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EDUCAGAO E SOCIOLOGIA com wm estudo da obra de Durkheim, pelo PROF. PAUL FAUCONNET Tradugao do PROF. LOURENGO FILHO da Universidade do Brasil 6070Z000S02 qa - oMeoy - snivaia 4 EDIGAO EDIGOES MELHORAMENTOS A985 Biblioteca / FEUSP 41702 Capitulo I A EDUCAGAO — SUA NATUREZA E FUNCAO § 1 — As definigdes da educacio; exame critico; § 2 — Definicio da edu- cagéo; § 8 — Conseqiiéncia da definicao adotada; § 4 — A funcio do Estado, em matéria de educacio; § 5 — Poder da educacio e meios da aio educativa. § 1° ~— As DEFINIGOES DA EDUCACAO — EXAME CRITICO A palavra educagdéo tem sido muilas vézes empregada em sentido demasiadamente amplo, para designar o conjunto de in- fluéncias que, sdbre a nossa inteligéncia ou sébre a nossa vontade, exercem os outros homens, ou, em seu conjunto, realiza a natureza. Ela compreende, diz Sruart Mitt, «tudo aquilo que fazemos por nés mesmos, e tudo aquilo que os outros intentam fazer com 0 fim de aproximar-nos da perfeigio de nossa natureza. Em sua mais larga acep¢o, compreende mesmo os efeitos indiretos, pro- duzidos sébre o cardter e sdbre as faculdades do homem, por coisas e instituigdes cujo fim préprio 6 inteiramente outro: pelas leis, formas de govérno, pelas artes industriais, ou ainda, por fatos fisicos independentes da vontade do homem, tais como o clima, 0 solo, a posig¢aéo geografica». Essa definig&io engloba, como se vé, fatos inteiramente diversos, que ndo devem estar reunidos num mes- mo vocibulo, sem perigo de confusio. A influéncia das coisas sébre os homens é diversa, j4 pelos processos, j& pelos resultados, da- quela que provém dos préprios homens; e a acéo dos membros de uma mesma geracao, uns sdbre outros, difere da que os adultos exercem sobre as criancas e adolescentes. E’ inicamente esta ul- tima que aqui nos interessa e, por conseqiiéncia, é para ela que convém reservar o nome de educacdo. Mas em que consiste essa influéncia toda especial? Respostas muito diversas tém sido dadas a essa pergunta. Tédas, no en- tanto, podem reduzir-se a dois tipos principais. Segundo Kant, «o fim da educagio é desenvolver, em cada individuo, tdda.a perfeigao de que éle seja capaz». Mas, que se deve entender pelo térmo perfeigéo? Perfeicao, ouve-se dizer mui- tas vézes, 6 o desenvolvimento harménico de tédas as faculdades humanas. Levar ao mais alto grau possivel todos os poderes que 26 EDUCAGAO E SOCIOLOGIA estao em nds, realizd-los téo completamente como posstvel, sem que uns prejudiquem os outros — nao sera, com efeito, o ideal supremo? Vejamos, porém, se isso 6 possivel. Se, até certo ponto, o desenvolvimento harménico 6 necessirio e desejavel, no 6 menos verdade que éle nao é integralmente realizavel; porque essa har- monia tedrica se acha em contradi¢io com outra regra da conduta humana, nio menos imperiosa: aquela que nos obriga a nos dedi- carmos a uma tarefa, restrita e especializada. Néo podemos, nem devemos nos dedicar, todos, ao mesmo género de vida; temos, se- gundo nossas aptiddes, diferentes fungdes a preencher, e sera pré- Ciso que nos coloquemos em harmonia com o trabalhb que nos in- cumbe. Nem todos somos feitos para refletir; e sera preciso que haja sempre homens de sensibilidade © homens de acao. Inversa- mente, ha necessidade de homens que tenham, como ideal do vida, 0 exercicio, e a cultura do pensamento. Ora, 0 pensamento nao pode ser desenvolvido senio isolado do movimento, senio quando 0 individuo se curve sdbre si mesmo, desviando-se da acao exterior. Dai uma primeira diferenciacéo, que nao ocorre sem ruptura de equilibrio. E a ag&o, por sua vez, como o pensamento, é sus- cetivel de tomar uma multidio de formas diversas e especiali- zadas. Tal especializagao nao exclui, sem divida, certo fundo co- mum, e, por conseguinte, certo balango de fungées tanto organicas como psiquicas, sem o qual a saude do individuo seria comprome- tida, comprometendo, ao mesmo tempo, a coesao social. Mas nao padece duvida também que a harmonia perfeita possa ser apresen- tada como fim ultimo da conduta e da educagao. io ~~~"Menos satisfatoria, ainda, 6 a definicdo ufilitaria, segundo a qual a educacao teria por objeto «fazer do individuo um instru- mento de felicidade, para si mesmo e para os seus semelhantes » (James Mini); porque a felicidade 6 coisa essencialmente subje- tiva, que cada um aprecia a seu modo. Tal férmula deixa, portanto, indeterminado o fim da educagéo, e por conseqiiéncia a propria educagdo, que fica entregue ao arbitrio individual. E’ certo que SPENCER ensaiou definir objetivamente a felicidade. Para éle, as condigdes da felicidade sao as da vida. A felicidade completa é a vida completa. Que seré necess4rio entender ai pela expressio «vida»? Se se trata unicamente da vida fisica, compreende-se. Pode-se dizer que, sem isso, a felicidade seria impossivel; ela im- plica, com efeito, certo equilibrio entre o organismo e o meio, e, uma vez que ésses dois térmos sdo dados definiveis, definivel deve ser também a relagdo. Mas isso nao acontece senio em relacao as necessidades vitais imediatas. Para o homem e, em especial, para o homem de hoje, essa vida nao 6 a vida completa. Pedi- mos-lhe alguma coisa mais que o funcionamento normal de nosso organismo. Um espirito cultivado preferira nao viver a renunciar aos prazeres da inteligéncia. Mesmo do ponto de vista material, tudo o que fér além do estritamente necessdrio escapa a toda e CAP. I — A EDUCAGAO — SUA NATUREZA E FUNGAO 27 qualquer determinacgdo. O padrao de vida minimo abaixo do qual nao consentiriamos em descer, varia infinitamente, segundo as condicgdes, o meio e 0 tempo. O que, ontem, achavamos suficiente, hoje nos parece abaixo da dignidade humana; e tudo faz crer que nossas exigéncias serao sempre crescentes. - Tocamos aqui no ponto fraco em que incorrem as definigdes apontadas. Elas partem do postulado. de que ha uma educacgao ideal, perfeita, apropriada a todos os homens, indistintamente; é ‘essa -educacdo universal a tnica que o teorista se esforca por definir. Mas, se antes de o fazer, éle considerasse a historia, nao encontraria nada em que apoiasse tal hipdtese. A educagéio tem variado infinitamente, com o tempo e o meio. Nas cidades gregas e latinas, a educacio conduzia o individuo a subordinar-se cega- mente & coletividade, a tornar-se uma coisa da sociedade. Hoje, esforga-se em fazer déle personalidade auténoma. Em Atenas, pro- curava-se formar espiritos delicados, prudentes, sutis, embebidos da graca e harmonia, capazes de gozar 0 belo e os prazeres da pura especulacao; em Roma, desejava-se especialmente que as criangas se tornassem homens de acéo, apaixonados pela gloria militar, indiferentes no que tocasse as letras e as artes. Na Idade Média, a educacio era cristd, antes de tudo; na Renascenga, toma cardter mais leigo, mais literario; nos dias de hoje, a ciéncia tende a ocupar o lugar que a arte outrora preenchia. Dir-se-4 que isso n&éo representa o ideal, ou que, se a educagio tem variado, tem sido pelo desconhecimento do que deveria ser. 0 argumento 6 insubsistente. Se a educagéo romana tivesse tido o carater de individualismo comparavel ao nosso, a cidade romana no se teria podido manter; a civilizagdo latina nao teria podido constituir-se nem, por conse- qiiéncia, a civilizacéo moderna, que dela deriva, em grande par- te. As sociedades cristés da Idade Média nao teriam podido viver se tivessem dado ao livre exame o papel de que hoje éle desfruta. Importa, pois, para esclarecimento do problema, atender a_neces- sidades inelutaveis, de que é impossivel fazer abstragdo. De que serviria imaginar uma educag&o que levasse 4 morte a sociedade que a praticasse? _ O postulado tio contestavel de uma educagaio ideal conduz a érro ainda mais grave. Se se comega por indagar qual deva ser a educagao ideal, abstracio feita das condigdes de tempo e de lugar, & porque se admite, implicitamente, que os sistemas educativos nada tém de real em si mesmos. Nao se vé néles um conjunto de atividades e de instituicdes, lentamente organizadas no tempo, soliddrias com tédas as outras instituigdes sociais, que a educacio exprime ou reflete, instituigdes essas que, por conseqiiéncia, néo podem ser mudadas & vontade, mas s6 com a estrutura mesma da sociedade. = Pode parecer que isso seja simples jogo de conceitos, uma construgio légica, apenas. Imagina-se que os homens de cada 28 EDUCAGAO E SOCIOLOGIA tempo organizam a sociedade voluntariamente, para realizar fins determinados; que, se essa organizagio nao é, por téda parte, a mesma, os povos se tém enganado, seja quanto 4 natureza dos fins que convém atingir, seja em relacéo aos meios com que tenham tentado realizar ésses objetivos. E, désse ponto de vista, os siste- mas educativos do passado aparecem como outros tantos erros, totais ou parciais. Nao devem, pois, entrar em consideracaio; nao temos de ser solidarios com os erros de observacgéo ou de légica cometidos por nossos antepassados; mas podemos e deve- mos encarar a questo, sem nos ocupar das solugdes que lhe tém sido dadas; isto 6, deixando de lado tudo o que tem sido, devemos indagar agora o que deve ser. Os ensinamentos da histéria po- dem servir, quando muito, para que pratiquemos os mesmos erros. Na verdade, porém, cada sociedade considerada em momento determinado de seu desenvolvimento, possui um sistema de. educa- ¢&o que se impée aos individuos de modo geralmente irresist{vel. E* uma ilusaio acreditar que podemos educar nossos filhos ‘como queremos. H& costumes com relacgio aos quais somos obrigados a nos conformar; se os desrespeitarmos, muito gravemente, éles se vingaréo em nossos filhos. Estes, uma vez adultos, nao estarao em estado de viver no meio de seus contemporaneos, com os quais nao encontraréo harmonia. Que éles tenham sido educados, se- gundo idéias passadistas ou futuristas, nfo importa; num caso, como noutro, nao séo de seu tempo e, por conseqiiéncia, nao es- taraéo em condigées de vida normal. Ha, pois, a cada momento, um tipo regulador de educacao, do qual néo nos podemos separar sem vivas resisténcias, e que restringem as veleidades dos dissi- dentes. Ora, os costumes e as idéias que determinaram ésse tipo, n&o fomos nds, individualmente, que os fizemos. Sio o produto da vida em comumi e exprimem suas necessidades. So mesmo, na sua maior parte, obra das geragdes passadas. Todo o passado da humanidade contribuiu para estabelecer ésse conjunto de prin- cipios, que dirigem a educagaéo de hoje; téda nossa historia ai deixou tragos, como também o deixou a historia dos povos que nos precederam. Da mesma forma, os organismos superiores tra- zem em si como que um eco de téda a evolugao biolégica de que sio o resultado. Quando se estuda historicamente a maneira pela qual se formaram e se desenvolveram os sistemas de educagao, percebe-se que éles dependem da religido, da organizacio politica, ido grau de desenvolvimento das ciéncias, do estado das indus- trias, etc. Separados de tédas essas causas histéricas, tornam-se incompreensiveis. Como, entéo, podera um individuo pretender reconstruir, pelo esférgo unico de sua reflexio, aquilo que nao é obra do pensamento individual? Ele nao se encontra em face de uma tabula rasa, sobre a qual poderia edificar o que quisesse, mas diante de realidades que n3o podem ser criadas, destruidas ou transformadas & vontade. Nao podemos agir sébre elas senao CAP. I — A EDUCAGAO — SUA NATUREZA E FUNGAO 29 na medida em que aprendemos a conhecé-las, em que sabemos qual é a sua natureza e quais as condigdes de que dependem; e nao poderemos chegar a conhecé-las, se nio nos metermos a es- tud4-las, pela observagéo, como o fisico estuda a matéria inani- mada, e 0 hiologista, os corpos vivos. : Como proceder de modo diverso? 7 Quando se quer determinar, tio-sdmente pela dialética, o que deva ser a educagio, comeca-se por fixar fins certos a tarefa de educar. Mas que é que nos permite dizer que a educacao tem tais fins ao invés de tais outros? Nao poderiamos saber, a priori, qual a funcdo da respirago ou da circulagdio no ser vivo; 36 a conhece- mos pela observacio. Que privilégio nos levaria a conhecer de outra forma a funcio educativa? Responder-se-4 quo nao ha nada mais evidente do que o seu fim: o de preparar as criangas! Mas isso seria enunciar o problema por outras palavras: nunca resol- vé-lo. Seria melhor dizer em que consiste ésse preparo, a que tende, a que necessidades humanas corresponde. Ora, no se pode res- ponder a tais indagagdes sendo comegando por observar em que ésse preparo tem consistido e a que necessidades tenha atendido, no passado. Assim, para constituir a nogao preliminar de educagiio, para determinar a coisa a que damos ésse nome, a observacao historica parece-nos indispensavel. § 2.0 — DEFINICAO DE EDUCAGAO Para definir educagao, seri preciso, pois, considerar os sis- temas educativos que ora existem, ou tenham existido, compa- ra-los, e apreender déles os caracteres comuns. O conjunto désses caracteres constituira a definigéo que procuramos. Nas consideragdes do pardgrafo anterior, j& assinalamos dois désses caracteres. Para que haja educagéio, faz-se mister que haja, em face de uma geracio de adultos, uma geragio de individuos jovens, criancas e adolescentes; e que uma agao seja exercida pela primeira, sdbre a segunda. Seria necessario definir, agora, a natureza especifica dessa influéncia de uma sobre outra geragao. Nao existe sociedade na qual o sistema de educacdo nao apre- sente o duplo aspecto: o de ser, ao. mesmo tempo, uno e multiplo. Vejamos como éle é miltiplo.1Em certo sentido, ha tantas espécies de educagio, em determinada sociedade, quantos meios diversos nela existirem. E’ ela formada de castas? A educacgdo varia de uma casta a outra; a dos «patricios» nao era a dos ple- beus; a dos bramanes nao era a dos sudras. Da mesma forma, na Idade Média, que diferenca de cultura entre o pajem, instruido em todos os segredos da cavalaria, e o vildo, que ia aprender na es- cola da paréquia, quando aprendia, parcas nogdes de calculo, canto e gramatica! Ainda hoje nao vemos que a educagéo varia com as alanans aaninia a nnm ae ragifae? A da cidade nfo 6 a do campo. 30 EDUCAGAO E SOCIOLOGIA a do burgués nao 6 a do operdrio. Dir-se-4 que esta organizagio nao 6 moralmente justificdvel, e quo nao se pode enxergar nela senfo um defeito, remanescente de outras épocas, e destinado a desaparecer. A resposta a esta objecdo 6 simples. Claro esté que a educagao das criangas nfo devia depender do acaso, que as féz nascer aqui ou acola, déstes pais e nio daqueles. Mas, ainda que a consciéncia moral de nosso tempo tivesse recebido, acérea désse ponto, a satisfagio que ela espera, ainda assim a educacdo nao se tornaria mais uniforme e igualitaria. E, dado mesmo que a vida de cada crianga nao fdsse, em grande parte, predeterminada pela hereditariedade, a diversidade moral das profissdes nao deixaria de acarrelar, como conseqiiéncia, grande diversidade pedagogica. Cada profissdo, constitui um meio sui-generis, que reclama aptidées par- ticulares e conhecimentos especiais, meio que é regido por certas idéias, certos usos, certas maneiras de ver as coisas; e, como a crianga deve ser preparada em vista de certa func&io, a que serd chamada a preencher, a educagio nao pode sera mesma, desde certa idade, para todos os individuos. Eis por que vemos, em todos os paises civilizados, a tendéncia que ela manifesta para ser, cada vez mais, diversificada e especializada; e essa especializacio, dia a dia, se toma mais precoce. A heterogeneidade, que assim se pro- duz, nio repousa, como aquela de que hA pouco tratamos, sdbre injustas desigualdades; todavia, nao 6 menor. Para encontrar um tipo de educagSo absolutamente homogéneo e igualitario, seria pre- ciso remontar até as sociedades pré-histéricas, no seio das quais ndo existisse nenhuma diferenciagdo. Devemos compreender, porém, que tal espécie de sociedade nao representa senio um momento imaginario na histéria da humanidade. Mas, qualquer que seja a importancia déstes sistemas espe- ciais de educagao, nao constituem éles téda a” educagio. Pode-se dizer até que nio se bastam a si mesmos; por toda parte, onde sejam observados, nio divergem, uns dos outros, sen&o a partir de certo ponto, para além do qual todos se confundem. Repousam assim sobre uma base comum. Nao ha povo em que nao oxista certo numero de idéias, de sentinientos e de prAticas que a educa- gao deve inculcar a t6das as criangas, indistintamente, seja qual for a categoria social a que pertencam. Mesmo onde a sociedade esteja dividida em castas fechadas, h&4 sempre uma religido comum a todas, e, por conseguinte, principios de cultura religiosa fun- damentais, que serao os mesmos para téda a gente. Se cada casta, cada familia tem seus deuses especiais, ha divindades gerais que sdo reconhecidas por todos e que todas as criangas aprendem a adorar. E, como tais divindades encarnam e personificam certos sentimentos, certas maneiras de conceber o mundo e a vida, ninguém pode ser iniciado no culto de cada uma, sem adquirir, no mesmo passo, tédas as espécies de habitos mentais que vao além da vida puramente religiosa. Igualmente, na Idade Média, servos, CAP. I — A EDUCAGAO — SUA NATUREZA E FUNCAO 31 viloes, burgueses © nobres, recebiam todos a mesma educacdo crista. Se assim 6, nas sociedades em que a diversidade intelectual e moral atingiu ésse grau de contraste, por mais forte razdo o ser nos povos mais avangados, em que as classes, embora distintas, estio separadas, por abismos menos profundos. Mesmo onde ésses elementos comuns de téda a educacaio néo se exprimem sendo sob a forma de simbolos religiosos, nio deixam éles de existir. No decurso da histéria, constituiu-se todo um con- junto de idéias acérca da natureza humana, sdbre a importarcia respéctiva de nossas diversas faculdades, sdbre o direito © sdbre o dever, sdbre a sociedade, o individuo, o progresso, a ciéncia, a ar- te, etc., idéias essas que sio a base mesma do espirito nacional; toda © qualquer educacao, a do rico © a do pobre, a que conduz as car- reiras liberais, como a que prepara para as fungdes industriais, tem por objeto fixar essas idéias na consciéncia dos educandos. Resulta désses fatos que cada sociedade faz do homem certo ideal, tanto do ponto de vista intelectual, quanto do fisico e moral; que ésse ideal 6, até certo ponto, o mesmo para todos os cidaddos; que a partir désse ponto éle se diferenga, porém, segundo os meios particulares que téda sociedade encerra em sua complexidade. Esse ideal, ao mesmo tempo, uno e diverso, 6 que constitui a parte basica da educagdo. Ble tem por fungdo suscitar na crianga: 1) om certo numero de estados fisicos e mentais, que a sociedade, a que pertenga, considera como indispensdveis a todos os seus membros; 2) certos estados fisicos e mentais, que o grupo social particular (casta, classe, familia, profissio) considera igualmente indispen- saveis a todos que o formam. A sociedade, em seu conjunto, e cada meio social, em particular 6 que determinam éste ideal, a ser realizado. A sociedade nao poderia existir sem que houvesse em seus membros certa homogeneidade: a educacao perpetua e reforga essa homogeneidade, fixando de antemio na alma da crianga certas simi- litudes essenciais, reclamadas pela vida coletiva. Por outro lado, sem uma tal ou qual diversificagao, toda cooperacao seria impossivel: a educacio assegura a persisténcia desta diversidade necessaria, diversificando-se ela mesma e permitindo as especializagdes. Se a sociedade tiver chegado a um grau de desenvolvimento em que as antigas divisdes, em castas e em classes nio possam mais manter-se, ela prescreveré uma educacdo mais igualitiria, como basica. Se, ao mesmo tempo, o trabalho se especializar, ela provocaré nas criangas, sdbre um primeiro fundo de idéias e de sentimentos co- muns, mais rica diversidade de aptiddes profissionais. Se o grupo social viver em estado permanente de guerra com sociedades vizi- nhas, ela se esforcara por formar espiritos fortemente nacionalis- tas; se a concorréncia internacional tomar forma mais pacifica, o tipo que procuraré realizar sera mais geral e mais humano. 3 Educagéo e Sociologia 32 EDUCAGAO E SOCIOLOGIA A educagio nao é, pois, para a sociedade, sendo o meio pelo qual ela prepara, no intimo das criangas, as condigoes essenciais da prépria existéncia. Mais adiante, veremos como ao individuo, de modo direto, interessara submeter-se a essas exigéncias. Por ora, chegamos a formula seguinte: A educagéo 6 a acao exercida, pelas geracées adultas, sobre as geracées que nao se encontrem ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver, na crianga, certo mimero de estados fisicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade politica, no seu conjunto, e pelo meio especial a que @ erianga, par- ticularmente, se destine. { § 8.° — CoNSEQUENCIA DA DEFINIGAO PRECEDENTE: CARATER SOCIAL DA EDUCAGKO Da definigiio do paragrafo precedente, conclui-se que a edu- cagio consiste numa socializagéo metédica das novas geragées. Em cada um de nds, ja 0 vimos, pode-se dizer que existem dois séres. Um, constitufdo de todos os estados mentais que no se re- lacionam sen%o conosco mesmo e com os acontecimentos de nossa vida pessoal; é o que se poderia chamar de ser individual. 0 outro 6 um sistema de idéias, sentimentos e de habitos, que exprimem em nés, nao a nossa personalidade, mas 0 grupo ou OS grupos diferentes de que fazemos parte; tais séo as crengas reli- giosas, as crengas e as praticas morais, as tradigdes nacionais ou profissionais, as opinides coletivas de téda a espécie. Seu conjunto forma o ser social. Constituir ésse ser em cada um de nés — tal é o fim da educagao. E’ por ai, alias, que melhor se revela a importancia e a fe-__ cundidade do trabalho educativo. Na realidade, ésse ser social nao nasce com o homem, nao se apresenta na constitui¢éo humana primitiva, como também nao resulta de nenhum desenvolvimento esponténeo. Espontaneamente, 0 homem nao se submeteria & au- toridade politica; nao respeitaria a disciplina moral, néo se devo- taria, nio se sacrificaria. Nada h& em nossa natureza congénila que nos predisponha a tornar-nos, necessariamente, servidores de divindades, ou de emblemas simbdlicos da sociedade, que nos leve render-lhes culto, a nos privarmos em seu proveito ou em sua honra. Foi a prépria sociedade, na medida de sua formagao e con- solidagio, que tirou de seu proprio seio essas grandes forcas mo- rais, diante das quais 0 homem sente a sua fraqueza e inferioridade. Ora, exclusio feita de vagas ¢ incertas tendéncias sociais atribuidas a hereditariedade, ao entrar na vida, a crianga nao traz mais do que a sua natureza de individuo. A sociedade se encontra, a cada nova geracio, como que em face de uma tabula rasa, sdbre a qual é preciso construir quase tudo de novo. E’ preciso que, pelos meios mais rdpidos, ela agregue ao ser egoista e social, que acaba CAP. 1 ~ A EDUCAGAO — SUA NATUREZA E FUNGAO 33 de nascer, uma natureza capaz de vida moral e social. Eis ai a obra da educaciio. Basta enuncid-la, dessa forma, para que perce-___ bamos toda a grandeza que encerra. A educagéio no se limita a desenvolver o organismo, no sentido indicado pela natureza, ou a tornar tangiveis os germes, ainda n&o revelados, embora & procura de oportunidade para isso. Ela cria no homem um ser novo. Essa virtude criadora 6, alias, o apandgio da educacéo humana. De espécie muito diversa é a que recebem os animais, se é que se pode dar o nome de educacao ao treinamento progressivo a que so submetidos por seus ascendentes, nalgumas espécies. Nos ani- mais, pode-se apressar 0 desenvolvimento de certos instintos ador- mecidos, mas nunca inicid-los numa vida inteiramente nova. O treinamento pode facilitar o trabalho de fungdes naturais, mas nao cria nada de novo. Instruido por sua mie, talvez o passarinho possa voar mais cedo, ou fazer seu ninho, mas pouco aprende além do que poderia descobrir por si mesmo. E” que os animais, ou vivem fora de qualquer estado social, ou formam estados muito rudimentares, que funcionam gracas a mecanismos instintivos, perfeitamente constituidos desde o nascimento de cada animal. A educagdo nao poder, nesse caso, ajuntar nada de essencial & na- tureza, porquanto ela parece bastar & vida do grupo quanto basta a do individuo. No homem, ao contrario, as miltiplas aptiddes que a vida social supde, muito mais complexas, nio podem organizar-se em nossos tecidos, ai se materializando sob a forma de predispo- sigdes organicas. Segue-se que elas nado podem transmitir-se de uma geragdo a outra, por meio da hereditariedade. E* pela educagao que essa transmissao se da (1). Entretanto — podem objetar-nos — se realmente para as qua- lidades morais é assim, porquanto elas nos vém limitar a atividade, e por isso mesmo sé podem ser suscitadas por uma agdo vinda de fora, — nao hA outras qualidades que todo homem se interessa em adquirir e esponténeamente procura possuir? Sim; tais sio as diversas qualidades da inteligéncia que melhor lhe permitem adap- tar a conduta & natureza das coisas. Tais sio, também, as quali- dades fisicas, e tudo quanto contribua para a satide e vigor do organismo. Para essas, pelo menos, parece que a educagéo niio faz sendo ir adiante do que a natureza conseguiria por si mesma; mas ainda assim, para ésse estado de perfeicao relativa, a socie- dade concorre muito: apressa aquilo que, sem o seu concurso, sé muito lentamente se daria. Mas o que demonstra claramente, apesar das aparéncias, que aqui, como alhures, a_educacio_satisfaz, antes de tudo, a neces- sidades sociais, é que existem sociedades em que ésses predicados (1) “A Hereditariedade em Face da Educagao”, Dr. Otévio Domingues. 84 EDUCAGAO E SOCIOLOGIA no sio cultivados; e mais, que éles tem sido muito diversamente compreendidos, segundo cada grupo social considerado. E’ preciso saber, por exemplo, que as vantagens duma sélida cultura intelectual nem sempre foram reconhecidas por todos os povos. A ciéncia, 0 espirito critico, que hoje tio alto colocamos, du- rante muito tempo foram tidos como perigosos. Nao conhecemos o dito que proclama bem-aventurados os pobres de espirito? Nao devemos acreditar que esta indiferenca para o saber tenha sido artificialmente imposta aos homens, com violagdo de sua propria natureza. Eles nao possuem por si mesmos o apetite instintivo da ciéncia, como tantas vézes e tao arbitrariamente, se tem afir- mado. Os homens nao desejam a ciéncia senéo na medida em que a experiéncia hes tenha demonstrado que nao podem passar sem ela, Ora, no que concerne a vida individual, ela nado é necessaria. Como Rousseau ja dizia, para satisfazer as necessidades da vida, a sensacio, a experiéncia e o instinto podem bastar, como bastam aos animais. Se o homem ndo conhecesse outras necessidades sendo essas, muito simples, que tém raizes em sua prdpria constituigéo individual, ndo se teria pdsto no encalco da ciéncia, tanto mais que ela n&éo pode ser adquirida senio apés duros e penosos esforgos. O homem nfo veio a conhecer a séde do saber senéo quando a sociedade lha despertou; e a sociedade nao lha despertou sendo quando sentiu que seria necessdrio fazé-lo. Esse momento veio quando a vida social, sob tédas as formas, se tornou demasiado complexa para poder funcionar de outro modo que nao fésse pelo pensamento refletido, isto 6, pelo pensamento esclarecido pela ciéncia. Entio, a cultura cientifica tornou-se indispensavel; e é essa a razio por que a sociedade a reclama de seus membros © a impde a todos, como um dever. Originariamente, porém, enquanto a organizacao social era muito simples, muito pouco variada, sem- pre igual a si mesma, a tradigdo cega bastava, como basta o ins- tinto para o animal. Nesse estado, 0 pensamento e@ o <«livre-exa- me» eram intteis, se n&o prejudiciais, porque ameagavam a tra- dig&o. Eis por que eram proscritos. : Da-se 0 mesmo com as qualidades fisicas. Se o estado do meio social inclina a consciéncia publica para o ascetismo, a educacgio fisica sera relegada a plano secundario. E* o que se produziu, em parte, nas escolas da Idade Média; e ésse ascetismo era necessirio, porque a unica maneira de adaptag’o as consepgdes da época era té-lo em aprégo. Tal seja a corrente da opinido, a educagao fisica sera de uma ou de outra espécie. Em Esparta, tinha por objeto, especialmente, enrijar os membros para resistir & fadiga; em Atenas, era um meio de tornar os corpos belos 4 vista; nos tempos da cavalaria, pediam-se-lhe guerreiros Ageis e flexiveis; em nossos tempos, nao tem sendo um fim higiénico, preocupando-se, especialmente, em corrigir os efeitos danosos da cultura intelectual muito intensa. Désse modo, mesmo quando as qualidades parecam CAP. I — A EDUCAGAO — SUA NATUREZA E FUNGAO 85 & primeira vista espontaneamente desejadas pelos individuos, re- fletem ja as exigéncias do meio social que as prescreve como neces- sarias. Estamos agora em condigdes de esclarecer uma duvida que todo o trecho anterior sugere. Se os individuos, como mostramos, ~ sé agem segundo as necessidades sociais, parece que a sociedade impde homens insuportavel tirania. Na realidade, porém, élés mesmos 840 interessados nessa submissio; porque 0 ser novo que a acao coletiva, por intermédio da educagao, assim edifica, cm cada um de nés, representa o que ha de melhor no homem, 0 que ha em nés de propriamente humano. Na verdade, 0 homem nao é humano sendo porque vive em sociedade. FE’ diffcil, numa sé ligéo, demonstrar com rigor esta proposicao tio geral e tio importante, resumo dos trabalhos da~ sociologia contemporanea. Mas posso afirmar que essa proposicao 6 cada vez menos contestada. E, ademais, nao sera dificil relem- brar, embora sumariamente, os fatos essenciais que a justificam. Antes de tudo, se ha hojo verdade histérica estabelecida é a de que a moral se acha estritamente relacionada com a natureza das sociedades, pois que, como o mostramos nas paginas anteriores, ela muda quando as sociedades mudam. E’ que ela resulta da vida em comum. E’ a sociedade que nos langa fora de nés mesmos, que nos obriga a considerar outros interésses que n&o os nossos, que nos ensina a dominar as paixdes, os instintos, © dar-lhes lei, ensinando-nos 0 sacrificio, a privagdo, a subordinacao dos nossos fins individuais a outros mais elevados. Todo o sistema de repre- sentagéo que mantém em nds a idéia e o sentimento da lei, da disciplina interna ou externa, 6 instituido pela sociedade. : Foi assim que adquirimos ésse poder de nos resistirmos a nés mesmos, ésse dominio sébre as nossas tendéncias, que é dos tragos distintivos da fisionomia humana, pois ela é tio desenvolvida em nés quanto mais plenamente representamos as qualidades do homem de nosso tempo. Do ponto de vista intelectual, nio devemos menos a socie- dade. E’ a ciéncia que elabora as nogées cardeais, que dominam o pensamento: a nogio de causa, de lei, de espago, de numero; no- des de corpo, de vida, de consciéncia, de sociedade, etc. Todas es- sas idéias fundamentais se encontram perpétuamente em evolucdo: é que elas so o resumo, a resultante de todo trabalho cientifico, justamente ao contrério de serem o seu ponto de partida, como Pestalozzi acreditava. Nao concebemos hoje o homem, a natureza, as coisas, 0 espago mesmo — como os homens da Idade Média os concebiam; é que os nossos conhecimentos e os nossos processos cientificos ja n&o sido os mesmos. Ora, a ciéncia 6 obra coletiva, porquanto supde vasta cooperagao de todos os sabios, nio sdmente de dada época, mas de tédas as épocas que se sucedem na histéria. 36 EDUCAGAO E SOCIOLOGIA Aprendendo uma lingua, aprendemos todo um sistema de idéias, organizadas, classificadas, e, com isso, nos tornamos her- deiros de todo o trabalho de longos séculos, necessdrio a essa or- ganizacao. Ha mais, no entanto. Sem a linguagem, nado terlamos idéias gerais, porquanto é a palavra que as fixa, que dé aos con- ceitos suficiente consisténcia, permitindo ao espirito a sua apli- cacao. Foi a linguagem que nos permitiu ascender acima da sen- sacdo; e nao seré necessario demonstrar que, de todos os aspectos da vida social, a linguagem é um dos mais preeminentes. Por ésses exemplos se vé a que se reduziria o homem, se se retirasse déle tudo quanto a sociedade Ihe empresta: retornaria & condicéo de animal. Se éle péde ultrapassar o estadio em que os animais permanecem, é porque primeiramente nao se conformou com o resultado unico de seus esforgos pessoais, mas cooperou sempre com seus semelhantes, e isso veio reforgar o rendimento da atividade de cada um. Depois, e sobretudo, porque os resultados do trabalho de uma geragdo no ficaram perdidos para a geracao que se lhe seguiu. Os frutos da experiéncia humana sio quase que integralmente conservados, gragas & tradigao oral, gragas aos livros, aos monumentos figurados, aos utensilios e instrumentos de toda a espécie, que se transmitem de geragéo em geracao. O solo da natureza humana se recobre, assim, de fecunda camada de aluviado, que cresce sem cessar. Ao invés de se dissipar, tédas as vézes que uma geracio se extingue e é substituida por outra, a sabedoria humana vai sendo acumulada e revista, dia a dia, e 6 essa acumu- ~ lacio indefinida que eleva o homem acima do animal e de si mesmo. Como a cooperacao, no entanto, ésse aproveitamento da ex- periéncia n&o se torna possivel seniio na sociedade e por ela. Para que o legado de cada geragao possa ser conservado e acrescido, sera preciso que exista uma entidade moral duradoura, que ligue uma geracaio & outra: a sociedade. Por isso mesmo, o suposto antago- nismo, muitas vézes admitido entre individuo e sociedade, nao corresponde a coisa alguma no terreno dos fatos. Bem longe de estarem em oposigéio, ou de poderem desenvolver-se em sentido inverso, um do outro — sociedade e individuo sao idéias depen- dentes uma da outra. Desejando melhorar a sociedade, o individuo deseja melhorar-se a si proprio. Por sua vez, a a¢do exercida pela sociedade, especialmente através da educagao, nao tem por objeto, ou por efeito, comprimir o individuo, amesquinhé-lo, desnatura-lo, jas ao contrdrio engrandecé-lo e tornd-lo criatura verdadeiramente humana. Sem duvida, o individuo nado pode engrandecer-se sendo “pélo proprio esforgo. O poder do esférgo constitui, precisamente mma dae earacteristioas assenciais da hamem CAP. I — A EDUCAGAO — SUA NATUREZA E FUNGAO 37 § 4.° — A FuNGAO Do ESTADO EM MATERIA DE EDUCAGAO A definicdo, anteriormente estudada, permite resolver, com clareza, a controvertida questio dos deveres e direitos do Estado, em matéria de educacao. Opoe-so ao Estado, quase sempre, os direitos da familia. Diz-se que a crianga é, antes de tudo, de seus pais; a éstes, pois, e a mais ninguém, incumbe a diregdo de seu desenvolvimento inte- lectual e moral. A educagéo 6, assim, concebida como uma coisa essencialmente privada e doméstica, e, désso ponto de vista, tende- se, naturalmente, a reduzir ao minimo a intervencio do Estadio. De fato, dizem alguns, s6 quando falta a familia 6 que o Estado deve intervir, como auxiliar e substituto. Quando a familia nao esta em estado de cumprir os seus deveres, é natural que o Estado apareca. E’ natural também que éle torne tao facil quanto possivel a tarefa educativa, pondo a disposipao das familias escolas a que elas possam mandar seus filhos, se assim o entenderem. Mas a acao do Estado deve conter-se nisso e nada mais. 0 Estado deve negar-se a qualquer ago positiva tendente a imprimir determinada orientagao ao espirito da juventude. Todavia, se examinarmos mais de perto a questdo, verifi- caremos que a acéo do Estado nao podera ficar assim restrita, ou negativa. Se a educagdo, como vimos, primacialmente se apresenta como fungao coletiva, se tem por fim adaptar a crianga ao meio social para o qual se destina — 6 impossivel que a sociedade se desinteresse désse trabalho. Como poderia alhear-se, se a sociedade tem de ser o ponto de referéncia em vista do qual a educagio deve dirigir seus esforgos? E’ a ela propria que incumbe estar lembrando ao mestre quais sio as idéias e os sentimentos a imprimir ao es- pirito da crianga a fim de que o futuro cidadao possa viver em har- monia com o meio. Se a sociedade nao estiver sempre presente e vi- gilante, para obrigar a acdo pedagégica a exercer-se em sentido so- cial, essa se pord ao servigo de interésses particulares e a grande alma da patria se dividird, esfacelando-se numa multiddo incoerente de pequenas almas fragmentarias, em conflito umas com as outras. Nada pode ser mais contraério ao objetivo fundamental de toda educacao! E’ forgoso escolher. Se se dé alguma importancia a existéncia da sociedade — e nds acabamos de ver o que ela representa para © individuo — preciso sera que a educagio assegure, entre os ci- dadaos, suficiente comunidade de idéias e de sentimentos, sem o que nenhuma sociedade subsiste; e, para que a educagio possa. produzir ésse resultado, claro est4 que. nio pode ser inteiramente abandonada ao arbitrio dos particulares. Admitido que a educagdo seja fungdo essencialmente social, ndo pode o Estado desinteressar-se dela. Ao contrario. tudo o aue 38 EDUCAGAO E SOCIOLOGIA seja educagio, deve estar, até certo ponto, submetido & sua influén- cia. Isto nao quer dizer que o Estado deva, necessiriamente, mo- nopolizar o ensino. A questdo 6 muito complexa para que se trate dela assim de passagem. Pode-se acreditar que 0 progresso escolar seja mais facil e mais rapido onde certa margem se deixe & ini- ciativa privada. O individuo é sempre mais renovador que o Es- tado. Mas, do fato de dever o Estado, no interésse publico, deixar abrir outras escolas que ndo as suas, nado se segue que deva tor- nar-se estranho ao que nelas se venha a passar. Pelo contrario, a educagao que ai se der deve estar submetida & sua fiscalizacao. Nao 6 mesmo admissivel que a fungao de educador possa ser preenchida por alguém que nao apresente as garantias de que o Estado, e sé éle, pode ser juiz. Os limites dentro dos quais deve permanecer essa intervencio nao~podem ser determinados uma vez por tédas; mas o principio de intervengiio no se contesta. N&o se compreende que uma escola possa reclamar o direito de dar uma educacao anti-social, por exemplo. Sera necessario reconhecer, entretanto, que a situagao de luta em que atualmente esto os espiritos, quanto & fungao do Estado, torna seus deveres particularmente delicados, ao mesmo tempo que mais relevantes, em matéria de educacao. Nao incumbe ao Estado, com efeito, impor uma comunhio de idéias e de sentimentos, sem a qual a sociedade nao se organiza; essa comunhdo é espontanea- mente criada, e, ao Estado outra coisa nio cabe sendo consagra-la, manté-la, tornd-la mais consciente aos individuos. Ora, é incontestavel que, infelizmente, entre n5s, essa unidade moral nao se apresenta sob todos os pontos, como seria de dese- jar-se. Estamos divididos por concepgdes divergentes e, as vézes, mesmo contraditérias (*). Ha, nessas divergéncias, um fato impossivel de dissimular, e cuja consideragéc se impde ao espirito dos educadores. E’ o de que nio se deve reconhecer a maioria o direito de impor suas idéias’ aos filhos dos individuos em minoria, A escola nio pode ser pro- priedade de um partido; e o mestre faltara aos seus deveres quando empregue a autoridade de que dispde para atrair seus alunos A rotina de seus preconceitos pessoais, por mais justificados que éles lhe paregam. A despeito de todas as dissidéncias, ha, no entanto, na base de nossa civilizagdo, certo numero de principios que, impli- cita ou explicitamente, sio comuns a todos, ou pelo menos que bem poucos ousam negar em sa consciéncia: o respeito da razio, da ciéncia, das idéias e sentimentos em que se baseia a moral de- rnocratica. E’ fungao do Estado proteger ésses principios essenciais, fazé-los ensinar em suas escolas, velar por que nao fiquem igno- rados pelas criangas de parte alguma, zolar pelo respeito que lhes devemos. Ha, a éste propésito, uma agao certa a exercer, que tal- (1). Em todo ste trecho 9 A. se refere & Franca, em particular. Mas 03 seus con- coitos podem ser generclizados & maioria das nagdes modernas (Nota do trad.). CAP. I — A EDUCAGAO — SUA NATUREZA E FUNGAO 39 vez seja tanto mais eficaz, quanto menos agressiva e menos vio- lenta parega, contida, como deve ser, nos limites de sabia tole- rancia. § 5.0 — PopER DA EDUCACGAO E MEIOS DE SEU EXERCIcIO Depois de haver determinado o fim da educagao, faz-se mister determinar como, e em que medida poderemos atingir ésse fim; isto é, como e em que medida a educagio pode ter eficacia. A questo tem sido, em todos os tempos, muito controvertida. Para FoNTENELLE, «nem a boa educacio faz o bom carter, nem a ma destréi». Ao contrario, para Locke, para HELVETIUS, a educagio é onipotente. Segundo éste ullimo, «todos os homens nascem iguais e com aptidées semelhantes; s6 a educacao os di- ferencia». A teoria de Jacoror se aproxima da precedente. — A solugdo déste problema depende da idéia que se tenha da impor- tancia e da natureza das predisposigées inatas, de uma parte; e do poder dos processos educativos de que o educador disponha, de outra parte. A educagio nfo tira o homem do nada, como acreditavaim Locke e Hetverius. Ela se aplica a disposigdes que se encontram na crianga. Pode-se conceder, de modo geral, que essas tendéncias congénitas sejam muito fortes, dificeis de destruir ou de transfor- mar radicalmente, porque elas dependem de condigdes organicas sdbre as quais o educador nado tem quase influéncia alguma. Em conseqléncia, na medida em que elas possuam objeto definido, ou inclinem o espirito e o carter a agir e a pensar de modo estri- tamente determinado, todo o futuro do individuo se acha fixado de antem&o. A educagio nao podera af fazer muito (‘), Felizmente, as predisposicées inatas do homem sio muito gerais e muito vagas. O tipo de predisposigéo fixa, rigida, invaria- vel, que néo permite a acio das causas exteriores é o instinfo. Pode-se perguntar se, nesse sentido, existe no homem um sé instinto, propriamente dito. Fala-se algumas vézes do instinto de conservagaéo, mas a expressio é imprépria. Porque o instinto é um sistema de movimentos determinados, sempre idénticos, que, uma vez provocados pela sensagio, se encadeiam automaticamente até que cheguem a seu térmo natural, ai tudo sem que a reflexao possa intervir. Os movimentos que fazemos quando nossa vida esté em perigo nao tém absolutamente essa determinacao e essa invariabilidade automatica. Rles mudam conforme as situagdes ; nés os apropriamos as circunstancias: éles se estabelecem, por- tanto, depois de certa escolha consciente, ainda que muito rapida. O que chamamos instinto de conservagao nao passa, em definitivo, Q) "A Hereditariedade em Face da Educagto", Dr. Otévio Domingues. 40 EDUCAGAO E SOCIOLOGIA de uma impulsdo geral de fugir ao sofrimento e & morte, sem que os meios pelos quais procuremos evit4-los estejam predeterminados, uma vez por tédas. Pode-se dizer o mesmo do que se chama, nao menos exatamente, de instinto maternal, instinto paternal e, mesmo instinto sexual. Sao tendéncias, numa certa diregdo. Mas as formas pelas quais essas tendéncias se exteriorizam variam de individuo a individuo, e de uma ocasiao a outra. Larga margem se reserva a indecisées, a tentativas, a acomoda- des pessoais, e, em conseqiiéncia, & acdo de fatéres que nio podem fazer sentir sua influéncia sendo depois de nascido o individuo. Ora, a educagio 6 um désses fatéres. : E’ verdade que se pretende que a crianga herde, as vézes, tendéncia muito forte para atos definidos, comio 0 suicidio, 0 roubo, o assassinio, a fraude, etc. Mas tais assergées absolutamente nao se coadunam com os fatos. Diga-se o que se disser, nio se nasce criminoso; ainda menos, nao se é votado, desde o nascimento, a éste ou aquele género de crime; o paradoxo dos criminalistas ita- lianos no conta mais com grande numero de defensores (+). O que se herda 6 certa falta de equilibrio mental, que torna o individuo mais refratario a uma conduta coerente e disciplinada. Um tempera- mento dessa natureza nao predestina, porém, o homem para ser mais criminoso do que para ser explorador, desejoso de aventuras, profeta, renovador politico, inventor, etc. Pode-se dizer outro tanto das aptiddes profissionais. Como observa Barn, «o filho de um grande fildlogo nado herda um sé vocdbulo; o filho de um homem que tenha viajado muito pode ser vencido em geografia pelo filho de um mineiro». O que a crianga recebe de seus pais sido faculdades muito gerais: capacidade de atengio, certa dose de perseveranga, juizo sao, capacidade imaginativa, etc. E’ Obvio que cada uma dessas faculdades pode servir a fins muito diversos. Uma crianga dotada de viva imaginagéo poder& tornar-se, segundo as circunstancias e as influéncias que tiver recebido, grande pintor ou poeta, engenheiro de espfrito inven- tivo ou audacioso financeiro. E, pois, considerdvel a variagao da aplicacao das qualidades naturais, e a forma especial de sua uti- lizagao na vida. Isto quer dizer que o futuro nao se acha estri- tamente predeterminado por nossa constituigao. A razdo é facil de ser compreendida. As tmicas formas de atividade, que poderiam ser transmitidas hereditariamente, seriam aquelas que se repetissem sempre de modo perfeitamente idéntico, para poder fixar-se sob forma rigida no organismo. Ora, a vida humana depende de condigdes multiplas e complexas, e, por isso mesmo, mutaveis; sera preciso que o organismo mesmo se modi- fique sem cessar. Logo, é impossivel que a vida se cristalize sob forma definida e definitiva. S6 disposigdes muito gerais, muito (1). © A, se refere & escola antropelégica de Lombroso, nfio aos modernos crimi- nalistas jitclianos, entre os quais Colajanni, Alimena e Vaccaro, da escola sociolégica. CAP. I — A EDUCAGAO — SUA NATUREZA E FUNGAO 41 vagas, que exprimam caracteres comuns a tédas as experiéncias particulares, poderio sobreviver e passar de uma geracdo & outra. Afirmar que os caracteres inatos s40, na maior parte, de ordem geral, é afirmar que éles se apresentam maledveis, flexiveis, muito déceis, podendo receber determinacées muito variadas. Entre as virtualidades indecisas que constituem o homem, ao nascer ea personalidade definida que éle deve tornar-se, para o desempenho na sociedade de um papel util — a distancia é muito grande. Essa distancia 6a educagéo que faz a crianca percorrer. Vé-se, dai, quao vasta é a sua fungao. Mas, para exercé-la, disporé a educagéo de meios suficiente- mente enérgicos? Para dar idéia do que constitui a acdo educativa e demonstrar o seu poder, um psicélogo contempordneo, Guyau, comparou-a com a sugestao hipnética (+). E a comparacado tem a sua razio de ser. A sugestéo hipndtica supde, com efeito, duas condicdes, que sdo as seguintes: 1) O estado em que se encontra o sujeito hipno- tizado se caracteriza por uma excepcional passividade; 0 espirito fica quase reduzido ao estado de tabula rasa; uma espécie de vacuo se faz na consciéncia; a vontade fica paralisada. Em conseqiiéncia, a idéia sugerida, nao encontrando pensamento contrario, pode instalar-se com um minimo de resisténcia. 2) Entretanto, como o vacuo nunca é completo, sera preciso que a idéia tire, da propria sugestdo, um poder de acao particular. Por isso, é necessdrio que o magnetizador fale em tom de comando, com autoridade. [’ preciso que éle diga Eu quero; que indique que nem acredita a recusa seja possivel; que o ato deve ser cumprido; que a coisa deve ser vista tal qual 6 mostrada, que nao pode ser doutra forma. Se o hipnotizador vacila, vé-se o sujeito hesitar, resistir, ds vézes mesmo recusar-se a obedecer. Se entra em discussio, isso sera taéo-somente para mostrar o seu poder. Se a sugestéo for contra a tendéncia natural do hipnotizado, mais imperativo deve ser o tom em que sc lhe fale. Ora, essas duas condigdes se exigem nas relagdes que o edu- cador mantenha com a crianga, submetida a sua influéncia: 1) A crianga fica, por condi¢ao natural, em estado de passividade perfei- tamente comparavel aquele em que o hipnotizador é artificial- mente colocado. A consciéncia nao contém ainda sen’o pequeno numero de representagées, capazes de lutar contra as que lhe sao sugeridas; a vontade é ainda rudimentar. Por isso, 6 a crianga facilmente sugestionavel. Pela mesma razdo, torna-se muito aces- sivel ao contagio do exemplo, muito propensa & imitacdo. 2) O as- cendente que o mestre naturalmente possui sdbre o discipulo, em razio da superioridade da experiéncia e cultura, dar-lhe-4 o poder (1)_ JEAN MARIE GUYAU filésofo francés, (18541888) autor do célebre “Esbéco duma Moral sem Obrigagdo nem Sancao”, e de outras obras, como "L’Avenir’, @ "Edu. cation et heredité’. E neste ultimo livro’ que Guyau compara os efeitos da ‘educagtio aos da sugestdo (Nota do trad.). 42 EDUCAGAO E SOCIOLOGIA necessario & eficdcia de sua atividade. Esta comparacdéo demonstra como o educador deve ser prudente. Bem se conhece o poder da sugestio ‘hipnotica; se a agdo educativa tem eficacia similar pode-se esperar muilo da educagio, uma vez que saibamos utiliza-la. Longe de nos encorajar, devemos, a0 contrario, temer a ex- tensio do poder que temos. So os mestres e pais sentissem, de modo mais constante, que nada se passa diante da crianga sem deixar nela algum trago; que o aspecto final do espirito e do cara- ter depende dessa infinidade de pequeninos fatos insensiveis ocor- rentes a cada instante sem que lhes demos grande atencgio — como fiscalizariam com muito mais cuidado a sua linguagem e os seus atos! Certo, a educagio nao pode chegar a dar grandes resultados, quando tentada por golpes intermitentes. Como ja dizia HERBART, nao 6 admoestando a crianga, com veeméncia, de longe em longe, que se pode agir eficazmente sobre ela. Quando, porém, a educagao seja paciente © continua, quando nao procure éxitos imediatos e aparentes, mas prossiga com lentidao, buscando objetivos bem determinados, sem se deixar desviar por incidentes exteriores e circunstancias adventicias, entéo chega a dispor de todos os meios necessérios para influenciar profundamente a alma da crianga. ‘Ao mesmo tempo, percebemos qual seja o meio essencial da ago educativa. O que faz a influéncia do magnetizador é a autori- dade que Ihe advém das circunstancias. Por analogia, pode-se dizer, desde logo, que a educagdo deve ser um trabalho de autoridade (+). Esta importante proposigéo pode ser, ademais, diretamente esta- belecida. J& vimos que a educacgio tem por objeto superpor, ao ser que Somos ao nascer, individual e associal — um ser inteira- mente novo. Ela deve conduzir-nos a ultrapassar a natureza indi- vidual: s6 sob esta condicao, a crianga tornar-se-4 um homem. Ora, nao podemos elevar-nos acima de nés mesmos, senio por es- forgo mais ou menos penoso. Nada é tao falso e enganador como a concepgao epicuriana da educagao, a concepcao de MonTatane, por exemplo, segundo a qual o homem pode formar-se, divertindo-se, sem outro aguilhio senao o do prazer. Se a vida nada tem de som- brio, e se é crime ensombra-la artificialmente aos olhos da crianga, verdade 6 também que ela é grave @ séria, e que a educacao, que prepara para a vida, deve participar dessa gravidade. Para aprender a conter o egoismo natural, subordind-lo a fins mais altos, sub- meter os desejos ao império da vontade, conformé-los em justos limites, ser& preciso que o educando exerga sdbre si mesmo grande trabalho de contengao. Ora, néo nos constrangemos, n&o nos sub- metemos sendo por uma destas duas raz6es: ou por forga da neces- sidade de defesa fisica, ou porque o devamos moralmente. Mas a crianga nao pode perceber a necessidade que nos impée fisicamente (1) Esta afirmagéo colide, & primeira vista, com os principios da chamada “escola ative". V4 a propésite, © vol. desta colectio Introdugéo ao Estudo da Escola Nova, de Tourengo Filho. CAP. I — A EDUCACAO — SUA NATUREZA E FUNGAO 43 tais esforgos, porque ela n&o se acha em contato imediato com as duras realidades da vida, que tornam essa atitude justificavel. Ela ainda nado esté empenhada na luta; se bem que SPENCER o tenha aconselhado, nio podemos deixa-la exposta 4s rudes reagdes das coisas, as sangdes naturais. Ser preciso que ela esteja em grande parte formada quando verdadeiramente os aborde. Nao 6, pois, com a pressdo das coisas que se pode contar para determinar o educando a exercer a vontade, adquirindo sébre si mesmo o do- minio necessario. Fica o dever. O sentimento do dever, sim. E’ éle, o estimulante capital do esf6rgo para a crianga, e mesmo, para o adulto. O amor- proprio j& o faz supor. Porque, para ser sensivel, como convém as punigdes e recompensas, é preciso ter consciéncia de sua dignidade, e, por conseguinte, do dever. Mas a crianga nfo pode conhecer o dever sendo por seus pais e mestres; ndo pode saber o que éle seja sendo gracas ao modo pelo qual pais e mestres o revelarem, na conduta e na linguagem. E’ preciso, portanto, que éles sejam, para o educando, o dever personificado. Isso significa que a auto- ridade moral 6 a qualidade essencial do educador. Porque, pela autoridade, que néle se encarna, 6 que o dever é o dever. 0 que o dever tem de especial é o tom imperativo com que fala 4s cons- ciéncias, o respeito que inspira & vontade, e que a faz inclinar-se, desde que éle se tenha pronunciado. Por isso mesmo, é indispen- sdvel que uma impressio do mesmo género resulte da pessoa do mestre (1). N&o sera necessario demonstrar que a autoridade, assim com- preendida, nada tem de violento nem de compressor; consiste tio- sdmente em ascendéncia moral. Ela supde, realizadas no mestre, duas condicées essenciais. Primeiro, que éle tenha vontade. Porque a autoridade implica a confianga, e a crianga nao pode manifestar confianga em quem vé hesitar, tergiversar, voltar sdbre suas deci- sdes. Mas essa primeira condigio néo 6a principal. O que im- porta, antes de tudo, 6 que o mestre demonstre sentir realmente, sinceramente, 0 sentimento da propria autoridade. A autoridade é uma forga que ninguém pode manifestar se efetivamente nao a pos- sui. Donde pode vir ela? Sera do poder material de que se arma? do direito de punir e de recompensar? Mas o temor do castigo é coisa diversa do respeito & autoridade. Esse temor nao tem valor moral senao quando o castigo seja reconhecido como justo por aquéle que o recebe; e isso implica que a autoridade, ao punir, j& é reconhecida como legitima. E a questao precisamente é essa. Nao 6 de fora que o mestre recebe a autoridade: 6 de si mesmo. Ela nao pode provir senao de f6 interior. E’ preciso que éle creia nao em si, sem duivida, nio nas qualidades superiores de sua inte- ligéncia ou de seu coragdéo, mas na missio que lhe cabe e na grandeza dessa missio. O que faz a autoridade de que, t&o facil- Q) _V. a propésito o vol. III desta colegio, sob o titulo "Educugdo Moral e Edu- cagéo Econémica”, pelo Dr. Sampaio Déria. 44 EDUCACAO E SOCIOLOGIA mente, se reveste a palavra do sacerdote, é a alta idéia que tem de sua missio; porque éle fala em nome de uma divindade, na qual tem {é, de quem se sente mais préximo do que a multidao dos profanos. O mestre leigo pode © deve ter alguma coisa désse sentido. fle também é o érgio de uma grande entidade moral: a sociedade. Da mesma forma que o sacerdate é 0 intérprete do seu Deus, éle 6 o intérprete das grandes idéias morais de seu tempo e de sua terra. Que éle se aferre a essas idéias, que sinta téda a sua grandeza e a autoridade que existe nelas e de que éle possua perfeita conscién- cia. Nao tardara essa autoridade a comunicar-se & sua pessoa © a tudo quanto dela emane. Na autoridade, que assim decorra duma causa impessoal, n&éo pode entrar orgulho, nem vaidade, nem pedanteria. Ela é feita do respeito que o mestre tenha por suas fungdes ou, se se quiser dizer, de seu ministério. E’ ésse respeito que, por via da linguagem, do gesto e da conduta, passa de sua consciéncia para a consciéncia da crianga. Tem-se muitas vézes oposto a idéia de liberdade e de autori- dade, como se ésses dois fat6res de educac&o se contradissessem e, reciprocamente, se limitassem. Mas essa oposigao é ficticia, Na realidade, ésses dois térmos, longe de se excluirem, s&o correlatos. A liberdade é filha da autoridade bem compreendida. Porque ser livre, nao é fazer 0 que se queira; é ser-se senhor de si, saber agir pela raz&o, praticando o dever. Ora, é justamente com o obje- tivo de dotar a crianca désse dominio de si mesma que a autoridade do mestre deve ser empregada. A autoridade do mestre nao é mais do que um aspecto da autoridade do dever e da razio. A crianga deve habituar-se a vé-la na palavra do educador, reconhecendo-lhe a forga moral; s6 assim saberd, mais tarde, en- contra-la nos ditames da propria consciéncia, a quem, ent&o, de vez se entregara,

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