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BIBLI OTEC A DOS SECU LOS

!l HONORÉ DE BALZAC

A PELE DE ONAGRO
A COMÉDIA HUMANA JESUS CRISTO EM FLANDRES
DE MELMOTH APAZIGUADO
HONO RÉ DE BALZ AC MASSIMILLA DONI
A OBRA-PRIMA IGNORADA
Introduçõe s. Notas e Orientação de Paulo Rónai GAMBARA
A PROCURA DO ABSOLUTO
XV P,-ecedido de
"A INFLU~NCI A DE BALZAC"
DE ERNST ROBERT CURTIUS

T,-adução de
I GOMES DA SILVEIRA

ESTUD OS FILOSOFICOS e VIDAL DE OLIVEIRA

Coni 7 ilustrações fora do texto


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B IB LI O l f: CA DE L E TRAS
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EST U DO S F ILOSÓF ICOS
384

jovem veneziano à fôrça de viver na sua república ~º. século


XIII e de dormir com essa grande cortesã trazida pelo opio. e de
toma~ a encon~rar-se na vida real, para a qual o abatimento a
reconduzia, sucumbiu, lamentado e querido pelos amigos.
Como narrar o dese:-ilace desta aventura? pois que é tão hor-
rivelmente burguês ! Uma palavra bastará para os adoradore s do
ideal.
A duquesa estava grávida.
Os gênios, as ondinas, as fadas, as sílfides dos velhos tempos,
as Musas da Grécia, as Virgens de mármore da Certosa de Pavia. 0
Dia e a Noite de Miguel Ângelo, os pequenos anjos que Bellini,
antes de mais ninguém, pôs no sopé dos quadros de igreja, e que
Rafael tão divinamente pintou aos pés da Virgem do donatário, e da A OBRA -PRIM A IGNOR ADA
Madona que gela em Dresde, as deliciosas filhas de Orcagna da
igreja de San-Michele, em Florença, os coros celestes do túmulo de Tradução de Vidal de Oliveira
São Sebald, em Nurember g, algumas virgens do Domo de Milão, os
povoados de cem catedrais góticas, tôda a multidão das figuras que
quebram suas formas para vir a vós, artistas compreensivos, tôdas
essas angelicais filhas incorpórea s acorreram em tômo ao kito de
Massimilla, e aí choraram !
Paris, 25 de fflaio tk 1839
"I l'-EXPI.JCÁVEL . ,,. ,
é o nome q11e podemos dar aos arlrslas 1"ª , rn ~111
sr,,1 aca/Jur de pi11tar. llotam ti11t11, ruais ti11ta , outm /111/a, 111111/~
tinta, pouca ti11ta, 11mm ti11ta, e 1110,ca 1/res parece que a árvore e
árvore, 11e111 a c/ro11pa11a cl1011f'a1w. Se se traia c11t,io de g~nle,
adeus. Por 111ais q11c os olhos da f.'gura fale111, se111 prc ,~s.;es p11_1:o•
res rnidanr que éles 11ão di=e111 11ada. E reloca111 com /011/a pacren-
cia, q11e algu11s morrem e11tre do11s olhos, outros 1110/0111-se de de-
sespéro." •
Essas /i11lras são de Maclrado de Assis. Não sahrmns se rle
conltecia A Obra-Prima Ignorada (e111 francês Lc Cheí d·Oeuvre
Im:<'111:u) de Bal=ac. Em ledo o caso . defi11e-llre o ass11nlo com
m11ita felicidade em estilo caracteris1fca111c11/e 111aclwdia110.
A tese ce11/ral dos Estudos Filosóficos, co11fnr111e a e.rplica(ão
que d~la dá Féli.r Davi11, 11111 dos porta-vo=es de Bal=ar, é q11e " o
pensamento mata o pensador"••, quer di=cr que 11111a idéia cl,egada
a demasinda i11te11sidade ou 11111 se11ti111enlo 11ioln1/o c111 r.rresso des-
tr6i o orga11is1110 humano. Bal=ac deu a pri11cipal il11slrarão da lrs,
em A Pele de Ona~ro: os outros "estudos'' que seg11em a ésse ro-
ttianre são outras ta,rtas amostras do mesmo f e11ô111eno. A Obra-
Prima Ignorada demo11stra-o, por e.rc111p/o, 110 terreno das artes
fig11ralivas. Bourget resu111e assi111 o problc111a cspecíf ico dessa no-
vela: "Até que ponto o gra11de lalr11/o produtor deve ter a cons-
ciência de se11s poderes? Não l11n•crá a11t:nnr11ia e11/re a inteligência
lúcida demais e a errergia criadora? A arfe não comportará 111110
porcão de i11slillto quase animal e q11e 11,n pc11same11to c.rcessiva111,.;;.:e
avisado destruiria?"•••
Para muitos leitores ilustres A Obra-Prima Ignorada é "'" dos
mellwres co,rtos de Babar. Mar.r rcco111endava-a a E11gels chaman-
do-a mesmo de "peq11e11a obra-pri111a''; •••• Bellessort utili=ava-o
co1110 aryu111e11/o contra aquélcs que arnsa111 Nal=ae de escrever
mal.••••• Mas lrouve também quem, s11b111e/e11do certos aspectos
da obra do romanc.'sta a crítica severa, a com parasse ao quadro es-
tra,r/ro de mestre Fre11/iofer de que trata o· co11to.
•) Marhado dt! Assis, Esaú e Jacob. Ed. Garnirr, Rio dt Janriro, 1925,
p6gs. 105-/06.
.. ) Na Introdução ao~ E~tudos Filosóficos, en, 1831; ap11d Spotlb"t:li,
Hi~toire des Oeuvres de Bal1.ac. ('IÍ(I . 2()4.
.. ,) Bouryrl. Etudes et Portraiu, vol. Ili, M.a. 7,0
...... ) Atud Frrv illr. Sur la Littéralure et l'Art, pág. 151.
•••u) Brtlrssort, Balz..c et son OeuH~, póg. 2i0.
3M
r

388

Acha Fra11çois Fosca* que as idéfas sóbre a pintura, tão ori-


ginais e audaciosas par~ a ép~ca, at~i_b~ídas por Balzac a _Fr~nho[er,
são devidas a, Delacroix, pois o diarw e a correspo11dene1a dcst,
grande pintor conthn muitos conceitos semelhantes sôbre a sombra,
o reflexu, o desenho, a maneira de modelar. A um lorde
'' Freqüentemente em presença dos romance~ de Balzac a gente
fica entristecido, como se tivesse assistido à mutila,ão de uma obra-
prima, e pensa na novela do próprio Balzac que se chama A Obra-
Prima Ignorada, na · qual se fala de mn quadro que é 11m borrão
confuso de côres sob o qual aponta aqui e ali, algum pormenor 1845 l
utupendamente pintado."** Da mesnia f arma foi lembrado que a
vida de Balzac, com se" desperdício louco de fôr,as e seus esfôrços
sôbre-humanos, se explicara pela fic,ão da pele de onagro.*** Assim I
os síinbolos tnais característicos do romancista, sua mitologia parti-
cular servem para a interpretação de sua e.i.--istência íntima e de
sua obra.
GILLETTE
Observemos qtte o conto em aprêço, apesar de formalmente Em fins de 1612, numa fria manhã de dezembro, um rapaz,
1star incluído em A Comédia Humana, não tem com esta na realidad• cujc vestuário era de modesta aparência, passeava em frente à por'..a
nenhu,na liga,ão; sua ação precede de centenas de anos a época em de uma casa situada na rua dos Grandes Agostinianos, em Paris.
que se desenvolve a ação con_iunta do ciclo inteiro. Depoi~ de por muito tempo caminhar por aquela rua com a irreso-
lução de um amante que não ousa apresentar-se em casa da sua
P. R. primeira conquista, por mais fácil que ela tivesse sido, acabou oor
transpor o umbral daquela porta, e perguntou se mestre Francisco
Porbus estava '!m casa. Ante a resposta afirmativa que lhe foi dada
por uma velha entretida em varrer uma sala baixa, o ·jovem subiu
àgilmente os degraus, detendo-se em cada um dêles como um corte-
são noviço, inquieto pelo acolhimento que lhe faria o rei. Quando
chegou ao alto da escadaria de caracol, ficou um momento no pata-
mar, hesitando se usaria ou não a grotesca aldrava que ornamentava
a porta da oficina onde devia trabalhar o pintor de Henrique IV, 2
ao qual Maria de Medieis 3 preferiu Rubens. O rapaz experimentava
essa sensação profunda que deve ter feito vibrar o coração dos
grandes artistas, quando, em pleno zênite da mocidade e do amor

1) A identidade dêsse lorde, assim como o " sentido" das quatro linhas
de pontinhos que substituem a dedicatória, não puderam ser descobertos.
Tratar-se-á, provàvelm~nte, de uma dessas mistificações imitadas de Sterne
que aparecem também no epígrafe de A Pele de Onagro e num trecho de
A Fisiologia d,, Casamento (Meditação XXV ) .
2) Henrique I V ( 1553-1610), rei d~ França, proteto~ das artes! _depoi~
de se divorciar de Margarida de Va\01s desposou Maria de Med1C1s.
*) François Fosca, Edmond et Jules Goncourt, Albin Michel, Paris, 3) Maria de Medieis (1573-1642) rainha da França, foi reconhecida re-
1941, pág. 238. gente pelo parlamento depois da mort':! de Henrique IV, e. concen!r?u tod_o
.. ) Bencdetto Crocc, no estudo que reproduaimos no vol. XVI da pre- o poder em suas mãos até l!í17. Encarregou . Rubens de pintar vanos epi-
sente edi,ão. sódios da vida dela numa série de quadros, hoJe conservados no Louvre.
... ) Bouvier et Maynial, Les Comptes Dramatiques de Balzac, pág. 15. 389
390 EST U DOS FILOSÓFICO S A ODRA·PRJHA IGNORADA 391
pela arte, enfrentaram um homem de gênio ou alguma obra-prima. peixe, atirem sôbre o g:bão prêto do ancião uma pesada corrente de
Existe em todos os sentimentos humanos uma flor primitiva, engen- ouro, e te~ão uma imagem imperfei:a dêsse personagem, ao qual a
drada por um nob· e entusiasmo que va i continua mente en fraque- escassa luz da escada acrescentava ainda uma côr fantástica. Dir-
cendo até que a felicidade não seja mais do que uma len'. bran,a e a se-ia uma tela de Remhrandt caminhando s=Jenciosan~ente, e sem o
glória uma mentira. P or entre essas frágeis emoções, nada se quadro, na escura atmosfera de que o grande pintor se apropriou.
assemelh::a tanto ao amor como a juven:J paixão de um artista que O ancião dirigiu ao rapaz um olhar repassado de sagacidade. bateu
inicia o delicioso suplíc·o de seu destino de gló:-iJ e <le infortúnio, três pancadas na porta, e disse a um homem ,·aletud.nário. de cêrca
paixão cheia de audácia e de timidez, de crenças vagas e de desâ- de quarenta anos, que veio abrir:
nimos positivos. Ao artista que. ce poucos have:-es. que, adolescente
- Bom dia, mestre.
de gênio, não palp:tou vivamente ao a presentar-se diante de um
Porbus inclinou-se respeitosamente ; deixou o rapaz entrar, por
mestre, sempre faltará um"'l corda no coração, não sei que pincelada,
julgá-lo trazido pelo anc:ão. e preocupou-se tan~o menos com êle,
que sentirr:en~o na obra, que indefinível expressão de poesia. Se
por ter o neófito permanecido sob o encantamento que devem expe-
alguns fanfarrões, cheios de si. crêem muito cedo no futuro, êsses
rimentar os pintores de vocac ão arte o aspecto do primeiro atelier
serão homens de espírito sàmente para os néscios. A ser assim,
que vêem e onde se lhes revelam alguns dos processos materiais da
o jovem descc nhecido par{'cia ter vercla<leiro merecimento. se é que
arte. Uma ela· abóia existente no teto iluminava o atelier de Po~bus.
o talento deve medir-se por essa timidez inicial, por êsse pudor
Concentrada sôbre uma tela colocada no cavalete, e que não fôra ainda
in<lefinível que os que são destinados à glória sabem perder no exer-
tocada senão por três ou quatro tra~os b~ancos, a luz não alcan ~ava
cício de sua arte, como as mulheres bonitas perdem o ieu nos as r,~gras profundezas dos cantos daquela vasta peça; entretanto,
manejos da faceirice. O hábito do triunfo apequena a dúvida, e o .alguns reflexos perdidos faziam br:Jhar naquela sombra pardacenta
pudor é talvez UIT"l -'.:. vida. uma paleta prateada no ventre de uma couraça de retre suspensa
Dep+n:úv pela misé~ia e surpreendºdo naquele momento por na parece. listavam com um bru~co sulco de luz a cornija esculpida
!:::, ;::~: uiãncia, o pobre neófito não teria entrado em c':l sa do pintor e encerada de um antigo aparador coberto de loucas curiosas, ou
a quem devemos o admirável retrato de Henrique IV. sem tim pontilhavam de pingos brilhantes o tecido g~anuloso de alguns velhos
auxílio extraordinário que o acaso lhe proporcionou. Um ancião reposteiros de brocado dou~a<lo, de grandes pre!.."as desfeitas. atirar-los
vinha subindo a escada. Pela singularidade do seu trajo, pela magni- ali com:> modelos. Manequins de gêsso, fragmentos e bustos de
ficência de seu caberão de renda, pela preprnderante calma do seu deusas antigas, amorosamente poJ:das pelos beijos dos séculos,
andar, o rapaz adivinhou ser aquêle pe:-sonagem um protetor, ou enchiam as mes:nhas e os consolos. Numerosos esboços, estudos a
amigo do pintor; recuou no pa~aniar para dar-lhe lugar e examinou-o lápis, a três côres, sanguíneos ou feitos a pena, cobriam as paredes
com curiosidade. na esperança de achar nêle a. boa índole de um até ao teto. Caixas de tintas, garrafas de óleo e de essência, mochos
artista, ou o caráter serviçal da!> pessoas oue arr:am a arte; mas caídos, não deixavam senão um can 1 inho estreito p:tra ch~gar em
naquele rosto div:sou alguma coisa de diabólico, e, sobretudo, êsse baixo da auréola projetada pela clarabóia. cujos raios caíam em
não sei quê que tanto atrai os artistas. Imaginem uma fronte calva, cheio no pál"c'o serr:blante de Porhus e sôbre o crânio de marfim
abaulada, proeminente, projetando-se saliente sôbre um 11ariz pequeno do homem singular. A atenção do rapaz foi logo exclusivamente
e chato. arrebitado na ponta. como o de Rahelais ou o de Sócrates; solicitada por um quadro qt1e, naquele tempo de motins e de revo-
uma bôca risonha e enrugada, um Queixo curto, orgulhosamrnte luções, já se tornara célebre, e que era visitado por alguns dêsses
erguido, tapado por uma barb~ grisalha. aparada em ponta. olhos teimosos aos quais se <leve a con~ervacão do fogo sa1?-arlo rlurante os
verde-mar tmbaciados na aparência pela idade. mas que. prlo con- dias maus. Aquela bela p:igina representava uma Maria. Egipcíaca 4
traste do branco racarado em que a pupila flutuava, deviam por que se dispunha a pagar a passagem da barca. Essa obra-prima,
vê:r.es despedir olhares mag-néticos no paroxismo da cólera ou do
mtusiasmo. O rosto, aliás, estava singularmente emurchecido pelas 4) Maria F:gi('ríara: Santa Maria <l(ta a Eg_gipciaca (século V. d. ~->
que, ~egundo a lenda l~vava em Ale_xar:rl· ta um v1rl~ escahro•a. . fendo ":'sto
~adi~as da idacle, e, mais ainda, por êsses pensamentos qt•e corroem
igualmente a alma e o corpo. Os olhos não tinham mais ciFos, e um grupo de peregrinos que s~ destinava a Jerusalem, reolveu 1r com el··s
mas ao chegar a um rio não tinha com qu,: pagar a sua pas,;agem. Foi1
mal se viam vestígios de sobrancelhas por !iÕhre as ar~aclas salientes. quando lhe ocorreu entr··gar-se ao c-anoeiro par~ pcx!er acompanhar os pe-
Ponham essa cahec:a num corpo franzino e déliil, cerquem-na de reg · inos. ~se episódio forneceu assunto p..ra rnumeros quadros, lendas e
uma renda de deslumbrant.! alvura e perfurada como uma colher para poesia!I.
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392 EST U DO S F ILOS ÓF ICOS A OBRA-PRI MA I GNORADA 393


destinada a Maria de Medieis, foi por ela vendida nos dias de sua Mas, por que, meu caro mestre? - disse respeitosamente
miséria. Porbus ao ancião, enquanto o rapaz dificilmente reprimia um forte
- Tua santa me agrada - disse o anc1ao a Porbus - e eu desejo de sová-lo.
te daria por ela dez escudos de ouro acima do pre_c;o que a rainha - Ah! aí está! - respondeu o velhinho.
oferece ; mas competir com ela. . . é o diabo! Flutuast e indeciso
entre os dois sistemas, entre o desenho e a côr, entre a fleuma
- Acha-a bem? minuciosa, a rigidez precisa dos velhos mestres alemães e o ardor
deslumbrante, a feliz abundância dos pintores italianos. Quiseste
- Hum! hum! - fêz o ancião - bem? . . . sim e não. Essa imitar ao mesmo tempo Hans Holbein e Ticiano, Albrecht Dürer e
tua mulherzi nha não está mal-arra njada, mas não tem vida. Vocês Paolo Veronese. 6 Evidentemente, era isso uma ambição magnífic a l
pensam ter feito tudo, quando desenhar am corretam ente uma figura Mas que aconteceu? Não alcançast e nem a sedução severa da se-
e puseram corretamen~e cada coisa em seu lugar segundo as leis da cura, nem as decepcionantes magias do claro-escuro. Neste lugar,
anatomia ! Vocês colorem êsse esbôc;o com tonalidades de carne como um bronze em fusão que arrebenta seu molde fraco demais, a
de antemão preparad as na paleta, tendo o cuidado de manter um rica e loura côr do Ticiano fêz romper-se o magro contôrno de
dos lados mais sombrio do que o outro, e como olham de quando Albrecht Dürer, em que o tinhas moldado. Além, o desenho resis-
em quando uma mulher nua que se conserva de pé em cima de uma tiu aos magníficos trasbordamentos da paleta veneziana e os conteve.
mesa, julgam ter copiado a natureza ; imaginam que são pintores e Tua figura não está nem perfeitamente desenhada, nem perfeitam ente
que roubaram o segrêdo de Deus!. . . Prrr ! Não basta para ser pintada, e mostra em tôda a parte os vestígios dessa infeliz indecisão.
um grande poeta conhecer a fundo a sintaxe e não cometer erros Se não te sentias suficientemente forte para fundir juntos ao fogo
de linguagem! Olha tua santa, Porbus ! À primeira vista ela pa- do teu gênio as duas maneiras rivais, devias ter optado francame nte
rece admirável ; mas a um segundo exame vê-se que está colada no por uma ou outra, a fim de obter a unidade que simula uma das con-
fundo da tela e que não seria possível dar uma volta em tômo do dições da vida. Tu não és verdadeiro senão nos centros, teus
seu corpo. "f. uma silhueta que só tem uma face, é 'u ma aparência contornos são falsos, não se envolvem e nada prometem por detrás.
recortada, uma imagem incapaz de se virar, de mudar de posição. Aqui há verdade - disse o ancião, mostrand o o peito da santa. -
Não sinto ar entre êsse braço e o fundo do quadro; faltam espaço E também aqui - continuou êle indicando o ponto em que, no
e profundi dade: entretant o, em perspectiva tudo está bem, e a de- quadro, terminava o ombro. - Mas ali - acrescentou, voltando ao
gradação aérea está exatamen te observad a; mas, apesar de tão lou- centro do colo, - tudo é falso. Não analisemos nada, que isso
váveis esforços, eu não poderia crer que êsse belo corpo esteja seria desesperar-te.
animado pelo morno sôpro da vida. Parece-m e que, se eu colo- O ancião sentou-se numa banqueta, segurou a cabeça com as
casse a mão naquele colo de carnes firmes e harmoniosas, eu o acha- mãos e ficou calado.
ria frio como mármore . Não, meu amigo, o sangue não corre por
baixo daquela pele de marfim, a vida não intumesce com seu orvalho - Mestre - disse-lhe Porbus - entretant o estudei bem o nu
purpúreo as veias e as fibrilas que se entrelaçam em rêdes sob a dêste colo; mas, por infelicidade nossa, existem efei:.os verdadei ros
transparê ncia de âmbar das têmporas e do peito. ~ste lugar palpita, na natureza que na tela não são mais prováveis ...
mas aquêle outro está imóvel, em cada pormeno r a vida e a morte
lutam: aqui é uma mulher, ali é uma estátua, mais além é um cadá- 6) Hans Holbeiti: nome de dois pintores alemã'!s, Hans Holbein o
Velho (1465-1524) especializado em assuntos religiosos e seu filho, Hans
ver. Tua criação é incompleta. Não pudeste transmit ir senão um.a Holbein o Moço (1497-1543), um dos retratistas mais ilustres. Aqui Balzac
parte de tua alma à tua obra querida. O facho de Promete u 5 mais tefere-se ao segundo. Entr'! seus quadros <list:nguem-se sobretudo os retra-
de uma vez se apagou nas tuas mãos, e muitos lugares do teu quadro tos de Luther Aucrbach, Thomas Moore, Erasmo e vários auto-retra tos. -
Ticiano: Tiziano Vcce:li ( 1477-1576), além de quadros alegóricos (Amor
não foram tocados pela chama celeste. Sagrado e Profano), mitológicos (Da~aé ) e religiosos, exceleu no r'!trato.
Suas prodm;ões mais famosas nesse gên'!ro representam o imperador Carlos V
5) Promettu : filho de um titã e innão de Atlante, segundo a mlto- e Filip'! V, rei da Espanha. - Albrtcht Diirt r (1471-152 8); pintor e gra-
iogia, formou o homem do limo da t-?rra e, para animá-lo, rouhou o fogo vador alemão, um dos maiores artistas de todos os tempos, apcrícic;oador das
do céu. Sofreu, por isso, terrível castigo: por ordem de Júpiter, foi ac:or- artes da xilogravur a e da água-forte. Entre S'!US retratos pintados são no-
tcntado por Vulcano ao Cáucaso, onde um abutre vinha devorar-lh e o ílgado, táveis os de Melanchton e Erasmo, e vários auto-rttrat os. - Paolo V crcmest :
ate que Hércules o libertou. ver a nota 12 de Massimilla D oni.
394 ESTUDOS FILOSÓF ICOS
A OBJlA-PJUKA IGNOltADA 395
- A m1ssao da arte não é copiar a natureza e sim expri-
mi-la! Não és um vil copista, e sim um poeta! - exclamou viva- came, belos cortinados de cábelos, mas, onde o sangue que ffl-
ml!nte o an :ião, interrompen do Porbus com um gesto despótico. _ gendra a calma ou a paixão e que causa efeitos particulares ? Tua
De outra forma, um escultor estaria quite com todos os seus tra- &anta é uma mulher morena, mas isto aqui, meu pobre Porbus, é de
balhos modelando urna n:ulher ! Pois bem, expe, irnenta modelar a uma loura I As figuras de vocês são então pálidos fantasmas colo-
mão de tua amante e a colocar diante ele ti; depararás com um ridos que vocês nos passeiam diante dos olhos e chamam a isso
horrível cadáver, sem nenhuma parecl!nça, e serás forçado a ir em pintura e a~e ! Pelo fato de terem fei to al~ma coisa que se
busca do escopro do homem que, sem copiá-la exatamente , nela assemelha mais a uma mulher do que a uma casa, vocês pensam ter
representará o mov:mento e a vida. Temos de ap:·eencler o espírito alcançado o alvo, e, muito ufanas por não serem mais ohrigados a
a aln:a, a fisionomia das coisas e dos sê:es. Os efeitos! os efeitos i escrever ao lado de suas fi~ras, currus venustus ou pulcher l,nmo, •
como os primeiros p=ntores, vocês julgam ser artistas maravilhosos f
mas se êles ~ão os ac:dcntes da viela e não a vida! Uma mão, já Ah! ah! ainda não alcançaram o alvo, meus denodados companheiros:
que recorri a êsse exemplo, uma mão não está imicamente prêsa ao terão ainrla de gastar muitos lápis, borrar muitas telas antes de tal
-corpo, ela exprime e continua um pensamento que é preciso apreen- conseguir I Não há dúvida de que uma mulher traz a cabeça dêsse
der e reproduzi.. Nem o pintor, nem o poeta, nem o escultor elevem modo, ela segura a saia assim, seus olhos se enlanguescem e se
separar o efeito da caurn, que invencivelmente estão um no outro. fundem nesse ar de doçura resig11ada, a sombra palpitante dos cflios
A verdadeira luta está aí! Muitos p ntores triunfam instintivamente flutua dêsse modo sôhre as faces ! 11 isso, e não é isso. Que
sem conhecer êsse tema da arte. Vocês desenham uma mulher, mas falta, pois? um nada, mas êsse nada é tudo. Vocês dão a aparência
não a vêem! Não é assim que se consegue forçar o aicano da da vicia, mas não exprimem seu excesso que transborda, êsse não
natureza. As mãos de vocês reprodu;.em, sem que se <lêem conta, o sei quê que é a alma, talvez, e que flutua nebulosamente sôhre o
modêlo que copiaram na oficina do mest:-e. Vocês não descem su- invólucro: enfim, essa flor de vida que Ticiano e Rafael surpreen~
f:cienterr:ente na intimidade da forma, não a perseguem com su:. deram. Partindo-se do ponto extremo a que vocês chegaram, far-
ficiente amor e perseveranç a nos ~eus desvios e nas suas fugas. A se-ia, talvez, excelente pintura; mas vocês se cansam muito deoresq.
beleza é uma crisa severa e difícil que não se deixa aL-ançar à O vulgo admira, mas o verdadeiro conhecedor sorri. - ó Mabuse,
9

vontade, é preciso espe: ar suas horas, espioná-la, acossá-la e en- ó meu mestre - acrescentou aquêle singular personagem, - és um
laçá-la Lrmemen:e para obrigá-la a render-se. A Forma é um ladrão, levaste a vida contigo! - Feitas essas restrições - pros-
Proteu 7 muito mais inatingível e mais fértil em sinuosidade s do que seguiu - esta tela vale mais do que as p=nturas dêsse mariola dt
•O Proteu ria Fábula; não é senão depois de demorados combates Rubens. com as suas montanhas de carnes flamengas, polvilhaclas de
-que se pode ccnstrangê- la a mostrar-se sob ~eu verdadeiro aspecto. vermelhão, com suas bátegas de cabeleiras castanhas e sua orgia de
Vocês contentam-s e com ~ primeira aparência que ela lhes entrega, côr.es. Pelo menos você tem aí côr, sentimento e desenho, as tres
-0u quando n:uito com a segunda, ou com a terceira; não é assim partes e~ser<:iais da arte.
-qee procedem os lutadores vitoriosos! nsses pintores jamais ven- - Mas essa santa é sublime, velhote 1 - exclamou o rapa7. com
•cidos não se deixam ludibriar por êsses mais-ou-menos, perseveram voz forte, ao sair de demorado devaneio. - Essas duas figuras,. a
:até que a natureza se veja 1 ecluzicla a mostrar-se inteiramente nua. da santa e a do barqueiro, têm uma finura de intenção que os
e no seu verdadeiro espírito. Ass:m procedeu Rafael - disse_ o pintores italianos ignoravam; não conheço um único que tivesse in-
ancião, tirando seu boné de veludo prêto para exprimir o resre)t
0 ventado a indecisão do barqueiro.
-que lhe inspi:-ava o rei da arte - sua grande superioridad e prpvem - ts~e maroto é seu? ·- perguntou Porbus ao ancião.
do sentido íntimo que, nêle, parece querer despedaçar a forma. - Ai de mim ! mestre, perdoe o meu atrevimento - resporicteu
A forma. nas suas figuras, é o mern10 que entre nós, um in!érpret~ o neófito, C'Orando. - Sou desconhecido, um pinta-monos instintivo,
é chegado faz pouco a esta cidade, fonte de tôda ciência.
para comunkar idéias, sensações, uma vasta poesia. Tôda 1ma~em
é um mundo, um retrato cujo moc'êlo surgiu numa visão subhnie,
8} C11N'tll t1tnH1l111 (em latim): "lindo arro"; /111lcher MIIIO: •belo
colorido de luz, designado por uma voz inte:-ior, despido por um
homem"
dedo celestial que mostrou, no passado de tôda un~a vicia, as fontes 9) , Mabiu,: Jean Gassaert de Mabu!e (011 de Maulrun: 1499-1S62)
0

,da expressão. Vocês fazem nas suas mulheres belos vestidos de pintor flamengo que introduziu em ttu pais o estilo italiano: autor de qua-
1'
dros mitolOgtcos corno Da,cal- ~rcrfJéftdo a Chtff10 Ouro e, aóbrctudb. de
quadro• religiosos, entre os qu,us uma famosa Ducido do CNl.8.
7) Pro/cu: divindad,. mitol61tica qu.- mudava constantement e de formu-

21
T
ES T U DOS FIL OSÓ F I COS 1

A OBRA-PRIMA IGNORADA
Mãos à ohra ! - retrucou-lhe Porbus apresentando-lhe um
lápis vermelho e uma fôlha de papel. pele de moça, e como o tom misturado de pardo avermelhadó e <le
,·' O desconhecido copiou celeremente a Maria em poucos trac;os. pcre calcinado aquece a grisea trieza desta grande soml,ra :nd qttal
- Oh! oh! - exclamou o ancião. - Como se chama? o sangue se coagula\'a ao invés de rirn1lar? R~paz, ~-apaz, o· (J~
O rapaz escreveu por ,.ua1xo:
. N iro
. l as /' 0 11s~111.
. . io aqui te esto1,1 mostrando, nenhum mest re poclena ensmar-te. So-
JllCnte Mabuse possuía o segrêdo de dar vida às figuras. · Mahusc
- ·Eis aqui algo que não está mal para um principiante - afir.
t~ve somente um discípulo, e êsse s011 eu. Eu não tive nenhu~, ç
mou o singular personagem que tão alo11l'ada111e11te discorria. -
est~u velho! Tens sufkirnte inteligência para adivinhar o reisto,
Vejo que se pode falar em pintura diante dt! ti . !\ão te censuro por
te:es admirado a santa de Porbus. Para todos é uma obra-prima,
por isto que te estou deixando entrever. · ,
t sómente os iniciados nos mais profundos arca nos da arte podem . , Ao mesmo tempo que falava, o estranho ancião tocava erri t od01
descourir no que ela peca. Uma vez, porém, que és digno da lição os pontos do quadro: aqui duas pinceladas, ali uma única, mag s~mpre
t capaz de compreender, vou fa zer-te ver o pouco que seria preciso tão a propósito, que se diria uma nova pintura. m~s uma pintura
para completar a obra. Abre bem os olhos e presta tôda a atenção, banhada de luz. Trabalhava com um ardor tão apaixonado. que o
pois semelhante ocasião de te instruires não tornará jamais, talvez, a -;S\Jor gotejou na sua fronte calva; ia tão ràpidamente com peq_1_1eno1
se apresentar. Tua paleta, Porbus ! ,,10v1mentos tão impacien:es, tão entreconaclos, que, para o JOVml
Porbus foi buscar a paleta e os pincéis. O velhinho arregaçou Poussin, parecia haver no co~po daquele singular perso.na~em u~
as mang-.is com um gesto de rudeza convulsa, passou o polegar na demônio que atuava por suas mãos, tomando-as fantast1camrnte
paleta matizada e cheia das tintas que Porhus lhe oferecia; arran- contra a vontade do homem. O brilho sobrenatural de seus olhos,
cou-lhe das mãos, mais do que o recebeu, um punhado de pincéis de ~s convulsões que pareciam o efeito de uma. resistênci~, davam
todos os tamanhos, e sua barba, aparada em ponta, moveu-se subi- àquela idéia um simulacro de verdade que devia atúar sobre uma
tamente por esforços ameaçadores que exprimiam o prurido de uma .imaginação moça. O ancião continuava d izendo:
apaixonada fantasia. Ao mesmo tempo que enchia o pincel de tinta, ·,, · - Paf! paf! paf! eis aqui como isto se _lambuza, rafl:'z!
resmungava entre dentes: Venham minhas pinreladinhas, façam-me crestar este tom glacm.1 !
•· - Estas côres sô prestam para serem at:radas pela janela, junto Vamos 1'Pon ! pon ! pon ! - murmurava, dando calor às partes. onde
com o que as misturou : são de uma crueza e de uma falsidade se assinalara uma falta de viila, fazendo clesaparecer por mr10 de
revoltantes I Como se poderá pintar com isso? algumas placas de tinta as diferenças de temperamento, t r.est~bele-
· Molhava depois com febril vivacidade a ponta do pincel nas cerido a uniformidade de tom exigida por uma ardente eg1pc_ia.
várias côres, das quais percorria por vê .. es tôda a escala · mais i -Vês, meu filho, o que vale é a última pincelada. torh111
ràpidamente do que um organista de ca:edral percorre a extensão de'Ú cem • eu dou uma somente. Ninguém nos agradtce :> que está
de seu teclado no O f ilii 11 da Páscoa. em ' baix~. Fique sabendo isso bem! ' ' ·• ' ' '
' Porbus e Poussin permaneciam imóveis, cada um dêles a um Finalmente, aquêle demônio se deteve, e, virando-~ para· .o
lado da te.la, mergulhados na mais veemente contemplação. PQJ'bus e Poussin, mudos de admiração, disse-lhes: ·1
. ~ Vês, rapaz - ia dizendo o velho, sem se voltar, - vês como
. · - Isto não vale ainda a minha Belle N mseuse; 12 entretan~ó~
por meio de três ou quatro pincelaclas e de uns toques azulados se
podia fazer o ar cir.cular à roda da cabeça desta pobre santa, que 1 podia-se assinar o nome ao pé de semelhante obra. Sim,' · eu a
assinaria - acrescentou, erguendo-se para pegar um tispelhn1 ne
d«;!.\'ia estar sufocada e sentir-se presa nessa atmosfera densa! Olha
con10 esta fazenda revoluteia agora e como se compreende que a
brisa a soergue! Antes tinha o aspecto de uma tela engomada e
l
/,
.qual· olhou-a. - Agora, vamos almoçar - disse êle. •-"' _Yenh~!l'
os dois à minha casa. Tenho presunto defumado e bom •vmho I.·. t
Eli I eh I apesar dos tempos desgraçados, falart!mos de pintura 1 ·~o-
prêsa com alfinetes. Estás notando como o brilho ac'etinado que
mos de fôrça... Aqui e~tá um homenzinho - acresc~ntour danilo
.~caQO ~e.. depôr no peito reproduz bem a fôfa fl~.i:-ibilidade de uma

10) Nirolas Po1rssin: ver a r.ota 31 de A Ptlt dt O"'rgro. O episódio


1 uma palmada no ombro de Nicolas Poussin - que tem fa1a1hdades •

de sua vi,la, a<1ui relatado, ~ imaginário. " ., 12)B,llt Nfli.trtrs,: • A linda hr(,rona".. (O_ adj!'livo · flniV11:r. ,,~j.
• ,,ll) Q /ilii ti filia, : ver a nota 7Z de Alassi,:iitla Doni. arcaico l! um dtrivado do suhstant1vo nmu,
lt'tlllt . ª'"')ª
,?sado Cl' ~»':~l(ID
chn,hr, nuise d qutlqu'un • procurar br.ga com alguem •
398 P. STUOOS P'ILOSÓFICOS
r A OBRA-PRlMA IGNORADA

Que belo Giorgione ! u


\'\o ver então O casaco ordinário do normando, tirou do cinturão Não - replicou o ancião - está vendo uma das ~
uana bôlsa de couro, meteu os dedos nela, de lá trouxe duas mocdâa diMe
primeiras lambuzadas. . J
de ouro e, mostrando-lhas: - D~mônios ! estou então em casa do deus da pintura -
- Compro o teu desenho - disse êle. . •
ingénuamente Poussin. . á •io
_ Aceita - aconselhou Porbus a Poussm, ao ve-lo estremecer O ancião sorriu como um homem habituado de h mm a
e corar de vergonha, porquanto o jovem adepto tinha o orgulho dó
póbre. - Aceita de uma vez, pois que na sna sacola êle te1ri o isse elogio. .1. ada
- Mestre Frenhofer ! - disse Porbus - não guereril ma r
re.sgate de dois reis. buscar um pouco do seu bom vinho do Reno para mim? ·
Os três desceram a escada da oficina e caminharam charlando a - Duas pipas! - respondeu o ancião. - Uma para pagar D
~peito de arte, até chegarem a uma bela casa de madeira situa~a prazer que tive esta manhã ao ver tua linda pecadora, e a outA
perto da ponte de São Miguel, e cujos o:namentos, a ~ldraôa, os
como um presente de amizade.
.caixilhos das janelas, os arabescos, maravilharam Poussm. O as-
- Ah! se eu não estivesse sempre doente - respondeu Porb~
pirante a pintor viu-se repentinamente numa sala baixa, diante de
- e se quisesse deixar-me ver sua Belle Noiseuse, eu P?<1ena
,um bom fogo. junto a uma mesa servida de manjares apetitosos, e,
fazer alguma pintura elevada, vasta e profunda, na qual as figuras
,por uma , felicidade inaudita, na companhia de dois grandes artistas
'C'heios •-de bonomia. 'r
seriam d<! tamanho natural.
- Mostrar minha obra ! - disse o ancião, emocionado. -
, - Jovem - disse-lhe Porbus, ao vê-lo pasmado em frente a um
Não I não! preciso aperfeiçoá-la ainda. (?ntem, ª? e_ntardecer, ~
quadro - não olhe muito essa tela, pois ficaria desesperado. sei tê-la terminado. Os olhos dela pareciam-me um1dos, sua carne
Era o Adam, que Mabuse fêz para sair da prisão na qual seus estava· agitada. As tranças dos seus cab~los movia~-se. Ela re&-
credores. o retiveram durante muito tempo. Aquela figura apreset\'- pirava ! Embora eu tenha achado o meio de . reahzar º':~ tela
,tava, efetivamente, um tal poder de realidade, que Nicolas Poussin ·chata o relêvo e as rotundidades da natureza, hoJe de manha, a luz,
a:imeçou, desde aquêle momento, a compreender o verdadeiro .s1:n- reconheci meu êrro. Ah ! para chegar a êsse resultado glorioso, e~
.tido das confusas palavras do ancião. :8ste contemplava o quadro tudei a fundo os grandes mestres do colorido, analisei e ergui camalfa
com ar satisfeito, mas sem entusiasmo, parecendo dizer: "Fiz por camada os quadros do Ticiano, êsse rei da luz; como êsse pin!or
éoisa. melhor l" soberano, esbocei minha figura num tom claro_ co~n uma pasta fl~-
- Há vida aí - comentou ; - meu -pobre mestre sobrepujou• xível e abundante, porque a sombra nada mais e do que um a~

l
:-se; falta. porém, ainda. um pouco de verdade no fundo da tela. O dente, guarda isso, garôto 1 Depois, voltei à minha obra e, por
)iomém está bem vivo, vai levantar-se e dirigir-se para nós. M~s meio de meias-tintas e de côres claras e translúcidas cuja transpa-
o ar, o céu, o vento que respiramos, vemos e sentimos, não estão aí. rência eu ia diminuindo gradualmente, reproduzi as mais vigorosas
Adentais, não há aí mais do que um homem ! Ora, o único homem sombras e até os mais rebuscados negros; porquanto as sombras dos
ltlaÍdo diretamente das mãos de Deus devia ter algo de divirto, que pintores comuns são de outra natureza que os seus tons claros• é
falta. O próprio Mabuse, quando não estava ébrio, dizia isso cheio madeira, é bronze, é tudo que quiserem, menos carne na sombra.
de d~peito. Sente-se que se as figuras dêles mudassem de pcsi(,'âo, os lugares
Poussin olhava alternativamente para o ancião e para Porbtu sombreados não se clareariam e não se tomariam luminosos. Evitei
rom uina curiosidade inquieta. Aproximou-se dêste como para per• esse êrro, no qual muitos dos mais ilustres caíram, e em mim a
«untar-lhe o nome do anfitrião; o pintor, porém, pôs um dedo nos alvura se realça sob a opacidade da mais firme sombra. Não (b.
lábios com ar de mistério, e o rapaz, vivamente interessado, calou-se, ,, como uma porção de ignorantes que pensam desenhar corretamente
.operando que cedo ou tarde alguma palavra lhe. permitiria adivi• porque fazem um traço cuidadosamente nítido ; não, eu não assinalei
Jthar •o nome do seu hospedeiro, cuja riqueza e t;ilentos eram su- sêcamente as bordas exteriores da minha figura e não fiz ressaltar
.ficientemente atestados pelo respeito que Porbus lhe testemunhava
e pelas maravilhas acumuladas naquela sala.
1 13) Giorgione: apelido de G'o,gio Barbarelli ()477-1511 ). mn dna
I

Poussin, ao ver no sombrío fôrro de madeira de carvalho um grandes pintores da alta Rena~c~ça em Veneza, autor de n:l~atos e e ~
' mrlg,iífiCó •retrato de mulher. exclamou:
l religiosas e mitológicas; a maiona das obras que se lhe atnbuau são '5a
autenticidade duvidosa.
F.STUDOS FILOSÓ FICO S
A ODRA-PRIMÁ IGNOR.':.DA. ·4b1
até a menor minúcia anatôm:ca, porritie o corpo humano não acaha
Jjôr -:Jinlias. ~isso, os esc.:ultores podem aproxin~ar-se mais ela ver- que aauêle homem "elho afetava manifestar pelas mais l>elas ten-
da~e <lo que nós. A natureza comporta uma série de curva.<1 que -~ i auvas da arte, sua riqueza, rnas maneiras, a deferência de PbrLus
e,y11lve11\ umas nas out:-as. Rigo~osamente falando, o desenho não por êle, aquela ob~a por tanto tempo mantida e111 segrêdo, ohra
exist e! Não se ria. rapaz ! Por mais estranha que lhe pare<;a essn de paciênc:a, se111 dúvida uma obra de gênio, se se devia julgar
-afin11~\ÕO, algum dia você lhe compreenderá as razões. A linha é pela cabeça da Virgem qué o jovem Poussin tão francamente ad111i-
o meio pelo qual o hon:em se dá conta do efeito da luz sôbre• os rara, e que, bela ainda, mesmo ante o Adam de f\labuse. atêstava a
obJetos :. mas, na natureza, c-nde tudo é cheio. não há linhas: é Ímpe1ial feitura de 11111 dos príncipes da arte: tudo naquele ;mciab
modelando que se desenha, isto é, que se destacam as coisas do meio ultrapassava os li111 'tes ela natureza humana. O que a rica imag{-
em . <fie. elas se ac.:ham; é sómente a distri buição da luz que clá nação de Nicolas Poussin p11cle apreender de claro e de perceptível
.aparenc1a ~o corpo,! Por isso não fixei os traços, espalhei sôbre ao ver aquela criawra fohrenatural, foi uma imagem complet~ da
os _contorn?s uma nuvem de n~eias-tintas louras e quentes que Ja~ natureza art ístil"a, dessa aloucada nature; a à qual são con fi:iclo's
~om ,que oao-se possa com precisão colocar o dedo no lugar em que tantos poderes, e que com demasiada freqüencia dêles ahusa, arras-
eles se confundem com o fundo. De perto, êsse trabalho parece tando a fria raziio. os htligueses e mes1110 alguns amadores, através
ne_buloso e con~o que falto de precisão; mas a dois passos tudo s.c de mil estradas pedrego,·as. onde, para êles, nada há: ao passo que,
af1_rir.a, se detem, se des~aca: o corpo gira, as fo:-mas tornam-se brincalhona nas suas fantasias. essa rapariga de asas brancas .ali des-
salientes,. se~te-se o ar cirn1lar em tôrno. Entretanto, ainda não cobre epopéias, castelos, obras de arte. Natureza zomueteira e
.ei;t?u. 5:1:isfe1to, tenho dúvidas. Seria p:-eciso talvez não desenhar !boa, ÍC\.unua e pobre! Assim, pois, para o entusiasta Poussin,
uq1_ umco_ tra<;o, talv~z fôsse preferível começar uma figura pelo aquêle ancião tornara-se. por uma súbita transfiguração, a própria
meio, de~,c~ndo-se _pnme1~0 às sali_ências _mais iluminadas, para pa~- Arte, a arte com os seus segredos, seus ardores e seus devaneios.
~r cl~JX?IS a~ porçoes n~ 1s sombr:as. Não é assim que faz O sol, - Sim, meu caro Porlius - volveu Frenhofer - faltou-me até
esse d!vmo pmtor do universo? ô natureza! natureza! quem jamais àgora encontrar uma mulher irrepreensível, um corpo cujos contor-
te- ~urp:eencleu nas tuas fugas! Olhem, o excesso de ciência do nos sej,un de uma 1,eleza perfeita, e cuja carnação. . . tias - con-
.mes1~10 n:orlo q_ue a igno,ância, leva a uma negação. Não t;nho tinuou êle, após uma pausa - onde viverá es!\a Vênus dos àntigos,
-confiança na mmha ohra ! impossivel de achar, tantas vêzes procu: ada, e da qual encontramos
apenas algumas helezas esparsas? Oh! para ,·er um momento, uma
O ancião f êz uma pausa. depois prosseguiu :
única vez, a natureza divina, corr.pleta, o ideal enfim. eu daria tô~!a
_ ·. - Faz dez anos, meu rapaz, que trahalho: mas o que são dez .a minha fort1111a. . . itas irei p~ornrar-te nos teus limbos, beleza
mmguados anos, quando se trata de lutar com a natureza? Igno- celestial! Como Orfeu, 15 descerei ao inferno da arte para de li
';ll•~10s o . tempo que ~ senhor Pigmalião 14 empregou para fazer a .t razer a vida.
u~1ca cstatua que cam.nhou ! - Podemos ir embora daqui - disse Porbus a Poussin ;
' ' b _ancião 1!1ergulhcu em p~ofunda meditac-ão, e permaneceu de êle não nos ouve ma:s, não nos vê mais!
olhos fixos. b~mcanclo maquinalmente com uma faca. - Vamos ao seu atelier - p-opôs o rapaz, maravilhado.
......;_ .Ei-_lo em conversação com o seu espírito/ - disse Porbus - Oh! o velho ret~e soube defer.der-lhe a entrada. Seus te-
em voz baixa. souros estão por demais bem guardados para que possamos che(Tar
• r • A_o· ouvir tais palavras, Nicolas Poussin sentiu-se sob a i~- até êles. Não esperei tua opinião e tua fantasia para tentar° o
:flu~ncia de uma rnexplicável curios:dade de artista. Aquêle ancião -assalto do mistério.
_de _olhos brancos. ~tento e estúpido. que se tornara para êle mais do Há, então. um mistério?
.JI
,que um hom"m, a~•g-urou-se-lhe um gênio fantá~·tico que vivesse nurna t
--~~fera desq.>1~hecida. flle cle~pe; tava-lhe m:1 idéias confusas ria 15) Orf1'11: !l('rsonagMTI mitológica, músico de extraordinário talento.
! 111•1.ª·. O fenomeno m~ral dessa espéc.:ie de fascinação não pode ser •Com sua lira c-omovia 1·ão só as pessoas vivas, mas as feras e :ité "'~
obj ··tos :nanimados. Tendo sua espôsa a ninfa Eurídice, sido mord.i-la por
· :~. 1o. tanto como nao
. .,,e11,111c •. .o 1>o<-e
-' ser: a emoçao
- prnvocada por uma uma c-ohra nó pré,prio d a das núpc-ias, Orf•.·u desc('U ao Inferno e c<nn
1
:~'. ~ªº, que lembre a patna no coração de um exilado. O desprêzo os acentos de sua lira c-ornunu as di vimlarles infernais. Êstes prometeram-
lhe ~evolvl'r a cspô,a, Que tlt-\"ia segui-lo até a terra, contanto q1·e ele não
H) Pigmclião: ver a nota 144 d~ A !'ele de O,ragro. ..S~ v1_r .. sse ant ··s <lc lá che)!arun. ~las Orfeu não soube dominar a cur 19-
tadade, virou-se e \"iu Eurhlil:e pela última vez.
--
1
ESTUDOS PILOSÓFICO S A OBJtA-PJU.lfA IGNORADA 403

Sim - respondeu Porbus. - O velho Frenhofer foi o único manhã tive confiança em mim I Posso ser um grande hqmem 1
discípulo que Mabuse quis ter. Tendo-se tornado amigo dêlc, seu Crê, Gillette, seremos ricos, felizes! Há ouro nesses pincéis ..•
salvador, seu pai, Frenhofer sacrificou a maior aparte. de seus te- Mas calou-se de repente. Seu rosto grave e vigoroso perdeu
souros para satisfazer as paixões de Mabuse ; em troca, este legou-lhe sua expressão de alegria, quando comparou a imensidão das suas
o segrêdo do relêvo, o poder de dar às figuras essa vida cxtraorcli- esperanças com a mediocridade de seus recursos. As paredes esta-
nária, essa flor de natureza, nosso eterno desespêro, mas da qual êle vam cobertas de simples papéis cheios de esboços a lápis. N~o
wss4ía tão bem a feitura, que um dia, tendo vendido e bebi~o 0 possuía senão quatro telas próprias. As tintas estavam então mm.to
«iemasco de flores com o qual devia vestir-se por ocasião da entrada caras, e o pobre rapaz via sua paleta pouco mais ou °!en<!s -yazia.
d~ Carlos Quinto, êle acompanhou seu senhor com um vestuário de No seio dessa miséria, êle possuía e sentia riquezas mcnve~s no
papel pintado de damasco. O brilho particular da fazenda do traj~ coração, e a superabundânc ia de um gênio devorador. Trazido a
de Mabuse surpreendeu o imperador, o qual, querendo dirigir um Paris por um de seus amigos, gentil-homem, ou talvez pelo seu
cumprimento ao protetor do velho ébrio, descob1 iu a intrujice. Fre- próprio talento, êle ali veio encontrar subitamente uma amante, uma
ahof er ê um homem apaixonado pela nossa arte, que vê mais acima dessas almas nobres e genernsas que vêm sofrer junto a um grande
~ mais longe do que os outros pintores. ~le meditou profunda- homem, partilham seus trabalhos e se esforçam por compreend:r-I ~es
men:e sôbre as côres, sôbre a verdade absoluta da linha ; mas, à os caprichos; forte para a miséria e o amor, como ?utros. ~~o m-
fôrça de pesquisas, chegou mesmo a duvidar do objeto delas. Nos trépidos para usar o luxo e fazer ostentação de sua msens1b1hclade.
seus momentos de desespêro, êle acha que o desenho não existe ~ O sorriso que errava nos lábios de Gillette dourava aquêle sótão e
que com linhas não se podem reproduzir senão figuras geométricas; rivalizava com o brilho do céu. O sol nem sempre brilhava, ao
o que ultrapassa a verdade, porquanto com a linha e o prêto, que não passo que ela sempre estava ali, interiorizada na sua paixão, prêsa
é uma côr, pode-se fazer uma figura; o que prova que a nossa arte à sua felicidade, ao seu S<Jfrimento, conwlando o gênio que trans-
~t como a natureza, composta de uma infinidade de elementos: o
bordava no amor antes de se apoderar da arte.
desenho dá o esqueleto, a côr é a vida, mas a vida sem o esqueleto - Ouve, Gillette, vem.
~ um~ coisa mais incompleta do que o esqueleto sem a vida. E~-
A obediente e alegre moça saltou sôbre os joelhos do pintor.
fim, há alguma coisa mais verdadeira do que tudo isto, e é que Era ela tôda graça, tôda beleza, linda como uma primavera, ornada
a prática e a observação são tudo num pintor, e qqe, se o raciocínio com tôdas as riquezas femininas e iluminando-as com o fogo de ull13
e a poesia se malquistam com os pincéis, chega-se à dúvida como o bela alma.
- Oh! Deus! - exclamou êlc jamais me atreverei a
Telhote, que é tão louco quanto pintor. Pintor sublime, êle teve a
desgrac,a de nascer rico, o que lhe permitiu divagar; não o imite 1 dizer-lhe ..•
- Um segrêdo? - perguntou ela quero sabê-lo.
Trabalhe! os pintores só devem meditar com o pincel na mão.
Poussin permaneceu pensativo.
- Nós penetraremos lá ! - exclamou Poussin, que não ouvia - Fala de uma vez.
mais Porbus e de mais nada duvidava. Gillette,. , . pobre coração amado !
Porbus sorriu ante o entusiasmo do jovem desconhecido, e - Oh! queres alguma coisa de mim?
scpar-0u-se dêle convidando-o a que o fôsse visitar. - Sim.
Nicolas Poussin voltou a passos lentos para a rua de la Harpe, - Se queres que eu pose ainda para ti, como no outro dia.
e ulLrapassou sem se dar conta a modesta hospedaria onde se alojava. replicou ela com um arzinho amuado - jamais consentirei em
Suuindo com inq~ieta celeridade sua escada miserável, chegou a um tal, porque nesses momentos teus olhos não me dizem mais nada.
qu~rto no alto, situado sob um telhado com trapeira, simples e li- Não pensas mais em mim, e contudo me olhas.
ç-e1ra cobertura das casas da velha Paris. Junto à única e sombria Preferirias ver-me copiando uma outra mulher?
lanela daquele quarto, estava uma moça, a qual, ao ruído da porta, - Talvez - disse ela - se fôsse bem feia.
ergueu~se subitamente por um impulso de amor; reconhecera o pintor - Pois bem - replicou Poussin, em tom seno - se, per.a
J)élo modo com que êle movera o trinco. minha glória futura, se, para me tornar um grande pintor, {õsse
- Que tens? - perguntou-lhe. preciso ires posar para outro?
- Tenho ... , tenho ... - exclamou êle sufocado de gôzo - Queres pôr-me à prova - respondeu ela. - Sabes perfei-
que me senti pintor! Até agora tinha duvidado de mim, mas esta tamente que eu não iria.
404 ESTUDOS FILOSÓFICOS
A OBRA-PRIMA ICNORADA 405
Pouss:n inclinou a cabeça sôbre o peito, c-01110 um homem que
sucun:be a u111a alegria ou a uma dor fo. te dema:s para a sua al111a. II
- Ouve - disse ela puxando 1-'oussin pela manga de seu biu.1o
»urrado - eu te disse, Nick, que C:aria 111i11!ia vida por ti; mas CATARINA LESCAULT
nunca te pr-0111eti renunciar ao meu amor, e114uanto vivesse.
- Renundar? - exclamou o jovem arti:.ta. rr~ n;ieses depois do encontro de Poussin e_ T'orb~~• êste foi
- Se eu me mostrasse assim a um ou~ro, tu não me amarias visitar mestre F t enhofer. O anriiio estava entao suJe1to a um
mais, e eu n:esma me acharia indigna de ti. Obedecer aos teus dêsses d·es~oimos profundos e espontâneos cuja causa, se d~vem?s dar
cavrichos não é uma coisa natu:al e simples? Embora não queirà, crédito a~s matemáticos da medic:na, re~icle numa má dtgestao, no
sinto-me feliz e mesmo orgulhosa por fazer tua vontade querida. vento, no calor, ou em alguma inchação d·1s hipocõndrios; e, segun1o
l\las para um outro, Deus 111e livre! os espiritualis:as, na imperfeição da nossa n?tt,treza mo~al. O velh~te
- Perdoa, minha Gillette - dis:,e o pintor ajoelhando-se aos pés pura e simplesmente se cansara em dar a uluma demao no seu m,s-
dela. - Preiiro ser a111ado a ser glorioso. Pa:a 111i111, és mais te: ioso quadro. Estava preguiçosamente sentad~ numa vasta. pol-
Leia cio que a fortuna e as honrarias. Vai, at1ra fora meus pincéis, trona de carvalho eEculpido. forrada de c-0uro preto; e, sem sair de
gue;ma êsses esboços. Enganei-me. Minha vocação é amar-te. Não sua atitude melancólica, dirigiu a Porbus o olhar de um homem que
sou um pint-0r, sou um amoroso. Morram a a; te e todos os seus se instalara no seu tédio.
segredos! _ E então mestre - perguntou-lhe Porbus o ultram_ar
' Ela admirava-o, feliz, seduzida. Ela reinava, sentia insti11tiva- que foi busp.r :m Bruges não era bom? S~rá que não. so1;1~e mis-
men:e que as artes eram esquecidas por ela, e atiradas a seus pés turar nosso novo branco? Seu óleo era ruun, ou os pmce1s eram
como um grão de incenso. teimosos?
- Entretanto, trata-se apenas de um ancião - insistiu Pous- _ Ai de mim! - exclitmou o ancião - duran~e um momento
sim. - .Rle não po<...erá ver em ti senão a mulher. Tu és tão a~:-editei que minha obra estivesse concluid_a; mas com ~erte~a. me
perfeita! enganei ,nalguns detalhes. e não sossegarei enquanto ~ao, dtss'.p:1r
- É preciso amar muito - exclamou ela, pronta a sac:-ificar minhas dúvidas. Estou decidido a viajar e vou à Turquia, a Grec1a,
seus escrúpulos de amor a fim de recompensar seu amante por tudos à Ásia para procurar por lá um modêlo e c?mpara~ meu quadr? com
os sa..:ri1icios que êle lhe fazia. - Mas - acrescentou - is~o .alguns nus... É possível que eu tenha la e~ c1_ma - contmuou,
seria perder-me. Ah I perder-me por ti. . . Sin1, seria uma coisa esboçando um sorri ·o de satisfação . - a p·opna natureza. Por
beliss.ma ! mas tu me esqu~erás. Oh! que mau pensamento êssP. vêzes, quase lenho mêdo de que um sopro despe.te aquela mulher e
que tiveste l que ela desapareça. .
- Tive-o e te amo - disse êle com uma espécie de con:rição. Depois, ergueu-se de reJ)E'nte, como para partir.
Mas então serei um infame? - Oh! oh! - respondeu Porbus - chego a tempo para
Consultemos o velho }lardouin - propôs ela. poupar-lhe as despesas e as fadigas da viagem. .
- Oh! não; fique isso em segrêdo entre nós dois. - Como assim? - pe:-guntou Frenhofer, admirado.
- Pois Lem, irei; mas que não estejas presente - disse ela. - O jovem Poussin é amado por uma mulher cuja incompará~et
- Fica na po: ta, armado com o teu punhal ; se grito, entra e mata beleza não tem a menor imperfeição. t.las, meu caro mestre, se _ele
o pintor. consente em emprestar-lha, se,á preciso pelo menos que. nos deixe
Não vendo mais do que sua arte, Poussin estre;tou Gillette em ver sua tela. .
seus braços. O ancião permaneceu de pé, imóvel, num estado de perfeita
- .Êle não me ama ma:s ! - pensou Gillette, quando ficou só. estupidez.
Já estava arrepend da da sua resolu, ão. Mas logo foi prêsa _ Como! - exclamou êle, por fim. dolorosamente - mostrar
de um pavor mais c: uel do que seu arrependimento; esforçou-se em minha cr;atura, minha espôsa? rasgar o véu sob o. qual cas~an~e~ite
repelir um pen,,amento horrível que se erguia em seu co a ão. Jul- enco1)ri• 11~1"nha feli· ~,.,·"··
-'~de?
• · Mas
, isso
· seria uma. horr1vel
• prost1tmçao
· · 11
gava já estar amando n:enos o pintor por suspeitar ser êle menos Faz clez anos que vivo com essa nm)he:-. ela e mmha. s<;> ;'m~ha, e a
estimável do -1ue antes. me ama. n""a-0 111e sor·• iu a cada. pmcelada
. que
• lhe de, . liEla• tem
uma alma, a alma' com que a dotet. Ela coraria se outros o 10s que
,40ô E S TUDO h FILOSÓ F ICOS
A OBJtA-PRllfA lGNOXADA w
não os meus a fixassem. Mostrá-la l mas qual é o marido, o amante
suficientemente vil para levar sua mulher à desonra? Quando fazes Pois bem - disse Porbus - não falemos mais nisso. Mas,
um quadro para a côrte, não pões nêle tôda a tua alma, não ~des antes do senhor achar, mesmo na Ásia, uma mulher tão bela. tão
aos cortesãos mais do q4e manequins coloridos. Minha pintura não perfeita como esta de que lhe fálo, morrerá talvez sem ter concluído
é uma pintura, é um sentimento, uma paixão I Nascida na minha seu quadro.
oficina, ela aí deve permanecer virgem e não pode sair senão vestida. - Oh I êle está acabado - disse Frenhofer. - Quem o visse,
A poesia e as mulheres só se entregam nuas aos seus amantes t julgaria estar vendo uma mulher deitada num leito de veludo, velada
Possuímos nós o modêlo de Rafael, a Angélica de Ariosto, a Bea- por cortinas. Junto a ela uma tripeça de ouro exala perfumes.
-triz do Dante ? Não ! não lhes vemos senão as formas. Pois bem Ficarias tentado a agarrar as borlas dos cordões que retêm as
a obra que tenho lá em cima trancada a ferrôlho é uma exceção n~ cortinas, e te pareceria ver o seio de Catarina Lescault, uma bela
nossa arte. Não é uma tela, é uma mulher! uma mulher com a cortesã chamada Belle N oiseuse, mover-se com a respiração. En-
qual choro, rio, converso, penso. Queres que repentinamente eu tretanto, eu quisera ter certeza ...
abandone uma felicidade de dez anos como se atira uma capa; que - Vá pois para a Ásia - respondeu Porbus, ao perceber uma
repentinamente eu deixe de ser pai, amante e <leus? Essa mulher certa hesitação no olhar de Frenhofer.
não é uma criatura, é uma criação. Que venha o t.eu rapaz, eu lhe E Porbus de_u alguns passos em direção à porta da sala.
darei meus tesouros, quadros de Correggio, 16 de Miguel Ãngelo, de Nesse momento, Gillette e Nicolau Poussin tinham chegado
Ticiano, beijarei as pegadas de seus passos na poeira; mas fazer junto à residência de Frenhofer. Quando a moça estava a ponto de
dêle meu rival? opróbrio sôbre mim! Ah ! ah ! sou mais amante entrar, soltou o .bra<,10 do pintor, e recuou como se a tivesse invadido
ainda do que pintor. Sim, terei fôrças para queimar a min'h a Bel/e algum súb:to pressentimento.
N oiseusc ao dar o último suspiro; mas fazê-Ia suportar o olhar de . .- Mas afinal, que venho eu fazer aqui? - perguntou ao amante
um homem, ~e um rapaz, de um pintor? não, não! Mataria no dia com um som de voz profundo e olhando-o fixamente.
seguinte aquêle que a tivesse poluído com um olhar! Eu te mataria - Gillette, d eixei-te senhora de tua vontade e quero obedecer-tP.
agora mesmo, a ti, que és meu amigo, se não a saudasses de joelhos! em tudo. Tu és minha consciência e minha glória. Volta para casa;
Queres agora que eu submeta meu ídolo às frias miradas e às eu serei mais fel iz, talvez, do que se tu . ..
críticas estúpidas dos imbecis? Ah! o amor é um mistério, qu~ só - Pertenço-me, acaso, quando me falas assim? Oh! não, não
tem vida no func1o dos corações, e tudo está perdido, quando um sou senão uma criança .. . Vamos - acrescen~ou, parecendo fazer
homem diz, mesmo ao seu amigo : "Aí está a mulher que amo !'' um esfôrço violento - se nosso amor morrer e se puser no moeú
O ancião parecia ter remoçado; seus olhos tinham brilho e coração um infindável arrependimento, não será tua celebridade o
tinham vida; suas faces pálidas estavam matizadas de um vermelho preço da minha obediência-"3"os· teus desejos? Entremos, será ainda
viv?, e suas mãos tremiam. Por,bus, esp'antado com a violência viver o estar sempre como uma recordação na tua paleta.
apaixonada com que áquelas palavras foram proferidas, não sabia Ao abrirem a porta da casa, os dois amantes se encontraram
o que responder a um sentimento tão novo corno profundo. Frenho- com Porbus, o qual, surpreendido pela beleza de Gillette, cujos olhos
f er estava no uso da razão ou louco? Estaria êle subjugado por uma estavam naquele momento rasos de lágrimas, segurou-a tôda trêmula
f~ntasia de ar!jsta, ou as idéias que êle exprimira procederiam dêsse e, levando-a ante o ancião, disse-lhe:
singular fanatismo que se produz em nós pela criação laboriosa de - Veja, não vale ela ~ôdas as obras-primas do mundo?
u~a _grande obra? Poder-se-ia esperar transigir um dia com aquela Frenhofer estremeceu. Gillette ali estava, na atitude ingênuà e
pa1xao estranha ? simples de uma jovem georg iana inocente e medrosa, raptada por
Empolgado por '!:odos êsses pensamentos, Por bus disse ab ancião: bandidos e apresentada a a lgum merca<lor de escravos. Um pudico
~ Mas não é uma mulher por outra mn)her? Não ent~ega rubor co:."ava seu rosto; ela baixava os olhos ; as mãos pendiam aos
Poussm sua amante aos olhares do senhor? · lados, as fôrças pareciam abandoná-la, e lágrimas protestavam contra
-:-, Que a~ante? - respondeu Frenhofer. •- ·cedo ou tarde ela a violência feita ao seu pudor. Nesse momento, Poussin, desesperado
o traira. A mmha me será sempre fiel J por ter tirado do sótão aquêle belo tesouro, amaldiçoou-se a si próprio.
Tornou-se mais amante do que artista, e mil escrúpulos torturaram-lhe
16) Correggio: ver a nota 34 de A Pel, d, On!lgro. o coracão quando viu os olhos rejuvenescidos do ancião, o qual, por
um hábito d e pintor, despiu, por assim dizer, aquela m oça, adivi-
4-08 ESTUDOS FILOSÓFICOS

nhando-lhe as fom1as mais secretas. Retornpu então ao feroz ciúme


r A OBRA-PRIMA IGNORADA 409

Jamais pintor, pincéis, tintas, tela e luz farão uma rival a Catarina
~o verdadeiro amor. Lescault. a bela cortesã!
- Partamos, Gillette ! - bradou. . Possuídos ele viva curiosidade, Po:-bus e Poussin rorreram para
Ante aquêle rasgo. a amante, alegre, erg,1eu os olhos para êle, o cent ~o ce uma vasta oficina coberta de pó. onde tudo estava em
viu-o, e co~reu para , eus braços. 9esordem, onde viram aqui e ali qu;;1rlros pendurados nas paredes.
- Ah! então tu me amas! - respondeu, desatando a chorar. Drt:veram-se primeiro diante de uma figura de mulher de tama11ho
Depois de ter tido a energia de fazer calar seu sofrimento, ela natural, seminua, e que os encheu de admiração.
não tinha fôrças para ocultar sua idicidade. - Oh! não se ocupem com isso - disse Frenhofer - é uma
- Oh! deixe-ma por um momento - disse o velho pintor tela que bo:-rei para estudar uma pose; êsse quadro não vale nada.
e poderá compa~á-la com a minha Catarina... Sim. consinto. Aí estão meus erros - continuou, mostrando-lhes encantadoras
No grito de Frenhofer aincla havia amor. Parecia ter faceiricc composições penduradas às paredes, à roda dêles. ·
para com seu simulacro de n~ulher, e gozar de antemão o triun ío que Ante essas palavras, Porbus e Poussin, estupefatos com aquêl~
a beleza de sua criação ia conseguir sôbre a de uma verdadeira m~a. 9esdé111 por tais obras, procu: aram o retrato anunciado, sem con-
- Não o deixe desdi-er-se - exclamou Porbus, batendo no seguir vê-lo.
ombro de Poussin. - Os frutos do amor passam depressa, os da arte - Pois bem, aí está êle ! - disse-lhes o anc:ão, cu ios cabelos
são imortais. estavam em dernrdem, cujo rosto estava inje~ado por uma exaltação
- Para êle - respondeu Gillette, olhando Poussin e Porbus sobrenatural, cujos olhos cintilavam, e que ofegava como um rapaz
atentamente - eu não serei então mais do que uma mulher? ébrio de am0r. - Ah! ah! - exclamou - não esperavam tanta
perfeição! Estão diante de uma mulher e procuram um quad ro.
Ergueu a cabeça com altivez; mas, quando, depois de dirigir um Há tanta profund:dade nessa tela, o ar é nela tão real, que não podem
olhar cintilante a Frenhofer, ela viu seu amante entretido a contem- mais distingui-lo do ar que nos cerca. O nde está a arte? perd;da,
plar outra vez o retrato que anteriormente êle tomara por um desaparecida! Eis as formas verdadeiras de uma rapariga. Não
Giorgione: lhe dei bem o colorido, a p·ec:são das linhas que parecem tenninar
- Ah! - disse ela - subamos! :Êle nunca me olhou assim. o corpo? Não é o mesmo fenômeno que nos apresentam os objetos
- ~ncião - disse Pou~sin, arrancado à sua meditação pela que estão na atmosfera como os peixes na água? Admirem como
voz de G1llette - olha esta espada. eu a mergulharei no teu coração os contornos se destacam do fundo! Não lhes parece que podem
à primeira palavra de que:xa que proferir esta moça, atearei fogo passar as mãos nesse dorso? Também, durante sete anos, estude:
á tua casa, e ninguém sairá dela. Compreendes? os efeitos da conjunção da luz e dos objetos. E êsses cabelos, não
Nicolas Poussin estava sombrio. e seu falar foi terrível. Essa os inunda a luz?... Mas, creio, da resp:rou ! . . . Vejam, êsse
atitude e sobretudo o gesto . do jovem pintor consolaram Gillette, seio! Ah! quem não o quere: ia adorar de joelhos? As carnes
que quase. o perdoou por rncrificá-!a à pintura e ao seu glorioso palpttam. Ela vai erguer-se, esperem !
futuro. Porbus e Poussin ficaram na porta do atelier, olhando em Está vendo alguma coisa? - perguntou Poussin a Porbus.
silêncio um para o out:-o. Se, a principio, o pintor de Maria EgifJcía- - Não. E você?
ca se permitiu algumas exclamações: "Ah I ela se está despindo, - Nada.
~le manda-a colocar-se em boa luz! Compara-a!", pronto calou-se Os dois pintores deixaram o velho entregue a seu êxtase, olha-
ante o aspecto de Poussin, cujo semblante estava p:-ofundamen~e ram para ver se a luz, ao cair a prumo sôbre a tela que élc lhes
~riste; e, conquanto os velhos pintores não tenham mais escrúpulos estava mostrando, não neutralizava todos os seus efeitos. Exa-
dêsses, tão mesquinhos diante da arte, êle admirou-os, de tal forma minaram então a pir.tura colocando-se à direita, à esquerda, Je
~ram ingênuos e bonitos. O rapaz estava com a mão no punho ela frente, abaixando-se e levantando-se altemati\·amente.
espada e com o ouvido quase colado à po~ta. Ambos, ,na sombra e d~ - Sim, s:m, é mesmo uma tela - dizia-lhes Frenhofer, er ga-
pé, assemelhavam-se assim a dois conspiradores à espera da hora
nando-fe com a finalidade daquele exame escrupulos0. - Olhem,
~e apunhalar um tirano.
aqui está a moldura, o cavalete, entim, aqui estão minhas tintas,
- Entrem, en:rem ! - disse o ancião, radiante de feliciclarle. · meus pincéis.
- l\linha obra está perfeita, e agora posso mostrá-la corµ orgulh~.
410 ESTUDOS FILOSÓFICOS
A OBRA-PRUilA IGNORADA 411
E apoderou-se de um pincel, que lhes apresentou num gesto - ~le é ainda mais poe4..a do que pintor - respondeu Poussin
ingênuo. gravemente.
- O velho lansquenete está divertindo-se à nossa custa - disse
- Aqui - prosseguiu Porbus, tocando a tela - acaba a nossa
Poussin, voltando para diante do pretenso quadro. - Não vejo ali arte sôbre a terra.
st-não côres con fu5amente amontoadas e contidas por uma porção
de linhas esquisitas que formam uma muralha de pintura ... - E, daí, vai perder-se no céu - disse Poussin.
- Nós nos enganamos, veja! - respondeu Porbus. - Quanto gôzo nesse pedaço de tela ! - exclamou Porbus.
Aproximando-se. perceberam num canto da tela a ponta de um O ancião, absorto, não os ouvia e sorria àquela mulher ima-
pé nu que saía daquele caos de côres, de tons. de matizes indecii:os, ginária.
espécie de bruma sem forma: n~as um pé delicioso, um pé com vida t - Mas cedo ou tarde êle se aperceberá de que não há nada
Ficaram petrifcados de admiração diante daquele fragmento escapo na sua tela ! - exclamou Poussin.
a uma incrivel, a uma lenta e pro1?ressiva destmição. Aquêle pé - Nada na minha tela! - disse Frenhofer, olhando alternati-
aparecia ali como um torso de alguma Vênus de mármore de vamente os dois pintores e seu pretenso quadro.
Paros que surgisse de entre os escombros de uma cidade incendiada.
- Que fêz você! - disse Porbus em voz baixa a Poussin.
- Há uma mulher por baixo disso! - exclamou Porbus,
faundo Poussin notar as camadas de tinta que o velho pintor O velho segurou com fôrça o braço do rapaz e disse-lhe:
SUJ>('rpusera sucessiya.mente, ao julgar que aperfeiçoava sua pintura. - Nada vês, labrego! tratante! patife! desavergonhado! Para
Os dois artistas viraram-se eêpontâneamente para Frenhofer. que pois subiste aqui? Meu bom Porbus - disse êle virando-se
comec-ando a compreender, porém de modo vago, o êxtase no qual para o pintor - será que você também se está divertindo à minha
êle vivia. custa? Responda! sou seu amigo, diga, teria eu estragado meu
- ~le está de boa-fé - disse Porbus. quadro?
- Sim, meu ami1?0 - respondeu o ancião, despertando - Porbus, indeciso, não se atreveu a falar; mas a ansiedade pin-
na arte é preciso fé. fé, e viver muito tempo com a própria ohra tada na fisionomia lívida do ancião era tão cruel, que êle apontou
para produzir semelhante c:-iação. Algumas dessas sombras custa- para a tela, dizendo:
ram-me muito trabalho. Olhe sôbre a face, ali, abaixo dos olhos, - Veja!
há uma leve penumhra que. se a ohservarem na natureza. parecer- Frenhofer contemplou seu quadro um instante e cambaleou.
lhe5-á quase intraduzível. Pois bem, julgam vocês que êsse efeito - Nada! nada! E ter trabalhado dez anos!
não me custou trabalhos inauditos para reproduzi-lo? Mas também, Sentou-se e chorou.
meu c<tro Porbus, olha atentamente para o meu trabalho, e com-
preenderás melhor o que eu te dizia sôbre o modo de tratar o - Sou pois um imbecil, um louco! não tenho nem talento.
model;,do e os contornos. Olha a luz do seio, e vê como, por uma nem capacidade! Não sou senão um homem rico que, ao caminhar,
série de retooues e de realce.t fortemente empastados, conse~ui agar- nada mais faz do que caminhar! Não terei, pois, produzido nadai
rar a verdadeira luz e combiná-la com a alvura lustrosa dos tons Contemplou a tela através de suas lágrimas, ergueu-se subita-
iluminados: e, como por um trabalho oposto, apagando as saliências mente com orgulho, e lançou aos dois pintores um olhar fulgurante :
e o grão da J)asta, pude, à fôrça de amaciar o contômo da minha - Pelo sangue, pelo corpo, pela cabeça de Cristo! vocês são
figura, mergulh.ida nos semi-tons, suprimir até a idéia de desenho uns invejosos que me querem fazer crer que ela está estragada.,
e de me:os artificiais. e dar-lhe o aspecto e o próprio ondulacté> para ma roubarem! Eu vejo-a l - gritou, - ela é maravilhosa-
da natureza. Aproximem-!'e e verão melhor êsse trahalho. D~ mente bela ...
longe, i-le deiaparece. Vejam! ali, creio, êle é bem visível.
Naquele momento Poussin ouviu o pranto de Gillette, esque-
E com a ponta do pincel designava aos dois pintores um bloco
de côr dara. cida num canto.
Porhus bateu no ombro do ancião, virando-se para Poussin: - Que tens, meu anjo? - perguntou-lhe o pintor, voltamift
- Sabe que vemos nêle um bem grande pintor? - disse. a ser um apaixonado.

19
-
1

ESTUDOS FILOSÓFICOS

, - l\fata-me ! - disse ela. - Eu ~e~ia uma infame se te


amasse ainda, porque te defprezo . . . Admiro-te, e me causas
hurror ! An:o-te, e cre:o qu e já te o<lc=io !
Enquanto Poussin ouvia G illette, Frenhofcr rohria sua Cnta-
tnr,nn com uma sarja verde, com a séria tran riüilic't:lcle de um joa-
Jhe:ro que fechasse suas gavetali ao j11lbr.ir-se na companhia de
hábeis. ladrões. Dirigiu ;ios dois pintores 11111 olhar profundamente
di ssiniul_ado, repleto de de~p rêzo e de desconfiança , pú-los silenc:o-
sainente fora de sua ofi:ina. com uma pres:eza con\'ulsiva; depois,
à porta ele sua casa disse- lhes:
· - Adeus, meus amiguinhos.
~sse adeus gelou os dois pintores. !\o dia seguinte, Porbus,
in-riu=eto, voltou para ver Frenhofer, e souue que êle morrera à
Dulle, t1ev<>is ue ter queimado suas telas.
GAMBARA
Pari,, f n,"nro d, 18.JZ.
Tradução de Vida) de OUveira

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