoas com roupas penumbra o palco onde são exibidas as peças Nô,
modernas e nos faz arregalar os olhos. Como já disse corno no passado. E quanto mais antigo for o próprio
antes e aqui repito, isso não acontece apenas com ato- teatro, melhor. Quanto ao palco, o ideal é que o piso
seja de assoalho de brilho natural, e que colunas e pai-
14. Yang Kuei-fei, em chinês . néis de fundo sejam de madeira enegrecida e lus-

40 41
trosa , e que o conjunto esteja mergulhado em intensa brasonada de tecido lustroso semelhante à dos atores
penumbra, como se houvesse um enorme sino de do teatro Nô ... Fantasias semelhantes devem povoar
templo budista preso à viga sobre a cabeça dos atores. a mente de todos os que assistem a uma peça Nô, e a
'-
Nesse aspecto, a iniciativa de trazer o teatro Nô para certeza de que o mundo de cores sobre o palco existiu
'-- vasto s auditórios capazes de abrigar multidões pode dessa exata maneira na certa proporciona, além do
L ser válida em certos aspectos, mas sem dúvida redu- prazer do espetáculo, o de lembrar o passado. Em con-
l zirá à metade a beleza dessas peças . traste, o mundo do teatro Kabuki é falso, nada tem a
'- ( 1
ver com a beleza real do nosso povo. Impossível ima-
ginar que , antigamente, a beleza feminina ou mesmo
'- Tanto a penumbra, que invariavelmente am- a masculina tivesse alguma semelhança com a que
L
bienta as peças do teatro Nô, corno a beleza que dela vemos no palco, muito embora o mesmo possa ser
'--
decorre compõem um mundo de sombras peculiar dito com relação às peças do teatro Nô, já que nestas
l. que hoje só encontramos em teatros. Tudo indica , todo ator que representa papel feminino usa uma
\.. porém, que no passado tal mundo era muito próximo máscara no ~osto. Mas no caso do Kabuki essa impres-
ao cotidiano das pessoas. Antigamente, a mesma são de falsidade resulta da excessiva iluminação do
L sombra que envolve o palco do teatro Nô estava pre- palco: nos tempos em que inexistiam holofotes e a cla-
' t... sente na arquitetura residencial e o mesmo tipo de ridade provinha da deficíente luz de velas e lampiões ,
vestuário dos atores do Nô-estes porém com padrão
'- as mulheres representadas por atores masculinos tal-
e cores comparativamente mais vivos - era usado no
vez se assemelhassem um pouco mais às reais. Vista
cotidiano por senhores feudais e nobres. Fico exta-
por esse prisma, a tão comentada inexistência de ato-
siado só de imaginar a beleza dos antigos japoneses,
res de Kabuki capazes de representar papéis femini-
especialmente a dos guerreiros de luxuosa roupagem
nos de maneira convincente nos últimos tempos nada
do período Sengoku ou do Momoyama. 15 O teatro Nô
teria a ver com falta de talento ou com inadequação
\.. mostra a figura masculina em todo o seu esplendor e,
da silhueta dos referidos atores. Se os antigos que
"- baseado nessa figura, imagino como teria sido galante
representavam papéis femininos (onnagata) fossem
e ao mesmo tempo austero o aspecto do antigo guer-
reiro calejado em campos de batalha: seu rosto, que obrigados a se exibir nos palcos feericamente ilumi-
teria malares salientes e pele vermelho-escura curtida nados de nossos dias, na certa revelariam suas carac-
por intempéries, contrastaria vivamente com a roupa terísticas incomodamente masculinas tão bem ocul-
tas nos penumbrosos palcos do passado. Foi o que
15. Juntos, os dois períodos correspondem aproximadamente aos senti com intenso pesar ao ver o ator B'aiko na velhice
anos de 1460a 1570. .
representando o papel da3ovem ' Naquele mo-
Okaru.

42 43
11
L !!
mento pensei: o que destrói a beleza do Kabuki é essa pos submersos dia e noite na penumbra, e presenças '
iluminação exagerada e desnecessária. marcadas apenas por seus rostos. Por essa razão, o
Ouvi certa vez de um especialista de Osaka que o vestuário masculino era mais vistoso que o feminino.
teatro de bonecos Bunraku continuou iluminado por Inacreditavelmente, quimonos de senhoras e de
lampiões muito tempo depois da introdução da eletri- mulheres jovens da classe mercantil do período Edo,
cidade na época Meiji, e que por esse motivo o poder por exemplo, eram feitos de cores sóbrias porque a
sugestivo das peças daquele tempo era muito maior roupa era parte das sombras, simplesmente u:m ele-
do que o das atuais. Como eu mesmo sou dos que, ape- mento de cone:ião entre estas e o rosto. E o costume
sar da intensa iluminação atual, ainda sentem que os de enegrecer os dentes, parte da maquiagem feminina
bonecos do Bunraku são mais reais que as mulheres da época, talvez fosse uma tentativa dos antigos de
representadas por atores masculinos do Kabuki, sinto escurecer todo e qualquer espaço branco que não
um arrepio percorrer-me o corpo quando mentalizo a fosse a face da mulher pela introdução de sombras na
extraordinária beleza dos palcos antigos com sua defi- cavidade bucal. Hoje, só se vê esse tipo de maquiagem
ciente luz de lâmpadas apagando a rigidez caracterís- em casas de diversão de áreas tradicionais como Shi-
tica dos bonecos e amortecendo o brilho de suas faces ma bara, em Kyoto. Eu, porém, tenho boa idéia da
de porcelana. aparência dessas mulheres antigas porque me lembro
'· 7
t .,,,.._ de minha mãe costurando à fraca luz proveniente do
jardim dos fundos da casa em Nihonbashi, onde
Como sabem, os bonecos femininos do teatro morei na infância. Até então, isto é, até a altura de
Bunraku são constituídos apenas de cabeça e mãos. )
1890, casas da zona urbana de Tóquio eram constru-
Torso, braços e pernas ficam ocultos pelo quimono ções sombrias, e tanto minha mãe como minhas tias e
longo, e o movimento dessas partes é apenas sugerido quase todas as mulheres da idade delas ainda costu-
pela mão do bonequeiro introduzida dentro das rou- mavam enegrecer os dentes. Não guardo nítida lem-
pas. Para mirrÍ, essa é a composição que mais se apro- brança dos quimonos que minha mãe usava em casa, J
xima da realidade: no passado, mulheres eram pre- mas quando precisava sair ela vestia o de tecido cin- l
senças marcadas apenas pelo que se via acima da gola zento e padronagem miúda. Minha mãe era muito J
e além da boca das mangas. O restante ficava oculto baixa, mal media um metro e cinqüenta, mas esse de-
"')
em densa escuridão. Mulheres das antigas classes via ser o tamanho padrão das mulheres da época. Eu
)
média e alta dificilmente saíam de casa e, quando o diria que elas não tinham altura, e, com o risco de exa-
faziam, ocultavam-se no fundo de liteiras, não se gerar, nem corpo. Além do rosto e das mãos, lembro-
mostravam em público. Metidas nos aposentos escu- me apenas vagamente dos pés da minha mãe, mas não
ros de suas mansões, ali passavam a vida inteira, cor- guardo na memória nada relativo ao torso.Nesse pon-

44 45
to, o que me vem à mente é a imagem da deusa Kan- gido entre matérias. Da mesma maneira que uma
non no templo Chuguji, cujo corpo deve representar gema fosforescente brilha no escuro mas perde o

'-
if o da maioria das japonesas antigas. Peito chato como
prancha, seios finos como folha de papel, ventre côn-
encanto quando exposta à luz solar, creio que a beleza
inexiste sem a sombra. Em outras palavras, nossos
cavo, costas, quadris e traseiros sem reentrâncias ou ancestrais viam a mulher como uma obra em makie ou
\....
saliências, torso desproporcionalmente magro e fino em madrepérola, algo cuja relação com as sombras
L
em comparação ao rosto, às mãos e aos pés, não um era indissolúvel, e tudo faziam para imergi-la na
\... penumbra ocultando-lhe braços e pernas em mangas
corpo de carne e osso, mas um pilão ... Mas as mulhe-
\... e quimonos longos e destacando-lhe apenas a cabeça.
res antigas não teriam todas elas sido assim? Em famí-
'- lias antigas e tradicionais, e também entre gueixas, Realmente, o torso achatado e desprovido de simetria
'- existem ainda hoje algumas velhinhas com esse tipo poderá,parecer feio quando comparado ao de mulhe-
l_ físico. Ao vê-las, lembro-me sempre de eixos de bone- res ocidentais. Contudo, nossos pensamentos não
L cos. Realmente, torsos de bonecos são eixos de ma- alcançam o invisível. O invisível consideramos ine-
deira destinados a sustentar a roupa, nada mais nada xistente. Quem insiste em contemplar a feiúra enco-
'--
menos. O enchimento do torso consiste apenas de berta expulsa a beleza aparente com a mesma pres-
'- camadas sobrepostas de algodão e roupa, mas tire a teza daquele que ilumina o nicho com uma lâmpada
'- roupa dessas mulheres e restará apenas um eixo de cem velas.
estranho muito semelhante ao de bonecos. Mas no I ~--·
:'.
passado isso era suficiente. Quem vivia ,nas sombras
não precisava de torso, apenas de um rosto pálido. Por que essa propensão a buscar a beleza nas
Suponho que seja difícil para aqueles que louvam a sombras é tão forte apenas entre os orientais? Houve
beleza sadia da mulher moderna imaginar a beleza um tempo em que a eletricidade, o gás ou o petróleo
fantasmagórica das mulheres antigas. Também pode eram desconhecidos também no Oddente, mas até
haver gente disposta a argumentar que beleza que onde sei essa parte do mundo nunca ' tendeu a apre-
precisa ser disfarçada em ambiente escuro não é real. ciar o escuro. Desde tempos imemoriais, os fantasmas
Mas conforme eu já disse antes, nós, orientais, cria- japoneses não têm pés, enquanto os ocidentais,
mos sombras em qualquer lugar e, em seguida, a segundo ouço dizer, têm pés mas são transparentes.
beleza. "Junta e enfeixa/ e dos gravetos farás/ uma Conforme se observa por esse exemplo trivial, um
cabana,/ desata o feixe e terás/ outra vez a campina", negrume cinzento está sempre presente em nossa
diz um antigo poema e, realmente, nossa maneira de imaginação, enquanto na dos ocidentais até fantas-
pensar é esta: a beleza inexiste na própria matéria, ela mas são claros, transparentes como vidro. O mesmo
é apenas um jogo de sombras e de claro-escuro sur- acontece com utensílios de uso cotidiano: a cor que

46 47
.._
.

'-

:

......
apreciamos é composta de camadas de sombras, Digo isso por experiência própria: no período em que
enquanto os ocidentais dão preferência a cores com- morei ao pé das montanhas de Yokohama, passei bom
postas por camadas de luz solar. Nós amamos objetos tempo com os moradores da concessão estrangeira,
de prata ou bronze oxigenados, eles os consideram ~ participando de seus banquetes e bailes. Notei então
anti-higiênicos e os lustram até vê-los cintilar. Pintam que a brancura deles, quando comparada à dos japo-
em cores claras o interior dos aposentos - paredes e neses, não se sobressaía de maneira particular quando
teto - para evitar o surgimento de áreas sombrias. observada de perto, mas, de longe, tornava-se clara-
Nós compomos nossos jardins com árvores e vegeta- mente perceptível. Havia senhoras japonesas tão bem
ção densa, e eles estendem um tapete de relva em ter- vestidas quanto as ocidentais e mais brancas que
reno plano. A que se deve tanta diferença? Creio que estas, mas observadas à distância tais senhoras, ou
nós, os orientais, buscamos satisfação no ambiente mesmo uma única, eram facilmente detectadas num
que nos cerca, ou seja, tendemos a nos resignar com a grupo de brancos. Isso porque existe na pele japonesa,
situação em que nos encontramos. Não nos queixa- até na mais branca, um leve toque de sombra. Da mes-
mos do escuro, mas resignamo-nos com ele como algo ma maneira que a água cristalina não esconde a im-
inevitável. E se a claridade é deficiente, imergimos na pureza acumulada em seu leito quando vista de
sombra e descobrimos a beleza que lhe é inerente. grande altura, aquelas senhoras, que cobriam de es-
Mas os ocidentais, progressistas, nunca se cansam de pessa maquiageth branca cada pedaço de carne ex-
melhorar suas próprias condições. De vela a lampião, posta - costas, braços e até axilas-, não conseguiam
de lampião a lampião de gás, de lampião de gás a lâm- nem assim apagar o toque de sombra existente no fun -
pada elétrica, buscaram a claridade sem cessar, empe- do de suas peles. Áreas sombrias que lembram poeira
nharam-se em eliminar o mais insignificante traço de acumulada surgem especialmente no vão entre os 1
sombra. A explicação talvez esteja nessa discrepância dedos, ao redor das narinas, no pescoço e ao longo da 1
de temperamentos, mas eu gostaria aqui de tecer espinha. A pele ocidental pode até ser mais tisnada na ......
algumas considerações em torno da diferença da cor superfície, mas sua base é clara e transparente, nela
de nossas peles.
Desde a Antiguidade, também entre nós havia a
não há sombra. É branca, puramente branca, da
cabeça à ponta dos pés. Eis por que sentimos como se
'
1

noção de que a pele clara é mais bela que a morena, uma mancha clara de sumi enodoasse uma folha
mas existe certa diferença entre a nossa brancura e a branca quando algum de nós se junta a um grupo de
da pura raça branca. Observados de perto, existem ocidentais. Até a nós a visão incomoda e desagrada. 1
japoneses mais brancos que os ocidentais, assim como Destarte, conseguimos compreenderpor que a raça
ocidentais mais morenos que japoneses, mas há uma branca rejeitou a colorida no passado: a nódoa criada
diferença tant9 na brancura quanto na morenice. em suas reuniões sociais, fosse ela constituída só de
\
48 49
um ou de dois indivíduos coloridos, era muito incô- mais branco do mundo. Esse teria sido o único recurso
moda. Não sei se isso ainda é real nos dias de hoje, mas de um povo que considerava a alvura da pele elemen-
nos tempos da Guerra de Secessão, em que a persegui- to essencial da beleza feminina, e, à maneira deles,
f estavam certos. O branco puro tem cabelos claros, nós
ção aos negros alcançou o ápice, o ódio e o desprezo
{ dos brancos se estendeu, segundo ouvi dizer, não só os temos escuros- é assim que a natureza nos ensina
aos negros puros como também aos mulatos, aos a lógica das sombras. E agindo inconscientemente de
'- filhos destes e aos filhos destes com brancds. Persegui- acordo com ela, os antigos lograram branquear o
'- ram e torturaram todos os que possuíam uma parcela rosto amarelo e destacá-lo. Há pouco, escrevi ares-
\... - um quarto, um oitavo, um dezesseis avos ou um peito do enegrecimento dos dentes, mas o costume
trinta e dois avos que fosse -de sangue negro. Nem entre as mulheres antigas de raspar as sobrancelhas
L mesmo aqueles visualmente indistinguíveis do bran- não teria sido outro recurso para destacar o rosto? E o
co, mas que tiveram na linhagem um único negro que mais admiro é o batom verde-fosforescente, da cor
duas ou três gerações antes escapavam ao olhar obsti- de couraça de certos besouros. Embora até as mais tra-
nado dos que buscavam o mais leve traço de cor em dicionais gueixas de Gion tenham deixado de usá-lo
peles imaculadamente brancas. hoje em dia, esse é o tipo de cor cujo,\.trativo real só
'-- compreendemos quando o imaginamos refletindo a
E então percebemos como é profund~ a relação
da raça amarela com a sombra. Uma vez que a nin- luz bruxuleante de uma vela. Os antigos pintaram
guém agrada parecer feio, é apenas natural que tivés- intencionalmente os lábios rubros da mulher de ver-
semos escolhido cores nebulosas para a nossa comida, de-escuro e nessa cor introduziram o iridescente ful-
roupa e casa, e que procurássemos submergir em gor da madrepérola. Além disso, roubaram de suas
ambientes escuros. E como nossos ancestrais não faces cheias e belas o que sobrava de rubor. Não con-
tinham consciência nem da sombra em suas peles sigo imaginar nada mais branco que o rosto de uma
nem da existência de povos mais brancos, só me resta jovem que sorri à vacilante luz de velas e exibe vez
concluir que seu senso de cor guiou-os naturalmente ou outra dentes brilhantes que lembram laca negra
nessa escolha. por entre lábios esverdeados, cor de fogo-fátuo. Ao
menos no fantástico mundo que minha mente visua-
liza, esse rosto é mais branco que o da mais branca
Nossos ancestrais fecharam quatro lados, o topo mulher branca. A brancura dos brancos é transpa-
e a base de uma luminosa área da superfície terrestre rente, previsível, comum, mas a que vejo no meu
e criaram inicialmente um mundo de sombras. E nas mundo imaginário distancia-se da condição huma-
"
profundezas desse mundo sombrio confinaram a mu- na. Realmente, esse tipo de brancura pode nem exis-
lher, convencidos talvez de que ela era o ser humano tir. Talvez seja apenas um malicioso jogo de luz e
..._
50 51
'-
\...
)

sombra, ilusório e fugaz. Mas com isso nos satisfaze- dindo algumas dezenas de tatames existentes em cons-
mos. Mais não desejamos. truções de pé-direito alto e corredores largos, como por
Neste ponto, quero tecer algumas considerações exemplo os antigos palácios e casas de prazer, sombras
em tomo da cor do negrume que circunda a brancura com essas características deviam normalmente pairar
de tais rostos. Lembro-me de ter visto um tipo de como neblina. E nesse negrume cintilante submergiam
negrume inesquecível há alguns anos, quando con- os antigos aristocratas. Conforme escrevi em "Ishou'an
duzi certa pessoa de Tóquio a Kyoto para conhecer a Zuisho", o homem moderno, há muito habituado com
casa de chá Sumiya, de Shimabara. Introduzido num a luz elétrica, já se esqueceu de que tal negrume chegou
vasto aposento fracamente iluminado por velas e a existir. Estranhos seres nebulosos e ilusórios deviam
denominado "Sala do Pinheiro" - tempos depois esgueirar-se nessa "escuridão visível" reinante no inte-
destruído num incêndio -, notei que o negrume ali rior das mansões antigas, propiciando alucinações e
reinante era mais intenso que o de aposentos peque- aterrorizando mais que a noite externa. Com certeza era
nos. No momento em que entrei, uma criada idosa, desse tipo de negrume que saltavam monstros e seres
sobrancelhas raspadas e dentes enegrecidos, arru- fantasmagóricos, mas ... as mulheres que ali viviam,
mava um jogo de velas sentada formalmente diante cercadas por cortinados, biombos e portas, não perten-
de um grande painel, cuja superfície limitava uma ceriam à mesma família? A intensa treva com certeza
pequena área iluminada do tamanho aproximado de revoluteava dez, vinte vezes em tomo delas, preen-
dois tatames. E atrás do painel pendia um negrume chendo todo o vazio ao redor da gola, da manga ou da
denso e peculiar que, intocado pela luz vacilante das prega do quimono. Mas esperem: pode ser também que
velas, ·parecia derramar-se do teto, bater contra a a treva, em vez de envolvê-las, brotasse- isto sim-de
seus corpos, cabelos e bocas de dentes enegrecidos qual i
parede negra e ricochetear. Você já viu alguma vez a
cor desse tipo de escuridão a que talvez pudéssemos teia urdida por gigantesca aranha ...
chamar ,,negrume brilhante"? Diferente da matéria /1:'
que à noite encobre as ruas, pareceu-me repleto de
corpúsculos semelhantes a cinza fina, cada mínima Quando Musou'an Takebayashi retornou de )
Paris, há alguns anos, comentou que as noites de
partícula a brilhariridescente. Pisquei sem querer, te-
meroso de que me invadissem os olhos. Hoje em dia Osaka e Tóquio eram incomparavelmente mais claras '
já não se vê esse tipo de negrume, nem em aposentos
que as de cidades européias. Por exemplo, disse ele,
iluminados a vela, porque, atendendo à moda atual, em pleno Champs Elysées ainda havia casas ilumina-
constroem-se aposentos cada vez menores, de dez, das a lampião, enquanto no Japão só em locais remo-
oito ou seis tamames. Mas nos amplos aposentos me-
t tos, perdidos em meio a montanhas . Estados Unidos e

52
1 53

1
1
l Japão talvez fossem os países que empregavam luz elé-
trica de maneira mais exuberante em todo o mundo.
haviam instalado, eu podia esperar com razoável cer-
teza lâmpadas e um sistema completo de iluminação
f Comentou também que o nosso país procurava imitar enfeitando diversos pontos da montanha para assegu-
'- os Estados Unidos em tudo. Musou'an fez essa obser- rar um espalhafatoso ar festivo. Isso me fez lembrar
vação há quase cinco anos, época em que ainda não outro festival perdido: na noite de 15 de agosto de anos
--
L existiam propagandas de gás neon, tão comuns atual- atrás, resolvi contemplar o plenilúnio ~e um bote no
mente . Quero crer, portanto, que ficará ainda mais meio do lago do templo Suma e para lá fomos, meus
L
admirado em seu próximo retorno . Ouvi também amigos e eu, levando bebida e petiscos. E no momento
outro episódio, este contado por Sanehiko Yamamoto, em que o barco se distanciou da margem verifiquei que
\.... presidente da editora Kaizo: alguns anos atrás, ele con- luzes de várias cores enfeitavam toda a borda do lago, e
\... duzia o cientista Einstein a Kyoto e, na altura de Ishi- a lua, ah, a lua ... lá estava ela, totalmente empanada.
'- yama, o cientista, que contemplava a paisagem externa Aquilo me faz perceber que, nos últimos tempos, a luz
pela janela do trem, teria dito: "Olhe, que desperdí- elétrica anestesiou-nos, deixou-nos insensíveis aos
cio!". E quando lhe perguntaram o que lhe causara inconvenientes gerados por seu uso excessivo. Um Fes-
\_ estranheza, ele teria apontado alguns postes com lâm- tival da Lua ofuscado não representa grande inconve-
L padas acesas em plena luz do dia. "Einstein é judeu e es- niente, mas de um modo geral casas de chá, restauran-
L sas coisas o incomodam", observou Yamamoto. Seja tes, estalagens e hotéis usam luz elétrica de maneira
como for, tudo indica que, depois dos Estados Unidos, exagerada. Esses estabelecimentos talvez precisem
o Japão desperdiça mais energia elétrica que qualquer chamar a atenção da clientela, mas acender as luzes
outro país ocidental. E por falar em Ishiyama, há ainda antes de escurecer em pleno verão significa, mais que
outro episódio interessante relacio~do com essa re- desperdício, muito calor. Onde quer que eu vá no
gião: neste outono, depois de hesitar um bom tempo na verão, sofro com isso. A quentura no interior dos apo-
- escolha do local em que comemoraria o Festival da Lua, sentos em contraste com o frescor externo deve-se,
'-- optei afinal pelo templo Ishiyama . Os jornais da véspe- quase sempre, ao excesso de potência ou de quanti-
ra, porém, publicaram uma nota comunicando que, dade de'iâmpadas, fato que comprovo facilmente pelo
com o intuito de aumentar o prazer dos apreciadores do imediato arrefecimento do ar quando apago parte das
luar, o referido templo espalhara alto-falantes pelo bos- luzes. Curioso porém é que hóspedes e proprietários
que do entorno para que todos pudessem ouvir a não consigam perceber essa verdade simples. De um
Sonata ao Luar. Ao ler a notícia, desisti imediatamente modo geral, a iluminação interna deveria ser clara no
de ir a Ishiyama. Alto-falantes e Sonata ao Luar eram inverno e mais escura no verão. Dessa maneira, refor-
sem dúvida sério problema , mas se os organizadores os çaria o frescor do ambiente e, melhor ainda , deixaria de

l. 54 55
\_.
)

atrair insetos voadores. Acender luzes em demasia e uma única dessas bolas fosse suficiente para iluminar
depois ligar o ventilador para refrescar é realmente toda a área, havia três ou quatro brilhando-no forro, e
um contra-senso que me irrita. Num zashiki suporta- além delas diversas outras, menores, em paredes e pila-
se melhor o calor porque ele se dissipa ao redor da res, com a única função de espantar todo e qualquer res-
casa, mas num quarto de hotel de estilo ocidental a quício de penumbra que porventura se formasse pelos
ventilação é deficiente e, além disso, piso, paredes e cantos.No interior do aposento e até onde a vista alcan-
teto absorvem e refletem o calor das_lâmpadas e tor- çava não havia uma única sombra. Só o que se via eram
nam o ambiente insuportável. Embora não me agrade paredes brancas, grossos pilares vermelhos e, no piso,
nomeá-lo, não há melhor exemplo disso que o hotel um mosaico de cores espalhafatosas semelhante a lito-
Miyako, de Kyoto. Quem alguma vez esteve no sa- grafia recém-impressa e que contribuía bastante para
guão desse estabelecimento numa noite de verão na aumentar a sensação de calor. Aqueles que vêm do cor-
certa concordará comigo. A construção ergue-se nu- redor e ali entram, sentem uma diferença gritante na
ma elevação voltada para o norte, e de lá se abrange temperatura. Toda corrente noturna fresca que porven-
num único golpe de vista o monte Hiei, o pico Nyoi- tura ali se infiltre será instantaneamente transformada
ga-take, o pagode de Kurotani, a floresta e toda a área em ar quente e anulada. Guardo boas recordações de
do monte Higashiyama, cenário que proporcionava diversas vezes que lá me hospedei no passado. E se hoje
sensação realmente refrescante e que por isso mesmo escrevo estas linhas, faço-o com o intuito de aconselhar
lastimei ter perdido. Mas, como eu ia dizendo, certa a administração do hotel de maneira desinteressada:
tarde de verão fui para lá ansioso pela brisa fresca que realmente, é um desperdício estragar com luzes elétri- -)
perpassa o alto da torre e disposto a apreciar a mara- cas a vista maravilhosa e o ponto ideal para nos refres-
vilhosa visão panorâmica das montanhas azuladas e carmos no verão. A quentura do local é horrível e deve
das águas cristalinas. Todavia, no momento em que lá deixar boquiabertos os próprios ocidentais, que tanto
\
cheguei, encontrei aqui e ali grandes tampos de vidro amam a claridade. Mais importante, porém, é que tudo
1
leitoso no teto branco e, embutidas debaixo deles, o que eu disse tomar-se-ia imediatamente compreensí-
lâmpadas poderosas de brilho quase cegante a arder. vel no momento em que algumas daquelas luzes fossem J
Como ultimamente as construções ocidentais têm pé- apagadas. O hotel Miyako é apenas um exemplo, mui- 1
direito baixo, o calor ambiente era tão intenso que
bolas de fogo pareciam girar sobre minha cabeça, e a
tos outros existem. Livre desse inconveniente parece
estar o hotel Teikoku, com sua iluminação indireta, a ,
quent{ira que delas provinha queimava a partir do qual, não obstante, poderia ser um tanto reduzida no
topo do crânio- a área mais próxima ao teto-, pas- verão. Seja como for, a iluminação interna hoje em dia
sava pelo pescoço e descia espinha abaixo. Embora deixou de ter por objetivo facilitar a leitura, a escrita ou

56 57
li>
4

a costura e se transformou em recurso para espantar as rir-se em termos saudosos aos costumes de dois sécu-
sombras de todos os cantos, o que não se coaduna com los antes, e dois séculos antes, aos costumes do século
a noção de beleza dos lares japoneses. A maioria das pes- anterior. É difícil encontrar alguém satisfeito com seu
soastende a poupar energia elétrica em suas casas por próprio tempo, mormente nos dias de hoje, em que
'--
..._ razões financeiras, o que afinal é positivo, mas em esta- circunstâncias especiais - só a reforma Meiji trouxe
belecimentos comerciais, corredores, escadas, vestíbu- mudanças equivalentes às dos últimos trezentos ou
L quinhentos anos - levam nosso país a progredir com
los, jardins e entradas acabam exageradamente ilumi-
'-- nados, tirando a profundidade tanto dos aposentos estonteante rapidez.
'-- como das pedras e das fontes dos jardins. No inverno, a Não deixa de ser cômico que o próprio autor des-
r tas linhas esteja também na idade das lamúrias, mas
'- medida por vezes trará certo aconchego e conforto, mas
L no verão é quase certo que resultará em tragédia seme- acredito que não estou simplesmente me queixando
(_ lhante à do hotel Miyako, não importa a elegância e a quando digo que a maioria dos equipamentos moder-
tranqüilidade do balneário que você .,escolheu para fu- nos tende a favorecer os jovens e a produzir gradati-
\..
gir do calor. Eis por que eu mesmo fico em casa, escan- vamente uma era desumana para os idosos. Vejam
caro todas as portas corrediças, armo uma tela contra os leitores os semáforos, por exemplo: a partir do
L mosquitos no quarto e dentro dela me deito com as momento que tiverem de depender deles para atra-
L luzes apagadas no verão: esse é o melhor meio de con- vessar cruzamentos, os idosos não poderão mais
._ vidar a fresca aragem a entrar. andar com confiança pelas ruas das cidades. Salvam-
se apenas os velhos ricos que podem ser conduzidos
I
'-
, :.? de carro, mas eu mesmo fico com os nervos à flor da
Recentemente, li um artigo em revista ou jornal pele nas ocasiões em que tenho de ir a Osaka e, lá che-
em que algumas senhoras inglesas queixavam-se da gando, preciso atravessar uma rua. Para começar, o
vida. Na juventude, diziam , haviam respeitado os mais sinaleiro do tipo "Pare-Siga" é um foco de probleII?-as:
velhos e zelado por eles, mas diferentemente delas os instalados no meio da calçada são relativamente
suas próprias filhas consideravam o idoso sinônimo fáceis de ser visualizados, mas existem outros espe-
de sujeira, cuja proximidade devia ser evitada. A ju- cialmente difíceis de ser detectados que ficam pisca-
ventude de hoje difere muito da antiga, lamentavam as piscando luzes verdes e vermelhas em cantos inespe-
referidas senhoras, e isso muito me divertiu, pois des- rados, sem mencionar o perigo de confundi-los com
cobri que os idosos dizem as mesmas coisas, sejam eles os sinaleiros centrais em cruzamentos especialmente
de onde forem. Conforme envelhecem, as pessoas se largos. E quando vi guardas ordenando o tráfego nas
convencem de que os tempos idos eram bem melhores ruas de Kyoto, imaginei: este é o fim das cidades japo-
que os atuais. No século passado, velhos deviam refe- nesas. Atualmente, se você quiser apreciar um am-

58 59
\..
1.
1

biente urbano genuinamente japonês, terá de ir a estará pronto para ser degustado na manhã seguinte.
Nishi-no-miya, Sakai, Wakayama ou Fukuyama. No decorrer do dia, o sabor se manterá ideal mas con-
Numa cidade grande tornou-se difícil até mesmo en- tinuará comível durante mais dois ou três dias. Molhe
contrar pratos que agradem ao paladar do idoso. Dias folhas de pimenta-d' água em vinagre e borrife sobre o
atrás, o jornalista que me entrevistou pediu-me que sushi no momento de servi-lo. A receita me foi pas-
comentasse a respeito de pratos diferentes e saboro- sada por um amigo que esteve em Yoshino, mas pode
sos. Eu então lhe falei do sushifeito de folhas de caqui ser preparada em qualquer lugar: basta apenas ter à
- especialidade dos habitantes das remotas regiões mão folhas de caqui e salmão levemente salgado.
montanhosas de Yoshino - e também da maneira de Lembre-se sempre de eliminar qualquer traço de
prepará-lo. Aproveito a oportunidade para revelar a umidade e de esperar o arroz esfriar por completo.
receita aos meus leitores: para cada dez de medidas de Experimentei fazê-lo em casa e concordei com meu
arroz, uma de saquê deve ser acrescida no momento amigo: esse sushi é excepcionalmente saboroso. O sal
em que o arroz entrar em ebulição. Depois de pronto, e a gordura do salmão impregnam-se de maneira
deixe o arroz esfriar completamente e, em seguida, ideal no arroz e o peixe fica irresistivelmente macio e
espalhe sal na palma das duas mãos, aperte o arroz fresco. Achei esse sushimuito diferente dos de salmão
entre elas e forme bolinhos compactos. Nesse mo- que costumo comer em Tóquio, e tão mais gostoso
mento, é imprescindível que a mão esteja totalmente que vivi dele o verão inteiro. Admirei o jeito diferente
seca. O segredo é fazer os bolinhos só com a ajuda do sal, de consumir o salmão e a criatividade dos habitantes
sem molhar as mãos. Depois, estenda sobre os bolinhos das regiões remotas e montanhosas, carentes de tudo.
fatias finas de salmão levemente salgadas, envolva E ao pesquisar sobre especialidades típicas de diversas
""\
cada conjunto com uma folha de caqui com a face su- regiões interioranas, descobri que seus habitantes
perior em contato com o sushi.Na medida do possível, têm paladar muito mais apurado que os moradores
é preciso retirar a umidade tanto da folha do caqui dos grandes centros urbanos. Num certo sentido, isso
como das fatias do salmão com um pano seco. Em significa que eles vêm se banqueteando com iguarias ----
seguida, os bolinhos deverão ser acondicionados cujo sabor não conseguimos sequer imaginar.
numa tina rasa de madeira - do tipo usado no pre- E assim, muitos são os que abrem mão das como-
paro do sushi- ou numa vasilha de arroz, apertados didades da vida urbana e procuram a calma do inte-
uns contra os outros de maneira a não deixar espaço rior na velhice, mas nem esse consolo teremos por
.......
entre eles, e sobre o conjunto deverá ser posta uma muito tempo porque, à semelhança de Kyoto, até nas
tampa de madeira. Uma pedra de bom peso, do tipo pequenas cidades a luz elétrica começa a brilhar feé-
usado para fazer picles, deverá ser assentada sobre a rica em postes e ruas. Há quem preveja que, com o
tampa para pressionar o sushi. Preparado à noite, progresso da civilização, o sistema viário será transfe-

60 61
rido para o céu ou para baixo da terra, e que então as nho capaz de invalidar as já referidas desvantagens.
ruas voltarão a ser tranqüilas como no passado. Mas é Eu mesmo quero chamar de volta, pelo menos ao
óbvio que se isso um dia acontecer, outros diabólicos campo literário, esse mundo de sombras que estamos
ll inventos de tortura para idosos terãQl!Sido
\nventados.
No final das contas, todos querem que idosos perma-
prestes a perder. No santuário da Literatura, eu proje-
taria um beiral amplo, pintaria as paredes de cores
'-
l.. 1 neçam quietos em seus lugares, e só nos resta ficar em sombrias, enfurnaria nas trevas tudo que se desta-
casa ouvindo rádio, bebericando saquê e beliscando casse em demasia e eliminaria enfeites desnecessários.
L Não é preciso uma rua inteira de casas semelhantes,
petiscos que nós mesmos preparamos.
l. mas que mal faria se existisse ao menos uma ~onstru-
Mas se pensam que reclamar é especialidade de
t.... ção com essas características? E agora vamos apagar
gente velha, estão enganados: recentemente , o autor
l.. da coluna Tenseijingo [A voz do povo é a voz de Deus], as luzes elétricas para ver como fica.
do jornal Asahi, ridicularizou a iniciativa impensada
de alguns funcionários municipais, que desmataram /'I
~ ,, •
/.;,•:'-1)/.
/). ;,'
g' .:;<:
• !.---
1

parte de uma floresta e aplainaram um morro para


,,,, - .. t

'-- possibilitar a passagem de uma rodovia pelo parque ,,1,/ ~ .,,., ., '; . } i

L de Mino. Percebi então que mais gente pensava como


L eu e animei-me um pouco. Eliminar até a sombra das
árvores é, no mínimo, cruel. Nesse passo, todas as
localidades famosas de Nara ou dos subúrbios de
lf Kyoto e Osaka acabarão desmatadas para facilitar o

acesso das massas. Mas essa também é uma das mui-
ú
"[t tas queixas insensatas típicas dos velhos , já que tenho
11 plena consciência dos benefícios da modernidade. O
tf
n Japão já segue a mesma rota de desenvolvimento per-
corrida pela civilização ocidental, e cabe a nós, idosos,
pormo-nos de lado para permitir o avanço decisivo do
nosso país. E enquanto essa for a cor de nossa pele,
temos para sempre de nos resignar com desvantagens
que só a nós coube. Escrevo porém estas coisas por ter
i a impressão de que em algum lugar, quem sabe no
campo da literatura ou das artes, resta-nos um cami-
1 62 63
'--
\___
..
-----,

Nota do tradutor ------

,
\
Traduzir uma obra do escritor Junichiro Tani-
zaki é sempre um desafio, e no ensaio Em louvor da
sombra (In'ei Raisan), em que o autor mergulha no
âmago da cultura japonesa com seu modo puramen-
te nipônico de escrever, algumas dificuldades pare-
cem intransponíveis. \
O leitor interessado em comparar as diversas ver- '""\
sões desta obra publicadas até hoje estranhará na cer-
ta a diferença existente entre elas. Essa particularidade "'I,

não indica que os tradutores não entenderam o tex-


to. Ao contrário, revela a dificuldade da língua japo- '
nesa quando transformada em objeto de tradução,
tanto pela peculiaridade de sua gramática como pela
'',
abrangência de sentido de seus vocábulos.
Neste ensaio, por exemplo, deparei diversas ve- \
-..
zes com a palavra furyu, cuja acepção mais comum,
segundo dicionários bilíngües, é elegância, bom gos-
to, requinte, ou ainda, elegante, fino, requintado. Ta-

65
,,
ji
nizaki tem certa predileção por esse termo e já o plástico semelhante a uma caneta esferográfica e que
empregou em diversas outras obras nesse sentido contém tinta preta derivada da sumi, a qual escorre e
estrito. Aqui, porém, notei que ele a usa também na umedece o tufo de pêlos adaptado à ponta.
f
\_
1/ segunda acepção, isto é, para significarpoético e esté-
!j Leiko Gotoda
tico. E no trecho em que o autor discorre sobre latri-
L )

........
! nas, furyu subentende furyu inji, expressão que o
'! Dicionárioda Língua Japonesa define como diversões
L requintadas, apreciação da natureza e sensação de
L prazer advinda da composição de versos e poemas. No
\._, 1 referido trecho, traduzi portanto a frase do escritor
i.....
\_

\___
l_
\._,
l
!
Ryoku Saito citada por Tanizaki, "furyu wa samuki
mononari" ("a elegânciaé fria", em tradução ao pé da
letra, no meu entender inadequada em português),
como "o frio estimula a estesia", pois julgo que nesse
contexto o termo furyu pode ser sintetizado como
estesia, no sentido de capacidadedepercebero sentimento
L da beleza, conforme Houaiss.
i...... Esclareço também que os termos japoneses wan e
furo designam corretamente a tigela de sopa japonesa
e a banheira, e assim estão dicionarizados. Em pala-
vras como osushi, ohashi, owan ou ofuro - esta, larga-
mente difundida entre nós nos últimos tempos-, "o"
é apenas um prefixo de polidez.
Por último, chamo a atenção dos leitores para a
data de publicação deste ensaio, originalmente escri-
to em dois segmentos: dezembro de 1933 e janeiro
de 1934. Desde então, o mundo vem progredindo em
ritmo frenético e algumas situações do cotidiano des-
critas no ensaio há muito deixaram de existir. Em con-
trapartida, algumas conveniências realizaram-se
exatamente como sonhou Tanizaki, como por exem-
'- plo a caneta-pincel, que hoje existe na forma de tubo

\_ 66 67
\..
L

Você também pode gostar